Claude Lévi-Strauss - O Homem Nu
Claude Lévi-Strauss - O Homem Nu
Claude Lévi-Strauss - O Homem Nu
HN 2
Tradução
Beatriz Perrone-Moisés
Claude Lévi-Strauss
O homem nu
Mitológicas 4
HN 3
<Sumário>
PRÓLOGO
Das Montanhas Rochosas até o Oceano Pacífico, entre o 40° e o 50° paralelos
aproximadamente, estendem-se terras de solo basicamente formado por lava basáltica terciária e
quaternária, em camadas horizontais ou dobradas, de que emergem, aqui e ali, rochas mais
antigas. A uns duzentos metros de distância da costa, a cadeia de montanhas das Cascades,
orientada segundo um eixo sudoeste-nordeste, representa a dobra mais importante de rochas
vulcânicas. Sua vertente ocidental se inclina em direção ao mar e, desse lado, predomina um
relevo irregular onde depósitos marinhos, principalmente terciários, envolvem formações
vulcânicas da mesma idade, a massa metamórfica mais antiga dos montes Olympic e também a da
cadeia costeira e dos montes Klamath, onde aparecem, como na Sierra Nevada, ao sul, rochas
jurássicas intrusas mescladas a outras que datam do carbonífero.
Do outro lado, até os contrafortes das Rochosas, o planalto do rio Colúmbia ondula entre
menos de 200 e mais de 1500 metros de altitude, profundamente entalhado por gargantas, onde
correm o rio e seus principais afluentes, o Snake e o Spokane. Em toda essa região, as lavas
sofreram dobraduras consideráveis no plioceno, formando o anticlinal das Cascades bem como
sinclinais onde atualmente se encontram as regiões baixas. Essas deformações tectônicas
deslocaram parcialmente o leito do rio Colúmbia para o leste, mas as gargantas escavadas pelo
rio e por seus afluentes, para atravessar os anticlinais que lhes barravam o curso, provam que a
rede hidrográfica já existia no tempo em que estes apareceram (Hunt: 348-353; Mendenhall).
Entre o Colúmbia e o Snake, afloram basaltos, possivelmente em razão de uma gigantesca
inundação que teria lavado e carregado o solo de superfície até o estuário onde, segundo outros
autores (Bretz-Smith-Neff), por razões mais complexas, tais como uma intensa umidade que teria
sucedido a um clima desértico, responsável pela formação de uma rede hidrográfica sujeita a
inundações freqüentes e prolongadas, decorrentes do derretimento dos glaciares e dos
transbordamentos dos rios, e certamente também de um grande lago, nos vales ainda fechados
pelo gelo.
A cadeia das Cascades, cuja altitude ultrapassa os 4000 metros no monte Rainier,
bloqueia os ventos úmidos provenientes do oceano, causando uma diferença de clima entre as
regiões a oeste e a leste. A parte oeste, atravessada em todo o seu comprimento pela depressão
em forma de calha, que ocupam o vale do Willamette ao sul e Puget Sound ao norte, goza de uma
temperatura amena e de uma pluviosidade abundante, sobretudo no inverno; a maior parte dela
é coberta por florestas coníferas de espécies variadas. A leste das Cascades, o planalto do
Colúmbia possui um clima semi-árido, com diferenças marcadas de temperatura média entre o
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inverno e o verão. As florestas existem apenas nas montanhas, e o restante da região consiste em
savanas secas de artemísia com algumas pradarias ervosas, ambas desprovidas de vegetação
arbustiva, exceto nos vales, onde crescem álamos e salgueiros.
Em direção ao sul, o planalto do Colúmbia se confunde progressivamente com a Grande
Bacia, enquanto a altitude vai aumentando. Na parte meridional do Oregon, a região klamath
ilustra essa transição. Aparenta-se à Grande Bacia do ponto de vista fisiográfico, mas em vez de
os lagos alimentados pelo escoamento, e sem desaguadouros naturais, terem lentamente secado
por evaporação após o fim do período de chuvas, os que se encontram ao longo das falhas são
alimentados por fontes e riachos permanentes, e o rio Klamath lhes oferece uma saída para o
oceano. Até recentemente, seu nível permaneceu, assim, relativamente estável, regularidade
essa que encorajava a busca de traços de ocupação humana antiga e contínua na região
(Cressman 1:377-382).
De modo geral, toda a região que acabamos de delimitar parece estar entre as de
ocupação mais antiga e regular do continente. Visto que o povoamento da América realizou-se
total ou parcialmente da Ásia pelo Estreito de Bering, na época em que suas terras emergiam
(infra: 563-544) – ou, como crêem alguns, por mar, durante o período de clima favorável
localizado entre 35 e 40 mil anos atrás (Pocklington) – é interessante notar que, sem remontarem
tão longe no tempo, os arqueólogos descobriram recentemente provas de presença humana na
bacia do Yukon ao norte do Alasca, talvez de mais de 20 mil anos – um instrumento de osso
misturado com ossadas de mamute, de desdentados e de gêneros extintos de cavalo e de camelo
(Old Crow River). Mais segura parece ser a datação, de 13 mil anos, do sítio de Onion Portage, no
Kobuk River, no noroeste do Alasca (Anderson).
As vias de penetração utilizadas pelos imigrantes permanecem hipotéticas. A costa
noroeste é tão abrupta, tão profundamente cortada por fiordes, que a viagem a pé ao longo da
costa parece estar fora de questão. Assim, teria sido preciso que pequenos grupos de caçadores,
entrando na América sem nem mesmo perceberem que mudavam de continente, devido à largura
da ponte entre a Ásia e a América em certos períodos da pré-história, tivessem penetrado
bastante no interior seguindo os corredores temporariamente liberados pelos glaciares. Porém,
como na costa, não se encontrou até hoje nenhum sinal de tais movimentos. De todo modo, o
nível do oceano teve uma variação tão grande durante todo o período considerado que é possível
que a linha costeira esteja atualmente submersa, ou elevada no flanco das montanhas, o que
explicaria o fato de ainda não ter sido localizada.
Seja como for, numerosos sítios da Colúmbia Britânica e dos estados de Washington e
Oregon fornecem datas antigas e comparáveis: uma seqüência de ocupação contínua, datando de
pelo menos 12 mil anos, nos terraços do rio Fraser perto de Yale; projéteis de pedra lascada de
13 mil anos em Fort Rock Cave, no leste do Oregon; e, no leste de Washington, à margem do rio
Palouse, ossamentos do homem chamado de Marmes, datados entre 11 e 13 mil anos. Este último
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sítio foi constantemente ocupado desde o 9° milênio até a época histórica (Borden, Bryan, Kirk,
Grosso) e seus níveis mais antigos parecem ser contemporâneos de outros sítios, como Wilson
Butte e Jaguar Cave, no sul de Idaho, onde foram encontrados instrumentos de osso associados a
vestígios de uma fauna extinta: felídeos, desdentados, eqüídeos e camelídeos. Esse primeiro
período teria possivelmente durado do 13° até o 9° milênio antes de nossa era aproximadamente.
Teria sido sucedido por um segundo período, até o 6° milênio, de que um dos sítios mais
característicos seria o de Lind Coulee. Os primórdios da "velha cultura da Cordilheira", que se
estende do Alasca até a Califórnia, teriam exercido sua influência desde esse período, atestada
pela presença de pontas de projéteis largas e lanceoladas. Ao mesmo tempo, apareceriam
instrumentos ligados não apenas à caça, mas destinados a moer ou triturar grãos e raízes
selvagens. A mesma evolução se delineia em Dalles, no médio Colúmbia, na entrada do
desfiladeiro das Cascades, onde também podem ser observadas as primeiras adaptações a uma
economia pesqueira que mais tarde se tornaria um aspecto típico das culturas do Planalto
(Cressman 2; Sanger; Crabtree; Osborne; Browman-Munsell).
Um terceiro período, entre o 6° e o 5° milênios, corresponderia à plena expansão da
"velha cultura da Cordilheira", atestada de ambos os lados das Cascades, na região de Puget
Sound e no Planalto. Um conjunto complexo de instrumentos de pedra e de osso, vestígios de
cestaria e de tecelagem e, possivelmente, o emprego do propulsor, sugerem uma economia em
que a caça e a pesca seriam complementadas pela coleta de plantas selvagens. É possível que nos
períodos seguintes, entre o 5° e o 2° milênio, a pesca e a coleta tenham-se tornado mais
importantes do que a caça devido à progressiva extinção dos grandes animais de caça, em
decorrência das mudanças climáticas que tendiam para condições mais áridas.
Por volta de 4650 antes de nossa era, a formidável erupção que destruiria o monte
Mazama – cuja localização é hoje marcada pelo Lago da Cratera – projetou para muito longe de
seu ponto de origem cinzas vulcânicas, que permitem determinar com precisão a data limite dos
sítios que cobriram. Foi também nessa época que apareceu uma indústria de micrólitos que
revela influências setentrionais. Aproximadamente em meados do 2° milênio, encontram-se
vários indícios de trabalho na madeira, como malhetes, enxós, cunhas, e goivas – de pedra, chifre
de cervídeo ou incisivos de roedores – e dissemina-se o uso de casas semi-enterradas. Desde o
início da era cristã, todas as características historicamente conhecidas das culturas do Planalto
parecem estar estabelecidas, e não ter variado durante os 18 séculos seguintes, até a introdução
do cavalo, por volta de 1750. Mas as transações comerciais, que tinham muita importância na
vida daquelas populações, têm uma origem muito mais antiga, já que conchas marinhas
encontradas nas escavações datam de pelo menos 6 ou 7 milênios (Browman-Munsell).
Voltemos agora nosssa atenção para a região sul do Planalto, na fronteira entre o Oregon
e a Califórnia, onde começará nossa investigação. Emerge ali um quadro semelhante. Diversos
sítios da terra klamath parecem ser habitados há pelo menos 6500 anos, pois as cinzas projetadas
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pela erupção do monte Mazama cobrem suas camadas inferiores. Vários indícios há de que se
deve supor datas ainda mais recuadas para elas: sandália de fibra vegetal encontrada em Fort
Rock e datada por radiocarbono de pelo menos 9 mil anos, além de instrumentos líticos
associados a ossadas de eqüídeos, camelídeos e talvez também mamutes. Em termos gerais, uma
economia arcaica, baseada essencialmente na caça, parece ter progressivamente cedido lugar,
sob influências provenientes da Grande Bacia, a uma economia associada à exploração de
produtos selvagens. Em seguida, a pesca – difícil para os habitantes da Bacia, devido à escassez
de peixes em lagos sem comunicação externa – teria assumido o primeiro plano numa região
onde, como vimos (supra: 10), os lagos ligados à rede hidrográfica e ao mar eram ricos em trutas,
salmões e outras espécies. As aldeias do tipo historicamente conhecido aparecem por volta do
século VIII de nossa era (Cressman 1).
Do ponto de vista geográfico, a região habitada pelos índios Klamath se liga tanto à
Grande Bacia quanto à cadeia das Cascades, mas distingue-se delas pela existência de
consideráveis depósitos lacustres originários do Plioceno que a recobrem parcialmente e dos quais
emergem cones vulcânicos isolados. As precipitações são baixas, mas suficientes para assegurar o
crescimentos de florestas de pinheiros entrecortadas por vastas savanas de artemísia em solos
secos, ou por pradarias ervosas ao longo dos rios e perto dos lagos, onde também crescem
álamos.
Como em toda parte a oeste das Rochosas, a agricultura, juntamente com a cerâmica,
está ausente. Talvez fosse melhor dizer desprezada, diante da abundância de recursos vegetais
em estado selvagem, sob formas nem sempre diretamente consumíveis, mas que a extrema
engenhosidade técnica dos indígenas conseguia tornar próprias ao consumo. Entre os Klamath e,
em menor grau, entre os Modoc, os pântanos forneciam o nenúfar aquático (Nufar polysepalum),
cujos campos naturais cobriam vários milhares de hectares nas Klamath Marshes; em sua
superfície, os grãos caídos, que formavam uma massa flutuante e mucilaginosa eram coletados de
canoa. A importância desses grãos - chamados woka - na alimentação pode ser avaliada pelo
vocabulário: os Klamath possuíam cinco palavras diferentes para designá-los, segundo seu estágio
de maturação e o estado fresco ou podre do invólucro. Para limpar a amêndoa de sua mucilagem,
era preciso deixá-la fermentar na água ou submetê-la a um cozimento prévio no vapor, e em
seguida sacudir os grãos com uma mistura abrasiva de pó de madeira, carvão e cinzas. Em
seguida, eram grelhadas num cesto cheio de brasas e, finalmente, moídas com uma pedra
especialmente destinada a isso, com duas protuberâncias esculpidas mo corpo para facilitar seu
manuseio.
Além dos nenúfares, os Klamath e os Modoc exploravam todos as espécies de raízes,
bulbos, tubérculos e rizomas, entre os quais se sobressaem uma liliácea (Camassia quamash,
esculenta) e uma umbelífera, o falso cominho (Carum oregonum); coletavam ainda bagas, grãos e
frutos selvagens, líchen comestível e a resina açucarada de certas coníferas de cujo tronco
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descascado retiravam o câmbio tenro entre abril e maio. Nos lagos e pântanos, cresciam também
juncos, junços e caniços utilizados para trançar esteiras, chapéus em forma de calota e cestos.
A coleta de bulbos e raízes ocupava as mulheres durante os meses de julho e agosto, a
dos grãos de nenúfar em seguida, em setembro e outubro. Durante todo esse período estival, em
que os homens caçavam e ocasionalmente pescavam, eram abandonadas nas aldeias de inverno as
grandes casas semi-enterradas, cada uma das quais abrigava várias famílias, e a população se
dispersava em cabanas de ramagem cobertas com esteiras. Essa existência semi-nômade se
encerrava em outubro e novembro, meses dedicados à coleta de grãos e de bagas. Então eram
reconstruídas as casas, cuja carpintaria havia sido desmontada e guardada, e todos ali
permaneciam recolhidos durante os meses de inverno, consagrados às celebrações rituais. O
degelo e o derretimento da neve ocorriam em maio, quando começava a grande estação de
pesca, que durava até junho. Os peixes, pescados com rede ou com nassa, eram postos a secar ao
sol como provisão para o inverno, mas não defumados.
Os Klamath, assim designados por um nome de origem desconhecida, chamavam a si
mesmos ma'klaks, "os homens". Junto com seus vizinhos meridionais, os Modoc do norte da
Califórnia, formam um grupo lingüístico antigamente conhecido pelo nome de Lutuami e cujo
grau de afinidade com a família Sahaptin é incerto (Voegelin, Aoki). As culturas dos Klamath e
dos Modoc se pareciam em vários aspectos: mesma exploração intensiva de bulbos, raízes e grãos
selvagens, mesmo emprego de tecidos de fibra ou de casca de árvore que, antes da introdução
das roupas de pele, son influência das Planícies, forneciam a base da vestimenta, mesma prática
de cremação dos cadáveres junto com os bens materiais do defunto e oferendas, mesmos ritos de
iniciação durante os quais os noviços empilhavam rochas e pedras, formando montículos*.
Contudo, entre os Modoc a pesca era menos importante do que a caça. Mais influenciados pelas
culturas californianas, eles também tinham um temperamento mais guerreiro, e mantinham seus
prisioneiros de guerra como escravos, ao passo que os Klamath, de regime social menos
diferenciado, geralmente preferiam vendê-los nas grandes feiras intertribais do Colúmbia. A
aquisição e emprego de espíritos protetores eram um privilégio dos xamãs modoc, à diferença do
que ocorria entre os Klamath, onde qualquer pessoa podia possuí-los, contanto que tivesse
capacidade para tanto.
Tanto os Klamath quanto os Modoc realizavam casamentos por intermédio de visitas
recíprocas e troca de presentes entre as famílias; não devia haver nenhuma relação de
parentesco conhecida entre os cônjuges, embora pudessem pertencer ao mesmo território, ou
até à mesma aldeia. A poligamia era permitida, e a poliginia sororal, freqüente. A residência,
patrilocal entre os Klamath (exceto no caso de um marido pobre ou sem parentes) passava, entre
os Modoc, de um tipo provisoriamente patrilocal a uma forma matrilocal estável, precedendo,
*
O autor utiliza aqui a palavra "cairn", que remete aos montículos de terra e pedras erigidos pelos
Celtas na Bretanha, na Escócia e na Irlanda. (N.T.)
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entre os quais às vezes estouravam conflitos. Quando isso acontecia, procuravam destruir as
aldeias e os bens de seus adversários e capturar mulheres e crianças, para vendê-las como
escravas a povos estrangeiros. Esses grupos locais, de tamanho bastante variável, podiam incluir
de uma a trinta aldeias. O mais importante deles, que equivalia sozinho a mais da metade do
total, afirmava ter sido criado primeiro, considerava-se superior aos demais e proclamava seu
chefe superior aos dos outros grupos.
Os Klamath guerreavam ocasionalmente contra seus vizinhos Shasta, Takelma, Paiute,
Kalapuya e Achomawi, principalmente por motivos comerciais. Grandes comerciantes, eles
levavam às feiras intertribais de Dalles escravos e outros frutos de suas pilhagens, para trocá-los
por cavalos. Por outro lado, tinham relações pacíficas com os Modoc, os Molala, os Tenino, os
Wishram e os Wasko. Os Modoc, mais decididamente belicosos, possuíam, além de um chefe civil,
um chefe de guerra vitalício, mas sua consciência tribal excluía os conflitos internos freqüentes
entre os Klamath, provocados pela vingança de um homem contra seus sogros caso ele fosse
originário de outro grupo local e residisse com eles, ou de uma aldeia contra outra, devido a
assassinatos, com a exigência de que o culpado fosse entregue ou que uma compensação material
fosse paga em seu lugar. Em todos os casos, uma pantomima guerreira e ritos xamânicos
precediam as expedições, e danças eram realizadas na volta, em presença dos prisioneiros
capturados e surrados, enquanto eram exibidos como troféus os membros arrancados dos
cadáveres, e as mulheres agitavam escalpos enfiados na ponta de varas. Os Modoc se
contentavam com um único escalpo, que queimavam.
Eles também repartiam o poder entre o chefe de guerra, o xamã e o chefe civil e político.
Este, sem poder de coerção, devia sobretudo mostrar-se um orador persuasivo nas assembléias
comunitárias, de que participavam os adultos de ambos os sexos. A chefia parece ter surgido mais
tardiamente entre os Klamath, cuja vida social era basicamente regida por uma dualidade
tradicional entre os xamãs e os ricos. De fato, a mesma palavra, lagi, designa o chefe e o homem
rico que possui várias mulheres, cavalos, armaduras de guerra em couro ou placas de madeira,
aljavas decoradas e peles preciosas. Além desses bens materiais, o chefe tinha de ter sucesso na
guerra, deter poderes sobrenaturais excepcionais e comprovar o dons oratórios. Embora não fosse
propriamente hereditária, a chefia certamente se mantinha na mesma linhagem.
As crenças religiosas dos Klamath e dos Modoc se organizavam de modo bastante frouxo
em torno de dois polos. De um lado, o personagem do demiurgo, criador da humanidade e das
plantas comestíveis, instaurador do xamanismo e dos ritos de sudação. Do outro, uma rede de
lugares nomeados, freqüentados por espíritos de aparências diversas e diferentes povos de
gigantes, anões e espíritos recém-nascidos. Os fantasmas dos mortos, muitas vezes recusados
pelo além – mundo invertido situado bem longe, a leste – assombravam a terra, em busca de
almas vivas para capturar. A alma se sediava no coração e o deixava quando as carnes envolvendo
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o orgão acabavam de queimar na pira funerária. Fenômenos naturais, tais como nuvens, trovão,
raio, sol, lua, estrelas e vento também eram personificados.
Entre os Klamath, qualquer indivíduo, de ambos os sexos, que estivesse convencido de
possuir poderes superiores à média podia tornar-se xamã e realizar curas, durante as quais seus
espíritos guardiões o possuíam. Os xamãs moravam em grandes casas decoradas com pinturas e
animais empalhados que representavam esses espíritos. Uma estátua de madeira esculpida,
ornamentada com penas, também representando um espírito, ficava no alto do teto. Distinguiam-
se, na aparência, por pica-paus de cabeça vermelha mortos usados como diadema ou num colar,
penachos ou colares de penas de pica-pau dourado, uma touca de visão ou texugo emplumada,
um colar de garras de urso e o rosto enegrecido.
Um período chamado "sem nome" ia de dezembro a janeiro. O pior frio já tinha chegado,
mas as provisões de inverno ainda eram abundantes, e essa época do ano era escolhida para a
celebração de ritos dedicados à instituição dos xamãs. Um numeroso público, convocado para a
ocasião, assistia. O porta-voz do xamã traduzia para esse público as palavras ininteligíveis que
seu mestre pronunciava depressa demais ou tapando a boca com a mão, para deformá-las.
Durante a cerimônia, que durava cinco dias e cinco noites, o xamã dançava e executava números
de prestidigitação, engolindo fogo ou uma corda com pontas de flecha, fazendo aparecer e
desaparecer diversos objetos, engolindo-os ou cuspindo-os, assim como grandes quantidades de
água, animando animais empalhados ou produzindo magicamente peixes, grãos ou sangue, num
cesto impermeável cheio de água. Além de cuidar dos doentes, os xamãs klamath controlavam o
tempo, encontravam objetos perdidos e se dedicavam a outras formas de adivinhação.
O xamanismo modoc apresentava características bastante diferentes. Apenas os xamãs
podiam obter protetores sobrenaturais, graças a uma busca, como na Califórnia, ou em sonhos,
como nas Planícies. O período mais favorável para a aquisição desses poderes se estendia do
casamento até a aproximação da velhice para os homens, e depois da menopausa para as
mulheres, pois os espíritos tinham aversão pelo sangue menstrual. O procedimento iniciático era
muito mais longo e complexo do que entre os Klamath; a entrada definitiva na corporação ocorria
no inverno, a pedido do candidato, que organizava a cerimônia, oficiava, alimentava e pagava os
participantes. O novo xamã devia celebrar os ritos de inverno durante cinco anos consecutivos
(Miller; Gatschet 1, Bancroft, Curtis, vol. 13; Spier 2; Barett 3; Ray 3; T. Stern 2).
A secura da descrição acima não se deve apenas a seu caráter de resumo. Na verdade,
quase todas as informações de que dispomos acerca dos Klamath e dos Modoc provêm de velhos
informantes confinados em reservas, e que contaram, a partir de suas lembranças, seu antigo
modo de vida, desaparecido já por volta de 1870. O planalto do Colúmbia foi freqüentado desde o
século XVIII pelos coureurs de bois* canadenses, em seguida por empregados da Hudson Bay
*
Na Nova França, os coureurs de bois eram comerciantes de peles independentes que se
aventuravam pelo interior do continente para estabelecer relações com povos indígenas distantes dos
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Company, e mais tarde, da Northwest Fur Company. Muito pouco subsiste, no entanto, dos
primeiros testemunhos. Para que os índios do Planalto entrassem na literatura, seria preciso
esperar pelo relato de Lewis e Clark, após sua travessia do continente em 1805-06, e os dos
viajantes que os sucederam. Mesmo assim, trata-se de fragmentos e menções episódicas, cujo
suporte humano já estava se decompondo, sob o efeito das epidemias de varíola que, desde
1830, dizimavam as populações indígenas, ainda mais gravemente atingidas pela Gold Rush,
iniciada em 1848, que provocaria conflitos sangrentos com os Brancos. Os Klamath e os Modoc
cederam seus territórios ao governo americano – que adquiriu a Califórnia em 1846 e o Oregon
dois anos depois - , mas os Modoc se revoltaram contra as condições de vida na reserva, e
acabaram sendo finalmente vencidos e reduzidos apenas em 1873. A cultura não estava mais
viva, portanto, quando Gatschet e Curtin iniciaram o registro de seus costumes e tradições; a
admirável monografia de Spier, elaborada em 1925-26, apresenta um caráter ainda mais marcado
de reconstituição. Felizmente, além desses inventários posteriores à morte de um mundo, temos
coletâneas de mitos que nunca deixaram de ser contados, e ainda hoje o são, e que preservam
algo do espírito e das motivações íntimas de uma cultura extinta há um século.
Está assim montado o cenário do primeiro ato deste livro, e situada sua cena de ação.
Porém, antes de se levantarem as cortinas, cabe esclarecer que as páginas que seguem
condensam a matéria de meus cursos no Collège de France no anos acadêmicos de 1965-1966,
1967-1968, 1969-1970 e 1970-1971. A do curso de 1966-1967 inseriu-se melhor em A origem dos
modos à mesa (Sexta Parte). O curso de 1968-1969, por sua vez, foi inteiramente dedicado à
solução de uma dificuldade que eu encontrara ao abordar a mitologia dos Salish: como que sob o
efeito de uma dupla retração, uma série mítica compartilhada com os Klamath-Modoc e os
Sahaptin se projeta para o norte sob a forma de duas séries paralelas que se recobrem
parcialmente, uma relativa ao fogo e à água, a outra ao nevoeiro e ao vento. Era portanto
necessário elucidar a natureza desse fenômeno, e também compreender porque tantos elementos
emprestados do folclore francês, ouvido pelos índios da boca dos coureurs de bois canadenses, se
inseriam preferencialmente na segunda série. Uma vez delimitado o problema e, esperamos,
resolvido, a análise comparativa podia retomar seu caminho. Contudo, evitando alongar ainda
mais um livro já muito maior do que seus antecessores, decidi não incluir aqui esse
desenvolvimento anexo, ao qual se aludirá, contudo, freqüentemente*.
Além dessas dificuldades maiores, outras interromperam, duas vezes, a redação, bastante
lenta devido ao fato de o quarto volume não ser apenas a seqüência dos demais, devendo reunir
e ligar os fios que ficaram soltos ao longo de toda a exposição: primeiramente, os acontecimentos
centros coloniais. Embora a atividade fosse proibida pelas autoridades coloniais, os coureurs de bois, cada
vez mais numerosos a partir da segunda metade do século XVII, tornaram-se indispensáveis para a própria
manutenção do comércio de peles. Foram, assim, os primeiros europeus a estabelecer contato com
numerosos grupos indígenas norte-americanos. (N.T.)
*
Essas questões serão retomadas e discutidas por Lévi-Strauss em seu último livro dedicado à
mitologia ameríndia, História de Lince, de 1991. (N.T.)
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de maio de 1968, que geraram meses de um clima pouco propício à contentração intelectual e,
além disso, durante o inverno de 1968-1969, problemas de saúde. Finalmente, as lacunas e
incertezas multiplicaram os obstáculos, muitos dos quais não teriam podido ser superados sem o
auxílio de colegas a quem expresso aqui meu econhecimento. S. Débarbat, do Observatório de
Paris, os professores D.H. Hymes, da Universidade da Pensilvânia, B. J. Rigsby, da Universidade
do Novo México, T. Stern, da Universidade de Oregon, o saudoso J. Rousseau, da Universidade de
Montréal, P. e E. Maranda, da Universidade da Colúmbia Britânica, E. Wolff e P. Gourou, do
Collège de France, ofereceram-me gentilmente informações preciosas de ordem astronômica,
lingüística, geográfica, zoológica e botânica, bem como documentos inéditos. René Leibowitz,
em nada responsável pelas idéias que avanço na finale acerca da música, dispôs-se a ler e discutir
essa parte do texto, ajudando-me assim a tornar mais precisas as idéias e a expressão. Devo à
benevolência de John Hess, do escritório parisiense do New York Times, aos serviços desse jornal
em Nova York e aos do Seattle Times a fotografia de Pillar Rock (Ilustração 1), que apresenta um
feliz paralelismo com a primeira ilustração que aparece em O cru e o cozido [a foto da chapada,
reunida a outras fotos na nossa edição: talvez seja preciso descrever a foto, e mudar a redação
deste trecho em conseqüência, além de trocar "ilustração" por foto, se todas as "planches" forem
efetivamente fotos...]. Yvan Simonis da Universidade de Montréal, por sua vez, obteve para mim
o documento da Ilustração IV, tirada da edição original da Relation do Pe. Dablon,
aparentemente menos difícil de consultar lá do que em Paris, já que enquanto eu preparava este
livro, o exemplar da Biblioteca Nacional tinha aparentemente desaparecido. O Dr. Audrey
Hawthorn, conservador do Museu de Antropologia da Universidade de Vancouver, forneceu-me e
autorizou-me a reproduzir o documento da Ilustração III. Graças à amável intermediação de
Charles Ratton, Jean-Paul Barbier colocou à minha disposição, para ser fotografado, o bronze de
Amlash que aparece na quarta capa.
Finalmente, como hei de expressar minha gratidão para com um pintor por cuja obra
sempre senti uma predileção particular? Informado por um amigo comum de que eu gostava de
imaginar o mito de referência pintado por ele, Paul Delvaux teve a gentileza de ornar a capa
[idem acima] deste livro com uma obra original, pela qual o editor e eu mesmo lhe somos
profundamente gratos.
Nicole Belmont ajudou-me a reunir a documentação, Jacqueline Duvernay traduziu as
fontes alemãs, Evelyne Guedj datilografou o manuscrito, J.-M. Chavy desenhou os mapas e os
diagramas. Agradeço a todas e a todos, bem como à minha esposa, que releu as provas.
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PRIMEIRA PARTE
SEGREDOS DE FAMÍLIA
I
A CRIANÇA ESCONDIDA
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
inserir citação em grego
Eurípides, As Bacantes, v. 88-98
Ao longo do volume anterior (OMM, p. 164, 206, 250), evidenciou-se que o mito do
desaninhador de pássaros, na América do Sul, e o das esposas dos astros, na América do Norte,
pertencem a um único grupo de transformação. Isso já se manifestava no fato, demonstrado
desde O cru e o cozido, de que os mitos sul-americanos sobre a origem do fogo ou da água vêm
acompanhados por uma série paralela cuja heroína é uma estrela, esposa de um mortal (M 87-
92); pois bem, essa série, relativa à origem das plantas cultivadas, inverte, do ponto de vista dos
sexos, a série norte-americana do marido-estrela, da qual faz parte, justamente, a história das
esposas dos astros.
No decorrer deste livro, deveremos explorar mais a fundo a estrutura desse vasto
conjunto mítico, que praticamente cobre o Novo Mundo. Porém, tendo já evidenciado a presença
e o papel dos mesmos mitos nos dois hemisférios, por vezes numa forma transfigurada, não
poderíamos deixar de assinalar os casos em que o mito de referência (M 1, M 7-12) aparece, na
América do Norte, em forma literal; uma ocorrência ainda mais digna de nota na medida em que
se localiza numa região delimitada aproximadamente pela bacia do rio Klamath ao sul e pela do
rio Fraser ao norte, ou seja, um território restrito quando se o avalia na escala do continente, e
situado na parte ocidental e setentrional da América do Norte, isto é, bastante longe das regiões
tropicais da América do Sul, onde as versões homólogas ocupam, igualmente, um território
relativamente restrito e contínuo (fig. 1).
Fig. 1 — áreas de distribuição do mito de referência nas duas Américas [p. 24]
HN 15
Para levarmos a cabo essa investigação, triplamente dificultada pela distância entre as
áreas geográficas, pelo elevado número de versões disponíveis e, finalmente, pela diversidade
lingüística e cultural dos grupos de que elas provêm, adotaremos um método híbrido, em parte
sistemático e em parte geográfico. Caminhando do sul em direção ao norte, começaremos por
isolar um pequeno grupo de variantes, cuja distribuição parece ser contínua num pequeno
território situado nos confins do norte da Califórnia e a parte meridional do atual estado de
Oregon, não obstante a heterogeneidade das tribos em questão, metade das quais pertencentes à
família lingüística klamath-modoc, que ocupa uma posição isolada no seio do vasto grupo
penutiano, enquanto a outra metade — que compreende os Shasta, Atsugewi, Achomawi e Yana —
pertence à família hokan. Num segundo momento, examinaremos as versões dos Sahaptin
setentrionais e de seus vizinhos Chinook, e finalmente, num terceiro momento, as das tribos da
família lingüística salish que se estende pelo território canadense adentro. Por razões que os
progressos da arqueologia e da lingüística talvez um dia esclareçam, esse modo de dispor os
materiais permite avançar de um passo, a cada estágio da análise (fig. 2).
A identidade da feiticeira e a razão do suicídio da jovem mulher serão reveladas mais tarde. O
nome da heroína, Letkakáwash, designa o tangará de cabeça vermelha (Pyranga ludoviciana), um
passarinho cujo macho possui uma plumagem reprodutiva muito colorida. O nome do demiurgo,
que Barker transcreve /gmokam!/, pode ser analisado em /gmo!/, "ser velho", mais o
aumentativo /?m!/, ou seja, "o muito velho". Aishísh (Barker: /?aysis/) vem do verdo /?aysi/,
"esconder, guardar" e significa portanto "o escondido" ou "o guardado". Os mitos a seguir
descrevem os personagens mais detalhadamente e narram suas rixas:
Os jogos de azar de que fala o mito ocupam um lugar considerável na vida dos Klamath e dos
Modoc (Spier 2:76-80; Angulo-d'Harcourt:204-205; Ray 3:122-130). Alguns só podiam ser jogados
por dois times — nacionais, de certo modo — de tribos vizinhas. Os capitães das equipes
conduziam o jogo, enquanto seus companheiros torciam com cantos e gritos, procuravam
desconcentrar a equipe adversária de todos os modos e todos participavam das apostas, na
medida de suas possibilidades. Riquezas consideráveis acabavam assim mudando de dono. Ritos e
talismãs, como lâminas de obsidiana e cadáveres de pequenos animais encontrados por acaso,
que se considerava como capazes de dar ou manter a sorte. A caminho do torneio, os jogadores
acendiam fogueiras e liam presságios na cor das chamas e na direção tomada pela fumaça.
Havia vários tipos de jogos, baseados nos mesmos princípios, com pequenas variações.
Cada um dos jogadores dispunha de um lote de peças de diversas cores e os arrumava numa
determinada ordem, atrás de um biombo de palha. O adversário tinha de adivinhar o arranjo e
expressar-se por um determinado gesto. Mas antes de formular sua opinião definitiva, tinha o
direito de fazer outros anúncios, para confundir o oponente e provocá-lo a mudar seu jogo.
Durante esses enfrentamentos preliminares, os adversários se vigiavam atentamente, e o que
deveria adivinhar tinha a esperança de que o outro, com as peças, se traísse por algum gesto
HN 18
Ao voltar para casa, o protagonista de M 1 urde sua vingança com a ajuda do irmãozinho;
o de M 530-531 faz o mesmo com a ajuda do filhinho. Em conseqüência, o pai culpado morre,
num caso no fogo, no outro, na água2.
Esta última oposição é especialmente interessante, em razão da relação de
transformação que estabelecemos, em O cru e o cozido, entre o mito de referência, M 1, e as
versões jê M7-12, o primeiro remetendo à origem da água (celeste) e os outros à origem do fogo
(terrestre). Essa relação de transformação reaparece entre mitos que, como acabamos de ver, se
invertem sistematicamente num outro eixo. É notável que M 530-531 reunam traços que os
aproximam ao mesmo tempo de M1 e de M7-12. Como nesse último grupo, é uma árvore, em vez
de uma parede rochosa, que serve para separar o protagonista dos seus. Em ambos os casos, sua
busca desemboca em decepção, ou porque em lugar de aves raras ele só encontra pássaros
comuns, ou porque o ninho só contém ovos. Em todos os casos, os mitos descrevem do mesmo
modo os sofrimentos do herói prisioneiro: com fome e sede, coberto de sujeira. O de M7-12 é
libertado pelo jaguar, animal perigoso que passa pelo pé da árvore, e é, portanto, salvado de
baixo. O protagonista de M 530-531, que desce no cesto das moças-borboletas, criaturas
inocentes que voaram até ele, é salvo por cima. Os animais prestativos sempre o alimentam, dão-
lhe de beber, limpam sua sujeira e, enquanto ele goza da hospitalidade deles, ocorre um evento
decisivo para a humanidade: a descoberta do fogo culinário em M7-12, substituída por uma outra
descoberta em M 530-531. Discutiremos esse ponto mais adiante (infra:45-46).
Também em sua conclusão o mito klamath se aproxima do mito bororo. Lembremos que o
protagonista de M1, para punir os seus pela maldade que demonstraram para com ele, provoca
chuvas torrenciais que apagam todos os fogos da aldeia, exceto o de sua avó, onde ele se
refugiara. Apresenta-se, portanto, simultaneamente como dono da água (celeste) que faz
despencar e dono do fogo (terrestre) que só ele é capaz de preservar. Simetricamente, o pai do
protagonista de M530-531, para punir o filho pela maldade para consigo, faz cair do céu uma
chuva de fogo de que só o protagonista consegue se proteger, e que ele transforma em lago que
inunda toda a terra, exceto sua casa, na qual se encontra com suas esposas fiéis: "Muito tempo
depois, Kmúkamch ressuscitou e quis vingar-se do filho. Recobriu a abóbada celeste com resina e
ateou-lhe fogo. Mas Aishísh pegou um tabuleiro e segurou-o em posição horizontal (acima de sua
cabeça). Embora suas mulheres tivessem muito medo, ele disse: "Eu é que ele nunca conseguirá
1
Segundo Gatschet (1, I:lxxxviii), a palavra klamath para 'pai', /p'tíshap/, em modoc /t'síshap/,
significaria "o provedor" e seria derivada de /t'shín/, 'crescer'. Barker (2) informa, sem mais comentários:
/tsin/, "crescer (para pessoas apenas)" e /tis/ ou /ptisap/, "pai".
2
Seria tentador levar adiante a comparação, pois em M 530-531 o pai culpado morre por ter sido
separado de seu cachimbo, um tubo perfurado, ao passo que em M 1 ele é aproximado de um tubo
perfurante, o chifre de veado que o atravessa. Contudo, preferimos deixar de lado o episódio do cachimbo,
por duas razões. Primeiro, ele não consta de todas as versões (as de Curtis, M 531a, e de Barker, M 538,
substituem o cachimbo por um ou vários corações externos "que o velho levava como saco pendurado no
pescoço"; uma versão de Stern (M 560) fala de um pendente de colar. Além disso, sua discussão obrigaria,
para que se pudesse determinar um paradigma, a considerar um conjunto mítico vasto e complexo que
envolve praticamente toda a Califórnia.
HN 21
matar!" A resina formou um lago que cobriu a terra. Só a casa de Aishísh ficou no seco" (Gatschet
1, I:96).
De modo que uma chuva de água que apaga todos os fogos exceto um (M1) se transforma
aqui em chuva de fogo que submerge todos os lares exceto um. E se a água de M1 funciona como
anti-fogo, o fogo de M530-531 funciona como água. Havíamos observado, a respeito de M1, que
uma intriga complexificada (em relação à de M7-12) permitia deixar o aspecto etiológico do mito
em estado latente; faremos mais adiante a mesma constatação quanto ao grupo a que pertencem
M530-531.
*
* *
Pois bem, dirão, um grupo de mitos provenientes da América tropical encontra-se intacto numa
região setentrional da América do Norte. Mas o quê isso prova, a não ser que a América foi
povoada por ondas sucessivas de imigrantes vindos da Ásia, que traziam consigo mitos, alguns dos
quais permanecem reconhecíveis em vários exemplares aqui e acolá? Sabe-se há muito tempo que
não faltam mitos de que existem versões paralelas nos dois hemisférios. O fato de mais um vir
juntar-se a uma lista já bastante longa não tem interesse algum.
Colocar a questão desse modo significaria equivocar-se completamente quanto ao sentido
de nossa empresa. Não procuramos saber o porque dessas semelhanças, mas o como. Na verdade,
a característica dos mitos que aproximamos não está no fato de se assemelharem; aliás, com
muita freqüência, eles não se assemelham. Nossa análise busca, antes, evidenciar propriedades
comuns, apesar de diferenças às vezes tão grandes que se poderia considerar os mitos que
colocamos no mesmo grupo como seres completamente distintos.
Conseqüentemente, os casos em que o parentesco salta aos olhos constituem apenas
limites. São certamente casos de grande interesse, na medida em que a convicção que geram não
tem necessidade de filiar-se à escola da análise estrutural e de submeter-se ao complicado jogo
das transformações. Mas a prova não resulta do fato de serem observáveis semelhanças no nível
empírico. Pois sabemos, e os excessos da mitologia comparada comprovam-no, que nada há de
mais enganoso do que tais semelhanças; é por isso que os estudos desse gênero, fundados nesse
único critério, logo degeneraram numa verborréia que haveria de provocar um intenso enjôo. Se,
como foi dito (Leach 2:xvi), pudemos tornar os estudos comparativos novamente respeitáveis, foi
por termos compreendido que a semelhança não existe em si: ela não passa de um caso particular
da diferença, aquele em que a diferença tende a zero. Mas esta jamais se anula completamente.
É portanto necessário que a reflexão crítica tome o lugar dos inventários empíricos, e coloca-se a
questão fundamental das condições nas quais uma semelhança pode ter um sentido cuja riqueza
supera o que decorreria de um encontro casual, efeito de convergência ou origem comum.
HN 22
uma velha, cresceu e revelou-se um pescador milagroso. Naquele tempo, toda a água e todos os
peixes do mundo estavam contidos no tronco de uma grande árvore, onde se podia pescar em
qualquer época do ano. Porém, num gesto descontrolado, o herói furou o tronco e provocou um
dilúvio, que cobriu toda a terra, a não ser por uma árvore no alto da qual ele se refugiou. A
árvore também acabou cedendo, e o herói morreu afogado. Seu pai, o demiurgo, conseguiu
reabsorver a inundação e juntar a água "no leito do rio que corre hoje perto de Buenos Aires". Os
mitos klamath-modoc já associavam o menino escondido à origem da pesca, que o herói matako
fez sazonal, e à da rede hidrográfica, pela qual este é responsável postumamente. Esses traços se
encontram ainda mais fortemente marcados nos mitos nez percé e cabe notar aqui que eles
contam (M533, Spinden 1:19-21) a história do demiurgo enganador que fecunda o próprio
cotovelo enfiando nele o seu pênis, e dá à luz um filho. Ainda mais significativo é o fato desse
filho ajudar o pai a recuperar os olhos que tinha perdido por acreditar estupidamente que podia
tirá-los e depois recolocá-los nas órbitas sem problemas. Como mostramos (CC:197-199), esse
motivo, também presente na América do Sul, se baseia numa oposição entre os olhos e os
excrementos, que representam respectivamente partes do corpo inamovíveis por natureza ou
amovíveis por destino.
Entre os olhos e os excrementos, o menino, inamovível durante nove meses e depois
expulso definitivamente do corpo do qual fazia parte, pode assim deempenhar o papel de
mediador. É por isso que o demiurgo consegue reparar o erro de exteriorizar os olhos com
interiorizar o filho, por intermédio de uma auto-fecundação. De fato, os mitos sul-americanos
enfatizam a oposição olhos/excremento, ao passo que o mito que acabamos de invocar desloca a
ênfase para a oposição olhos/filho. Porém, justamente, esse pai, que às vezes fica grávido no
quadril, pare seus filhos pelo ânus (M542a; Phinney:52 n.2). São, portanto, filhos-excremento, e
numerosos mitos da mesma região — como os que atribuem a Coiote um conselho privado,
formado de irmãs-excremento que ele expulsa do próprio corpo sempre que precisa de algum
conselho e que reintegra logo em seguida; cf. infra:233, 276-277 — atestam o valor operatório de
um esquema tripartite:
filho
!
!
INAMOVÍVEL olho """" excremento AMOVÍVEL
outras coisas, pela instituição da periodicidade das estações, a que está ligado o ciclo
reprodutivo.
O motivo do homem grávido ocupa na América do Norte uma área considerável, que se
estende pelo menos desde os Paiute e os Pawnee ao sul e a leste, até os Esquimó ao norte,
passando por atabascanos como os Kaska e salish como os Tillamook (Lévi-Strauss 5:cap. XII;
Rink:443-444; Lowie 4:passim; Teit 8:472; E. D. Jacobs:141-143). Encontra-se também entre os
Kalapuya, os Koos e até na Sibéria (Frachtenberg 1:5, 49; Jacobs 6:239; 4:375-376;
Jochelson:365). A difusão do motivo na América do Sul parece ser ainda mais vasta, pois que a
nororeste e a sudeste da área do desaninhador de pássaros ela ocupa dois vastos territórios, um
que vai do Panamá e das Antilhas ao noroeste da bacia amazônica e ao Peru, o outro do Brasil
central até a Bolívia e o Chaco argentino. O primeiro grupo inclui os Carib das Antilhas
(Rouse:564), os Cuna do Panamá e os Choco (Holmer-Wássen:24-25; Wássen 1:133-134; 5:70-71),
os Surara e Waika (Becher 1:104; Zerries 4:273), os Catio (M254b; MC:172; Rochereau-Rivet:100),
os Uitoto (Preuss 1:51, 304-314), os Tukuna (Nimuendajú 1:377; Ribeiro 2:114-115), os Umutina
(Oberg:108; Schultz 2:172, 227) e os Yucararé (Kelm, in Zerries, l.c.:273). Zerries (l.c.) fez um
inventário do motivo, que coincide aproximadamente com o nosso.
Silencioso por definição, o menino escondido às vezes se transforma em bebê chorão ao
nascer (M529). O mesmo acontece num mito (M534, DuBois-Demetracopoulou:333-334) dos Wintu
do norte da Califórnia, pouco distantes dos Klamath e dos Modoc: um bebê inicialmente
escondido pelas irmãs se liberta e começa a gritar tanto que todos saem correndo. Ele só se cala
ao ver o sangue menstrual da irmã, que o deixa aterrorizado, foge e desaparece no fundo da
água.
Apesar de ser uma indicação ínfima, ela sugere que a criança escondida, intimamente
conjugada ao corpo do pai, ou então a toda a sua família, quando esta a mantém escondida,
apresenta alguma relação de correlação e oposição com a criança chorona que afasta todos de si.
Ora, a criança chorona da Califórnia não suporta a visão do sangue menstrual, enquanto a criança
escondida dos mitos sul-americanos, ao contrário, se lava com ele ou até se alimenta dele
(Wassén 1:116; Rochereau-Rivet:100).
Nessa hipótese, o tema do homem grávido deveria ser considerado como um caso
particular do motivo mais geral em que uma família não deixa que ninguém veja um de seus
filhos, tranca-o num esconderijo, lava-o e alimanta-o em segredo. Como veremos, esse motivo
ocupa um lugar considerável nos mitos da América do Norte que interessam mais diretamente à
nossa demonstração, cujo protagonista às vezes tem um nome análogo ao de Aishísh, inicialmente
guardado pelo pai no joelho, como /weänmauna/, "o escondido", em yana (Curtin 3:121, 339,
421). Por ora, bastará registrar que a mesma afinidade pode ser percebida entre os dois temas
nos mitos e ritos sul-americanos. Mostramos isso, aliás, ao discutirmos o nome do protagonista de
vários mitos bororo, Baitogogo ou "o confinado", cuja interpretação correta exigiu a aproximação
HN 25
com costumes jê e karajá de reclusão dos adolescentes ou de uma adolescente de alta estirpe.
Korumtau, protagonista de um mito munduruku (M16) é um menino escondido nos dois sentidos
do termo, já que seu pai o gerou sem a contribuição de uma mulher e em seguida quis escondê-lo
de todos (CC:63-66).
Cumpre agora notar que no noroeste da América do Norte e numa vasta região da
América tropical, uma transformação como essa permite passar do motivo da criança escondida
ao da esposa escondida. Um costume dos Sanpoil garante a transição, pois como outros salish do
interior e da costa, eles mantinham as moças em reclusão para torná-las "mais respeitáveis e
mais desejáveis como esposas do que as que eram menos bem guardadas" (Ray 1:136-137). Apesar
de atualmente viverem no sul, os Navajo de língua atabascana vêm do norte, o que torna
justificável evocar a origem mítica de suas máscaras /ethkay-nahashi/, que apresentam um
menino e uma menina caminhando sempre um atrás do outro, a forma na qual ressuscitaram,
depois de terem cometido um pecado mortal, duas moças3 que eram mantidas reclusas no escuro
por seus pais (Haile-Wheelwright:24, 31, 107; infra: M792, p. 499).
Fig. 3 — Desenho navajo representando uma das moças escondidas. (Cf. Haile-Wheelwright: 25)
[pág. 36]
E os Lilloet de língua salish, instalados nas bordas da área atabascana, contam a história de um
incesto cometido por irmãos, apesar de o pai ter tomado o cuidado de fechar a filha numa caixa
colocada perto de sua cama, para que ninguém pudesse chegar perto dela (M535, Teit 2:340).
Além de a criança escondida também ser freqüentemente ocultada num recipiente — cesto,
caixa, flauta, casulo, fossa subterrânea, colmo do telhado, etc. —, o mesmo ocorre com a esposa
em miniatura que um homem quer proteger das investidas de seu irmão. Os mitos das duas
Américas fazem o relato em termos tão próximos que bastará justapor duas versões, tomadas a
título de exemplo dentre muitas outras:
Era uma vez Águia, e também seu irmão caçula, Cangambá. Águia
passava o tempo todo caçando. Apareceu uma mulher, Cangambá a
escondeu. Quando Águia voltava à noite, descarregava a caça e dormia na
casa. Cangambá conversava nas tenebras com sua mulher e, ao despertar
de manhãzinha, Águia ficava curioso para saber com quem seu irmão
falava e ria no escuro. E ele respondia: "Rio porque um camundongo vem
3
Ou seja, uma transformação inversa da que, em M538, afeta um menino que se desdobra em moça
e rapaz, que depois cometerão incesto. Grafamos o etnônimo seguindo a decisão do Conselho da Nação
Navajo que, a 15 de abril de 1969, adotou essa grafia em lugar de Navaho, tradicionalmente empregado
entre os etnólogos.
HN 26
Contrariando seu irmão Epi, Dyai tomou por esposa uma moça que
tinha aparecido milagrosamente. Rolou-a entre as mãos para torná-la
bem pequena e a escondeu em sua flauta.
Quatro noites seguidas, ele a tirou do tubo, levou-a para sua rede e
brincou com ela em silêncio. Na quinta noite, ela riu, e as conchinhas de
sua pulseira tiniram. "Irmão, perguntou imediatamente Epi, com quem
você está rindo? — Com ninguém, respondeu Dyai, é a vassoura que está
rindo porque eu lhe fiz cócegas" (Nimuendajú 13:127).
O paralelismo é ainda mais impressionante quando se considera que o irmão casado da versão
norte-americana é um cangambá, ao passo que, na outra versão, o irmão solteiro apresenta,
como mostramos (CC:179, 187-188), uma afinidade evidente com o sarigüê, dois animais que os
mitos de ambas as Américas, de modo independente, colocam em correlação e oposição,
invertendo suas respectivas funções (CC:255 n.1; MC:66-67).
Não é só isso. Os dois protagonistas do mito tukuna, meninos escondidos, nasceram dos
joelhos inchados do pai, ao passo que os do mito klikitat têm seus correspondentes entre os
Klamath nas pessoas de Marta e Doninha (membros da família dos mustelídeos, como o
cangambá). Nos mitos, esses personagens animais funcionam como dublês de Kmúkamch e
Aishísh, o homem grávido e seu filho, respectivamente. As equivalências entre Marta e Kmúkamch
e entre Doninha e Aishísh, postulada por Gatschet (1, I:107-108), não é contestada por Barker
(1:389), que a atribui a uma confusão de personagens originariamente distintos. Entretanto, um
texto coletado por esse autor três quartos de século depois de Gatschet continua identificando
Marta e Kmúkamch (Barker 1:73). Pode-se, aliás, invocar um outro argumento em favor da tese
de Gatschet.
Na maior parte dos mitos sul-americanos que contêm o motivo da esposa escondida, esta
é uma estrela (CC:172-178). Ora, os Klamath têm um mito do casamento de Marta e Doninha que
inverte o de Águia e Cangambá, por sua vez semelhante, como vimos, aos mitos sul-americanos
de Estrela esposa de um mortal, a não ser pelo fato de não especificar a proveniência da mulher.
No mito klamath (M536a,b; Gatschet 1, I:107-118; Barker 1:71-77), longe de cobiçar a bela moça
encontrada pelo irmão, Marta o dissuade de casar-se com ela, denuncia os desígnios assassinos da
estrangeira e tece elogios às mulheres vesgas que, segundo ele, são mais trabalhadoras. O fato de
essas mulheres vesgas serem astros, como bem viu Gatschet (1, I:lxxxiii), não se depreende
apenas dos paralelos esquimó por ele citados, mas também de muitos outros: estrelas vesgas
entre os Kodiak (Golder:24-26, 30), sol chamado "um olho" pelos Sanpoil (Ray 2:135-137) e
zarolho alhures (Adamson: passim), a que deve ser acrescentado o vasto conjunto de indicações
HN 27
do mesmo tipo provenientes tanto da América do Sul quanto da América do Norte, que também
passamos brevemente em revista noutro momento (OMM:128 e passim).
Não devemos, portanto, descartar por princípio todas as interpretações de Gatschet,
mesmo quando ele se mostra obcecado pela mitologia solar que estava na moda no século
passado. Já nos explicamos a esse respeito (CC: 246). Max Müller e sua escola tiveram o imenso
mérito de descobrir e decifrar parcialmente o código astronômico que os mitos freqüentemente
empregam. Seu erro, bem como o de todos os mitólogos daquela época e de alguns mais
recentes, foi pretender compreender os mitos por meio de um código único e exclusivo, quando
eles sempre operam com vários códigos simultaneamente. Um mito não pode ser reduzido a
nenhum código tomado isoladamente, e tampouco resulta da adição de vários códigos. Seria
antes o caso de dizer que um grupo de mitos constitui por si mesmo um código de uma potência
superior à de cada um dos que ele utiliza para cifrar mensagens múltiplas. Verdadeiro
"intercódigo" — com o perdão do neologismo —, ele permite a conversibilidade recíproca dessas
mensagens segundo regras cujo repertório permanece imanente aos diferentes sistemas que, ao
operarem, deixam transparecer uma significação global e distinta das suas4.
Portanto, ao admitirmos, seguindo Gatschet, que os demiurgos klamath e modoc têm uma
conotação astronômica, não cremos, ao contrário dele, desembocar numa solução. Trata-se tão
somente de uma primeira etapa, a que várias outras se seguirão antes de a verdadeira análise
poder começar. Mesmo sob a aparência familiar de Marta e Doninha, os dois demiurgos têm um
papel cosmológico (M536a,c; Gatschet 1, I:109-118; Curtin 1:288-309): decapitam os ventos,
exterminam os trovões. No que diz respeito a Kmúkamch e Aishísh propriamente ditos, a
autenticidade de certas glosas colhidas por Gatschet não parece suspeita, ainda que ele às vezes
lhes acrescente desenvolvimentos nos quais não se sabe bem quem fala, se o pesquisador ou o
indígena: "Quando nuvens encarneiradas cercam o sol, diz-se no figurado que Kmúkamch
apoderou-se das roupas de contas de Aishísh e as vestiu. Uma espécie de fumaça rosada ou bruma
que aparece no céu ocidental ou a noroeste anuncia sua chegada; ele também pode ser
reconhecido por seu posterior volumoso...: as nuvens de verão brancas e pesadas como um grupo
de montanhas" (Gatschet 1, I: xxiv). Um mito (M537; ibid.: lxxxi) explica que depois de ter
visitado a terra dos mortos, Kmúkamch percorreu o caminho do sol até o zênite e lá se instalou
numa casa com sua filha. Gatschet conclui, não se sabe porque, que esta representa o ceú
nebuloso do crepúsculo. Por outro lado, a assimilação que ele propõe, tampouco sem
justificativa, entre a raposa, companheiro inseparável de Kmúkamch, e o halo solar (I:lxxxiii),
merece atenção: detectamos na América do Sul, com efeito, uma afinidade entre o sarigüê e o
4
Não fazemos senão voltar a Plutarco, precursor da análise estrutural dos mitos: "... parece-me que
não seria despropositado dizer que isoladamente não há uma só dessas interpretações que seja inteiramente
perfeita, mas que todas juntas dizem bem e justamente, pois não é nem a seca apenas, nem o vento, nem o
mar, nem as trevas, mas tudo o que é nocivo e tem parte em destruir e estragar, tudo isso se chama Tífon"
(p. 68). E também Benveniste (:60): "É um termo de sentido geral que é aplicado a uma realidade específica
e passa a ser sua designação, não o inverso".
HN 28
arco-íris, que certas tribos das Planícies da América do Norte transpõem para o cangambá, ou
sejam dois animais que formam um par semântico (CC:255), sendo que o segundo desempenha
mais ao norte, como vimos, o papel de companheiro ou de irmãozinho, que os mitos klamath e
modoc confiam à raposa.
Igualmente apaixonado por mitologia solar, Curtin (1:xxix, 48-49) percebe um simbolismo
astronômico que parece ser incontestável no episódio da morte e da ressurreição do demiurgo
Kumush, nome que os Modoc dão a Kmúkamch: depois de ter sido lançado no fogo (cf. supra,
M530), "nada restava dele a não ser o crânio e o disco misturados com as cinzas. Muito tempo
depois, a estrela d'alva os viu e gritou: 'Ei, velho, o que está havendo? Por que você está
dormindo até tão tarde? Levante!' Kumush pôs se rapidamente de pé e partiu em busca de (seu
irmão) Wanaga" (cf. infra, M541). Curtin comenta esse episódio nos seguintes termos: "Todos os
dias, o sol morre fisicamente e se consome, para virar apenas um monte de cinzas. Mas ele tem
no corpo um disco indestrutível... que o impede de desaparecer para sempre... A estrela d'alva
tem de chamá-lo. Obedecendo a ela, o disco de ouro se eleva do monte de cinzas, e o sol goza de
uma nova vida até o anoitecer." Acerca desse disco imperecível que logo voltaremos a encontrar,
cumpre notar que os xamãs modoc usavam pequenos discos de palha trançada enfeitados com
penas, símbolos de seus espíritos tutelares e "vagamente associados à rã" (Ray 3:37-38).
Mais ao norte, os Kathlamet, Tillammok, Chinook e Bella Coola acreditavam que a força
vital está sediada num disco, uma bola ou um ovo, às vezes situado na nuca (Boas 5:192) e os
próprios Klamath atribuíam aos ovos propriedades sobrenaturais (Spier 2:102). O nome modoc do
irmão do demiurgo, quanto a ele, é idêntico ao klamath /wanaka/, que Gatschet (1, II:474)
traduz por "jovem raposa vermelha ou prateada, halo solar", dessa vez citando uma locução
indígena como confirmação. E finalmente, daremos a mesma importância que Gatschet (1, I:lxxx)
ao fato de os Klamath e os Modoc, que costumam nomear os lugares a partir de referências às
peregrinações dos demiurgos, chamarem um rochedo em forma de crescente, no lago Klamath
inferior, de /shapashkéni/, porque, dizem, "Sol e Lua ali viveram antigamente".
Mas, se Kmúkamch conota o sol e seu filho Aishísh a lua, surge um novo paralelismo entre
as versões norte e sul-americanas da história do desaninhador de pássaros, e que se revela de
vários modos. Em O cru e o cozido, parecia-nos ter determinado que o herói bororo incarna a
constelação do Corvo e que, de modo menos direto, o personagem de seu pai remete às Plêiades
(CC:233-245, 249-252). Também nesse caso, por conseguinte, os dois protagonistas denotam
objetos celestes. Mas há mais: sabemos, com efeito, que o mito bororo transforma, invertendo-os
do ponto de vista etiológico, mitos jê cujo herói é também um desaninhador de pássaros de que o
cunhado, em vez do pai, quer se livrar. Pois bem, pelo menos entre os Xerente, cada um deles
remete a um astro, por intermédio das metades sociológicas a que pertence, chamadas
respectivamente de do sol e da lua. E assim reencontramos Kmúkamch e Aishísh, embora o papel
dos personagens seja invertido. Pois os Xerente atribuem ao desaninhador a metade sul e solar, e
HN 29
a seu perseguidor a metade norte e lunar (CC:83-84). Já no volume anterior (M495, OMM:351-352)
havíamos chamado a atenção para a persistência das conotações astronômicas em mitos norte-
americanos que transformam a história do desaninhador de pássaros, e voltamos a verificá-la,
mas desta vez em mitos inteiramente fiéis ao protótipo. O problema específico colocado pela
inversão das afinidades solar e lunar dois dois heróis será retomado mais adiante (infra:61-62).
Convém notar, finalmente, que tanto entre os Jê como entre os Klamath e os Modoc, sol
e lua têm participação preponderante em duas séries míticas complementares, a do desaninhador
de pássaros, como acabamos de recordar, e uma outra em que os dois astros, que são irmãos, um
primogênito e um caçula, em vez de pertencerem a gerações diferentes, se vêem envolvidos em
aventuras por vezes cômicas nas quais o caçula morre por imprudência e seu irmão mais velho,
mais ajuizado, fica encarregado de ressuscitá-lo. A esse respeito, basta comparar as desventuras
de Sol e Lua em várias versões jê (cf. M163, CC:297-298) com as de Marta (ou Vison) e Doninha
segundo os mitos klamath e modoc a que aludimos bravemente, para convencer-se de que cá e lá
as estruturas mitológicas são estreitamente aparentadas.
II
A análise dos mitos klamath teria certamente parado por aí se não fosse pelo
aparecimento, por volta de 1955, por um desses felizes eventos com que os etnólogos às vezes
são agraciados, de uma versão mais completa e coerente da gesta de Aishísh — de que Gatschet,
Curtis e Stern tinham coletado apenas fragmentos (M529-531) —milagrosamente preservada na
memória de uma informante, apesar de lacunas certamente numerosas, já que ela mesma se
lembrava de que, antigamente, eram necessários vários dias para contar o mito completo.
O que torna essa versão preciosa, é o fato de começar por expor em detalhe os
antecedentes do episódio enigmático com que inicia o relato de Gatschet, no qual a protagonista
HN 30
faz uma pira para queimar o corpo de uma feiticeira e, em seguida, lançar-se ela mesma com seu
bebê, sem que se saiba quem é a primeira ou porquê a outra quer se suicidar.
Mais ricas que as versões de Gatschet, as de Curtis (M531a) e de Stern (M531b, inédita;
cf. infra:145) já davam motivo ao episódio, mas se limitavam a explicar que a feiticeira tinha
matado um irmão incestuoso que, como sua irmã, surgia abruptamente no início da narrativa e
cuja origem apenas a versão mais recente de Barker conta. Barker (1:22) confessa ter ele mesmo
ficado surpreso por sua informante encadear essa primeira história ao mito de Gmokamch (=
Kmúkamch), observando "jamais ter visto o mito começar desse modo". Mas acabamos de lembrar
que as narrativas de Gatschet, Curtis e Stern já sugeriam a existência de uma seqüência inicial,
ao reservarem para ela um ponto de inserção. Conseqüentemente, o ressurgimento da versão
Barker entre os Klamath, numa época em que se acreditava que nada ou quase nada restava de
suas antigas tradições, é mais inesperada do que surpreendente. Compreender-se-á portanto que,
correndo o risco de cansar o leitor com uma narrativa longuíssima, tratemos seu resumo e seus
comentários com uma atenção pia.
Era uma vez uma mulher, mãe de vários filhos, entre os quais uma
filha, que tinha uma longa cabeleira vermelha e se casou, dizem, com
alguém lá dos lados de Goswadi [uma localidade a nordeste do lago
Klamath superior (Spier 2:16; Barker 1:96; 2:158)]. Mas ela voltava
freqüentemente para junto da família, porque estava apaixonada pelo
irmão caçula e sempre exigia que ele a acompanhasse na volta.
Certa vez, eles tiveram de acampar no caminho para passar a noite, e
a moça foi para junto do irmão que dormia. Ele acordou, e ficou chocado
por encontrá-la colada nele: "Que doida! Querer ser a mulher do próprio
irmão!". Ele se levantou sem fazer barulho, colocou um galho grosso em
seu lugar e voltou para a aldeia. Quando contou o ocorrido à mãe, ela
augurou as piores calamidades.
O sol já estava alto quando a moça acordou. Furiosa por se ver
abandonada, ela provocou um imenso incêndio que se espalhou e
queimou seus irmãos e as mulheres deles, mas não a mãe, que ela quis
poupar. Remexendo nas cinzas, a velha encontrou o cadáver de Cotovia,
uma de suas noras, que estava grávida e tinha protegido a barriga
debaixo de um morteiro. De suas costas carcomidas pelo fogo, a sogra
conseguiu tirar duas crianças, um menino e uma menina. Pressentindo
que a menina seria igualzinha à tia malvada, ela colou as crianças com
resina e fez delas uma única criatura, com duas cabeças e de sexo
masculino. Recomendou ao menino que jamais se curvasse para ver a
própria sombra e que nunca atirasse uma flecha para o céu.
A criança cresceu e desconfiou de algum mistério. Um gênero de ave
chireadora, o maçarico kildir (Charadrius vociferus), convenceu-o a atirar
para o ar. A flecha caiu na vertical e separou as crianças. O menino, que
nunca tinha visto a outra cabeça, ficou muito espantado ao encontrar
uma menina ao seu lado. Ela lhe revelou que era sua irmã. Quando
voltaram para casa, a avó teve de se resignar diante do fato consumado.
A menina sempre acompanhava o irmão nas caçadas e não parava de
lhe fazer perguntas: "Quem somos nós? Por que não temos nem pai nem
HN 31
mãe? Por que vovó está sempre chorando? Por que nós vivemos assim?
Vamos perguntar para o sol, e atirar nele se ele não quiser responder."
Quando o sol se levantou, eles o interrogaram, e como ele não lhes
dava atenção, a menina atravessou-lhe a bochecha com uma flecha, que
deixou uma marca preta que ainda se pode ver. O astro ferido suplicou-
lhes que retirassem a flecha, e concordou em falar. Disse que quem os
tinha tornado orfãos vivia na água, e mostrou o lugar exato.
Quando o inverno chegou, a irmã quis ir até lá com o irmão, dizendo
que iriam pescar no escuro. Noite após noite, traziam grandes
quantidades de peixes e de aves aquáticas. Até que, finalmente, ouviram
o grito da assassina: "gochgochgochgodjip!" A avó também ouviu, e
pressentiu que um dia, descarregando o peixe, encontraria a cabeça
cortada de sua filha no cesto. E foi isso que aconteceu, para o seu grande
desespero, pois ela amava a filha, apesar de ela ter exterminado toda a
família.
Com medo de que a velha ficasse brava, os jovens resolveram fugir
pelo fogo da casa. Recomendaram a todos os utensílios domésticos que
não os entragassem e fecharam com uma brasa o buraco que tinham feito
nas cinzas para sair. Mas tinham esquecido de avisar a sovela, que
mostrou à velha como eles tinham escapado. Ela foi imediatamente atrás
deles.
Os fujões tinham uma dianteira de vários dias. [Aqui começa a versão
de Curtis]. Certa vez, o menino perdeu uma flecha numa árvore e pediu à
irmã para buscá-la. Ela se recusou, a menos que ele lhe dissesse
exatamente qual era a relação de parentesco entre eles. "Você é minha
irmã. — Não. Minha tia? —Não. O quê, então? Minha mãe? — Não." Ele
propos todos os graus, mas a moça os recusava, até que a palavra
"esposa" foi pronunciada. Então, por insistência da jovem, eles se uniram,
e apesar de serem irmãos, passaram a viver como marido e mulher.
A avó, que havia previsto esse desenlace, seguia os dois. Examinando
as cinzas das fogueiras que eles acendiam, ela notou uma depressão
formada pelo ventre da neta, e entendeu que ela estava grávida.
Encontrou também uma pele de urso que seu neto, agora adulto, tinha
matado, e a vestiu.
Nesse meio tempo, a criança nasceu e o rapaz, conforme o costume,
foi se isolar no mato para rezar, jejuar e pedir proteção aos espíritos. A
velha transformada em ursa encontrou-o, matou-o e comeu-o. Depois,
apresentou-se à neta e pediu algo para beber. Enquanto a avó matava a
sede, a neta enfiou-lhe no ânus pedras em brasa. Depois, dizendo que
queria fazê-la vomitar o excesso de água que tinha bebido, pisou-lhe no
estômago e as pedras, misturadas com a água, levaram-na à ebulição.
Cozida por dentro, a ogra morreu.
Faremos aqui um breve intervalo na narrativa para observar que este é o ponto onde começa a
versão Gatschet (M529). A partir daqui, os dois relatos permanecerão paralelos, mas a versão
recente difere em vários pontos de suma importância, além de ser mais rica do que a outra. Por
isso iremos acompanhá-la na íntegra.
