Trauma, Memória e Figurabilidade na Literatura de Testemunho
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Sobre este e-book
Tendo isso em vista, Diego Frichs Antonello amplia a noção de memória apresentada por Freud na Carta 52, fazendo uma distinção entre traços mnêmicos e impressões para, com isso, apresentar a memória referente aos conteúdos representativos e outra relativa aos elementos traumáticos. As impressões são os primeiros registros mnêmicos do psiquismo, anteriores à formação dos traços mnêmicos, portanto fora do sistema inconsciente e do alcance do princípio de prazer. Diante da impossibilidade de ligação que caracteriza o trauma, as impressões permaneceriam congeladas no aparato psíquico, apresentando-se de forma literal no psiquismo do sujeito traumatizado, motivo pelo qual os autores da literatura de testemunho enfatizam que as suas memórias referentes ao trauma são muito mais vívidas se comparadas com as demais.
Antonello, ademais, faz uma releitura do conceito de figurabilidade, que o permite explicar como as impressões não ligadas encontram um meio de expressão no psiquismo. Figurar consiste em criar uma imagem sensível onde nada existia anteriormente. Apoiados em Sándor Ferenczi, que trouxe uma importante contribuição à teoria e à clínica do trauma, principalmente com os conceitos de autoclivagem narcísica e desmentido, e em uma análise de vários autores da literatura de testemunho, compreendemos como o eu se defende e, mesmo, cria alternativas de sobrevivência diante do trauma. Tal proposta ajuda a pensar a escrita de testemunho como uma saída para o trauma que não passa, necessariamente, pelos processos representativos indicados na teoria freudiana. Nessa perspectiva, o testemunho de acontecimentos traumáticos nasce diretamente das impressões, consistindo em uma narrativa literal, isenta de entrelinhas e também uma forma criativa de lidar com o traumático.
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Trauma, Memória e Figurabilidade na Literatura de Testemunho - Diego Frichs Antonello
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
A Patrícia Paraboni e Marilú.
AGRADECIMENTOS
À Prof.ª Dr.ª Jô Gondar, pelo acolhimento, amizade e aposta na minha proposta de pesquisa. Sou especialmente grato por sua generosidade no compartilhamento da teoria e da prática psicanalítica, que enriqueceram muito meu percurso durante a pós-graduação. Preciso destacar que sua generosidade não se resume à transmissão de conhecimentos sobre a psicanálise; vai além, é uma marca de sua personalidade, a qual passei a admirar. Sabe-se que o doutorado é um período de muito trabalho, mas que, sob o meu juízo, em nenhum momento foi penoso, fato que se deve à postura de respeito, troca, incentivo e liberdade de pensamento proporcionada. Assim, era sempre prazeroso trabalhar para tentar encontrar uma saída às complicações e aos impasses próprios da elaboração de uma tese. Poder contar com a sua orientação foi fundamental para o desenvolvimento deste livro.
À Prof.ª Dr.ª Regina Herzog, que teve a paciência, durante o mestrado, de gentilmente me ensinar a estudar, pesquisar e, também, escrever. Minha eterna gratidão por me inserir no universo da pesquisa acadêmica e, sobretudo, auxiliar-me e dar apoio durante essa caminhada. Contar com a sua amizade e interlocução foi extremamente importante durante esse processo.
Percorrida essa caminhada, percebo que uma das questões norteadoras deste trabalho nasceu há muito tempo, de uma pergunta feita pela Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Furtado Khal (Marilú), durante uma discussão sobre o trauma e a interpretação na clínica psicanalítica. Na discussão, Marilú propôs a mim a premissa de que nem tudo é passível de interpretação, e pergunta de forma contundente (como lhe era característico): E quando não há fios lógicos para seguirmos?
Demorei muitos anos para entender o questionamento. Bem, Marilú, você tinha toda a razão! As elaborações feitas aqui são uma tentativa de resposta, e dedico-as à memória da querida Marilú: a ti minha gratidão, e muitas saudades.
À minha esposa, Patrícia Paraboni, que sempre foi meu porto seguro. Com quem tenho a felicidade de compartilhar a vida, tornando-a especial.
Ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Unirio, aos funcionários e aos professores, pelo acolhimento e pelos ensinamentos.
Ao Prof. Dr. Francisco Ramos de Farias, pela amizade, pelo apoio e pela pronta disposição para discutir e trazer contribuições ao avanço deste trabalho.
À Capes, pelo financiamento desta pesquisa.
Aos amigos Maiquel Canabarro, Camila Peixoto, Marcos e Raquel Monteiro, pela amizade e pelos ótimos momentos passados nas terras gaúchas, mineiras e, especialmente, cariocas.