A jovem fez uma pira, ateou-lhe fogo e, com o bebê nas costas, se
preparava para jogar-se nela. Kmúkamch [para simplificar, mantemos
transcrições próximas às de Gatschet] viu a cena do alto de uma encosta
onde estava e admirou o bebê. No momento em que a mãe saltou, ele
HN 32
Em lugar de nos queixarmos das falhas de sua prodigiosa memória, enquanto esperamos
pla publicação de documentos inéditos5, façamos proveito dos detalhes e episódios novos
espalhados por seu relato e que nos permitirão dar início à análise.
Como havíamos anunciado (supra:29) a versão Barker esclarece primeiramente o episódio
dos porcos-espinho, que aparecia, com menos detalhes, já na versão Curtis. Em suas canções
provocadoras, também atestadas na versão Stern (M531b), esses roedores revelam ao herói como
confeccionar acessórios às suas custas, como colares, mocassins e brincos bordados ou trançados
com espinhos; ele só deixa suas mulheres-inseto depois de ter-lhes feito um enxoval completo.
Vimos que os mitos sempre apresentam Aishísh como dono das belas vestimentas. O fato de esse
poder se originar em sua estadia junto aos animais prestativos nos aproxima ainda mais das
versões sul-americanas da história do desaninhador de pássaros: o herói bororo inventa o arco e
as flechas para expulsar os lagartos que o cobrem de sujeira ao se decomporem, ao passo que
Aishísh inventa os adornos e acessórios enquanto está coberto de poeira pelos porco-espinhos que
o atormentam. No primeiro caso, trata-se de uma sujeira molhada e, no segundo, de uma sujeira
seca, já que os termos indígenas /boq/ e /nkililk/, empregados pelo mito, evocam
respectivamente um pó esbranquiçado (a forma verbal apresenta o duplo sentido de "estar
empoeirado" e "estar ficando grisalho"), e uma poeira leve que levanta facilmente (Barker 2:66,
266). Voltaremos a essa oposição, que não é mais fortuita do que as demais (infra:100).
É às custas do jaguar prestativo que o herói dos mitos jê correspondentes obtém outros
bens culturais, como o fogo doméstico e, em algumas versões, o arco, as flechas e o algodão
fiado que, entre esses índios quase nus do Brasil central, serve principalmente para fazer adornos
trançados ou tecidos. Pois bem, havíamos mostrado em O cru e o cozido e lembrado
resumidademente em Do mel às cinzas (14-25) que o ciclo sul-americano do desaninhador de
pássaros pertence a um vasto grupo de transformação que permite passar da invenção do fogo de
cozinha para a da carne, de um lado, e para a dos adornos e acessórios, do outro. Verificamos,
portanto, que a distância geográfica desempenha uma função comparável à da distância
semântica. O mito bororo sobre a origem dos ornamentos (M20) transforma em vários eixos o da
origem da carne (M21) e do fogo de cozinha (M1, que por sua vez transforma M7-12). Ao
atravessarmos os milhares de quilômetros que separam o Brasil central do noroeste dos Estados
Unidos, encontramos um mito sobre a origem dos ornamentos cuja armação restitui fielmente a
que os índios sul-americanos adotam para explicar a origem do fogo de cozinha. E esse mito, por
outro lado, transforma por sua vez outros mitos, cuja proveniência geográfica é entretanto
próxima da sua; mas só reproduz a mensagem deles ao preço de uma inversão de código. Ora,
entre os Klamath, Aishísh, que é um homem, dá os ornamentos de porco-espinho às suas
mulheres, que são insetos. As populações norte-americanas que vivem a leste das Rocohsas, ao
5
Barker (1:1) menciona manuscritos de Spier. Acerca de documentos mais recentes, coletados por
Stern, (1, 3), veja-se infra:145.
HN 34
contrário, atribuem esses bordados a insetos, as formigas, que substituem uma mulher, para que
esta possa oferecê-los ao seu marido (M480; OMM:299-301, 316-317).
Considerado isoladamente e em seu conjunto, M538 apresenta uma estrutura periódica:
entre uma seqüência e outra, os episódios se reproduzem. Há três incestos sucessivos: o primeiro,
frustrado, de uma mulher casada que vive longe do irmão que ficou na casa de origem; o
segundo, realizado, entre um irmão e uma irmã que cresceram colados um ao outro; e o terceiro,
de um sogro com a esposa de um filho que nasceu como que colado nele. Dois grupos familiares
morrem no fogo, juntos ou uma após a outra: primeiro irmãos e suas esposas, depois uma mãe e,
em seguida, sua filha. A cotovia intervém duas vezes: como personagem humana, ela salva seus
próprios filhos enfiando-os na terra e, como pássaro, ela perde a criança de seu cúmplice
levando-a para o céu. Pares de parentes próximos sofrem alternadamente conjunções e
disjunções: irmã e irmão unidos pela resina que os mantém colados um ao outro e separados pela
flecha; mãe e filho unidos pelo fogo (no momento em que vão morrer juntos) e separados pela
maça do demiurgo; pai e filho unidos quando um se faz grávido do outro e separados quando, ao
contrário, ele tenta de livrar do outro para ficar com suas mulheres. A flecha disjuntora
desempenha uma função inversa à da resina, ao descolar os gêmeos caindo de cima para baixo.
Mas atirada de baixo para cima, ela desempenha, em relação ao sol, o mesmo papel que a resina
que cai de cima para baixo na galinha d'água, já que em ambos os casos a vítima fica com uma
marca preta no rosto. Na galinha d'água, essa marca é a prova de que o céu e a terra um dia
ficaram coladas pela resina. No sol, a de que um irmão e uma irmã, apesar da resina que fazia
deles um único ser, se descolaram um do outro. O sentido de todos esses fenômenos de
paralelismo, alternâncias e oposições aparecerá quando tivermos construído o grupo de
transformação de que M538 ilustra apenas um estado (infra:190-196).
Convém no entanto chamar desde já a atenção para a arquitetura rigorosa da primeira
parte do mito, ou seja, aquela que falta nas versões mais antigas de Gatschet e de Curtis, e na
contemporânea de Stern. Se colocarmos à parte o bebê da heroína, que irá tornar-se Aishísh e
desempenhará o papel principal na segunda parte, a intriga envolve personagens que pertencem
a três gerações consecutivas: primeiro, a velha mãe, em seguida, sua filha, seus filhos e as
esposas destes e, finalmente, seus dois netos. Na geração intermediária, o mito só qualifica três
personagens: um rapaz solteiro, que tem como que de um lado uma irmã incestuosa, casada,
conforme nos é dito, com um homem geograficamente afastado e, do outro, uma cunhada
chamada Cotovia como o pássaro que conota a junção entre o céu e a terra (OMM:194). De modo
que o sistema tem em seus extremos funções semânticas duplamente constrastadas,
união/disjunção e eixo vertical/eixo horizontal. No interior desse sistema, e na medida em que a
ação progride, a mãe vem substituir a filha morta no papel de ogra (no sentido figurado e sexual
em relação à primeira, no sentido próprio e alimentar, no caso da segunda), ao mesmo tempo em
que a filha, como que expulsa pela mãe da posição que ocupava, toma o lugar da sobrinha, irmã
HN 35
incestuosa como ela, e, simultaneamente, o irmão, que recusa as investidas de uma, transforma-
se em sobrinho que cede às investidas da outra.
*
* *
Quem é afinal essa irmã incestuosa? A versão Barker a descreve por meio de uma
perífrase, "a mulher de cabelos vermelhos do rio Sprague", o que só nos informa acerca de seu
aspecto físico e da região na qual ela vive com o marido, a nordeste do lago Klamath superior. O
lugar chamado Goswadi se situa, com efeito, na extremidade norte do lago, mais ou menos na
alturada confluência entre o Sprague e o rio Williamson, que deságua no lago um pouco abaixo
(fig. 5) [está na página 64] . O mito não especifica o animal aquático com grito característico em
que ela se transforma após ter perpetrado seus delitos.
Uma versão modoc muito antiga, obtida por Curtin de uma índia deportada em 1873 para
o Oklahoma, permite resolver esses enigmas, mas não sem colocar um outro. Pois essa versão,
tão complexa quanto a Barker, encadeia a história da irmã incestuosa na gesta dos dois irmãos
HN 36
celestes em que se reconhece claramente as crianças coladas, mas que à primeira vista não tem
relação alguma com a gesta de Aishísh, e nem tampouco com a história do desaninhador de
pássaros:
6
Os Klamath e os Modoc, que antigamente incineravam seus mortos, se lembravam ainda em 1925-
26 de que os corações eram a parte do corpo mais difícil de queimar (Spier 2:72).
HN 37
ave de rapina que pesca peixes mortos, e seus dois serviçais nos bichos
cujos nomes tinham. Contrariando as recomendações da tia Pato,
atravessaram montanhas para continuar se dirigindo ao leste, como
queriam, e lá deram com um oponente ainda mais terrível, Yahyáhaäs, o
gigante de uma perna só. Enfrentaram-no cinco vezes seguidas e
venceram, ou conseguindo quebrar seu cachimbo, enquanto o deles
resistiaa todos os golpes, ou na luta. Finalmente, condenaram o gigante a
errar eternamente nas montanhas, e a aparecer em sonho para os xamãs,
que se tornaram seus serviçais. O gigante, em compensação, condenou-os
a virarem aparições, estrelas, "por cuja causa, entre o verão e o inverno,
os humanos combaterão uns aos outros". Os irmãos se transformaram em
estrelas visíveis antes do alvorecer no final do inverno, que anunciam a
primavera (Curtin 1:95-117).
Substituimos os nomes próprios por seus equivalentes semânticos, sempre que Curtin
indica uma tradução, o que não acontece com vários, mas às vezes é possível suprir as lacunas.
Yaukùl, por exemplo, significa "águia calva", como indicam tanto a descrição do animal no qual os
dioscuros o transformam quanto o homófono klamath /yawql/ que tem esse significado (Barker
2:466). Do mesmo modo, o destino a que os vencedores condenam Yahyhaäs remete
evidentemente à palavra klamath /yayaya-as/ (Barker 2:467; /yay'ahy?as/), "poder enfeitiçante
que inspira o mago quando ele lança malefícios, que os índios chamam de veneno de xamã"
(Gatschet 1, II:100). Devemos ser mais prudentes na interpretação dos nomes da irmã incestuosa
Tekewas e de seu irmão Tûtats. O primeiro poderia estar relacionado ao radical klamath /tak/,
que conota a cor vermelha7. Como vimos, a versão klamath chama a personagem de "mulher
vermelha", e a versão modoc também insiste nessa cor, indicando que, vista de longe, a mulher
parece ser toda vermelha (l.c.:96, 99). Quanto ao nome Tûtats, por sua vez, é tentador
aproximá-lo do klamath /túta/, "tirar, apanhar, retirar" (Gatschet 1, II:423), tendo em vista que o
herói é retirado de seu esconderijo subterrâneo e, por outro lado, que um herói desenterrado se
chama Tulchucherris na mitologia dos Wintu, e que esse nome significa "pessoa ou coisa tirada do
solo" (Curtin 3:121; cf. também o nome Xax"wilwal, "o desterrado", do mesmo herói entre os
Hupa, Goddard 1:135-149, ou Wanátcaláiyaw#k em wiyot, Reichard 1:162-165).
A primeira parte do relato, em compensação, nada tem de equívoco. Ela restitui na
íntegra o célebre mito conhecido pelo título de "Dona Mergulhão", de que Demetracopoulou
recenseou e analisou umas quinze versões, todas provenientes do norte da Califórnia. A que cabe
agora acrescentar a versão klamath, do sul do Oregon, que o autor não tinha como conhecer, e as
variantes chinook, ainda que restritas à história do gêmeo desdobrado, pois que constatamos,
pela versão klamath, que esse episódio desempenha um papel fundamental na narrativa. De
modo que, sempre que ele aparece, pode-se inferir que o mito da Dona Mergulhão também está
presente, seja de forma direta ou modificada. O estudo de Demetracopoulou é tão útil que não
7
Observamos ainda, mas sem insistir nessa via, a semelhança talvez superficial entre o nome
/tekewas/ e o da heroína modoc /letkakawash, latkakawas/, cujo personagem inverte, em M529 e M541, o
da irmã incestuosa de M539 (cf. infra:56, 65-68).
HN 39
se pode censurá-lo pelas falhas do método — o único disponível na época — que ele aplica,
inspirado na escola histórica. Já as refutamos (OMM:186-191). De um lado, o mito é
arbitrariamente definido, sem considerar jamais a possibilidade de ele não ser um discurso
isolado cujo enunciado empírico basta para caracterizar, em vez de um estado local ou
momentâneo de uma transformação que gera vários outros, todos regidos pela mesma
necessidade, de tal modo que o objeto real a que a análise se refere se situa no nível do grupo, e
não de uma ou outra de suas propriedades. Além disso, o mito, já recortado segundo critérios
subjetivos do conjunto do qual faz parte, e de cuja existência nem mesmo se suspeita, é por sua
vez desmembrado em incidentes, elementos ou motivos que não se define com rigor e que se
deixa vagar à mercê de caprichos ou esquecimentos, comodamente imputados aos contadores,
que seriam perdidos numa versão, recuperados em outra, cedidos ou tomados de empréstimo
entre diferentes sistemas míticos, e sempre "desprovidos de propriedades intrínsecas capazes de
explicar sua coalescência tendo em vista um determinado arranjo que daria origem a um mito"
(Demetracopoulou:120). Nessas condições, se o mito sob investigação apresenta alguma unidade,
esta só pode provir de alguma idéia central que, para adquirir uma forma sensível, tem de buscar
numa tradição — em si amorfa — as imagens e incidentes mais apropriados para servir a seu
desígnio. Segundo nosso autor, essa idéia seria a de um incesto catastrófico que ameaça a ordem
do mundo, e de que as vítimas procuram se vingar. Porém, além de esse enunciado simplista
descartar toda a substância concreta do mito — quando cada detalhe é, como veremos,
rigorosamente motivado —, não busca nem ao menos explicar os denominadores comuns de várias
versões, a começar por aquele que foi escolhido para identificar o mito, justamente por parecer
tão constante e importante, que é a transformação da irmã incestuosa em mergulhão. Ainda mais
grave é o fato de tais pressupostos obrigarem ao mesmo tempo a introduzir no mito idéias
gratuitas, como a de que o bem-estar "da família e da coletividade exige que se consiga esconder
o belo menino" (l.c.:122). Mostraremos que a solução para o problema do menino escondido é
muito mais simples, bastanto para isso ir buscá-la na matéria dos mitos, e não na mente do
mitógrafo buscando a todo custo uma interpretação: um menino querido por seus parentes e
escondido por eles numa fossa subterrânea no meio da casa da família apresenta uma imagem
simétrica à de um menino detestado por seu afim e isolado por ele no mato no alto de uma
árvore; ou seja, o menino escondido é o inverso do desaninhador de pássaros.
Antes de chegarmos a esse ponto e podermos fornecer a prova dessa equivalência,
teremos um longo caminho a percorrer, para conectar umas às outras as etapas da
transformação. Começaremos por expor a economia e a distribuição do mito da Dona Mergulhão,
servindo-nos da versão sincrética feita por Demetracopoulou (107-108).
Os parentes de um menino excepcionalmente belo o escondem de todos, especialmente
das mulheres. Uma mulher, que é muitas vezes irmã do herói, pega um fio de cabelo especial e
resolve querer seu dono por marido. Ela o acha, leva-o consigo, consegue fazer o sol desaparecer
HN 40
e aproveita a noite para dormir com o adolescente, que resiste às investidas de sua seqüestradora
ou então não pode ceder, porque seus parentes, antes de sua partida, encontraram um meio de
impedir a cópula. Ele foge e deixa um pedaço de madeira em seu lugar.
Temendo a cólera da mulher, toda a família resolve se refugiar no céu, com ou sem a
ajuda da aranha. Um passageiro comete o erro de olhar para baixo durante a ascenção, a corda
rompe, ele e os companheiros caem num incêndio, deflagrado pela perseguidora, a menos que
eles mesmos tenham ateado fogo à casa antes de fugirem (M545a). Esse incêndio geralmente
assume proporções cósmicas. Queima as vítimas do acidente, de que só restam os corações, que a
criminosa recolhe, fazendo deles um colar. Ou então um dos corações salta para fora das chamas
e vai cair numa terra distante, onde é achado por duas irmãs, que recosntituem o corpo a partir
do orgão, ressuscitam-no e casam-se com ele.
Segundo outras versões (entre as quais as dos Klamath e dos Modoc), uma das vítimas do
incêndio dá à luz postumamente a bebês que a avó junta num ser único e que mais tarde
recuperam a autonomia. Essas crianças, ou então o filho ou filhos do herói ressuscitado (M545a),
são informados de sua origem por um pássaro que pouparam. Matam a malvada, que se
transforma em mergulhão, recuperam os corações e ressuscitam seus parentes.
Tal e qual, o mito ocupa um território relativamente restrito, que inclui tribos contíguas
do norte da Califórnia e também, como vimos, do sul do Oregon. Do sul para o norte, são os
Yana, Wintu, Atsugewi, Achomawi, Shasta, Karok e Modoc (Demetracopoulou:102-103), aos quais
agora acrescentaremos os Klamath. Essa área de distribuição não mede mais de trezentos
quilômetros de comprimento, e parece provável que todas as versões tenham uma origem
comum. Demetracopoulou apresenta (103-107), a título de exemplo, uma das que coletou entre
os Wintu (M545a). Essa versão inclui uma lamentação em língua indígena, que o autor não
comenta, mas na qual se pode reconhecer os nomes Anana e Omamut, os protagonistas das
versões shasta, que se chamam Aniduidui e Ommanutc (Dixon 1:14), ou Ane'diwi'dowit e O'manuts
(Frachtenberg 2:212)8. Detalhe importante, pois veremos (infra:101, 110) que as versões yana,
muito embora meridionais, têm os olhos voltados para o norte. Parece-nos, portanto, que não
manipulamos os fatos ao deixarmos as versões klamath e modoc no centro da discussão.
*
* *
Ocorre que Curtin coletou, em 1884, uma versão modoc mais breve do que a outra, mas
contendo elementos originais, que nos permitem fazer a transição para um outro mito modoc.
Este último, fechando um primeiro círculo, leva à história de que partimos, a do nascimento de
8
O nome do herói wintu Talimleluheres, que pode significar "o que foi feito (ou tornado) belo"
(DuBois- Demetracopoulou:335), aliás, remete a nossas considerações da página 30.
HN 41
Aishísh (M529), que a primeira versão Curtin do mito de Dona Mergulhão deixava completamente
de fora.
M540. Modoc: a Dona Mergulhão
Essa versão restitui, ainda de modo mais fiel do que a primeira parte de M538 e M539, o
mito de Dona Mergulhão. Mas notam-se ao mesmo tempo mudanças significativas em relação às
versões anteriores. Em vez de contrair um casamento exogâmico, a irmã incestuosa é uma
solteirona convicta. Rejeita um bom partido, e se recusa a deixar a casa da família, para não se
9
O termo assim traduzido por Curtin não pode designar o mar, e sim, como especifica o mito mais
adiante, uma vasta extensão lacustre. Todos os testemunhos concordam em afirmar que, nos tempos
HN 42
afastar do irmão que ama, ao passo que sua homóloga de M538-539 apenas visita a família com
mais freqüência do que convém. Conseqüentemente, o retrato da irmã incestuosa é traçado com
mais vigor em M540, e para compô-lo, o mito utiliza cores mais intensas. A comutabilidade entre
mãe e filha, que permitia relançar a intriga dos mitos anteriores, em compensação, mal subsiste
neste, na forma de leve indicação, quando a filha propõe ironicamente à mãe que se case com o
marido que se lhe destina. Na verdade, a intriga de M540 não precisa ser relançada, pois que
desemboca diretamente na ressureição coletiva que em geral conclui o mito da Dona Mergulhão.
A protagonista de M540 não é apenas transformada de casada em solteira. Ela também se
desdobra em duas irmãs de caráter oposto. Aqui tomamos o verbo numa acepção figurada, mas
sem esquecermos que os demais mitos descrevem um desdobramento que deve ser entendido no
sentido próprio, já que envolve um personagem formado por duas crianças coladas uma à outra.
A caçula de M540, que decapita a irmã mais velha e provoca sua metamorfose em ave
aquática, desempenha, portanto, o mesmo papel que a sobrinha de M538, que também mata sua
tia incestuosa e a transforma em pássaro e que, contudo, se parece com ela, já que nutre pelo
próprio irmão os mesmos sentimentos que a outra tinha em relação ao dela. De modo que, num
caso, o mito põe em cena uma tia e sua sobrinha, que se opõem embora se pareçam e, no outro,
põe em cena duas irmãs, também de idades diferentes, mas que se opõem porque não se
parecem. Vimos que M539, por sua vez, transforma a sobrinha e o sobrinho de M538 em gêmeos
de mesmo sexo, entre os quais a intriga, contudo, introduz uma diferença de idade artificiosa.
São irmãos, como as irmãs de M540, mas de sexo oposto ao delas, e se parecem no plano moral a
ponto de realizarem juntos a mesma execução capital de que os outros mitos encarregam um
único dos dois personagens, que então a efetua na pessoa do outro.
Deixaremos temporariamente de lado este último estágio da permutação, para nos
debruçarmos sobre o que é ilustrado por M540. Este, com efeito, esboça uma inversão de M538-
539 que agora cumpre considerar, pois pertence manifestamente ao mesmo grupo que as
transformações precedentes, mas apresenta um caráter radical, que permitirá circunscrever
melhor o campo semântico em que todos nossos mitos se situam.
Antigamente, havia uma moça que vivia com seus cinco irmãos na
margem sul do lago Klamath. Ela se chamava Látkakáwas. Todos os dias,
seus irmãos iam pescar de canoa perto de uma ilha no meio do lago.
Látkakáwas cozinhava para eles, e só saía de casa para coletar grãos
selvagens. Enquanto trabalhava, ela parecia uma velha, mas "quando se
sacudia e saía, parecia jovem, azul e belíssima".
Kmúkamch, o Ancião [Kumush em modoc; continuamos usando
seu nome klamath] vivia na margem leste do lago. Todos os muitos
homens que viviam na margem oeste admiravam a beleza de Látkakáwas
antigos, os Klamath e os Modoc não conheciam nem o sal nem o oceano, que os Klamath designavam, aliás,
por um composto derivado do jargão chinook, /solcoq/, literalmente "sal" e "água" (Barker 2:79, 384).
HN 43
Aqui se situam vários episódios seguindo um mesmo modelo, e que agruparemos sob o
nome de "seqüência iniciática". O demiurgo envia o filho a lugares selvagens, assombrados por
espíritos. Para obter a proteção deles, ele terá de mergulhar na água gelada dos lagos de
montanha, carregar e amontoar pedras até a exaustão, orar e sonhar. O herói supera todas as
provas e volta munido de poderes mágicos. Poderia então tornar-se um grande chefe, mas o pai o
dissuade disso: "Melhor nos retirarmos para um local ermo, onde você conservará todos os
poderes que as montanhas e lagos lhe outorgaram, e não será maculado e corrompido pela terra
e pelos homens". Como se vê, o demiurgo decididamente não defende uma moral de
engajamento. Ele e o filho preferem construir uma bela casa no alto de uma montanha.
Kmúkamch ocupa a metade norte, e Aishísh, a metade sul. A porta se abria para o leste. O mito
continua assim:
pai. E espero que quando os humanos povoarem a terra, nenhum pai trate
o filho como você me tratou". O demiurgo se instalou perto do lago Tule.
Aishísh metamorfoseou suas três mulheres em texugo, borboleta e
troglodita, e depois foi viver sozinho no alto do monte Tcutgosi (Curtin
1:1-16).
Dando início à análise desse longo mito, começaremos ressaltando que ele faz várias
referências a costumes reais, como a pesca e secagem de salmões, a desmontagem da casa de
inverno, a cremação dos cadáveres acompanhada de oferendas, os banhos de vapor, os ritos de
iniciação — descritos com tanta minúcia que a leitura do texto dessa parte do mito quase
equivale a um curso de ciência religiosa, as competições de destreza e os jogos de azar. Ao
mesmo tempo, a seqüência iniciática inverte de vários modos a que termina M539.
Primeiro, não se situa no mesmo lugar do mito, pois M541 a coloca mais cedo no relato.
Em segundo lugar, esse mito descreve a iniciação do ponto de vista dos homens. Detalha as
provas, enumera os locais, evoca as emoções do noviço, mas deixa no vago os seres sobrenaturais
que se manifestam em sonhos ou alucinações. Do lado oposto dessa opção empírica, M539 adota
uma perspectiva que é a dos próprios espíritos, e os coloca em cena na condição de atores. Com
eles, os heróis competem em provas sem semelhança direta com as que os índios em busca de
protetores sobrenaturais têm de enfrentar.
Mas não se trata da mesma iniciação em ambos os casos. Entre os Klamath, o xamanismo
não era privilégio exclusivo de alguns, e todos aqueles cujos poderes sobrenaturais ultrapassavam
a média podiam pretender a ele (Spier 2:107); contudo, as revelações comuns tinham de ser
solicitadas pelos noviços, ao passo que as que determinavam a vocação xamânica entre os Modoc
dependiam da iniciativa dos espíritos (Ray 3:31). Umas se originavam, por assim dizer, diante do
espelho, e as outras atrás. Fica claro que M541 evoca a busca por poder imposta a todos os
adolescentes, e até a fundamenta, já que o herói nele aparece como primeiro iniciado. Na
seqüência correspondente, M539 relata, ao contrário, a origem da iniciação xamânica: depois de
vários espíritos excepcionalmente temíveis, os heróis enfrentam e vencem o gigante Yahyáhaäs
(supra:51), e fazem com que ele se torne especial patrono dos xamãs. Os mitos também
formulam a oposição de outro modo: remetem implicitamente ao dualismo típico da sociedade
klamath, que traçava uma distinção clara entre o poder do chefe ou homem rico em bens
materiais — a língua expressava ambas as idéias pela mesma palavra (Spier 2:38; Barker 2:212) —
e o do xamã. Pois bem, após sua iniciação bem sucedida, Aishísh poderia tornar-se um grande
chefe, mas ele recusa, enquanto os dióscuros de M539 instituem o poder mágico dos xamãs e se
vêem imediatamente impedidos de exercê-lo, pois esse mesmo poder lhes dá um destino
diferente. O que isso quer dizer? Aishísh não quer sujar as mãos lidando com política e, assim,
priva os homens da sabedoria e os abandona aos caprichos do destino. Essa não participação nos
assuntos humanos se transforma em participação negativa no outro mito, que só evoca o poder
xamânico em seu aspecto maléfico, o "veneno" que os adeptos usam para lançar sortilégios sobre
HN 47
10
O que não exclui, aliás, a possibilidade de o poder funesto dos xamãs ser canalizado para fins
benéficos, como explicam outros mitos (Curtin 1:148-158).
HN 48
preguiçosa, além de suja, pela baba preta que produz ou pela água turva que traz. No mito das
esposas dos astros, as duas mulheres sobem ao céu para se casarem com os irmãos Sol e Lua.
Neste, elas escalam uma montanha alta para irem viver na casa de um homem e de seu pai, que
apresentam evidente afinidade com esses mesmos corpos celestes.
Dissemos que vários detalhes do mito modoc refletem a realidade etnográfica. O mito é
igualmente respeitoso para com a geografia: todos os lugares nomeados são reais. Durante suas
peregrinações, os heróis fazem paradas em locais que em geral podem ser localizados nos mapas
disponíveis. Eles modificam a paisagem primitiva, marcam sua passagem criando recursos ou
acidentes naturais — peixes, rochas, vegetação — que são explorados ou observados nos lugares
em questão.
No início do mito, estamos na margem sul do lago Klamath. Mas qual deles? Pois há (ou
melhor, havia, já que a região tornou-se mais seca depois) dois lagos com esse nome, a uma
distância de aproximadamente 30 km, o superior em terras klamath, e o inferior em terras
modoc. Tenderíamos a escolher o segundo, mas existem dois empecilhos. Vejamos. Nihlaksi,
morada do demiurgo, onde vai ter a heroína para obter a ressurreição de seu esposo, é uma
elevação situada a uns doze quilômetros da margem leste do lago superior (mapa em Gatschet 1,
I, /nilakshi/, "alvorada", Ibid.:xxi). A caminho de lá, ela faz uma parada em Koasiké, localidade
cujo nome lembra Kohasti na transcrição de Gatschet (l.c.), e que não é senão o Gowasdi de
M538, uma aldeia no extremo norte do lago superior (cf. também Spier 2:16, /kowa'cdi/; Barker
1:196, /gowasdi/).
Após seu encontro com a heroína, o demiurgo vai primeiro para o norte. Depois, indo
certamente na direção oposta (mas o mito não diz), ele se instala a sudeste do lago Tule, e em
seguida em Leklis (Ray 3:209, /liklis/), que fica ao norte. Essa série de idas e vindas leva o herói
a Lâniswi (Ray 3:208, /lani'shwi/), no extremo sul das terras modoc, e depois para Sla'kkosi, de
identificação duvidosa (Ray 3:210, /chalklo'ki/, se situa completamente a leste). Nenhuma
dúvida, entretanto, quanto à etapa seguinte do circuito iniciático, "Gewa'sni, um lago profundo
escavado na rocha no topo de Giwa'syaina" (Curtin 1:8), pois /yaina/ (Gatschet 1, II:100; Barker
2:472, /y'ayn'a/) significa "montanha" em klamath, e /gewash, giwash/ (Gatschet 1, I:xxx; Barker
2:145, /gi.was/) designa Crater Lake, no extremo noroeste do território klamath. Ada'wa, a
etapa seguinte, é problemática, a menos que se reconheça nela Aga'wesh, que é o nome klamath
do lago inferior (Gatschet 1, II:16) ou /Agá/ (Ray 3:208), localidade a sudoeste do mesmo lago.
Depois, o herói vai para Ka'impeos (cf. Ray 3:25-26, /ka'umpwis/), ao sul do Clear Lake e na
fronteira sul das terras modoc. Esta última viagem encerra a seqüência.
A montanha inacessível onde os protagonistas se instalam não tem nome, mas é visível
das margens do lago Tule, onde os Modoc (Ray 3:18) situam o centro do mundo. De lá, os heróis
vão para nordeste (Curtin 1:11), exploram Lost River e fazem uma parada em Nusâltgaga (Ray
3:210, /nushaltka'ga/), localidade na curva formada pelo rio ao infletir-se para o norte. Quanto
HN 49
às etapas seguintes, Bla'ielka, "Blaiaga, montanha em que viveram Kmúkamch e Aishísh" (M543;
Curtin 1:37), talvez corresponda aos arredores da cidade de Bligh ou Bly, no vale do alto Sprague,
às portas das terras paiute (cf. Barker 3:211, /blay/, "acima, alto"; Gatschet 1, II:215, /m'lai/,
"abrupto", formando o nome de várias montanhas). A identidade do monte Kta'ilawetes (de
/qday/, "rocha"?) é incerta. O texto do mito situa o monte Du'ilast, onde os heróis se separam, a
leste do lago Tule. M543 (Curtin 1:32) chama pelo mesmo nome o Pequeno Shasta que, caso se
tratasse da montanha assim designada pelos mapas, estaria a várias dezenas de quilômetros na
direção oposta. Apesar da distância, poder-se-ia antes pensar no monte Lassen, a
aproximadamente 150 km a sudeste do lago Tule, que os Yana chamam de Pequeno Shasta (Sapir
& Swadesh 1:172; Kroeber 1:338). A identificação do último local a ser mencionado, o monte
Tcutgo'si, ainda é problemática.
Ainda que se leve em conta as incertezas que permanecem e os erros e confusões que
porventura tenhamos cometido, esse inventário mostra que os protagonistas do mito circulam de
um extremo ao outro das terras modoc e até mais além, em terras klamath, onde começa o
relato, e cuja travessia completa Aishísh realiza para visitar as montanhas próximas de Crater
Lake. Ao território em que transcorre o mito se confere, assim, um valor intertribal, acentuado
pelo fato de os heróis, residindo a sudeste do lago Tule, isto é, em plena terra modoc, receberem
a visita dos Mo'watwas, "gente do sul" (nome que os Modoc davam às tribos do rio Pit e mais
especialmente aos Achomawi, seus inimigos tradicionais), mas que, no mito, vêm oferecer uma
de suas filhas em casamento. O espaço mítico adquire assim o aspecto de patrimônio indiviso.
Isso explica que vários locais nomeados possam ser localizados no mapa (fig. 5) e que, ao mesmo
tempo, certas correspondências sejam estabelecidas em versões diferentes — conforme
provenham dos Klamath ou dos Modoc — entre locais que podemos considerar como praticamente
simétricos nas partes norte e sul do território. Apresentamos várias razões para supor que a
versão modoc começa, como a dos Klamath, às margens do lago Klamath superior, no território
destes últimos. Mas como os heróis se dirigem pouco depois para o lago Tule, que fica próximo do
lago inferior, tudo se passa como se na verdade partissem deste.
É igualmente digno de nota o fato de uma seqüência importante do mito modoc ocorrer a
nordeste do lago Tule, no vale do Lost River. Com efeito, por sua configuração topográfica, essa
região se parece com aquela, a uns cinqüenta quilômetros ao norte, que é formada pelo lago
Klamath superior, a foz do rio Williamson e seu afluente, o Sprague, onde a versão klamath situa
a intriga.
Parece ser particularmente significativo quanto a isso o nome da localidade em que se
realiza o campeonato. Segundo Curtin, Pitcowa se encontra a nordeste do lago Tule. E Gatschet
HN 50
(1, I:xx, xxi; II:268) designa pelo mesmo nome (Pitsua), um local também a nordeste, mas do lado
Klamath superior11. Dir-se-ia, portanto, que conforme se adote a perspectiva espacial própria dos
Klamath ou a dos Modoc, os dois dispositivos funcionam como variantes combinatórias e
substituem um ao outro em contextos geográficos simplesmente deslocados.
*
* *
Quando se passa do plano geográfico para o plano semântico, já não se trata de
aplicações simples relativas a espaços homotéticos que podem, de certo modo, deslizar um sobre
o outro e se sobrepor, mas de funções invertidas. Tanto nas versões klamath como nas versões
modoc do mito de Dona Mergulhão (M538, M539), a oposição principal se estabelece entre um
menino escondido, que os pais mantêm perto da casa da família, e uma irmã obcecada por
desejos incestuosos, embora seu casamento exogâmico devesse tê-la afastado fisica e
moralmente dos seus. De modo que, na situação inicial, o irmão está dentro, e a irmã está fora.
M541 inverte radicalmente essa configuração: sua heroína recusa o casamento, para não
deixar os irmãos, e até deseja que eles façam dela uma irmã escondida. Entretanto, o verdadeiro
escondido é um adolescente, originário de outra aldeia. Ele visita a heroína na esperança de
fazer com que ela contraia um casamento exogâmico que a levaria para o oeste — pois a aldeia
dele fica a oeste do lago, e a heroína vive ao sul —, ou seja, uma união duplamente inversa da
que a irmã incestuosa deseja, quando, na expectativa de uma união endogâmica, ela arrasta o
irmão para a aldeia em que ela se casou, situada a leste daquela em que ambos nasceram. Vê-se,
portanto, que ao contrário de M538 e M539, M541 põe a irmã dentro, e o menino escondido fora.
Este não é aqui um irmão que ela gostaria de transformar em marido sacrílego, mas um
estrangeiro, um não-irmão portanto; e uma união altamente recomendável, aliás, já que os dois
se apaixonaram um pelo outro à primeira vista.
E no entanto, apesar de seduzida pelo aspecto do belo estrangeiro, a heroína de M541
nem por um instante sonha em deixar os irmãos. Ao contrário, só quer que eles a retenham de
modo ainda mais firme. É como se ela só tivesse uma paixão na vida: cuidar dos irmãos, colher
para eles plantas comestíveis e cozinhar para eles. Também nesse sentido ela se opõe, como
nutriz efetiva, à amante em potencial que a irmã das demais versões incarna. De todo modo,
trata-se sempre de uma irmã ocupada demais com seu ou seus irmãos, pois o destino normal de
uma moça é deixar sua família de origem para viver com o marido, dormir com ele e cuidar dele.
11
Curtin especifica que Pitcowa está na parte sul do Langell Valley. Na versão Curtis do mito klamath
(M531a), Aishísh, libertado pelas borboletas, aterrissa em Pitswa, "uma depressão no Landsley Valley".
Apesar da ajuda especializada de nosso eminente colega Pierre Gourou, nenhum vale com esse nome pode
ser localizado, mesmo nos mapas mais detalhados do estado do Oregon. Em desespero de causa,
consultamos por carta o professor T. Stern, da Universidade de Oregon, grande especialista dos Klamath
contemporâneos, que teve a amabilidade de confirmar que não existe nenhum vale com o nome de Landsley
na região, e que certamente Curtis fora traído pela memória. Numa das versões colhidas pelo próprio Stern
(1, 3; M531b), as irmãs Borboleta fazem o herói aterrissar "a leste do monte Shasta".
HN 51
Ainda que de modos diferentes, as heroínas de M538, M539 e M541 são, portanto, igualmente
excessivas. Elas abusam da relação entre irmãos, quer no plano doméstico e alimentar, quer no
plano conjugal e sexual. Todas se mostram incestuosas, cada qual a seu modo, uma no sentido
próprio, a outra no figurado.
A variante modoc M540 se situa na passagem entre M538-539 e M541. Sua heroína recusa
o casamento, como a de M541, mas pelo mesmo motivo condenável que impele a de M538-539 a
voltar para a família, apesar de estar casada. Inicialmente escondido debaixo da terra, no meio
da casa da família, o jovem herói de M540 é transportado para uma ilha, guardado por uma irmã
caçula virtuosa que prefigura a heroína da M541, destinada ao mesmo exílio insular para escapar
do amor de um jovem herói, o qual reproduz o de M540, mediante sua transformação de
personagem endógeno em personagem exógeno.
Há mais. A irmã incestuosa e quase canibal de M538-M540 sofre uma separação definitiva,
ao mesmo tempo da humanidade e de sua própria família, quando um membro desta a mata e
metamorfoseia seu cadáver em pássaro mergulhador. O marido potencial de M541 se transforma
em salmão para tentar se manter unido aos que ele gostaria de transformar em seus afins e que,
ao matá-lo, devolvem-no à sua humanidade original. O mergulhão é um pássaro, o salmão é um
peixe, ambos ligados à água e migradores num eixo leste-oeste (eixo esse que, como vimos, tem
um papel importante nos mitos). De fato, os salmões sobem os rios do oeste para o leste, na
primavera e no outono (Spier 2:148) e os mergulhões, que passam o verão nos lagos, lagoas e rios
do interior, se instalam perto da costa ou à beira mar quando chega o inverno (Thomson:212;
Brasher 1:3; Godfrey:11-12).
A pertinência da oposição mergulhão/salmão é também evidenciada pelo modo como os
mitos qualificam as duas espécies por atributos contrastados. Basicamente dois aspectos são por
eles ressaltados no mergulhão ("huart" em francês do Canadá, Gavia immer): sua plumagem de
verão, caracterizada por pontos brancos sobre fundo preto em volta do pescoço (fig. 6), que o
motivo do colar de corações serve para evocar, e sua carne, declarada incomestível, que faz
desse animal um anti-alimento. M541, por sua vez, destaca dois aspectos inversos no salmão,
suaa escamas brilhantes e coloridas, "todo azul, dourado e verde" (Curtin 1:4) e o fato de ser
alimento excelente, já que os irmãos, como aponta o mito, se dedicam inteiramente à pesca e
secagem desse peixe. Na verdade, eles matam o herói transformado em salmão para comê-lo, ao
passo que o justiceiro ou justiceira dos outros mitos mata a protagonista condenável para que —
especificam — transformada em mergulhão, ela não possa nem mesmo ser comida.
Tentaremos formalizar esse complexo sistema, que contém nada menos que cinco pares
de oposições:
HN 52
Nas transformações a) e b), a inversão dos dois membros se explica pelo fato de o herói
de b) só se tornar um esposo legítimo, aos olhos da mulher e seus irmãos, depois de sua
metamorfose de peixe vivo em homem morto. A heroína de a), ao contrário, é castigada por ter
querido ser uma esposa ilegítima quando é metamorfoseada de mulher morta em mergulhão vivo.
Redundante, a dupla oposição herói esposo/heroína esposa se reduz à oposição entre masculino e
feminino. Em compensação, se a heroína de b) é uma irmã para seus irmãos, ela é o contrário de
uma irmã quando se qualifica no plano da aliança matrimonial, e a relação antisimétrica
irmão/não-irmã torna-se por isso pertinente.
A fórmula c) significa que o herói-salmão de M541 inverte a heroína-mergulhão de M539-
540. Mas M541 também a evoca por seu contrário, na pessoa da heroína cuja virtude, e não o
vício, motiva seu apego doentio aos irmãos. Essa heroína se chama Látkakáwas. Tem o mesmo
nome no primeiro mito que examinamos (M529), e que coincide ponto por ponto com a segunda
parte deste, desde o episódio do suicídio da moça até o final.
Vimos que esse nome12 designa um pássaro, o tangará de cabeça vermelha (supra:26),
apto portanto (embora a plumagem brilhante pertença exclusivamente aos machos, mas a
ornitologia indígena desconsidera esse detalhe) a imortalizar a lembrança de uma heroína morta
numa fogueira. As cores vivas do tangará o opõem ao mergulhão pintado de branco sobre preto.
Além disso, o primeiro faz ninho nas árvores, na ponta dos galhos, e o outro na terra, à beira da
água. E finalmente, as duas espécies não migram no mesmo eixo. No inverno, o mergulhão
permanece aproximadamente na mesma latitude, pelo menos na região que nos interessa, e se
desloca do leste para o oeste. O tangará parte ao longe, para o sul. Tudo se passa portanto como
se os mitos utilizassem o que chamaríamos de "zoemas", reditíveis, como os fonemas dos
lingüistas, a feixes de elementos diferenciais diversamente combinados. As oposições tiradas da
experiência inspiram outras, simbólicas. Dona Tangará é casta, mas fértil, e Dona Mergulhão é
lasciva, mas estéril; uma se imola numa fogueira, a outra faz morrer numa fogueira todos os
seus. O quadro se torna mais rico quando se leva em conta a cotovia (representada no oeste pela
espécie Sturnella neglecta), que aparece em M538 e M539. Colorida de amarelo, como o tangará,
mas menos brilhante, ela faz ninho no solo, e se opõe a ele, portanto, no que diz respeito ao eixo
alto-baixo. Mas ela também se opõe ao mergulhão, triplamente, pelo cromatismo, pela
plumagem pouco contrastada e pela terra em vez da água:
12
Barker (2) fornece em klamath uma fórmula vizinha, /kakkakla.w'as/, "yellow-headed blackbird",
Xanthocephalus xanthocephalus.
HN 53
Ora, Dona Cotovia não é nem casta como Dona Tangará, nem lasciva como Dona
Mergulhão. Fértil como a primeira, ela se mostra esposa fiel, à diferença da outra. E acima de
tudo, é boa mãe, qualidade que não se pode reconhecer em Dona Tangará, que se joga
voluntariamente numa fogueira junto com o filho, que morreria com ela. Vítima de um fogo
(acendido por Dona Mergulhão), Dona Cotovia consegue salvar os filhos que traz no ventre:
Essa Dona Borboleta, que entre os Sahaptin do interior transforma a Dona Raia dos Yurok
e de outras tribos costeiras da Califórnia (M292d; MC:264, n.1), transforma também as irmãs
Borboleta dos mitos klamath e modoc, que ajudam o herói e tornam-se depois boas esposas para
ele. Mas, como explica M542, a diferença decorre de Dona Borboleta aqui aparecer fora de
estação, como uma aberração, portanto, confirmando a contrario que, com o papel inverso, a
borboleta apareça na boa estação. Em relação à transformação das irmãs Borboleta em duas
esposas, uma borboleta e a outra texugo, formando assim um par dioscurico e portadoras da
mesma missão que as precedentes, note-se que ela ocorre em M541 após uma outra distorsão do
mesmo tipo: as duas mulheres pássaro e rã, pretendentes à mão de Aishísh, apresentam uma
relação de oposição mais marcada do que as esposas dos astros, uma conterrânea, a outra
estrangeira, ou ainda uma humana e uma rã, nos mitos norte-americanos, que sua reaparição
ecoa aqui (supra:58). Tais oposições amplificadas devem certamente ser postas em correlação
com a que M541 institui entre os demiurgos, pai e filho, associados ao sol e à lua, ao passo que
M539 a situa mais modestamente entre dois irmãos que no final viram estrelas gêmeas.
Trataremos mais adiante (terceira parte, III) dessas questões relativas às transformações do
código astronômico.
Por ora, cabe concentrar a atenção num fenômeno de outro tipo, diretamente
relacionado ao código etnozoológico, cujo deciframento estamos buscando. Existe um mito
modoc, que conta em detalhes um dos vários casamentos de Aishísh, e no qual "aves das neves"
desempenham a função que os outros mitos do grupo atribuem às borboletas:
Esse mito, que abreviamos bastante, é importante em vários aspectos. Primeiro, ele
opera uma espécie de corte transversal em todos os que foram examinados até o momento (sobre
esse tipo de construção, ver MC:302-307). Evoca a história do desaninhador de pássaros, coloca
em cena virgens desmioladas, culpadas, como Dona Mergulhão, de uma união incestuosa (com o
pai do homem que deviam tomar por marido), além de assassinas de um parente (na verdade um
afim, em vez de irmãos; e que elas esfolam vivo, em vez de queimar, mas com o mesmo
HN 56
resultado — persistência do disco — que quando a mesma vítima morre na fogueira, cf. M541). Em
seguinda, o mito inflige às duas mulheres o suplício da decapitação, que os outros mitos reservam
a Dona Mergulhão. E, finalmente, desdobra a seu modo, que é póstumo, crianças cuja morte
prematura impede de ser tornarem o par heróico e dioscurico com que sonhava seu pai; o mito
divide as crianças em dois lotes, as almas, que Aishísh pega, e os corpos, que deixa para as mães,
porque, como explica, "as crianças são metade de vocês, a outra metade é minha". A conclusão
reproduz mais fielmente ainda o mito dos irmãos celestes (M539), já que a origem dos poderes
xamânicos está em questão em ambos os casos.
Se pudéssemos interpretar o nome modoc /kengkong'kongis/, que designa tais poderes
em M543, por comparação com a palavra klamath /ken/, "neve", mais a forma verbal
/q'wanqkanga/, "que avança mancando", obteríamos um sentido aproximado, "o manco das
neves", ainda mais satisfatório na medida em que os Klamath descrevem o espírito homólogo de
M539 como "um manco que tira vantagem de sua perna mais curta perseguindo suas vítimas nas
encostas, porque assim compensa a declividade do terreno" (Barker 2:467 e cf. p. 185, 336;
Gatschet 1, I:ci, 180, onde Yayayá-ash tem uma perna só). Estaríamos, portanto, diante de uma
mesma família de espíritos, que M543 define tanto em relação à neve quanto à altitude. A velha
Yaulikik provoca tempestades de neve quando se desloca, e suas filhas se tornam aves das neves,
"com que os homens irão brincar, perseguindo-as nos arbustos, e que morrerão no frio e na neve
de que elas mesmas são a causa". Desse modo, o mito estabelece firmemente sua conotação
invernal, que está ligada à transformação das irmãs prestativas, de borboletas em aves das
neves.
Infelizmente, parece ser difícil determinar com segurança a espécie a que pertencem
essas aves /yaulilikumwas/. A locução popular "ave das neves" traduz, além dessa palavra
indígena, pelo menos outras duas, cuja forma é praticamente idêntica em klamath e em modoc,
/tchika/, que também é termo genérico para "pássaro" (cf. Barker 1:38-39; 2:88), e /ma'idikdak/
(Gatschet 1, II:206, "ave das neves de cabeça preta", Junco oregonus"; Curtin 1:125). A forma
/yaulikik/ por sua vez, parece aparentar-se, do ponto de vista fonético, a /yaukùl/ (transcrição
de Curtin), que designa a águia calva (supra:51); quanto à desinência, só se encontra em Barker
(2:232) /l'il'i.ks/, "nome próprio masculino, impossível de analisar" e (3:192) /!i.l'il'ig/, "bebês
pássaros".
Outro mito modoc indica que os três termos indígenas designam espécies vizinhas, senão
idênticas. Nele (M544; Curtin 1:125-128), duas irmãs Ma'dikdak têm aventuras muito semelhantes
às das irmãs Yaulikik. Partem para se casar com filhos de chefes, pegam o caminho errado e vão
parar na casa de Wus, a raposa, que tenta se fazer passar por um dos noivos, mas não consegue
enganar as irmãs, por causa de seu mau cheiro (cf. M103, MC:98). Então ele as transforma em
velhas desdentadas, corcundas e esfarrapadas. Apesar disso, os rapazes as recebem bem e,
durante a noite, elas recuperam sua aparência normal e ralham impiedosamente com o sogro,
HN 57
que tinha-se enganado a respeito delas. Em seguida elas vão embora, transformadas por Wus em
patos de cabeça verde, mas a mãe delas consegue retransformá-las em mulheres. O mais jovem
dos irmãos, trazendo muitos presentes, como roupas, contas e espinhos de porco-espinho, vai ter
com elas e se torna seu marido.
Desprende-se de todos esses incidentes uma impressão geral de que as "aves das neves"
constituem uma classe pouco digna de nota, muitas vezes chamada pelo nome que designa as
aves em geral, sem interesse algum para os humanos, que as desdenham como alimento e
zombam delas porque nem ao menos sabem se proteger do frio e da neve. Os Tillamook, que são
um grupo Salish isolado na costa noroeste da terra klamath, tinham a mesma opinião a respeito
das "aves das neves": "sem interesse, boas para nada. Ninguém as utiliza para nenhuma
finalidade" (E.D. Jacobs:69).
Com efeito, na América do Norte, confunde-se sob a denominação genérica de ave das
neves várias espécies ou variedades do gênero Junco. Como as cotovias, essas aves fazem ninho
no solo ou próximo dele, mas diferem delas, como os tangarás e as borboletas, porque são pouco
ou nada migratórias e, durante o inverno, às vezes apenas buscam um local próximo onde a
temperatura seja um pouco mais clemente do que nas montanhas onde passam o verão (Brascher,
IV:152-153; Godfrey:460-462; Jewett et al.:638, 641). Nesse sentido, esses pássaros se
assemelham aos mergulhões, e deles diferem: como eles, permanecem na mesma latitude, mas
se deslocam num eixo praticamente vertical, em direção a altitudes menores, em vez de um eixo
horizontal que liga os lagos e rios do interior à região costeira.
Os juncos possuem uma plumagem pouco distintiva, colorida de preto, cinza e beje. No
que diz respeito à cor, eles são, portanto, como os mergulhões, mas ao contrário destes, que "na
idade adulta, apresentam marcas brancas e pretas que formam um motivo fortemente
contrastado" (Thomson:212), suas nuances fundidas e fracas tornam tal ausência de cromatismo
não-marcada13; assim como as cotovias de plumagem colorida mas não marcada se opõem aos
tangarás no registro cromático. E finalmente, os juncos contrastam com os mergulhões por seu
tamanho reduzido, e por seu habitat, terrestre em vez de aquático.
Para justificar a pertinência das duas oposições conexas, cromático/acromático e
marcado/não-marcado, pode ser invocada a importância excepcional da categoria cor entre os
Modoc. Bancroft (1:330) ressalta o apreço deles pelos despojos de pássaros de cores brilhantes,
com que enfeitavam suas roupas. E o lirismo empolado de Curtin, desprovido de verdadeira
poesia, jamais teria sido capaz de produzir por conta própria expressões audaciosas como "ela era
jovem, azul, linda", que volta incessantemente em suas narrativas. Na verdade, o estilo narrativo
dos mitos modoc brilha com tonalidades tão diversas quanto a madrepérola, emitindo por toda
parte as mais ricas explosões de tons de vermelho, violeta, azul, verde e dourado.
13
No sistema que estamos considerando aqui. Mas veremos mais adiante que, num outro sistema,
uma espécie de junco chamada "de dorso ruivo", aparece, ao contrário, fortemente marcada (infra:441).
HN 58
JOGO DE ECOS
O episódio dos porcos-espinho, que também se apresenta no mito modoc M543, encontra-
se ali antecipado, de certo modo, por um outro, que só se encontra ali. Antes de os roedores
dançarem sobre o corpo do herói e o desafiarem enquanto ele jaz, doente e impotente, no
acampamento das duas irmãs, ele já sofreu um destino análogo e mais cruel: foi pisoteado por
milhares de cervos sedentos de vingança, até seu corpo ficar reduzido a um esqueleto e o terreno
em volta ser transformado num descampado desolado.
Ligamos (supra:45) o episódio dos porcos-espinho à origem dos adornos e acessórios, e o
texto de M543 confirma essa hipótese. Mas que interpretação dar ao episódio dos cervos, de que
esse parece ser aqui mera duplicação?
Além de substituir as irmãs Borboleta por Aves das Neves, M543 inova de outro modo.
Descreve Aishísh não como grande especialista dos jogos de perícia e de azar, mas como grande
especialista da caça. O mito chega a empurrar esse atributo, que não aparece nas demais
versões, a não ser de forma muito enfraquecida, para o primeiro plano. Segundo M543, Aishísh
tinha uma tal quantidade de carne de cervo "que se toda a população do mundo tivesse vindo
comê-la ainda sobraria quase o mesmo tanto". A família das moças-ave, ao contrário, não tem
carne; sua velha mãe é obrigada a mendigar para alimentá-las, e se aconselha as filhas a se
casarem com Aishísh, é porque conhece seus dons de caçador, e espera que, junto dele, haverá
muito o que comer. De modo que, em situação inicial, Aishísh tem toda a carne do mundo, e os
demais protagonistas do mito não têm nenhuma. Quando as irmãs vêm vê-lo, ele começa por
servir-lhes costeletas. Recém-casado, caça para seus afins e acumula para eles enormes reservas
de carne seca.
Pode-se portanto supor que, nos dois episódios que se parecem, o mito se refere, de um
lado, à origem da carne (de que o herói é senhor absoluto, no início) e, do outro, à dos adornos e
acessórios. Hipótese que para nós tem um interesse capital, já que estabelecemos na primeira
parte que o mito do desaninhador de pássaros existe na América do Sul e na América do Norte em
formas praticamente idênticas e que, em volumes anteriores (CC, MC), parece-nos termos
demonstrado que esse mito, que se refere à origem da água ou do fogo, se transforma
independentemente em mito da origem da carne e mito da origem dos adornos, dois temas que
agora encontramos associados num único mito, o qual faz questão de lembrar (pois que faz uma
alusão precisa a isso) que se herói foi primeiro um desaninhador de pássaros.
Vimos que essa mito se situa a meio-caminho entre a versão reta, que é a do
desaninhador de pássaros (aqui transformado em pisoteado por cervos) e sua forma invertida,
ilustrada pelo mito de Dona Mergulhão. Eis que este último mito também trata de duas origens, a
dos anti-adornos, digamos assim, na forma do colar de corações arrancados por uma mulher de
HN 61
seus parentes mais próximos14, e a da anti-carne, na forma do mergulhão cuja carne os homens
hão de cuspir, porque é incomestível.
É hora de introduzir um novo aspecto de M543. Ele não só conta um período da vida de
Aishísh que as demais versões da gesta desse herói ignoram, como transcorre em outra parte, as
encostas do monte Shasta, que as mulheres escalam, e o topo do Duilas, o Pequeno Shasta, onde
o irmão delas se posta para avaliar de longe o progresso da ascensão. Encontramo-nos, portanto,
no limite extremo da terra modoc em direção a oeste, quase em terra estrangeira, e mais longe
ainda, em direção ao sul, caso Pequeno Shasta não designe a montanha vizinha conhecida por
esse nome e sim, como ocorre entre os Yana, o monte Lassen (supra:63).
Mas também em regiões onde viviam tribos diferentes dos Klamath e dos Modoc pela
língua e pela cultura encontram-se versões do mito de Dona Mergulhão nos quais o episódio do
herói sepultado à beira da morte tem um lugar de destaque. Nelas, o herói é o único sobrevivente
do fogo iniciado pela mulher homicida. Seu coração salta do fogo e cai bem longe, num local
ermo, onde os cervídeos o pisoteiam, ou então ele mesmo se enfia no solo. Duas bondosas
mulheres acham o orgão, cuidam-dele e o alimentam, e seu dono ressuscita. Como, por exemplo,
numa das versões wintu (M545a; Du Bois & Demetracopoulou: 355-360; cf. supra:53; infra:120),
em que o coração, cujo canto a heroína ouve de longe e para onde se dirige, lhe diz "Mulher, não
tenha medo de mim! Venha!", e ela responde "sim!". Muitos animais tinham estado ali, havia
muita poeira (comparar com a descrição do episódio dos porcos-espinho em M538, supra:44).
Tanto a leste como a oeste, via-se uma enorme quantidade de pegadas de cervídeos...
Merecerão ainda mais atenção de nossa parte as versões dos Yana, que embora separados
dos Modoc pelos Achomawi e Atsugewi, tribos do rio Pit, situam o episódio dos cervos no Monte
Shasta, em concordância com M543. Para facilitar a leitura dos nomes próprios, tomaremos a
liberdade de simplificar as transcrições de Curtin, citando entre parênteses, sempre que possível,
seu equivalente fonético nas versões colhidas por Sapir.
14
Ao passo que, para perpetrar o incesto, ela faz uma oferta de adornos verdadeiros, as contas que
ela diz terem sido enviadas pelo marido para seus irmãos, e que um deles tem de vir pegar.
HN 62
Hitchinna, que ficou deitado num canto enrolado numa pele de lince, saiu
da casa, aproximou-se da moça e lhe perguntou o que ela queria dizer.
Ela mandou todos embora, e seu velho pai então entendeu que ela exigia
a presença de Hitchinna. Ele se lavou e vestiu suas mais belas roupas. O
sol estava alto no céu. Eles partiram juntos.
Depois de andarem muito, eles acamparam, e deitaram um ao
lado do outro. Mas Hitchinna, assustado, levantou-se assim que a irmã
adormeceu e fugiu, deixando um pedaço de madeira podre em seu lugar.
Chegou à casa grande com o dia.
A aranha Chuhna (tc#u#n"), irmã do pai, que também morava
lá, era insuperável na fiação e fabricação de cordas. Ela tinha um cesto
de salgueiro, grande como uma casa, suspenso por um cabo à abóbada
celeste. Pressentindo que a sobrinha ia querer se vingar, ela mandou toda
a família entrar no cesto, para içá-lo até o céu. Coiote foi o primeiro a
embarcar, e se instalou no fundo. Todos os moradores da casa grande
seguiram-no.
Hakalasi acordou abraçada a um pedaço de madeira podre. Furiosa,
correu para a aldeia. Não havia mais ninguém. Ela procurou rastros em
todas as direções, levantou os olhos, e viu o cesto subindo em direção ao
sol. Então ela pos fogo na casa.
Antes do fim da ascenção, Coiote, curioso, fez um buraquinho no
fundo do cesto para espiar. O cesto imediatamente se rompeu e todos
cairam na fogueira, exceto Tsoredjowa, que tinha sido a última a subir no
cesto e estava na parte de cima. Ela conseguiu se agarrar ao sol e se
salvou.
Hakalasi ficou olhando os irmãos queimarem. Os corpos explodiam,
um a um, os corações saltavam nos ares e ela os pegava num fio, preso na
ponta de uma haste. Conseguiu pegar todos, a não ser os do pai e do
irmão mais velho. O primeiro foi cair numa ilha, no meio de um rio perto
do lago Klamath. Lá, voltou a ser Juka. Enterrado até o pescoço, só a
cabeça ultrapassava o nível do solo.
O outro coração voou até o sopé do Wahkalu (wa#gal$, o monte
Shasta, Sapir 3:161, n. 260), onde seu dono também voltou ao que era
antes, mas ficou tão enfiado no solo que só o rosto aflorava.
Hakalasi juntou os corações que tinha apanhado e fez com eles um
colar. Primeiro, ela tentou morar nas águas rasas demais de um lago a
leste de Jigulmatu, e depois foi se instalar no lago da Cratera, a noroeste
do lago Klamath. Dois irmãos Tsanunewa, nome de um pássaro pescador,
viviam perto dali com sua velha avó. Estavam caçando patos quando
ouviram e viram Hakalasi se erguer acima da água.
Enquanto isso, Tsorejowa, que tinha descido de volta do céu, só
encontrou cinzas e ossos no lugar onde antes estava a casa grande.
Enlutou-se e foi procurar a irmã. Andou por toda parte, até o lago
Klamath, e acabou chegando à casa dos irmãos Tsanunewa, a quem
contou sua história. Eles lhe deram pato para comer, pediram-lhe para
descrever a assassina, e reconheceram a mulher do lago. Até se
ofereceram para capturá-la. Tsorejowa prometeu-lhes peles, contas, e
até casamento. Mas eles não queriam nada dela, a não ser ossos verdes e
vermelhos de cervídeos, para fazer pontas de flecha; ela foi procurá-los
na montanha. O mais velho escolheu os vermelhos, e o mais novo, os
verdes. Uma glosa explica que as diferenças na coloração provêm da
gordura que envolve os ossos longos.
Os irmãos atingiram o lago ao amanhecer. Fizeram-se pequenos por
meio de magia e embarcaram em duas minúsculas canoas feitas de caule
de junco. Quando Hakalasi apareceu, nenhum dos dois conseguiu atingi-la
HN 63
no coração com uma flecha, como eles mesmos tinham predito. Mas
feriram-na no pescoço e na axila e, depois de algum tempo, ela
reapareceu na superfície e morreu. Eles arrastaram o cadáver para perto
de sua casa e, depois de todos terem comido uma refeição de peixe,
disseram, assim sem mais, para Tsorejowa ir ver o que tinham caçado.
Ela reconheceu a irmã, despiu-se e envolveu o corpo com sua roupa.
Depois contou os corações; faltavam os de seu pai e de seu irmão mais
velho.
Os Tsunanewa lhe contaram que freqüentemente ouviam gemidos
vindo de longe, ao norte. Torejowa saiu imediatamente naquela direção.
Logo reconheceu a voz do pai. Olhou para todos os lados, avistou a
cabeça querida, cavou a terra com uma vara e conseguiu livrar o corpo
todo. Juka era só osso. Ela o vestiu numa pele de cervídeo, voltou ao seu
ponto de partida para pegar o cadáver da irmã e levou os dois para sua
antiga aldeia, a leste de Jugalmatu. Deixou-os em local seguro e saiu
novamente, à procura do irmão.
Ao pé do monte Shasta vivia um certo Jamuka (zaamuk'u), "Minhoca
de glande", com sua mulher e suas filhas. Certo dia, as moças estavam
juntando lenha, e ouviram um canto, mas não sabiam de onde vinha. Na
vez seguinte, a mais nova das irmãs achou no chão um rosto humano
coberto de lágrimas, imundo e horrível. As irmãs cavaram durante dois
dias e finalmente conseguiram desenterrar o homem todo. Era só osso.
Envolveram-no em suas roupas e foram buscar peles de lince. Ao saber do
achado, o pai pensou que talvez fosse um sobrevivente do massacre de
que ele ouvira falar e recomendou às filhas que cuidassem bem dele.
Quando voltaram com as peles, viram que os olhos do homem vertiam
rios. Os cervídeos desciam das encostas vizinhas para beber deles.
Dia após dia, as irmãs alimentaram seu protegido. Noite após noite,
dormiram ao lado dele. Seu estado ia melhorando, mas ele chorava sem
parar, e os cervídeos vinham beber a água que jorrava de seus olhos.
Quando começou a falar, pediu um arco e flechas, e dispensou suas
enfermeiras. Numa única noite, ele matou um por um os quatro animais
que vieram beber suas lágrimas, e na noite seguinte, mais ainda. As
moças ficaram com medo, mas o pai delas adorou. Ele limpou a caça e
pos a carne a secar. Completamente restabelecido, o herói foi-se instalar
com a nova família. Ele tinha parado de sonhar, mas uma fonte salgada
jorrava no lugar onde ele tinha vertido tantas lágrimas. Ela continua lá, e
bandos de cervídeos vêm beber nela. Os caçadores, que ficam de tocaia,
matam muita caça ali, como fizera o filho de Juka.
Tsorejowa, que ia de casa em casa à procura do irmão, acaboupor
encontrá-lo na casa de Jamuka. Tranqüilizada quanto ao seu estado e
sabendo-o bem casado, voltou à sua aldeia. Em uma noite ela construiu
uma casa espaçosa e trançou um grande cesto estanque, que encheu de
água. Na noite seguinte, colocou ali os corações, junto com o da irmã,
que ela tinha retirado do cadáver, e pedras em brasa. Quando a água
começou a ferver, ela cobriu o cesto, depositou-o sobre o teto da casa e
adormeceu.
Ao amanhecer, o cesto virou e liberou um bando de gente tremendo
de frio que se apresentou na porta da casa. Ela reconheceu os irmãos, e a
irmã, que já não tinha nada de mau nela, pois seu coração tinha ficado
puro. Tsorejowa deu a todos notícias do irmão ausente e os homens
retomaram suas atividades costumeiras.
Certo dia, Jamuka aconselhou o genro a ir apresentar suas mulheres a
seus parentes. Assim que avistou o filho, o velho Juka prendeu-o numa
coberta grande e o escondeu. Dois de seus irmãos se apropriaram das
HN 64
mulheres, que nunca mais viram o primeiro marido, porque Juka tinha
feito dele um /weänmauma/, quer dizer, um rapaz escondido.
Quando as mulheres, carregadas de presentes, foram visitar o pai,
contaram-lhe o que acontecera. Ao que respodeu o pai: "Está bem assim,
o pai dele o tirou do mundo, e os irmãos dele são para vocês matidos
igualmente bons". As mulheres não discordaram e ficaram morando na
casa de Juka (Curtin 3:407-421).
*
* *
Para analisar esse mito, convém proceder por etapas, pois a tarefa é complicada pelo
fato de desconhecermos quase que completamente a etnografia dos Yana. Essa pequena
população, que pertencia pela língua à família hokan, como seus vizinhos setentrionais Atsugewi,
Achomawi e Shasta, vivia numa região acidentada e dominada pelo monte Lassen, entre os rios
Pit e Sacramento. Apesar de já estarem bastante assimilados à vida dos colonos americanos, para
quem trabalhavam como assalariados, os Yana foram massacrados de modo ignóbil em agosto de
1864, cujo triste relato foi feito por Curtin (3:517-520). Menos de cinqüenta sobreviveram.
Jamais saberemos se a imagem rudimentar que possuímos de sua cultura se explica por sua antiga
rusticidade (Kroeber 1:340) ou porque somente pedaços de informação chegaram até nós.
Comecemos passando em revista os nomes dos personagens do mito. Já conhecemos Dona
Mergulhão no papel que lhe atribuem os Yana. Seu irmão se chama Lince, nome que compartilha
com toda a família numa versão modoc (M540) do mesmo mito. Ele é o filho do velho Juka (Sapir
3:55, 68 n. 106; Sapir & Swadesh 1:207), nome de uma espécie de bicho da seda parasita do
sumagre venenoso chamado na América de "poison oak" ou "poison ivy" (Rhus diversiloba). Coiote,
demiurgo e enganador entre tantos povos da Califórnia e de alhures, tem aqui um papel
secundário. A aranha Chuhna mantém o papel que lhe é atribuído numa versão modoc (M539)
mas, como tia paterna, perde o sexo masculino que seu personagem costuma ter nos relatos yana
(Sapir 3:29, n. 45). Mais adiante entenderemos porque, e também a razão pela qual a heroína
que ressuscita os seus e redime a irmã criminosa se chama Águia.
A respeito dos irmãos Tsanunewa, Curtin apenas indicaque são aves pescadoras; isso é
confirmado por uma versão achomawi (M552; Angulo & Freeland:126): /tsànúnné.w$/, nome
mítico do kildir Charadius vociferus, que já encontramos (supra:42); mas o termo yana corrente é
/dutdu-/ (Sapir & Swadesh 1:79). O nome Jamuka designa uma espécie de verme cuja identidade
será discutida abaixo (p. 99). Quanto ao termo /weänmauna/, era aplicado pelos Yana a
"crianças, geralmente meninas, que as famílias de alta estirpe mantinham escondidas, às vezes
até a idade de trinta anos" (Sapir & Swadesh 1:172). Esses filhos escondidos não se casavam
nunca, ou se casavam muito tarde (Sapir & Spier 1:274). Quando casados, os mitos se apressam
em fazê-los voltar à condição de solteiros (Curtin 3:349, 421).
HN 65
Tal como é narrado pelos Yana, o episódio dos cervídeos se apresenta numa forma
bastante diferente da que lhe é dada pelas versões modoc (M543) e wintu (M545a), onde o
encontramos anteriormente. O herói não só verte todas as lágrimas de seu corpo, como já dizia
M543, como suas lágrimas produzem uma fonte salgada na qual os cervídeos vêm beber. Ele os
atrai, portanto, e a condição lamentável em que se encontra não decorre de ter sido atacado e
pisoteado por esses animais, mas de circunstâncias totalmente outras, e anteriores. O mito yana
integra assim o tema das lágrimas e o dos cervídeos, e por meio disso explica, não a origem da
caça (já que os irmãos se dedicam a essa atividade desde o início), mas como ela foi facilitada
pelo aparecimento de fontes salgadas que atraem as manadas, de modo que basta ficar de tocaia
junto a elas para matar muitos animais. É fato confirmado que havia sal no território dos Yana:
"Perto da aldeia de Wichuman'a, a alguns quilômetros a leste de Millville, havia um brejo salgado.
Dele era extraída uma lama escura, que se deixava a secar, para consumi-la como sal. Os
Achomawi, Atsugewi e Wintu vinham todos reabastecer-se ali, o que sugere que essas tribos
costumavam manter relações amistosas. Isso explica o fato de os Achomawi chamarem os Yana de
Ti'saichi, 'gente do sal' " (Kroeber 1:339-340; Sapir 3:54, n. 78; Sapir & Spier 1:245). É claro que o
local em questão não é o mesmo do mito. Mesmo porque o monte Shasta, onde ocorrem vários
episódios, se encontra bem afastado do território yana. Contudo, era visível de vários lugares
(Sapir & Spier 1:247), e já notamos (supra:78) que esses índios chamavam o monte Lassen,
situado à beira de sua terra, a sudeste, de um nome que significa literalmente "o pequeno Shasta"
(Kroeber 1:338; Sapir & Swadesh 1:172). Como observamos a respeito dos mitos modoc,
aparentemente, os Yana também estabeleciam uma espécie de correspondência ideal entre os
lugares que freqüentavam e os de uma região mais ao norte, aonde muitas vezes enviavam, aliás,
seus heróis, como os de M546, que visitam locais tão distantes quanto o lago Klamath e o lago da
Cratera.
Tais itinerários podem ser parcialmente reconstituídos (fig. 7). No início do mito, estamos
em algum lugar a leste de Round Mountain: "I'da'lmadu, Bone Place, entre Montgomery Creek e
Round Mountain... dizem que as pedras e pedregulhos são ossadas metamorfoseadas, daí o nome"
(Sapir & Spier 1:245). Depois de cometer todos os seus crimes, Dona Mergulhão se afasta para
mais a leste, depois sobe para o norte, faz uma parada no lago Klamath e se instala ao norte
deste, nas águas do lago Cratera, onde sua irmã, também depois de passar pelo lago Klamath, a
alcança15.
Fig. 7 — Geografia do mito de Dona Mergulhão [p. 84]
15
Esse itinerário parece estar claro pelo contexto. Curtin afirma claramente (3:411): "o lago da
Cratera, a noroeste do lago Klamath". Contudo, convém notar que também existe um Crater Lake em terras
achomawi, na parte setentrional da bacia do Fall River (cf. Kniffen, legenda da ilustração 55b, p. 324). E
mesmo que se tratasse desse lago, e não do outro, o mito levaria a heroína a terras estrangeiras, e é esse o
ponto, mais do que determinar um itinerário preciso. O que queremos mostrar, é que todos os mitos desse
grupo têm um caráter cosmopolita e, diríamos, até internacional.
HN 66
Após a morte de sua irmã mais velha, a caçula volta para os lados do lago Klamath.
Carregando os despojos de seu pai e de sua irmã, ela retorna à aldeia natal, e depois de ter
vagado por algum tempo, chega ao sopé do monte Shasta e volta definitivamente à aldeia para
ressuscitar seus familiares.
A mais completa das versões publicadas por Sapir (3:228-232, M547) foi coletada por
Dixon por volta de 1900; contém precisões suplementares e difere da de Curtin em vários pontos.
Iremos discuti-la mais adiante, e aqui apenas notamos que situa a cena do massacre em Ship'a
(ci’p!a) e faz vir Dona Mergulhão, que nesse caso é uma estrangeira solteira, de um lago muito
mais a leste, perto de Hat Creek ("%k$’l’imadu, cf. ‘ak´$’lisi, "mergulhão"; ou ‘ak$’lili, "lago", -
madu, "lugar": Hat Creek, em terras atsugewi" Sapir & Spier 1:247), ou seja, exatamente a mesma
região para onde a irmã incestuosa de M546 se dirige depois de ter cometido seus delitos.
Conseqüentemente, como nas versões klamath e modoc, um eixo leste-oeste serve para definir as
posições respectivas de Dona Mergulhão e dos seus. Quando casada, ela mora a leste de sua
aldeia natal (M531). Quando solteira e virtuosa, também mora a leste daquele que poderia
tornar-se seu marido (M541). Retransformada por M546 em irmã incestuosa, ela se dirige para o
leste depois de ter matado seus familiares. E, em M547, no qual assume o aspecto de uma
estrangeira lasciva e assassina, é para o oeste que vai para realizar seu duplo objetivo.
As considerações acima revelam que todos os mitos evocam uma estrutura espacial do
mesmo tipo. Ora se esforçam por recuperá-la no plano local; ora fazem referências diretas, sem
transpô-las a locais fora do território tribal, mas que, da perspectiva de vários povos, parecem
possuir o mesmo valor e o mesmo significado. Por intermédio dos mitos, cada uma das tribos
afirma um direito de propriedade mística sobre um vasto território, do qual ocupa apenas uma
parte.
Voltaremos a isso. Pois não esgotamos o tema das terras e das águas salgadas de que
partiu a presente discussão. De fato, o relato yana dá a impressão de que o surgimento das águas
salgadas permite solucionar o problema da caça, que sem isso encontraria dificuldades de ordem
ecológica. Se não existissem as fontes salgadas, que atraem a caça de porte para os baixios,
como explica o mito, os caçadores seriam obrigados a se arriscar na montanha. Aliás, quando os
irmãos Tsanunewa, que são aves pescadoras, precisaram de ossos de cervídeos para fabricar
pontas de flecha, não puderam consegui-los por conta própria e tiveram de recorrer a uma
heroína chamada Águia, que sendo capaz de subir até o sol, ainda mais facilmente chega alto da
montanha, onde vivem e morrem os cervídeos, e onde seus ossos são coletados. Vimos também
que na versão modoc do mesmo episódio, o herói é atacado pelos cervídeos quando se aventura
perto do pico do monte Shasta.
Visto do ângulo etiológico, o mito yana preenche, portanto, uma dupla função. Relata a
origem das fontes salgadas, que são o meio da caça facilitada, e em seguida a dos adornos e
HN 67
*
* *
Nesse ponto, impõe-se a nós uma constatação de importância capital. Vemos reconstituir-
se, pouco a pouco, uma configuração mítica em parte análoga à que tínhamos encontrado em O
cru e o cozido e no início de Do mel às cinzas (p.25). Recapitulemos brevemente. Mitos sobre a
origem do fogo de cozinha (M7-12), que se invertem em mitos sobre a origem da chuva, água
celeste que apaga os fogos domésticos (M1), transformam-se primeiramente em mitos sobre a
origem dos adornos e acessórios e depois em mitos sobre a origem do mel. A prova de que esta
última transformação é real resulta do fato de o mel, meio da origem dos adornos, tornar-se um
fim em si em mitos que, como podemos demonstrar de modo independente, estão com os
primeiros em relação de transformação. Sua existência constitui, portanto, uma condição a priori
da existência dos demais e, quando são estudados, revelam possuir todas as propriedades
empíricas que a hipótese inicial permitia postular.
Essa estrutura reaparece nos mitos norte-americanos que acabamos de estudar, a não ser
por duas coisas. Primeiro, eles substituem a categoria de doce pela de salgado. Para consolidar os
dois sistemas num único, seria portanto necessário, e suficiente, subsumir ambas as categorias na
categoria mais abrangente de condimento. E os adornos, não são um condimento da pessoa, do
mesmo modo que os sabores acrescentados são adornos dos alimentos?
Em segundo lugar, as conexões internas do sistema norte-americano formam uma rede
mais complexa do que a que é própria da América do Sul, ilustrada de forma simplificada em
nosso diagrama (MC:25). As mesmas ligações existem na América do Norte, mas se desdobram.
Tanto em M543 quanto em M546, o condimento opera em dois planos, como meio da carne e
como antecedente dos adornos. Assim, esses mitos se opõem a outros, anteriormente examinados
(M530, M538), em que os adornos aparecem como fim, sem que se faça alusão aos alimentos ou
aos condimentos.
Deveríamos concluir que se trata de uma semelhança fortuita entre os mitos dos dois
hemisférios, e que diante das diferenças que acabamos de assinalar, seria equivocado invocá-la
HN 68
como uma prova em favor da estrutura comum a eles? Há dois modos de responder a essa
pergunta.
Poderíamos começar procurando saber se os mitos norte-americanos relativos à origem do
sal e dos adornos não resultam da mesma transformação que, na América do Sul, leva dos mitos
de origem do fogo terrestre ou da água celeste para os da origem dos adornos e do mel. Verifica-
se que não apenas é isso mesmo que acontece, como também as armações geradoras da
transformação apresentam, nas duas Américas, propriedades que se correspondem estritamente.
Mas ainda não chegou a hora de apresentar o que constituirá, para nós, a demonstração final e
decisiva (infra:125ss).
Comecemos portanto pelo outro meio, que parece ser mais apropriado ao atual estágio da
discussão. Se respeitarmos as convenções do diagrama já publicado, que aqui reproduzimos para
a comodidade do leitor (fig. 8), podemos dizer que, deixando provisoriamente de lado o sistema
S1 e seu inverso, S—1, relativos à origem da culinária tomada positivamente (cozimento dos
alimentos) ou negativamente (água que apaga os fogos), até agora só discutimos a parte
esquerda, na qual se situam os mitos de origem dos adornos e do mel. Com a transformação do
mel em sal, e das contas de conchas em espinhos de porco-espinho, animal desconhecido nos
trópicos16, acabamos de reconhecer a mesma estrutura local nos mitos da América do Norte.
Mas o que acontece do outro lado, isto é, na parte direita do diagrama? Obteríamos desde
já um sólido argumento em favor de nossa hipótese de uma estrutura comum aos mitos das duas
Américas cujo herói é um desaninhador de pássaros se, também neste caso, fôssemos levados a
constatar que os mitos do hemisfério boreal reproduzem os do hemisfério austral.
Ora, a parte direita do diagrama é o palco de uma transformação simétrica à da outra,
pois que também engendra, em duas etapas, mitos sobre a origem da carne e do tabaco. Meio da
carne na primeira etapa, o tabaco torna-se fim na segunda. Existiria uma transformação do
mesmo tipo, isto é, ligando a carne ao tabaco, nos mitos norte-americanos?
Basta colocar a questão para resolvê-la. Efetivamente, um dos mitos modoc que
discutimos (M539) contém um longo episódio que é completamente ininteligível, a menos que
seja interpretado desse modo. Como não havíamos ainda formulado nossa hipótese, ele parecia
tão supérfluo que apenas o mencionamos, sem inseri-lo na análise.
No decorrer desse episódio, os dois heróis, caminhando em direção ao nascer do sol,
enfrentam duas vezes seguidas o ogro de uma perna só, Yahyáhaäs.
16
Mas convém observar que as pequenas contas brancas e pretas tão comumente utilizadas na
América do Sul, que são enfiadas alternadas num fio flexível ou mesmo numa fibra rígida — sobretudo entre
os Bororo, de cujo mito (M20) provém a referência aqui invocada, e que trata exatamente dessa técnica —
se parecem muito com espinhos de porco-espinho, cujo diâmetro é comparável ao das contas, e que
também apresentam zonas pretas e brancas alternadas. A transformação mel => sal, por sua vez, está
registrada na América do Sul entre os Matsiguenga (MC:242, n.1) e os Ayoré (Muñoz & Bernand, anexo,
Mitologia, p. xxx-xxxv).
HN 69
e que encarem o fogo em três outras modalidades bem distintas, a pira funerária, a queimada
para encurralar a caça e o que é produzido com a ajuda do bastão giratório, para acender o
cachimbo e fumar. Essas três modalidades correspondem a técnicas reais. Os Klamath, os Modoc,
e também os Yana, vários outros povos da Califórnia e os Carrier, bem ao norte, cremavam os
cadáveres, incendiavam o mato para caçar (Ray 3:187)17, e fumavam, do modo indicado pelos
mitos, um tabaco selvagem, Nicotiana attenuata ou bigelovii, que talvez fosse também cultivado
por alguns grupos klamath (Spier 2:87). Do ponto de vista lógico, as três técnicas formam um
sistema: a pira funerária é destruidora, o fogo produzido pelo bastão é construtor, e a queimada
reune os dois aspectos, pois destrói a vegetação mas oferece caça aos homens. Contudo, apenas
o fogo produzido com o bastão tem uma posição marcada nos mitos. Na falta desse fogo
duplamente cultural, tanto por sua origem quanto por sua finalidade, os homens perdem a
chance de conquistar a boa vontade dos espíritos e entram em conflito com eles.
Como na América do Sul (MC:222), portanto, manifesta-se um desequilíbrio dinâmico no
seio do grupo das transformações. Tanto no caso do sal quanto no do mel, os mitos concebem um
eventual retorno do homem a uma condição natural. Pois também o sal, na tripla forma de lama
extraída do brejo e pronta para o consumo uma vez seca, de fonte salgada em que os animais
bebem e de lágrimas secretadas pelo corpo humano, ilustra o paradoxo de uma culinária crua, a
única capaz de levar o alimento ao seu ponto de perfeição, mas por efeito de vias naturais. Na
outra ponta do grupo, em compensação, o tabaco que corresponde simetricamente ao mel ou ao
sal aparece ao mesmo tempo como obra da cultura (já que é preciso possuir um cachimbo e um
bastão de fogo para poder fumá-lo) e meio supremo de comunicação com o mundo sobrenatural.
Era exatamente esse o papel do tabaco entre os Klamath e os Modoc, que certamente
fumavam no cotidiano por prazer, mas tinham um lugar reservado ao tabaco nos ritos xamânicos.
Não há como concordar com Spier (2:87) quando ele afirma que os xamãs fumavam apenas para
relaxar, tese que aliás diverge de suas observações anteriores quanto aos cachimbos reservados a
esses especialistas e sua forma particular (tubo muito longo, envolvido numa pele de cascavel) e
ao tabaco, misturado com raízes venenosas, que era preparado para eles. O fato de os xamãs,
numa invocação citada por Gatschet (1, I:157), designarem seus cachimbos pelo mesmo termo
que se aplica a seus apetrechos mágicos em geral também advoga em favor de um uso ritual do
tabaco.
As informações coletadas por Ray (3:55, 69-70) entre os Modoc confirmam as que podem
ser tiradas dos mitos, a menos que as técnicas xamânicas diferissem radicalmente nas duas
tribos, o que não é nada verossímil. Antes de começar a cura, os xamãs modoc fumavam como os
espíritos lhes haviam ensinado. Para assoprar a fumaça sobre suas próprias mãos ou sobre o corpo
do doente, cada um tinha seu estilo próprio. Informantes contam que um certo xamã possuía um
17
Em atsugewi "/yunasïi/, círculo de fogo em torno de uma montanha... queimavam cinco ou seis
montanhas por ano" (Garth 2:132). Tanto de dia quanto de noite os Klamath e os Modoc acendiam círculos
HN 71
cachimbo excepcionalmente grande, e que acendia sozinho, e que um colega klamath quis
comprar. O proprietário concordou, pois sabia que o cachimbo, animado pelo espírito tutelar,
voltaria sozinho para ele. Certa vez, o cachimbo caiu na água e ninguém conseguiu recuperá-lo,
mas na mesma noite, o xamã encontrou-o em seu lugar na casa e, ainda por cima, aceso.
Exalando a fumaça de seu cachimbo sobre um homem que o tinha provocado, um outro xamã
provocou nele uma doença mortal.
O cachimbo e a fumaça de tabaco são, portanto, mediadores privilegiados para
influenciar uma certa categoria de espíritos. Esses espíritos freqüentam as montanhas e, em
condições normais, só os xamãs se relacionam com eles. Mas pode acontecer de homens comuns
os encontrarem, como viajantes que atravessam as montanhas — e devem por isso estar sempre
munidos de um cachimbo, de um bastão de fogo e de tabaco — e caçadores. E aqui tocamos no
cerne do problema da caça entre esses índios, que só podiam encontrar caça de porte nas
montanhas, onde, por razões tanto práticas quanto místicas, temiam aventurar-se18.
Corroborando tal paradoxo etnográfico, dispomos de numerosas indicações afora as que
provêm dos mitos, e que nossa análise permitiu evidenciar. Spier (2:155) faz notar que apesar da
abundância de caça em seu território, os Klamath eram maus caçadores: "Não sabemos nada de
caça aos cervídeos", reconhece um de seus informantes. Essa carência não é explicada apenas
pelo fato de que um bom caçador precisa contar com a proteção especial dos espíritos, mas
também porque as montanhas cobertas de florestas só atraíam os solitários em busca de uma
revelação sobrenatural.
À diferença do que ocorria entre os Klamath, entre os Modoc a caça era mais importante
do que a pesca; a temporada era aberta no outono, "quando os acampamentos eram deslocados
para maiores altitudes". Os homens então caçavam cervídeos, enquanto as mulheres coletavam
bagas da montanha, que amadurecem no final do outono (Ray 3:182). O período de caça ia até
dezembro, embora fosse preciso retornar à aldeia de inverno a partir de outubro, para consertar
as casas, cujo vigamento fora desmontado na primvera. Enquanto as mulheres cuidavam disso, os
homens continuavam caçando nas montanhas, por vezes até por mais tempo, se as provisões não
fossem suficientes. Mas essa eventualidade era temida, ainda mais porque "o tipo de habitat dos
Modoc e seu modo de vida impedem-nos de caçar de modo proveitoso no inverno" (Ibid.:185).
Nessas condições, a caça de fato apresenta um caráter paradoxal, duplamente paradoxal
até. Pois, para evitar a fome, era preciso que o auge dessa atividade ocorresse justamente no
de fogo ao redor das montanhas para caçar cervídeos (E. W. Voegelin 2:169).
18
A palavra inglesa deer, empregada pelos mitos (ou pelo menos pelas transcrições de que dispomos)
designa os pequenos cervídeos. Mas as observações de um autor que viveu entre os Modoc pouco depois de
1850 levam a crer que se referiam antes à caça de grande porte, e particularmente aos verdadeiros cervos
(elk na América do Norte): "Pode soar estranho dizer que os cervos (elks) sobem para os cumes quando o
inverno se aproxima, em vez de descerem para as colinas baixas e planícies, como os pequenos cervídeos
(deers), mas é isso que ocorre... Existem fontes quentes nas montanhas... onde cresce uma espécie de
agrião das fontes, e bagas selvagens nos brejos de água morna e em suas margens, que permitem aos cervos
HN 72
momento em que os índios deviam descer das montanhas freqüentadas pela caça de porte, para
reconstruirem as aldeias de inverno. Além disso, a caça podia ser absolutamente indispensável na
época do ano em que é mais difícil praticá-la. Uma atividade que deveria ser normal para
resolver o problema da subsistência obrigava os caçadores a um comportamento duplamente
anormal. No espaço, pois as montanhas por onde se aventuravam para caçar os expunham a uma
luta desigual com os espíritos, que não sabiam pacificar com oferendas de tabaco especial, como
faziam os xamãs. No tempo, pois a época em que corriam os maiores riscos, os caçadores
poderiam ter estado em suas cabanas semi-enterradas bem aquecidas, cobertas de esteiras e de
torrões de grama, protegidos dos rigores do inverno, vivendo de suas provisões em completa
segurança.
Tal aspecto discordante da existência prática se manifesta igualmente de outro modo.
Para caçarem, os Klamath às vezes tinham de se aventurar fora de seu território, na vertente
ocidental das Cascades (Spier 2:155). Os mitos modoc também atestam que, da perspectiva
deles, a caça não apresentava um caráter apenas atípico, mas exótico. A sudeste das terras
modoc, conta M549a, dois irmãos, Doninha e Marta (avatares de Aishísh e Kmúkamch, cf.
supra:37) viviam no topo de uma montanha alta. Em recompensa por ter causado a morte do ogre
Yahyáhaäs numa fogueira colossal, Doninha recebeu a mão da filha do chefe local. Porém, ao
contrário da esposa de Marta, que era shasta, ela não conseguiu se acostumar à nova residência e
foi embora. De modo que uma moça de um grupo de inimigos tradicionais se adapta ao modo de
vida dos heróis culturais melhor do que uma conterrânea, em circunstâncias nas quais eles livram
os humanos do gigante canibal que, segundo M549b, c, os impedia de assumir sua condição de
caçadores. Pois naquele tempo (M549a), as pessoas comiam apenas grãos e raízes (Curtin 1:148).
Vimos (supra:72) que, para os Klamath os Modoc, esse ogre só tem uma perna, ou
manca. No segundo volume destas Mitológicas (MC:395-400), discutimos a função semântica da
claudicação e propusemos ver nela, pelo menos na América, o símbolo de uma ausência de
periodicidade. Mas Yahyáhaäs usa essa enfermidade a seu favor, já que sua perna mais curta lhe
permite correr na encosta das montanhas com a mesma velocidade de um indivíduo normal em
terreno plano. Ou seja, nas condições particulares dos lugares que ele freqüenta, são suas
vítimas, e não ele, os verdadeiros mancos. Porque ele se desloca com penas de comprimento
diferente num mundo em que tudo é declive, essas duas anomalias se neutralizam. E somente
para o dono das montanhas a caça satisfaz a exigência de uma periodicidade bem regrada. Ao
contrário, como mostramos, ela se apresenta arritmica aos caçadores humanos, que têm de se
extenuar nas encostas das montanhas, para as quais suas pernas não foram feitas, e contrariar o
curso ideal de sua existência, enfrentando os rigores do inverno, quando sua cultura tinha tudo
previsto para que eles pudessem se abrigar em casas confortáveis.
sobreviver". E, um pouco mais adiante: "Pelo meio do inverno, o chefe levou seus homens para uma grande
expedição de caça nos maciços montanhosos mais altos" (Miller:213, 271).
HN 73
*
* *
Acabamos de por em evidência uma espécie de jogo de espelhos cujo efeito faz com que
dois sistemas míticos consideravelmente afastados se reproduzam um ao outro, sem por isso
deixarem de sofrer deformações decorrentes da estrutura de cada uma das superfícies refletoras,
diferentes em cada caso. Por outro lado, cabe lembrar que foi a análise de um episódio
19
A aproximação entre os mitos dos dois hemisférios é, portanto, reforçada pelo fato de os índios da
região aqui considerada da América do Norte cultivarem o tabaco (ou as plantas que o substituem) em leitos
HN 74
específico de um mito yana (M546) que nos levou a fazer essa constatação. Ora, esse mito ao
mesmo tempo reproduz e transforma, de modo ainda mais sistemático, mitos que se encontram
bem próximos dele no espaço. Visto que o mito faz seus atores transitarem por todo o território
modoc e se aventurarem até as fronteiras setentrionais das terras klamath, é de supor que os
Yana possuíssem algum conhecimento de terras estrangeiras20. Na verdade, as referências ao lago
Klamath e ao lago da Cratera, que já mencionamos, são acompanhadas por indicações que
remetem tanto a sítios quanto a mitos que também podem ser localizados na mesma região.
Para mostrar isso, seremos obrigados a comparar minuciosamente vários mitos. Para
evitar que o leitor se perca ao ter de voltar atrás, começaremos resumindo em grandes linhas o
que será nossa interpretação. A primeira parte deste livro permitiu apresentar mitos cujo herói é
um desaninhador de pássaros. Na segunda parte, introduzimos o mito de Dona Mergulhão, que
transforma o primeiro de vários modos. Tais transformações equivalem, em vários aspectos, a
inversões: herói pisoteado em vez de erguido, origem de anti-adornos (colares de corações
humanos) tirados por uma mulher de seus irmãos no lugar de origem dos adornos (espinhos de
porco-espinho) presenteados por um homem a suas esposas, etc.
Portanto, no atual estágio, dispomos de duas séries míticas que se correspondem mas das
quais uma apresenta, por assim dizer, um poder rotatório direito e a outra, um poder rotatório
esquerdo. Levando adiante uma analogia que talvez seja considerada audaciosa, mostraremos
que a originalidade do mito yana está em uma forma que os químicos chamam de racêmica. Ele
consolida os dois tipos num corpo único e neutraliza a oposição entre eles. Mas veremos também
que ele não chega a isso apenas invertendo a ambos num eixo diferente daquele no qual se
situava a oposição primitiva. O fenômeno resulta do fato de que o mito yana, para poder juntá-
los e construir sua intriga, tem de remanejar pedaços de narrativa que toma emprestados
alternadamente das duas séries.
O mito começa descrevendo uma família composta de um pai, seus vários filhos e duas
filhas. Tal composição inverte duplamente a que é dada pelo mito klamath correspondente
(M538), uma mãe (# pai), seus vários filhos, sua filha e uma nora (esposa grávida/jovem
virgem)21. Já que os irmãos não ocupam posição marcada em nenhum dos casos, pode-se dizer
que a filha, futura Dona Mergulhão, constitui o termo invariante, pivô em torno do qual a
configuração familiar bascula entre um mito e outro.
de cinzas (cf. Sapir & Spier 2:269; Sapir 8:259; Goddard 4:37). Era essa a única forma de agricultura que
conheciam.
20
Não há porque duvidar que se possa legitimamente estender a todas as tribos da região a
observação de um antigo viajante que com elas conviveu numa época em que ainda tinham liberdade de
movimento: "Esses índios têm uma grande sede de conhecimento, principalmente no que diz respeito a
lugares e regiões. São grandes viajantes... Ensinam geografia uns aos outros traçando mapas na areia ou nas
cinzas com uma vareta... modelam a areia ou as cinzas em pequenos montículos ou em forma de espigões,
para representar os picos e as cadeias de montanhas" (Miller:240).
21
Os Modoc que vivem entre os Klamath, os Achomawi e os Shasta mencionam um pai e uma mãe
numa versão (M540).
HN 75
diferença de M541 e de outros mitos do grupo, o mito yana rompe a constelação familiar em
favor de um conjunto ao mesmo tempo mais restrito e mais vasto, a sociedade dos homens,
simbolizada pela casa comunal. Em primeiro lugar, a lista dos protagonistas inclui Coiote, que
não faz parte da família, e faz papel de comensal. Em segundo lugar, a versão Sapir de nosso
mito, na qual também aparecem estrangeiros (a própria Dona Mergulhão, além de vários
visitantes de fora), conta como a desconhecida tentou convencer as moças da aldeia a se
juntarem a ela para espiar os homens na casa comunal usada como sauna. Uma delas responde:
"Não, nós nunca olhamos dentro da casa quando os homens fazem sauna". Qualquer que fosse a
realidade etnográfica, o texto deixa bem claro que a sauna funciona aqui como uma casa dos
homens, e se opõe à casa de família em que transcorrem as demais versões. Mesmo se colocando
numa perspectiva estritamente etnográfica, Sapir e Spier (1:257) admitem a possibilidade de
algumas das casas cobertas de terra dos Yana terem sido reservadas para a utilização como sauna
"isto é, primeiramente, lugar de reunião dos homens e dormitório masculino". As saunas eram
verdadeiras casas dos homens entre os Shasta (Holt:306).
Na casa da família, o jovem herói, objeto dos desejos de sua irmã, é permanentemente
ocultado no fundo de um buraco especialmente preparado para isso. Na casa dos homens de
M546, circunstâncias temporárias fazem com que ele durma à parte. A reclusão apresenta,
portanto, características antitéticas: institucional num caso, ocasional no outro. E quando a filha
incestuosa sobe no teto da sauna onde o irmão descansa para alardear seu amor, opõe-se
claramente à irmã virtuosa de M541, que sobre o teto da casa da família, avistando seu
pretendente, consegue não revelar seus sentimentos.
A estrangeira de M547 apressa o anoitecer, como a heroína das versões setentrionais. Já a
irmã incestuosa de M546 parece ser menos impaciente, visto que, como trata de notar o mito, o
sol ainda ia alto no céu quando o irmão desejado lhe foi entregue e ela, ao contrário, aproveita a
circunstância para adiar a parada. Essa inversão parece ser exigida por uma intriga que coloca a
outra irmã em conivência com o sol; logo compreenderemos porque.
A união nunca é consumada. Ou o rapaz foge de uma aproximação incestuosa (M546) ou
então, na ausência desse motivo, quando a heroína é uma estrangeira (M547), teve-se o cuidado
de cobrir o pênis do herói com uma cúpula de glande para impedir o coito.
Homem em M547 e outros, a aranha vira mulher em M546, parente ainda por cima, irmã
do pai salvadora, invertendo a irmã do pai destruidora que é Dona Mergulhão em relação a seus
sobrinhos, em outras versões (M538, M539).
Segundo essas mesmas versões, os passageiros do cesto celeste formam uma família
biológica. Para os Yana, eles são a população de uma aldeia, tendo à frente Coiote, mero
comensal: "todos os que estavam na casa grande o seguiram" (Curtin 3:409). De acordo com M539,
um irmão comete o erro de olhar durante a ascensão. M546 e M547, ao contrário, atribuem o erro
HN 77
a Coiote, personagem que se tratou anteriormente de definir como hóspede de uma família da
aldeia, da qual não é membro; ele desempenha, portanto, a função semântica de não-irmão.
A irmã mais velha de M546 é a única que escapa do desastre, um privilégio que as versões
modoc (M540) — aqui também a meio caminho dos Yana, já que também põe em cena duas irmãs
de caráter oposto — reservam para a irmã caçula. Nessa versão, todos os habitantes da aldeia
escapam, transformando-se em pássaros, exceto a família, que permanece no solo, assim como a
irmã caçula, que consegue escapar da fogueira. A versão yana (M546) inverte rigorosamente essa
seqüência: apesar de subirem ao céu, todos os habitantes da aldeia morrem, exceto a irmã mais
velha, que chega ainda mais alto do que eles e já possui — já que se chama Águia — uma natureza
de pássaro.
Todas essas reviravoltas conservam valor operatório até em seus mínimos detalhes. A
incendiária de M546 pega os corações de suas vítimas com uma espécie de rede de borboletas,
cuja construção o mito descreve cuidadosamente. Essa rede que serve para a captura inverte o
remo que a protagonista homóloga de M539 utiliza, não para retirar os corações do fogo, mas
para os empurrar para dentro dele. Ambos os instrumentos apresentam claramente uma relação
de correlação com outros. Primeiro, com a borduna grossa que Dona Mergulhão utiliza na outra
versão yana (M547), para empurrar para o fogo os olhos, em vez dos corações de suas vítimas. E
também com o malhete ou bengala que o demiurgo utiliza em M531 e M538, para lançar o bebê
da heroína fora da fogueira (cf. Barker 1:36, n. 26). Esta última ligação é confirmada quando
M538 conta o nascimento e as aventuras de um menino, vítima do pai incestuoso, e M546 —
divergindo nesse ponto de todas as outras versões do mito de Dona Mergulhão (mas começamos a
entender porque) — desdobra o personagem do sobrevivente em irmão mais velho e pai, ambos
vítimas de uma filha incestuosa. Os corações desses dois sobreviventes são projetados para bem
alto pelo fogo, e um cai numa ilha fluvial perto do lago Klamath, o outro ao pé do monte Shasta;
em relação às demais versões, tem-se portanto uma dupla oposição, ilha/montanha e sopé da
montanha/cume.
Chegamos aqui a uma transformação essencial. Por que M546 afirma que os corações, no
momento em que caem, reconstituem o corpo todo de seus possuidores? A continuação explica. É
para permitir que os corpos fiquem depois enterrados, um até o pescoço, e o outro até o rosto.
Ou seja, uma situação que, em dois eixos, ao mesmo tempo reproduz e inverte a história do
desaninhador de pássaros. Pois o pai e o filho, opostos como perseguidor e perseguido naquela
história, aqui comparecem juntos na posição de perseguidos. E se, naquele caso, um deles é
elevado pelo outro até o topo de uma árvore ou de um rochedo, agora ambos estão enterrados no
solo, projetados ambos para baixo, em vez de o filho, sozinho, ser levantado para cima.
Confirma-se, assim, tal como havíamos anunciado, que o mito de Dona Mergulhão inverte o do
desaninhador de pássaros. Aliás, o herói da versão yana M546 se chama Lince, como seu homólogo
modoc de M540. Seria imprudente invocar esse aspecto do mito, já que a outra versão yana
HN 78
(M547) se chama Águia. Contudo, mesmo que se trate de mera coincidência, não podemos deixar
de lembrar que o herói klamath desce da árvore na qual estava preso num cesto forrado com uma
pele de lince, símbolo de luxo para os índios (supra:29; Sapir 3:36, n. 55), e que os
desaninhadores sul-americanos possuem nomes análogos, ou que têm a mesma conotação. O dos
Kayapó-Gorotire se chama Botoque, nome de um adorno, e entre os Bororo, o nome do herói
Gueriguiguiatugo é analisável em duas palavras, sendo que a segunda, que significa "o pintado",
designa uma perifrase do jaguar, qualificado portanto de um ponto de vista estético (cf. CC:84,
168 n.1), e cuja pele é um bem muito precioso.
Se o personagem do desaninhador é simétrico ao do herói enterrado, parece normal que
seu salvador, de natureza terrestre (jaguar) ou celeste (urubu) na América do Sul, segundo se
considerem as versões retas ou invertidas — e, pela mesma razão, celeste (irmãs-borboleta) ou
terrestre (ave das neves) na América do Norte — adquira a natureza celeste ainda mais
pronunciada da águia, quando a posição da vítima, simétrica oposta à sua, é invertida de cima
para baixo.
Vejamos agora o episódio dos irmãos Tsanunewa. Vimos que, segundo Curtin, essa palavra
designa pássaros pescadores, e portanto carnívoros como a águia, mas numa escala muito mais
modesta, caso se trate do maçarico kildir, como sugere uma outra fonte (supra:82). Faremos
duas observações a esse respeito. Em primeiro lugar, a versão Sapir (M547), que ignora a heroína
salvadora e transfere o nome de Águia para o herói perseguido, também confia o papel de
vingadores a dois pássaros aquáticos, o mergulhão (diver), "pequeno pato que vive na água
lamacenta", e a garça. Ambos enfrentam juntos Dona Mergulhão mas, na verdade, a garça deixa
tudo na mão do companheiro. De modo que a oposição mais fortemente marcada aqui é aquela
entre um pássaro mergulhador — certamente um P. auritus — e o mergulhão. Voltaremos a isso
na terceira parte (II)*.
Em segundo lugar, os irmãos Tsanunewa substituem o par dioscurico que, nas outras
versões do mito, se encarrega, como eles, de executar o criminoso; são também irmãos em M539,
e informados por "um pato de pescoço branco", ao passo que aqui é uma mulher chamada Águia
que os informa22. Depois disso, eles atravessam o corpo de Dona Mergulhão com flechas e trazem
seu cadáver inteiro, em contraste flagrante com outros mitos do grupo, em que os dióscuros a
decapitam com uma faca e trazem apenas a cabeça cortada.
Tal divergência não é menos motivada do que as demais. Com efeito, os dióscuros da
versão klamath e modoc se apresentam como uma espécie de especialistas do desdobramento,.
*
Os dois pássaros aqui nomeados, grèbe e plongeon no original, são os mesmos que protagonizam
mitos analisados em A origem dos modos à mesa, a que a tradução optou, ali, por referir-se pelos nomes
científicos, respectivamente P. auritus e P. podiceps, por não existirem em português nomes correntes que
os diferenciem (ambos são "mergulhões") [N.T.]
22
Mas se a palavra /tsanunewa/ designa o kildir, como em língua achomawi, cumpre notar uma
torsão suplementar em relação a M538, na qual é esse pássaro barulhento ele mesmo que faz o papel de
informante.
HN 79
Unidos no ventre da mãe pela gemelaridade, eles se separam no momento em que a avó os tira
de lá, mas ela os cola novamente logo em seguida, para formar um ser único que, mais tarde,
conseguirá se separar. Quando eles decapitam a tia, parente próxima, também dilaceram o cerne
de sua própria intimidade, por assim dizer, manifestando mais uma vez sua natureza paradoxal,
que ainda não é o momento de investigarmos. Por ora, notaremos apenas que essa natureza
difere em todos os sentidos da dos irmãos Tsanunewa: parentes próximos dos demais
protagonistas, em vez de completamente estrangeiros, gêmeos em vez de irmãos de idades
diferentes, nascidos no decorrer do mito e progressivamente educados, ao passo que os irmãos
Tsanunewa, assim que entram em cena, já são capazes de caçar e até de casar (já que Águia se
propõe a desposá-los). As versões klamath e modoc situam os dióscuros, portanto, no interior, e a
versão yana se coloca numa perspectiva exterior, para descrevê-los. Suplementares num caso
(pois provêm de um corpo desdobrado), os dióscuros se tornam complementares no outro, como
indicam as preferências respectivas dos irmãos Tsanunewa por ossos vermelhos ou verdes, e suas
escolhas de duas partes diferentes do corpo de sua vítima para atingir com suas flechas.
Se de fato, como postulamos, o herói enterrado corresponde simetricamente ao
desaninhador elevado, segue-se que as irmãs que salvam o irmão mais velho correspondem
simetricamente às irmãs-borboleta que, nas versões retas (M530, 531, 538), desempenham a
mesma função em relação ao prisioneiro no alto da árvore. A palavra /jamuka/ (Sapir & Swadesh:
/zaamuk&u/) designa em yana o verme de glande. É portanto possível que a transformação mítica
tenha retomado a seu modo uma metamorfose real, pois também na natureza as lagartas se
transformam em borboletas. Tanto as irmãs larvares de M546 quanto as que já atingiram o
estágio adulto de M530, 531 e 538 livram o herói de sua prisão terrestre ou celeste, cuidam dele
e o curam; e ele sempre se casa com elas.
Por outro lado, os dois velhos de M546, que tem nomes de lagartas, formam claramente
um par de opostos: respectivamente pai e sogro do herói, um tira dele as esposas que o outro lhe
havia dado. Ora, eles personificam duas espécies de larvas de hábitos diametralmente opostos:
uma delas se alimenta, à diferença dos homens, de /folhas/venenosas/ e a outra, como os
homens, de /grãos/comestíveis/.
De modo ainda mais claro do que a versão modoc M543, que como sempre ocupa uma
posição intermediária, no sentido de conjugar os dois motivos, a versão yana M546 inverte o
episódio dos porcos-espinho por meio do dos cervídeos, com que o substitui. Pois aqui o caçador
não é vítima de sua caça; muito pelo contrário, ele a atrai com isca da água saborosa que destila,
e os animais, seduzidos, se oferecem a ele. Um herói umidificado, fonte de guloseima para
animais cheios de carne, se opõe assim a um herói coberto de cinzas (supra:45), importunado por
bichos portadores de adornos. Ao mesmo tempo, M546 revela sua função etiológica: relata a
origem de fontes salgadas, isto é, de uma água terrestre duplamente benfazeja, já que dá origem
HN 80
a terras salíferas e, por ser naturalmente atraente para a caça de porte (ao passo que os espinhos
de porco-espinho são culturalmente atraentes para os humanos), facilita a sua caça.
Uma vez recuperado, o desaninhador das versões klamath e modoc recupera as esposas
que lhe tinham sido tomadas pelo pai. Aqui, a irmã do herói enterrado o encontra na companhia
de mulheres encorajadas pelo pai a casar-se com ele. É como se a narrativa, ao aproximar-se de
seu final, condensasse seus motivos, como o stretto de uma fuga; entre um grupo de mitos e o
outro, as passagens alternadas se tornam mais rápidas e mais breves. Pois logo depois dessa
alusão invertida ao mito do desaninhador, volta-se, também de forma invertida, para o de Dona
Mergulhão, e em vez de (M540) uma irmã caçula ressuscitar seus familiares depois de maldizer
sua irmã e transformá-la em pássaro, uma irmã mais velha (M546) reproduz o primeiro milagre,
mas beneficia com ele a própria irmã, que redime moralmente e devolve fisicamente à vida. E
finalmente, em acordes refinados, o episódio terminal conjuga o tema e a resposta da
composição em fuga. No lugar de um herói que derrota definitivamente o pai e recupera as
esposas que este lhe tinha roubado, vemos um pai que derrota definitivamente o filho e faz dele,
que era inicialmente um rapaz temporariamente isolado, um filho escondido para sempre; e
ainda lhe tira as mulheres, não para si mesmo, mas para os irmãos mais velhos, que ficam com
elas. O mito conclui, portanto, como o do desaninhador, mas invertendo o conteúdo da narrativa.
E essa narrativa invertida reproduz um episódio do mito de Dona Mergulhão, mas que neste
último aparece no início, e não no fim. Em relação aos mitos que reutiliza, a versão yana opera,
conseqüentemente, uma dupla reviravolta: afetando o conteúdo das duas intrigas e também a
ordem de sucessão de uma das narrativas. Há que se curvar à evidência: ao concluir com a
transformação do herói em filho escondido, a versão yana do mito de Dona Mergulhão, que no
entanto conta a mesma história, remonta o curso dos acontecimentos e termina exatamente onde
as versões modoc começavam.
Se de fato o mito yana reflete as versões mais setentrionais, como dizíamos no início, não
o faz, conseqüentemente, como um simples espelho, mas como vários deles, cujas propriedades
refletoras geram tipos diferentes de simetria. Opostos pela língua e pelos interesses, dos dois
lados de uma fronteira comum, os Klamath-Modoc e os grupos de língua hokan, a que pertencem
os Yana, consideravam-se mutuamente como ferrenhos inimigos. Porém, era-lhes possível
encontrar num determinado uso da simetria um meio para superar a antinomia que resultava de
sua proximidade geográfica e de sua rivalidade política e econômica. Iluminamos alhures (Lévi-
Strauss 19) esse papel funcional da simetria, modelando os ritos e mitos e povos vizinhos até
apresentarem imagens invertidas uns dos outros, a relação mais apropriada para conciliar as
semelhanças herdadas da geografia ou da história, das quais não é possível livrar-se facilmente, e
as diferenças que cada povo cultiva para realçar sua originalidade.
No caso dos mitos que acabamos de discutir, essa situação normal se complica, devido a
uma situação menos normal. Pois esses mitos não fazem apenas transformar a mesma história em
HN 81
vários eixos. Eles a situam num território único, cuja realidade objetiva os impede de desnaturar,
a não ser — mas sem jamais empregar esse procedimento de forma sistemática — deslocando de
alguns quilômetros no mapa uma configuração topográfica simples, que eles aplicam a uma outra
semelhante e que pode, por isso, desempenhar o mesmo papel. Mas determinados sítios — como
o lago da Cratera, o lago Klamath superior e o monte Shasta — parecem estar tão profundamente
gravados na imaginação das diversas tribos que, ainda que não façam parte de seu território, elas
não podem mudar-lhes a identidade.
Para superar esse novo tipo de dificuldade, é preciso que o pensamento mítico se valha
de um gênero suplementar de simetria. E agora comprrendemos que o tipo de simetria que
percebemos nos mitos corresponde exatamente às perspectivas invertidas nas quais um mesmo
território se apresenta a observadores colocados face a face nas duas extremidades. É essa,
efetivamente, a situação dos Klamath e dos Yana: uns olham para o sul, a partir do lago Klamath
superior, na direção do monte Shasta, e os outros, para o norte, a partir dos montes Lassen e
Shasta, na direção dos lagos Klamath e da Cratera. Com isso, suas visões respectivas de mitos
estreitamente associados a esse território compartilhado se invertem, e o que é começo para uns
torna-se fim para os outros.
Em escala reduzida, já percebemos um esboço do mesmo fenômeno nos mitos modoc.
Pois devido ao fato de a primeira parte de M539 se inverter em M541, conservando contudo o
mesmo lugar (refiro-me à história da virgem ajuizada em lugar da mulher desmiolada), a
seqüência iniciática comum a ambos os mitos se desloca perceptivelmente: precede a história do
desaninhador de pássaros que forma a segunda parte de M541, e termina a dos irmãos celestes
que a substitui em M539. Mas é quando se comparam mitos provenientes de povos distintos que
essas transformações adquirem plena dimensão. Fenômeno generalizado no conjunto de grupos
que os compartilham, o mito de Dona Mergulhão e o do desaninhador de pássaros refletem um ao
outro. E se ocorre, como entre os Yana, de se consolidarem num único corpo mítico de forma
racêmica, neutralizando, portanto, sua oposição, é o próprio corpo mítico resultante que tem de
refletir um outro, ainda que virtual, do qual apresenta uma imagem enantiomorfa, como o são as
imagens que, de cada lado de uma fronteira, o mesmo espaço gera para povos que o percebem a
partir de perspectivas opostas.
*
* *
Para delinear mais claramente nossa argumentação, escolhemos opor as versões klamath-
modoc às yana, que provêm de tribos situadas decididamente ao norte e ao sul da área de difusão
do mito de Dona Mergulhão. Ao fazermos isso, deixamos de lado versões intermediárias e
marginais, que agora cabe analisar.
Os Atsugewi e Achomawi, de língua hokan como os Yana, viviam entre eles e os Modoc, na
bacia do rio Pit, o "rio das fossas", assim chamado devido às numerosas armadilhas cavadas no
HN 82
solo para capturar cervídeos, e talvez também para interditar as pistas que levavam às aldeias
(Miller:373; Garth 2:132). A oeste, o território dos Achomawi confinava com o dos Shasta,
também de língua hokan, com quem eles mantinham relações ambígüas (Miller:33; Kniffen:301).
Os Atsugewi ocupavam, ao sul, os vales de vários afluentes do rio Pit; seus vizinhos meridionais
eram os Yana e os Maidu da montanha, estes membros da família lingüística penutiano (figs. 7 e
9). São esses os cinco grupos cujos mitos passaremos em revista, começando por uma versão
atsugewi que servirá de referência, devido à sua riqueza, e também em razão da posição
geográfica dos Atsugewi, no centro da zona intermediária que agora examinamos.
Várias versões achomawi são conhecidas, que contrastam entre si e com a versão
atsugewi. Segundo uma delas (M551; Dixon 4:165-167), Dona Mergulhão conseguiu que lhe
entregassem Lince, "que ninguém jamais tinha visto ou tocado, pois ele era mantido escondido
como um tesouro, num saco suspenso dentro da casa". Ambos partiram em direção ao oeste e
acamparam juntos, mas o adolescente fugiu na alvorada e voltou para o seu esconderijo.
Nesse caso, é gritando e rolando no chão que Dona Mergulhão provoca o incêndio; ao
mesmo tempo, as gargantas e cânions aparecem. Os moradores da aldeia se apavoram, um deles,
chamado Casulo, oa anima, e os irmãos Camundongos tecem um cabo de fibra vegetal e o
23
A pintura azul provinha de uma rocha que era extraída em território achomawi (Garth 2:147). Os
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prendem na abóbada celeste com o auxílio de uma flecha certeira. Todos sobem por ele, mas
Coiote, pai de Mergulhão, olha para trás para ver a filha pela última vez. O cabo se rompe e
todos caem na fogueira. Mergulhão pega seus corações com uma rede, guarda a maior parte deles
para fazer um colar, e dá os restantes a Raposa-Cinzenta (o demiurgo achomawi; cf. Kroeber
1:315; Garth 2:195).
Depois disso, Mergulhão começa a andar pelo mundo, enquanto sua irmã Águia, que
continua à procura dela para recuperar os corações, molda a terra e fabrica montanhas. Águia
consegue finalmente realizar seu intento, reconstrói a casa comunal e mergulha os corações no
rio mais próximo. As vítimas de Mergulhão ressuscitam ao amanhecer. Então, Raposa-Cinzenta
lhes dá nomes e manda que se espalhem pelo mundo, atribuindo a cada um seu habitat, seu grito
e suas cores. E eles foram embora, em todas as direções.
Uma versão registrada por Curtis (vol. 13:209-210; M552) se apresenta como episódio
final do mito da criação do mundo. Depois de os dois demiurgos, Qan (Raposa) e Jemul (Coiote)
terem criado a terra e os humanos, instituíram a guerra para limitar o crescimento demográfico,
e a morte natural, para tornar o controle mais eficaz. Conseqüentemente, fizeram com que seus
dois filhos não pudessem ressuscitar. Furioso com essa conseqüência, pela qual culpava Jemul,
Qan tentou matá-lo. Os demiurgos acabaram se reconciliando e um criou a rede hidrográfica,
enquanto o outro criava todos os peixes.
Foi nessa época que a filha de Jemul se apaixonou pelo primo, chamado "Combatente",
filho do velho chefe Apona (cf. Angulo 2:125, /a-pónáhá/, "casulo"). Ela o levou para oeste mas,
ao cair da noite, ele escapou e foi se esconder na sauna. A moça retornou à aldeia, insistiu para
que o rapaz lhe fosse entregue e lançou chamas sobre a construção. Qan disse: "Bem, vamos
deixar tudo queimar e subir para o céu". Obedecendo a uma ordem sua, Yuininu (Camundongo)
atirou uma palhinha na abóbada celeste, que se fixou, se alongou e virou uma escada. Qan e
Jemul subiram por ela e desapareceram para sempre.
Uma outra versão (M553; Angulo & Freeland 2:126-132) começa opondo as duas filhas de
Coiote, chamadas Águia e Mergulhão. A primeira é ajuizada e trabalhadora; a segunda é
despudorada, não toma nem as precauções costumeiras quando está menstruada, e causa azar
para os caçadores. "A mãe dela fazia a mesma coisa", lembra o outro chefe da aldeia, chamado
Casulo, pai de um rapaz escondido, que ele mantém enrolado numa coberta no fundo da casa
comunal. Lá viviam também seus outros filhos, Lobo, Doninha, Marta e Lince. As duas filhas de
Coiote dormiam numa casa isolada e vinham, pela manhã, para cozinhar para os caçadores.
Como em M550, a história prossegue com as investidas incestuosas de Lince. Embora este,
aqui, não seja irmão, mas sim primo, Mergulhão manifesta a mesma cólera, e ataca a casa
comunal lançando raios pela abertura para a fumaça; ou seja, à diferença de M550, ela produz
um fogo de origem celeste. E quando lhe oferecem Lince como marido, ela recusa, pois o estupro
Chilula chamavam de "pedras azuis" as que eram aquecidas para fazer ferver a água.
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de que foi vítima lhe causa um choque psicológico e faz com que ela perceba os profundos
sentimentos que nutre por Broca-de-Madeira, o filho escondido do velho chefe Casulo. Passa a
exigir que ele lhe seja entregue. Concordam, mas com medo de que ele, com seu pênis
minúsculo, não consiga satisfazê-la, e ela volte a atacar. Então dão a Broca-de-Madeira um pênis
enorme, que dificulta seus movimentos. Coiote, temendo que o membro enorme machuque sua
filha, arranca-o em segredo e joga-o no fogo. Mergulhão vai embora, seguida pelo tímido amante;
diz que vai cair uma tempestade, para que eles tenham de acampar, e prepara uma cama
confortável, na qual Broca-de-Terra se deita de bruços, resistindo passivamente às investidas da
mulher, que fica tentando virá-lo. Quando ela adormece, exausta, Broca-de-Madeira se levanta,
procura um tronco caído com um galho saliente e o utiliza para dar à parceira a ilusão de ter sido
satisfeita. Depois foge, e chega na aldeia sem ar, incapaz de dar explicações.
Os moradores da aldeia ficam apavorados com a aproximação de um incêndio iniciado por
Dona Mergulhão, enfurecida por ter sido enganada. Os irmãos Aranha colaboram para tecer uma
longa corda. Lagarto-Grande, também chamado O-que-perdeu-seus-filhos, amarra-a numa flecha
e consegue fincá-la na abóbada celeste. Águia é a primeira a subir, seguida pelo velho chefe
Casulo, Broca-de-Madeira e os outros irmãos, Lagarto e, finalmente, Coiote. Mergulhão, filha do
último, o vê e o chama. Ele olha para baixo, a corda arrebenta e todos caem no fogo que queima
a aldeia, exceto Águia, Casulo, Broca-de-Madeira e um irmão, que já tinham conseguido chegar
ao céu.
Mergulhão recolhe os corações num cesto. Separou o de seu pai e constatou que faltavam
quatro corações, além do de Lagarto, que tinha sido o último a cair, perfurara o cesto e acabara
no cume do monte Shasta. Certa de que Lagarto acabaria com ela, anunciou ao pai que ambos
passariam a viver na forma dos animais cujos nomes tinham. Ela iria morar nos quatro lagos Tule,
Honey, Goose e Superior (cf. mapa, fig. 7). Reconheceria o pai pelo grito, e responderia com o
seu.
Não longe de lá viviam Gaio-Azul e sua mulher, Tsanunewa, nome que designa o maçarico
kildir ou outra ave dos pântanos (Angulo & Feeland 2:126; supra:42, 82). Preocupado com seu
azar na caça, Gaio-Azul desconfia da presença de Mergulhão, cuja mãe já havia causado os
mesmos problemas. Guiado por um canto de incrível beleza, que parece vir do monte Shasta, ele
acha o coração de Lagarto semi-enterrado no chão, desenterra-o e o entrega à esposa. Ela coloca
o coração num cesto impermeável cheio de água morna, onde o coração ressuscita, na forma de
um bebê. A criança cresce depressa e se torna um menino com a testa protuberante. A mãe
adotiva lhe diz para sempre atirar as flechas na vertical. Certo dia, uma delas cai nele e descola
a protuberância frontal, que se transforma em outra criança.
Os parentes de Dona Kildir, que vivem à beira do lago, informam o jovem herói da
presença de Mergulhão. Mas essa versão do mito menciona duas mulheres com esse nome, uma
que vive na água e usa um colar de corações, e sua mãe, que mora numa casa no meio dos
HN 86
juncos. Gaio-Azul manda os dois meninos irem até a casa desta última, e pedirem emprestada a
canoa dela, contra a promessa de dividir com ela o produto de sua pesca. Eles vêem a jovem
Dona Mergulhão entrar na casa da mãe, que penteia seus longos cabelos, e admiram sua beleza.
No dia seguinte, o mais novo dos meninos a mata com uma flechada e esconde o cadáver na
canoa, debaixo de um monte de patos que também tinha matado. Quando a velha encontra o
corpo da filha, persegue o assassino lançando raios, que incendeiam o mato. Mas Gaio-Azul apaga
o fogo com uma ventania e o mais velho dos meninos, Lagarto-que-perdeu-os-filhos, executa a
feiticeira. Assim, as duas Dona Mergulhão morrem.
*
* *
Há tanto a dizer acerca desses mitos que avançaremos por partes. Comecemos por
algumas observações quanto aos personagens. Já conhecemos Águia, sua irmã Mergulhão e seu
irmão ou primo Lince, bem como Coiote, que continua no papel de enganador mas, em vez de ser
apenas um comensal, como na versão yana, é pai das duas protagonistas, além de parente e
colega do dono da casa comunal, o velho chefe Casulo.
Esse nome designa a lagarta de uma grande borboleta com asas bem coloridas (Attacus?
cf. p. 113), que tece seu casulo nos arbustos. Os índios da Califórnia recolhiam os casulos para
fazer objetos rituais e talvez os Yana (Sapir & Spier 1:259) também utilizassem os da lagarta que
dá nome ao pai do herói em seus mitos. Vimos que essa lagarta se alimenta das folhas venenosas
de Rhus diversiloba; em certos grupos, pelo menos, as vagens dessa planta podiam substituir os
casulos (Goldschmidt:426).
O personagem chamado Casulo no mito é um velho sábio e pacífico. Seu filho é Broca-de-
Madeira, larva grande que vive sob a casca das coníferas, principalmente do pinheiro de açúcar
(Pinus lambertiana), de cuja resina se alimenta. Talvez devêssemos aproximar seu nome corrente
/ámòq/ (Angulo & Freeland 2:125) do de um outro personagem larvar na versão yana, Jamuka.
De Lagarto-Grande não se sabe grande coisa, a não ser que ele aparece freqüentemente
como personagem rude e briguento, supostamente devido ao fato de estar em luto pelos filhos24.
O maçarico kildir /tsanunewa/ passa do papel dos irmãos que levam seu nome na versão yana
para o de mãe adotiva de um menino que se desdobra, como o das versões klamath-modoc, mas
cuja conexidade com os irmãos Tsanunewa de M546 resulta de esses gêmeos exigirem, como os
outros, pontas de flechas de ossos de cervídeos, de cores diferentes num caso, colhidas em
épocas diferentes do ano no outro.
Borboleta, em M550, ao mesmo tempo passa a ser macho e a fazer parte das vítimas de
Dona Mergulhão, e cede seu papel de animal prestativo (cf. M530, 531, 538, 560) às irmãs Contas.
Trata-se, certamente, das contas de conchas marinhas que serviam de adorno e de moeda, e que
as tribos do rio Pit obtinham das populações costeiras em troca de peles. Tal comércio era,
HN 87
portanto, realizado num eixo leste-oeste; as peles desciam o rio, e as contas subiam (Kroeber
1:309-311; Garth 2:147). Essa é uma indicação importante, pois M550 indica como domicílio das
irmãs Contas as proximidades do monte Shasta, a noroeste do território atsugewi, portanto, e
uma versão achomawi (M551) inverte o sentido da viagem incestuosa em relação às versões
klamath-modoc e yana, ao afirmar que Dona Mergulhão e Lince partiram em direção ao poente
(supra:105). Conseqüentemente, o herói portador de pele parte do leste, e as irmãs Contas
provêm do oeste, em conformidade com o sentido das trocas econômicas, ao passo que Dona
Mergulhão, criadora dos anti-adornos na forma do colar de corações, viaja no sentido oposto ao
dos verdadeiros adornos.
Tais observações levam a considerar o aspecto geográfico dos mitos. A ação de M550 se
situa entre Pitville, ao sul, no curso superior do rio Pit, o monte Shasta a oeste, uma localidade
indeterminada bem afastada, a leste (onde cai o coração de Borboleta) e Butte Creek e seu lago,
difícil de identificar, já que existem vários cursos d'água com esse nome; mas se trata de um
limite setentrional, que poderia portanto corresponder a um lago e a um rio, Butte Lake and
Creek, situados nos confins das terras modoc (cf. Kroeber 1:318; Ray 3:208; mapa, fig. 7).
Se assim for, seríamos levados a admitir que, como observamos para a maioria das
versões, a dos Atsugewi transcorre quase que inteiramente fora do território tribal. De onde o
aparente paradoxo de nas versões yana Dona Mergulhão vir de Hat Creek (ou para lá se dirigir),
em terras atsugewi, ao passo que os próprios Atsugewi transportam o palco da ação mais para o
norte, como que para mantê-la em terra estrangeira. Mas M553 cobre um território ainda mais
vasto, pois vai do monte Shasta, a noroeste, até Honey Lake, que marcava, a sudeste, o limite
entre os Achomawi, de um lado, e os Maidu, Paiute e Washo, do outro (Krober 1:391; Heizer 2,
mapas); esse território compreende também o lago Tule, em terra modoc, Goose Lake, em seu
limite oriental, e o lago Superior, ainda mais a leste (supra:106).
Tal como observamos a respeito da versão yana (M546), esse sincretismo geográfico se
efetiva em fenômenos de desdobramento que afetam o conteúdo dos mitos. Comparadas às
versões klamath e modoc, os mitos achomawi e atsugewi se apresentam como formas dilóides,
que desdobram todas as funções25. Isso aparece em graus diversos nas quatro versões, mas é
certamente M553 que aplica o procedimento de modo mais sistemático. Nele, estão presentes
dois pais, Casulo e Coiote, de caráteres opostos; dois irmãos incestuosos, Lince e Broca-de-
Madeira, um ativo, o outro passivo — a resina "come" um do sentido figurado, pois os pelos de seu
casaco de pele ficam colados nela, e o outro se alimenta dela no sentido próprio; dois modos de
prevenção do incesto, que são um pênis grande demais ou minúsculo; e também dois modos de
escapar da investida incestuosa, por impotência do parceiro, ou porque ele coloca em seu lugar
uma árvore mais aparelhada para cumprir sua tarefa (contrariamente ao pedaço de madeira
24
Acerca dos nomes de luto, ver Garth 2.
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inerte de que falam as outras versões). Para tentar escapar da incendiária, é necessária a
colaboração de dois atores, Lagarto que atira a flecha, e Aranha, cujo personagem se desdobra,
ele também, em dois outros, aranha pequena e aranha grande, que têm de conjugar seus
esforços para tecer uma corda suficientemente longa. Se considerarmos que Mergulhão poupa o
coração do pai, que quatro lhe escapam, e depois mais um, no total são seis corações que faltam
em seu colar (isto é, três vezes mais do que na versão yana, que já dobrava outras). Opõem-se a
esse anti-adorno incompleto, na função adversa, duas irmãs Contas que incarnam os verdadeiros
adornos. Mergulhão decide morar em quatro lagos diferentes. Para cumprir sua missão de
justiceiro, Lagarto deve primeiro se transformar em par dioscurico, cuja vítima também se
desdobra, já que em M553 há uma velha e uma jovem Dona Mergulhão. Ainda que sumária, a
outra versão achomawi (M551) contém pelo menos duas indicações no mesmo sentido. Ela
acentua o contraste entre as irmãs e, ao atribuir a uma delas a formação dos câniones e vales
profundos, e à outra, a das montanhas, analisa o relevo em dois aspectos, negativo e positivo.
M552, por sua vez, enfatiza a dualidade dos demiurgos.
É notável que M553, que estende o palco da ação até o limite das terras klamath, seja
também o mito que melhor preserva vários aspectos de M538, que é um mito originário daquela
região. Tanto quanto o menino desdobrado (mas de testa protuberante, em vez de ter duas
cabeças) e o desdobramento de Dona Mergulhão em mãe e filha, que havíamos inferido a partir
da versão klamath, mas que o mito achomawi ilustra de modo muito mais direto. Num certo
sentido, portanto, o mito klamath continha o princípio de vários dos desdobramentos que
acabamos de descrever, mas interpretava-os diacronicamente: o menino se desdobra porque foi
inicialmente formado por dois indivíduos colados, e a mãe reproduz a filha porque vai
progressivamente se conscientizando de seu apego sentimental por ela. O mito achomawi, ao
contrário, dispõe, por assim dizer, todos os pares no momento presente. Ou, caso recorra a uma
justificativa histórica (quando explica o comportamento atual da filha pelo passado da mãe,
supra:105, 107), inverte o sentido do procedimento correspondente do mito klamath: aqui, o
comportamento da filha é a causa final do da mãe, lá, o comportamento da mãe é a causa
eficiente do da filha.
Mais impressionante ainda é a oposição entre os modos de proceder das versões yana
(M546) e achomawi (M553) para gerar formas diferentes de simetria. Vimos que a versão yana
consegue consolidar duas histórias em uma, mas com duas condições, a de inverter o conteúdo de
uma e integrar-lhe a outra invertendo a ordem de sucessão da narrativa. A simetria interna dessa
versão está, portanto, parcialmente situada na ordem diacrônica. Mas se a transpusermos em
termos sincrônicos, será preciso concebê-la dedobrada num eixo vertical, no qual, de cada lado
do plano de simetria, duas séries de imagens se sucedem, reconstituindo um mito único,
25
Procedimento que valeria a pena estudar, ainda mais tendo em vista que outros exemplos dele se
verificam na Califórnia (cf. Angulo & Feeland 3:252).
HN 89
comparável ao conjunto formado por um indivíduo de carne e osso e sua imagem refletida num
espelho que estivesse ligeiramente inclinado acima dele. A cabeça seria tangente a seu próprio
relfexo, e as outras partes do corpo se repetiriam, de um lado e do outro, na mesma ordem, com
os pés nas duas extremidades. Mostramos (supra:101) que esse tipo de simetria também
corresponde ao modo como se ajustariam, pelas pontas, as imagens que observadores postados
em lados opostos teriam de uma mesma paisagem. Era essa, com efeito, a situação dos Klamath e
dos Yana, nas duas pontas de um território reivindicado igualmente pelos mitos, de onde quer
que venham. Porém, parte desse território parece gozar de um estatuto privilegiado, a que
corresponde às terras klamath, cujas características as demais tribos transpõem nos termos de
suas topografias locais, sem por isso deixarem de se referir aos sítios originais. A simetria do mito
yana reflete essa atitude ambígüa: tudo ali se passa como se os Yana deixassem transparecer, no
plano da organização formal da narrativa, sua pretensão de olhar o território klamath de duas
perspectivas simultâneas, uma real, orientada do sul para o norte, e a outra, imaginária — pois
que implicaria que eles fossem Klamath — orientada do norte para o sul. Ao final das contas, se a
simetria interna da versão yana diz respeito primeiramente ao eixo das sucessões, mais do que ao
das simultaneidades, é porque eles vivem nas bordas, ou até mesmo no exterior, da terra
escolhida pelo mito mas, para incorporá-lo ao seu patrimônio, tinham de fazer como se vivessem
dentro dela.
Comparada a essa posição excêntrica, a dos Atsugewi e Achomawi se mostra
intermediária, já que se situam no centro da área de difusão, e não em seu contorno. Assim, em
vez de terem de percorrer uma série num sentido e depois, refazer no sentido inverso o mesmo
trajeto — o que corresponde, como vimos, à construção particular da versão yana —, eles têm de
resolver um outro problema, colocado pela ocorrência de um mito, que também é deles, ao
mesmo tempo em seu lado norte e em seu lado sul. Para darem conta dessa dualidade, eles
recorrem a um procedimento inverso ao dos Yana: desdobram sistematicamente todos os termos,
a cada etapa da narrativa, numa série de operações que sempre forma pares, em lugar de duas
séries consecutivas de operações unitárias. A figura 10 apresenta uma ilustração gráfica dessas
construções diferentes. O que elas fazem, afinal, é traduzir o fato, atestado pela situação
geográfica das duas tribos, de que uma está fora, e olha para dentro, enquanto a outra, que está
dentro, olha para fora.
Yana Achomawi
$ ordem de sucessão da narrativa
nuca
lados da cabeça para trás
fronde
lados da cabeça para a frente
testa
orelha furada supercílio orelha furada
rosto
queixo
ombro
peito
gravata
Fig. 11 — Esquema de estilização de uma cumeeira clássica, Nova Caledônia. (Desenho baseado
em Guiart:15) [p. 112]
A perspectiva neo-caledoniana corresponde, com efeito, à que seria obtida por uma
inspeção à distância, ou um sobrevôo, e a da costa noroeste implica que o modelo, concebido
como se tivesse sido cortado ao meio, se abre em duas metades que, pelo menos no caso das
máscaras articuladas, são viradas para trás e se revelam ao espectador, portanto, por dentro.
HN 91
Diante disso, cabe examinar o que se passa, não mais ao norte, ao sul ou no centro da
área de difusão do mito de Dona Mergulhão, mas no eixo transversal, isto é, de leste a oeste.
A sudeste, os Maidu da montanha eram os vizinhos dos Achomawi e dos Yana. Sua versão
do mito situa a ação "longe, para o norte". De modo que, implicitamente, esses índios se referem
ao mesmo território privilegiado que as outras tribos; em termos de geografia, eles fazem a
mesma coisa que os Wintu que, no extremo sudoeste da área de difusão do mito, reconhecem-lhe
as afinidades setentrionais, conservando os nomes shasta dos protagonistas (supra:54).
filhas. Atraídas por um canto maravilhoso que vinha não se sabia de onde,
elas certo dia descobriram os corações, enfiados numa terra salgada por
suas lágrimas, que os cervídeos vinham lamber. Desenterrarram os
corações e cuidaram deles. Seus donos, que eram Bicho-de-Madeira e
Marta [em inglês, fisher (Mustella pennanti), em maidu /inbukim/, cf.
Shipley 1:201, /?inbuk/, "fisher animal"], recuperaram a integridade
física e se casaram com as duas irmãs.
Ao encontrar os irmãos, Águia anunciou que os humanos evitariam a
morte e ressuscitariam por imersão, a menos que ela própria e seus
familiares fossem derrotados nessa tentativa para obter a vida longa.