Ao amigo André Jacques Martins Monteiro, pela amizade e pelos vários quebra-galhos. E, também, pela postura humana, gentil e sempre pronta a estender a mão ao próximo, que sempre admirei.
Aos meus pais, Luiz Carlos Antonello e Paulina Frichs Antonello, pelo amor, carinho e apoio recebidos.
PREFÁCIO
Houve um momento, na construção freudiana, em que o terreno de incidência da psicanálise se ampliou, passando a abarcar os fenômenos culturais – como a arte, a moral, a religião e mesmo o mal-estar, a violência e as guerras. Não por acaso, os textos culturais de Freud surgem, em sua maior parte, depois da Segunda Guerra, de seu contato com as neuroses de guerra e de sua percepção do alcance da destrutividade humana. Quando ele adentrou o território da cultura, não foi simplesmente para promover uma aplicação da psicanálise, estendendo as descobertas feitas na clínica individual a uma área mais vasta. Foi preciso que Freud se deparasse e refletisse sobre a guerra, a violência e a destruição para introduzir na teoria a pulsão de morte – cuja ação não seria percebida tão facilmente durante os tratamentos com os pacientes –, para forjar uma segunda tópica e para reelaborar a noção de trauma. Assim, a interpretação da cultura se mostrou fundamental para o avanço da teoria, modificando suas linhas gerais e enriquecendo a terapêutica com conceitos e noções que dificilmente poderiam ser extraídas do próprio manejo clínico.
Acontece algo parecido na aproximação da psicanálise com a literatura de testemunho. Segundo Márcio Seligmann-Silva, essa última não deve ser encarada como um gênero literário, e sim como a face da literatura que se revela na era de catástrofes, narrando aquilo que a própria literatura não consegue narrar. É compreensível que a psicanálise seja um instrumento importante na análise dessas narrativas, não só por ter teorizado sobre o trauma, mas também por ter produzido um dispositivo clínico de uma situação testemunhal. Porém o inverso também é verdadeiro: a literatura de testemunho tem coisas importantes a dizer ou, talvez melhor, a mostrar aos que se interessam pela literatura, pela política e pela psicanálise. O filósofo Theodor Adorno escreveu que, após o terror do Holocausto, não seria mais possível escrever poesia, sendo preciso encontrar outras maneiras de se atuar na estética e na política. Nesse mesmo sentido, a literatura de testemunho também é capaz de provocar algumas mudanças na psicanálise e, principalmente, na sensibilidade dos analistas, ensinando-os a ouvir e a ver o que dificilmente, ou nunca, poderia ser visto ou ouvido. Com o relato de sobreviventes de genocídio, tortura e violência, a psicanálise é forçada a reconhecer que precisa lidar com algo mais do que uma narrativa e sua escuta. Pois nessa literatura não se trata simplesmente de narrar o que aconteceu, e sim de admitir, ao mesmo tempo, que aquilo que aconteceu não faz parte do narrável.
O livro de Diego Frichs Antonello não é o primeiro a abordar a contribuição mútua entre psicanálise e literatura de testemunho. Porém é o primeiro a mergulhar mais profundamente nas contribuições teóricas e clínicas que esses relatos trazem ao campo analítico. A maior parte dos estudos produzidos nesse campo sobre as narrativas de sobreviventes centra-se no fato de elas remeterem ao real do trauma e, por isso, resistirem à representação. E, porque o real é visto como caótico e indiferenciado, pensa-se que só na esfera das representações simbólicas poderia residir a possibilidade de memória, organização, sentido, relação com o outro. Diego, porém, trabalha de outra forma. Vê no real uma multiplicidade, diferenças que fervilham, nuances e matizes e, em decorrência, possibilidades criadoras. Mostra que trauma e memória não se opõem, que é possível haver memória do que não se representa e que tampouco a escrita e o real se situam em campos contrários. Fala de uma escrita que sofre, cheira, grita e tem fome. Uma escrita literal, como ele nos propõe a pensá-la, nascida diretamente das impressões sensíveis.