Repetiu a mesma coisa para os parentes, ao voltar para casa. "Se formos
derrotados, nossa casa se transformará em montanha e nós nos
dispersaremos..." E todos esperaram, para ver o que iria acontecer...
(Dixon 2:71-76).
Essa versão maidu transforma de vários modos as dos Achomawi e Atsugewi. As mulheres
vivem na casa comunal ("sauna" no texto; cf. supra:96), não fora dela, e os laços de família se
estreitam, já que uma única família ocupa a casa. Em conseqüência disso, um personagem
desaparece, o de Lince, justamente o que possui um papel de destaque nas versões distribuídas
ao longo do eixo norte-sul, dos Modoc até os Yana. Resulta daí uma redistribuição dos papéis: um
dos chefes da aldeia, Casulo, permanece igual, mas o outro, Coiote, toma o lugar deixado por
Lince, como irmão incestuoso, e Lagarto toma o de Coiote, o que o faz passar de justiceiro (na
versão achomawi, M553) a enganador. As duas comutações equivalem, portanto, a uma inversão.
E, ao mesmo tempo, seu coração, que era o último faltante, passa a ser o primeiro a ser pego.
Como a versão astugewi (M550), a dos Maidu retoma, mas sem insistir nisso, o motivo do terreno
salgado freqüentado pelos cervos, que noutras versões ocupa uma posição destacada. A ausência
do motivo entre os Achomawi certamente se explica pela raridade do sal em sua região; é até
possível que o consumo de sal fosse ali estritamente controlado (Kroeber 1:310; Garth 2:139).
Note-se ainda que as flechas da execução, em vez de serem fabricadas para esse fim, com pontas
de tipo especial, provêm do armamento ordinário dos irmãos desaparecidos.
Sobretudo, a versão maidu substitui os desdobramentos sincrônicos, fartamente
explorados por M553, lançando mão de uma periodicidade cuja noção é francamente diacrônica.
Transformação essa que parece ser bastante significativa, visto que cada uma das versões contém
o esboço da outra forma. Em M553, a metamorfose da protagonista criminosa em mergulhão
marca o aparecimento da periodicidade sazonal: a partir de então, ouvir-se-á o grito dessa ave na
primavera. M554 evoca, por sua vez, duas vezes o tipo de dualismo caro à versão achomawi, mas
sempre no modo hipotético, ao designar dois utensílios diferentes que podem ter servido para
pegar os corações, mas sem afirmar qual deles foi efetivamente empregado pela protagonista, e
ao preservar a distinção, tão clara em M551, entre os dois aspectos do relevo, mas na forma de
uma vaga alusão ao cume das montanhas e ao fundo dos vales, onde os corações desaparecidos
poderiam ter caido.
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Por outro lado, M554 se esmera em situar vários aspectos essenciais da intriga na
duração. Em vez de estar escondido no espaço, o herói maidu se esconde, de certo modo, no
tempo: sai menos freqüentemente do que seus irmãos. E se a versão atsugewi (M550) se opõe à
versão achomawi (M551) pela conclusão, já que uma conclui dizendo que "a vida voltou a ser
como era antes", e a outra, que "os sobreviventes se transformaram em animais de diferentes
espécies e se dispersaram", ambas se opõem à versão maidu, que liga a dispersão dos humanos
apenas ao surgimento da vida breve. M551 desemboca, afinal, na diversidade das espécies, que é
uma espécie de equivalente espacial das variações sazonais (CC:311), enquanto a conclusão de
M551, de que "a vida voltou a ser como era antes", evita a noção de periodicidade temporal logo
depois de o mito tê-la evocado, encarregando o mergulhão de anunciar a mudança de estação.
M554, ao contrário, dá à periodicidade sazonal seu papel principal, que é o de medir a duração
da vida humana.
O aspecto etiológico de todos esses mitos tem, contudo, tamanha importância, que
preferimos discuti-lo separadamente (infra:117-120). Passaremos, pois, para as versões dos
Shasta, de língua hokan, como os Achomawi, Atsugewi e Yana, que situados a oeste dos
primeiros, do outro lado do monte Shasta, ocupavam uma posição aproximadamente simétrica à
dos Maidu, nas vertentes orientais do monte Lassen. As duas versões de que dispomos são
bastante breves. Iremos resumi-las conjuntamente, indicando as diferenças no decorrer da
narrativa.
Uma mulher vivia com seus dez filhos e sua única filha (M55b: dez
filhos, dos quais o mais velho é uma moça). Esta se apaixonou pelo irmão
mais novo, que a mãe teve de esconder (M555b), ou que se escondeu por
conta própria, enquanto um outro irmão cometia o incesto (M555a). Mas a
moça conseguiu que lhe entregassem seu amado. Segundo M555a, esse
segundo incesto parece ter sido igualmente consumado, mas nas duas
versões o irmão foge, e tenta subir para o céu com os familiares. A irmã
os viu em plena ascensão, avisada por Cinzas, cuja cumplicidade os
fugitivos tinham esquecido de garantir (M555b), ou seguindo
automaticamente com os olhos as fagulhas do fogo de que estava
cuidando, que subiam pelos ares (M555a). Ela chamou, e a mãe (M555b)
ou um dos irmãos (M555a) cometeu o erro de olhar. A corda arrebentou e
todos morreram na fogueira.
Ao explodir, o coração do irmão amado voou e foi parar perto de um
rio (M555a), ou numa praia à beira-mar (M555b). Só M555a acrescenta
que a protagonista recolheu as ossadas calcinadas e com elas enfeitou os
cabelos. Duas irmãs patas (M555a) ou gaivotas (M555b) encontraram o
coração, restauraram a integridade física de seu dono e se casaram com
ele. As mulheres deram à luz meninos (M555a) ou um menino e uma
menina (M555b). Agindo por conta própria, ou instigadas pelo pai, as
crianças descobriram a casa da tia assassina. Pegaram as flechas dela e
puseram nelas pontas de pedra, mas ela resistia bravamente a seus
ataques (M555a). Ou foi o próprio pai que investiu contra ela, igualmente
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Existe uma versão karok, inédita, que não pudemos obter. A julgar pela utilização que dela fez T.
Kroeber, para compor uma narrativa sincrética, e seus comentários (:41-65, 171), parece ser
próxima da versão shasta, e Demetracopoulou (l. c.), que também teve acesso a ela, não faz
nenhuma observação particular a seu respeito. Os Karok, membros da mesma família lingüística
que os Shasta, eram seus vizinhos imediatos a oeste. Voltaremos mais adiante (120ss) às versões
wintu.
Nenhuma dessas primeiras versões ocidentais contém o episódio da ressurreição dos
corações, a não ser no que concerne ao do herói. Os demais membros da família morreram sem
esperança de volta, como indica com particular vigor M555a, que não se contenta em omitir o
episódio, e o inverte, substituindo os corações incombustíveis por ossos calcinados, com os quais
a protagonista enfeita os cabelos, em vez de fazer um colar. Mas as duas versões shasta realizam
uma inversão ainda mais radical, ao transformarem o próprio coração, que noutras versões é
meio de ressurreição, em meio de extermínio, já que a protagonista possui um corpo
invulnerável, exceto, justamente, pelo coração escondido no calcanhar. Em lugar de os corações
que ela torna exteriores servirem de base para a ressurreição dos parentes que ela matou, é ela
mesma que é morta em seu coração, exterior de saída, e que serve de alvo para os tiros de
parentes assassinos.
Começamos a perceber que, a oeste, as versões shasta invertem os mitos centrais em
eixos diferentes dos que são afetados pelas versões situadas do lado oposto. São diplóides, como
as versões achomawi e atsugewi, mas, ao elevarem o número dos filhos a dez (em lugar dos cinco
enumerados por M553: Lobo, Doninha, Marta, Lince e Bicho-de-Madeira), elas adicionam
mecanicamente funções que os mitos centrais desdobram de modo orgânico, para gerar relações
de complementaridade. Os filhos vivem com uma mãe, não com um ou dois pais. O papel de
informantes prestativos, que nas outras versões cabe a criaturas ligadas à água, como o kildir ou
o cincle, nas versões shasta é papel de informante nefasto, atribuído a seres ligados ao fogo,
como as cinzas e fagulhas que, ativa ou passivamente, informam a assassina. Ao mesmo tempo, a
oposição, tão clara no mito atsugewi, entre dois tipos de fogo, construtor e destruidor, dá lugar à
oposição entre dois fogos destruidores, o que é provocado pela assassina, onde morrem todos os
seus familiares, e o que arde em seu próprio calcanhar, por meio do qual ela mesma é morta.
Poderíamos alongar a lista dessas transformações. As que enumeramos bastam para ilustrar a
economia das versões shasta.
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*
* *
Dois mitos do grupo apresentam um caráter etiológico particularmente claro. A versão atsugewi
(M550) começa, com efeito, por explicar a origem das pontas de flecha de pedra que irão
possibilitar a caça, das facas de cozinha usadas para cortar a carne, e do fogo, que permitirá
cozê-la. Conseqüentemente, também nesse caso, sob um aspecto culinário que nos é famliar
desde o início destas Mitológicas, é da origem da cultura que se trata. O fato de tais
acontecimentos precederem imediatamente o primeiro incesto e o incêndio da aldeia pela irmã
concupiscente seria incompreensível, e levaria a taxar o mito de arbitrário, se não tivéssemos,
em O cru e o cozido, apresentado os fundamentos da homologia entre a união dos sexos e a que
pode ocorrer entre o sol e a humanidade, quando escrevemos: "A conjunção de um homem e uma
mulher representa, em miniatura e num outro plano, um acontecimento que lembra,
simbolicamente falando, a tão temida união entre o céu e a terra" (CC:373). Para terem o fogo
culinário, os homens têm de aproximar de si um elemento potencialmente destruidor, expondo-se
aos riscos de um grande incêndio. É o que experimentam no mito atsugewi, primeiro com o
aparecimento do incesto, símbolo social da conjunção cósmica e, em seguida, com a do fogo
destruidor, conseqüência real dessa conjunção: em seu desejo furioso de unir-se ao irmão que
deveria permanecer o mais afastado possível dela, a heroína lança chamas (M550) ou raios
(M553), ou aproxima perigosamente o sol da terra (M554).
Para que os mortos ressuscitem e se ponha um ponto final na desordem, será preciso que
os protagonistas do mito se curvem, três vezes seguidas, às exigências da periodicidade cósmica.
Primeiro, criando o relevo, isto é, o espaço modulado. Em seguida, equipando as flechas
justiceiras com pontas definidas em relação ao calendário, já que devem ser de osso (' pedra), e
provir de animais mortos em diferentes épocas do ano. E, finalmente, atribuindo ao mergulhão a
função positiva de anunciar a mudança de estação. Somente então a vida poderá voltar a ser
"como era antes".
Uma das versões achomawi (M551) cumpre a mesma função etiológica, mas lhe dá uma
expressão invertida. Do ponto de vista formal, primeiro, pois o episódio significativo se encontra
no final, em vez de no início, e trata da origem das espécies, de sua diversidade e de sua
dispersão. De modo que um mito começa relatando a origem da cultura, ao passo que o outro
termina relatando a origem da ordem natural, ao emergir da indistinção primitiva. A diferença
afeta o conteúdo, e se evidencia claramente na maior insistência de M551 do que de M550 na
especificidade das formas do relevo, cheias ou vazias. O fato de os personagens do mito, que
originariamente constituíam uma família vivendo sob o mesmo teto, acabarem se transformando
em animais de espécies diferentes, que irão viver dispersos, certamente afastará o risco de
uniões incestuosas e os perigos decorrentes de proximidade excessiva. O resultado disso, no
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entanto, é que, ao contrário do que anunciava o final de M550, para eles, nunca mais a vida será
como antes.
As duas versões etiológicas de que dispomos são simétricas, embora uma seja escrita,
digamos, em clave de cultura, e a outra em clave de natureza, e que os aspectos espacial e
temporal que a periodicidade é passível de assumir sejam nelas diferentemente dosados; nesse
sentido, M551 se apresenta como integralmente espacial (diversidade do relevo, diferenciado em
montanhas e vales, e diversidade das espécies, ligada à sua dispersão), ao passo que M550
mantém equilibradas as ordens espacial e temporal (topografia e periodicidade sazonal). Fiel à
sua técnica de desdobrameto sistemático (supra:109), M553 justapõe o aspecto natural e o
aspecto cultural, e encarrega personagens diferentes de incarná-los. Uma das irmãs, industriosa,
personifica a cultura; o que permite avaliar o quão certo estava um bom pesquisador (Garth 4) ao
ver no espírito da indústria o próprio critério da cultura segundo as tribos do rio Pit. A outra irmã,
por sua vez, é acusada pelo mito de contaminar os caçadores por descuido durante a sua
menstruação; ele a caracteriza, portanto, inteiramente por uma função natural que ela se recusa
a submeter aos imperativos da cultura. Os aspectos espacial e temporal da periodicidade também
estão presentes, mas numa forma atenuada e, no que diz respeito ao primeiro, reduzido, de
modo característico, à dualidade de duas espécies, coiote e mergulhão, que sozinhos e
conjuntamente assumem sua natureza animal. Por outro lado, M553, que suprime o motivo da
ressurreição dos mortos no final da narrativa, o substitui, no meio dela, pelo de seu
renascimento, ou seja, uma ressurreição modulada, de certo modo, pela periodicidade (já que é
preciso que o defunto que voltou a ser bebê se desenvolva e cresça antes de assumir sua
aparência física primeira). Esse renascimento causa um desdobramento, que poderia parecer
arbitrário, se não percebêssemos que a posição específica do mito no seio de um grupo de
transformação o sujeita a imposições de ordem lógica que reverberam no conteúdo da narrativa.
A mesma observação pode ser feita a respeito da relação de inversão que se vê entre as
versões achomawi. M550 e M551 se opõem, ambas, a M552, na medida em que este último mito
exprime a transição entre o tempo mítico e o tempo histórico, por fórmulas sistematicamente
negativas, como a ressurreição dos mortos tornada impossível, a partida definitiva dos demiurgos,
o velho chefe Casulo (descrito alhures como um velho pacífico e sábio) aqui dotado de um filho
cujo nome significa "Combatente" (Fighting-Man). E isso numa narrativa que acaba de tratar da
guerra como solução para o problema demográfico, ou seja, a dizimação de uma única espécie,
em vez da diversificação do mundo animal em espécies distintas, seguida de sua dispersão.
Já observamos (supra:115) que, no modo especulativo, a versão maidu (M554) sugere em
conclusão que, no futuro, os humanos não mais poderão ressuscitar os mortos, e que a duração
de sua existência será, assim, delimitada. Nesse sentido, M554 faz a síntese das outras versões:
como M551, liga a periodicidade à dispersão, mas reforçando, como M550 e M552, o aspecto
temporal em detrimento do aspecto espacial. M554 chega a dar a esse aspecto temporal da
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periodicidade a expressão mais vigorosa que pode ter da perspectiva humana, pois que aqui se
trata da duração de sua própria existência, e não da das estações. E se estações e gerações se
sucedem, umas retornam, mas as outras não.
A conclusão do mito maidu reune, assim, as dos mitos achomawi e atsugewi, ao mesmo
tempo em que se opõe a ambas. A vida retoma como antes, já que a família ressuscitada volta a
se reunir, e seus membros não viram animais. Contudo, essa vida nunca mais será a mesma, pois
deixará de existir a possibilidade de ressurreição (ao passo que, em M552, ela já deixou de
existir), o que faz com que os vivos também se transformem, não em animais, mas em mortos. E
o relevo geográfico, antecedente da diversidade zoológica segundo M551, e da periodicidade
sazonal, segundo M550, torna-se, em M554, conseqüência da periodicidade da vida humana. Se
M550 ia da cultura para a natureza, M554 faz o caminho inverso: devido ao surgimento da morte,
a casa na aldeia coberta de terra se esvazia, voltanto portanto ao estado natural, e possibilita o
aparecimento do relevo na forma de montanha: outrora habitação, agora obra de cultura
desertada por seus ocupantes.
A versão maidu também revela sua natureza sintética de outro modo. Extrai, por assim
dizer, a moral da história que conta, e desloca a explicação da ordem física para a ordem moral.
Em vez de dar conta da diversidade zoológica ou telúrica, ela pretende explicar a origem do
desregramento moral: "Porque eu agi desse modo — repete, como um leitmotiv, a mulher
incestuosa e assassina — no futuro, os homens cometerão loucuras".
Portanto, ela institui um comportamento, em vez de seguir, como em M553, o exemplo
tristemente célebre de um ascendente. Nessa versão, os humanos também se dispersam sem no
entanto se transformarem em animais de diferentes espécies. O que mostra que, para ela, a
diversidade dos comportamentos morais no seio da humanidade é, no plano das normas, um
equivalente da diversidade dos seres no plano dos fatos.
Se a versão maidu aparece, na ponta sudeste da área de difusão, como a mais filosófica
de todas, as versões shasta, situadas do outro lado, apresentam o caráter oposto. Nelas já não há
sinal de função etiológica, já que o episódio da ressurreição dos corações que lhe servia de
argumento desaparece. Na verdade, as versões shasta empobrecem e esquematizam a história, e
sua originalidade própria se afirma unicamente em inversões tanto indiferentes à mensagem, que
elas obliteram, como reduzidas ao nível do léxico (supra:117).
Em tais condições, é interessante nos debruçarmos sobre as versões dos Wintu, que
apenas evocamos brevemente (supra: 53, 78), pois que esses índios, também membros da família
lingüística penutiana, nas margens ocidentais da área de difusão do mito, ocupam uma posição
comparável à dos Maidu do outro lado do bloco formado pelas tribos de língua hokan. Pois bem,
em relação às versões provenientes da área central, as dos Wintu fazem uma opção exatamente
contrária à que é ilustrada pela versão maidu, renunciando a sintetizá-las, e limitando-se a
justapo-las. Dispomos de duas versões wintu do mito de Dona Mergulhão, e não é certamente por
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acaso que cada uma dessas duas versões, contraditórias entre si, manifesta a seu modo relações
de correlação e oposição ou com as versões shasta, ou com as dos Achomawi-Atsugewi. Olhemos
mais de perto.
Uma primeira versão, em parte já resumida (M545a; supra:53, 78), se situa
decididamente na perspectiva das versões shasta, tanto que, como já observamos (supra:54,
113), toma emprestados os nomes próprios de seus protagonistas. O que não a impede, aliás, de
afirmar sua originalidade em transformações lexicais. Em lugar de uma mãe só (invertendo o pai
só, ou os dois pais, das versões mais a leste), ela menciona pai e mãe de dez filhos, como nas
versões shasta. Mas nela é o mais velho, e não o mais novo, dos dez irmãos que ocupa o lugar de
filho escondido, arrastado pela irmã para o oeste (ao passo que, na versão shasta M555b, seu
coração escapa da irmã assassina tomando esse mesmo rumo). Em vez de subir ao céu por uma
corda, para fugir do incêndio provocado pela protagonista, a família da versão wintu acende ela
mesma um fogo e tenta ser levada para o céu pela fumaça. Fracassa, por causa de Coiote, e
despenca nas chamas, onde a protagonista recolhe seus corações, à exceção do do irmão
desejado, que cai longe. De modo que essa versão wintu retorna ao motivo do colar de corações,
ignorado por uma das versões shasta (M555b) e transformado pela outra em adorno de cabelo
feito de ossos (M555a) que, como os corações da versão wintu, mas à diferença de todas as
outras, são recolhidos na cinza resfriada, e não apanhados no ar, antes do final da incineração.
Duas mulheres humanas, transformando as irmãs gaivotas ou patos das versões shasta,
encontram o coração num terreno salgado freqüentado pelos cervídeos — motivo ausente das
versões shasta e acomawi, que reaparece aqui —, ressuscitam seu dono, casam-se com ele e têm
com ele dois filhos, que é informado por um pássaro ferido da presença de sua tia (comparar com
a cotovia informante das versões shasta). Aconselhados pelo pássaro, matam-na com flechas sem
ponta. Seu pai recupera o colar de corações e o coloca na água. Toda a família ressuscita no dia
seguinte.
Ao cabo de um certo número de inversões, acabamos voltando, portanto, ao que se
poderia chamar de vulgata, de que as variantes shasta de afastavam tão decididamente. E já que
elas tinham de transformar as versões centrais para obter esse resultado, não surpreende que,
repetidas vezes, a torsão adicional aplicada pela narrativa wintu nos leve de volta a estas
últimas, como ocorre com o papel de Coiote, o motivo do colar de corações e o da ressurreição.
Mas também acontece, em certos casos, de os recursos da combinatória ainda não esgotados pelo
mito gerarem novos modelos, como a ascensão sobre a fumaça, em vez de ao longo de uma corda
ou dentro de um cesto ou uma rede, que implica na transformação do fogo de destruidor em
auxiliar, razão pela qual são os próprios fugitivos, e não sua perseguidora, que o acendem (para
uma transformação análoga na América do Sul, ver CC:206-207). Ainda no mesmo espírito,
observe-se que M550 substitui, no decorrer da narrativa, as flechas "culturais" de ponta de pedra
lascada por flechas "naturais" de ponta de ossos de cervídeo (supra:104). As versões shasta
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fervente, e o herói ressuscita: "Mas, apesar de ele ter voltado a ser uma pessoa, ele não parecia
normal, e não viveu muito tempo".
Como a versão maidu, portanto, esta termina admitindo que é impossível ressuscitar
realmente os mortos, e formula sua mensagem recorrendo a procedimentos que lembram, além
daquela versão, as dos Achomawi e Atsugewi. Em todos os casos, uma primeira experiência
provoca a fúria da protagonista; experiência do incesto em M550-554, que a leva a destruir a
própria família pelo fogo, e, aqui, experiência do sabor do próprio sangue, isto é, um incesto
alimentar que lhe inspira o ardente desejo de cometer um incesto real, e esse desejo frustrado
se retransforma em apetite alimentar, igualmente inspirado pelo corpo do irmão reticente.
Concorda perfeitamente com essa interpretação o fato de o papel de informante passar,
entre M555b e M545b, das cinzas para os excrementos. Pois, já que se trata de incêndio num caso
e de canibalismo — na forma de consumo alimentar — no outro, as cinzas estão para o primeiro
como o excremento está para o segundo. Note-se, finalmente, que a segunda versão wintu não dá
nenhum lugar para o motivo do fogo destruidor, introduzido por M550 a título de conseqüência da
conquista do fogo de cozinha. Mas a razão dessa divergência é compreensível. Ela resulta do fato
de M545b inverter a mensagem do outro mito. Um remete à origem da cultura, formulada em
termos culinários, e que acarreta, como contrapartida, o aparecimento do incesto no plano social
e o do fogo destruidor no plano cósmico. O outro remete à origem do canibalismo, verso da
culinária doméstica que exclui, portanto, o fogo construtor (a não ser metaforicamente, cf.
infra:131), mas que é ele mesmo equivalente, no plano alimentar, do fogo cósmico destruidor e
do casamento socialmente próximo demais.
A discussão acima traz vários ensinamentos. Do ponto de vista da análise formal, ilustra o
número e a diversidade dos tipos de simetria que o pensamento mítico coloca em operação
quando aplica a uma série de variantes deformações sucessivas, que preservam a unidade do
grupo, mas ao mesmo tempo mantêm o aspecto original de cada estado. As versões klamath e
modoc, que nos serviram de ponto de partida, já invertiam umas às outras em vários eixos. E seu
paradigma, deformado pela ideologia das tribos adjacentes, projeta sobre esse fundo outras
tantas imagens, cuja estrutura global sempre pertence ao mesmo grupo de transformação.
Se ordenarmos idealmente esses povos contíguos em série linear (fig. 13), deixando os da
família lingüística hokan no centro, com cada um dos representantes da família penutiana de um
lado — disposição que quase não contradiz a realidade geográfica —, perceberemos, situadas no
mesmo plano e no que chamaríamos de sua relação natural, fórmulas diversas que, por um duplo
trabalho de imitação e distorção, podem gerar umas às outras, de modos demonstrados por nossa
análise. Partindo dos Yana, que nos pareciam possuir as ligações míticas mais diretas com os
Klamath-Modoc — já que integram dos dos mitos destes num único, pelo procedimento do
desdobramento vertical — passamos, à direita, para os Achomawi-Atsugewi, que utilizam o
mesmo procedimento, mas deslocam todo o sistema para a horizontal, e, em seguida, para os
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Maidu, que operam a síntese desses tipos desdobrados. À esquerda, passa-se para os Shasta, que
se limitam a inversões lexicais, e para os Wintu, que recorrem a um procedimento simétrico e
inverso ao dos Maidu, situados no outro extremo do esquema, pois, em vez de realizarem a
síntese dos contrários num único mito, eles os justapõem, na forma de mitos separados.
Klamath
Modoc
Wintu Shasta Yana Achomawi Maidu
Atsugewi
justaposição inversão desdobramento desdobramento síntese
dos contrários vertical lateral
Penutiano Hokan Penutiano
Fig. 13 — Sistema das transformações do mito de Dona Mergulhão [p. 124]
Fica evidente que as duas versões wintu representam formulações contrariadas do mesmo mito:
num caso (M545b), o herói sobrevivente ressuscita seus parentes e, no outro (M545b), são eles
que sobrevivem, e não conseguem ressuscitar o herói de modo duradouro. Como todas as outras
versões se dividem em dois grupos, umas fazendo ressuscitar os corações por imersão num
receptáculo cheio de água fervente, outras na água fria de um lago ou rio, é tentador buscar a
mesma dualidade nas versões wintu. M545b especifica que o coração foi exposto ao vapor da água
fervente ou nela mergulhado, ao passo que M545a fala vagamente de uma imersão na água e
debaixo de pedras. Embora esses mitos só nos sejam conhecidos na transcrição em inglês, pode
ser significativo que, para descrever a operação, o texto de um deles empregue o verbo to soak,
"por de molho", e o do outro o verbo to steam, "cozinhar no vapor" com pedras incandescentes na
água.
Mas o principal é que agora estamos em condições de completar a demonstração iniciada
na p. 86. Existe, dizíamos, uma completa homologia entre a configuração mítica evidenciada em
O cru e o cozido e Do mel às cinzas, para a América do Sul, e a da América do Norte, que estamos
aqui mostrando. Num primeiro momento, notamos do lado esquerdo dessa configuração — cujo
personagem central é, não devemos esquecer, um desaninhador de pássaros — mitos relativos à
origem dos adornos e à do mel, sendo este último simplesmente invertido em sal pelos mitos
dessa região da América do Norte, setentrional demais para permitir a sobrevivência das abelhas
indígenas. O condimento salgado ou doce sempre funciona como antecedente ou meio dos
adornos, para os mitos que se referem à sua origem, ou como fim para outros mitos, unidos aos
precedentes por uma relação simples de transformação.
Numa segunda etapa (p. 88ss), localizamos no flanco direito da configuração mítica,
tanto na América do Norte quanto na América do Sul, mitos simétricos aos do flanco esquerdo,
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mas que se associam à origem da caça, ou à do tabaco. Porém, o mito modoc M539, o único de
que dispúnhamos até então para atestar tal ligação, não cumpria plenamente sua tarefa, pois não
explicava a origem do tabaco. Na verdade, existem mais ao norte mitos que satisfazem essa
condição, mas invocá-los teria sido injustificado, na ausência de meios de conectá-los tanto
lógica como etnograficamente aos outros. A versão wintu M545b permite isso. Retomemos, pois,
a discussão no ponto em que a havíamos deixado, para introduzir um mito proveniente das tribos
de língua chinook que residem no baixo Columbia, muito ao norte dos Klamath e dos Modoc, mas
que eles conheciam bem, pois freqüentavam suas feiras.
(ao norte?) o espírito quardião dos caçadores bem sucedidos (Sapir 1:246-
248).
Dissemos que os índios dessa região acreditavam que as pontas de flecha de pedra
possuíam uma espécie de veneno mineral que matava infalivelmente a caça. Uma correlação
suplementar aparece, assim, entre as pontas e o tabaco, veneno para os humanos de baixa
condição entre os Chinook e, nos mitos sobre a origem do tabaco de proveniência mais
setentrional, antigamente veneno para todos os fumantes. Tais mitos provêm dos Salish
setentrionais, Thompson e Shuswap, e de seus vizinhos Chilcotin, que são atabascanos (M556b-e;
Teit 5:304-305; 1:646; Boas 13:3; Farrand 2:12). Como todos são muito breves, apresentá-los-
emos de forma sincrética.
Durante suas peregrinações, os demiurgos encontraram a árvore de tabaco, que possuía
um ramo grosso que, com um movimento pendular, matava todos os passantes; ou então, o que
dá no mesmo, o tabaco da árvore era venenoso. Os demiurgos, ou um deles, derrubaram a
árvore, com um instrumento para retocar pontas de flecha, segundo uma das versões, e
decretaram que, a partir de então, o tabaco não seria mais tóxico e poderia ser fumado sem
problemas (Shuswap). A versão chilcotin substitui o instrumento por um bastão plantado na
diagonal, que desvia a árvore que cai sobre o corpo do demiurgo. Os Thompson atribuem à árvore
uma sombra mortífera; Coiote fez um cachimbo de pedra, colheu as folhas, agora transformadas
em tabaco, e as fumou.
Portanto, se atualmente as pontas de flecha são um veneno para os animais caçados (mas
benéfico do ponto de vista dos caçadores), antigamente, o tabaco era veneno para os humanos. E
foi o instrumento usado para retocar pontas de flecha que permitiu tirar-lhe a toxicidade para
fazer dele — como as flechas, mas num registro complementar — um potente auxiliar na caça a
esses mesmos animais. Os mitos setentrionais a respeito da origem do tabaco atestam
plenamente, por conseguinte, a conexão entre carne e tabaco que a exegese do mito modoc,
menos explícito (M539) havia permitido inferir.
Definitivamente seguros de que as configurações míticas comuns às duas Américas são
homólogas em sua parte direita (fig. 8), podemos voltar para a parte central, que tínhamos
provisoriamente deixado de lado, para integrar ao sistema versões suplementares (supra:93-125).
Com efeito, ainda não tínhamos meios de determinar a presença da mesma homologia no centro
da configuração, isto é, onde sua modalidade sul-americana situa os mitos sobre a origem do
cozimento dos alimentos.
Agora temos, já que a versão atsugewi, de modo direto, e as outras, sob transformações
em que é possível ver o mesmo tema etiológico, subordinam a história de Dona Mergulhão (que,
como demonstramos, inverte a do desaninhador de pássaros) à descoberta das artes da
civilização, sob o triplo aspecto de flechas de ponta de pedra para a caça, facas de cozinha para
cortar a carne, e fogo doméstico para cozê-la. É verdade, portanto, que em duas regiões do Novo
Mundo — todavia muito afastadas uma da outra — um grupo de mitos sobre a origem da culinária
HN 105
engendra, de um lado, mitos sobre a origem dos adornos e dos condimentos e, do outro, mitos
sobre a origem da carne e do tabaco.
Há mais. O estudo desse sistema mítico, quando o iniciamos em O cru e o cozido, a partir
de exemplos sul-americanos, iria levar-nos a perceber dois outros sistemas, simétricos entre si, e
cada um deles ligado a seu modo ao primeiro por relações de transformação: de um lado, um
grupo de mitos sobre a origem da vida breve (M70-M118) e, do outro, um grupo relativo à
diversidade das espécies animais e à origem da cor dos pássaros (M171-M186). Agora, ainda de
modo alusivo, acabamos de ver transparecer esses dois motivos na configuração norte-americana,
em que surgem à guisa de conclusão, um na versão maidu (M554) e o outro numa das versões
achomawi (M551).
Mas, melhor ainda, se na América do Sul estabelecemos a conexão entre os mitos sobre a
origem da cor dos pássaros e os mitos sobre a origem do veneno de pesca (CC:306-307), na
América do Norte, a mesma conexão aparece em forma invertida, entre a origem da cor dos
pássaros (M551) e a das pontas de flecha de pedra, que são um veneno de caça, igualmente
presente no estado natural, segundo as tribos dessa região do continente. E, finalmente,
verificaremos, a partir da próxima parte deste livro, que a origem da vida breve ocupa, na
configuração norte-americana, um lugar mais importante do que parece, e que a economia dos
mitos que a ela remetem é rigorosamente idêntica à dos mitos sul-americanos. A ordenação da
natureza pela instituição das diferenças específicas, por sua vez, aparecerá na quarta parte.
Dixon (5:609) estava, portanto, fundado em seu pressentimento de que, longe de ser uma
formação isolada, como acreditava Demetracopoulou (supra:52-53), o mito de Dona Mergulhão
faz parte de uma cosmogonia. Sapir, por sua vez, tinha ficado impressionado com o fato de um
episódio do mito de Dona Mergulhão aparecer no mito que os Yana consagram à origem do fogo:
girar nos dois sentidos, até que a extremidade inferior, provocando atrito entre as paredes da
bacia que fura e um outro bastão ou prancha, fique suficientemente aquecida para atear fogo na
palha ou casca colocada ao lado, como uma mecha; ou seja, o intrumento mais "incestuoso" que
se possa imaginar, já que o fogo nasce do atrito entre peças "irmãs" cuja ação recíproca lembra o
coito (cf. MC:209).
O mito yana evoca esse instrumento em forma invertida, a de um ser fêmea que provoca
um incêndio devastador devido à carência de seu parceiro macho, ao passo que, na broca de
fogo, é a ação exclusiva do elemento macho que acende um fogo criador. Esse funcionamento ao
contrário, que transpõe a broca de fogo para o plano do imaginário26, contrasta de modo notável
com sua ausência ocasional em mitos modoc que discutimos (M549a,b,c; supra:88-89),
acarretando, senão o contrário do fogo de cozinha, na forma de um grande incêndio, pelo menos
sua ineficácia prática, já que sem tabaco e sem broca, não é possível fazer as oferendas de
fumaça exigidas pelo espírito da montanha, o que inviabiliza a caça, e então não há nada para
cozinhar. Para reverter a situação, é preciso vencer o espírito, e destrui-lo num fogaréu de
proporções cósmicas. O recurso ao fogo destruidor (mas para destruir um ogre canibal) torna-se,
nesse caso, meio e condição de retorno a uma alimentação civilizada. Vê-se, assim, que o grupo
se fecha também por esse ângulo.
*
* *
Para concluir, gostaríamos de chamar a atenção para um outro aspecto desses mitos e
resolver o último problema levantado por sua comparação. Quando, no final de O cru e o cozido,
consideramos retrospectivamente o conjunto de nosso procedimento, foi evocado como ilustração
um mito dos índios Shipaya (M178), segundo o qual irmãos incestuosos, sabendo que haviam sido
descobertos, fogem para o céu. Mas, ao chegarem lá, discutem, e o homem empurra a mulher,
que cai na terra com um estrondo. Ela se transformou em anta, enquanto o irmão que ficou no
céu tornou-se a lua. Guerreiros convocados por um outro irmão buscaram matar o astro criminoso
com flechas. Seu sangue policromo jorrou, provocando o aparecimento da menstruação feminina
e tingindo os pássaros, cujas plumagens receberam suas cores distintivas.
A respeito dele, notamos que "existe pelo menos uma tribo brasileira que percorre, no
espaço de um só mito, o itinerário complicado que seguimos, juntando vários mitos, para passar
da algazarra ao eclipse, do eclipse ao incesto, do incesto à desordem, e da desordem à cor dos
pássaros" (CC:335). Pois bem, esse mito ao mesmo tempo reproduz e inverte o de Dona
Mergulhão: iniciativa do irmão, em vez da irmã; irmão marcado com a cor preta no rosto pela
parceira, ao passo que, no outro mito, é a irmã que é marcada de branco pela penugem que orna
26
Ilustrado de modo metafórico por M545b, que substitui a cena do incêndio por uma outra, em que
a irmã incestuosa, deitada de costas, espera que seu parceiro macho caia do céu entre suas pernas
HN 108
seu parceiro e gruda na resina que ela mesma passou no corpo; fuga para o céu dos infratores,
para evitar a vingança dos parentes, tendo o incesto sido cometido (a irmã está grávida), opondo-
se à fuga dos parentes, no outro caso, para evitar a vingança da infratora, furiosa por não ter
conseguido consumar o incesto; transformação da irmã em pássaro aquático, a pior caça de
todas, ou em mamífero terrestre, o maior dos animais de caça — ambos, além do mais,
portadores de anti-ornamentos, que são, na América do Sul, os carrapatos, "que são as pérolas da
anta" (M145; CC:301) e, na América do Norte, o colar de corações; transformação do irmão em
lua, astro periódico sujeito a eclipses, ou em ressuscitado precário (M545b), no decorrer de uma
operação de que resulta (M554) a periodicidade da vida humana; incesto acarretando o
surgimento da menstruação nas outras mulheres (M178) ou consecutivo ao seu surgimento na
própria protagonista (M545b, M553); tudo isso levando, em ambos os casos (M178 e M551), à
origem da cor dos pássaros. Até o motivo da algazarra, que tínhamos aproximado do charivari
para lutar contra os eclipses e punir as uniões proibidas (CC:291-305), pode ser encontrado em
termos praticamente idênticos na América do Sul e na América do Norte: "a mulher caiu como um
meteoro e tocou o solo com muito barulho", diz M178. E, em M555a, depois de ser atingida no
calcanhar, onde o coração escondido reluz e brilha "como fogo", "ela caiu e morreu; por toda
parte, no mundo inteiro, ouviu-se o ruído de sua queda" (Dixon 1:15).
Para definir a linha que seguimos desde o início deste livro, poderíamos, portanto,
retomar os próprios termos que empregamos em O cru e o cozido, falando de mitos provenientes
do outro hemisfério: "considerando nosso procedimento retrospectivamente, podemos dizer que
este começa com mitos cujo herói é um desaninhador de pássaros e que, ao menos
provisoriamente, desemboca em mitos relativos à origem da cor dos pássaros... um problema
formalmente do mesmo tipo que o do surgimento de uma ordem que poderíamos chamar de
alimentar" (CC:356). Efetivamente, a criação de uma ordem zoológica se situa a meio caminho
entre a de uma ordem cósmica e a de uma ordem cultural; os problemas colocados pelas três são
isomorfos (CC:321-322).
Contudo, convém renovar aqui uma observação que já tínhamos feito a respeito dos mitos
homólogos da América do Sul: eles jamais tratam simultaneamente os três problemas, pois o ou
os níveis que selecionam implicam constrangimentos que se traduzem, em cada mito, por
diversos tipos de inversões e transformações. É exatamente isso que a análise dos mitos norte-
americanos permite, novamente, constatar: o mito atsugewi M550 ressalta problemas relativos ao
advento da ordem cultural, e possui relações de correlação, mas também de oposição, com os
mitos achomawi (M551) e maidu (M554), que tratam do advento de uma ordem natural
considerada pelo ângulo do espaço, num caso, e do tempo, no outro. Pode-se dizer o mesmo dos
afastadas (supra:122), reconstituindo assim a verdadeira imagem da broca de fogo num mito em que o
motivo do fogo, justamente, não está presente.
HN 109
(fig. 9), preenchem todas as condições requeridas por nossa hipótese. Elas não possuem o mito de
Dona Mergulhão, e não podem, portanto, lhe remeter a origem do fogo. Em compensação, elas
conhecem o mito do desaninhador de pássaros.
Não dedicaremos muita atenção ao episódio do menino cego, que ocupa um lugar considerável
nos mitos de tribos mais ao norte. Ele constitui o último estado de uma transformação cujo ponto
de partida se encontra em mitos discutidos alhures (OMM:191-194): exilado desde o nascimento
sem o saber, um jovem caçador certo dia não acerta um pássaro, que lhe revela sua origem, e ele
consegue reencontrar a família. O mito de Dona Mergulhão impõe uma primeira transformação a
esse motivo, em versões (M555a,b) em que o pássaro ferido dirige as crianças para a tia, mas
para que possam matá-la, e separá-la, portanto, definitivamente de si. O mito yurok opera uma
torção suplementar: torna o menino cego para que, incapacitado a mirar nos pássaros — e
também de errar a mira, portanto —, ele os mate infalivelmente, com seu poder mágico, o que os
impede, evidentemente, de "esclarecê-lo".
HN 111
De fato, o menino não pode mais se reunir ao pai. Sua aproximação é tão precária quanto
a ressurreição do herói de M545b e, como em M551 e M554, o mito termina numa dispersão.
Ainda mais explícita a esse respeito, a versão Erikson, já indexada em Do mel às cinzas
como M292d (:264 n. 1) conta que o herói exilou o filho no mundo celeste, terra das crianças e
dos cervídeos; e engata imediatamente num outro episódio (igualmente registrado entre os
Wiyot, os Tolowa e os Yupa, M292e, Kroeber 7:85-107; M292f, Goddard 1:116, 132), no qual o
demiurgo cede às propostas de uma Dona Raia que o prende entre as coxas durante o coito,
aprisoina-o e o manda de volta para sua terra de origem, do outro lado do oceano, ou seja, ele
também é afastado do mundo dos humanos. Aliás, já o início de M557 atesta que continuamos
dentro do mesmo grupo de mitos. Segundo M550, a conquista do fogo de cozinha, isto é, da
cultura, acarreta o aparecimento do incesto, apresentado como uma de suas implicações. Aqui, o
incesto só se torna possível a partir do momento em que seu meio anatômico, natural portanto, é
instituído: antes de as mulheres terem vagina, um sogro não poderia ter violentado a nora. E se o
demiurgo engravidara antes a primeira conquista, foi por um método que nada tinha a ver com a
cópula: como ele não conseguia o que queria com a aparência de um belo rapaz, engravidou a
moça de longe, depois de ter-se transformado num menininho.
Uma versão do mesmo mito, registrada e resumida por Kroeber (1:73; M557b) detalha
dois pontos importantes. Em primeiro lugar, o filho do demiurgo é o dono de todas as conchas do
mundo ("suas coisas", como diz M557a) e, para vingar-se do pai, leva-as embora consigo; mas, diz
essa versão, o demiurgo conseguiu alcançá-lo e recuperar uma quantidade de conchas suficiente
para satisfazer as futuras necessidades da humanidade. São as conchas dentalia que, em toda a
região, servem para fazer os ornamentos mais apreciados e, entre as populações de que estamos
tratando, fazem papel de moeda preciosa. Parido por um homem, dono dos adornos, vítima do
ciúme e da lascívia do pai, que tenta fazer com que ele morra no alto de uma árvore para tomar-
lhe a esposa, todos esses aspectos do herói de M557 correspondem exatamente aos que os
Klamath e Modoc utilizam para descrever seu herói Aishísh. E assim voltamos ao nosso ponto de
partida.
Na verdade, chegamos a outra coisa, que vai nos levar bem mais para trás. A versão
Kroeber nomeia o herói Kapuloyo, nome de uma divindade que os Yurok invocam "quando o vento
ameaça derrubar uma casa ou quando troveja. Olham então para o norte, estendendo a mão
naquela direção, e rezam: Kapuloyo, sou teu filho, ajuda-me!" (Spott & Kroeber:233).
Kroeber (1:119) considera que o demiurgo Velho-d'Além-Mar não tem, para os Yurok,
muita relação com a principal divindade de seus vizinhos Wiyot, chamado Velho-do-Alto.
Entretanto, as histórias deste com o filho se parecem muitíssimo com as evocadas nos mitos
precedentes. Falta o episódio do desaninhador de pássaros, é verdade, mas todos os outros
detalhes remetem com a mesma precisão, senão mais, aos mitos dos Klamath e Modoc de que
HN 112
partimos (M539). Como os Yurok, os Wiyot apresentam o herói vítima do próprio pai como dono
do mau tempo:
Não há dúvida de que nos encontramos diante do herói do mito bororo (M1) que servia de
referência para o primeiro volume destas Mitológicas, ele também vítima do ciúme do pai,
devido ao incesto cometido com a mãe, ao passo que M557, que o isola igualmente sob pretexto
de desaninhar pássaros, num lugar de onde ele não pode sair, o pai comete incesto com a mulher
do filho. O herói sempre se torna dono das tempestades e ventanias.
Não se trata de uma casualidade que só pode ser ilustrada pelo caso muito particular dos
Yurok e Wiyot, representantes remotos da família lingüística algonquina (Hass 2, 3), perdidos na
costa do Pacífico. Uma versão muito lacunar do mito yurok (M557c, Curtis, vol. 13:190) termina
contando que, ao tornar-se adulto, o filho do demiurgo resolveu deixar a mãe. Desceu o rio
(Klamath) de canoa. A mulher, moendo sementes, foi atrás dele, sem largar seu pilão de pedra.
Quando ela chegou à costa, viu que a canoa já estava no mar e lançou o utensílio em sua direção,
mas ele caiu na água e virou um rochedo alto ao largo do estuário.
Por uma transposição geográfica, de que descrevemos outros exemplos (supra:62-65, 83-
85, 100-102, 108-109), essa versão conecta o mito yurok com um mito dos Makah do cabo
Flattery, a seiscentos ou setecentos quilômetros mais ao norte, únicos representantes da família
lingüística nootka na terra firme. Essa impressionante versão setentrional do mito bororo contém
até a música:
[partitura: p. 137]
[partitura: p. 137]
Depois, ele saltou no vazio e se matou. Outros dizem que ele morreu
no rochedo, no sétimo dia. Seu espírito continua lá, e avisa os índios
quando se aproxima uma tempestade e fica perigoso pescar ou caçar no
mar (Swan 2:86-87; Densmore 3:197-199).
Diante disso, talvez se admita que não cedemos a um mero capricho quando intitulamos o
primeiro capítulo destas Mitológicas "Ária do desaninhador de pássaros"... Pois, a não ser por três
inversões (pai prestativo/perseguidor; pássaros devorados/devoradores e salvadores
ineficazes/eficazes), é a mesma história, sempre fundando a origem do mau tempo. Além disso,
o episódio das gaivotas vingadoras, que elevam o herói até o céu, apresenta uma relação de
simetria com o dos cervídeos vingadores que o pisoteiam e enfiam no solo, contado por muitas
variantes do mito de Dona Mergulhão, o qual, vale lembrar, inverte o do desaninhador.
Acrescentaremos uma prova suplementar. Vimos que o mito bororo inverte mitos jê cujo
herói, ele também desaninhador de pássaros, torna-se dono do fogo culinário roubado do jaguar,
que desde então come cru. O conjunto do sistema está apoiado em três grandes oposições: entre
o fogo terrestre e a água celeste, entre a humanidade e o jaguar, entre cozido e cru. As formas
bororo e jê são, portanto, mutuamente exclusivas e, visto que os Yurok e os Wiyot adotaram a
primeira, não se pode esperar encontrar entre eles a segunda. Como seus vizinhos Hupa, os Wiyot
chegam a afastar a teoria, prevalecente em toda a área (cf. M550), segundo a qual a primeira
humanidade teria obtido o fogo graças a um roubo (Kroeber 7:92). Entretanto, o mito ausente
esclarece aquele que o substitui entre os Wiyot, como se este só tivesse podido adquirir sua
configuração por ter sido projetado a partir desse foco virtual:
O mito possui a mesma armação que o dos Jê: entre a cultura e a natureza, a humanidade e a
animalidade (representada, em cada região, por seu maior felino), um terceiro personagem
desempenha o papel de mediador, mas deslocado, em cada um dos casos, em direções opostas,
mais para a humanidade se for um adolescente recém-iniciado, mais para a animalidade se for
um animal doméstico. O mediador dos mitos jê se apossa do fogo e o transfere de um polo para o
outro, o do mito wiyot o possui desde o início. A razão dessa diferença é compreensível. Os mitos
jê introduzem o primeiro fogo na forma de um toco de madeira em brasa, ou seja, algo que
pertence à ordem natural. Já o mito wiyot faz dele função da broca de fogo, objeto
manufaturado que pertence à ordem cultural.
Ora, a mesma transformação se verifica na América do Sul, e precisamente na mitologia
bororo, que atribui a invenção da broca de fogo ao macaco, e que também opõe esse animal
mediador ao maior felino, o jaguar, no caso. Mostramos que esse mito bororo sobre a invenção do
fogo cultural transforma os mitos jê sobre a obtenção ou roubo do fogo natural (M55; CC:135-
141). Por outro lado, o macaco se aproxima do homem pela natureza, por semelhança física, e o
cão está próximo do homem pela cultura, por contiguidade social. A distância entre as tribos
cujos mitos estamos comparando é evidentemente enorme. Mas, para justificar a aproximação,
convém notar que o espaço intermediário pode ser pontuado com exemplos provenientes da
Guiana (CC:136 n.1), do sudoeste dos Estados Unidos, no Arizona, entre os Yuma e os Pima
(Harrington 2:338-339; Russell 1:216 n. a), e do sul da Califórnia, entre os Luiseño (C.G. Du
Bois:134, 146). O princípio taxinomico fundado na presença ou ausência de cauda, introduzido em
O cru e o cozido (138-139) para a discussão do mito bororo, parece estar também presente no
noroeste da América do Norte, entre os Chinook (Boas 5:191).
Como outros mitos analisados acima (supra:89, 130-131), o dos Wiyot substitui o fogo pelo
instrumento que serve para produzi-lo. E também justifica esse procedimento metonímico. De
modo ainda mais claro do que o próprio fogo, a broca se opõe à tempestade e à chuva porque
permite aos homens se abrigarem para obtê-lo, ao passo que uma fogueira externa correria o
risco de ser apagada pelas intempéries. Talvez por isso os Yurok concebessem uma relação de
incompatibilidade entre o cão, dono da broca de fogo, e a água, e jamais levassem os cães em
suas embarcações. Recordemos que, no mito bororo M55, o macaco inventa a broca de fogo
depois de ter corrido de risca por ter subido numa canoa. De modo que, em ambos os
hemisférios, os mitos opõe o fogo à água, celeste ou terrestre e, como postulamos, tanto de um
lado como do outro, mitos que invertem, do ponto de vista de sua estrutura formal, os que se
referem a um dos elementos, remetem necessariamente ao outro. No centro de sua área de
difusão, a história de Dona Mergulhão se apresenta como mito de origem do fogo. Decorre daí que
a história do desaninhador de pássaros, que lhe é simétrica, se manifesta na periferia como mito
HN 115
da origem da água. O fato de essa notável transformação, registrada duas vezes na costa do
Pacífico, a centenas de quilômetros de distância, estar mais bem ilustrada entre os Yurok e os
Wiyot, filhos desgarrados da família algonquina, abre outras perspectivas, de que tiraremos mais
adiante (terceira parte, II) outras informações.
HN 116
TERCEIRA PARTE
A falta de união entre esposos, qualquer que seja a sua causa, traz desgraças terríveis; mais cedo
ou mais tarde, somos punidos por não termos obedecido às leis sociais.
A AVÓ LIBERTINA
Marcial, Epigramas, 1, 72
Teríamos encontrado integralmente, na América do Norte, o mito (M1) que serviu de ponto de
partida para estas Mitológicas e que, ao longo de quatro volumes, não paramos de comentar? Não
podemos ainda afirmá-lo categoricamente pois, entre os Bororo, a história do desaninhador de
pássaros, além de ser codificada em termos sociológicos e metereológicos, possui uma conotação
astronômica. Para localizar essa conotação nas variantes norte-americanas, nas quais, até agora,
só recolhemos suposições (supra:39-40, 61, 70), será preciso voltar ao início deste livro e,
seguindo outro itinerário, refazer o que até aqui foi nosso trajeto.
A história do desaninhador de pássaros se nos apresentou primeiramente na mitologia dos
Klamath e dos Modoc. Mas ela nunca aparece ali em posição inicial ou isoladamente. Graças a
uma versão tardia (M538), que relata episódios a que as versões mais antigas já aludiam, foi-nos
possível reintegrá-la num conjunto que a encadeia a uma seqüência de eventos anteriores, os
quais, por essa razão, constituem uma espécie de "abertura", em que reconhecemos todos os
temas que, mais ao sul, formam a história de Dona Mergulhão. Ocorre o mesmo entre os Modoc,
mas com duas diferenças. Quando serve de abertura para a história do desaninhador, a história
de Dona Mergulhão se inverte: a mulher desmiolada vira virgem ajuizada, a irmã casada fora, que
volta o tempo todo para junto do irmão pelo qual está apaixonada, cede lugar a uma irmã
caseira, avessa ao casamento, que cuida dos irmãos o tempo todo, de modo que o incesto sexual
HN 117
se transforma numa spécie de intimidade doméstica que se lhe assemelha, no plano alimentar e
econômico (M541).
De modo simétrico, e ainda entre os Modoc, a história de Dona Mergulhão também pode
existir em sua forma "reta". Porém, quando é usada como abertura, desemboca num outro tipo de
narrativa, a gesta dos irmãos celestes (M539), sem relação aparente com a do desaninhador. No
presente estágio da investigação, dispomos, portanto, de três fórmulas míticas, cada uma delas
correspondendo a uma mensagem distinta:
Decorre dessas fórmulas esquemáticas uma primeira conseqüência. Se M539 atesta que (DM) e
(Irmãos cel.) são compatíveis, e M541 que (DM-1) e (Desaninhador) também o são, deve seguir-se
que, de algum modo, existe uma correspondência entre (Irmãos cel.) e (Desaninhador-1).
Os Yana deveriam nos permitir rapidamente uma quarta fórmula, já que, entre eles, a
história de Dona Mergulhão em forma reta serve de abertura para a do desaninhador,
apresentada em forma invertida (herói culpado de incesto => vítima de incesto; e herói alçado =>
enterrado). Ou seja:
Há mais. Entre a história do desaninhador e a de Dona Mergulhão, nossa segunda parte permitiu
determinar não apenas uma conexão externa, resultante do fato de as encontrarmos justapostas
nos mesmos mitos, mas uma relação de ordem interna e, diríamos, orgânica. Não basta constatar
que cada uma das histórias tomada em si gera seu reverso. Juntas, elas formam um sistema, que
torna sua simetria manifesta:
Veremos, na seqüência, que essa transformação permite ao mesmo tempo aceder ao código
astronômico e elucidar o enigma da relação entre a história do desaninhador e a dos irmãos
celestes, pela qual M539 a substitui, de modo imprevisto. Pois a história dos irmãos celestes
emprega um código astronômico para inverter uma mensagem que é exatamente a da história do
desaninhador, mas utilizando um léxico que transforma todos os termos da história de Dona
Mergulhão. Antes de chegar a isso, é preciso completar o inventário do que chamamos de
HN 118
"aberturas" da história do desaninhador, que não se reduzem ao mito de Dona Mergulhão (M538) e
seu inverso (M541). Existem pelo menos duas outras, cujas relações mútuas e com as examinadas
anteriormente convém determinar.
Comecemos por uma versão da qual apenas o resumo foi publicado. Mas o professor
Theodore Stein teve a amabilidade de nos enviar seu texto inédito, juntamente com outros,
registrados por ele em 1951. Aproveitamos para expressar aqui nossa gratidão para com ele, por
um auxílio que não se revelou precioso apenas nesta ocasião.
Um menino e sua irmã viviam com a avó. Certo dia, ela os mandou levar
comida para um velho vizinho, que contou-lhes uma história. Quando
contaram a história à avó, ela achou que nela havia uma proposta
disfarçada. Fingindo indignação, foi imediatamente para a casa do
vizinho, onde ela mesma tomou a iniciativa da relação amorosa. Ao voltar
para casa, para explicar às crianças a razão de sua aparência
desgrenhada, disse que tinha se machucado. Depois de vários incidentes
semelhantes, os netos descobriram o que ela andava fazendo e ficaram
profundamente chocados. Resolveram fugir. Pediram ajuda ao furador,
que no começo os protegeu da avó, mas acabou traindo-os. A velha foi ao
seu encalço e percebeu, por vários indícios, que eles tinham-se tornado
um casal incestuoso. Na verdade, eles tinham crescido, tinham-se casado
e tido um filho, em relação ao qual eram pais exemplares.
Transformada em ursa feroz, a avó encontrou o neto em isolamento
ritual, em busca por espíritos protetores, e o matou. A jovem viúva
vingou o marido causando a morte da assassina. Depois quis também
morrer, com o filho, mas Gmukamps (Kmúkamch) conseguiu salvar o
menino, adotou-o e deu-lhe o nome de Aisis (Aishísh) (Stern 1:31; 3).
27
M562a (Cowlitz), Adamson:220-221; M562b,c (Chehalis), Ibid.:33-40; M652d (Cowlitz), Ibid.:185-
188; M562e,f (Snuqualmi-Puyallup), Ballard 1:137; M563a (Sahaptin), Jacobs 1:179-183; M563b (Lilloet), Teit
2:323-325; M563c,d (Thompson), Teit 4:66-67, 5:247-248); M563e (Shuswap), Teit 1:678-679. Cf. infra:429.
HN 119
O jovem Lince vivia com sua avó. Um dia, ela o mandou à casa de um
velho vizinho, para perguntar em que mês estavam, e quando chegaria a
primavera. O velho respondeu: "Diga a ela que este mês se chama: a
gente trepa-trepa-trepa". Humilhado por uma réplica tão grosseira, o
menino, chorando, saiu correndo e repetiu a mensagem. A avó fingiu ter
ficado furiosa, vestiu todos os seus adornos e disse que ia dar uma bronca
no vizinho.
Nem bem chegou e o velho, sem escutar uma palavra do que ela
dizia, convidou-a a montar, e ela o fez. Ela tinha avisado o neto de que
ele escutaria todos os tipos de barulho enquanto ela tomava satisfações
do vizinho, mas era tamanha barulheira que saía da casa que ele correu
para lá, e viu a avó numa posição indecente.
Revoltado com esse espetáculo, o jovem herói besuntou a casa de
resina e ateou-lhe fogo. Quando ouviu a bexiga da avó explodir no fogo,
afastou-se.
Em seu caminho, encontrou um pedaço de carne bem cozida e comeu.
Depois, foi beber água num riacho ali perto. Para a sua surpresa, todos os
seus dentes se soltaram e cairam na água. Ele os recolheu, fez um
embrulho, e foi embora.
Foi dar na casa de uma Ursa Grizzly que o chamou de marido e lhe
pediu os dentes em troca dos dela, que eram bem grandes. O herói
concordou, e enfiou os dentes na gengiva. No dia seguinte, chegou à casa
de uma Ursa de outra espécie, que também o pediu em casamento. Mas,
antes de os cônjuges se deitarem, apareceu a mulher-grizzly, para
devolver ao herói seus dentes. A segunda mulher-urso desejou-os
imediatamente e conseguiu trocá-los pelos dela. O mesmo aconteceu no
dia seguinte, na casa de uma Dona Puma, onde Ursa apareceu de repente
para devolver os dentes trocados na véspera, e depois na casa de uma
Dona Lontra, aonde Dona Puma foi para devolver o que tinha tomado
emprestado.
Finalmente, o herói encontrou cinco irmãs Camundongos, brancas e
formosas, e casou-se com elas. Apareceu Lontra, para devolver os dentes
do herói e pegar de volta os seus. Mas os dentes que ele deu a ela eram,
na verdade, os primeiros que tinha recebido, isto é, os da ursa grizzly.
Temendo a cólera da ogra lesada, as Camundongos cavaram um tunel
subterrâneo para fugirem com o marido. Enquanto isso, a Ursa Grizzly
atacava as outras esposas animais. Ela não encontrou a segunda ursa
que, desconfiada, tinha ido tomar banho no rio, mas matou as outras
mulheres. Depois, perseguiu as Camundongos, e foi pegando e matando
uma por uma. Antes de morrer, cada uma delas confiava o herói à que
estava à sua frente no túnel. A mais nova, que era a primeira da fila,
conseguiu escapar com ele.
Exausta, com calor e com sede, a Ursa Grizzly foi se refrescar num
lago, onde viu o relfexo de suas duas vítimas. Achou que estivessem no
HN 120
Para analisar de maneira útil esse mito, convém examinar antes os outros tipos. Observaremos
apenas que o incidente da bexiga explodida, invertendo os corações ejetados do ciclo de Dona
Mergulhão (por uma razão que aparecerá mais adiante), é esclarecido do ponto de vista
sintagmático por meio de uma versão dos Salish costeiros, portanto proveniente de populações
vizinhas dos Klikitat na encosta ocidental das Cascades. Nela, o herói se chama Guaxinim e perde
os dentes por ter, como nessa versão, apanhado e comido um pedaço de carne cozida, que não é
senão a vulva de sua avó, lançada longe pelo calor da fogueira (M562a, Adamson:220-221). A
vulva e a bexiga parecem ser, portanto, duas variantes combinatórias de um mesmo mitema, cuja
função pertinente transpõe para o registro alimentar uma conexão incestuosa que, como
veremos, as outras versões do mito situam no registro sexual.
Vizinhos dos Sahaptin, os Chinook e os Salish costeiros também conhecem esse mito, mas às vezes
substituem a coleta de bolotas por uma coleta de gafanhotos, que o herói tampouco compartilha
com a avó (Adamson:43), ou fazem a busca por alimento começar com o encontro com o animal
HN 121
monstruoso, grizzly ou cervo, que o herói — aqui chamado Cambaxirra ("Wren", um pequeno
passarinho insetívoro) — mata atravessando-lhe o corpo da boca ao ânus, em vez de fazer o
contrário (M564, Jacobs 2, I:199-207). O estudo de todas as comutações, longo demais para ser
empreendido aqui, certamente mereceria ser feito. De modo que fica claro que a resposta
grosseira do herói de M563a à pergunta do urso grizzly, "onde fica o vau?", transpõe em termos de
espaço a que o velho de M561 dá ao herói quando ele lhe pergunta em que mês estão e quando
começa a primavera, estação que é também a mais fácil de atravessar. Num caso, a provocação
esconde um desejo de ordem alimentar, e no outro, um desejo sexual; um se refere ao ânus
abrindo-se para soltar gases, o outro à vagina se abrindo para receber o pênis. Em M563a, o
pedregulho que espirra prefigura, por uma inversão do mesmo tipo, o incesto que outras versões,
a serem examinadas em seguida, imputam à própria velha com o neto.
Do mesmo modo, a travessia subterrânea do herói de M561, guiado pelos camundongos, e
graças à qual ele escapa do grizzly homicida, ecoa a travessia que ele faz quando procura matar
o mesmo ogre atravessando-lhe o corpo por um outro túnel, o tubo digestivo. Os mitos jogam
constantemente com a ambigüidade da noção de consumo, ora tomada no sentido próprio e
alimentar, ora no sentido figurado e sexual, o que fica bastante evidente na bronca que o herói
dá na avó, numa versão salish (M562d, Adamson:186), quando a surpreende em suas atividades
com o único pedaço de carne que ela concordara em carregar: "É para comer, não para casar!" Ao
que retruca a velha: "Eu precisava usá-lo, já que você se recusa a dormir comigo!" E o herói
replica imediatamente: "Vovó! Estou com fome!", subentendendo um apetite de ordem sexual
que inverte o consumo alimentar da vulva da avó em M562a. Essa réplica nos leva à terceira das
formas que anunciamos.
Cambaxirra e a avó paterna não tinham mais nada para comer. A velha
mandou o neto caçar. Ele, com invocações mágicas, foi fazendo aparecer
animais cada vez maiores. Quando o cervo se apresentou, ele o matou
atravessando-lhe o corpo várias vezes do ânus à boca e inversamente, e
arrancando a gordura que envolve o coração em cada passagem. Na hora
de carregar a carne, a avó só aceitou levar a traseira, e assim que ficou
sozinha, instalou-se nela para copular.
Cambaxirra a surpreendeu e arrancou-a dali. Voltaram para casa,
jantaram e deitaram, cada um de um lado do fogo. O rapaz começou a
sonhar em voz alta: "Ah! Se uma mulher klamath viesse dormir
comigo!...". "Meu corpo é metade klamath", declarou a avó. E subiu no
neto.
Logo eles ouviram um ruído de remos. Separaram-se, a contragosto, e o
rapaz foi ao encontro dos viajantes para saber das novidades. E eles
disseram:"Ah... dizem que Cambaxirra dormiu com a avó..."
Envergonhado e furioso por ter sido descoberto, o rapaz voltou para casa,
enrolou a avó no couro do cervo e a jogou na água.
Bem longe, rio abaixo, o cadáver foi pescado e reconhecido. Três xamãs
tentaram ressuscitá-la. Só o último conseguiu. Conseguiu até livrar a
HN 122
velha de sua pele enrugada, junto com o couro de cervo com o qual ela
se confundia, mas não conseguiu lhe devolver os dentes. Enquanto ficasse
de boca fechada, ela tinha a aparência de uma moça jovem e bonita.
Ofereceram-na em casamento a Cambaxirra. Ele a viu, gostou dela, e
desposou-a.
Tinham-lhe recomendado levar o couro de cervo onde quer que fosse com
a esposa, e ela prestava atenção para não mostrar as gengivas, mas um
dia, Cambaxirra fazia cócegas nela, ela não resistiu e riu, abrindo a boca.
O couro de cervo imediatamente saltou sobre ela e a recobriu, como uma
pele enrugada. O rapaz reconheceu a avó. "Zombaram de mim", disse, e
jogou-a na água pela segunda vez.
Mas dessa vez não conseguiram ressuscitá-la novamente. (Jacobs 2, I:199-
207; cf. M566d, Boas 10:119-122).
Para essa terceira forma do mito, que leva a libertinagem da avó até o incesto, também seria
proveitoso fazer um inventário detalhado das comutações. A avó às vezes é um camundongo
(M562e,f; Ballard 1:137), ou um animal sazonal, pequeno pássaro que anuncia a chuva
(Abamson:31 n.2, 188) ou um pássaro das neves (/spi'tsxu/, cf. M652, infra:441), que precisa de
pouco alimento para sobreviver, e que o neto não perdoa por querer que ele se contente com
uma porção equivalente à sua (M562a; Adamson:220). Numa versão proveniente do rio Chehalis,
em compensação, a velha é uma gulosa, cujo apetite insaciável é responsável pela miséria do
neto (M562b; Adamson:35).
Às vezes acontece de essa penúria de alimento, que constitui um dos traços invariantes
do grupo, ser conseqüência dos acontecimentos narrados pelos mitos, em vez de sua causa. Em
versões salish (M562c,d; Adamson:36-40, 187-188), por exemplo, as zombarias dos canoeiros
degeneram em briga, durante a qual a avó empurra sem querer o neto, em vez de seu adversário,
no fogo, e ele morre queimado. Ela o ressuscita, colando os ossos meio carbonizados com resina,
mas ele comete a imprudência de tomar um banho de sol, e o calor o derrete. "Se ele não tivesse
sido queimado, teria permanecido um pássaro grande, e talvez hoje os caçadores matassem a
caça do mesmo modo que ele tinha matado o cervo gigante. Mas suas cinzas deram origem ao
cambaxirra, um passarinho bem pequeno". Trata-se, conseqüentemente, de explicar porque e
como a caça tornou-se difícil.
*
* *
libertina, que é torta, exige que o parceiro cave um buraco onde ela possa acomodar a corcunda
ao deitar-se (M562c,d; Adamson:39, 187).
As versões tillamook (M565a, Boas 14:34-38; M564b-g, E. D. Jacobs:45-72) estabelecem
uma conexão entre os dois grupos, ainda mais significativa na medida em que esse pequeno grupo
— de língua salish, como aqueles em que a história da avó libertina é tão importante — se
encontrava isolado no sul, a meio caminho da área ocupada pelo mito de Dona Mergulhão. Essas
versões, ricas e complexas, mereceriam um estudo específico. Aqui apenas notaremos que elas
fundem numa única narrativa a história da avó libertina, a de Dona Mergulhão e a do menino
salvo da fogueira, de que o pai adotivo engravida e a que dá a luz (ou seja, o herói que os
Klamath-Modoc promovem ao papel de desaninhador de pássaros). Mas nesse caso, uma ogra de
bom coração, chamada de Dama Selvagem, consegue, com algum esforço, roubar duas crianças.
Ela as cria e os condena a tornar-se um casal incestuoso como punição por terem descoberto suas
relações clandestinas com um velho marido de quem ela está declaradamente separada. Por isso
ela transforma a neta (que é a mais nova das crianças, mas toma todas as iniciativas) num
equivalente funcional de Dona Mergulhão. E mata o neto. Aos prantos, a jovem viúva de um
"irmão pelo alto, marido por baixo" tenta se matar, e se joga com o filho numa fogueira. Um
personagem sobrenatural chamado Águia-Calva salva o menino, o esconde debaixo dos testículos
e o entrega à esposa para um parto simulado. Numa outra versão (M565e, l.c.:65-67), Dama
Selvagem comete ela mesma o incesto com seu irmão. Dispomos, portanto, de uma série
considerável de variantes que poderiam ser ordenadas, para ilustrar as etapas da transformação
que leva do ciclo de Dona Mergulhão ao da avó libertina. Pois esta última ora aparece como uma
irmã incestuosa, ora como a responsável por uma irmã — sua neta, no caso — cometer incesto
com um irmão — que é justamente o neto, com quem ela mesma comete incesto na derradeira
etapa da transformação. Os Tillamook, situados a uma certa distância da área de distribuição do
mito, certamente não conhecem Dona Mergulhão pelo nome. Mas conservam-na, invertendo um
elemento característico de sua história: a irmã incestuosa é delatada pelas manchas de resina
preta em seu pescoço branco (l.c.:66), ao passo que, nos confins da área, a mulher infratora é
descoberta por causa dos tufos de pelo branco, provenientes de pele do irmão, coladas na resina
preta que (em maior conformidade com a verdade zoológica) funciona como fundo, em vez de
figura (cf. supra:103, 132)28. No outro extremo da área de distribuição, a versão maidu (M554)
fundamenta a origem das relações incestuosas; como seu eco derradeiro repercutindo a oeste, a
versão tillamook (M565d, l.c.:62) fundamenta a origem de sua proibição: "Está vendo? — exclama
a avó. Tudo acaba sendo descoberto... De agora em diante, será impossível fazer amor com um
parente próximo em segredo. É errado fazer isso, meu neto. Não vamos mais fazer".
28
Outros exemplos são conhecidos de transformação invertendo uma imagem positiva em seu
negativo, como uma placa fotográfica. No mesmo mito, por exemplo, o pássaro junco tem um colar de
contas pretas entre os Yokuts e os Mono ocidentais, e uma túnica branca entre os Paiute de Owens Valley,
que são seus vizinhos imediatos (cf. Gayton & Newman:47; Steward:407).
HN 124
Resulta das considerações acima que um incesto por assim dizer "vertical" — já que une
parentes em linha direta — transforma o incesto de tipo "horizontal" — isto é, entre parentes
pertencentes à mesma geração — que constitui o tema da história de Dona Mergulhão.
Ora, bem no início destas Mitológicas, tínhamos localizado exatamente a mesma
transformação entre o mito de referência M1 (ele mesmo transformável na história de Dona
Mergulhão, cf. supra:97-98) e um outro mito bororo (M5), cujos protagonistas também eram uma
avó e seu neto, ilustrando uma espécie de casal anti-natural. Naquele mito, como neste, a avó
monta no neto, certamente não um incesto (no qual reconhecemos o contrário de um outro
incesto), mas o contrário de um incesto, já que ela o empesteia com gases intestinais. Isto é,
uma transformação das relações incestuosas, que os mitos norte-americanos recuperam por
outras vias: a avó copula ao contrário, em vez de fazer o contrário de copular. Eles dão a ela o
papel ativo e, em várias versões, a posição superior no coito. Além disso, M563a atribui ao herói
uma resposta grosseira ao urso grizzly (em que M560 transforma uma avó canibal em vez de
incestuosa ou, mais precisamente, que comete um incesto na pessoa de outrem): "Onde o teu cu
se abre para peidar!". Resposta que, como determinamos de forma independente, se inscreve
numa permutação em que se inserem também o incesto (sexual) e a gula (alimentar).
Portanto, é altamente significativo, quanto a isso, que os mitos da América tropical e os
do hemisfério boreal revelem a mesma armação. Em M560, uma avó transforma a neta em irmã
incestuosa e a si mesma em ogra. Em M562b, ela primeiro é gulosa por comida, depois
incestuosa. E M5 é composto por duas seqüências sucessivas, a primeira apresentando uma avó
incestuosa a seu modo, e a segunda, sua neta, que a sucede e reproduz na forma de uma gulosa,
quase uma ogra (cf. CC:67-73). Mas há mais: a primeira seqüência de M5 se refere a uma avó que
peida na boca do neto, e que ele mata enfiando-lhe uma flecha no ânus. Simetricamente, uma
das versões tillamook (M565g, E. D. Jacobs:70-72; cf. também Wishram in Sapir & Spier 2:279)
mostra um neto que defeca na comida da avó e que em seguida a mata, enfiando um bastão
pontudo em sua boca aberta. Segundo M5, os tatus, animais fuçadores e comedores de carniça,
enterram secretamente o cadáver na casa da família, bem debaixo da esteira onde dormia a
defunta. Em M565g, com a mesma simetria, sua homóloga morre no mato, os fragmentos
espalhados do cadáver se agarram às árvores, e dão origem aos cogumelos.
M5 se refere à origem das doenças, exaladas por uma mulher gulosa de peixes, que ela
não consegue evacuar naturalmente. Antes, explica o mito, as doenças eram desconhecidas; seu
aparecimento, obviamente, encurtaria a duração da vida humana. Aí reside mais uma
aproximação entre o mito bororo e o ciclo norte-americano da avó libertina. Como já deve ter
sido notado, todas as versões concluem com o envelhecimento prematuro ou a impossibilidade de
ressuscitar os mortos. O que esclarece a razão pela qual o ciclo da avó libertina inverte
metodicamente o de Dona Mergulhão: símbolos da ressurreição, os corações incombustíveis dos
parentes mortos por uma irmã culpada de incesto sexual se transformam, de modo perfeitamente
HN 125
plausível, em bexiga (M561) ou em vulva (M562a) assada no ponto de uma parenta morta por um
descendente que será culpado de incesto alimentar, ao comê-la.
Essa comparação entre mitos provenientes dos dois hemisférios apresenta um outro
interesse do ponto de vista do método. Com efeito, veremos que, por intermédio dos mitos
norte-americanos, torna-se possível detectar uma ligação que não estava tão evidente no início,
entre o mito bororo M5, transformação de M1, e um grupo de mitos jê {M87-M94}, que
transformam um outro {M7-12}, que por sua vez, como tínhamos demonstrado
independentemente, transforma M1. À luz do grupo norte-americano {M560-M564}, percebemos
agora que M5, como {M87-M94}, também é um mito de origem da vida breve. Aliás, {M87-M94} a
atribuem à intervenção de uma criatura celeste que se torna esposa de um mortal e, além disso,
nutriz, pois é ela que revela aos homens as plantas cultivadas. Simetricamente, M5 atribui a
origem das doenças, e também da vida breve, portanto, a uma criatura terrestre (ou aquática),
irmã de um mortal e anti-nutriz, já que priva os homens do produto da pesca devorando ela
mesma os peixes crus. Uma é uma estrela que se transforma em esposa humana para realizar o
desejo do futuro marido. A outra é uma irmã humana que, por vontade dos irmãos, se transforma
em arco-íris (cf. CC:252-257).
*
* *
Quando discutimos o tema da vida breve nos mitos sul-americanos, constatamos que eles o
desenvolviam ora na forma do rejuvenescimento ou ressureição que se tornam impossíveis, ora na
forma, complementar, do envelhecimento prematuro (CC:168-171). Os mitos norte-americanos
do ciclo da avó libertina preservam essa distinção, pois no primeiro tipo (vizinho provocante) um
herói muito jovem perde subitamente os dentes, tornando-se um velho prematuro, ao passo que
no tereceiro (avó incestuosa) uma protagonista muito velha consegue livrar-se das rugas. Mas
nem mesmo os xamãs mais renomados conseguem devolver-lhe os dentes, e essa carência é
responsável por uma segunda morte, após a qual não há mais ressurreição (comparar M651 e
M564, supra:146 e 149). Note-se, aliás, que os Salish costeiros concebem uma oposição do mesmo
tipo entre a morte por doença e a morte por decapitação: só a segunda é irrevogável (Ballard
1:137-138; Adamson:24, 167).
O fato de a perda dos dentes fornecer o argumento do envelhecimento prematuro ou da
ressurreição impossível se combina com uma mitologia (cf. CC:197-199 e supra:34; infra:341) que
trabalha, como na América tropical, com a oposição entre os olhos inamovíveis por natureza e os
excrementos, amovíveis por destino. Ninguém pode se desfazer dos olhos, ao passo que os
excrementos devem ser evacuados a intervalos regulares. Entre o olho inseparável e o
excremento separável, os dentes ocupam uma posição intermediária: o envelhecimento separa
pouco a pouco o indivíduo de sua dentição, embora ela parecesse ser parte tão integrante de seu
HN 126
corpo quanto os olhos. Expressão negativa da periodicidade que rege a vida humana, o dente
também inverte o feto, cuja separabilidade do corpo a que parecia pertencer atesta a mesma
periodicidade, mas aqui de forma positiva, garantindo a perpetuação da espécie. Do ponto de
vista coletivo, a separação do feto no parto equivale, portanto, à separação do coração
incombustível, apesar da destruição do cadáver, como penhor e meio da imortalidade individual.
Assim se explica a transformação em três etapas que percebemos nos mitos, que gera o golpe de
cacete do demiurgo afastando o bebê da fogueira e a paleta ou o cesto da irmã criminosa,
empurrando para ela ou tirando dela os corações de seus parentes (supra:97). Vimos também que
certas versões do mito de Dona Mergulhão fazem renascer um coração na forma de uma
criancinha (M553, supra:107). A resistência do coração à combustão é um dado da experiência,
que podia ser observado quando da cremação dos cadáveres (supra:49 n. 1). Para validar a
coerência do sistema, vale notar que, nos limites da área onde prevalecia a cremação, o mito de
Dona Mergulhão transforma os corações em olhos (M547), e ressuscita os mortos por imersão em
água fria (M554) em vez de ebulição, ou seja, um modo do cru em lugar de um modo do cozido.
Os mitos jê de origem da vida breve a associam à introdução das plantas cultivadas, por
sua vez função positiva da união entre uma estrela e um mortal, que ocorre no eixo cosmológico
do alto e do baixo. As tribos norte-americanas que contam a história da avó libertina não
cultivam a terra. Mas seus mitos evocam a união entre uma avó e um neto — situada, portanto,
também num eixo alto-baixo, embora genealógico —, para tirar daí conseqüências de que
enfatizam o aspecto privativo, a proibição do incesto, inaugurando a vida em sociedade; e a
perda da caça milagrosa realizada por meios naturais, de que resulta uma caça trabalhosa, a
única que os homens que atingiram o estado de cultura poderão praticar (cf. supra:150).
É o momento de lembrar que todos esses mitos começam num período de penúria. Os
dois protagonistas não têm mais nada para comer, devido a circunstâncias externas ou em
decorrência da gulodice ou do descuido de um deles. Segundo versões chinook (M566a, Boas
7:142-153; M566b, Sapir 1:153-165; M566c, Jacobs 2, II:423-430; M566d, Boas 10:119-122; M566e,
f, Ray 4:146-151), também registradas entre os Klamath (M566g, Stern 1:39), Guaxinim se cansa
de coletar bolotas no verão porque sente muito calor, e, para ir mais depressa, deixa de triá-las,
e pega também as que estão bichadas29. Quando chega o inverno, deixa só as bichadas para avó,
o que causa a primeira discussão entre eles. A segunda ocorre no verão, quando ele lhe dá bagas
que encheu de espinhos, o que provoca a transformação da velha num galináceo, provavelmente
Bonasa sp., que, como iremos mostrar mais adiante, simboliza o aparecimento da vida breve nos
mitos dessa região. Esse motivo também existe entre os Bororo (cf. M21, CC:102-103): em ambos
os casos, os animais nos quais um ou vários humanos se transformam depois de terem ingerido
frutos cheios de espinhos são criaturas a meio caminho entre a humanidade e a animalidade
29
Vimos que no ciclo de Dona Mergulhão, que inverte o da avó e do neto, o bicho de bolota, ao
contrário, possui uma conotação positiva (supra:99).
HN 127
(porcos do mato) ou entre a vida e a morte (galináceos). A avó da versão kalapuya (M567, Jacobs
4:130-133) também é uma galinácea, cujo neto Guaxinim não faz sofrer de fome, mas de sede,
porque está ocupado demais comendo lagostins e conchas para pegar a água que ela pediu. Ela se
transforma em pedra na versão klamath (M566g), em pedra ou galináceo nas versões coos (M568,
Jacobs 6:172-173, 181).
Outras aproximações entre mitos norte- e sul-americanos da vida breve são ainda mais
significativas, na medida em que não dizem respeito somente à mensagem, e colocam em
evidência propriedades compartilhadas da armação. É preciso retomarmos em detalhes o episódio
de M651 no qual o herói vai trocando seus dentes pelos de sucessivas esposas animais. Apesar de
sua aparência barroca, esse episódio apresenta uma construção de lógica impecável, cujo
esquema é escrupulosamente respeitado pelos mitos dos dois hemisférios.
Comecemos por voltar atrás. Para não morrer, o herói bororo do mito de referência M1
deve enfrentar quatro desafios. Os três primeiros, homólogos entre si, envolvem instrumentos
musicais que ele deve trazer do mundo dos mortos sem fazer barulho. O herói consegue, graças à
ajuda de três animais, dos quais o último por pouco não fracassa. O quarto desafio, de natureza
diferente, consiste em permanecer exposto à sede e à fome no alto de um rochedo. Ele também
o vence, graças ao auxílio material e moral da avó (que deu a ele sua bengala e ensinou-lhe um
remédio), embora chegue perto da morte, por culpa do pai que, cortando todos os caminhos de
fuga do filho, na esperança de acabar com ele, revelou-se como ogro metafórico. Deixamos esse
aspecto de lado em O cru e o cozido, não porque fosse dispensável para a demonstração, mas
simplesmente porque nos tinha escapado. Mais uma vez, a comparação entre mitos provenientes
de regiões bastante afastadas ilumina de modo inesperado detalhes que permaneciam obscuros
quando considerados independentemente.
Para demonstrar a unidade do grupo formado pelos mitos relativos à origem do cozimento
dos alimentos e à vida breve, tinha bastado transformar as três primeiras provas descritas por M1
nas que aparecem em outros mitos. Como M9, por exemplo, no qual, para evitar que a
humanidade tenha de se submeter à vida breve em troca do fogo de cozinha que lhe é dado pelo
jaguar, o herói, ouvindo três chamados, deverá responder apenas aos dois primeiros, que vêm da
pedra e da madeira dura, mas não ao "doce chamado" da madeira podre. De modo que nesse caso
também há três desafios sucessivos de mesma natureza, e que só podem ser diferenciados pela
intensidade acústica própria. Como no mito de referência, acrescenta-se um quarto desafio: o
herói enfrenta um ogre que consegue surpreendê-lo assumindo a aparência de seu pai, mas
escapa dele graças à argúcia. Entre M1 e M9, conseqüentemente, além de as três primeiras
provas se reproduzirem, já que se trata, para o herói, de evitar fazer ou ouvir barulho, a quarta
também é a mesma, já que resulta ou da irrupção de um pai fazendo o papel de um ogre (M1) ou
de um ogre fazendo o papel de um pai (M9).
HN 128
Essa afinidade suplementar entre dois mitos do Brasil Central não se apresentaria com
tanta clareza se um mito norte-americano, relativo à origem da vida breve, como M9, não
apresentasse a mesmíssima construção; a única diferença é que o quarto e último desafio de um
é o primeiro do outro. Vejamos isso mais de perto (fig. 14).
M9
(carne humana)
PEDRA
o herói deixa para o
ogre uma pedra em
seu lugar
MADEIRA PODRE
(plantas cultivadas)
M561
(carne humana)
GRIZZLY
o herói deixa para a lontra
seus dentes de grizzly em
lugar dos dentes dela
LONTRA URSA
(peixe) (frutos selvagens)
PUMA
(carne animal)
Depois de ter perdido todos os seus dentes, transformado num velho à beira da morte, o herói
recupera os atributos da juventude obtendo uma dentadura de reposição: troca seus próprios
dentes cuidadosamente recolhidos no fundo da água onde tinham caído, com uma mulher grizzly,
com quem ele se casa. Sabemos quem é essa mulher ou, para sermos mais precisos, sabemos qual
é a sua função semântica no grupo. Ela equivale à avó que assassina o neto e se transforma em
grizzly ou — numa substituição da metonímia pela metáfora — se comporta como uma ursa grizzly
por copular com um pedaço de um macho dessa espécie. Para reencontrarmos o quarto desafio
dos mitos sul-americanos, basta, portanto, transformar:
HN 129
M1 M9 M561
(pai transformado em ogre) => (ogre transformado em pai) => (avó transformada em ogra)
Vêm em seguida três provas homólogas entre si, como as três primeiras provas de M1 e
M9, com uma semelhança sumplementar, o fato de a terceira sempre terminar num quase
fracasso. Em M1, o gafanhoto cúmplice volta quase morto, conotando, portanto, uma condição
intermediária entre a vida e a morte, que ilustra a seu modo a duração abreviada da vida humana
(cf. CC:211-212). Em M9, o herói se engana e responde ao chamado da madeira podre, apesar das
recomendações do jaguar, e assim provoca o surgimento da vida breve. Finalmente, em M561, ele
quase consegue ficar com os dentes de grizzly em lugar dos seus, já que consegue inseri-los nas
próprias gengivas no início. Ele pode, por conseguinte, obter sem dificuldade os dentes de suas
outras esposas, em troca dos seus que permaneceram disponíveis, e que basta entregar a cada
nova parceira assim que a anterior os devolve. Contudo, na última transação, ele comete o erro
fatal de entregar à mulher Lontra, em troca dos seus próprios dentes, que ela traz, os dentes de
Grizzly. O que isso significa?
Entre os humanos e os animais, o mito seleciona uma diferença entre outras: uns perdem
seus dentes ao envelhecerem, os outros não. Em outras palavras, os humanos envelhecem, ao
passo que os animais permanecem jovens até a morte. Substituindo seus dentes pelos dentes de
animais, o herói, que ficou velho precocemente, procura não apenas recuperar sua integridade
física, mas também garantir para si uma juventude prolongada.
Falha, por duas razões. Primeiro, suas sucessivas transações são feitas com animais cada
vez menores e mais próximos do homem pela dieta. Se a lontra aparece como última da série,
não é só porque é pequena e tem hábitos pacíficos. Esse animal se alimenta de peixes, alimento
principal das tribos que eram donas ou freqëntadoras dos principais locais de pesca no rio
Columbia. Em segundo lugar, ao entregar por descuido os dentes do grizzly em troca dos seus, o
herói volta à estaca zero, por assim dizer: sua esperança de vida longa é definitivamente
destruída. Note-se, aqui, a simetria entre esse simbolismo e aquele tão apreciado pelos mitos sul-
americanos sobre a vida breve (M79-M85), que teria sido mantida, dizem eles, se os homens
tivessem conseguido imitar os animais — répteis e insetos — que conseguem permanecer jovens
trocando de pele. Nesse caso, o prolongamento da juventude teria resultado, se tivesse sido
possível, da imitação de animais que, à diferença dos homens, não perdem os dentes. Teremos a
oportunidade de ver, aliás, que na região da América do Norte que nos interessa, as duas
fórmulas simbólicas existem lado a lado.
Mostramos, em O cru e o cozido (:160-161), que as três matérias que dirigem chamados
ao herói, pedra, madeira dura e madeira podre, conotam respectivamente a carne humana, a
carne animal e as plantas cultivadas, em concordância com um outro grupo de mitos jê de origem
HN 130
da vida breve (M87-94), que situam sua origem na época em que as plantas cultivadas foram
introduzidas. As trocas dentárias (em vez de acústicas) de M561 também estão relacionadas à
alimentação. O urso grizzly, o mais forte e mais temido dos animais dessa região do mundo, que
tinha de ser caçado no corpo-a-corpo (Ray 3:188; Jacobs 4:21-23), goza de uma sólida reputação
de canibal. Por isso, sua carne era proibida pelos Kalapuya (l.c.:23) e pelos Salish de Puget Sound
(Eells 3:618; M.W. Smith 2:246). A mesma afinidade entre a carne de grizzly e a carne humana se
exprime também por vias mais secretas. Os mesmos Salish, que matavam ursos grizzly, mas não
comiam sua carne, incineravam o cadáver do animal, embora não praticassem a cremação
(Elmendorf 1:116-117), uma prática simétrica à crença dos Pomo mais ao sul, de que os
cadáveres humanos não cremados se transformavam em ursos grizzly (Gatschet 1, I:86).
Mitos que discutiremos mais adiante (quarta parte, II, III) opõem à ursa grizzly (Ursus
arctos) a ursa comum (Ursus americanus), coletora-modelo de bagas e outros frutos selvagens. Os
mitos cujo herói é o puma apresentam-no como o melhor dos caçadores. Assim, as quatro esposas
animais de M561 ilustram uma série ordenada de dietas cuja base é, na seqüência, carne humana
(grizzly), frutos selvagens (ursa comum), carne animal (puma) e peixes (lontra).
Como na América do Sul, o ciclo de mitos sobre a vida breve se desenvolve em dois
registros paralelos. Num, o herói culpado de gulodice mata a avó e queima o cadáver, e em
seguida perde os dentes e sofre um envelhecimento prematuro. No outro, uma avó gulosa no
sentido alimentar, ou sexual, ou ambos, afogada pelo herói, tem uma ressurreição precária, e
não recupera os dentes que a idade a fez perder, o que significa que, para ela, a juventude é
impossível de recuperar. A partir daí, as narrativas das duas Américas respeitam
escrupulosamente o mesmo esquema, como mostram os diagramas da figura 14. O herói tem três
encontros sucessivos, que ocasionam provas das quais ele se sai mais ou menos bem. M9 o expõe
a uma troca de mensagens com a pedra, a madeira dura e a madeira podre. M561 também o
envolve numa troca, mas de dentes, com um grizzly, um urso e um puma. Em ambos os casos, o
herói tem, em seguida, um quarto encontro, por ocasião do qual enfrenta um perigo que supera
graças a um elemento guardado do primeiro encontro. Segundo M9, ele encontra primeiro a
pedra e, no final, um ogre, que ele engana, deixando uma pedra no lugar de seu próprio corpo,
que o ogre estava prestes a devorar. Segundo M561, ele encontra primeiro o grizzly e, por final, a
lontra; e ele próprio se engana, dando a ela dentes de grizzly em vez dos dela, em conseqüência
de que a ogra lesada se prepara para matá-lo... mas sem devorá-lo, pois que ela não tem mais
dentes, e seus recursos de mastigação parecem estar limitados aos sapos que ela esmaga entre as
gengivas, para livrar deles sua cabeça, que eles infestam como piolhos.
No mito jê, conseqüentemente, em lugar de si mesmo, o herói dá ao ogre uma pedra,
matéria metafórica de seu canibalismo. No mito sahaptin, o herói tira da ogra o meio metonímico
de seu canibalismo, que são seus dentes. Num caso ele escapa, mas o preço disso, para a
HN 131
humanidade, é estar condenada à vida breve. No outro caso, ele morre, porque ele próprio não
conseguiu evitá-la.
Completaremos a presente discussão com uma observação. Tínhamos intitulado "fuga" a
seção de O cru e o cozido consagrada aos mitos sul-americanos de origem da vida breve, e essa
aproximação (entre outras) da estrutura dos mitos com certas formas musicais acabaria
provocando reações de desdém. Contudo, ela nada tinha de arbitrária, e a análise das versões
norte-americanas confirmaria, se fosse preciso, a tese de que a música ocidental descobriu
tardiamente, e recuperou a seu modo, transpondo-as para um outro registro, tipos de construção
que os mitos já utilizavam havia milênios, em formas plenamente elaboradas. Basta considerar o
diagrama da figura 15 para se convencer de que, como os mitos homólogos da América do Sul,
M561 apresenta a forma de uma fuga. O tema da troca de dentes se desenvolve por etapas
sucessivas. Cada voz, a cargo de um personagem distinto, responde àquela que a precedeu e,
neste caso de modo literal, corre atrás da que vem em seguida. E a cada vez os graus e cadências
variam, pois que o mesmo tema é retomado por partes em ordem de tamanho descrescente e, do
ponto de vista qualitativo, diferenciadas entre si por seus hábitos, de modo não menos sensível
do que os registros e timbres das vozes ou instrumentos. No caso que estamos considerando,
como naquele evocado acima (p. 100), não falta nem a stretta. Ela começa quando Grizzly, com
quem a peça abriu, se lança e vai alcançando, uma após a outra, para reduzi-las ao silêncio, as
sucessivas intérpretes do tema. Depois, a intriga recapitula, num movimento precipitado, as
etapas da corrida do herói fugindo da morte, numa fuga ainda mais angustiante na medida em
que, em vez de adotar, como no início, os símbolos retóricos de uma juventude eterna, ela
consagra a perda de um ser de carne e osso que cinco esposas, subsumidas no nome de um único
animal, vão passando febrilmente uma para a outra, da mais velha à mais nova, antes de
morrerem, uma depois da outra, e ele no final. A majestosa cadência final conjuga os extremos e
conclui com uma série de acordes arpejados, alternadamente ascendentes e descendentes, para
os quais o eixo alto-baixo serve de pedal. Eles unem — no modo menor, evidentemente — o céu e
a terra, o ar e a água, o aqui e o além, e colocam um ponto final nessa transfiguração não
realizada. Fuga, com efeito, para escapar dos estragos irrecuperáveis da velhice, mas que
empurra os homens para uma outra alternativa (CC:160): escolher entre a decrepitude da idade e
a morte violenta sob os golpes do inimigo.
*
* *
Para tranqüilizar aqueles que porventura se inquietem diante da consolidação de mitos
provenientes de povos afastados em tudo além da distância geográfica, convém notar que, no
noroeste de América do Norte, existem versões sobre a origem da vida breve que se aproximam
ainda mais das formas sul-americanas daquelas que discutimos inicialmente, precisamente
porque a aparente ausência de qualquer semelhança entre elas conferia maior rigor à
demonstração, por obrigar a proceder dedutivamente. Não era possível tratar-se de mitos
simplesmente passados de tribo para tribo ou difundidos por distâncias consideráveis no decorrer
do povoamento da América, mas de enunciados distintos, gerados pelos mesmos esquemas. São
tais esquemas produtores, muito mais do que seus resultados, que importam para nós, para
demonstrar sua generalidade, e também para mostrar o modo como operam.
Os Klamath e os Modoc, pelos quais começou a presente investigação, possuem mitos de
certo modo perpendiculares aos eixos em que se situam {M1-M5} e {M7-M12}, que contam que os
homens receberam ao mesmo tempo o fogo de cozinha e as doenças:
30
Um erro nos índices (p. 429, 432) atribui esse mito aos Klamath, que possuem uma versão diferente
(M471b).
HN 133
alternar. Porém, era preciso fixar sua duração respectiva. Alguns queriam
um inverno de dez meses, outros de apenas dois meses, "porque se o
inverno durar dez meses, as pessoas vão morrer de fome; não conseguirão
fazer provisões suficientes de raízes e grãos". Concordaram, finalmente,
em três meses de frio. Antes de se transformarem em animais, os
ancestrais proclamaram que os futuros humanos ficariam contentes com
eles: "Nós lhes demos o fogo, matamos cinco dos irmãos Sol, encurtamos
o inverno; eles ficarão gratos a nós" (Curtin 1:51-59).
Os três meses mais frios correspondem certamente aos três irmãos do norte, atacados
imprudentemente, numa variante de mesma proveniência (M569a, Curtin 1:60-67), pelo herói
Cascavel, que por isso perde todos os dentes (cf. M560-564), exceto os dois, que se tornarão
venenosos. Por vingança, ele cria e espalha as doenças que a partir de então encurtarão a vida
humana; só as cobras, que trocam de pele, conseguirão curar-se das doenças que contraírem.
Uma terceira versão (M569b, Curtin 1:68-72) tem por protagonistas cinco irmãos
criminosos e detestados por todos, para os quais a irmã atrai a doença, em conseqüência de uma
falta que ela cometera dormindo durante a sua festa de puberdade (M81). Todos acham que eles
morreram, mas eles se recuperam e massacram todos os habitantes do mundo, exceto um casal
chamado Velhice, que não conseguem matar. Passam a ser eles perseguidos pelo casal de
espíritos poderosos, são atingidos pela decrepitude e morrem: "Foi assim que a velhice surgiu no
mundo, o que não teria ocorrido se os irmãos tivessem deixado o velho e sua mulher tranqüilos na
terra deles".
Esses mitos, em que vemos reaparecer a questão das dezenas, tratada no volume anterior
(OMM, VI, 1), associam, portanto, a duração abreviada da vida humana ao aparecimento da
periodicidade em seu aspecto fisiológico (M569b), zoológico (M569a), ou sazonal (M471c).
Vizinhos dos Klikitat, cujo mito M561 começa com a busca do herói pela informação quanto à
chegada da primavera, os Salish de Puget Sound (a que voltaremos quanto a isso, infra:484) e os
Chinook do rio Columbia faziam dela a estação da ressurreição:
Quando a mulher de Coiote morreu, Águia levou seu amigo viúvo para
buscá-la no além. Foram transportados pelo passador até a ilha dos
mortos, no meio do rio Columbia, mas ninguém apareceu. Explicaram-
lhes que os mortos só apareciam nas noites sem lua, quando sua guardiã,
a rã, engolia o astro. Então, eles se divertiam e aproveitavam.
De fato, Coiote avistou a mulher, se divertindo tanto com um compadre
que ele ficou com ciúme. Com a ajuda de Águia, matou a rã, esfolou-a e
vestiu sua pele, mas não conseguiu nem saltar como ela nem engolir a
lua, que ficou atravessada na garganta. Ele cuspiu a lua e, no momento
em que o dia ia raiar e os mortos se retirariam, ele capturou a todos
numa caixa especialmente preparada para isso.
Durante a viagem de volta, Coiote pegou a caixa, que era levada por
Águia. Curioso com o barulho que escutava dentro dela, abriu uma ponta,
e os mortos imediatamente escaparam e voltaram para a sua terra.
HN 134
Coiote só conseguiu agarrar um doente, mas desistiu de ficar com ele. "Se
a caixa tivesse permanecido fechada até o final da viagem — explicou
Águia — os mortos fariam como as árvores, ressuscitariam na primavera"
(Sapir & Spier 2:277-278. Versão wishram in Sapir 1:107-117).
Reencontramos aqui a problemática de certos mitos sul-americanos sobre a origem da vida breve
e a impossibilidade da ressurreição dos mortos (M79, M85, M86; CC:164-171). Mas não é só isso.
Mitos provenientes da mesma região da América do Norte interpretam a vida breve em termos de
código acústico, como M9, M70, M81, M85 e M86, e de um modo especialmente significativo, na
medida em que, como observou Boas (15:486-491), os mitos sobre a origem da morte são
bastante raros na América do Norte, e notadamente inexistentes em toda a parte oriental.
papel principal, e de sua falta consistir em emitir ruído em vez de receber, como nos mitos de
origem da vida breve cujo protagonista é esse mesmo enganador.
Coiote, atingido no rosto várias vezes seguidas por um objeto voador que
ele pensa ser um pato, pega-o, assa-o e come-o. Então ele percebe que
era uma vulva de mulher (cf. M561-562). Quando ele vai beber, depois da
refeição, todos os seus dentes caem da boca, dentro da água.
Ele chega à casa de cinco irmãos Gansos Selvagens, que tinham saído para
caçar, e encontra a formosa irmã deles sozinha. Coiote assume a
aparência de um belo rapaz e se apresenta. A moça o convida para
almoçar, mas como ele não tem dentes, só consegue comer picadinho.
Sua amada logo descobre o problema, e lhe dá dentes de cabrita
montanhesa. Aí, os irmãos chegam da caçada e aceitam Coiote como
cunhado.
Ele insiste para acompanhá-los na expedição seguinte. Mas, apesar das
recomendações que lhe foram feitas, não resiste à vontade de grasnar
como os gansos selvagens. Imediatamente, os irmãos voadores, que o
carregavam pelos ares, deixam-no cair. Durante algum tempo, Coiote
consegue manter-se numa altitude aceitável transformando-se ora em
pena leve ora em galho pesado, conforme considera estar muito baixo ou
muito alto. Mas chega um momento em que ele se engana, cai na água e
se afoga.
A mulher acusa os irmãos de terem matado o marido. Ataca-os com
flechadas e toma o cuidado de proteger o próprio coração no dedo
mindinho. Os três mais velhos morrem (cf. M471c, M569a), mas os dois
mais novos miram no dedinho, e matam a assassina.
Os irmãos sobreviventes partem sem rumo e, quase mortos de fome,
comem as peças de couro de seus arcos. Chegam a uma casa, onde
moram o velho Inverno e suas filhas, que banqueteiam diante deles sem
nada lhes oferecer. Os viajantes pegam suas coisas e vão para a casa do
velho Verão e suas filhas. Os novos anfitriões lhes oferecem uma refeição
tão lauta que eles não conseguem comer tudo. Em seguida, as moças
desembaraçam os cabelos cheios de mato dos dois irmãos e se casam com
eles.
Certo dia, o velho Inverno manda uma filha para a casa do pessoal de
Verão, para saber o que tinha acontecido com os visitantes. Quando ela
se aproxima, o velho Verão assa um pedaço de carne e o lança nas partes
sexuais da moça, que não vestia roupa nenhuma. Ela volta para casa
comendo a carne e, ao chegar, joga os restos para o pai, que come tudo.
Inverno e suas filhas partem em guerra contra o pessoal de Verão.
Atacam-nos com pedaços de gelo, que o velho Verão derrete agitando seu
casaco ou então, segundo uma das versões, vísceras, fígado e pulmão de
cervídeos. Derrotado, e reabastecido de carne por seus generosos
adversários, o pessoal de Inverno se afasta definitivamente (Boas 4:144-
148; cf. Spinden 1:149-152; Phinney:330-338).
M570a-e, segundo os quais teria sido preciso não ouvir o ruído, para escapar de uma morte
violenta ou, pelo menos, para que os defuntos pudessem ressuscitar. Como se se tratasse de uma
contrapartida, a morte que passa a ser inelutável carrega a garantia de que, apesar dos perigos
de um longo inverno, a periodicidade da vida humana acompanhará a periodicidade das estações.
O fato de as armas utilizadas por Verão contra Inverno incluirem vísceras de cervídeo coloca um
problema. Talvez as vísceras só surjam aqui para criar uma oposição maior com os pedaços de
gelo pontudos que armam o campo adverso. Sabe-se que, em toda essa região do mundo, e para
além dela, o fígado cabe aos velhos que, em geral desdentados, mastigam mais facilimente essa
carne macia e sem ossos (cf. OMM:332). A língua klamath classifica as vísceras animais na
categoria dos objetos arredondados (Barker 1:7 n.1), e um mito modoc (Curtin 1:24) opõe os
ossos de cervídeo à carne e fígados, de que se alimentam, respectivamente, o pilão de pedra e o
fogo. Opostas aos corações incombustíveis, portanto do lado do frio, as entranhas apresentam
aqui uma afinidade com o calor. Por mais plausíveis que sejam essas interpretações sugeridas
pela cadeia sintagmática, não se deve esquecer que o mito sul-americano M1 que melhor
corresponde a M571 — no sentido de que ambos adotam a transformação sujeito receptor =>
emissor de ruído e fundam igualmente a origem da periodicidade sazonal — se encerra num
episódio em que um herói (disfarçado de) cervídeo causa a morte do aversário, de que só restam
as vísceras, nas quais fomos levados a reconhecer uma conotação astronômica (CC:249-252;
OMM:28-29, 84-85). É esse paradigma astronômico que vamos agora explorar.
II
PELA VIDA TODA
Além das conexões que nos permitiu evidenciar com os mitos da América do Sul que, como ele,
desembocam no tema da vida breve, o ciclo da avó libertina apresenta outro interesse,
considerável aliás. Do ponto de vista histórico e geográfico, lança uma ponte para a região das
Planícies, e também para a dos Grandes Lagos, cujos mitos vêm, assim, inscrever-se no
prolongamento daqueles que estamos examinando.
No que diz respeito às Planícies, faremos apenas uma sugestão. Há fortes indícios — mas a
demonstração completa disso obrigaria a voltar muito para trás — de que um episódio do ciclo da
HN 137
avó e do neto, para o qual já chamamos a atenção (OMM:214-215), é comutável com o da avó
libertina, como se percebe nas três transformações abaixo:
a) [(feto retirado de um animal fêmea) => (pênis deixado num animal macho)],
b) [(....causa de medo para um neto) => (...causa de prazer para uma avó...)]
c) [(...entregue pelo neto a amantes estrangeiros) => (apropriada por ele mesmo para uma união
incestuosa)].
Nos mitos das Planícies que o contêm, esse episódio evoca uma conjuntura astronômica das mais
importantes para o pensamento indígena, por marcar o momento em que o feto adquire sua
forma definitiva no útero da fêmea do bisão, alguns meses após o cio.
O ciclo da avó libertina também coloca uma questão relativa à renovação periódica das
gerações, mas faz isso de modo negativo: em lugar do nascimento anual dos filhotes de animais,
trata-se da impossibilidade, para os velhos, de rejuvenescer, e, para os mortos, de ressuscitar.
Contudo, o aparecimento de uma periodicidade biológica, que por sua vez condiciona a
procriação, se destaca em primeiro plano entre os Nez-Percé, parentes longínquos dos Sahaptin
no interior, cujos mitos invertem, nesse ponto, os de tribos da mesma família lingüística (Klikitat)
situadas no extremo oposto do território contínuo que os Sahaptin ocupam, entre a cadeia das
Rochosas e a das Cascades.
Esse mito inverte o da avó libertina já no método empregado pelo protagonista para matar a
ursa, aqui uma criatura pacífica, e não uma ogra. Em vez de atravessar ele mesmo o corpo da
ursa do ânus até a boca (M563), ele enfia uma longa agulha em sua orelha, e permanece no
exterior. Guaxinim também come toda a carne, e deixa a avó com fome, ao contrário do que
ocorre em M562b. E, se em M564, o protagonista mata a mãe e embrulha o cadáver numa pele de
HN 138
cervo que vira pele enrugada, sinal anunciador de morte para os velhos, em M572 ela mesma se
cobre com uma pele de grizzly, para provocar a morte prematura de um jovem.
Começando agora uma progressão que nos levará longe em direção a leste, notamos
inicialmente que os Paiute, que conhecem a história da avó (no caso, mãe) libertina, contam que
Coiote acusou uma mulher de estar menstruada para poder ficar com toda a carne, alimento
proibido para as mulheres menstruadas (M573, Lowie 4:136-137, 126). No decorrer do volume
anterior (M501b, OMM:343-44), localizamos o mesmo motivo entre os Menomini, numa forma que
o aproxima duplamente do ciclo da avó libertina. Nesse caso, também se trata de uma avó que
dorme com um urso (vivo, e não morto), sobre cujo púbis o neto lança um coágulo do sangue
desse animal, morto por ele. A avó, por vingança, instaura a menstruação, mas o neto se
aproveita desse estado dela, agora real, para comer toda a carne que consegue e guardar para si
o resto. O incidente do coágulo lançado sobre o púbis de uma mulher nua evoca imediatamente
M571 (supra:165), em que o velho Verão age do mesmo modo para com a filha de Inverno, o que
faz supor que a periodicidade fisiológica das mulheres apareceu ao mesmo tempo que a
periodicidade sazonal, por sua vez ligada, por todos os demais mitos do grupo, à duração
abreviada da vida humana.
A confirmação chega a nós, do modo mais convincente possível, de uma população de
lingua algonquina que vivia na frente dos Menomini, na margem oposta do lago Michigan. Os
Mascouten, com efeito, juntam em sua versão do mito todos os temas que articulamos com
ligações menos diretas:
O demiurgo Wisakä vivia com a avó. Certo dia, quando eles tinham muita
comida, ele manchou de sangue o lugar onde a velha costumava ficar e,
alegando que ela estava menstruada, proibiu-a de comer com ele. Desde
então, as mulheres ficam menstruadas periodicamente, e têm de se isolar
numa cabine afastada. Se não revelarem seu estado e comerem na casa
da família, encurtarão a vida de seus maridos.
Wisakä tinha informado a avó confidencialmente desse perigo. Ela logo
foi contar a uma vizinha, que organizou uma festa e proclamou o novo
costume. Isso deixou Wisakä furioso, porque ele era malvado, e teria
preferido que os humanos ignorassem as precauções a serem tomadas,
pois assim a duração de suas vidas seria reduzida (Skinner 10, III:338-
339).
M574 apresenta uma impressionante simetria para com as versões ocidentais. Em lugar de a
penúria decorrente da alternância sazonal provocar a vida breve, no início do mito, reina a
abundância. O sangue reservado permite ao protagonista afastar de si a avó, em vez de a
abundância recuperada (quando ele mata um animal de grande porte) propiciar a ambos a
ocasião, ou o meio, de se reunirem. Num caso, a vida humana será abreviada em decorrência de
um delito sexual cometido pela avó, que o mito exprime por meio de símbolos alimentares. No
HN 139
outro, o cuidado tomado pela avó para não cometer um delito de ordem alimentar relacionado a
seu estado sexual garante aos humanos uma vida mais longa do que se ela não o tivesse feito.
Podemos, portanto, considerar como dado que mitos que localizamos inicialmente num
setor ocidental da América do Norte se encadeiam, e formam um conjunto coerente com versões
orientais provenientes de tribos pertencentes à família lingüística algonquina. Mais tarde
demonstraremos isso em relação à própria história do desaninhador de pássaros (infra:536). Por
ora, contentar-nos-emos com esse primeiro resultado, suficiente para legitimar uma tentativa
que poderia parecer arriscada, visto que consistirá em interpretar certos aspectos obscuros do
mito de Dona Mergulhão (e, conseqüentemente, o do desaninhador de pássaros, que ele inverte)
a partir de uma transformação, irreconhecível à primeira vista, observável entre algonquinos
orientais.
*
* *
Voltando um pouco atrás. Para demonstrar a posição invertida ocupada pelo mito yana M546 no
seio do grupo de Dona Mergulhão, argumentamos a partir do modo como ele transforma o palco
da intriga. Em vez de começar numa casa de família, M546 situa os protagonistas numa casa
comunal, ou estufa, onde residem também não parentes, e na qual as mulheres não podem
entrar. Como consta que os mitos yana chamam todas as construções de estufa, Kroeber (1:340)
concluiu que, na verdade, tratava-se de casas (supra:95). É possível, mas do ponto de vista que
nos interessa, a questão não é essa. O próprio Kroeber salientou o papel das estufas nas
sociedades californianas: "Os homens ali praticavam sudações cotidianas, um uso social mais do
que terapêutico; era lá que se reuniam, para conversar, e muitas vezes, para dormir... as estufas
eram para eles como clubes... Eram aquecidas com fogo, nunca com vapor emanado por pedras
em brasa molhadas com água... As mulheres não podiam entrar, exceto ocasionalmente, em
certas cerimônias, nas quais os ritos de sudação, quando não estavam completamente ausentes,
tinham uma importância secundária" (l.c.:810-811). Ainda que, para os Yana, todos esses locais
pudessem servir para vários usos, fica claro que M546 define a estufa hic et nunc, por referência
à oposição, fundamental no pensamento californiano, entre casa dos homens e casas de família.
O local em que transcorre a ação é, do ponto de vista do mito, uma casa dos homens ne plena
acepção do termo; desde o início, esse traço opõe o mito yana aos que insistem no caráter
familiar da casa onde vivem os mesmos protagonistas. Em compensação, todos os mitos
concordam em situar no mato a tentativa incestuosa de Dona Mergulhão em relação a seu
adorado irmão.
Ora, essa tríade formada pela casa da família, a casa dos homens e o mato já estava
presente desde os primeiros mitos com que nossa investigação começou. O menino escondido (no
sentido próprio de M5, bem como seu homólogo figurado de M1, resistem em deixar a casa da
HN 140
família e a se instalarem na casa dos homens, única moradia adequada para os adolescentes. Por
sua vez, o incesto real de M1 e M2 ocorre no mato, o incesto ao contrário de M5, na casa da
família, e é para a casa dos homens que M124 (que inverte M1) transpõe o incesto real.
Simetricamente, os mitos de Dona Mergulhão situam o incesto real no mato, mas o menino
escondido fica na casa da família, segundo as versões klamath-modoc, e na casa dos homens, na
versão yana.
Atentemos para a transformação que se opera entre M1 e M124, caracterizada, como
acabamos de lembrar, pelo deslocamento do (ou dos) filho infrator da casa familiar — à qual o
herói de M1 permanece simbolicamente ligado, manifestando assim suas predisposições
incestuosas — para a casa dos homens, para a qual os de M124 atraem sua mãe, para violentá-la.
Essa inversão, seguida, aliás, por várias outras, tinha-nos permitido postular, em O cru e o cozido
(:205-245), uma relação de simetria entre M1 e M124, relação essa que um uso "bem temperado"
das referências astronômicas próprias a cada mito permitiriam verificar. Com efeito, M1 remete à
origem da constelação do Corvo, e M124, à de Orion e das Plêiades. A demonstração externa de
todas as relações de correlação, simetria e oposição que uma análise interna nos tinha levado a
postular entre esses mitos e os que eles transformam ou que os transformam dependeria de duas
condições: que a marcha dessas constelações se prestasse a uma codificação sazonal e que a
etnografia confirmasse que o pensamento indígena as utilizava com essa finalidade. Essa foi, com
efeito, nossa demonstração.
Porém, se isso é verdade para os mitos da América do Sul, e se os da América do Norte
que comparamos com eles por sua vez os transformam, não teremos completado nossa tarefa se
não apresentarmos a mesma demonstração no tocante aos mitos norte-americanos. Mitos da
América do Sul que se transformam mutuamente de modo simétrico, referem-se ao Corvo ou às
Plêiades e Orion. Ou mais precisamente, o desaninhador de pássaros, herói do mito bororo M1, se
transforma na constelação do Corvo e em dono da estação das chuvas, ao passo que os heróis do
mito xerente M124 se transformam nas Plêiades ou numa estrela da constelação de Orion, e
donos da estação seca. Supondo — o que tentamos demonstrar pela análise interna — que a
história do desaninhador de pássaros na América do Sul e na América do Norte constitui um único
mito, deve resultar a inversão de sua mensagem entre um hemisfério e outro, do mesmo modo
que, no mesmo hemisfério, um mito que lhe é simétrico exprime sua mensagem invertida. Entre
um hemisfério e outro, inverno e verão se invertem, de modo que o conteúdo dos mitos tem de
ser igualmente invertido, se quiserem conotar a mesma estação em ambos os casos. Ou, caso os
mitos permaneçam os mesmos — como constatamos em relação à história do desaninhador de
pássaros —, é preciso que ocorra uma inversão de sua conotação sazonal. Em outras palavras,
dado que, no hemisfério sul, M1 conota o Corvo, e M124 — que se pode representar por 1/M1 —,
Orion e as Plêiades, deve seguir-se que, no hemisfério norte, mitos iguais a M1 conotam estas
duas últimas constelações. O simbolismo desses constelações reproduziria, assim, o que possuíam
HN 141
no Velho Mundo, de acordo com os dados da cosmografia, já que a área em que se concentra este
livro se situa, como o mundo greco-romano, entre 40° e 50° lat. N.
Já possuímos indícios de que é exatamente isso o que ocorre. Desde as primeiras versões
utilizadas, o desaninhador de pássaros norte-americano aparecia como dono da água. Nas versões
klamath (supra:31), Aishísh consegue apagar o fogo provocado por seu pai hostil. De modo ainda
mais claro, o herói dos mitos yurok, wiyot e makah (M557-558, supra:134-138), autor ou
anunciador da chuva e da tempestade, lembra o nimbosus Orion que reina no céu noturno de
janeiro, a época mais chuvosa no Oregon (Frachtenberg 2:232 n.1). Mas nenhum desses mitos o
designa como uma constelação. Para mostrar que pelo menos ele desempenha o papel dessas
constelações, procederemos indiretamente. Sabemos que o mito de Dona Mergulhão inverte, na
América do Norte, o do desaninhador de pássaros. Se existir nalgum lugar um mito que inverte o
de Dona Mergulhão e cujo herói é uma constelação, será possível deduzir que esse é também o
papel do herói do mito em relação de inversão, ainda que num outro eixo, com o de Dona
Mergulhão. Tal demonstração elucidará simultaneamente alguns detalhes ainda obscuros dos
mitos anteriormente examinados; além de conferir-lhes uma conotação astronômica, ela mesma
terá sua validade reforçada.
Confiando em tais promessas, perdoe-nos o leitor por transportá-lo brutalmente para a
outra ponta da América do Norte, mas sempre na mesma latitude, conforme requer nosso
propósito. Os representantes mais orientais da família lingüística algonquina no litoral atlântico
formavam o grupo chamado Wabanaki, "gente do sol nascente", que compreendia quatro tribos
principais, Penobscot e Passamaquoddy no Maine, Micmac na Nova Escócia e Saint-Francis ou
Abenaki, na atual fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos. Conhece-se um de seus mitos que
associa o motivo do incesto, o pássaro mergulhão e a origem de uma constelação:
A variante penobscot (M575b, Speck 3:20; 10:52) se refere às Plêiades, segundo alguns, a uma
constelação vizinha, segundo outros. A existência de um nome diferente para as Plêiades,
/mnábasuwak/, "agrupadas", torna mais plausível a segunda interpretação, que poderia designar
Orion: "Alguns chamam-na de /meda'wile/, "mergulhão", por causa de um mito sobre um homem
apaixonado pela prima, e que se casou com ela, violando as regras. Os irmãos da moça o
HN 142
perseguiram e, no momento em que iam matá-lo, ele se enfiou debaixo do gelo e depois subiu ao
céu, primeiro na forma de um mergulhão, e depois, de uma constelação".
Da região oeste do lago Superior, praticamente à mesma distância do Atlântico e do
Pacífico, provém uma versão ojibwa (M576, Josselin de Jong 1:1), que inverte as duas formas
extremas assumidas pelo mito a leste e a oeste do continente: em lugar de serem irmão e irmã,
os amantes são um Sioux e uma Peoria, ou seja, pertencem a povos inimigos. Resolvem fugir
juntos de canoa, mas a tribo do rapaz se recusa a recebê-los. Indesejados nas duas margens do
lago que separa seus povos antagonistas, permanecem no meio do lago, onde são pegos de
surpresa por uma tempestade que causa sua morte: "Antes de afundarem definitivamente,
subiram pela última vez à superfície e lançaram seu grito, que desde então pode ser ouvido no
lago Peoria".
Fica claro, portanto, que nas duas extremidades do continente o mito de Dona Mergulhão
e o dos amantes incestuosos ecoam um ao outro. Um se passa no inverno, já que os lagos estão
congelados. O outro, no verão, já que os irmãos amantes acampam inicialmente ao ar livre, e
quando ela adquire a natureza de pássaro aquático, a infratora se instala nos lagos, onde pode
ser vista nadando e mergulhando todos os dias, o que significa que a superfície da água não pode
estar congelada. Aliás, sabe-se que no momento em que esse fenômeno ocorre o Mergulhão migra
para a costa, onde as águas não congelam. Num grupo de mitos, o incesto reune um casal de
irmãos que serão ainda mais unidos pela morte, confundidos num único animal e, posteriormente,
numa única constelação. No outro grupo, a transformação da irmã no mesmo animal e o
casamento do irmão numa terra longínqua os afasta, também de modo duplamente definitivo.
Frustrada em seus desejos condenáveis, a irmã incestuosa persegue os parentes no eixo vertical,
em que eles tentam escapar dela, e os destrói pelo fogo. Ao contrário, no mito wabanaki, o irmão
e a irmã, uma vez realizado seu desejo, fogem dos parentes no eixo horizontal, no qual estes
tentam alcançá-los para destrui-los, e morrem na água congelada. Apenas as conclusões
coincidem, embora sejam opostas de outro modo. O mito wabanaki explica uma configuração
astronômica na forma de uma constelação, rosário de estrelas que se destacam no céu noturno. O
mito de Dona Mergulhão explica uma configuração zoológica, as manchas brancas formando um
colar que se destaca sobre a plumagem escura de uma ave aquática. Ora, se a constelação de
Orion enfeita com contas luminosas o céu de inverno no registro do alto, o mergulhão (Gavia
immer) que é a ave do mito apresenta sua plumagem característica no verão, enfeitando assim a
água, no registro do baixo, de modo alterno, tanto no eixo espacial quanto no eixo sazonal.
Diante disso, é ainda mais fácil reconhecer o Mergulhão wabanaki — "modelo de
constância segundo a lenda e a realidade", e cujo grito os índios comparam a "um triste lamento
pela morte de um amante" (Speck 5:352-353) — na irmã virtuosa e esposa inconsolável da versão
modoc (M541), que inverte Dona Mergulhão em seu aspecto local de irmã incestuosa e parricida.
E, finalmente, visto que Aishísh, o desaninhador de pássaros klamath, é filho de irmãos
HN 143
incestuosos (M531, M538), ele pode ser identificado, como confirma a função meteorológica de
seu homólogo em M557-558, talvez não a Orion em si, mas ao menos a parte de Orion. Para
estabelecer a unidade da personagem da irmã que funciona como pivô para todos esses mitos,
basta, com efeito, transformar:
*
* *
A simetria entre os mitos "de mergulhão" que se observa nas duas pontas da América do Norte é
acompanhada por uma inversão radical dos valores atribuídos, em casa caso, a essa ave. Existem
quatro tipos de mergulhão, que o francês canadense agrupa na denominação "huard" ou "huart": o
de colar (Gavia immer), o de bico amarelo (Gavia adamsii), o ártico (Gavia arctica), e o de
pescoço vermelho (Gavia stellata). Vários detalhes de nossos mitos, e principalmente a descrição
da plumagem, designam sem ambigüidade o mergulhão de colar.
Vimos que, nos mitos do oeste, a transformação da irmã infratora em mergulhão é, para
ela, um castigo. Dizem que essa ave é "feia" e sua carne, intragável, é cuspida assim que
colocada na boca (M539, 540). Mas os algonquinos do leste têm uma visão diametralmente oposta
do Mergulhão: "Dentre as aves aquáticas, é a ele que cabe o lugar de honra. Seu nome, que
significa 'pássaro escolhido, ou admirado', em penobscot e em malecite, já indica o quanto é
estimado como anunciador das mudanças de tempo, por sua esplêndida plumagem e seu grito
pungente... Matar um mergulhão seria um sacrilégio" (Speck 5:352). Um grupo de mitos discutidos
no volume anterior (M444, OMM:200-203) chamam de Mergulhão um personagem de incrível
beleza e luxuosamente ornamentado. Para os Passamaquoddy e os Micmac, os mergulhões são os
caçadores e mensageiros do demiurgo. Essas aves proféticas e prestativas permaneceram entre os
homens mesmo depois de ele os ter deixado. Quando lançam seu grito característico —
"mergulhoneiam", como dizem os Passamaquoddy —, é porque estão chamando. E os homens que,
através deles, fazem pedidos ao demiurgo ausente são atentidos (Rand:288-289, 378-382;
Leland:19, 26, 50-51, 68; Prince:26-27, 51). Nos ritos dos Ojibwa, um bastão esculpido em forma
de mergulhão é usado para bater no tambor de água, para chamar os espíritos (Densmore 2:96).
Saladin d'Anglure, grande especialista dos Esquimó, confirmou-nos o apreço e respeito que eles,
vizinhos dos algonquinos a leste da baía de Hudson, têm pelo Grande Mergulhão. E comprovou
seus dizeres presenteando-nos com uma bolsa de acessórios de costura feita da pele de um
mergulhão de colar, com todas as suas penas, um artigo muito valorizado.
HN 144
Fig. 16 — Adorno de cabelo esquimó de Kotzebue Sound, feito de pele de mergulhão. (Cf.
Nelson:417) [p. 175]
cúmplice de um sogro assassino que quer fazer o genro se perder em alto mar (M579f, Hill & Tout
7:527-528; M579g, Gunther 2:137).
Para evitar incluir toda a mitologia esquimó na discussão, não faremos o estudo detalhado
do conjunto de mitos cujo inventário provisório, incluindo todos os grupos esquimó, do Alasca à
Groenlândia, as mais diversas tribos indígenas da costa noroeste e do interior, até os Arapaho e
os Osage, foi realizado por Boas (2:825-829) e Savard (:126-154). As versões esquimó, que são as
mais ricas, são particularmente interessantes, porque retransformam, de modo evidente, o ciclo
da avó libertina, ele mesmo uma transformação do ciclo de Dona Mergulhão, para voltar a este
último ciclo, mas mudando a polaridade do principal personagem:
Uma velha, seu neto e sua neta eram os únicos sobreviventes de uma
epidemia, e dependiam, para sobreviver, da caça do menino. Ele trazia
tanta caça que a avó se cansou de secar e preparar toda a carne. Cegou o
neto, que não pode mais caçar. As provisões se esgotaram, e foi preciso
comer até o que estava completamente estragado.
Quando veio a primavera, um urso se aproximou da casa, e o cego, guiado
pela avó, conseguiu matá-lo. Mas ela disse a ele que ele tinha errado,
guardou a carne fresca para si e para a neta, e continuou dando carne
podre ao neto. Ela também dava a ele água ruim (cf. M5).
Certo dia, o cego começou a conversar com um mergulhão, que teve pena
dele e o mergulhou na água de um lago. Esse tratamento lhe devolveu a
visão. Curado, ele afogou a avó durante uma caça à beluga. Aconselhados
pelo mergulhão, ele e a irmã tomaram cônjuges na mesma aldeia, e todos
viveram juntos, ricos e felizes (Spencer & Carter:65-68).
Apesar das circunstâncias serem favoráveis a isso, já que o irmão e a irmã tinham ficado sós no
mundo, não houve incesto e ambos se casaram. A não ser por algumas versões que o invertem
(infra:189), o mito se apega tanto a essa conclusão que variantes orientais a reforçam, atribuindo
à irmã um casamento perigoso e exógamo; às vezes, ela chega a morrer entre estrangeiros
(M580b,c, Boas 2:828-829; Kroeber II:167-170). Junto com essa passagem da endogamia para a
exogamia ocorre uma inversão da polaridade do mergulhão, que passa de maléfico a benéfico. O
mesmo acontece num mito atabascano:
(Farrand 2:19-22; cf. Bella Coola, Boas 12:111-114, para uma narrativa
muito semelhante).
31
Savard (:105) assinala na língua e no pensamento esquimó uma interessante equivalência entre a
boa visão e a virilidade. Em favor da argumentação precedente, notaremos também que a avó libertina é
privada de carne pelo neto, que guarda tudo para si mesmo alegando que a avó está menstruada (=
perfurada em baixo), ao passo que, no outro ciclo, a avó faz o mesmo com o neto cego (= tapado em cima).
HN 147
peças antes separadas, do mesmo modo que o casamento, contanto que os cônjuges não estejam
nem próximos nem afastados demais. Às vezes, em recompensa por seus esforços, o mergulhão
recebe do herói de M580 um bico bem fino, próprio para espetar suas presas. Em punição por sua
maldade, a avó é transformada, por várias versões, em narval macho, dotando-a, portanto, de
uma presa afiada.
O mais freqüente é o pássaro receber em recompensa um precioso adorno de conchas
dentalia, que seus congêneres usam em torno do pescoço desde então (Ilustração III). O episódio
confirma que esse mito inverte, de fato, o de Dona Mergulhão, no qual o colar de corações de
parentes constitui o símbolo do anti-adorno e inclusive se opõe, no interior do próprio mito, aos
braceletes de espinhos de porco-espinho, que representam adornos de verdade (supra:44-45, 77).
Já tivemos a oportunidade de salientar que os mitos dessa região da América do Norte
freqüentemente transformam espinhos de porco-espinho em conchas dentalia (OMM:222).
Entretanto, no que diz respeito ao aspecto estético da plumagem, curiosas variações se
verificam entre as diversas tribos. No mito de Dona Mergulhão, tudo indica que as penas do
pássaro são feias, e o texto chega a dizê-lo expressamente (M539). Contudo, os Klamath, que
conhecem o mito numa forma que difere por não mencionar o Mergulhão, contam algures (M582,
Gatschet 1, I:132-133) que o demiurgo encarregou essa ave de destruir a barragem graças à qual
os donos dos salmões prendiam todos os peixes, e só cediam aos vizinhos os peixes podres
(comparar com a avó de M580a). O Mergulhão cumpriu sua missão e, em recompensa, o demiurgo
cuspiu creta sobre seu corpo, formando as manchas brancas da cabeça e do dorso. Note-se que
essa descrição dos adornos ganhos pelo animal não menciona o peito, que é a parte principal
segundo o mito de Dona Mergulhão. Para que não nos censurem por dar atenção demasiada aos
termos de um texto exposto, por natureza, a todos os tipos de alterações, invocamos o
testemunho dos Peaux de Lièvre, que também atribuem as manchas brancas da cabeça à creta,
mas nesse caso lançada por Corvo por ciúme, portanto mais com a intenção de enfeiar do que de
embelezar o rival (M583, Petitot 1:223, 296-297). Bem, os Esquimó da baía de Hudson
desenvolvem a oposição entre Mergulhão e Corvo e, em relação ao primeiro, entre as manchas do
dorso e as do peito:
Havia um homem que queria que seus dois filhos ficassem bem parecidos.
Pintou o peito de um deles de branco e fez quadrados brancos em seu
dorso. O outro achou isso muito engraçado e riu tanto do irmão que ele
foi se refugiar na água. Desde então, o Mergulhão só mostra o peito
branco e esconde as manchas ridículas de seu dorso. Corvo, que era o
segundo filho, prevenido pela desventura do irmão, não se deixou pintar,
e permaneceu todo preto (Turner:262-263).
HN 148
Os Esquimó polares (M584b, Holtved 2:99) situam a origem do Mergulhão num pequeno
órfão vestindo roupas esfarrapadas. Os da terra de Baffin (M584c, Boas 8:218-219, 343), numa avó
com roupas esfarrapadas e ensangüentadas; mas, nesse caso, pode ser que se trate do mergulhão
de garganta vermelha, que tem penas encarnadas no peito32.
Um mito esquimó da costa ocidental da baía de Hudson, que associa o Mergulhão à bolsa
de costura (supra:178), por sua vez, opõe, como M584a, sua plumagem bicolor à do Corvo:
32
A não ser que com isso o mito faça alusão a uma técnica de caça igual à verificada entre os Micmac
(Rand:378-379), baseada na atração que o mergulhão supostamente sente por cores fortes, e especialmente
HN 149
Mergulhão oscila em três planos. Do ponto de vista estético e do vestuário, o pássaro possui
preciosos colares, roupas estragadas ou então corações humanos, horrendos adornos. Estamos
aqui no plano da cultura. Do ponto de vista sexual, que é também o da vida em sociedade, o
Mergulhão pode desempenhar três papéis distintos: irmã incestuosa para sempre separada do
amado no mito de Dona Mergulhão, a ele unida até a morte no que passaremos a chamar de
"transformação wabanaki" (M575), ou ainda de espírito sobrenatural de sexo não marcado, árbitro
da união endogâmica e do casamento afastado (M580). E finalmente, no terceiro plano, que é o
alimentar, e diz portanto respeito à natureza, a carne de mergulhão pode ser declarada
incomestível devido ao gosto ruim que se lhe atribui, ou porque a ave é considerada sagrada. Um
pequeno mito dos Micmac, que compartilham essa veneração (M585c, Parsons 4:82-83), introduz
um aspecto adicional. Como entre os Esquimó, ele opõe o Corvo ao Mergulhão, mas do ponto de
vista do alimento, em vez do vestuário: Pica-Pau casou suas duas filhas com Corvo e Mergulhão e,
nas bodas de um, serviu-se alimento fresco, nas do outro, coisas podres. Esses algonquinos
orientais opõem Corvo e Mergulhão, portanto, ativamente, no tocante à alimentação, no sentido
de que o primeiro consome alimento infecto, como fariam os humanos — segundo tribos vizinhas
do Pacífico — se comessem mergulhão.
É tentador relacionar essa instabilidade característica do mitema aos hábitos do
mergulhão, variáveis em cada lugar, e até mesmo em lugares bastante próximos. Os Tanaina, que
são atabascanos do noroeste, descrevem-no como uma ave sazonal, "exceto em Kachemac Bay,
onde a temperatura é mais clemente" (Osgood 3:40). Os gaviiformes nidificam até nas regiões
árticas, emigram para o sul no inverno ou, caso as condições locais permitam, permanecem na
mesma latitude, e apenas se deslocam dos rios e lagos congelados no interior para o litoral
marinho.
Pois bem, todos os mitos que consideramos até o momento fazem do Mergulhão uma
criatura sazonal, mas, para fixarem seu papel, não selecionam os mesmos traços distintivos, ou
não os interpretam do mesmo modo. A valência sazonal já era perceptível em certos mitos do
ciclo de Dona Mergulhão. O mito yana M547 começa em Shipa (supra:85), "S.(p'a", 'lugar onde as
pessoas vão beber' (?), num promontório a aproximadamente meia milha acima da nascente do
Oak Run; havia ali um lago onde paravam antigamente os gansos e patos a caminho do norte, na
primavera" (Sapir & Spier 1:245). Para a versão a atsugewi (M550), o grito ou o "riso" do pássaro é
o sinal da chegada da primavera. No outro extremo do continente, os Micmac, que também falam
do "riso" do mergulhão, o interpretam como sinal de vento, crença compartilhada pelos Naskapi
(Parsons 4:84 n.3; Speck 5:126). Os algonquinos orientais atribuem a seu demiurgo, Glooskap, um
séquito numeroso de serviçais, dentre os quais os mergulhões (supra:175), ao lado de um
personagem chamado Kulpejotei, que personifica o movimento do sol e das estações (Leland:22-
pelo vermelho. Uma incerteza adicional provém do fato de o texto de M584c chamar a ave de "web-footed
loon", quando todos os mergulhões possuem quatro dedos, dos quais três são espalmados (Godfrey:11).
HN 150
23). Os da região do lago Superior também associam o mergulhão ao vento que, segundo eles, é
indispensável para que o pássaro alce vôo (Kohl:185). É fato que a constituição anatômica do
mergulhão o torna desajeitado, tanto para voar quanto para andar no solo (cf. M584d); mas assim
que ele consegue decolar, voa com vigor e segurança (Thomson:212). Os Sweet-Grass Cree dizem
que a chegada do mergulhão anuncia o degelo (Bloomfield 1:82). Os Kutenai observam seu
comportamento para saber da aproximação de uma tempestade (Turnay & High 1:42). Os Salish
de Puget Sound dizem que "quando o tempo vira e vem uma tempestade, o Mergulhão, cujo avô é
o Trovão, vai para os lagos de água tranqüila. Retorna para o litoral em abril; é o chefe do povo
da água salgada" (Ballard 1:101-103). Os Siciatl (Seechelt) dão ao mês de maio o nome do
mergulhão, pois é nessa época que o pássaro faz ninho e põe ovos (Hill & Tout 1:34).
A ascendência supracitada do Mergulhão se afasta da crença dos Assiniboine, segundo os
quais o Mergulhão brigou com a Águia-Calva, que se transformou em Trovão e matou seu
adversário com um raio (M585b, Lowie 2:202-203). Voltando aos Salish costeiros, observaremos
que os Twana "possuíam uma lenda segundo a qual o mergulhão hibernava até a primavera.
Quando saía de seu refúgio para pousar nos lagos e gritar muito, sabia-se que o mês chamado 'do
mergulhão de dorso manchado' tinha chegado, e ajustava-se o calendário em conseqüência"
(Elmendorf 1:27). Os Thompson, que são Salish do interior, acreditam que o mergulhão grita forte
e muito quando vai chover. "Seria possível fazer chover imitando o grito do pássaro" (Teit
10:374). Um mito esquimó da costa ocidental da baía de Hudson conta (M586, Boas 8:320) que
homens martirizaram um mergulhão depenando-o vivo e, para vingar-se, ele fez cair uma nevasca
tão densa que ninguém conseguiu chegar às reservas de carne enterradas debaixo de pedras e
todos morreram de fome.
Vê-se que as crenças relativas ao mergulhão variam radicalmente de um grupo a outro.
Segundo uns, o pássaro hiberna; segundo outros, migra, mas ora do leste para o oeste, ora do
norte para o sul. Às vezes, sua mera aparição, ou o modo como grita ou se comporta, possui uma
função significante. Esta diz respeito ora às mudanças de tempo — chuva ou neve, dependendo
do caso — ora à volta de uma estação, que pode ser o inverno ou o verão. Não obstante tais
flutuações, que caberia analisar com maior cuidado (mas munido de um conhecimento maior do
que o nosso acerca da etologia das quatro espécies de Gavia, e das condições metereológicas
dominantes em cada ponto do território), verifica-se uma oposição central em todas elas, que,
nos dois extremos da América setentrional, desemboca numa inversão radical dos valores e
funções que os mitos de cada região — vertente do Pacífico e costa do Atlântico — atribuem ao
Mergulhão.