O texto é muito claro e, ao mesmo tempo, cuidadoso com as hipóteses que apresenta, convocando autores capazes de dar consistência e solidez a essas ideias. Na teoria psicanalítica, temos principalmente Freud e Ferenczi, mas também Törok e o casal Botella, e sem esquecer os colegas brasileiros: Pinheiro, Knobloch, Herzog e Verztman. Da filosofia, são trazidos, entre outros, Walter Benjamin, Agamben, Derrida e Didi-Huberman. Na literatura de testemunho, temos relatos de Primo Levi, Jean Cayrol, Elie Wiesel, Jorge Semprun, Robert Antelme, Helga Weiss, Ruth Klüger, Shlomo Venezia, David Rousset, Jean Améry, Tito de Alencar. O livro faz um estudo minucioso e rico desses testemunhos, marcando o que eles têm em comum – o real em sua dimensão inenarrável e invivível –, sem se furtar a apontar suas diferenças: a esfera mais criativa dos relatos. O autor observa as características principais das narrativas escritas, sua forma fragmentada, sua literalidade, suas repetições, sua aspereza, mostrando, ao mesmo tempo, quanto todas elas podem envolver processos de criação que não passam, necessariamente, pelos processos de representação.
A articulação entre psicanálise e literatura de testemunho termina por tensionar diversas noções ou ideias que se transformaram em lugares-comuns na psicanálise. Diego os desmonta um a um: o primeiro é a ideia de que a memória é um conjunto de representações e de que onde há trauma não há memória. Tendo bastante intimidade com a metapsicologia freudiana, ele nos faz ver que já em Freud estaria presente uma memória de impressões sensíveis. Em segundo lugar, a noção de repetição: habitualmente vista como algo a ser substituído pela recordação e pela elaboração, ela aparece nos relatos testemunhais em sua dimensão criativa e curativa. O livro ensina como é possível criar um destino para as impressões sensíveis das vivências dolorosas pela figurabilidade (nesse caso, pela figuração e encenação literal da situação de sofrimento) e pela repetição. Em suma: repetição e criação não se opõem. O terceiro lugar-comum refere-se à linguagem. Com Ferenczi, são admitidas outras possibilidades de simbolização que não apenas a linguística, ao mesmo tempo que a linguagem pode ser abordada em sua dimensão sensível. Em toda criação, vai-se do sensível – e não do significante – para o sentido.
Creio que este livro, na perspectiva pela qual foi construído, tem aportes fundamentais não só para os psicanalistas ou para os pesquisadores do campo da memória, mas para todos nós que partilhamos este momento político. Hoje, mais do que nunca, é preciso e oportuno se pensar que dos baques com o real a invenção também pode surgir. Nada disso é feito com luzes de holofotes, mas com as pequenas luzes dos vagalumes, os mesmos que Diego Antonello é capaz de enxergar na literatura de testemunho. Mesmo no horror e nos tempos duros, não devemos esquecer que o ser humano é, como expressou bem Jean-Luc Nancy, a resistência absoluta e inabalável ao aniquilamento.
Cabe aos analistas exercer essa responsabilidade política também na situação clínica. Como nos ensina este livro, somos, enquanto analistas, testemunhas das testemunhas. O reconhecimento dessa condição é fundamental para suportarmos o peso e a literalidade dos relatos testemunhais sem tentarmos julgá-los com base em um modelo universal de subjetividade. Livres desse modelo, podemos acolher narrativas fragmentadas sem a expectativa de coerência ou sistematicidade. Talvez assim possamos abrir espaço, também na clínica psicanalítica, para o aparecimento de vagalumes ou, como os chama Antonello, para essas fulgurações figurativas do traumático.
Jô Gondar
Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e
professora titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
APRESENTAÇÃO
O principal objetivo deste livro é, sob a perspectiva psicanalítica, articular trauma, memória e literatura de testemunho. Os autores dos relatos testemunhais são aqueles que sobreviveram a situações de violência física e psíquica e, por meio, da escrita procuram dar testemunho desses acontecimentos, que consideramos traumáticos. Foi, então, da leitura de escritos testemunhais que alguns questionamentos norteadores deste trabalho começaram a surgir. O primeiro diz respeito à dificuldade em articular memória e trauma dentro da teoria freudiana.
Freud (1920/1996m), em Além do Princípio de Prazer, caracteriza o trauma como decorrente de uma falha no processamento da energia pulsional que chega ao aparato psíquico. Como consequência não há formação de traço mnêmico e de representação, elementos essenciais à formação da memória. Tendo em vista isso, encontramos na literatura de testemunho relatos biográficos que descrevem os acontecimentos traumáticos dos quais os autores foram vítimas. Não é difícil concordarmos, mesmo se inicialmente partirmos do senso comum, que esses autores dispõem da memória sobre tais acontecimentos. Mas eis o problema que a literatura de testemunho coloca: a memória daquilo que escapa à representação, como situá-la no aparelho psíquico?