Se fosse preciso apresentar mais uma prova, esta seria fácil de encontrar nos modos
diversos como os mitos tratam o par formado por Mergulhão e uma outra ave aquática, que é o P.
auritus*, nas versões provenientes dos algonquinos orientais. Infelizmente, sua identidade não
*
Ver nota a respeito, OMM:xxxxx. [N.T.]
HN 151
pode ser claramente determinada nos mitos ocidentais; no máximo, é possível dizer que se trata
de um pássaro mergulhador. É possível que as tribos envolvidas não distingam, como os Blackfoot,
os patos do gênero Mergus, os podicipedídeos e os ciconiídeos (Schaeffer 2:40)33.
Numa das versões yana do mito de Dona Mergulhão, ela morre sob os golpes de uma ave
mergulhadora (diver), movida por forte antipatia contra a outra espécie (M547, Sapir 3:232). Na
versão registrada por Curtin (3:412-415, M546), esse papel de justiceiro cabe a aves pescadoras,
certamente maçaricos kildir. Pois bem, os mitos algonquinos acerca das esposas dos astros (que
já invertem o personagem de Dona Mergulhão, no sentido de que em vez de desejarem uma união
incestuosa, as heroínas querem desposar estrelas, isto é, maridos afastados) também colocam em
cena um par composto por Mergulhão e um pássaro aquático menos imponente, por quem as
heroínas sobreviventes de uma aventura celeste se deixam seduzir, tomando-o pelo outro
pássaro. Portanto, este muda de sexo:
a) (mergulhão !) => (mergulhão !),
e, ao mesmo tempo, invertem-se as respectivas hierarquias dos dois pássaros:
b) (mergulhão < pássaro mergulhador) => (pássaro mergulhador < mergulhão);
o que não impede, aliás, o pássaro menos imponente de matar o outro no final, em ambos os
casos. Vale lembrar que mitos chilcotin e bella coola já mencionados (M581a,b, supra:177)
ilustram um terceiro estado da transformação:
c) (mergulhão + pássaro mergulhador) > (esposa exógama de um urso = Dona Mergulhão-1).
*
* *
As considerações acima levam a uma primeira conclusão: o ciclo de Dona Mergulhão possui uma
extensão muito mais vasta do que supuseram os adeptos do método chamado "histórico" que,
como Demetracopoulou, pretendem constituir um sistema mitológico baseando-se
exclusivamente nos traços comuns a várias versões que podem ser percebidos por uma análise
empírica. Pois um mito, ou conjunto de mitos, longe de constituir um corpo inerte, sujeito a
influências de ordem puramente mecânica, operando por acréscimo ou subtração de elementos,
deve ser definido numa perspectiva dinâmica, como um estado de um grupo de transformação
provisoriamente em equilíbrio com outros estados, mas cuja aparente estabilidade depende, num
plano superficial, do grau no qual as tensões prevalecentes entre os dois estados se anulam. Se
uma delas se tornar forte demais num determinado ponto, todo o sistema bascula em direção a
um novo equilíbrio entre estados modificados. Tais crises devem ter ocorrido numerosas vezes ao
longo da história, antes da morte dos mitos e de seus contadores, proferindo um discurso
33
Conseqüentemente, seria imprudente explorar uma eventual correlação entre a plumagem do
Mergulhão, caracterizada, no verão, pela oposição entre preto e branco, e a de certos patos, que sofre um
"eclipse" sazonal, durante o qual penas escuras substituem quase que totalmente as claras. Ou seja, para
uma das categorias de pássaros, o contraste entre preto e branco é de ordem sincrônica e, para a outra, de
ordem diacrônica.
HN 152
derradeiro, paralisados para sempre, como os habitantes de Pompéia que, nas palavras de Proust,
foram surpreendidos por um outro cataclisma e tiveram seus gestos eternizados ao serem
interrompidos.
Se agora sabemos que, contrariamente ao que se costumava crer, a área de distribuição
do ciclo de Dona Mergulhão se estende até os algonquinos orientais, não é porque os mitos se
pareçam na região das Cascades e na costa Atlântica. Eles não se parecem em nada, ou melhor,
se parecem na medida em que diferem de vários modos, e são esses modos de diferir que se
parecem (Lévi-Strauss 8:111). Para percebermos isso, era preciso inicialmente admitir que todos
os mitos dizem; e verificar, em seguida, que os mitos wabanaki (M575) não dizem apenas coisas
diferentes das que dizem os mitos de Dona Mergulhão desde os Klamath até os Maidu e Wintu,
eles os contradizem, e para tanto, invertem meios de expressão que são, entretanto,
compartilhadps por ambas as regiões. Decorre daí, primeiramente, que narrativas que ninguém
imaginara aproximar constituem, na verdade, um único mito, e ilustram vários estados de uma
mesma transformação. E, em seguida, que tais estados complementares podem esclarecer uns
aos outros. Pois, supondo que tivéssemos partido do negativo, de que certos aspectos teriam
permanecido indecifráveis por esse motivo, assim que temos acesso ao positivo, a comparação
das duas imagens permitirá interpretar detalhes até então obscuros ou confusos. Vejamos como
isso acontece.
Comecemos por definir a estrutura da permutação. Quando analisamos a segunda parte
do ciclo de Dona Mergulhão, percebemos que um incesto disjuntivo — no sentido de que separa
para toda a vida um irmão e uma irmã, ele bem casado com uma esposa distante, ela
transformada em ave — permite ao mito colocar o problema da ressurreição dos mortos e da
periodicidade da vida humana. Na outra ponta da área, a transformação wabanaki emprega a
noção de um incesto conjuntivo — unindo na morte um irmão e uma irmã que preferem morrer
juntos a serem separados — para explicar a existência de uma constelação cujo curso acompanha
o das estações. De fato, em toda essa região da América, Orion e as Plêiades presidem ao
calendário. Entre os Iroqueses (Fenton:7), o ano novo começa em janeiro-fevereiro, quando as
Plêiades culminam ao cair da noite, seguidas de perto por Orion. No outro extremo da área que
nos interessa, os Shasta sabiam que o inverno tinha chegado "quando as Plêiades apareciam ao
amanhecer acima das colinas; seu desaparecimento marcava a chegada do verão" (Holt:341).
Entenda-se: quando elas eram visíveis no horizonte ocidental, no momento do nascer do dia,
pois, nessas latitudes, as Plêiades surgem de manhã a leste no finalzinho da primavera, razão
pela qual não são visíveis no verão.
Se os Klamath, vizinhos dos Shasta, chamam de "Mergulhões" a Grande Ursa, cuja posição
no céu contrasta com a de Orion e a das Plêiades, é digno de nota que eles possuam em relação a
Gêmeos, constelação vizinha às anteriores, crenças que lembram bastante os mitos wabanaki
relativos a irmãos incestuosos, afogados na água gelada de um lago antes de se tornarem as
HN 153
Plêiades ou Orion: "Os Gêmeos representam um irmão e sua irmã gêmea. Quando eles saem à
noite a leste, seu olhar congela a água dos lagos (dezembro); mais adiante no ano, eles sobem no
céu e anunciam a chegada da primavera" (Spier 2:221). Como vimos, o irmão e irmã incestuosos
de M574a se afogam num lago gelado, no inverno, portanto; são primeiramente transformados em
mergulhão e, em seguida, sobem ao céu e culminam na forma de Orion, que ocupa essa posição
ao crepúsculo, pouco antes da volta da primavera.
Ora, mitos provenientes do noroeste da América do Norte tratam o incesto conjuntivo de
um modo em tudo comparável ao dos algonquinos orientais. O melhor exemplo se encontra entre
os Sanpoil, que são Salish do interior, bastante afastados da área principal do mito de Dona
Mergulhão, mas próximos da região em que prevalece sua transformação ilustrada pelo ciclo da
avó libertina:
Era uma vez um irmão e uma irmã, que se apaixonaram um pelo outro na
época em que a moça estava isolada na cabana de puberdade. O rapaz ia
encontrá-la ali todas as noites. Desconfiada, a mãe descobriu sobre o
corpo do filho traços de tintura idêntica à que ela própria aplicava todos
os dias na reclusa. Ela contou ao marido que, preocupado em evitar o
falatório dos habitantes da aldeia, de que ele era o chefe, resolveu, com
a concordância da mulher, matar o filho. Apunhalou-o com um osso
pontudo enquanto ele dormia e comunicou discretamente o falecimento.
No dia seguinte, o corpo foi enterrado no fundo de um despenhadeiro.
Sem saber da morte do irmão, a moça estranhava que ele não viesse mais
aos encontros. Sua irmãzinha lhe trazia comida, e ela acabou contando.
Então, ela disse que sua reclusão tinha acabado, pediu suas mais belas
roupas, e correu para o lugar onde jazia o corpo do irmão. Tentaram
pegá-la pelas roupas, ela as tirou rapidamente e se lançou no abismo.
Unidos pela morte, os dois amantes triunfaram: "Quisemos ficar juntos e
agora, estamos unidos para sempre. No futuro, outros irmãos e irmãs
farão o mesmo que nós".
O pai sentiu remorsos. Quis ressuscitar seus filhos decretando que a
morte não seria definitva. Seus conselheiros se opuseram e ele desistiu.
Mas como era um poderoso feiticeiro, fez morrer os filhos dos que
discordaram dele. Então, foi a vez de eles defenderem a possibilidade de
ressurreição, ao que o chefe respondeu: "Não. Os cadáveres de meus
filhos já estão decompostos, não posso devolver-lhes a vida. Doravante, a
morte será definitiva". É a origem da feitiçaria (Ray 2:133-135; Boas
4:106).
Como nas versões wabanaki, portanto, o incesto conjuntivo surge ligado à periodicidade,
considerada do ponto de vista astronômico ou biológico. Mas os Sanpoil, que associam o incesto
cojuntivo à segunda forma, contrariamente aos Wabanaki, simplesmente viram o tema do avesso
para explicar o surgimento da primeira:
plano alimentar (pois o herói de M588 se desliga da própria irmã a ponto de se recusar a
alimentá-la) que, por intermédio de uma verdadeira recriação empregando os símbolos
metafóricos da cultura, desemboca finalmente numa ordem natural regida pela periodicidade.
Pois se é impossível aos mortos ressuscitarem, mas revoltante que mesmo aqueles que falecem na
flor da idade não retornem à vida, a alternância regular entre o sol e a lua, e a duração razoável
da vida humana a que ela imprime seu ritmo, fornecem um meio termo entre esses dois destinos.
Percebe-se qual o interesse dos mitos sanpoil. Pela dupla homologia que estabelecem
entre o plano alimentar e o plano sexual, e entre a periodicidade biológica e a periodicidade
astronômica, eles tocam o ciclo adjacente da avó libertina. Mas ao mesmo tempo o
retransformam, em dois sentidos: um que leva ao ciclo de Dona Mergulhão, ao restituir a relação
incestuosa entre irmão e irmã, e outro, que faz da periodicidade biológica uma função do
surgimento das artes da civilização, cujo símbolo é, em todos os casos, a culinária. E, finalmente,
M587, que transforma M588 (ou o contrário), e que emprega o mitema do incesto conjuntivo
(duplamente invertido por M588 para dar conta da origem do sol e da lua), se liga tanto ao ciclo
de Dona Mergulhão, em que o incesto desempenha um papel disjuntivo, como à transformação
wabanaki que, por meio do primeiro mitema, explica a periodicidade noturna, e não diurna, com
o surgimento da constelação de Orion. Mostramos (supra:176-180) que o ciclo do cego e do
mergulhão também se insere no sistema; o que é confirmado por um detalhe de M588: o
estratagema do irmão que esconde ovas de salmão em suas perneiras para não dá-las à irmã
inverte o da irmã que, no ciclo esquimó do cego e do mergulhão, consegue alimentar o irmão
esfomeado fingindo comer alimentos que esconde debaixo de suas roupas, junto à pele. Ela
comete assim uma espécie de incesto, por um bom motivo, como parece confirmar o texto do
mito, que nesse momento emprega o termo /uuinik/, aparentado a outros que evocam
casamento (cf. Savard:128).
Constata-se, portanto, que toda a parte setentrional da América do Norte é palco de uma
vasta permutação. Da transformação wabanaki no extremo leste passa-se para o ciclo de Dona
Mergulhão, no extremo oeste; depois, subindo de lá para o norte, ao ciclo da avó libertina, que
conduz à dupla transformação sanpoil sobre a origem da morte e a do sol e da lua. Prosseguindo
para o norte, encontra-se o ciclo do cego e do mergulhão, que se desenvolve do oeste para o
leste, levando finalmente de volta à transformação wabanaki. Porém, nessa ponta, as coisas se
complicam em razão de uma torsão adicional. Com efeito, os mitos esquimó (cf. M165, M168;
CC:302-303), que situam a origem do sol e da lua no suicídio ou na fuga de um casal de irmãos
incestuosos, invertem, por assim dizer in loco, o ciclo do cego e do mergulhão (em que irmão e
irmã contraem uniões exogâmicas) e, ao mesmo tempo, se opõem diametralmente à
transformação wabanaki, em que os amantes se unem na morte, em vez de um tentar fugir do
outro perpetuamente, e em que estão na origem de uma constelação. Assim, à relação de
transformação virtual, que o inventário dos estados intermediários nos permitiu evidenciar entre
HN 157
os estados extremos do grupo, acrescenta-se, nas regiões em que estes se encontram, uma
relação de transformação atual.
HN 158
III
Podemos agora iniciar a segunda etapa da demonstração. Para tanto, será novamente preciso
voltar para trás. Vimos que os mitos klamath e modoc sobre Dona Mergulhão (M538, M539)
contam uma estranha história de gêmeos póstumos, primeiro colados e unificados pela avó, que
posteriormente se desdobram, para dar lugar a um par de crianças de mesmo sexo ou de sexos
diferentes. Mas os mitos não se preocupam absolutamente em motivar essas manobras sucessivas,
e a fábula parece ser gratuita e incoerente, ou até contraditória. Para que soldar duas crianças
numa só, já que esse estado tem de ser provisório, visto que tudo o que o personagem bipartido
deseja é restabelecer sua dualidade? Antes, porém, de taxarmos os mitos de arbitrários,
perguntemo-nos qual seria a situação na hipótese (verificada com tanta freqüência em outros
casos) de os mitos klamath e modoc contarem ao contrário uma história cujo sentido só se
encontra la versão reta. Pois a segunda lei da termodinâmica não se aplica ao campo das
operações míticas, onde os processos são reversíveis e a informação que veiculam não se
degrada, simplesmente passa para o estado de latência. Mas permanece sempre recuperável, e o
papel da análise estrutural é restaurar, para além da aparente desordem dos fenômenos, essa
ordem subjacente.
Tomemos como ponto de partida aquilo que chamamos de transformação wabanaki. Ela
conta uma história inteiramente satisfatória do ponto de vista lógico, se não do ponto de vista da
experiência. Tristão e Isolda exóticos, um irmão e uma irmã apaixonados um pelo outro se unem
fisicamente na morte, apesar de seus familiares, que se esforçam por mantê-los separados.
Consolidados num ser único, eles reaparecem primeiro com o aspecto de um mergulhão, depois
com o da constelação de Orion. Supondo-se que, para inverter a mensagem desse grupo de mitos,
deva-se também inverter o curso da narrativa, seria preciso partir de um irmão e uma irmã
HN 159
unificados por vontade de seus familiares, e que realizem eles próprios sua separação. Meio de
um incesto conjuntivo no primeiro caso, o mergulhão torna-se causa de um incesto disjuntivo no
outro.
Se essa interpretação for correta, deveria decorrer disso que versões tais como M539, em
que o personagem bipartido se desdobra em dois irmãos, em vez de um irmão e uma irmã,
possuem um caráter derivado e constituem uma estapa subsidiária na cadeia de transformações.
Voltaremos a isso (infra:205ss). Contudo, antes de deduzir as conseqüências de uma hipótese, é
preciso firmar suas bases. No caso específico de que estamos tratando, a prova depende
inteiramente de duas condições: que os gêmeos desdobrados das versões ocidentais tenham,
como os irmãos unificados da transformação wabanaki, uma conotação astronômica e, em
seguida, que tal conotação se oponha à outra do mesmo modo que os dois grupos de mitos se
opõem entre si.
Consideremos inicialmente o mito klamath M538. Nele, os gêmeos colados se desdobram
em um irmão e uma irmã, atormentados pela ignorância em que se encontram quanto à própria
origem. A irmã persegue o irmão com perguntas e, como ele não tem respostas, ela resolve
interrogar o sol. Para obrigar o astro a falar, ela dispara uma flecha que lhe perfura o rosto,
deixando uma marca escura que permanece visível (supra:42, 46). O mesmo incidente aparece
em forma invertida numa versão tillamook que, como mostramos, ilustra um estado limite do
mito de Dona Mergulhão (M565a; supra:150). Nela, o filho orfão de um casal incestuoso é
acolhido por uma família que o mantém sem saber a própria origem. Mas a filha da casa não gosta
dele, e multiplica as alusões desagradáveis, até que o menino, exasperado, joga sua bola no rosto
dela. Tentanto se proteger, a menina, choramingando, esfrega o nariz, que vai crescendo, e os
olhos, que vão diminuindo, e seus punhos ficam colados no pescoço. Ela acaba se transformando
em toupeira, enquanto o menino obtém o Pássaro-Trovão como espírito guardião. Então, os dois
associam seus respectivos talentos — ela, o de andar por debaixo da terra, ele, o de voar nos céus
— e assim conseguem matar a ogra responsável pelo comportamento incestuoso e pela morte
subseqüente dos pais do menino (E. D. Jacobs:45-54). De modo que, se em M538, uma gêmea,
futura incestuosa, perfura o rosto do sol para que ele a informe, em M565a, uma menina, que
nem é uma irmã, e que mesmo assim não se casará com o rapaz, tem o rosto golpeado pelo falso
irmão porque ela o informa; e ela por isso se transforma em toupeira, criatura subterrânea, em
oposição diametral não só com o irmão adotivo que voa pelos ares, como também com o o astro
que brilha no firmamento. Aliás, o herói irá separar-se definitivamente dela, subindo ao céu,
onde se casa com a filha do Trovão, num casamento dos mais afastados.
Portanto, M565a fornece a contrario a prova de que o incidente do sol ferido em M538
desempenha uma função pertinente, que não pode ser apenas a de explicar a origem das
manchas solares, visíveis a olho nu pelos índios, observadores extremamente treinados, quando o
astro é encoberto por uma bruma leve (cf. Reichard 3:63 n.1). Sendo um fenômeno diurno em vez
HN 160
de noturno, que consiste em marcas escuras sobre fundo claro, em lugar de marcas claras sobre
fundo escuro, as manchas do sol invertem, efetivamente, uma constelação.
Porém, pelo menos em relação ao primeiro ponto, elas também invertem as manchas da
lua, igualmente escuras em fundo claro e inscritas na orbe de um corpo celeste, mas pertencente
ao dia num caso, e à noite, no outro.
Não é difícil, aliás, efetuar a retransformação:
M538 (origem das manchas do sol) [ o sol, marcado no rosto pela irmã, informa os irmãos
de sua condição isolada] => M358, 392, etc. (origem das manchas da lua) [o homem,
marcado no corpo por sua irmã, informa-a do grau de proximidade entre eles].
[ver forma p. 192]
Essa observação coloca em evidência um fato de capital importância. Desde o extremo norte até
o extremo sul do Novo Mundo, existe um grupo de mitos a que nos referimos muitas vezes
(CC:302; MC:172; OMM:73, 321; supra:189), cuja função é explicar, concomitantemente, a origem
do sol e da lua e a das manchas desta. Conta-se que elas provêm das marcas escuras feitas por
uma jovem no rosto de um visitante noturno cuja identidade ignorava, e que era seu próprio
irmão. A moça, revoltada, foge para o céu e torna-se o sol; seu irmão, transformado em lua, se
esforça em vão por alcançá-la. Agora compreende-se porque esse vasto grupo, que situa o
surgimento de uma configuração astronômica num incesto disjuntivo, faz parte do mesmo
conjunto daqueles que discutimos até o momento. Poder-se-ia até dizer que ele constitui o
estado inicial mais plausível para toda a série de transformações, devido à sua vasta difusão, e
também à sua armação rígida, que limita sua plasticidade.
Basta uma só transformação, com efeito, para gerar a partir desse grupo de mitos o que
isolamos entre os Wabanaki. O incesto disjuntivo devido à vontade de um só torna-se conjuntivo,
de comum acordo, e resulta daí ou a origem do sol e da lua com suas manchas, ou a de Orion e
das Plêiades. Vê-se, ao mesmo tempo, por que razão os mitos colocam Orion e as Plêiades em
oposição diametral para com os dois astros. Essas constelações são visíveis: 1) somente à noite, 2)
durante metade do ano, 3) mas sempre juntas. Em compensação, sol e lua são visíveis: 1) um de
dia, a outra à noite, 2) durante o ano todo (ainda que de modo descontínuo, devido às nuvens e
noites sem lua), 3) mas, ainda assim, raramente juntos. Da Califórnia ao Oregon, não faltam
mitos para explicar como um astro primitivamente único e que iluminava continuamente o céu se
desdobrou para gerar o sol e a lua, ou foi morto por dois irmãos que se tornaram sol e lua e,
desde então, garantem a alternância entre dia e noite (Sapir 1:171-173, 307-311; Boas 5:157;
etc.). A versão wintu enfatiza a incompatibilidade entre os dois astros: "Agora — diz o Ser
supremo ao sol — você pode ir para o leste e começar seu labor. Você irá deslocar-se o tempo
todo, dia após dia, sem parar. Todos os seres vivos irão vê-lo, com seu bastão ardente. E você irá
HN 161
ver tudo o que se passa no mundo, mas será solitário. Ninguém jamais poderá fazer-lhe
companhia ou acompanhá-lo em suas andanças." É, portanto, significativo que um mito esquimó
do Alasca (M590; Spencer:258) tome o sentido oposto ao da problemática habitual e deva fazer
dos dois astros cônjuges em desacordo para explicar como, de modo totalmente excepcional, é
possível que sejam vistos ao mesmo tempo.
O mito klamath M538 ilustra o terceiro estado de uma transformação que, tendo partido
de um incesto disjuntivo para explicar, em conformidade com os dados da observação, a
existência da marcha do sol e da lua com suas manchas, tinha primeiramente revirado a
proposição inicial e explicado, por um incesto conjuntivo, a existência da marcha das Plêiades e
de Orion. No segundo estado, essas constelações tinham-se apresentado sob a aparência do
Mergulhão, pássaro manchado de branco em fundo escuro (ao contrário da lua). Com M538, uma
nova torsão leva de volta ao incesto disjuntivo, por intermédio do mesmo Mergulhão, mas para
explicar a origem das manchas do outro astro, uma questão que o primeiro estado do grupo tinha
deixado em suspenso.
Para determinar o lugar que cabe a cada mito no conjunto das transformações, dispomos
portanto de um elemento diagnóstico, no modo como cada um deles descreve as manchas da lua
ou do sol, do irmão ou da irmã incestuosos, ou ainda as da plumagem do pássaro. Como prova de
que o mito sobre a origem do sol e da lua se inverte no de Dona Mergulhão, já invocamos um
argumento: as manchas que revelam o infrator aparecem ora no irmão, ora na irmã, e no
primeiro caso, são escuras em fundo claro (homólogas às manchas da lua), e no segundo, claras
em fundo escuro (homólogas às do Mergulhão tal como os próprios mitos as descrevem). Notamos
também (cf. supra:66, 85, 105, 108, 121) que várias versões do mito de Dona Mergulhão precisam
que o irmão e a irmã, caminhando do leste para o oeste, estavam juntos, e voltaram
separadamente na direção oposta. Ora, o sol e a lua também caminham do leste para o oeste,
mas separados.
Conseqüentemente, um detalhe do mito de referência M1, que poderia parecer
insignificante, adquire uma grande importância. Depois de ter cometido o incesto, o herói é
delatado pelas penas de seu adorno que ficam coladas no cinturão escuro de casca da mãe
(CC:43). Isso quase bastaria para inserir o mito bororo na mesma coluna dos de Dona Mergulhão,
mas não no mesmo nível, em razão do caráter periódico da transformação. Como uma tabela
periódica, esta segue vários eixos, um denotando o lugar que cabe a cada mito no seio de uma
série contínua, outro invertendo a codificação, alternadamente astronômica e meterológica, dos
estados consecutivos para cada mudança de hemisfério, devido ao fato de as mesmas conjunturas
astronômicas conotarem estações opostas em cada caso.
Nos dois volumes anteriores (MC:239; OMM:29-30), mitos da Guiana que parecem fazer de
Orion uma espécie de contrapartida noturna do sol já tinham chamado nossa atenção. Os Kaliña
dizem que a constelação "chama e apóia" o astro do dia. Um personagem "pervertido" a incarna;
HN 162
gostaríamos de saber se, como entre os Wabanaki, deve-se entender nisso um herói incestuoso. A
constelação das Plêiades trava relações análogas com a lua: variante combinatória da auréola
lunar segundo os Tukuna (M82; CC:166), em correlação negativa com a lua com respeito ao mel
na mitologia do Chaco (MC:94-96). Na América do Norte, os Blackfoot (infra, M591) colocam em
correlação a lua e as Plêiades. Para os Thompson (M400b) estas são "amigas íntimas" daquela, mas
também responsáveis por suas manchas e, portanto, por sua luminosidade diminuída. Tais
correspondências nos pareceram, a princípio, enigmáticas, mas agora percebemos que se baseiam
numa transformação que permite gerar toda uma série de mitos:
Cabe, notar, entretanto, que a fórmula é desequilibrada, já que cada um dos termos
pode ser analisado do seguinte modo:
ou seja, três termos noturnos, e apenas um diurno. Não seria exatamente para superar essa
dificuldade que os Tukuna aproximam as Plêiades da auréola lunar, em vez do próprio astro?
Veremos em breve (205ss) emergir na série de transformações uma família de fenômenos celestes
mais ou menos diretamente associados aos dois astros; eles enriquecerão o repertório com termos
que transcendem ou seccionam as categorias demasiado simples de diurno e noturno. Mas
podemos desde já conceber que as manchas do sol possam constituir um aspecto noturno do dia,
e a auréola lunar, um aspecto diurno da noite.
Para validarmos provisoriamente as proposições acima e confirmarmos que seu campo de
aplicação cobre ambos os hemisférios, determinaremos a realidade de uma transformação
bastante simples, que permite passar dos mitos wabanaki aos da região amazônica discutidos em
Do mel às cinzas (p. 232-233). Nestes, um irmão condena a irmã à vingindade e ao celibato e,
para melhor proteger sua virtude, exila-a no céu, onde ela se torna a Plêiade. Ou seja, um não-
incesto disjuntivo, que acarreta a metamorfose da irmã pelo irmão, em Plêiade (M276), em vez
de um incesto, conjuntivo, que metamorfoseia o irmão e a irmã na mesma constelação, ou na
constelação vizinha, Orion (M575a,b). Independentemente, cada uma das versões transforma,
aliás, o mito gerador do grupo, sempre presente, aquele que, a partir do incesto disjuntivo entre
um irmão e uma irmã, faz aparecer a lua e o sol, cuja alternância, nos curtos períodos diurno e
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*
* *
Tudo estaria muito bem se M538 se contentasse em alinhar um único incesto àquele mencionado
pela transformação wabanaki e, antes dela, pelos mitos sobre a origem do sol e da lua. Porém,
em M538, não há um incesto, mas três. O primeiro, disjuntivo embora não realizado, envolve uma
mulher empreendedora e seu irmão reticente. Provoca um incêndio terrestre e o nascimento
póstumo de duas crianças que são coladas uma à outra pela avó. As crianças conseguem
recuperar sua identidade física e, buscando recuperar também sua identidade moral, provocam o
aparecimento das manchas solares, fenômeno astronômico. Os mesmos irmãos então contraem
uma união incestuosa, a que a avó põe fim matando o marido; ela depois morre, em decorrência
de um plano totalmente orquestrado pela neta, que aproxima a água e o fogo terrestres. No
final, a jovem viúva se junta ao esposo na morte. Pode-se dizer, portanto, que esse segundo
incesto, ao contrário do anterior, apresenta um caráter conjuntivo, como o da transformação
wabanaki; tanto mais que, também nesse caso, ele acarreta indiretamente a fusão de dois
personagens, não mais o irmão e a irmã, pois que M538 já mobilizou esse motivo ao invertê-lo,
mas o filho da moça e o demiurgo, que o introduz no próprio corpo. Sua posterior separação
possibilita um terceiro incesto, real como o segundo, em forma atenuada (não envolve
consangüíneos, mas um sogro e as esposas de seu suposto filho), e disjuntivo como o primeiro,
pois provoca a separação das esposas infratoras, transformadas em pássaros selvagens segundo
várias versões. A não ser pelo incesto conjuntivo, desejado pelos dois protagonistas do mito
wabanaki, e do qual resulta a incomporação do bebê pelo demiurgo klamath, tudo opõe os dois
pares de indivíduos que acabamos de mencionar: parentes em linha colateral versus direta, de
sexo oposto versus do mesmo sexo, parceiros versus rivais... O que é compreensível,
considerando-se que a transformação wabanaki destina seus dois heróis a se tornarem a
constelação de Orion e (ou) a das Plêiades, e sabemos (supra:39-40, 61, 70) que os mitos klamath
colocam o demiurgo e seu filho em correlação com o sol e a lua. Mas não se trata aqui de uma
verdadeira equivalência, ou melhor, esta permanece em estado virtual, já que M538 não
especifica em lugar algum tais conotações. Basta-lhe que os dois personagens ajam de acordo
com suas respectivas vocações astronômicas: voluntariamente segundo M530, involuntariamente
segundo M538, o demiurgo provoca um incêndio de origem celeste, do qual o filho protege a si
mesmo e a seus familiares por meio de uma intervenção que o assimila a uma água também de
origem celeste.
Recorrendo sucessivamente a três modalidades distintas de incesto (dois incestos entre
colaterais, um estéril e outro fértil, e um incesto às expensas de um descendente, que envolve
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suas esposas estéreis e deixa a esposa fértil de fora), M538 realiza três operações. A primeira
engendra as manchas solares, ignoradas pelo primeiro estado do grupo (M165-168, M358, etc.,
interessam-se sobretudo pelas manchas da lua), e para o qual elas representam o que seria
chamado em inglês de unfinished business. A segunda inverte o segundo estado do grupo (M575a,
b), relativo a Orion e às Plêiades, ao restituir personificações do sol e da lua cuja identidade
astronômica permanece subentendida. A terceira, finalmente, qualifica duas divindades
antropomorfas que substituem os astros em termos exclusivamente meterológicos, mas ainda por
intermédio de metáforas.
De tal modo que é o terceiro incesto de M538 que, ao imprimir o derradeiro movimento à
intriga, gera a seqüência de transformações que, para simplificar, chamaremos de primárias, com
o intuito de deixar um lugar para outras, que lhes estão subordinadas (infra:205ss). Passa-se
facilmente do episódio final de M538 para a transformação ilustrada pelos mitos yurok, wiyot e
makah (M557-558), em que os demiurgos, anteriormente congruentes ao sol e à lua, se invertem
em direção às constelações noturnas e invernais, Orion e Plêiades, cuja identidade astronômica
eles continuam não assumindo, mas cujas prerrogativas meterológicas igualmente exercem, como
anunciadores de chuva e tempestade.
Mas também se passa para o mito de Dona Mergulhão (M546-M555), que inverte o do
desaninhador, de que certas variantes (M550) fazem o ritmo sazonal derivar da busca de um
irmão pela irmã (metáfora de um incesto conjuntivo, ainda que inspirado por sentimentos puros)
e da execução, desejada pela mesma irmã, da verdadeira incestuosa, metamorfoseada em
pássaro anunciador da primavera. Uma outra transformação primária, esta envolvendo mudança
de hemisfério, conduz ao mito bororo de referência M1, no qual a configuração incestuosa é
revirada, em relação ao desaninhador norte-americano: filho com esposa do pai em lugar de pai
com esposa do filho. E, ao mesmo tempo, por razões de ordem cosmográfica, o mesmo
significado meterológico, a estação das chuvas, recebe por significante tácito a constelação do
Corvo, em vez de Orion. Mostramos, em O cru e o cozido (p. 205-245), como essa transformação
se encadeia na última, sempre na América do Sul. O mito xerente (M124) que a ilustra impõe ao
mito de referência M1 uma série de inversões radicais, para poder explicar a origem de Orion e
das Plêiades, de um lado como significados astronômicos e, do outro, como significantes da
estação seca. Toda essa argumentação pode ser resumida no quadro da página seguinte.
Se deixarmos de lado seu lado esquemático e suas lacunas, esse quadro coloca duas
questões. A difusão panamericana do mito sobre a origem incestuosa do sol e da lua autorizaria
plenamente a considerar o grupo como fehcado. Resta a saber se seria possível efetivar tal
fechamento, voltando de M124 a mitos norte-americanos. Em segundo lugar, seria preciso
localizar, no hemisfério norte, pelo menos sinais de uma transformação que engendre a
constelação do Corvo, como faz o mito de referência sul-americano. Examinemos essas duas
questões, uma após a outra.
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[QUADRO P. 198]
CÓDIGO CÓDIGO
ASTRONÔMICO METEROLÓGICO
AMÉRICA DO NORTE 1/ M165 etc. (incesto disjuntivo)
' sol, lua e suas manchas
2/ M575a,b (incesto conjuntivo)
' Orion, Plêiades
3/ M538 (1) (incesto disjuntivo)
' manchas do sol
4/ M538 (2) (incesto conjuntivo)
' [sol, lua] (sentido figurado)
5/ M538 (3) (incesto disjuntivo)
' [fogo, água celeste] (sentido
figurado)
6/ M 558b,c (incesto ausente, pai e filhos
aliados)
' [Orion], estação das chuvas
7/ M557-558a (incesto disjuntivo)
' [Orion], estação das chuvas
8/ M546-555 (incesto conjuntivo) (sentido
figurado, irmã e irmão aliados)
' bom tempo
AMÉRICA DO SUL 1/ M253,358, etc.(incesto
disjuntivo)
' sol, lua e suas manchas
2/ M1 (incesto disjuntivo)
' [Corvo], estação das chuvas
3/ M124 (incesto disjuntivo)
' Orion, Plêiades.................... ............................estação seca.
Existe na América um mito sobre a origem das Plêiades em que um bando de crianças gulosas ou
mal-nutridas, cheias de rancor para com seus pais, resolvem subir ao céu e transformar-se em
constelação (CC:246-249). Esse grupo está claramente articulado com M124, no qual realiza uma
dupla transformação, passando do código sexual para o código alimentar, e da satisfação para a
frustração.
O caráter panamericano desse mito, demonstrado nos volumes anteriores (CC:246-252;
MC:95, 111; OMM:39), prova que o grupo também se fecha em M124. É inclusive possível mostrar
que, nesse ponto do ciclo, o fechamento tem um caráter real, e não apenas virtual. Pois os
Blackfoot que, ao pé das Rochosas, são os representantes mais ocidentais da família lingüística
algonquina, possuem um mito das Plêiades a que já nos referimos (CC:248 n.2), no qual é
perceptível uma interseção dos dois outros:
É digno de nota que, para evocar um período em que falta água celeste, tanto M591 como M124
precisem introduzir o motivo de uma água de origem subterrânea, como a única capaz de suprir à
ausência da outra. Em ambos os casos, os irmãos são culpados de descomedimento, no plano
sexual em M124, já que abusam da mãe, atraindo-a para a casa dos homens com um pretexto da
ordem do vestuário (para ajudá-los a se pentearem e adornarem, dizem eles), e, em M591,
realmente por um caso de roupa. Também nos dois casos as conseqüências são as mesmas, a
origem da água terrestre e a da estação seca, que é água celeste negada. A mudança de
hemisfério deixa a armação intacta, afeta apenas o momento em que ocorre a transformação dos
heróis em Plêiades, ou no início ou no fim de um período de seca.
Não se pode deixar de notar o papel dos cães, mediadores entre a humanidade e as forças
celestes e também donos da água potável, pois esse duplo papel ao mesmo tempo reproduz e
inverte o papel que lhes atribuem, mais a oeste, os mitos de pequenos grupos algonquinos
isolados na costa do Pacífico, de donos do fogo de cozinha. São mitos (M559) que transformam os
de origem da chuva, oposta ao fogo doméstico, ao passo que aqui, a chuva apresenta uma relação
de complementaridade para com a água de fonte. Esse não é, aliás, o único caso em que os mitos
dos Blackfoot e de seus vizinhos de língua sioux, os Assiniboine, apresentam notáveis afinidades
com os da região das Cascades. Ainda a respeito da origem das Plêiades, outras versões blackfoot
(M591b, McClintock:49; cf. também M591c-d, Uhlenbeck 1:112-113; Josselin de Jong 2:37-38)
explicam porque os meninos não conseguiram as peles que queriam: os jovens bisões as vestem
somente na primavera, período em que as Plêiades não são visíveis. Conseqüentemente, quando
a constelação está presente no céu noturno, a bela pele está ausente, e quando os bisões a
HN 167
*
* *
A segunda das questões que colocamos dizia respeito à constelação do Corvo. Embora
pertencente ao céu austral, ela permanece teoricamente visível durante os meses de verão em
altas latitudes, dificilmente visível, é verdade, menos em função de sua posição muito baixa no
horizonte do que da longa duração dos dias árticos. Corvo não parece, de fato, ter lugar nas
representações e crenças dessa parte da América, carência essa talvez relacionada à observação
de Spier (2:221) de que os Klamath, que vivem mais ao sul, nas vizinhanças de 43° lat. N, só
denominavam as constelações de inverno. Mas os Navajo, que são atabascanos vindos do norte e
que possivelmente trouxeram consigo, ao lado da história dos gêmeos desdobrados (supra:36),
motivos bastante arcaicos (cf. infra:499), conhecem bem a constelação do Corvo, que analisam o
quadrilátero irregular em "pés afastados", "sua pena", "seu corpo", "seu bastão", "seu fogo"
(Franciscan Fathers:43). Seu habitat atual se situa, a bem dizer, ainda mais ao sul, por volta do
37°.
Além disso, ainda que os índios do noroeste norte-americano tivessem conhecido e
nomeado o Corvo, não haveria razão alguma para que lhe tivessem dado o mesmo nome que nós
lhe damos desde a Antiguidade. O que torna ainda mais intrigante o fato de encontrar entre eles
um mito que não relaciona o pássaro a uma constelação, mas contam a seu respeito uma história
quase idêntica à que os gregos invocavam para explicar a origem da constelação do Corvo:
As analogias entre o mito grego (CC:243) e o mito americano são impressionantes. Em ambos os
casos, corvo é mandado buscar de beber. Por avidez ou por preguiça, deixa de cumprir sua
missão, que é a de compensar a falta de água celeste com a água terrestre que é a única
disponível, em fontes ou no oceano. Também nos dois casos o corvo recebe o mesmo castigo, ter
sede durante o verão e ficar com a voz rouca, devido à garganta ressecada. Mostramos, em O cru
e o cozido, que o mito grego, relativo ao verão, coincidia com um mito sul-americano sobre a
origem de Orion e das Plêiades (M124), constelações estivais na América do Sul, dada a mudança
34
Invertendo o comportamento da Sapa de M588 (supra:187), que urina em direção ao céu para fazer
chover.
HN 169
de hemisfério, mas que evocam o início, e não o fim, da estação seca. E vimos que os Blackfoot
têm um mito (M591) muito semelhante a M124 para explicar a origem das Plêiades, nesse caso
anunciadoras da período das chuvas. Em tais condições, não é inconcebível que, invertendo-se
sem mudar de hemisfério, esse mito ou outros do mesmo tipo tenham tomado uma forma muito
próxima à do mito que, em latitudes comparáveis, servia, no Velho Mundo, para explicar a origem
de uma constelação ligada à estação seca.
Faltaria ainda que M593 fosse passível de receber uma conotação astronômica, além da
conotação meterológica, que o texto deixa evidente. A história do corvo sedento pertence a um
vasto conjunto mitológico registrado em toda a costa do Pacífico, dos Tlingit ao norte até os
Coos, de que Boas (2:656-657) fez um inventário parcial e provisório. As versões tlingit (M594a,
Swanton 2:9-10, 120-121, 418) contam que tempestades contínuas provocaram inundações e
fome. Corvo, demiurgo e enganador, conseguiu escapar das águas subindo até o teto do mundo,
ao qual ficou pendurado pelo bico. Quando a água baixou à metade, ele desceu de volta à terra e
chegou à casa de uma velha, que era a dona das marés. Ela não podia acreditar que houvesse
ouriços para comer pois, naquele tempo, a maré sempre estava alta e não era possível pegar os
produtos do mar, que nunca recuava. Irritado com a incredulidade de sua anfitriã, ele enfiou-lhe
no corpo espinhos, restos de sua refeição, e ordenou ao mar que recuasse. "Toda a costa secou,
nunca dantes fora vista maré tão baixa. Salmões de todas as espécies, baleias, focas e outras
criaturas marinhas jaziam na areia. Juntaram provisões que duraram muito, muito tempo". É a
origem das marés. Swanton (2:120 n. a, M594b) faz alusão a uma outra versão, em que a egoísta
dona dos alimentos se vê obrigada a entregá-los por intervenção de alguém. O marido dela, que a
controlava de perto, provocou um dilúvio para vingar-se. Ele se chamava Mergulhão, o que nos
permitiria certamente traçar, através da mitologia da costa noroeste, um itinerário que levasse
de volta ao ciclo mais meridional que discutimos longamente, cuja protagonista, de mesmo
nome, era mulher e não homem e provocava um incêndio em vez de uma inundação. Contudo,
deixaremos essa questão para nos concentrarmos na da origem das marés.
A versão tsimshian (M595, Boas 2:64-65) evoca o tempo em que elas eram mensais. As
pessoas, privadas de mariscos e outros frutos do mar, passavam fome durante longos períodos. O
demiurgo, personificando um corvo, enfrentou a dona das marés e instituiu sua alternância. A
velha, para vingar-se, provocou uma grande seca. Bem longe do litoral, no interior, o demiurgo,
sedento, conseguiu finalmente encontrar água sob as raízes de um amieiro, o que confirma
duplamente a origem subterrânea dessa água. E isso nos aproxima das versões mais meridionais.
A dos Takelma, inicialmente, e também as variantes hoh e quileute (M596a,b, Reagan:48-
50; Reagan & Walters:315-316): Corvo comeu os mariscos de um rival, às vezes identificado ao
vento sudoeste. Para vingar-se, este fez o ladrão passar sede: á água escorria pelos lábios dele, e
tudo à sua volta secava. Ele acabou se transformando em pássaro. Os Tillamook contam (M597a,
Boas 14:140) que a Gralha deu sua voz ao Pássaro-Trovão em troca da maré baixa, para poder
HN 170
pescar caranguejos e peixes. Mas aquela maré sobrenatural era baixa demais e, assustada com os
monstros marinhos que ela deixava aparecer, Gralha pediu que a água recuasse menos.
Os Coos também contam (M597b-f, Frachtenberg 1:14-19; 3:34-38; Jacobs 6:234-235, 241-
242) como Corvo trocou sua voz, antigamente poderosa, com o Trovão, "pai dos alimentos", pela
dele e por uma das duas marés diárias. Em seguida, ele conseguiu a outra em troca do raio, que
era capaz de produzir piscando os olhos. Graças a ele, duas vezes por dia, os homens podem se
precaver contra a fome recolhendo frutos do mar.
Os Squamish (M597g, Hill & Tout 7:544-545) transpõem o esquema espacial da alternância
das marés para o registro temporal, e assim restituem, graças a uma transformação simples, mar
! céu, a função meterológica que cabe ao pássaro no Velho Mundo: para salvar os seus de uma
seca persistente, Corvo roubou o filho do dono da chuva, e só concordou em devolvê-lo em troca
de chuvas ocasionais. "Por isso há dias em que chove, e outros em que não chove. Agora, o tempo
seco e o tempo úmido se alternam."
Como esse mito salish [salish? ou seria squamish?] , os dos Coos mostram que, no
pensamento indígena, a alternância das marés é também a alternância entre seca e umidade,
entre abundância e penúria35. E assim traduz, por intermédio de formas curtas de periodicidade,
oposições mais fundamentais. Trovão, pai do alimento, tem a lua por serviçal. Quando não há
nada para comer, os pássaros atacam o astro da noite e provocam um eclipse; a abundância
então retorna (Jacobs 5:68). O mito evoca, a esse respeito, a barulheira que os homens fazem
para torcer pelos pássaros no combate; o que mostra que tínhamos razão quando, em O cru e o
cozido, criticávamos a interpretação corrente do charivari por ocasião dos eclipses, segundo a
qual ele expulsaria o ogre que devora o astro. Pois aqui, o ogre é o próprio astro, e o ruído
contribui para sua derrota. Essa notável reviravolta é acompanhada por uma outra, relativa ao
raio, que simboliza o fogo celeste com valor positivo e não, como acontece com tanta
freqüência, causa de incêndio, de penúria e de ruína; ao contrário, ele é moeda de troca para
obter uma segunda maré, ou seja, a abundância dobrada. Ressaltamos (M337, MC:381) uma
inversão do mesmo tipo na América do Sul, e a analogia merece ser aprofundada. Ainda que nos
limitássemos aos mitos sobre a origem das marés, as comutações são tão numerosas de um grupo
tribal a outro que exigiriam um estudo exclusivo.
Por exemplo, segundo o mito tsimshian (M595), nos tempos antigos a maré baixa e a
abundância alimentar voltavam com a lua nova, ao passo que os Coos responsabilizam o astro
pela penúria. Para o nosso propósito, basta notar que os mitos que ligam a origem das marés ao
Corvo — condenado a passar sede por ter duas vezes reivindicado o papel de dono da seca; no
eixo vertical, quando domina a inundação, e no eixo horizontal, quando seca as praias —
referem-se insistentemente a conjunturas lunares, isto é, astronômicas. É verdade que mito
35
Barnett (1:13) cita o provérbio que os Brancos criaram inspirados na economia indígena: "Quando a
maré está baixa, a mesa é posta".
HN 171
blackfoot (M591) que serviu de ponto de partida para a presente discussão alia a lua e os meninos
frustrados que irão tornar-se as Plêiades. Contudo, de um ponto de vista meterológico, ele os
opõe: para vingar seus jovens protegidos, a lua colabora com o sol para secar a terra e causar
sofrimento aos humanos e só depois disso os astros mandam chuva, e então os heróis se
transformam na constelação das Plêiades. De modo que, no primeiro papel, a lua cheia ocupa um
lugar comparável ao que cabe à constelação do Corvo nos mitos do Velho Mundo. Finalmente, não
se pode deixar de notar que o mito takelma, transformando os mitos sobre a origem das marés,
reproduz um incidente de um mito dos Modoc (M541, supra:58, 62) que, no entanto, vivem longe
do mar, no qual as duas carregadoras de água, que são moças à procura de maridos em vez de
virgens que atingem a puberdade, querem se casar com o demiurgo Aishísh. Bem, vimos que ele
possui uma conotação lunar.
Seria possível explicar uma confluência tão inesperada entre os mitos do Velho e do Novo
Mundo evitando as voltas que propusemos (supra:202)? Outra opção, satisfatória do ponto de
vista lógico, todavia enfrentaria uma dificuldade de ordem histórica: a América foi povoada do
norte em direção ao sul, o que torna mais provável que mitos do hemisfério sul transformem os
do hemisfério norte do que o contrário. É evidente que não se pode postular, mas nem por isso se
pode descartar, que certos mitos sobre a origem das constelações ou que lhes foram associados
posteriormente tenham surgido no paleolítico superior ou até antes. As primeiras levas de
imigrantes vindos da Ásia para a América os teriam trazido consigo, enquanto, propagando-se na
direção oposta, outros deslocamentos de população explicariam a difusão ocidental desses
mesmos mitos até a bacia do Mediterrâneo. Encontraríamos, em ambas as regiões, seus vestígios,
testemunhando em favor de uma origem comum num passado muito recuado. Mas também
poderia se tratar de um mero fenômeno de convergência, devido ao que chamamos alhures
(MC:31 n.1; Lévi-Strauss 14) de dedução empírica. A voz rouca do corvo seria certamente
suficiente para que grupos humanos diferentes considerassem que ele tem sede, ainda que a
etologia animal não confirmasse que essa ave não bebe ou bebe muito pouco durante o verão,
como afirmam os mitos do Velho e do Novo Mundo. Com ou sem razão, os Antigos acreditavam
que, nessa estação, uma doença crônica atingia os corvos, sobretudo durante os dois meses que
precedem o outono, antes do amadurecimento dos figos (Plínio, X, xii e XXIX, iii; Esopo, fábula
134, O corvo doente). De todo modo, para justificar a configuração norte-americana sem apelar
para a Grécia antiga, bastaria registrar o fato de que os mitos freqüentemente colocam
Mergulhão e Corvo em oposição diametral (M584a,d, supra:179). E, como associam o primeiro
pássaro a uma constelação que prenuncia a estação das chuvas, "produzisse" um mito análogo ao
que o Velho Mundo, de modo independente, dedica à constelação estival, em oposição de fase
para com a outra em ambos os casos. Com efeito, o mito americano também se refere a uma
seca periódica, não a de verão, sem gravidade nessa região litorânea onde a oposição entre
estação seca e chuvosa é pouco marcada, mas a seca — muito mais importante da perspectiva de
HN 172
populações costeiras — que desnuda o litoral a cada 24 horas, e permite a coleta de frutos do
mar, base de sua alimentação.
*
* *
o inverno", como espacifica o texto do mito. Veremos em breve que uma outra transformação
permite ao mesmo tempo satisfazer a terceira condição e compreender porque M539 acrescenta
que ao verem as duas estrelas em que os irmãos se metamorfoseiam "os humanos guerrearão".
Gostaríamos de poder identificar esses corpos celestes. Segundo o mito modoc, seu
surgimento logo antes da aurora anuncia a chegada da primavera. Uma indicação de Spier já
mencionada (supra:185) sugere que poderia tratar-se de Gêmeos, pois quando eles sobem no céu,
dizem os Klamath, é sinal de que a primavera se aproxima. De fato, naquelas latitudes, a
culminação de Gêmeos ocorre em março-abril, ao cair da noite. Mas o mito fala da aurora e, a
essa hora, os Gêmeos sobem em julho, culminando em outubro e se pondo em janeiro. Mesmo
levando em conta diferenças decorrentes de horizontes montanhosos, é difícil fazer coincidir as
duas informações. Talvez o mito tenha em vista planetas, e não uma constelação. É o que sugere,
em todo caso, a notável transformação que ocorre entre os Chinook, e à qual passaremos agora.
Esses índios viviam no curso inferior do Columbia e de seus afluentes, o que lhes permitia
controlar as grandes feiras e os locais de pesca nos quais todas as tribos das vizinhanças se
encontravam periodicamente. Por esse motivo, os mitos chinook muitas vezes possuem um
caráter eclético. Cada um deles representa como uma espécie de denominador comum, em que
se fundem versões que, tomadas isoladamente, poderiam parecer difíceis de conciliar, o que
significa certamente uma vantagem. Por outro lado, as referências múltiplas que acumulam e sua
tendência à síntese complicam especialmente a tarefa do analista36. É o que ocorre
especialmente com uma narrativa de que são conhecidas várias versões, nem sempre
coincidentes, que ao reutilizar praticamente todos os mitos que consideramos até agora assume
ares de uma espécie de pot-pourri ou, se preferirem, de um grande recital de mitologia norte-
americana. Devido à sua complexidade, esse mito reaparecerá várias vezes em nosso caminho.
Começaremos por apresentar um breve resumo dele, para depois, sem levar a cabo uma análise
exaustiva, assinalar apenas alguns de seus aspectos:
M598a. Clackamas (Chinook): o esposo do astro
escrava que tinha ficado partiu, por sua vez, e deixou o bebê sozinho.
"Ele está quase morto de tanto chorar", disse ela à mãe, junto com
críticas. Brutalmente lembrada de suas responsabilidades, ela se apressou
em voltar para casa. Mas encontrou o berço vazio. Ou melhor, só viu nele
um pedaço de madeira podre, deixado por uma ogra que tinha roubado o
bebê, aproveitando uma bruma espessa. A raptora alimantava o cativo
com cobras, pererecas e sapos. E o levava num cesto para onde ia.
Não longe dali vivia um homem chamado Grou (certamente uma Garça).
O menino cresceu e, certo dia, quis ir visitá-lo, apesar de a mãe adotiva
tê-lo proibido de fazê-lo. Com uma voz tonitruante — explicando que só
assim não seria ouvido — o homem explicou a seu visitante que ele era
alimentado com coisas impróprias para o consumo humano, e ensinou-lhe
a comer trutas grelhadas. A partir de então, o herói passou a recusar as
refeições da ogra. Ela acusou o vizinho, que afirmava não ter dito nada, a
não ser, talvez, um comentário maroto a respeito do modo como ela teria
dado à luz seu suposto filho. Seduzida pelo senso de humor do vizinho, a
ogra passou a tratá-lo de irmão.
O herói tinha contado a seu protetor que muitas vezes, quando a ogra o
transportava em seu cesto, ele, por brincadeira, se agarrava aos galhos
das árvores até que o percoço elástico da mulher, esticado ao limite,
ficasse fino como um fio. Grou aconselhou-o a aproveitar a ocasião para
decapitá-la, com uma lâmina de pedra que lhe deu. Disse também que
todas as árvores, que eram parentes da ogra, cairiam sobre ele para
vingá-la. Ele deveria subir para o alto de um pinheiro branco [Abies
concolor], que seria o único a não reagir ao assassinato, e em seguida,
usando seu arco e suas flechas alinhados, chegar até o céu.
Dito e feito. No mundo celeste, o herói encontrou primeiro parasitas
canibais, piolhos cinzentos, piolhos pretos, larvas de piolhos e pulgas, e
ordenou-lhes que incomodassem os humanos com moderação. Contra a
vontade da dona da escuridão, ele instituiu a alternância regular entre
dia e noite. Depois encontrou dois caçadores perseguindo suas presas, um
após o outro. Perguntou-lhes o caminho e obteve indicações
contraditórias. Seguindo as do primeiro, deu-se mal e foi dar na casa
canibais. A casa estava vazia, e ele não conseguiu encontrar nem o pote
de urina reservada para molhar os cabelos antes da lavagem. Teve de se
contentar com água e, procurando um pente numa bolsa pendurada numa
trave, achou uma menina. O pai e os irmãos dela lhe ofereceram a mão
da moça assim que chegaram. Ele se recusou a participar da refeição de
carne humana deles, mas aceitou a moça. Sem vantagem nenhuma, aliás,
porque ela não tinha orifícios inferiores, e portanto, não tinha vagina.
Decepcionado, o herói resolveu seguir o outro caminho, que o levou a
uma casa bem aparelhada, com pote de urina e um pente de cobre, que
lhe foi emprestado por uma moça encontrada dentro da bolsa de objetos
de toucador. Não hesitou em casar-se com ela, após um excelente jantar
em família. Ela possuía todos os atributos de seu sexo. Furiosos por terem
sido desdenhados, os habitantes da primeira casa apareceram, com as
piores intenções, chamando os donos da casa de "furados e rachados".
Estes os expulsaram, queimando ossos de cervídeos, que provocaram uma
densa fumaça preta.
Logo a moça deu à luz dois irmãos siameses. O pai dela lhe tinha
recomendado para nunca deixar o marido se deitar de bruços quando
estivesse tirando seus piolhos. Mas um dia ela esqueceu a precaução. O
homem começou a raspar sem razão o solo abaixo de si, furou a abóbada
celeste e avistou sua aldeia e seu irmão, nascido depois de sua partida, e
que, como todos os seus familiares, tinha ficado cego de tanto chorar a
HN 175
perda do parente querido. Foi tomado por uma profunda melancolia, cuja
causa o sogro adivinhou. Conseguiu fazer a filha e o genro confessarem, e
acabou se conformando em deixá-los partir. As aranhas fizeram-nos
descer até a terra num cesto pendurado na ponta de uma corda.
O herói reencontrou seus familiares, e sua mulher lhes devolveu a visão
com uma água milagrosa. As casas passaram por uma limpeza em regra
antes de o casal entrar nelas. A vida retomou seu curso normal. Vivia na
aldeia o enganador Gaio-Azul, que se irritava ao ver os siameses. Ele
cortou a membrana que os unia, o que provocou em ambos uma ferida
por onde as entranhas saíram. Os dois morreram.
A mãe deles explicou que, se tivessem deixado que eles vivessem e
crescessem, eles teriam se separado sem nenhuma intervenção. Mas
agora era tarde, não havia mais nada a fazer. Ela pegou os pequenos
cadáveres, cada um debaixo de um braço, e subiu ao céu na forma do sol
visível. Anunciou que, quando vissem seus filhos, cada um de um lado
dela, ao amanhecer, isso seria o presságio da morte de alguém
importante, e se só um deles fosse visível, de uma pessoa menos
importante. Os habitantes da aldeia choraram tanto a morte dos gêmeos
que ficaram cegos novamente (Jacobs 2, II:388-409).
O que é notável nesse mito, é o fato de construir uma cadeia sintagmática coerente encadeando
paradigmas tomados de empréstimo a todos os mitos que consideramos até o momento, mas
invertendo-os todos, metodicamente. O paradigma de Dona Mergulhão gera a situação inicial,
mas uma irmã casada porém incestuosa, atenciosa demais para com o irmão, se transforma em
mãe divorciada, negligente demais para com o filho e despreocupada com as conveniências a
ponto de se mostrar em público ao lado do ex-marido, cometendo assim uma espécie de incesto
social. Decorre daí que em lugar de a irmã levar o irmão para longe (eixo horizontal) e ele
procurar desesperadamente fugir subindo para o ceú (eixo vertical), a criança, capturada por
uma completa estranha (eixo horizontal), consegue fugir, também tomando a direção vertical, e
chega ao céu.
Estrangeira e não-parente, a ogra reproduz e transforma a avó libertina (por sua vez
transformação de Dona Mergulhão), exceto, justamente, por não ser uma ascendente e por
deixar-se seduzir pelo vizinho em vez de se zangar com ele por causa de uma brincadeira de
gosto duvidoso a respeito da procriação, e não da cópula, mas que também visa seu aparelho
genital. Em conseqüência disso, ela o trata castamente como um irmão, em vez de fazer dele seu
amante.
Depois de Dona Mergulhão e da avó libertina, o mito se refere a um terceiro personagem.
Salvo por um demiurgo macho da mãe, uma viúva aos prantos que queria levá-lo consigo para a
morte, o menino que irá tornar-se desaninhador de pássaros, inicialmente incorporado ao pai
adotivo, depois se separa dele e renasce graças a um parto pelo joelho, mas muito real. Roubado
de uma mãe, divorciada alegre que descuidava dele para viver a sua própria vida, o outro
menino, primeiro preso no cesto de um demônio fêmea, se livra cortando o pescoço
exageradamente esticado daquela que o carrega, um verdadeiro cordão umbilical, que transfere
HN 176
o local do parto, agora metafórico, para a parte superior do corpo, em lugar de se produzir no
sentido próprio pela parte de baixo. O desaninhador de pássaros quase morre por ter subido ao
topo de uma árvore. O herói de M598a se salva graças ao mesmo procedimento37, mas deve
percorrer a distância restante até o céu por uma cadeia de flechas, um detalhe que
encontraremos bem mais adiante (quinta parte) e cuja interpretação adiaremos.
Deixaremos igualmente para mais tarde o episódio seguinte, relativo à origem dos
parasitas do corpo, não sem notar que ele evoca uma inevitável concessão da cultura à natureza.
E também o episódio que vem imediatamente depois, no qual a alternância entre luz e escuridão,
instaurada pelo herói, explica e justifica o lugar que o dia deve ceder à noite. O fato de essa
periodicidade diária ser a mais curta que se possa observar aproxima mais uma vez M598a do
ciclo da avó libertina, também dedicado à periodicidade, mas em sua forma mais longa, medida
pela passagem das gerações sucessivas. Mitos nez-percé (M571a-c) — cuja forma a intriga de
M598a vai agora adotar — se referem a uma periodicidade intermediária, a do ritmo sazonal.
Finalmente, M598a se opõe a M571 de um outro modo, que conecta os dois grupos ao
ciclo do cego e do mergulhão, ciclo no qual a irmã do herói contrai um casamento afastado, no
povo canibal das gentes sem ânus nem vagina, como faz o herói de M598a em sua primeira
experiência conjugal fracassada. Bem, um incidente de M571, que já comentamos (supra:169),
leva a supor que as filhas de inverno, as primeiras a serem visitadas pelos heróis (igualmente em
busca de um pente para se pentearem) eram desprovidas de vaginas. Porém, se a interpretação
que propomos estiver correta, nesse caso, a aplicação de carne crua e sanguinolenta determina o
aparecimento da menstruação, que só exigem uma perfuração, digamos, mensal. Destinada a
permitir as relações conjugais, a perfuração das filhas canibais de M598a teria, portanto, de ser
mais freqüente, senão permanente. Entretanto, o procedimento inverso ao outro, empregado
pela gente do sol para afastar seus adversários, com fumaça de ossos queimados, não acarreta
nenhuma modificação anatômica. De modo que M598a responde à periodicidade relativamente
lenta instituída por M571 por uma periodicidade do mesmo tipo, mas mais curta, que a ordem da
narrativa anunciava. Aliás, ao xingarem os do sol de "furados e rachados", os canibais expressam
sua vontade de permanecerem tampados.
O episódio das duas esposas encontradas numa bolsa também remete ao ciclo de Dona
Mergulhão, cujo herói é inicialmente um menino escondido. Mas aqui são meninas, em vez de um
menino, que fazem esse papel, e o herói se casa com elas, quando o menino era escondido para
não poder ser desposado. Em segundo lugar, as moças, colocadas numa bolsa pendurada como o
cesto ou bolsa (M555a,b) em que fica o menino, ilustram uma situação inversa: estão tão pouco
escondidas que a bolsa em que se encontram é aquela em que todo o visitante cansado vai
imediatamente buscar o acessório mais indispensável para arrumar-se, ao chegar de uma longa
37
Porém, nesse caso, trata-se de uma árvore, o pinheiro branco, cuja madeira é desvalorizada:
"imprópria para qualquer uso e úmida demais para servir como lenha" (Adamson:162).
HN 177
viagem. É significativo que esse acessório seja um pente, pois que Dona Mergulhão acha o irmão
escondido graças a um longo fio de cabelo que ele perdeu ao pentear-se (quanto ao significado
desse episódio, ver infra:347-348).
Como no mito tillamook M565a, que também combina e transforma paradigmas
emprestados de outros mitos (supra:150), o herói finalmente contrai com uma criatura celeste
um casamento dos mais afastados, o oposto, portanto, de uma união incestuosa. Esse casamento
mais que exogâmico produz gêmeos colados desde o nascimento, que correspondem aos gêmeos
de M538-539, colados após o nascimento, em conseqüência indireta de uma união incestuosa. Mas
é preciso notar outra coisa: o esposo terrestre de uma mulher solar, que perfura a abóbada
celeste e revê sua aldeia, transforma diretamente, por efeito de uma simples inversão de sexo, a
esposa terrestre de um astro, à qual se dedicou longamente o volume anterior. Compreender-se-á
mais adiante (infra:529-534) o significado desse elo, que junta quase que sem intermediário a
esposa do astro e o desaninhador de pássaros. Depois do episódio dos cegos que recuperam a
visão, que evoca mais uma vez o ciclo esquimó sobre o mesmo tema e que voltaremos a
encontrar (infra:V, II), embora os gêmeos sejam desdobrados por uma intervenção mal-
intencionada, em vez de eles mesmos se desdobrarem — M539 — para poderem cumprir seu
destino, transformam-se, em ambos os casos, em estrelas da manhã, não anunciadoras da
primavera, segundo M598a, mas de morte violenta e, às vezes, de guerra (Jacobs 2, I:281
n.128a). O que não exclui M539, em que as estrelas gêmeas também pressagiam combates
(supra:206).
Sobretudo, o mito chinook completa o dos Modoc, no sentido de que tomadas em
conjunto, suas conclusões verificam integralmente as quatro condições que postulamos
dedutivamente para justificar a transformação que ambos operam, de um casal de irmão e irmã
incestuosos posteriormente separados ou reunidos num par de irmãos que, sendo de mesmo sexo,
não podem cometer incesto, o que leva a postular que, conseqüentemente, uma vez
transformados também em astros, eles não serão nem separados nem reunidos. O fato de tal
condição intermediária se refletir na oposição ora entre verão e inverno, ora entre aliados e
inimigos, não deveria surpreender, considerando-se o desenvolvimento que dedicamos a essa
transformação, em A origem dos modos à mesa (sexta parte). Mas o mito chinook precisa, ainda
com mais clareza que M539, que as estrelas gêmeas podem ser vistas uma de cada lado do sol;
ele as descreve, portanto, no momento do nascer helíaco, que ilustra bem a interseção entre
noite e dia. Finalmente, essa conjuntura astronômica, que aproxima o astro do dia, geralmente
solitário, de duas estrelas, restitui o equivalente de uma constelação, o que verifica nossa
terceira condição. Mas há mais: pois esta última configuração, a que chegamos depois de termos
inventoriado toda uma série de estados que se transformam uns aos outros e que ela mesma, por
sua vez, transforma (fig. 17), apresenta antisimetrias em vários eixos com relação à que ilustrava
o grupo em seu estado inicial. Tratava-se, então, da lua e do sol, ou seja, da noite incompatível
HN 178
com o dia; agora, trata-se de uma aurora indecisa, em que a luz do sol ainda não apaga a das
estrelas, e que tolera, portanto, uma certa compatibilidade entre a luz e a escuridão. Por outro
lado, o estado inicial dava mais atenção às manchas da lua, isto é, uma marca escura dentro de
um círculo claro, que por sua vez se destaca em fundo escuro, ao passo que a última configuração
consiste em duas marcas claras que se destacam num fundo escuro, fora de um círculo a que o
último mito não atribui marca escura interna. Pode-se até dizer que ele a exclui por preterição,
na medida em que o irmão caçula, cego no sentido próprio, também exterioriza em relação ao
herói a cegueira de ordem moral que o caracteriza em M538, e da qual, justamente, ele tenta
escapar ferindo o sol e provocando suas manchas, para que ele concorde em iluminar.
*
* *
simples, duplos e múltiplos. O mesmo fenômeno observável nas imediações da lua recebe o nome
de parasselênio. As versões wishram e wasco (M598d-g, Sapir 1:171-173, 276-279, 303-307; Sapir
& Spier 2:277) buscam explicar, além da origem dos paraélios, porque as formigas e vespas têm
cintura fina. Os moradores da aldeia tinham amarrado em torno da cintura os ricos presentes
recebidos da dama celeste, que quis retomá-los ao partir, e puxou com tanta força que seus
portadores quase foram cortados ao meio. Como vimos, em M598a, eles voltaram a ser cegos. A
dialética do grupo gera, portanto, personagens tapados em baixo (sem ânus e sem vagina) ou em
cima (cegos), e também personagens cortados em dois, na altura do pescoço (a ogra), ao longo
do corpo (os gêmeos) ou na altura da cintura (os insetos). Estes últimos têm como contrapartida
parasitas de origem celeste que passarão a "furar" os humanos. Esse ponto resulta, a contrario,
de um mito nootka que discutiremos mais adiante (M600f, infra:361), cujo herói, que inverte o
de M598a por ser o único entre seus irmãos e irmãs a não ser roubado pela ogra, tendo por missão
libertá-los, encontra primeiramente no céu, para onde vai em busca deles, em vez de parasitas
canibais, graciosas moças-caracol cegas, a quem ele dá a visão perfurando-lhes olhos com a ponta
do pênis. Por outro lado, nos mitos correspondentes dos Salish de Puget Sound (M600i-m, Ballard
1:106-112), as ogras terrestres e ladras de crianças são mulheres-caracol, infestadas de parasitas
que as atormentam cruelmente.
O comentário indígena inclui entre os fenômenos premonitórios as conjunções de uma ou
duas estrelas com a lua. A primeira significa que uma mulher logo irá enviuvar, e a segunda, que
ela própria morrerá, bem como seus dois filhos. O arco-íris próximo da lua no crepúsculo
pressagia um assassinato (Sapir 1:193; Sapir & Spier 2:277). Trata-se certamente de um
parasselênio cujas cores, como a dos paraélios, às vezes se assemelham às do arco-íris.
Todas as tribos dessa região que dão um valor sinistro aos paraélios parecem,
efetivamente, opo-los ao arco-íris que, assim, conota a vida. A mesma palavra yana, /lakiyaa/,
significa "recém-nascido" e "arco-íris" (Sapir & Swadesh 1:114). Os Shasta garantem que, em
qualquer estação, sempre chove após um parto (Dixon 7:454-455). Os Coos vêem no arco-íris um
sinal de que ocorrerá, numa família importante, um nascimento, acompanhado de chuva (Jacobs
5: 101). Os Wishram acreditam que, quando aparece um arco-íris, isso quer dizer que uma mulher
está prestes a dar à luz, e se o arco-íris for duplo, ela dará à luz gêmeos (Sapir 1:191, 193). Para
todos esses índios, portanto, o arco-íris se opõe à conjunção entre a lua e uma ou duas estrelas
(ou planetas), sinal de morte para uma mulher, como vimos, em vez de sinal de nascimento por
uma mulher. Além disso, as conjunções de tipo lunar ou solar conotam respectivamente mortes
femininas ou masculinas. E assim, vemos tomar forma um sistema:
NASCIMENTO MORTE
(chuva, arco-íris)
FÊMEA MACHO
HN 180
Os Yana, cujo léxico junta, de modo significativo, nascimento e arco-íris, atribuem aos paraélios
um papel funesto, como anunciadores de morte iminente (Sapir & Spier 1:285). Pois bem, um de
seus mitos ilustra com tanta fidelidade o sistema triádico que acabamos de esboçar que de certo
modo o comprova experimentalmente (M599a, Curtin 3:281-294; para uma forma fraca do mesmo
mito M599b, Sapir 3:233-235). No tempo em que a noite ainda não existia, o povo celeste se
dividia em três grupos. O primeiro composto pelos dois Arco-Iris, pai e filho, e seu cunhado ou tio
materno, dono da chuva e da tempestade, o segundo por Lua e sua mulher, Puma, com suas
filhas, as Estrelas, e seus maridos, e o terceiro, por Sol e sua esposa, Paraélio (Curtin,
/utjamhji/, cf. Sapir & Spier 1, /utdja'm'djisi/, "paraélio"; Sapir & Swadesh 1, /udzamxzi-/, "há
um paraélio"), com suas três filhas Meteoros. O jovem arco-íris desejava se casar com uma das
três filhas solteiras de Lua, que se chamava Estrela d'Alva (a única, portanto, que não é
incompatível com o dia). Mas Lua costumava levar os pretendentes de suas filhas para seu irmão,
Sol, que lhes impunha testes mortais. O herói conseguiu passar pelos testes, graças à ajuda do
tio, dono da tempestade e da chuva. Lua, contudo, não se deu por vencido, e tentou ele mesmo
destruir o genro, mas este livrou-se do adversário despachando-o, juntamente com as Estrelas
suas filhas, para o céu noturno, onde, a partir de então, ele morrerá e renascerá periodicamente
(fig. 18).
grupos e se dispersam em direções opostas (M609a, Lowie 2:160-161; compare-se com a versão
achomawi, supra:105). Ainda segundo eles, o aparecimento de paraélios no inverno pressagia
tempestades duradouras (Ibid.:56). Os Arapaho, de língua algonquina e vindos do norte,
acreditam que os paraélios anunciam muito frio: "Os velhos diziam que o sol acendia fogueiras,
uma de cada lado, e, diante disso, eles se preparavam para agüentar um inverno rigoroso" (Hilger
2:93). Os Santee Dakota, vizinhos imediatos dos Ojibwa a sudeste dos Grandes Lagos, chamam os
paraélios e parasselênios, /wi-a-cé-i-çi-ti/, de /a-cé-ti/, "acender uma fogueira" (Riggs 1:8, 565).
Segundo os Oglala Dakota, um círculo em torno do sol precedia o retorno dos guerreiros
vitoriosos; era também um incentivo para a celebração da dança do sol, que simboliza o sucesso
de uma expedição guerreira (Beckwith 2:404-405).
Voltemos, após esse rápido circuito, a nosso ponto de partida. Os Modoc chamam de
/wänämsäkätsaliyis/ um círculo verde ao redor do sol que anuncia tempestade (Curtin 1:302). A
locução klamath que designa o halo solar, /wanam shakatchalish/, remete à raposa, /wan/, fiel
companheiro de Kmúkamch (Gatschet 1, II:474), aproximação que lembra a das línguas das
Guianas, entre o sarigüê e o arco-íris (supra:37, 39; CC:255; OMM:136). É digno de nota o fato de
os Klamath atribuírem ao grito do Mergulhão o mesmo significado que os Modoc e os Chinook dão
ao nascer helíaco de duas estrelas ou dois planetas, e os Chinook, aos paraélios: "Quando se ouve
o grito do mergulhão ao amanhecer, é presságio de assassinato" (Spier 2:138). Se nos
transportarmos para o outro extremo da área, entre os algonquinos orientais, onde a
transformação wabanaki nos forneceu a chave para interpretar um vastíssimo conjunto mítico e
consolidá-lo, a noção de um paralelismo entre os paraélios e o grito do mergulhão é ainda mais
evidente. Segundo os Penobscot, "os paraélios, /abas.éndan/, 'meio' (certamente para indicar a
origem central dos reflexos do sol), ou 'a porta', anunciam a tempestade, chuva no verão, neve
no inverno. A tempestade virá do mesmo setor em que o anel em torno do sol está rompido". Eis
agora o que os mesmos índios dizem do mergulhão: "Quando ele grita à noite, o vento vai soprar
no dia seguinte, vindo do setor oposto àquele de onde vinha o grito do pássaro. Quando vem do
outro lado de um lago, o vento vai soprar de lá, pois os mergulhões buscam se abrigar sob o
vento" (Speck 3:33). Os Shasta, vizinhos imediatos dos Klamath, parecem estender aos paraélios o
mesmo tipo de raciocínio: "Se forem vistos ao amanhecer, pressagiam guerra; e se um deles se
dissipa antes do outro, o que resta mostra de que lado estarão os vencidos" (Dixon 7:471). De
modo que, do Atlântico ao Pacífico, estamos diante da mesma problemática que, ora no campo
da meterologia, ora no da ordem social e política, utiliza de modo comparável os paraélios e o
mergulhão. Não surpreende, portanto, que uma longa série de transformações nos tenha levado
do Mergulhão para Orion, e então para as manchas do sol, e para estrelas ou planetas em relação
ou em conjunção com o sol e, finalmente, aos paraélios. Mais uma vez, o ciclo das
transformações míticas se fecha: os paraélios levam de volta ao mergulhão.
HN 183
Aliás, os Klallam, de língua salish, e os Nootka, de língua wakashan, instalados uns diante
dos outros nas duas margens do estreito de Juan de Fuca, compartilham um mito que
retransforma os paraélios, certamente assimilados aos parasselênios, nas manchas da lua, com
que começou nossa série de operações. As versões klallam (M600a-c, Gunther 2:125-131) contam
que uma mulher, cujos filhos tinham todos desaparecido, um após o outro, chorava muito e teve
de assoar o nariz; o muco nasal, ao cair no chão, adquiriu vida na forma de uma criancinha que
cresceu depressa e que, em referência à sua origem, recebeu o nome de "Filho-de-Ranho" ou
"Feito-de-Ranho". Ao tornar-se adulto, tratou de reencontrar seus irmãos e irmãs, que tinham
sido roubados por uma ogra e que ela mantinha presos, depois de tê-los cegado colando suas
pálpebras com resina (Nootka, 600f, Boas 13:117; Sapir & Swadesh 2:89-101; cf. Chinook, M598a-
g). Ele finalmente conseguiu libertá-los e matou a ogra. Nas versões klallam, a ogra é substituída
por uma fera que fez da irmã do herói sua esposa; um marido subterrâneo de uma humana, que
inverte a esposa celeste de um humano, o que é reforçado pelo fato de, nas versões chinook, a
mulher sempre dá à luz uma criança dupla, irmãos siameses ou, como aqui, criança de duas
cabeças ou duas caras, que não para de provocar o tio, chamando-o de "Ranho". Furioso e
humilhado, ele sobe ao céu, onde se transforma na lua, ou nas manchas do astro noturno38.
Portanto, em vez de a criança dupla dar origem diretamente aos planetas conjugados ou
paraélios, cujas características podemos resumir numa forma simplificada,
a) 2 claros EXTERNOS sobre escuro/SOL,
ela dá indiretamente origem às manchas da lua, cuja fórmula simplificada é antisimétrica em
relação à outra,
b) 1 escuro INTERNO sobre claro/LUA.
Diante disso, é fundamental notar que o mito do Filho-de-Ranho reproduz e inverte em vários
detalhes o mito das Planícies chamado do Menino-de-Pedra. Bastaria, para comprovar que ele o
inverte, a origem de cada um dos heróis. Mas eles nascem, ambos, de uma mulher cujos filhos ou
irmãos desapareceram, um após o outro, vítimas de uma bruxa má. O herói, nascido de um
milagre, sempre os liberta, mas em seguida deve se separar de seus familiares para escapar das
intenções negativas — ou positivas demais, no caso do incesto, cf. M466 — de um parente
próximo. A não ser que consiga, como na versão nootka, casar-se com uma mulher de longe, que
então se torna o sol visível. Nos dois outros casos, é ele mesmo que se transforma na lua ou em
suas manchas, ou ainda numa pedra clara no alto de uma colina que, como mostramos
(OMM:321), é uma contrapartida terrestre da lua, exigida por um contexto que já invertia ponto
por ponto o do mito panamericano sobre a origem incestuosa da lua com suas manchas e do sol. O
retorno à pedra, da qual nasce, afinal das contas, a lua celeste, acontece aliás ali mesmo, nos
38
Ele é filho do sol e se reune ao pai na versão bella coola (M600h, Boas 12:83-86). Acerca do
conjunto desse grupo, que se estende dos Tlingit, ao norte, até os Coos, ao sul, e do qual selecionamos aqui
HN 184
mitos dos Salish costeiros cujo herói é o demiurgo Lua, criança concebida de uma pedra engolida
pela mãe, depois roubada no berço e libertada por intervenção dos familiares, em vez de ser ele
que os liberta (M375a-o, M382, cf. Adamson:380 et passim). Uma versão salish da ilha de
Vancouver (M600g, Hill & Tout 5:331-336) atesta a realidade dessa transformação. Depois de ter
ressuscitado seus dez irmãos mortos por um ogro, e libertado a irmã raptada, ao voltar para sua
aldeia, o herói, ofendido por uma alusão indelicada à sua origem, se retransforma em ranho. O
ciclo pedra => lua, lua => ranho, se fecha, portanto, pela comutação entre pedra e ranho, origem
do herói. Voltaremos mais adiante (:297) ao conjunto da transformação.
QUARTA PARTE
CENAS DA VIDA DE PROVÍNCIA
"A sociedade não faz do homem, dependendo dos meios em que ele atua, tantos homens
diferentes quanto variedades há em zoologia? As diferenças entre um soldado, um operário, um
administrador, um advogado, um desocupado, um especialista, um político, um comerciante, um
marinheiro, um poeta, um pobre, um padre, ainda que mais difíceis de perceber, são tão
consideráveis quanto as que distinguem um lobo, um leão, um asno, um corvo, um tubarão, um
filhote de baleia, um cordeiro, etc. Portanto, houve, e sempre haverá, Espécies Sociais, assim
como há Espécies Zoológicas."
H. de Balzac, Prólogo, A Comédia Humana
I
PEIXES SOLÚVEIS
"Insolubilidade é a propriedade de um corpo que não pode ser dissolvido, ou, o que dá no mesmo,
que resiste invencivelmente à ação menstrual. Ver Mênstruo."
Enciclopédia..., publicada por M. Diderot... e
M. d'Alembert, art. "insolubilidade"
Ao norte do território dos Klamath, o planalto e a cadeia das Cascades deixam fluir o rio
Columbia, aparentemente anterior aos grandes acidentes geológicos, que não foram capazes de
obstruir seu curso e dão à paisagem seu aspecto atual. Pequenos grupos indígenas, rapidamente
extintos e sobre os quais não se sabe grande coisa, Takelma e Molala, constituiam um tampão
entre os Klamath e os Kalapuya. Estes últimos, cuja língua é relacionada ao takelma (Swadesh 6;
Shipley 2), ocupavam o curso superior do rio. O curso inferior e a confluência, quase no estuário
do Columbia, pertenciam a tribos chinook instaladas nas duas margens do rio e na zona costeira,
desde as quedas no início da travessia das Cascades até o mar. Essas tribos chinook — Clatsop.
Kathlamet, Clackamas, Wishram, Wasco, etc. — confinavam, por sua vez, a leste, com um
conglomerado de populações de língua sahaptin, no qual podem ser distinguidos vários grupos, os
Sahaptin do rio Columbia, cujos principais representantes eram os Tenino, os Sahaptin
setentrionais, compreendendo os Yakima, Klikitat, Cowlitz, Walla, Palouse, etc., e, finalmente,
os Nez-Percé, nos contrafortes das Rochosas, ocupavam as marcas orientais dessa família
lingüística, a cujas formas arcaicas estão ligados. Classificados outrora entre os Sahaptin, os
Molala e os Cayuse são atualmente considerados como ramos distintos do grande tronco
Penutiano, a que pertenceria também o conjunto Sahaptin-Nez Percé (Rigsby 1, 2; Voegelin).
HN 186
Pois bem, certas versões chinook do mito do desaninhador de pássaros apresentam um interesse
duplo e considerável, não só porque fazem a ponte com as versões mais setentrionais, a que
estudaremos na quinta parte, como também em razão de um problema teórico colocado a seu
respeito, para o qual iremos sugerir uma solução muito diferente daquela que foi inicialmente
proposta.
Era uma vez um grande caçador, chamado Águia, que vivia com seu avô,
Coiote. Este fez o neto subir no alto de um rochedo, para pegar águias no
ninho, cujas penas serviriam para empenar suas flechas. Antes, ele o
tinha convencido a despir-se, para não estragar suas belas roupas
bordadas com contas e enfeitadas com conchas. Água cumpriu sua missão
mas, quando quis descer, percebeu que o rochedo tinha se elevado e seu
topo quase tocava no céu. O que ele tomara por penas de águia não
passava de tripas de coiote.
Coiote vestiu as roupas do neto e assumiu sua aparência. Para enganar
melhor as esposas do neto, fingiu que estava preocupado com a ausência
do velho avô, e dormiu com duas delas, que se chamavam Camundongo e
Pica-Pau. Levantou acampamento no dia seguinte, e fez isso dia após dia.
Águia permaneceu muito tempo preso no rochedo. Passou fome e
emagreceu. Finalmente, o velho Trovão apareceu e fendeu a rocha.
Nasceu mato na fenda, Águia desceu por ele e foi procurar a família. Duas
de suas mulheres tinham permanecido fiéis a ele. Quando Coiote mudava
de acampamento, elas seguiam as outras de longe, chorando. Guiado pelo
calor crescente das fogueiras abandonadas, Águia conseguiu alcançá-las,
e elas lhe contaram tudo o que tinha acontecido. Na mesma noite, o
herói se apresentou. Choramingando, Coiote quis devolver-lhe as roupas
roubadas. "Pode ficar com elas — respondeu Águia — e com minhas duas
mulheres também". A vida voltou a ser como era antes.
Certo dia, Águia pediu ao avô para ir limpar dois cervos que ele tinha
matado e trazer a carne. O caminho de volta era longo, e Coiote passou a
noite perto da caça. Começou a chover sem parar. Na manhã seguinte, o
velho constatou que os bichos tinham-se transformado em ramos. "Bem
feito para mim — pensou. Meu neto se vingou". Na volta para o
acampamento, ele teve de atravessar vários barrancos que tinham virado
HN 187
Segundo uma versão wishram mais recente (M601b, Sapir 1:4-5), as aves em questão poderiam ser
andorinhas do mar, que acompanham a subida dos salmões. Donas dos salmões na origem, num
local de água parada onde elas os mantinham presos, as mulheres se transformam portanto, em
suas mensageiras, a partir do momento em que os peixes ficam livres para se deslocarem na água
corrente dos rios. Voltaremos a esses temas contrastados. Por ora, concentraremos nossa atenção
no comentário feito por Sapir abaixo da transcrição do mito. Diga-se desde já, em favor do
grande lingüista, que ele era muito jovem quando trabalhou entre os Wishram e que, mais tarde,
ele talvez não se tivesse sentido tão limitado por um historicismo míope — aliás indispensável
naquela época, e produtivo na medida em que obrigava a reduzir o campo de investigação em
favor de seu aprofundamento — que representava um lado dos ensinamentos de Boas.
Em relação às versões anteriormente examinadas, a originalidade de M601a consiste em
unir no mesmo mito a história do desaninhador de pássaros tal como a temos encontrado até
agora, e um episódio que, à primeira vista, parece ser totalmente novo, o da libertação dos
salmões. Sapir não poderia ter deixado de notar essa construção sintética, mas considerou-a
contingente e arbirtária: "Dois mitos completamente diferentes foram reunidos num só". A
história do desaninhador de pássaros, continua o autor, existe isoladamente entre os Klamath, ao
sul, e também entre os Thompson e Shuswap, ao norte (examinaremos as versões dessas tribos
salish na quinta parte, a partir de M667). Isso prova, afirma Sapir, "que esse é um mito próprio da
região do Planalto, que os Wasco provavelmente adaptaram ao ciclo de Águia e Coiote". A área
do segundo mito, consagrado à libertação dos salmões, estaria, por sua vez, situada na bacia do
Columbia, pois é conhecido em estado isolado entre os Wishram e os Nez Percé (Sapir 1:264 n.2).
A última afirmação deve ser corrigida. Na verdade, a versão nez percé invocada por Sapir
(M602a, Spinden 1:15-16) também contém uma referência implícita à história do desaninhador de
pássaros. Ela começa pela vingança do herói, que surge sem motivo, na ausência de um conflito
HN 188
anterior que o mito não menciona, porque supõe que seja conhecido. A narrativa completa,
iniciada com a história do desaninhador de pássaros e terminando com a libertação dos salmões,
ressurgiria duas décadas mais tarde (M602b, Phinney:376-381), da boca de uma velha informante,
cuja fidelidade à tradição e inspiração arcaica é, aliás, sublinhada (Ibid.:vii). As outras versões
nez percé publicadas por Boas (4:135-144, M602c-h) mantêm as duas histórias separadas, porém
— certamente não por acaso — colocadas uma após a outra. De modo que a conexão tachada de
arbitrária por Sapir se encontra em populações muito diferentes pela língua, pela cultura e pelo
modo de vida, ainda que a distância entre elas não passasse de trezentos ou quatrocentos
quilômetros. Já seria razão suficiente para reconhecer aos mitos uma lógica interna. Mas
podemos demonstrá-lo de forma mais direta.
*
* *
À primeira vista, a mitologia dos Kalapuya, limítrofes dos Chinook ao sul, confirma a tese
de Sapir, já que eles contam a história da libertação dos salmões mas aparentemente não a do
desaninhador. Mas eles dão à primeira uma forma bastante particular, embora não tenham
exclusividade nela:
Como se vê, essa versão enfatiza a liberação da água/potável muito mais do que a dos
peixes/comestíveis. Seria possível mostrar a razão disso? Sim, claro, se notarmos que esse mito
diz respeito à obtenção da água potável pela demolição de uma barragem, e que os Kalapuya
possuem um mito exatamente simétrico sobre a perda do fogo de cozinha em decorrência da
edificação de uma outra barragem:
disse para sentar na cama do irmão. A partir de então, cada um teria seu
próprio trabalho: Puma garantiria a comida, Coiote cuidaria do fogo e a
mulher cozinharia.
Certo dia, Puma resolveu ir visitar os sogros em companhia da esposa.
Coiote guardaria a casa na ausência do casal. Os viajantes partiram, e
chegaram perto de um rio ao cair da noite. Um passador, que devia ser
chamado sem fazer ruído algum, ou não ouviria nada, os fez atravessar
em sua barca; era um peixe silurídeo (mudfish). A mulher apresentou o
marido ao pai. Puma caçou para os sogros e despediu-se. Prometeram
voltar a se ver logo.
Algum tempo depois, Puma pediu ao irmão que acompanhasse sua
esposa à casa dos pais dela. No caminho, ela teve vontade de descansar e
abriu as pernas ao sentar-se. Coiote ficou cheio de desejo com o que viu.
Disse que estava doente e que tinha de voltar para casa, e que a cunhada
podia ficar ali mesmo esperando pelo marido, que viria ao seu encontro
logo depois de ter sido avisado.
Mas Coiote parou perto de um pequeno brejo e mergulhou nele várias
vezes, até seus excrementos, que ele ia depositando na margem, lhe
darem a certeza de que estava com a aparência de um puma. Então
voltou para junto da mulher dizendo que era seu marido. Ela não ficou
muito convencida, mas cedeu. Todos os gestos de Coiote, no entanto,
davam a ver quem ele era: ele não conseguia fazer com que a bagagem
andasse por conta própria, como o irmão, gritava inutilmente para
chamar o passador, e a única coisa que conseguiu caçar para os sogros foi
uma rã.
Naquela noite, Puma sonhou que o irmão lhe tinha tomado a mulher.
Juntou seus guerreiros, e liderou-os até a beira da água. Em lugar do
Peixe, chamou a "mulher de Coiote", antes sua, para servir-lhe de
passador. Ela finalmente apareceu, apesar de estar grávida e à beira do
parto. O pai Baleia, que evidentemente era clarividente, pois que
pressentia o que estava para acontecer, mandou o Peixe empalar Coiote
com uma vara afiada, aproveitando enquanto o falso genro estava
ocupado no teto consertando a saída de fumaça. Enquanto isso, a barca
chegava à outra margem. Puma saltou, abriu o ventre da mulher e tirou
os dois bebês, um seu e o outro do irmão. Entregou o primeiro ao maior
de dois gaviões ("chicken-hawk"; Accipiter sp.), para que o levasse para o
ceú, e jogou o outro no rio. Também cortou as duas tranças da mulher e
as deu ao segundo pássaro.
As águas começaram a subir. As pessoas, correndo, nadando ou sendo
transportadas por aves piedosas, fugiram para o alto das montanhas. A
serpente trigonocáfala ("copper snake") tinha levado o fogo. Puma foi
censurado: "A água não quer baixar! O que foi que você pegou e não
devia?". "Só meu filho e os cabelos dessa mulher", respondia ele. Mas
eram justamente os cabelos que a água perseguia. Mandaram o gavião
pequeno soltar as tranças, e a água baixou.
Perceberam então que não havia fogo. A serpente mandou dizer que
estava com ele na garganta, que desde então queimava. Puma propos
comprar o fogo. Depois de muita barganha, a serpente concordou em
entregá-lo em troca de uma manta de couro curtido, que é a causa do
ruído que o réptil faz atualmente quando se desloca. Acenderam uma
grande fogueira, mas as pessoas ricas e bem nascidas reservaram para si
seu usufruto. Os outros tiritavam de frio.
Incitados por Coiote, eles arquitetaram um estratagema, e
propuseram um espetáculo aos ricos. Mas, em vez de penas, enfeitaram-
se com galhos de madeira resinosa, que se inflamavam quando os
HN 190
Uma outra versão (M604b, Ibid.:215-221) atribui a Coiote cinco filhos prematuros em vez de um,
e acrescenta que ele construiu uma barragem rio abaixo, na esperança de recuperar sua prole
lançada às águas. O que provocou a inundação que também aparece em M604a, que não
especifica sua causa.
Não insistiremos aqui nos protagonistas do mito. Formam um par de animais
complementares, um carniceiro e o outro predador, e transpõem essa dualidade para o plano da
cultura, dividindo os papéis: ambos são provedores do lar, um de lenha para o fogo, o outro de
caça. Voltaremos a encontrar uma dupla semelhante (M644 e seguintes, p. 265ss) e
compreenderemos melhor a razão de sua primeira aparição, num mito que evoca uma era em que
mesmo os bens mais indispensáveis, como o fogo, podiam ser monopolizados por uma minoria
egoista, e seu usufruto tinha de ser negociado. Esse traço já bastaria para evidenciar a relação de
simetria entre M603 e M604, já que o primeiro mito evoca exatamente a mesma situação quanto
à água potável, em lugar do fogo doméstico. Mas a simetria aparece também em outros planos.
Em M603, o demiurgo enganador provê a futura humanidade de água potável; em M604, ela
inicialmente perde o fogo, por causa dele. Para que se possa beber à vontade, é preciso que uma
água parada (contida num reservatório) se torne corrente. Inversamente, um particular é capaz
de subtrair ao uso comum o fogo, e apropriar-se dele, porque uma barragem recém construída
impede o livre curso da água, retendo-a e provocando uma inundação.
O incidente das tranças cortadas, entregues ao gavião e depois entregues à água, é
bastante misterioso. Como aparece num mito sobre a origem do fogo, somos tentados a
aproximá-lo de um detalhe comparável de mitos salish com o mesmo tema (M650a, infra:282),
em que a egoísta dona do fogo o guarda em suas tranças feitas de cinco troncos ardentes
entrelaçados39. Note-se que a heroína ["pai Baleia"?!] de M604 é uma Baleia, e dona da água, já
que conhece o segredo para atravessá-la na barca do passador, sem se molhar, portanto. No mito
salish, ao contrário, a dona do fogo é incapaz de atravessar um rio, porque suas roupas não
podem ficar molhadas (Adamson:203-204). Deixaremos a outros a tarefa de elucidar essa
transformação.
O gavião, por sua vez, também forma um par de opostos com a cobra nos mitos chinook
(Boas 10:195); é o dono do dilúvio entre os Kutenai (Boas 9:41); e trata de conquistar o fogo em
mitos tlingit (Swanton 2:11,83). A extensão desse motivo até o Alasca é ainda mais significativa
na medida em que, como indicam os mitos, os Kalapuya possuíam uma estrutura social
39
Comparar com o procedimento empregado pelo herói animal que se encarrega de roubar o fogo
pelo bem da humanidade futura, na maioria dos mitos da mesma região. Como entre os Wishram, por
exemplo (Sapir 1:295): "ele pegou dois tições e... prendeu-os na vertical nas próprias orelhas, que ficaram
HN 191
de pé, parecendo orelhas de asno...". Seria tentador tentar resolver assim o enigma dos personagens de
longas orelhas cuja ocorrência em petroglifos de várias regiões da América assinalados (OMM:56).
HN 192
fogo à da água não é senão aquele que, em O cru e o cozido, nos permitiu construir o grupo do
desaninhador de pássaros, cujo mito, entretanto, os Kalapuya não conhecem.
Ausência essa que não deve surpreender, já que, no novo sistema, a função etiológica do
desaninhador de pássaros se encontra de certo modo mobilizada em prol de outros mitos. Se
chamarmos de A o mito do desaninhador e de B o da liberação dos salmões (aqui mudado em mito
sobre a origem da água), podemos dizer que, entre os Kalapuya, B exclui A devido ao fato de B
preservar seu próprio código, mas utilizá-lo para transmitir a mesma mensagem de que os povos
vizinhos (e, na América do Sul, os Bororo) encarregam o mito A.
Sabemos que a armação panamericana de A lhe permite evocar alternadamente a origem
da água (M1) ou do fogo (M7-12). Como A é eliminado pelos Kalapuya, essa dupla função
etiológica passa para B, por razões que a infra-estrutura tecno-econômica revelou. Ao mesmo
tempo, B se desdobra em duas formas, uma reta e a outra invertida. De modo que {A, A-1} e {B, B-
1
}, que cumprem funções idênticas, não são objetos realmente distintos.
Na verdade, o problema colocado por Sapir quanto a M601 é ilusório. Os mitos não são
comparáveis a coisas cuja identidade possa ser reconhecida quando são encontradas
isoladamente ou combinadas umas às outras. E não existe em lugar algum um sortimento de
peças que, escolhidas de vários modos e dispostas como um mosaico, pudessem ser a causa da
criação de novos mitos, cujo nascimento fosse sempre regido pela arbitrariedade. Nosso
postulado é que todo mito, pelo simples fato de existir, enuncia um discurso coerente. Os
elementos com que opera não possuem valor autônomo, adquirem sua função significante no seio
das combinações em que são mobilizados, e só a conservam em relação a tais combinações.
Sendo assim, um mito pode ser homogêneo do ponto de vista semântico mesmo quando as partes
que o compõem podem ser localizadas alhures isoladamente. Sua associação no discurso mítico
exclui a arbitrariedade, sem ser por isso obrigatória.
*
* *
Quisemos começar esta parte pela refutação de um empirismo fora de moda porque o
mito do desaninhador de pássaros apresenta, entre os Sahaptin, uma construção ainda mais
complexa do que a das versões chinook. Se tivéssemos seguido Sapir, admitindo que a versão
wasco seria feita de dois mitos distintos e justapostos, teríamos agora de invocar, estendendo
esse tipo de interpretação aos Sahaptin, a coalescência de três ou quatro mitos, em vez de dois.
Essas explicações preguiçosas tiram da mitologia toda a sua riqueza, reduzindo-a a um
empilhamento de peças avulsas, todas elas desprovidas de significado.
Um homem chamado Arco tinha duas esposas, Grizzly e Ursa (de uma
espécie diferente da primeira, urso negro ou pardo, dependendo da
versão). Certo dia, Grizzly avisou que estava incomodada e devia se isolar
até o final de seu período menstrual. Quando acabou, pediu a seus dois
filhos que lhe trouxessem suas roupas normais. O irmão e a irmã
assistiram enquanto a mãe se vestia e vieram que ela assumia pouco a
pouco a aparência de uma ursa grizzly. Voltaram correndo para avisar.
Para escapar da fera, Ursa subiu no alto de uma árvore, Abutre
transformou-se em cortina de porta, e Arco tornou-se a arma com esse
nome. As crianças, enquanto isso, fugiram, ajudadas por seu cão.
Chegando à aldeia, Grizzly destruiu todos os objetos que haviam sido
pessoas. Só poupou Coiote, transformado num pedaço de madeira
bichada, porque ele ameaçou enfiar um monte de larvas no ânus dela.
Grizzly encheu o cão de perguntas. Ele acabou dizendo para que lado eles
tinham fugido e ela saiu correndo atrás deles.
Os dois já estavam bem longe, e o menino, que se tornara adulto, vivia
maritalmente com a irmã. Certo dia, ele sentiu vontade de explorar uma
região na qual ela tinha dito para ele não entrar. Lá encontrou a mãe,
que lhe propôs catarem os piolhos um do outro, e aproveitou para matá-
lo.
Em seguida, Grizzly foi ao acampamento da filha. Ao vê-la chegando, esta
colocou o bebê de lado e fez jorrar uma fonte. Grizzly, justamente, tinha
sede, mas cada vez que tentava beber, a água baixava. Ela foi obrigada a
rastejar, e a filha então a matou, jogando-a no fundo do barranco seco.
Coiote logo apareceu por ali, pois queria se casar e lhe haviam dito que
uma mulher completamente livre lá vivia. Mas a jovem viúva preferia a
morte àquele pretendente. Ela ateou fogo à comida e jogou-se nas
chamas. Coiote procurou-a por toda parte, mas só achou o bebê no
berço.
Perplexo, recorreu a suas informantes habituais, suas duas irmãs, que ele
levava nas tripas e excretava sempre que precisava de alguma
informação. E sempre, assim que elas diziam o que ele queria saber, ele
retrucava que não precisava daquela informação, que já sabia aquilo
fazia muito tempo. [Às vezes, as irmãs-excremento se chamam Pinhão e
Mirtilo; cf. Jacobs 1:88 n.5].
Por isso as irmãs, no começo, disseram que estavam cansadas de
responder, e Coiote teve de ameaçá-las com uma chuva que iria
desintegrá-las. Então, elas lhe contaram em detalhes tudo o que tinha
acontecido. Como sempre, Coiote disse que já sabia. Fez com que elas
voltassem para dentro de suas entranhas e adotou o pequeno órfão.
O menino cresceu depressa, tornou-se um bom caçador, e se casou com
sete mulheres, cinco que se chamavam Camundongo (Mice), uma
Gafanhoto (Cricket) e a última Rola (Turtle-Dove). Coiote gostava de se
deitar perto das noras. Acendia uma fogueira crepitante e ficava se
deleitando com o espetáculo das mulheres que levantavam as roupas para
evitar que as faíscas as queimassem e se expunham. Foi assim que ele
percebeu que Gafanhoto e Rola, de quem seu filho parecia gostar
especialmente, tinham a vulva negra, ao passo que a das cinco
Camundongo era branca. O filho desprezava esse grupo de esposas, e
Coiote resolveu apossar-se delas.
Foi defecar no alto de um rochedo e transformou seus excrementos em
dois filhotes de águia. Depois mandou o filho ir pegá-los, para ter penas,
convencendo-o de que precisava delas para empenar suas flechas. Mas
antes o fez trocar de roupa com ele, dizendo que as suas roupas
agüentavam qualquer coisa. Quando o filho chegou ao ninho, só
HN 194
Muitas variantes desse longo mito são conhecidas, mas os velhos informantes que as contaram
aparentemente já não sabiam dizer exatamente qual a identidade zoológica das moças-ave donas
dos peixes. Os Klikitat chamam-nas /wi'dwid/ e traduzem essa onomatopéia por "maçarico",
"andorinha" ou "pato selvagem" (Jacobs 1:86, n. 3; cf. p. 197). Talvez devamos aproximá-la da
palavra klamath /!wi.did(ig)/, também uma onomatopéia (Barker 2:99), "maçarico kildir, ou
maçarico". Vimos que os Chinook mencionam, no mesmo contexto, as andorinhas do mar,
anunciadoras da subida dos salmões. De modo que sempre se trata de aves aquáticas, que têm
com os peixes uma relação de contigüidade, espacial ou temporal.
Nas várias versões, observa-se uma flutuação comparável no que diz respeito à identidade
zoológica das esposas do herói. As tribos do rio Cowlitz (M607a,b; Jacobs 1:103-107, 191-202) dão
a ele dois pares de esposas, as de vulva preta, que são rolas ou pombas, e as irmãs camundongo,
de vulva branca, às vezes substituídas por uma camundongo e uma gafanhoto. Em M607a, as
chuvas diluvianas provocadas pelo herói desempenham um duplo papel: encarregam-se do castigo
de Coiote, e também do das esposas infiéis, que não conseguem atravessar a corrente e, de
humanas que eram, viram camundongos (l.c.:105). Coiote se salva graças a duas espécies de
madeira resinosa (pinheiro de Douglas e tuia), cujos galhos o auxiliam a se alçar até a margem a
aos quais, em agradecimento, ele confere virtudes medicinais e utilidade como madeira para
construção (Ibid.). Voltaremos a encontrar este último aspecto em mitos chinook (M618, 620;
infra:262) que começam como os que estamos analisando e que nos ajudarão a interpretar a
seqüência inicial comum a todo o grupo. Segundo M607a, Coiote também se transforma em bebê
para obter a ajuda das cinco irmãs donas dos salmões. Mas esse bebê, que inverte o ancião que
volta ao lar em M606a, se comporta de modo libidinoso para com as mulheres. A mais nova delas,
por essa razão, implica com ele, mas as outras quatro o acham bonitinho e se alternam para
dormir com ele. Descobriremos o sentido desse episódio quando analisarmos as versões salish do
interior (infra:390ss). Por enquanto, apenas notaremos a dupla dicotomia:
HN 196
velho (M606a)
Coiote libidinoso (M607a)
bebê
comportado (M601)
[p.236]
Ballard (1:144-150; M606b,c) coletou entre os Salish costeiros variantes provenientes de seus
vizinhos Klikitat, que atribuem ao herói dois pares de esposas, umas Rolas (ring-doves) e as outras
Patas bico-de-serra (saw-bill ducks), ou então Rolas tristes (mourning doves) e Leitas de salmão.
Coiote obriga o filho a se despir para ir desaninhar uma suposta águia, dizendo a ele: "Tire os
seus mocassins. Se quiser conseguir, dispa-se dos pés à cabeça, tire tudo o que está vestindo, até
os brincos" (l.c.:144). Salvo pela aranha, que ele paga com cordames de boa qualidade, o herói
alcança as duas mulheres que se mantiveram fiéis e as faz parar pisando na longa corda trançada
que a jovem mãe arrasta atrás de si. De volta ao acampamento, manda o pai lhe devolver suas
roupas antes que fiquem completamente fedorentas. Depois provoca chuvas diluvianas que
metamorfoseiam as mulheres infiéis em patos. Coiote, carregado pela correnteza, chega à casa
das irmãs /witsowits/ (cf. supra:235), nome do maçarico (sandpiper) em que ele as transforma
depois de liberar os salmões. Os lobos que Coiote acaba superando, por sua vez, se declaram
vencidos e decidem adotar a partir de então a vida de bichos selvagens. Coiote segue caminho rio
acima e se transforma em rochedo, marco natural que assinala o ponto para além do qual os
salmões não podem subir, ou seja, uma maneira negativa (em vez de positiva, como em M606a),
de tornar indispensáveis as trocas comerciais, já que nem todas as tribos têm acesso ao salmão,
de modo que as que não têm devem consegui-lo de outro modo. Para apoiar essa interpretação, à
qual voltaremos, citaremos uma versão mais oriental. Os Flathead, tribo salish do Idaho, contam
(M608; McDermott:240) que Coiote criou as quedas do Spokane para impedir que os salmões
subam o rio Columbia até o território dos Pend d'Oreilles, para puni-los por se recusarem a dar
suas filhas em casamento a estrangeiros. Mas antes de discutirmos o modo como se fecha esse
novo grupo de mitos, convém nos debruçarmos com atenção sobre a seqüência inicial de M606a,
que constitui o que poderíamos chamar de "quarta abertura" do ciclo norte-americano do
desaninhador de pássaros.
*
* *
Recordemos rapidamente a seqüência. Um homem chamado Arco tem duas esposas, Ursa e
Grizzly. Esta última, menstruada, se isola e se transforma no bicho de que já tem o nome. Para
escapar dela, os habitantes da aldeia se transformam em objetos domésticos e seus filhos fogem,
HN 197
tornando-se um casal incestuoso. Ela os persegue e mata o filho. A filha a mata, por sua vez, num
barranco seco em que Grizzly queria beber, e depois ela mesma se suicida numa fogueira. Coiote
salva e adota o orfão. A partir daí, a narrativa engata na história do desaninhador de pássaros.
Por se mostrar comutável, em posição inicial, com outros personagens, essa mãe que vira
ogra quando fica menstruada ("abertura IV") transforma claramente a irmã incestuosa de M538
("abertura I"), sua casta contrária de M541 ("abertura II") e, finalmente, a avó libertina de M560 e
seguintes ("abertura III"). A mesma constatação se impõe igualmente por outras vias.
Primeiro, a transformação de ums ascendente mulher em ogra, e mais precisamente em
ursa grizzly, não afeta apenas um grupo de variantes que só se distinguiriam das demais por esse
traço. Ela também ocorre dentro de mitos cuja heroína principal pertencia inicialmente aos
outros tipos que enumeramos. Nesse caso, por conseguinte, a transformação não tem apenas
valor de hipótese, é diretamente observável como atributo empírico de um determinado
personagem. Vimos que, na maior parte das versões do mito de Dona Mergulhão que, nesse
aspecto, pertencem à abertura I, a mãe da heroína vai ocupando, no decorrer da narrativa, o
lugar antes ocupado por sua filha (supra:47). Depois da morte desta, a mãe assume o lugar dela e
assume a aparência de uma ursa grizzly para vingá-la. Tal como é contado pelos mitos desse
grupo, M531 e M538, por exemplo, o episódio que a opõe ao casal incestuoso reproduz
exatamente o episódio correspondente de M606a: assassinato do filho ou neto pela ursa, depois
da ursa sedenta pela filha ou neta e, finalmente, suicídio desta última numa fogueira. O mesmo
acontece em M560, que pertence à abertura III, no qual se assiste à transformação do
personagem da avó libertina no de ogra que assumiu a aparência de um grizzly (supra:145).
Enquanto operação interna, a transformação parece estar ausente do mito M541, pertencente à
abertura II, de que ele, aliás, é a única ilustração. Mas essa aparente carência se epxlica pelo
fato de M541 inverter a história de Dona Mergulhão em vários eixos. O personagem da
1 2 3
/ascendente mulher/, /que se transforma em ogra canibal/ para melhor perpetrar /a
4
destruição de seu filho ou neto /tornado esposo incestuoso da própria irmã/ só parece
irreconhecível porque se realiza na forma de 1/colateral homem (irmão da heroína), 2/que
permanece o bom pescador que sempre foi, 3/embora o salmão que ele mata para se alimentar
4
/seja, na verdade, o marido exógamo de sua própria irmã. Aqui, por conseguinte, o perseguidor
conserva sua natureza humana diante de uma vítima que assumiu a aparência de um alimento
animal bom para os humanos, ao passo que, lá, a vítima conserva sua natureza humana diante de
uma perseguidora animal que faz dos humanos seu alimento. A identidade do personagem muda,
mas todas as relações de simetria são preservadas.
Em segundo lugar, os mitos periféricos nos quais é possível reconhecer formas limite do
ciclo de Dona Mergulhão ilustram a inversão da irmã incestuosa em ursa, ou da própria ursa em
contrário de uma irmã incestuosa. Um mito chilcotin que já utilizamos (M581a, p. 177), com
efeito, faz de uma mulher a esposa (a mais exogâmica possível) de um urso, assassina de seus
HN 198
próprios irmãos que viraram cônjuges incestuosos; e é um Mergulhão que a mata. Inversamente,
os Assiniboine contam, quase nos mesmos termos do mito de Dona Mergulhão, que irmãs com
tendências incestuosas se transformaram em ursas que mataram toda a população, cegaram seus
parentes e provocaram-lhes queimaduras no corpo todo (M609b, Lowie 9:161-162; cf. supra:217).
Mais perto da área principal de difusão do mito, encontramos entre os Wintu (M545b;
supra:122) uma versão em que a irmã transgressora também se transforma em monstro canibal, e
na qual esse "incesto alimentar" que representa a homofagia é portanto acrescentado ao incesto
sexual; em M606a, ele o substitui. Ora, a maioria das versões meridionais do ciclo de Dona
Mergulhão agravam o crime da protagonista fazendo com que ela o cometa estando menstruada,
condição igualmente da protagonista de M606a no momento em que ela vira uma ogra. Os mitos
postulam, portanto, uma correlação implícita entre as regras femininas, as tendências
incestuosas e o apetite canibal; e desse modo vão ao encontro de nossas considerações no volume
anterior (OMM:325-332) a respeito das estreitas relações existentes entre a caça às cabeças e o
sexo feminino. Como já tinha percebido Demetracopoulou (:121-122), eles também assimilam as
investidas incestuosas de uma irmã e a violação dos tabus — tão severos na Califórnia e mais ao
norte — a que estão sujeitas as meninas impúberes e as mulheres menstruadas. Mas a abertura IV,
tal como ilustrada por M606c, permite generalizar o paradigma mais restrito que aquele autor
tinha utilizado. Por estar menstruada, uma virgem ameaça transformar-se em irmã incestuosa, e
uma mãe em ogra devoradora dos seus, como acontece com a própria irmã quando seus desejos
são frustrados. E se a avó libertina da abertura III se transforma ora em ogra canibal (M560), ora
em parente incestuosa (M564), é porque ela pretende ter ainda atividade sexual embora — pode-
se conjecturar, a partir do único traço pertinente capaz de distinguir uma avó ao mesmo tempo
de uma mãe e de uma virgem púbere — ela não possa mais menstruar.
O caráter de grupo de transformação que apresentam as quatro aberturas resulta, em
última análise, da correspondência que se estabelece entre cada uma delas e mitos sul-
americanos que, como mostramos em O cru e o cozido e relembramos aqui repetidas vezes,
constituem eles mesmos um grupo de transformação. Ao longo das partes que precedem,
estabelecemos a existência de uma relação de homologia entre o ciclo norte-americano do
desaninhador de pássaros e o de Dona Mergulhão, de um lado, e do outro, o ciclo sul-americano
do desaninhador de pássaros e o que se refere à introdução da vida breve. Mostramos igualmente
que essa correspondência global podia ser analisada isolando caso a caso equivalências mais
precisas no nível dos estados homólogos de cada transformação. Assim, os mitos norte-
americanos de abertura I, que tem como tema o incesto, remetem, na América do Sul, a M1 e
M2. Ainda na América do Norte, a abertura II inverte a precedente e a abertura III, que também a
inverte, mas num outro eixo, remete, na América do Sul, a M5, de um lado, e a {M87-M92}, do
outro. Ou seja, a um mito e a um grupo de mitos que, cada um a seu modo, transformam
independentemente {M1, M2} e {M7-M12}, que transformam um ao outro. Ora, vemos agora que a
HN 199
abertura IV remete, na América do Sul, a um grupo de mitos {M22-M24} que, como mostramos nos
volumes anteriores (CC:114-115; MC:29, 375 et passsim; OMM:352) também transforma {M1, M2,
M7-12}. Excetuando-se a substituição do jaguar pelo urso (animal que não vive nos trópicos), em
ambos os casos os mitos introduzem a história do desaninhador de pássaros após um episódio em
que uma mãe, que aliás mantém com os filhos uma relação ambígua, aparece inicialmente como
mulher menstruada, se transforma em canibal e acaba morrendo — num buraco seco, dizem os
mitos norte-americanos ou, segundo outras versões, cozida por dentro —, ao passo que no mito
sul-americano M24 a ogra morre primeiro numa fossa e depois é cremada numa fogueira.
*
* *
à terceira, para definir a abertura I (irmã incestuosa) e a abertura II (irmã casta). Esse modo de
proceder já introduzia um desequilíbrio no sistema das quatro aberturas.
Além disso, e principalmente, não levamos suficientemente em conta o fato de,
dependendo dos mitos considerados, ora uma única dessas três relações cumprir uma função
pertinente, ora várias delas. O mito klamath M538, que serviu de ponto de partida para a nossa
análise, porque ilustra melhor do que os demais o que conviemos chamar de abertura I, por
exemplo, não pode ser definido exclusivamente por uma referência ao personagem da irmã
incestuosa, pois também põe em cena os dois outros personagens femininos, uma avó que age
como ogra com seus netos e uma jovem casada que protege os filhos que carrega no ventre a
ponto de sacrificar a própria vida para salvá-los. Até agora, o interesse dessa personagem,
chamada Cotovia pareceu-nos anedótico, e é fato que ocupa uma posição bem modesta nos mitos
do ciclo de Dona Mergulhão. Mas logo a veremos resusrgir com uma regularidade que não pode ser
atribuída ao acaso, numa série mítica paralela (M616-642; infra:255-264) e, além disso,
reconhecer que a mãe protetora cumpre uma função pertinente na abertura I, tanto quanto a
avó canibal e a irmã incestuosa, é condição sine qua non para que seja possível colocar seu
personagem em correlação e oposição com o da mãe transformada em ogra (=destruidora) da
abertura IV. Com efeito, trata-se de uma mãe nos dois casos, mas grávida num e menstruada no
outro, ou seja, duas situações igualmente possíveis para uma mãe, mas que se excluem
mutuamente do mesmo como que se excluem as atitudes de proteção e crueldade que os mitos
associam a cada um dos estados.
Até os mínimos detalhes dos mitos, encarados dessa perspectiva, esclarecem uns aos
outros. A mãe de M538,539 salva do incêndio os filhos que carrega deitando-se no chão, para que
seu corpo os proteja; as crianças ainda estão em seu ventre, que funciona para eles como um
abrigo. Simetricamente, enquanto a mãe de M606a fica na cabana menstrual, esta funciona como
um abrigo para os outros (que a mãe irá massacrar ao sair); e quando o mito precisa que seus
filhos foram vê-la lá, ressalta implicitamente que eles estavam fora, e não dentro.
Uma análise superficial nos tinha bastado para decompor o personagem da irmã em duas
funções simétricas, irmã incestuosa e canibal (abertura I) e irmã casta e protetora (abertura II).
Agora constatamos que o personagem da mãe também recobre duas funções do mesmo tipo, por
meio das quais aparece uma relação de correlação e oposição entre a abertura I e a abertura IV.
E quanto ao personagem da avó, de que a abertura I seleciona apenas o aspecto canibal? O
próprio título que demos à abertura III fornece a resposta: essa avó é às vezes libertina, forma
fraca das inclinações incestuosas que ela manifesta abertamente num grupo de mitos que — como
mostramos (supra:143-166) — também pertencem à abertura III. De modo que, para construirmos
nosso sistema de quatro termos, não dispomos de três relações simples de parentesco, como
acreditávamos inicialmente, embora tomássemos a liberdade de desdobrar o personagem da irmã
(procedimento que logo se mostraria equivocado, já que esse era o único personagem a ser
HN 201
desdobrado), mas de três relações das quais cada uma recobre um par de opostos. A irmã pode
ser incestuosa ou casta, a mãe, canibal ou protetora, e a avó, canibal ou incestuosa. Afinal, a
combinatória mítica não opera com termos, mas com os afastamentos diferenciais que
prevalecem entre pares, cada um deles extraído do lote inicial de seis termos. Agora podemos
construir as quatro aberturas em forma de sistema coerente:
ABERTURAS: I II III IV
Esse sistema, satisfatório do ponto de vista formal, não o é contudo do ponto de vista semântico.
Ele explica como os mitos são feitos, mas não nos ensina nada sobre o que dizem. Tentemos,
então, simplificar o esquema, ainda que seja apenas para aprender novamente nossa lição:
sempre que se consegue reduzir uma estrutura, não se perde sentido, como afirma
freqüentemente uma crítica obtusa; obtém-se uma ferramenta conceitual que, operando sobre a
matéria prima do mito, permite extrair dele mais sentido do que se pensava no início. Mas toda
simplificação supõe que se tenha recuperado, para integrá-los no quadro de uma explicação
geral, certos detalhes dos mitos que, considerados insignificantes, supunha-se poder
desconsiderar impunemente.
Verificamos este último preceito a respeito da personagem de Cotovia. Grávida, ela
incarna o modo fecundo da juventude fisiológica, como a personagem da mãe menstruada — que
lhe é correlativa — incarna (já que se trata, precisamente, de uma mãe) a mesma juventude num
modo temporariamente estéril. Portanto, ela cumpre a abertura IV a mesma função semântica
que, na abertura I, cabe à irmã incestuosa, também menstruada segundo várias versões, e às
vezes casada, mas nunca mãe, já que a abertura I coloca em oposição Dona Mergulhão e Dona
Cotovia, assumindo esta a função maternal na condição de mulher grávida e que,
conseqüentemente, não pode estar menstruada. Que não nos acusem de atribuir aos índios
noções de fisiologia que eles não possuem. Para validar essa interpretação, basta considerar um
fato da experiência: uma mulher grávida nunca está menstruada e uma mulher menstruada nunca
está grávida.
Tratemos agora de interpretar no mesmo espírito a personagem da avó. Já aventamos (p.
239) uma razão de ordem formal para ver nela uma mulher que já passou da menopausa, e a
mesma conclusão resulta de mitos pertencentes à abertura III que só contradizem essa tese na
aparência. Pois se o herói de M501b, M572-574 (supra:168-169) acusa falsamente a avó de estar
HN 202
outro: uma mulher que morre grávida, mas dá à luz filhos póstumos, atesta o poder irreprimível
da vida, assim como uma velha a quem se mostra que, apesar de seus esforços para manter uma
vida sexual, é proibido rejuvenescer, atesta o poder irreversível da morte. Pois é preciso que as
velhas gerações desapareçam para que as mais jovens tomem seu lugar. Toda a filosofia norte-
americana a respeito da morte gira em torno desse tema: se os mortos pudessem ressuscitar, ou
os velhos rejuvenescer, logo a terra ficaria superpovoada; não haveria lugar para todos.
Assim, ao mesmo tempo que temos acesso a uma dialética latente que opõe, no interior
dos mitos, a juventude à velhice, a fecundidade à esterilidade, a periodicidade curta à
periodicidade longa, e a vida à morte, captamos o esquema que rege sua geração. Apesar de, ou
por causa de, sua simplicidade, esse esquema possui simultaneamente estrutura lógica e eficácia
semântica. Reduz-se a uma fórmula quadripartite em que a mulher grávida se opõe à mãe
menstruada como se opõem entre si a avó incapaz de rejuvenescer, apesar de libertina, e a irmã
que pede uma velhice revogável como meio de salvaguardar sua virgindade. Afinal das contas, a
oposição entre juventude fecunda e velhice estéril, bem como aquela entre velhice reversível e
velhice irreversível, que lhe é simétrica, podem ser expressas por uma forma que não é a
primeira vez que encontramos (cf. OMM:332): x, -x, 1/x, -1/x. [reproduzir notação do original, p.
244].
HN 204
II
A PRAÇA DO MERCADO
vários tipos de ornamento, cânhamo nativo [Apocynum], peles curtidas, arcos e outros objetos,
em troca dos quais recebiam sobretudo conchas de vários tipos. Os da costa também compravam
cavalos. Em Dalles, eram negociados couros, peles, peixe, óleo, raízes, carne seca, penas,
roupas, conchas, escravos e cavalos. De modo geral, os produtos do baixo Columbia, da costa e
do Oregon, mais ao sul, eram trocados pelos do interior, provenientes do leste e do norte.
"Em Dalles e a oeste das Cascades, os Salish do Columbia juntavam produtos que
transportavam por montanhas e vales, para vendê-los com lucro aos Sanpoil, aos Okanagon e a
outras populações. Vendiam-lhes também cavalos e grandes quantidades de conchas brutas ou
trabalhas e contas de osso. Essas contas de osso ou de concha, bem como as conchas dentalia,
eram enfiadas e vendidas por unidades de comprimento. As conchas de água doce serviam para
fazer pendentes de colares, brincos, etc., ornamentos apreciados por todos. Mas o valor mais alto
era atribuído a duas ou três espécies de conchas grandes brilhantes e irisadas, provenientes da
costa. Os Sanpoil e os Okanagon aparentemente obtinham dos Salish do Columbia a maior parte
de seu cobre, vários instrumentos de pedra, como machados de pedra verde, enxós, maças, etc.,
e também cestaria espiralada e cobertores de lã de cabra montanhesa. O comércio com os
Thompson se fazia principalmente por intermédio dos Okanagon; havia pequenos mercados
locais, perto da foz dos rios Okanagon e Snake. Os do Columbia também trocavam com os
Spokane. Produtos vindos de lugares afastados, como o território modoc, o rio Rogue e o
território chasta chegavam, assim, a Dalles, assim como produtos de regiões distantes da costa,
ao sul e ao norte, e da região das Planícies. Segundo Revais [um dos informantes de Teit], a
maior feira intertribal era a de Dalles. Os que ali residiam viviam exclusivamente da pesca e do
comércio. Compravam, para revendê-la, quase toda a mercadoria que lhes traziam. Uma outra
feira era realizada no rio Grande Ronde, no leste do Oregon, outras na foz do rio Cowlitz, perto
de Scappoose, e na frente da foz do rio Lewis, perto de Oregon City, na Grande Ronde a oeste,
no médio curso do Nisqually, no curso superior do Puyallup, na foz do Okanagon, nas
proximidades de Colville e na foz do Snake. Havia mercados secundários no território da maioria
das tribos. Um tráfico considerável, vindo do oeste ou do sudoeste do Oregon e das terras (ou do
rio) Klamath, passava pelo território kalapuya, por Oregon City, e chegava a Dalles. Um velho
caminho partia da costa e das terras nehalem, ia até as vizinhanças de Scappoose e em seguida
bifurcava para o norte, até o rio Cowlitz, e para o leste, subindo o vale do Columbia até um
ponto onde os Nehalem, os Cowlitz, os Tlatskanai, os Chinook e outras tribos se encontravam
para comerciar. Desse modo, artigos comprados lá pelos lados dos rios Grande Ronde e Okanagon
eram revendidos em Dalles, onde chegavam também artigos provenientes da costa de Oregon e
Washington, de Puget Sound, dos planaltos do interior a norte e a leste, das Planícies, do interior
do Oregon e da Califórnia.
"Antigamente, encontrava-se muitos escravos no baixo Columbia e em Dalles, meninos,
meninas, e alguns adultos. Todas as tribos do Oregon e da costa se dedicavam a esse tráfico. As
HN 207
pessoas de Dalles compravam os escravos para revendê-los; havia entre eles índios Snake e outros
da costa da Califórnia. Os Klamath e os Kalapuya compravam de outras tribos ou capturavam eles
mesmos na guerra escravos shasta ou do rio Rogue. Todos os escravos eram certamente
prisioneiros de guerra ou crianças já nascidas na servidão. Nem em Dalles nem em nenhum outro
lugar os Salish do Planalto ou pessoas de língua sahaptin eram mantidas, vendidas ou compradas
como escravos.
"Os artigos oferecidos no mercado eram principalmente conchas, contas, cobertores da
Companhia da Baía de Hudson, roupas diversas, cavalos, peixes; além de escravos, canoas, couros
curtidos e peles... As que os habitantes de Dalles vendiam à Companhia da Baía de Hudson
provinham todas de outras tribos; mais tarde, elas ficaram raras, porque os caçadores de peles as
entregavam diretamente aos agentes locais. Na estação das feiras, visitantes de todas as origens
vinham a Dalles: Columbia, Spokane, Yakima, Klikitat, Tyighpam, Wallawalla, Umatilla, Cauyse,
às vezes Palouse, Nez-Percé, Klamath, Molala e Kalapuya. De modo geral, as trocas eram feitas
entre gente do sul e sudeste e gente do norte e nordeste. Os Wishram, todos os outros residentes
em Dalles e os Kalapuya sempre foram mais ou menos hostis aos comerciantes brancos.
Ressentiam-se do fato de eles negociarem diretamente com as tribos vizinhas, pois consideravam-
se como intermediários de pleno direito."
Como um sistema assim reverbera nos mitos inicialmente encontrados entre povos da
América tropical, cuja organização econômica é muito mais rudimentar? Essencialmente de dois
modos. Por um lado, o peixe assume o lugar da carne como principal matéria prima culinária e,
além disso, a passagem da natureza à cultura é menos significada pelo ato culinário em estado
bruto, que transforma cru em cozido, do que pelas transações comerciais que permitem a
passagem de uma alimentação monótona a um menu variado. Um pouco do mesmo modo que nós,
que com um nível de vida melhorado, pensamos mais em inventoriar o que os economistas
chamam de "cesta básica" do que em invocar, como nossos pais, a benção do "pão de cada dia".
Num sistema em que as relações originais que cada povo mantém com a natureza se encontram,
de algum modo, multiplicados pelas relações complementares que povos diferentes tratam de
travar entre si, tudo está ligado. A troca de mensagens, graças ao uso corrente de várias línguas e
do jargão chinook — meio de comunicação intertribal muito antes de os brancos o adotarem em
suas relações com os índios e estenderem seu uso do litoral da Califórnia até o do Alasca (Ray
4:36 n.9, 99; Jacobs 7). A troca de bens, como alimentos em conserva, dos quais o principal era o
peixe seco inteiro ou na forma de farinha, óleo de peixe, peles, artigos de cestaria, conchas
marinhas, cavalos, escravos. E, finalmente, a troca de mulheres. A esse respeito, testemunhos
provenientes dos Kalapuya, tribo vizinha dos Chinook e dos Sahaptin ao sul do rio Columbia,
mostram bem que no pensamento dos povos dessa região, ainda mais do que alhures, os
casamentos eram indissociáveis das transações comerciais, de que constituíam ao mesmo tempo
uma fase e um aspecto. "Antigamente — conta um informante — quando um índio queria uma
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mulher, sempre tinha de comprá-la. Não podia simplesmente incorporá-la ao círculo familiar,
precisava comprá-la de alguém com dinheiro vivo". O marido de uma mulher adúltera requeria do
rival uma indenização em espécie, e se ela tivesse sido violentada, exigia do culpado o reembolso
integral do que havia pago por ela, pois era preciso que "ninguém pudesse ter uma mulher de
graça". Conseqüentemente, pais de muitas filhas contavam em enriquecer ao casá-las. A
cerimônia de casamento atingia uma intensidade dramática quando a moça, carregada nas costas
por um homem, era levada ao local onde tinham sido amontoadas as riquezas que representavam
seu preço. Se o pai considerasse que a pilha era suficientemente alta, ordenava que se pusesse a
jovem no chão; se não, o carregador a levantava ainda mais sobre os ombros. Em caso de acordo,
a família do noivo recebia a prometida e a da noiva, o dinheiro, "bens de valor", que consistiam
em conchas marinhas enfiadas em cordões cujo comprimento podiam ser facilmente medido
graças a uma marca tatuada no antebraço. Quando se dizia que um homem era rico, isso
significava ao mesmo tempo que tinha muito dinheiro, pertencia à mais alta sociedade, podia
facilmente casar-se e possuía muitos escravos (Jacobs 4:43-47). Atitudes do mesmo tipo podem
ser encontradas em toda a área que consideramos até agora. Entre os Nez-Percé, primos orientais
dos Sahaptin, a "visita de casamento" que os parentes e amigos do pretendente faziam aos da
prometida implicava uma troca solene de presentes, carne seca dentro de sacolas de couro e
roupas novas, contra raízes e bagas comestíveis dentro de cestos trançados e roupas usadas. A
família do marido também dava cavalos, objetos manufaturados e armas. E a da esposa, contas
raras, ornamentos e bordados (Phinney:41 n.1). Na outra ponta dessa mesma área, os Modoc
expressavam com vigorosa concisão sua filosofia da aliança matrimonial. O pai satisfeito de uma
jovem que, logo depois de se casar, se empenha em abastecer sua família de origem exclama: "É
para isso que servem as filhas e irmãs, para que sejamos alimentados pela família dos que se
casaram com elas" (Curtin 1:264).
Um mito sahaptin cujos protagonistas, como no do desaninhador (M606a) são Águia e
Coiote — mas neste caso respectivamente irmão mais velho e caçula, um caçador e o outro mero
carregador de caça — conecta ainda mais diretamente a pesca e e busca de uma esposa. Conta
(M610, Jacobs 3:223-225) que Coiote encontrou uma mulher jovem e bela, a qual lhe disse que
queria se casar com um homem de alta estirpe. Coiote sugeriu seu irmão Águia e a mulher,
encantada, pediu-lhe que o sondasse. Desconfiado, Águia disse não e Coiote pensou que poderia
ele mesmo tentar. Mas a mulher preferiu virar um salmão. Ela sabia que logo os humanos
surgiriam na terra e que ela seria para eles um alimento de qualidade superior. Coiote fabricou a
primeira nassa de pesca, e decretou que sempre seria assim quando os humanos viessem, e
acrescentou: "Agora, irei até onde vai a terra e para todos os diversos lugares. Pois diversos
também serão os povos e as línguas. E doravante, nenhuma mulher tomará a iniciativa de se
casar com um homem de alta estirpe. No futuro, serão os homens que irão buscar esposas, e não
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o contrário... Eis a lei que Coiote decretou a Dona Salmão e que é respeitada até hoje. Nunca
mais aconteceu de uma mulher tomar a dianteira e pedir a um nobre que se casasse com ela".
Note-se que essa transformação de uma mulher em salmão para escapar de um homem
que ela não ama se aproxima daquela que encontramos em M541, em que um homem se
transforma em salmão para seguir a mulher por quem está apaixonado (supra:57, 67). Ora, assim
como M541, ainda que de outro modo e em outros eixos, M610 inverte o mito do desaninhador de
pássaros. Em M610, Águia é mais velho que Coiote e rejeita a única mulher que se oferece em vez
de ter várias esposas. E Coiote nem de longe pensa em roubá-la, tanto que começa se propondo a
intermediar o casamento do irmão com ela.
Em M606a, versão sahaptin do desaninhador, Coiote propõe casamento a uma mulher que
prefere se jogar numa fogueira de comida; de modo que a comida desaparece junto com ela.
Aqui, é o contrário, a mulher que Coiote gostaria de ter se afoga voluntariamente e, por isso, o
alimento aparece. Trata-se, portanto, da criação do salmão por uma mulher que quer escapar de
Coiote, em vez de, como em M606a e outros mitos (M601-602, M607), os salmões serem liberados
contra a vontade de mulheres que acolheram Coiote como descendente ou ascendente adotivo,
sem que ele se tenha oferecido como marido.
A que correspondem, afinal, essas reviravoltas? Aparentemente, os dois mitos possuem a
mesma função etiológica, pois M610 também começa explicando a origem dos salmões, depois a
da diversidade dos povos e línguas, e finalmente a da vida social bem regrada. Porém,
justamente, as regras não são as mesmas nos dois casos. M606a trata da instituição das feiras e
trocas comerciais das quais, como vimos, a compra de mulheres não pode ser separada (cf.
supra:M608 e infra:M614, p. 252). Todos esses assuntos dizem respeito à vida relacional, já que é
preciso adquirir de grupos estrangeiros os bens que não se produz e, como expressam com tanto
vigor os Kalapuya, ao fazerem da exogamia uma função do casamento por compra, deve-se
desposar não-parentes em conseqüência da regra que inclui as mulheres entre as coisas que se
compram. Mas M610 considera menos as diferenças externas entre os grupos do que as diferenças
internas aos grupos, entre homens e mulheres, que não podem observar as mesmas regras de
conduta, e entre nobres e plebeus ou pessoas de status indeterminado, que não podem casar
entre si. Essas regras internas agem no sentido contrário do da troca, pois prescrevem a
manutenção de distâncias que o espírito da troca convida a superar. Compreende-se, assim,
porque Coiote acolhe com entusiasmo a idéia de seu irmão se casar com a bela estrangeira. Nos
mitos, ele se comporta como um verdadeiro maníaco pela troca: "Aonde ia, encontrava todos os
tipos de coisas boas; comprava-as, e elas ficavam sendo suas" (Jacobs 1:100). Infelizmente para
ele, ele nem sempre sabe onde parar. Troca, por exemplo, o próprio pênis por um outro, cuja
especialidade é cortar árvores como um machado, mas Coiote se vê num terreno sem árvores, e o
membro se volta contra ele; Coiote tem de devolvê-lo rapidamente ao antigo proprietário. "Esse
é o tipo de negociante que ele era" (M611a, Jacobs 1:74-76; cf. Chinook, M611b, infra:393). Ou
HN 210
então ele não resiste à vontade de trocar seus olhos pelos de um malabarista que lança e
recupera os seus à vontade, mas quando tenta fazer o mesmo, o abutre pega os olhos no ar e os
leva embora. Coiote fabrica olhos postiços com flores que estão murchando, e fica cego. Acaba
finalmente conseguindo trocar seus olhos com um pássaro que vive perto do chão porque ficou
míope, e com o caracol, que desde então é cego (M612a,b,c, Jacobs 1:100-101, 109, 208-209; e
M375b, Adamson:173-174).
A paixão de Coiote pelo escambo é comparável à sua paixão pela diversidade. É ele que
vai dispersar as raízes, frutos e grãos comestíveis que um menino guloso tinha aramazenado no
próprio ventre (M613a,b, Jacobs 1:62-64) ou, segundo os Nez-Percé, um monstro cujo corpo ele
despedaça, espalhando os pedaços em todas as direções, que dão origem às diversas tribos
(M613c, Phinney:26-29). Os Sahaptin ocidentais contavam que Coiote "fez todos os tipos de coisas
diferentes... povos... línguas... Desde então, essa é a lei" (Jacobs 1:59). Uma série de mitos da
mesma proveniência ou de origem salish têm por herói Coiote em posição de irmão mais velho, e
Raposa como caçula (M614a,b,c,d, Jacobs 1:96-98, 112-113, 169-171). Essa nova transformação
afeta a função etiológica dos mitos, que nesse caso concernem não só à origem dos povos
estrangeiros como também à dos inimigos ("os Sioux", diz M614a), a origem de uma competição
como a corrida, em vez das trocas comerciais e, finalmente, a origem do inverno, ao passo que as
feiras eram realizadas no verão. Voltaremos a isso (infra:288-289). Por enquanto, basta notar que
os estrangeiros a quem Coiote e Raposa fazem uma visita exigem que eles enfrentem numa
corrida a filha de seu chefe. Essa Atalante se casará com quem a vencer, mas o concorrente
derrotado será decapitado. Coiote perde a corrida e a cabeça, mas Raposa ganha, e ressuscita o
irmão mais velho. Depois, continua M614c, os heróis mataram todo mundo, exceto alguns de que
eles apenas exigiram um resgate, extorquindo-lhes vários tipos de objetos preciosos. Coiote
levou-os embora cantando: "Isso servirá para adquirir uma esposa, isso será o presente de
abertura, para iniciar as trocas, isso é para os cunhados e cunhadas, aquilo para as sobrinhas, isso
para a família da esposa falecida. E isso aqui será para pagar os amores ilícitos". É notável que se
reencontre aqui a noção de afastamentos diferenciais criados no seio de uma população
dizimada, da qual o demiurgo poupa apenas os mais ricos. Nós já a tínhamos encontrado, bem no
início do primeiro volume destas Mitológicas, num mito Bororo (M2, CC:56-58) cuja conclusão
devemos relembrar: "Ele não matou os que tinham trazido muitos adornos, mas matou os que
tinham trazido poucos". Por um movimento dialético inverso ao que acabamos de descrever na
América do Norte (supra:251), tratava-se, ali, da instituição de uma ordem interna, a que, no
interior do próprio grupo social, permite estabelecer uma distinção entre superiores e inferiores,
nobres e plebeus. Para fundar a existência da ordem externa, tal como expressa nas diferenças
físicas entre povos vizinhos, os Bororo utilizam um outro mito, construído a partir do mesmo
esquema (M3, CC:59). Seu herói escapa de uma morte de origem cósmica porque é manco, o que
faz com que ande devagar, ao passo que, nos mitos sahaptin, o herói incumbido da missão
HN 211
simétrica começa sofrendo uma morte de origem humana porque não é capaz de correr depressa
o bastante. Vê-se que os sistemas míticos das duas Américas também se intersectam nesse ponto.