Para que isso fosse possível, realizei uma releitura da Carta 52, na qual Freud elabora a hipótese de que o aparato psíquico teria surgido por um processo de estratificação, sendo composto por várias camadas. Uma parte do material que o compõe, os traços mnêmicos, estaria sujeita a rearranjos, conforme avança por essas camadas. Entretanto Freud traz uma novidade no que tange à memória: esta não se faria presente de uma só vez, mas ao longo de diversas inscrições; abrindo precedentes para propormos que a memória não se resume aos traços mnêmicos.
As impressões ou índices/signos de percepção constituem, na Carta 52, o primeiro registro mnemônico do aparato psíquico. São registros anteriores à formação dos traços mnêmicos. Na ocorrência do trauma permanecerá como uma impressão indomada, constituindo a memória não representativa, fora do sistema inconsciente, do processo primário e da regência do princípio de prazer. Motivo pelo qual os autores de testemunhos enfatizam que as suas memórias são muito mais vívidas, aparecendo de forma ultraclara, isenta de entrelinhas, como presentificações do trauma.
Com o objetivo de explicar como as impressões indomadas encontram um meio de expressão no psiquismo, fiz também uma releitura do conceito de figurabilidade, complexificando-o em relação à proposta apresentada por Freud, em sua obra A Interpretação dos Sonhos. Figurar, resumidamente, consiste em criar uma imagem sensível onde nada existia anteriormente. Desse modo, a figurabilidade estaria na base dos processos psíquicos mais elementares, sendo ainda anterior à representação e possibilitando às impressões não ligadas serem presentificadas sob uma forma captável no psiquismo, caso contrário pouco saberíamos delas.
A literatura de testemunho sinaliza, sobretudo, como o reconhecimento do outro é fundamental para aquele que procura narrar o trauma. Reconhecimento que está no âmago da necessidade de narrar/escrever daqueles que sobreviveram. Tocamos aqui em uma questão que atinge diretamente a clínica: reconhecer é o avesso do descrédito, e isso significa que, na clínica do trauma, o analista ocupa um lugar muito diferente daquele que suspeita de conteúdo oculto nas entrelinhas da narrativa do paciente. Nesses casos, o analisando não carece de interpretações, e sim de amparo e reconhecimento, isto é, precisa que o analista dê crédito à sua narração, ajudando-o a validar suas próprias percepções.
Na clínica do trauma, porém, não basta o paciente narrar e ser ouvido. Antes, é preciso admitir que o analisando narra o que é impossível de ser narrado. A admissão dessa impossibilidade funda o efeito terapêutico baseado no reconhecimento. Tal efeito abre um espaço para que as narrativas literais e fragmentadas possam ser acolhidas sem expectativa de coerência ou sistematicidade. É nesse espaço que pode circular, e aos poucos ganhar forma, algo que, a princípio, seria incomunicável. Esse espaço permite e suporta a literalidade da narrativa testemunhal, seus paradoxos e silêncios. É nesse ponto bem preciso que a literatura de testemunho nos mostra a possibilidade de criar um lugar – e uma memória – para o irrepresentável, sem a necessidade de inscrevê-lo em representações.
Diego Frichs Antonello
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Alimento a esperança de que este trabalho sirva a uma boa causa:
ele se dirige a todos os que não querem ser indiferentes ao próximo.
(Jean Améry)
Sumário
1
A MEMÓRIA ALÉM DA REPRESENTAÇÃO 21
1.1 E quando não há fios lógicos? 25
1.2 A literatura de testemunho: uma breve introdução 27
1.3 A Carta 52 revisitada 31
1.4 A memória na obra freudiana, para além da representação 37
1.5 Introdução do conceito de figurabilidade e aos problemas nos esquemas
de aparato psíquico de A Interpretação dos Sonhos 45
1.6 A figurabilidade: base dos elementos psíquicos mais elementares 51
1.7 Os fueros e a memória sem representação 57
1.8 As descobertas ferenczianas acerca do trauma: clivagem ou a
fragmentação do eu 60
2
LITERALIDADE, ESCRITA E CRIAÇÃO 71
2.1 Algumas considerações sobre a neurose de guerra e a escrita 74
2.2 O horror do universo concentracionário na Segunda Guerra Mundial 78
2.3 Repetir, figurar e criar 87
2.4 A necessidade de narrar/escrever 92
2.5 A vida se defende no corpo
: trauma, clivagem, corpo, autoerotismo
e sobrevivência 99
2.6 Narrar o impossível de ser narrado: o paradoxo do testemunho 105
2.7 A linguagem do sensível 111
2.8 A escrita dos lazarenos 119
3
NARRAR, ESCUTAR, RECONHECER 125
3.1 A escrita de testemunho: um espaço para vagalumes 133
3.2 O analista como testemunha da testemunha 135
3.3 A escrita para o outro, apesar de tudo: a perda da confiança