*
* *
Se a análise acima estiver correta, resulta daí que os mesmos mitos que servem aos índios do
Brasil central para fundar a origem da culinária servem aos da bacia do Columbia para fundar a
origem das trocas comerciais. Os mitos sul-americanos sobre a origem da cozinha se
transformam, ali, em mitos da origem da carne, de um lado, e das plantas cultivadas, do outro.
Pelo menos era isso que o primeiro volume tentava demonstrar. Numa região da América do
Norte onde se vivia mais de pesca do que de caça, e onde não se praticava a agricultura, são os
mitos sobre a origem dos peixes que se transformam em mitos sobre a origem da troca, que
permite obter peixe quando não se dispõe dele ou, caso contrário, obter bagas, grãos e raízes em
troca de peixe. A existência de uma economia de mercado gera uma transformação no plano das
superestruturas. Em vez de a passagem da natureza à cultura se expressar por intermédio de uma
oposição simples entre as categorias cru e cozido, lança mão de recursos de uma ideologia mais
complexa, que eleva a oposição pertinente ao nível das máximas: cada um por si ou toma lá, dá
cá.
Tudo isso pode ser demonstrado de outro modo, com a introdução de um grupo de mitos
também provenientes dos Sahaptin, cuja seqüência inicial reproduz literalmente a abertura IV,
própria das versões sahaptin da história do desaninhador de pássaros:
perseguição. Ursa, que tinha conseguido apagar seus rastros, nunca mais
foi vista (Jacobs 1:45-47; cf. supra:159-163 e M654, p. 186-188 ???).
Quase todos os mitos pertencentes a esse grupo enfatizam uma diferença entre as duas mulheres:
uma delas só escolhe os frutos maduros, e a outra colhe também os verdes, junto com as folhas e
galhos, o que deprecia sua colheita (M618, M620, 630, etc.). No começo, as mulheres tomam o
cuidado de não invadir o terreno uma da outra (M615, 628), mas as coisas se complicam quando
elas brigam e esquecem essa regra de comportamento. Na maioria das versões, o resultado é um
massacre recíproco, depois do qual os sobreviventes se separam definitivamente. Mas essa
separação carrega uma lição, que o narrador de M615 extrai com lucidez: "Esse é o mito klikitat.
Agora, são só o urso e o grizzly, não são mais pessoas. O mito não vai além daí. Atualmente, esses
bichos nunca comem a comida um do outro. E quando um deles, por acaso, descobre o lugar onde
o outro se alimenta, evita-o. É assim que são as coisas desde então" (Jacobs 1:47).
É de pouca importância saber se a etologia dos ursídeos confirma ou não a conclusão do
mito. Como M606a, ele começa na época em que os humanos não se distinguiam dos animais. Um
conflito entre seres míticos, que são, nos dois casos, uma Dona Ursa e uma Dona Grizzly,
desemboca, num caso, no surgimento da humanidade, possibilitado pela instauração das feiras e
mercados que permitirão aos humanos se alimentarem segundo a cultura, trocando seus
respectivos meios de subsistência. No outro caso, o mesmo conflito se encerra com a
transformação definitiva dos seres míticos em animais. Destinados a se alimentarem segundo a
natureza, a partir de então cada um deles comerá por conta própria. Exceto em alguns casos,
que os mitos também consideram e para os quais elaboram soluções específicas, como veremos
em breve (quarta parte, III), a troca não ocorre na natureza, onde não existe meio termo entre o
ensimesmamento e a agressão contra outrem.
Mas antes de passarmos para este último aspecto teórico da troca tal como é concebida
pelos mitos, convém enfrentarmos uma dificuldade. M615, além de pertencer ao grupo que
estamos discutindo, pertence a um outro que, desde o inventário sumário de Dangel, os mitólogos
norte-americanos chamam "dos veadinhos e dos ursinhos". Sua área de distribuição é ao mesmo
tempo restrita e compacta. Vai dos Kwakiutl da Colúmbia Britânica, ao norte, até os Pomo e
Miwok da Califórnia central, ao sul40. Vamos dedicar um instante a esse ponto. Embora os
protagonistas variem, esses mitos sempre descrevem um estado primitivo em que os animais de
40
Segue o inventário, certamente incompleto, das variantes: Clackamas, M616-619, Jacobs 2, I:130-
166. — Kathlamet, M620, Boas 7:118. — Thompson, M621a-d, Boas 13:16, Hill-Tout 4:95, Teit 4:69-72, 5:218-
224. — Lilloet, M622, Teit 2:321-323. — Shuswap, M623, Teit 1:681-684. — Chehalis, M624, Hill-Tout 2:360-
362. — Snohomish, M625, Haeberlin 1:422. — Comox, M626, Boas 13:81. — Kwakiutl, M627a,b, Boas 13:168,
Boas-Hunt 1:15. — Kalapuya, M628, Jacobs 4:115. — Coos, M629, Jacobs 6:152. — Takelma, M630, Sapir
5:117. — Klamath, M631a-c, Gatschet 1, I:118, Stern 1:37, Barker 1:7. — Sinkyone, M632, Kroeber 12:349. —
Lassik, M633, Goddard 5:135. — Kato, M634, Goddard 6:221. — Yana, M635, Sapir 3:203-208. — Maidu,
M636a,b, Powers:341, Dixon 2:79. — Wappo, M637, Radin 5:47. — Pomo, M628-640, Barrett 2:327-354. —
Miwok, M641a-c, Gifford 2:286-333, Kroeber 13:203-204, C.H. Merriam:103. — Shoshone, M642, Lowie
12:253. — Cf. também Klamath-Modoc, M373b,c, Barker 1:50-57, Stern 1:39-40, Curtin 1:249-253. Discurssão
geral em Boas 2:586-588.
HN 213
espécies diferentes e antitéticos (às vezes até um animal e uma planta) vivem numa proximidade
anti-natural: eram irmãos, afins ou amigos. Sua combinação logo descamba em desastre: a
criatura mais forte mata a mais fraca, e os filhos desta a vingam massacrando seus companheiros
de brincadeira. Os assassinos fogem, perseguidos pela mãe de suas vítimas, e conseguem escapar.
As famílias que se tornam inimigas são compostas de ursos de espécies difertentes (M615,
M616-619, M621, M624-625, M628, M629, M630), ou de ursos e cervídeos. Esta última forma
parece ser periférica em relação à outra, já que se encontra tanto entre os Kwakiutl, ao norte
(M627) quanto, no sul, entre os Klamath (M631), os Atabascanos da Califórnia (M632-634), os Yana
(M635), Maidu (M636), Wappo (M637), Pomo (M638-640) e Miwok (M641) e, finalmente, a leste,
entre os Shoshone (M642). Mas o motivo pode ser seguido para além de sua área de difusão
principal, até os Assiniboine e os Ojibwa, onde já o encontramos (M373a, 374, OMM:47-49). O
conjunto do ciclo poderia, portanto, ser formalizado assim:
(Grizzly:Urso)::(Urso:Cervídeo)::(Cervídeo:Rã)::(Rã:Humano), se algumas versões aberrantes não
complicassem. Uma delas, proveniente dos Shuswap (M623), opõe ursos a castores, e uma outra,
dos Kathlamet (M620), o Tordo ("robin", Turdus migratorius) a Dona Framboesa ("salmonberry",
Rubus spectabilis). Como não pretendemos fazer o estudo exaustivo do grupo, deixaremos de
lado esses casos particulares, que não afetam a unidade do sistema.
Essa unidade se evidencia em várias coincidências, que é o acaso não pode explicar, e
que ocorrem em distâncias às vezes bastante grandes. Começaremos por assinalar uma delas, de
natureza lingüística. Gatschet (1, I:124) e Barker (1:9 n.5), cujas pesquisas estão separadas por
quase um século, parecem encontrado a mesma dificuldade em traduzir uma fórmula que é
reproduzida por cada um deles independentemente, em sua respectiva versão do mesmo mito.
Depois do assassinato de sua mãe, os jovens "antílopes" (ou cervos, cf. Stern 1:39-40) trataram de
sufocar seus camaradas ursinhos. Durante toda a operação, eles não paravam de cantar
/lepleputea/ (Gatschet) ou /leplep p'ot'e/ (Barker). O primeiro autor considera que é uma
expressão arcaica, que significa algo como "para dois pares de adversários, tentar sufocar-se
mutuamente com fumaça". Barker traduz do mesmo modo, mas assinala alguns problemas de
ordem filológica. Não se trata evidentemente de questionar a competência de um ou de outro,
mas é notável que, a quatrocentos quilômetros ao norte, os Clackamas Chinook, que falam uma
língua diferente, contam numa de suas versões do mesmo mito (Jacobs 2, I:148) que Dona
Grizzly, imaginando que eram os filhos de sua inimiga e não os seus que estavam sendo
cozinhados na panela, alegrou-se e cantou, mais de doze vezes seguidas, /lepleplepleplep/,
fórmula que não foi traduzida mas que, do ponto de vista fonético, parece idêntica à do mito
klamath e muito próxima da que Boas (7:124-125) transcreveu /waLotEp helatep/ na versão do
mito kathlamet.
Consultado a respeito do alcance e significado dessas confluências, o professor Dell
Hymes, eminente especialista das línguas chinook, teve a bondade de nos auxiliar, começando
HN 214
por chamar a atenção para uma exclamação de Coiote num mito wasco: /xalxalaep walxalaep/
(Hymes 1). Segundo ele, a fórmula kathlamet não poderia ser analisada, embora pareça
aproximar-se de expressões que denotam a ação de respirar ou fazer um chamado. Por outro
lado, Hymes considera que a fórmula clackamas significa "fazer ferver" repetido várias vezes
seguidas. Para explicar a recorrência, no mesmo contexto, de formas verbais foneticamente
semelhantes em klamath e em clackamas (mas que não têm o mesmo sentido nos dois casos),
nosso colaborador aventa, não sem algumas dúvidas, a hipótese de que um simbolismo fonético
muito antigo teria sido conservado nas duas línguas, ambas do tronco penutiano, mas atualmente
muito afastadas.
Mas isso só resolveria parte do problema, pois um mito thompson, da família salish,
portanto, que não pertence ao tronco penutiano, uma ursa grizzly tenta apagar o fogo com terra,
gritando /lîpa lîpa lîpa/, fórmula que Teit (4:61, 113 n.205) comenta nos seguintes termos: "Os
ursos fazem um ruído que lembra essa expressão, comparado à palavra LîpLîp ou LûpLûpt,
'sombrio' ". O mesmo grupo fonético associado ao urso reaparece, portanto, a centenas de
quilômetros de distância, em três línguas, das quais uma pelo menos é completamente diferente
das duas outras.
Eis agora uma outra confluência, que ocorre a uma distância tão grande quanto a que
separa os Klamath dos Thompson, senão mais. Uma das variantes clackamas (M616, Jacobs 2,
I:130-141) se apresenta à primeira vista como uma inversão no seio do grupo, que afeta o sexo
dos protagonistas (ursos machos se apoderam de esposas humanas) e a ordem de sucessão da
narrativa (episódio da mãe que se transforma em grizzly quando está menstruada passa para o
fim do mito, em vez de estar no começo). Nessa versão, o urso grizzly fura os olhos de sua mulher
e o outro tapa o ânus da dele41. De modo que uma das mulheres fica tapada em cima e a outra
em baixo, mas a narrativa não esclarece as razões do comportamento do grizzly, e as inversões
que apontamos alteram a intriga tão profundamente que chega-se quase a duvidar que se trate
do mesmo mito. Bem, a setecentos ou oitocentos quilômetros de lá, os Pomo, de língua hokan,
contam numa versão composta de modo totalmente regular (M638a, Barrett 2:327-334) que os
filhos da mulher-cervídeo a encontraram muito longe, a leste, quando achavam que ela tinha sido
morta pela cunhada ursa. Ela tinha se tornado esposa do Sol canibal e agora só tinha um olho.
Uma variante (M638b, Ibid.:334-344) chega a privá-la de cabeça. De modo que o monstro canibal,
antes subterrâneo, é permutado em celeste, e sabemos que nos mitos dessa região da América,
as criaturas celestes são cegas ou zarolhas (OMM:123-124 e supra:38). O ogre solar tem como
serviçal a mosca azul ou "mosca de urso", que logo se alia aos assassinos de seu patrão e à viúva.
Na versão kalapuya (M628, Jacobs 4:119-125), a mosca de carne informa Grizzly que são seus
próprios filhos, e não os de sua vítima, que ela está comendo. Mas quase sempre (Pomo,
HN 215
Clackamas, Thompson, Shuswap) é à cotovia que cabe dar essa ou outra informação, para
estimular um comportamento maternal um tanto vacilante; missão análoga, portanto, à de que o
ciclo de Dona Mergulhão encarrega o mesmo personagem, que incita um comportamento
maternal que vai até o sacrifício da própria vida (cf. supra:42, 46, 94, 241). Um estudo exaustivo
do mito dos veadinhos e dos ursinhos deveria portanto considerar também o papel dos
mergulhões como pássaros machos e prestativos numa das versões pomo (M638a, Barrett 2:332).
As observações acima sugerem que, em certos casos, estamos diante do mesmo mito
emprestado de uma tribo por outra, e não de variantes que se teriam desenvolvido
independentemente em dois lugares. Como no caso dos Chinook, por exemplo, que podiam muito
bem conhecer as narrativas dos Klamath, que freqüentvam as margens do Columbia; o que é
atestado por textos chinook (Sapir 1:292-294). Por outro lado, a recorrência de temas idênticos
nas versões pomo e chinook parece ser mais atribuível a um esquema latente, capaz de operar
em toda a área de difusão do mito. Mas acabamos de constatar que a influência desse esquema
não se limita ao ciclo "dos veadinhos e dos ursinhos" definido no sentido estrito; pois os mitos
desse ciclo cruzam constantemente com os do de Dona Mergulhão e do desaninhador de pássaros.
Suspeitamos, portanto, que esses ciclos, cuja extensão geográfica é aproximadamente a mesma,
constituem camadas mitológicas paralelas e superpostas: nem bem se decapa uma e aparece
outra que, uma vez retirada, deixa ver uma terceira... Embora a matéria que compõe cada uma
das camadas seja diferente, elas possuem uma estrutura comum, que resulta das contingências
locais e da natureza do embasamento.
Às vezes, o embasamento chega a aflorar em pontos onde as camadas se estiram e se
afinam, e acabam cedendo sob o efeito das pressões que sofrem. Já demos um exemplo disso
com a versão clackamas, M616, que deforma ao mito das duas ursas ao submetê-lo a várias
torções e assim deixa entrever, através das malhas distendidas da narrativa, certos detalhes
característicos do mito do desaninhador de pássaros, apesar de pertencer a uma outra camada; é
o que ocorre com o motivo da mãe transformada em ogra quando está menstruada. Do mesmo
modo, a versão shuswap (M623, Teit 1:681-684) se junta a M606a com um episódio colocado na
última parte em vez da primeira: o cadáver da ursa grizzly fornece a carne da refeição de Coiote
que é roubada pelos coletores de ovos de aves (cf. também M671, Teit 2:306).
De modo mais geral, a coabitação de espécies animais de hábitos incompatíveis
representa, na linguagem da taxinomia, um escândalo comparável ao que as outras camadas
mitológicas significam por intermédio do incesto entre irmãos. Num caso, o bicho mais feroz
mata o que desempenha junto a ele o papel de companheira, cunhada ou co-esposa, durante uma
sessão de catação de piolhos mútua. Mas antes, a vítima tinha montado um dispositivo para
alertar seus filhos caso morresse. Esses detalhes se encontram em mitos pertencentes a outras
41
Que, conseqüentemente, não pode mais defecar, invertendo nesse aspecto a ursa grizzly de uma
versão lilloet (M622, Teit 2:321-323) que se afoga ao cair pelo buraco da canoa em que estava. O texto
HN 216
camadas: a mulher transformada em fera mata, nas mesmas circunstâncias, seu filho ou neto,
que tinha tomado precauções semelhantes para que sua esposa e irmã ficasse sabendo de sua
morte.
Entre um grupo e outro, observa-se, portanto, a transformação:
Grizzly ! =
[Grizzly ! = ! = ursa]
!=!
[p. 258]
em que o filho (neto) de Grizzly substitui Dona Ursa e, já que a ogra será vítima de sua filha ou
neta, onde esta substitui os filhos da ursa que também vingam o parente. A versão sinkoyne
(M632, Kroeber 12:349-351) contém, aliás, o motivo do incesto, que é consumado, como no mito
de Dona Mergulhão, no momento em que a irmã tem sua primeira menstruação. Ela é abandonada
pelo irmão, mas encontra seus congêneres cervídeos graças à mirta com que se perfuma, que
atrai irresistivelmente esses animais. É a origem dos ritos de puberdade. A versão wappo (M637,
Radin 5:47-49) intersecta o grupo do desaninhador em M24: Dona Ursa mata o marido que subiu
numa árvore para colher glandes, devora-lhe o corpo e coloca a cabeça num cesto. Várias outras
versões convertem essa disjunção vertical característica do ciclo do desaninhador, para fazer
dela um meio de salvação, e não de perdição. Os Shuswap (M623), ao norte, os Sinkoyne (M632),
no centro, e os Maidu (M636) e Miwok (M641), ao sul, contam que as crianças perseguidas
escaparam da ogra subindo no alto de um rochedo. Em alguns casos se acrescenta que o rochedo
foi subindo e elas chegaram ao céu onde, segundo os Thompson do baixo Fraser (M621, Boas
2:615, 4:16, Reichard 3:184, Teit 5:218-224), viraram estrelas, e podem ser vistas repelindo o
grizzly feroz na constelação que nós mesmos chamamos de Ursa Maior.
Como o ciclo do desaninhador, o dos veadinhos e ursinhos traz, pois, uma codificação
astronômica. Encarados pelo ângulo de uma função cosmológica entendida em sentido amplo, os
dois grupos se encontram de modo ainda mais claro. Pois assim como o mito do desaninhador se
refere à origem de certas constelações — Corvo ou Plêiades — tanto quanto à da água ou do fogo,
os jovens protagonistas do outro grupo, às vezes transformados em constelação, encerram suas
aventuras ou no mundo subterrâneo, onde morrem queimados (Wappo, M637), ou no mundo
celeste, onde morrem afogados e se tornam, como o desaninhador dos mitos bororo, wiyot, yurok
e makah (supra:134-138), donos da chuva e da tempestade (M636, Maidu; M641, Miwok). A
conexão com o trovão também aparece, numa das versões pomo (M640, Barrett 2:344-349). As
versões dos Thompson do delta (M621, Boas 13:16, Teit 5:218-224) atribuem aos protagonistas,
antes de subirem ao céu, uma série de peregrinações ao longo das quais ordenam o universo de
um modo muito semelhante ao demiurgo Lua dos mitos salish (M375). Ora, vimos que o
desaninhador das versões klamath e modoc apresenta afinidades lunares que contrastam com as
afinidades solares de seu perseguidor, e que a mesma oposição existe na América do Sul, entre os
Bororo, e mais ainda entre os Jê, cujos protagonistas pertencem a metades diferentes,
respectivamente associadas aos dois astros. O que nos leva a evocar a estrutura social dualista
dos Miwok, que dão um alcance cósmico ao conflito entre veadinhos e ursinhos. Essa estrutura
acompanha, com efeito, uma dipartição geral das coisas e dos seres que, como entre os Yokuts e
os Mono, estende ao universo inteiro a fórmula sociológica das metades. No sistema miwok, o sol
e o urso estão do lado da terra e o veado, do lado da água (Kroeber 1:455). Por conseguinte, quer
se trate de sol e lua ou de personagens que os incarnam, de constelações em oposição de fase, de
afins opostos como doadores e tomadores de mulheres, ou ainda de animais pertencentes a
espécies antagônicas, o mesmo esquema começa por aproximar termos incompatíveis. Essa
proximidade desencadeia uma crise, de que resulta uma primeira disjunção, com valor negativo.
Levada até o fim, ou não, ela deixa o campo livre para uma nova disjunção, dessa vez de valor
positivo. O estudo exaustivo do grupo dos veadinhos e ursinhos teria de dar a devida atenção ao
fato de que essa segunda disjunção é operada por intermédio de um passador suscetível que
desempenha um papel que chamaríamos de semi-condutor: transporta uns e intercepta outros.
Esse emprego particular de um motivo que discutimos longamente alhures (OMM, sétima parte, I)
parece ser coextensivo ao grupo (cf. infra:284).
Vão se tornando mais precisos, pouco a pouco, os contornos de um novo itinerário que,
seguindo por outras camadas estratigráficas, nos levaria a percorrer todo o campo da mitologia
americana. Não pretendemos levar a empreitada até esse ponto, pois seriam necessários tantos
volumes quanto os que já dedicamos a ela. Para encerrar esta discussão, que teria sido impossível
evitar, dada a convergência de dois ciclos mitológicos, o do desaninhador e o do combate dos
veadinhos contra os ursinhos, apenas esboçaremos a estrutura de conjunto deste último grupo de
mitos, mostrando que suas variantes dividem as mesmas funções que reconhecemos no primeiro.
*
* *
Começaremos por repartir as variantes em duas categorias principais, as que se
concentram nas aventuras dos fugitivos e as que se interessam mais pelas de sua perseguidora.
No primeiro caso, as crianças que ficam orfãs com o assassinato de sua mãe e que se vingam,
matando seus companheiros de brincadeiras, que são filhos da assassina, vão buscar a falecida no
além, ou então resolvem sair pelo mundo. Quando fazem a primeira opção, chegam à terra dos
mortos, onde morrem queimados (M637), ou ao céu, de onde não conseguem trazer a mãe de
volta para o mundo dos vivos (M638); ou então morrem afogados e tornam-se os donos da chuva e
HN 218
da tempestade (M636, M641). Quando optam pela segunda possibilidade, primeiro arrumam a
terra e depois sobem ao céu e viram as estrelas da Ursa Maior (M621, Teit:218-224, Boas 4:16).
A segunda categoria de variantes esquece as crianças fugitivas assim que elas ficam fora
de perigo, e se concentra no destino da ogra. Nesse caso, há também duas possibilidades: ou ela
morre ou ela sobrevive. Quando morre, seu cadáver fornece a Coiote a carne que será roubada
por raposas (M621c) ou outros coletores de ovos; para vingar-se, o filho do demiurgo violenta suas
mulheres e rouba os ovos (M623, cf. também M671). No segundo caso, que é próprio das versões
chinook, a ogra, primeiro enfraquecida por uma diarréia e depois afogada pelo passador
suscetível, volta a si quando as gralhas atacam sua vulva para comê-la. Ela lambuza a barriga ou
a cara com o sangue que escorre e pergunta a todas as árvores como acham que ela está.
Dependendo de a resposta ser elogiosa ou não, ela atribui a cada madeira valor como lenha ou
como madeira útil: "Ela deu nomes e funções a tudo o que existe em matéria de árvore" (M618,
M629, cf. Tillamook in E. D. Jacobs:148-150).
Esse último episódio constitui a forma fraca de um outro, ao qual os mitos dos Salish
costeiros, sobre a origem do sol e da lua e a ordenação do universo (M375b, M382, Adamson:158-
177), dão uma importância muito maior. Quando o demiurgo Lua, roubado após o nascimento
pelas filhas da leita, que o criam e se casam com ele, resolve voltar para junto dos seus, primeiro
ele transforma os filhos que teve da mais velha em árvores, e os que teve da caçula em peixes. E
dá a cada espécie vegetal e animal seu nome e sua função. De modo que se trata de uma criação
que enfatiza, no universo zoológico e botânico, seres especialmente valorizados por povos
essencialmente pescadores, artesãos da madeira e da cestaria.
Crianças Ogra
fugitivas perseguidora
Ressurreição Origem da
impossível tempestade e
(vida breve) da chuva
Pomo Maidu, Miwok
HN 219
Façamos aqui um breve parêntese. Em seus mitos, os Salish descrevem a ordenação do universo
de um modo que pode parecer estranho. O demiurgo executa um programa de três pontos,
começando por transformar parte de seus filhos em árvores de madeiras diferentes e a outra
parte, em peixes de todas as espécies. Depois disso, o demiurgo inicia uma longa viagem, durante
a qual vai se ocupando de outras tarefas, que são a criação dos quadrúpedes, de técnicas
artesanais, de instituições sociais e até de brincadeiras infantis, tudo isso aparentemente na mais
completa desordem. As árvores e os peixes ocupam, portanto, o primeiro lugar, elas na terra e
eles na água. Em relação a esses dois aspectos centrais da criação, todo o resto forma uma massa
confusa que os mitos deixam em último plano. O que se explica, se levarmos em conta que o
peixe era o alimento por excelência dessas populações costeiras ou fluviais, e os mitos sublinham
a importância das árvores como lenha para o fogo, que permite cozinhar ou defumar os peixes.
Esse par de termos culinários, madeira e peixes, tinha certamente um valor tópico para povos
cujos vizinhos, ou às vezes eles mesmos, nos acampamentos de inverno, sofriam com a falta de
madeira e eram obrigados a recorrer a combustíveis substitutos. Nesses casos, os salmões serviam
ao mesmo tempo de comida e de combustível (Teit 13:114, Strong:76, Heizer 1:188). Práticas
como essa, que neutraliza a oposição entre o alimento e o meio de cozinhá-lo, devem ter sido
mais freqüentes do que se supõe nas regiões pobres em vegetação arbustiva, como o planalto do
Columbia, semi-desértico em alguns locais devido à serra das Cascades, que bloqueia os ventos
úmidos vindos do mar. Mitos sahaptin evocam o cheiro horrível de um fogo alimentado por
ossadas humanas (Jacobs 3:237). O emprego de óleo animal e de ossos gordos como combustível
era generalizado no extremo norte, desde os Esquimó até os Chuckchee; Heródoto fazia menção
a isso entre os Citas (Hough:57, 188). De todo modo, aos olhos dos povos limítrofes, e talvez para
os próprios envolvidos, essa culinária paradoxal devia colocar problemas de ordem filosófica e
lógica comparáveis a outros que já encontramos (CC:157-160), e cujo eco valeria a pena buscar
nos mitos de um modo mais sistemático do que nos é possível fazer aqui.
Por outro lado, é numa forma extremamente enfraquecida que o episódio relativo às
árvores reaparece numa versão sahaptin do mito do desaninhador (M607a, supra:236) em que
Coiote, levado pela correnteza, é salvo pelos galhos das árvores que consegue agarrar e, em
agradecimento, concede-lhes virtudes medicinais ou boa madeira para utilização técnica. Nem é
preciso lembrar que na falta de peixes na água e de árvores na terra a indústria humana ver-se-ia
privada da matéria prima que garante seus alimentos em conserva e os objetos manufaturados
trocados nos mercados. As condições naturais das transações comerciais são aqui criadas,
HN 220
portanto, mas nas versões simétricas, são suas condições sociais que faltam. Assim como o
episódio das árvores só aparece em M606-607 de forma alusiva, os mitos thompson (M621c) e
shuswap (M623) que tomam emprestado a M606 o episódio do roubo dos alimentos acabam de
repente. Não só eles não põem um fim ao caos social pela instituição da troca, como M623 o
agrava, acrescentando ao roubo dos alimentos o das mulheres.
O que se deve sobretudo reter é que o ciclo dos veadinhos e ursinhos se organiza
logicamente como uma árvore (fig. 20), em cujas ramificações se inscreve a série completa das
transformações de que os volumes anteriores fizeram o inventário, e que nos permitiram
construir o grupo do desaninhador de pássaros. À esquerda, três ramos principais remetem ao
fogo, à água e ao céu. O ramo aquático se subdivide e bifurca, de um lado com o motivo da
ressurreição impossível, origem da vida breve (cf. M87-92), que envolve uma estrela
transformada em mulher, responsável pela abreviação da vida humana ou vítima dela; e, do
outro, com a origem da chuva e da tempestade, que os mitos sul-americanos correspondentes
associam estreitamente ao primeiro tema (cf. M91, 125, CC:213-214), quando não atribuem a
chuva diretamente à influência de uma constelação (cf. M1). Ora, aqui, a ramificação celeste
leva à origem de uma constelação. O que nos põe diante de três modos da periodicidade,
traduzida em termos biológicos (vida breve), meterológicos (estação das chuvas) ou astronômicos
(Ursa Maior).
À direita, uma ramificação principal bifurca em outras formas de periodicidade,
traduzidas em termos sociológicos ou botânicos. Vimos, em O cru e o cozido, que a instituição das
diferenças específicas transpõe para o modo espacial a diversidade temporal. Mitos sul-
americanos que tratam a questão em função da origem da cor dos pássaros transformam
levemente os do desaninhador (CC:319-324). É significativo, portanto, que os mitos do outro
hemisfério sobre as diferenças específicas entre as madeiras das árvores se aproximem muito de
outros sobre a origem da cor dos pássaros (M612b, Jacobs 1:109; M643a-e, Dixon 1:33-34,
Goddard 1:131, Jacobs 2, I:92, Adamson:252, 254-255). O argumento deles, aliás, é exatamente o
mesmo que no Chaco (M175, CC:311-312).
Há mais. A taxinomia botânica dos mitos chinook concerne essencialmente as virtudes
específicas de cada madeira utilizada como lenha, e portanto também na culinária. Por
conseguinte, a rede da figura 20 se dobra sobre si mesma seguindo seu eixo mediano: o fogo
construtor da extrema direita encontra-se com o fogo destruidor da extrema esquerda (os Wappo
e os Pomo cremavam os mortos). Do mesmo modo, a desordem social evocada pelos mitos
thompson, shuswap e lilloet, que é duplamente o contrário de uma ordem natural, se manifesta
depois de Coiote ter tirado da água a carcaça putrefata do grizzly (que inverte duplamente o
salmão fresco que ele prepara para comer nas versões chinook e sahaptin do desaninhador). Essa
indicação de M623 e M671 parece ainda menos fortuita na medida que M618 provoca uma diarréia
em Dona Grizzly, por ter consumido o peixe estragado que os fugitivos puseram de propósito em
HN 221
seu caminho, e que, no outro extremo da área de difusão do mito, entre os Pomo (M638b, Barrett
2:334-335), Dona Ursa tem por pai o espírito da podridão.
A ursa da versão shoshone (M642, Lowie 12:253-254) cai na água, permanece lá por um
mês e perde todos os pelos; vimos (supra:257) que uma metáfora do mito lilloet M622 equipara a
mesma personagem a um excremento. Fica claro, portanto, que a versão shuswap, em que Coiote
pesca no rio um bicho podre em lugar de um peixe fresco, evoca a água em seu aspecto
destrutivo ou corruptor; quando se dobra a rede, ela se une à ramificação do galho da esquerda
que corresponde à água com valor positivo. Essa operação, finalmente, aproxima a carência de
ordem social (côngrua à água destrutiva), significada pelo roubo das mulheres e dos alimentos
(representados pela carcaça podre), à presença de ordem natural, que os heróis fazem surgir
durante suas peregrinações: "As tribos do delta do Fraser dizem que os filhos da ursa preta foram
os grandes ordenadores da criação" (Boas 2:586; cf. Teit 5:218-224, 295, 315-319; Hill & Tout
2:360-362). O conjunto das variantes forma, assim, um grupo fechado.
III
O AJUDANTE BARULHENTO
Os mitos que acabamos de discutir põem fim à confusão dos gêneros, instaurando uma ordem ao
mesmo tempo social, econômica e culinária. É a troca, tal como praticada nas feiras e mercados,
que torna essa ordem manifesta, envolvendo então gêneros alimentícios, matérias primas e
objetos manufaturados; mas escravos também se compram, e até o casamento é uma transação.
Tudo se passa portanto como se o mercado condensasse, como um espelho redutor, o conjunto
dos mecanismos que garantem o funcionamento do corpo social e colocam pessoas e coisas
praticamente no mesmo plano. Ao instituir a troca, dizem os mitos, o demiurgo fixou
definitivamente a fronteira entre cultura e natureza, humanidade e animalidade.
No entanto, existem coisas que não se trocam, pois apresentam o caráter de bem
comum; é o caso da água potável e do fogo de cozinha (M603-604). E outras coisas se prestam ao
compartilhamento, fora de qualquer transação comercial. E se Grizzly e Urso preto ou pardo
evitam invadir os terrenos de coleta um do outro, embora esses animais pertençam a espécies
vizinhas, outros são aproximados na busca pelo alimento, como acontece com os carniceiros, que
aproveitam a carne não consumida que os predadores deixam como que para eles. Para uma
HN 222
filosofia que vê na troca uma espécie de pedra de toque na qual é possível reconhecer a
passagem da natureza à cultura, as relações econômicas de felinos de diversos tamanhos têm
algo de escabroso. Deveriam ser postos do lado da natureza, embora seus hábitos de
compartilhamento contrastem com a reserva mútua do urso e do grizzly? Ou do lado da cultura,
mas, nesse caso, desconsiderando o fato de as transações entre predadores e carniceiros serem
de mão única e de que, ao contrário dos parceiros de troca, um recebe sem dar, e o outro dá sem
receber? Pois a mitologia dos Sahaptin e de seus vizinhos — apesar de só dispormos de fragmentos
dela — considera todas essas possibilidades, uma após a outra e, o que é ainda mais notável, a
cada vez encarrega um par de animais diferente de ilustrá-las. Já conhecemos três desses pares.
Ao par formado por Coiote e Lobo, cabe fundar a origem da troca; o que é formado por Urso e
Grizzly age no sentido oposto. Entre os Kalapuya, um terceiro par, formado por Puma e Coiote,
rege o caso particular de elementos que, como a água e o fogo, são de todos e ninguém pode,
portanto, vender ou reservar para si. Um outro grupo de mitos se dedica, finalmente, a resolver a
dificuldade que assinalamos no início, ilustrada pelas confusões que fazem parte da ordem
natural. Certos animais, embora de espécies diferentes, costumam compartilhar o alimento.
Opõem-se, assim, ao par formado por Urso e Grizzly. E como esse compartilhamento de um
alimento exatamente igual para ambos exclui o roubo, eles também se opõem, duplamente, ao
par formado por Lobo e Coiote, que não comem as mesmas coisas (ovos, num caso, e salmões, no
outro) e que ficam tentando roubá-las uns dos outros:
O Puma (Felis concolor), que vive nos dois hemisférios, é o maior felino da América do Norte. As
transcrições em inglês de nossos mitos chamam-no tanto de "cougar" como de "pantera" (cf.
supra:228). Do mesmo modo, a expressão inglesa wild cat, literalmente "gato selvagem", designa
o Lince, e nem sempre fica claro se se trata do Lynx canadensis ou do Lynx rufus, igualmente
espalhados pela região. Tanto a Doninha (weasel) como a Marta (fisher) pertencem à família dos
mustelídeos.
Ao atribuir aos dois protagonistas duas funções distintas, bem antes de eles assumirem
sua natureza animal, M644 coloca uma equivalência implícita:
(cultura) (natureza)
[cozinheiro:caçador] :: [carniceiro:predador],
HN 224
[p. 268]
na qual o a primeira ocupação de cada termo está subordinada à segunda. De fato, como já
aprendemos em relação aos povos dessa região, é a troca de alimento, e não seu preparo
culinário, que marca a articulação essencial entre a cultura e a natureza. Entre os Sahaptin do
vale do Columbia, a culinária, mera função da busca pelo alimento, cabia geralmente aos homens
(Garth 1:52; cf. OMM:401), mas não sabemos se essa prática incomum, mas compartilhada por
certos atabascanos do norte, não obstante condições sociais e econômicas muito diversas, se
explica pela posição não marcada da cozinha no sistema ou porque eram escravos homens os
encarregados dela42. Nesse caso, a ausência de marca continuaria sendo pertinente, mas passaria
da ação para o agente.
*
* *
As variantes cowlitz (M645a,b, Jacobs 1:113-121, 133-139) se parecem com M644, a não ser pelo
fato de reduzirem a família de cinco irmãos a Puma e Lince, e de uma delas (M645b) atribuir ao
mais velho uma mulher, de quem ele vive afastado e que, no início do mito, ele se prepara para
42
No comecinho do século XIX, Lewis e Clark se surpreenderam ao verem homens chinook
cozinhando; mas talvez fossem escravos (Ray 4:128). Em relação aos Salish do interior, citaremos algumas
indicações, provenientes de mitos respectivamente dos Sanpoil, Okanagon e Thompson. Raposa, que planeja
roubar o peixe de Coiote, diz a ele: "Você é um chefe, seus antepassados eram todos chefes. Você não deve
cozinhar. Deixe-me cuidar disso e vá descansar. Vou cozinhar o salmão e irei chamá-lo quando estiver
pronto" (Ray 2:174). Tentando esconder sua origem humilde, Cangambá protesta: "Você está enganado. Não
sou cozinheiro, sou um chefe." E alhures Coiote se dirige a um espírito malvado nos seguintes termos: "Que é
isso? Mas você não vai cozinhar a carne! Chefes não cozinham, isso é trabalho de mulheres, escravos e gente
como eu. Deixe-me cozinhar em seu lugar" (Teit 5:312). E sobre os Lummi, que são Salish costeiros, diz-se
que "eles não consideram humilhante para os homens ajudar na cozinha, principalmente nas cerimônias" (B.
Stern:32).
HN 225
ir visitar. "Você não pode me abandonar", protesta Lince, que exige acompanhar o irmão. Puma
faz uma boa caça e, enquanto a põe para cozinhar, manda Lince buscar, não casca de árvore,
como em M644, mas folhas para usarem como prato. O interesse dessa transformação, que
poderia parecer sem conseqüência, aparecerá mais tarde (infra:273, 281).
Lince se afasta cantando a abundância da refeição que está sendo preparada e lança
convites imaginários sem destinatário definido. Um velho de aparência miserável escuta e aceita.
Apiedado do início, Lince muda de opinião quando vê seu convidado devorando pedaços de
madeira e outros restos como se fossem peixes, e mais ainda quando o ogre se senta à mesa com
os dois irmãos e engole um veado inteiro, junto com os chifres e a toalha.
A história continua como em M644, mas é Puma, e não Lince, que decapita o ogre e é
preseguido pela cabeça. Alcança o irmão caçula que já tinha fugido para um rio, pega-o debaixo
do braço e depois de outras peripécias do mesmo gênero, provoca uma bruma e uma forte chuva,
graças às quais a cabeça os perde de vista. Bem na hora, porque Puma já estava sem forças.
Note-se, a respeito desse episódio, que em relação a M644 os papéis dos dois irmãos se invertem
e, em vez de um deles fugir para baixo (mas perseguido pela cabeça, parte alta) e o outro para o
alto (mas perseguido pelo corpo, parte baixa), ambos correm para um rio, para baixo portanto, e
perseguidos apenas pela parte alta do corpo, a cabeça. O texto ligeiramente diferente de M645b
não invalida essa análise, pois embora os dois irmãos nele sigam o rio em direção da cabeceira
(upstream), a oposição entre o vale e a montanha, tão forte em M644, também está ausente, de
modo que é para o vale que ambos fogem. Finalmente, se Puma se aproveita passivamente da
cerração nas versões klikitat, aqui ele a provoca com seus poderes mágicos e acrescenta uma
chuva torrencial. O sentido dessas transformações ainda não está claro, mas já se vê que elas são
coerentes do ponto de vista formal. A partir daí, M644 e M645 divergem, pelo menos na
aparência:
com eles, Lince lhes cortava os tendões de aquiles. Mas o último, que não
tinha tirado a roupa para entrar no rio, foi mais resistente. Enquanto
lutavam, ele e Puma iam subindo pelos ares pouco a pouco, e
despedaçavam-se mutuamente. Nacos de carne caíam e Lince os ia
recolhendo. Guardava apenas os brancos e jogava fora os pretos, porque
os primeiros pertenciam ao irmão, que ele deveria reconstituir após o
final da luta. Mas enganou-se ao recolocar o fígado (ou as entranhas,
segundo M645b). Puma achou que fosse morrer. Lince explicou: "Não,
nada disso. É melhor assim: você agora será um ser temível". A outra
versão é ainda mais explícita: "Isso não tem importância — diz Lince. Não
se atormente por causa dessas entranhas. No futuro, se você for morto e
comido, as entranhas serão jogadas fora." E Puma concluiu: "Que seja,
ficarei com as entranhas do ser perigoso. Assim, eu mesmo me tornarei
um. Perfeito!" (Jacobs 1:117, 136).
Então Puma decidiu separar-se definitivamente do irmão e, como este
estava desolado, deu-lhe armas de caça e prometeu que o convidaria a
comer sempre que matasse uma presa grande. Lince se esforçou por
caçar como o irmão, mas se equivocava quanto ao tamanho de suas
presas desprezíveis. Puma apareceu, mostrou os fatos ao irmão e lhe
ofereceu um menu mais consistente. Os dois se distanciaram novamente.
Puma encontrou um menino chamado Vison, que insistiu para acompanhá-
lo. Mas isso causou-lhe todos os tipos de problema. Primeiro, ele teve de
secar um lago para tirar Vison da barriga de um monstro que o tinha
engolido durante uma caça ao pato. Em seguida, Vison insistiu em saber o
nome do lugar onde os dois tinham parado para pernoitar, embora fosse
proibido pronunciá-lo. Insistiu tanto, que Puma sussurou "Tyigh" (ta'ix).
Vison começou a berrar o nome proibido, o que provocou uma chuva
torrencial que o deixou molhado até os ossos. Começou a tremer de frio e
Puma teve de protegê-lo dentro do estojo em que guardava sua broca de
fogo.
Na manhã seguinte, Puma disse a Vison para ir "à casa de suas duas
esposas" buscar comida. As esposas eram poços naturais que só sabiam
gorgolejar quando se falava com elas, mas entregavam pratos de comida
bem quente e bem preparada a quem esperasse por eles de olhos
fechados depois de pedi-los. Depois de comerem e devolverem a louça às
proprietárias, Puma quis seguir viagem, para procurar uma outra esposa.
Tinha em vista a filha de um velho que fingiu recebê-lo bem mas tentou
matá-lo enquanto ele dormia várias vezes. Puma era sempre alertado por
Vison a tempo.
O velho então concentrou-se no menino e despachou-o em missões
perigosas, mas ele sempre escapava. Uma cotovia (cf. supra:257;
infra:282) revelou a Puma que sua mulher era uma ursa grizzly, ele a
matou, assou-lhe os seios e serviu-os ao sogro. Depois os dois irmãos
fugiram, mas Puma continuava sem mulher... (Jacobs 1:113-121).
A outra versão (M645b; ibid.:133-139) não contém o episódio do nome proibido; ela assemelha as
esposas nutrizes a fontes e não a poços naturais, mas aqui se trata certamente de uma mera
variação de terminologia, pois em inglês uma fonte pode ser chamada de "well" ou "waterhole"
quando se parece com um olho d'água. Uma versão tillamook diz "lago" (E.D. Jacobs:135-136). De
modo mais significativo, M645 especifica que o pai de Dona Grizzly é o Trovão, e os irmãos têm
mais dificuldade em livrar-se de seus projetos assassinos. Uma variante invertida, proveniente
dos Clackamas (M646a, Jacobs 2, I:256-267) explica que a esposa humana do Trovão recebeu o
HN 227
privilégio de sair na chuva (água celeste) sem se molhar, ao passo que, em M645, uma velha (que
não pode, portanto, ser uma esposa), dona de um fogo terrestre (em vez de celeste, como o
raio), se mostra incapaz de atravessar um rio (água terrestre) a pé sem se molhar. Já evocamos
(supra:230) esse grupo de transformação, e voltaremos a ele ao tratarmos das versões salish. O
estado que acabamos de evidenciar já sugere que o fato de a construção de M645 parecer tão
complexa decorre de encadear seqüências homólogas que deverão ser superpostas para poderem
ser corretamente interpretadas.
Quanto ao lugar de nome proibido, as informações que possuímos são contraditórias. Para
Jacobs (1:23, 118 n.2), seria o vale do Tyigh, afluente do Deschutes a leste das Cascades, no
norte do Oregon. Em correspondência pessoal, o professor Rigsby, grande especialista nessa
região e nas línguas aí faladas, teve a gentileza de nos confirmar que a aldeia sahaptin localizada
naquele vale era conhecida por seus vizinhos ao sul e ao norte pelo nome de /tayxláma/ ou
/táyxpam/, "gente de Tayx". Segundo o testemunho mais antigo de Teit (13:100, 108), os Tenino
poderiam provir dessa "gente de Tayx" habitante do vale de mesmo nome, embora o autor a
considere inóspita demais, ou mais ao sul. O nome em si remontaria a um irmão caçula que o
teria gritado várias vezes seguidas enquanto subia para o céu.
Mas o que significa esse grito? Rigsby desconhece-lhe qualquer etimologia em sahaptin; se
algum dia significou algo, hoje é apenas o nome de um lugar. Na correspondência mencionada
acima (supra:256), Dell Hymes garante que a palavra tampouco tem significado em chinook mas,
citando o dicionário de J. K. Gills, aponta para um morfema ta bastante recorrente no
vocabulário, talvez derivado do sahaptin, que conota a idéia de poder sobrenatural.
Pois bem, quando se olha para o lado dos Chinook, a coisa se complica. O mito possui,
entre eles, a mesma função etiológica que a das versões sahaptin, como evidencia uma variante
baixo-chinook (M646b, Ray 4:151-156) em que Puma promete ao irmão caçula Lince, para
recompensá-lo por ter livrado a irmã deles das garras de um urso, que sempre reservará para ele
parte do que caçar. O episódio do lugar de nome proibido e o próprio nome reaparecem numa
outra versão chinook proveniente dos Kathlamet (M646d, Boas 7:103-117) que explica (:112 n. 1)
que T$'îx designa um lago de montanha próximo da nascente do rio Cowlitz. O nome também
aparece numa versão salish (M650a, Adamson:206) proveniente do rio Cowlitz, mas a jusante.
De modo que haveria dois "Taix", a uns cem quilômetros um do outro. Como todos os
mitos que mencionam o nome vêm de populações de línguas diferentes, mas todas habitantes do
vale do Cowlitz ou das proximidades, a localização proposta por Boas parece ser a mais
verossímil. O que nos levaria a tentar buscar a origem do nome nas línguas salish, em que poderia
existir, se a fonologia o confirmasse, uma curiosa homofonia entre o nome de lugar Taix, que o
Vison está proibido de pronunciar, e o nome próprio desse mesmo personagem, que é Sqaix em
tilloet e Qaix nos dialetos costeiros (Teit 2:292 e n.4).
HN 228
*
* *
Atenhamo-nos ao aspecto formal dos mitos, que já coloca problemas suficientes. Três diferenças
fundamentais separam as versões klikitat (M645) e cowlitz (M645). Primeiro, a missão de Lince
consiste, num caso, em recolher cascas de árvore para confeccionar diversos utensílios de
cozinha e, no outro, simplesmente em pegar folhas para servir de prato. Em seguida, as versões
cowlitz encarregam Lince de uma segunda missão, a de cuidar do fogo e evitar que se apague. As
mesmas versões além disso redobram as desventuras de Lince com as também duas de Vison,
personagem que substitui Lince como irmão caçula de Puma na segunda parte da narrativa.
Pegar folhas verdes para servir de prato improvisado exige menos competência do que
destacar pedaços de casca sem quebrá-la e fazer três tipos distintos de recipientes. As versões
cowlitz depreciam, portanto, a contribuição de Lince, e vão mais além nesse sentido ao mostrá-lo
incapaz de cuidar do fogo, obrigação primeira de qualquer cozinheiro. Entre um grupo e o outro,
o valor profissional de Lince declina, portanto, e ao mesmo tempo, o do irmão Puma se inverte.
Pois se as versões klikitat o definem apenas como caçador e irmão provedor, as outras relatam,
no episódio da troca de fígados, como ele se tornou um ser perigoso e, ainda por cima,
parcialmente incomestível, restrição de seu valor nutritivo ("nutriente"), decorrente da proibição
alimentar relativa às vísceras do puma, que esse episódio explica.
A versão wasco do mesmo mito (M646e, Sapir 1:294-298) vai ainda mais longe, pois Lince
ali se mostra um caçador mais precoce (menos exclusivamente cozinheiro, portanto). Assim,
quando os dois irmãos se separam, Lince anuncia que será o patrono dos caçadores e Puma, o dos
caçadores e dos guerreiros. Cada personagem se define, pois, por um vetor que poderíamos
chamar de profissional, unindo cozinha e caça num caso, caça e guerra no outro, cujos
respectivos tamanhos variam correlativamente em várias versões. Como a maioria das versões
chinook, M646e identifica os donos do fogo roubado a ursos grizzly. As dos Sahaptin do Cowlitz
são menos explícitas, mas dir-se-ia que, ao ordenarem diferentemente as presas transportadas
pelos inimigos dos dois irmãos, M645a e M645b tendem a aproximar ou afastar grizzlys e
humanos:
Essa conjunção funesta é ilustrada antecipadamente, mas de modo ainda puramente simbólico,
por M645a, ao passo que M645b a mantém em reserva, por assim dizer, para dar-lhe um
tratamento especial na última parte da narrativa, o episódio em que Puma (que participa da
natureza humana nesse período mítico em que os reinos ainda eram indistintos) tenta a
experiência concreta de uma aproximação de ordem conjugal com uma moça-grizzly. O que
HN 229
mostra que a posição do puma nas duas séries não é menos pertinente do que a do humano e do
grizzly, e a permutação dos demais termos — veado, urso/urso, veado — aparece como reflexo da
que afeta os três outros.
Dependendo da versão considerada, o único ou primeiro erro de Lince consiste em cantar
enquanto desempenha sua função de ajudante de cozinha. Reencontramos aqui o tema do ruído
antitético à cozinha, que desempenha um papel de primeira importância nestas Mitológicas, já
que a partir do momento em que o percebemos pela primeira vez (CC:156-157), foi preciso lhe
dar cada vez mais atenção (MC:passim; OMM:250-252, 265-266, 412-414). No caso de que estamos
tratando, qual é o resultado da algazarra? Ela provoca a reunião entre os heróis e um ogre que
devora todas as suas provisões e quase os devora também. O ogre fica acordado de olhos
fechados e dorme de olhos abertos, como os gênios da escuridão descritos pelos Kalapuya em sua
versão do mesmo mito (M647, Jacobs 4:244-251). M644b, por sua vez, explica que as trevas se
dissiparam depois do desaparecimento do ogre (Jacobs 3:222). O que indica tratar-se aqui do
mesmo charivari que acompanha alhures os eclipses ou, num outro contexto, é produzido por
instrumentos chamados, justamente, "das trevas"; e que, também nos dois casos, marca ou
determina uma regressão dos humanos a um estágio pré-culinário, já que se deve jogar fora a
comida e jejuar durante o eclipse, e o ofício das trevas ocorre no momento mais rigoroso da
quaresma; e, finalmente, em ambas as circunstâncias, todos os fogos devam ser apagados
(CC:304-305; MC:355-357). Bem, os mitos sahaptin começam revelando a natureza do gênio da
escuridão ao atribuir-lhe um comportamento regressivo na ordem culinária: ele aterroriza o
jovem herói quando engole pedaços de madeira como se fossem peixes (cf. supra:267, 269).
Responsável pelo reinado da noite e da penúria, Lince comete, portanto, um erro que
apenas renova nas versões cowlitz quando, mais tarde, deixa extinguir-se o fogo doméstico.
Convém no entanto notar uma diferença: a escuridão é uma carência de fogo celeste, ao passo
que, na segunda vez, é a carência de um fogo terrestre que impede o cozinheiro de cumprir sua
tarefa. Após o roubo do fogo dos grizzlys ou dos personagens que fazem o papel deles, os irmãos
se saparam e poder-se-ia pensar que, como nas versões klikitat, essa disjunção temperada pelo
compartilhamento ocasional do alimento põe fim às conjunções abusivas pelas quais Lince é
responsável. Mas depois da saída de Lince, as versões cowlitz ainda possuem uma seqüência
reservada. É a vez de Vison entrar em cena e de também ser responsável pelos dois erros, que
invertem a ordem na qual Lince tinha cometido os seus, e ao mesmo tempo lhes são
antisimétricos, num novo registro, não mais o do fogo, mas o da água.
De fato, Vison começa se comportanto como caçador excessivo, ao passo que Lince se
revelara cozinheiro deficiente. Tendo chegado à margem de um lago coalhado de patos, Vison
insiste para que o irmão atire neles, e Puma responde inicialmente: "Não, eles estão longe
demais, você não vai conseguir ir pegá-los". Mas acaba cedendo e Vison nada até os patos
abatidos. Surgem monstros aquáticos que o agarram no caminho e o engolem. Puma tem de secar
HN 230
o lago e matar todos os monstros, um por um, até achar Vison, brandindo seu pato, na barriga do
menor (Jacobs 8:117-118; cf. M216-217 e M257). Conseqüentemente, assim como Lince começara
por juntar-se a uma escuridão personificada por um ogre e que era o oposto da luz do dia, fogo
celeste, Vison começa se juntando a ogres aquáticos que, vivendo no fundo do lago, representam
a água terrestre em seu aspecto negativo.
A mesma relação de simetria persiste quando examinamos o erro seguinte de nossos dois
protagonistas. Para Lince, consiste em deixar apagar o fogo doméstico, ou seja, um fogo
terrestre, e, para Vison, em provocar uma chuva torrencial, isto é, uma água celeste. Ao
transportar nas costas o toco em brasa roubado dos grizzlys, que contém o fogo em estado
selvagem, Lince sofre queimaduras cujas marcas permanecem em sua pelagem. Molhado até os
ossos e tiritando de frio, Vison encontra abrigo e proteção no estojo que contém o fogo
civilizado, o que em vez de se roubar dos ogres, se produz pelo manejo técnico da broca. Os
respectivos erros de Lince e Vison se correspondem, portanto, e formam um quiasma. O primeiro
erro de um e o segundo do outro resultam de um comportamento desmedido, por excesso ou por
falta, em relação à caça ou à culinária; e o segundo erro de um e o primeiro do outro se originam
igualmente de um comportamento desmedido, do ponto de vista lingüístico: Lince canta alto
quando devia ficar em silêncio, e Vison diz aos gritos o nome de lugar que estava proibido de
pronunciar. As quatro primeiras seqüências das versões cowlitz explicitam, portanto, a seqüência
única das versões klikitat; equilibram umas as outras e formam um sistema coerente (fig. 21).
LINCE VISON
1. fogo celeste 3. água terrestre
2. fogo terrestre 4. água celeste
ERRO ALIMENTAR ERRO LINGÜÍSTICO
Até aqui, os mitos parecem operar com uma matriz quadridimensional. Os herós agem 1) por
excesso ou por falta, 2) em relação ao fogo ou à água, tomados 3) nas modalidades terrestre ou
celeste, e os erros que cometem referem-se 4) ao registro alimentar ou ao registro lingüístico.
Veremos que a seqüência seguinte dos mitos cowlitz intriduz uma quinta dimensão, em que a
narrativa irá manter-se até o final.
No decorrer dessa seqüência, Puma é alimentado, junto com o irmão, por duas "esposas",
que é o modo como nomeia olhos d'água que, quando solicitados, fazem emergir à superfície
pratos de comida fumegante e bem preparada. Para ouvintes indígenas bem familiarizados com
seus mitos, esse par de mulheres sobrenaturais não podia deixar de evocar outros que, tomados
em conjunto, constituem um sistema paradigmático no nível do qual convém nos situarmos se
HN 231
Não obstante sua esquisitice e seu aspecto gratuito, a história das esposas-do-poço cumpre, como
se vê, uma função precisa. Ela reúne todos os eixos semânticos que o mito tinha sucessivamente
introduzido, excesso/falta, fogo/água, terrestre/celeste, alimentar/lingüístico, e acrescenta um
outro, conjugal/não-conjugal, no qual se inscreve a última parte. Nas partes anteriores, o
comportamento de Vison se apresentava como simétrico e inverso ao de Lince, mas sempre cabia
a Puma consertar a situação. A partir do momento em que o código muda, os papéis também se
invertem. Ao querer desposar uma Dona Grizzly filha do Trovão, Puma se expõe, junto com seu
companheiro, aos riscos de uma conjunção não menos perigosa do que as outras, ainda que o
mito a formule em termos sociológicos; e o papel de salvador passa para Vison. Antes de
abordarmos essa última fase da análise, é indispensável introduzirmos as versões salish.
*
* *
As tribos de língua salish chamadas "costeiras" — para diferenciá-las das do planalto — ocupavam
uma zona que vai da vertente ocidental das Cascades até o mar. No vale do rio Cowlitz e também
alhures, eram limítrofes dos Sahaptin setentrionais, com quem mantinham relações pacíficas,
fundadas na boa vizinhança, visitas recíprocas, intercasamentos e trocas comerciais. Assim, as
duas famílias lingüísticas compartilhavam vários mitos, que apresentam contrastes entre um
grupo e o outro, manifestando a necessidade que povos vizinhos têm de se mostrarem ao mesmo
HN 233
tempo como semelhantes e diferentes entre si. Fenômenos de reflexo, inversão e simetria
demonstram um esforço inconsciente para enfrentar exigências contraditórias, de um lado as que
resultam da proximidade territorial e das vantagens políticas e econômicas inerentes à
colaboração e, do outro, o paroquialismo e o desejo de afirmar uma personalidade original. Entre
essas tendências antagônicas, estabelece-se um equilíbrio instável, que imprime dinamismo ao
pensamento mítico. Aí deve geralmente ser buscada a chave das relações de transformação que
regem os diferentes estados de um mesmo mito e que, entre um grupo e outro ou em setores ou
períodos distintos no seio de um mesmo grupo, respondem à dupla necessidade de conciliar e
opor o que se conhece do outro e o que se supõe possuir de próprio. Ilustramos algures esses
mecanismos (Lévi-Strauss 5, cap. 12; 19), de que os mitos salish e sahaptin fornecem um exemplo
não menos probante.
Como as versões sahaptin, as dos Salish costeiros formam um sistema complexo. Primeiro,
diferem segundo o vale de que provêm, Chehalis, Cowlitz ou Humptulips. Porém, até entre os
Chehalis convém distinguir duas variantes, que os informantes consideram como mitos totalmente
distintos (Adamson:64 n.1). Sem chegarmos a tal ponto, respeitaremos a divisão entre um tipo I e
um tipo II.
Poucos mitos se mostram tão conscientes de sua função etiológica quanto esse M648, que toma o
cuidado de expor o significado de cada um dos episódios que o compõem. Em todos os casos,
trata-se de fundar a regra do compartilhamento, que o mito aplica inicialmente ao fogo e depois
estende sucessivamente às refeições, às relações entre cônjuges e, finalmente, ao reino natural.
Nenhum problema nos dois primeiros casos: dizem-nos que o fogo é algo que se empresta, e que
as refeições são feitas para serem compartilhadas. O episódio que trata das relações conjugais é
mais complexo, pois as mulheres-gruas (ou gansos selvagens segundo M649b, Adamson:67-79) se
desqualificam de três modos diferentes: vendem sua coleta em vez de a darem, tomam a
iniciativa no pedido de casamento e fazem tanto barulho que fica impossível caçar. Deixaremos o
último aspecto de lado por enquanto. Fica evidente que os dois primeiros se completam, pois que
ambos enunciam, um no plano econômico e o outro no plano sociológico, a mesma verdade: à
diferença das transações comerciais, as que criam e perpetuam os casais não são reversíveis. O
homem corteja a mulher, e não o contrário (cf. M610), e a mulher contribui com sua coleta para
a subsistência do casal sem esperar algo em troca. De modo que se pode dizer que o mito tira de
seus três primeiros episódios, sucessivamente, uma moral do lar, uma moral da mesa e uma
moral doméstica. A originalidade do quarto episódio reside, portanto, em fundar um aspecto da
ordem natural — o compartilhamento da comida entre um predador e um carniceiro — em três
HN 235
casos particulares que dizem respeito à vida em sociedade mas nos quais, excepcionalmente, a
norma da partilha prevalece sobre a da troca. Indo da cultura para a natureza, M648 faz uma
marcha regressiva; fenômeno atestado também numa das versões humptulips (M651a,
Adamson:310-315), que diz que após todas as suas tribulações, os dois irmãos resolveram só
comer alimento cru e assim assumiram sua condição animal. A mesma versão diz ainda que a
parte da caça deixada para Lince por seus irmãos suscitou a cobiça do urso que, desde então, não
perde uma ocasião de roubá-la.
De modo que M648 faz da partilha social (aplicada ao fogo, à refeição e às relações entre
cônjuges) o fundamento da partilha natural. E também realiza uma notável transformação ao
substituir os recipientes de casca de que fala a versão klikitat por espetos de madeira, na medida
em que cada um desses tipos de utensílio remete a um modo de cozimento diferente, guisado
num caso e assado no outro. Há diversos indícios de que os índios do noroeste da América tinham
cuidados especiais com seus espetos de assar. Um mito nez percé que analisaremos mais adiante
(M655s, p. 292) gira parcialmente em torno desse tema. Os Chehalis da Colúmbia Britânica,
distintos daqueles de onde provém o mito que estamos discutindo, falam de uma dança ritual
com espetos para o retorno da pesca à solha (um peixe chato; cf. Hill & Tout 2:371). Os Cowlitz
procuravam saber a duração de suas vidas lançando o mais longe possível um espeto com a
cabeça da enguia que acabara de ser assada nele (Adamson:191). Entre os Alsea, os Chinook e
outros grupos, o primeiro salmão do ano devia ser assado no espeto (Frachtenberg 4:107; Boas
10:101-102). Os Kalapuya, que conjugam a fervura e a assadura em sua versão do mito (M647,
Jacobs 4:246), contam que, nos tempos antigos, os espetos eram guardados após o uso e muito
bem cuidados. Ao norte, os Bella Coola, grupo salish isolado, acreditavam que uma mulher daria
à luz gêmeos se comesse salmão assado no próprio espeto (Gunther 5:171). Mais longe, um mito
tlingit (Swanton 2:313-314) menciona uma lavagem ritual desse utensílio culinário.
A casca de árvore, por sua vez, tem tanta importância das técnicas e crenças desssa
região da América quanto na Amazônia (MC:313-318, 334-337), se não mais. Para os Sahaptin e
seus vizinhos, a casca servia primeiramente de combustível. Conta uma informante:
"Antigamente, os Cowlitz não tinham fósforos... Pegavam casca de cedro, ateavam fogo aos
pedaços onde estava começando a se desfazer e os levavam consigo nas viagens. Quando
acampavam à noite, assopravam na região incandescente até surgirem chamas que permitissem
acender o fogo" (Jacobs 1:226). Mas a casca era também um alimento: em todos os lugares onde
havia coníferas, os índios comiam, na primavera, a entrecasca de várias espécies e raspavam os
troncos do "sugar pine" (Pinus lambertiana) para obter sua resina açucarada. Vêm em seguida os
empregos técnicos: todos os povos da região fabricavam ou utilizavam cestos de fibras trançadas,
geralmente de casca de "cedro" (Thuja gigantea), tingida de vermelho com casca de amieiro
(Alnus rubra; Haeberlin, Teit & Roberts:138-139), a mesma que Coiote mastiga, nas versões karok
e clackamas dos mitos sobre a liberação dos salmões, para ficar com a boca vermelha, como se
HN 236
estivesse cheia de salmões, que têm a mesma cor; fingir que já possui os salmões irá ajudá-lo a
liberá-los mais facilmente. Todas as tribos sabiam fabricar recipientes com a casca dobrada. E,
finalmente, as mulheres rasgavam a casca de cedro e torciam as fibras para fazer cordões, além
de usarem saias curtas de casca tecida. Ao mesmo tempo combustível e alimento, vestimenta e
utensílio culinário, a casca se apresenta como uma matéria-prima que, apesar de ser uma
substância natural, recobre todo o domínio da cultura. No início dos tempos, contam os Sahaptin
(M375p, Jacobs 1:139-142), a casca vermelha constituía todo o equipamento do demiurgo;
bastava que ele a mostrasse para que a caça caísse morta de terror. Quando seu segredo foi
descoberto, o demiurgo se retirou: "Agora que me viram e sabem como eu faço, só me resta ir
embora". Com efeito, uma vez obtida a casca, a humanidade nada mais tem a esperar da criação.
Vimos que as versões sahaptin operam com uma oposição pertinente entre a casca (M644)
e as folhas verdes (M645). A casca serve para fabricar três tipos de utensílios, panela, balde e
prato, ao passo que as folhas só servem para fabricar pratos. O fato de a utilização da casca e das
folhas coincidir apenas no tocante ao último ponto certamente explica porque uma das versões
(M644) reforça o contraste salientando apenas os dois primeiros usos da casca: "para ferventar",
diz o mito, e "para pegar água". Desse modo, sobressai a função mediadora que o recipiente
assume, por intermédio da água e das pedras aquecidas que nele são colocadas, entre a carne e o
fogo, contrariamente à relação de contigüidade imediata ilustrada pela carne colocada
diretamente no prato. Por conseguinte, a mesma oposição pertinente que as versões sahaptin
traduzem por meio da casca e das folhas é significada, nas versões salish, pela presença ou
ausência de espeto. Ao afastar a carne do fogo, o espeto também cumpre uma função mediadora,
que o ajudante de cozinha anula, não por fazer barulho, como no outro episódio, mas com uma
culinária suja, colocando a carne diretamente no fogo. Os mitos do noroeste da América atestam,
portanto, que entre a má culinária e a algazarra existe a mesma correlação cuja generalidade e
alcance os mitos do outro hemisfério já nos tinham feito pressentir (CC:299-302).
*
* *
Mas por que o mito salish substitui o recipiente pelo espeto, e o guisado pelo assado? Uma versão
do rio Cowlitz, que volta à fórmula do recipiente de casca em vez do espeto, permite
compreender porque. Essa versão, bem como uma outra menos completa (M650a,b,
Adamson:202-209), são quase idênticas às dos Sahaptin residentes mais alto no mesmo vale
(M645a,b). Ressaltaremos apenas as diferenças43. É dito no início que Puma vive só com seus
43
Um detalhe de M650a, M651a (Adamson:203, 312-313) é relevante num outro contexto, a que já
nos referimos (supra:230): a dona do fogo roubado por Lince o mantinha escondido nas próprias tranças,
cada uma delas feita de cinco toras trançadas. É esse detalhe que permite incorporar ao mesmo grupo de
mitos as versões kalapuya sobre a origem do fogo e a variante tillamook (M652a, E. D. Jacobs:110-112; cf.
M652b,c, Edel:121-124), nas quais as toras são de madeira trançada.
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irmãos, embora tenha numerosas esposas espalhadas por vários lugares. Todas as aventuras dele
ocorrem enquanto ele viaja para ir visitar a mais recente delas, Bisão (M650a) ou Ursa Grizzly
filha do Trovão (M650b), e este procura destruir Puma e o irmão. Pois bem, essa animosidade,
que não é explicada alhures, tem aqui uma razão, enunciada por Cotovia: "Está vendo?", diz ela a
Puma, "você comprou essas moças há muito tempo, mas não veio imediatamente. Isso desagradou
o velho. Ele é viúvo, e poderia ter encontrado outros maridos para suas filhas". A segunda versão
diz mais: "Puma não vinha ver a mulher havia três anos, e aliás, tinha outras esposas. A família
dela estava irritada e com ciúme e, por isso, preferiu matá-lo a deixá-lo ir encontrar com as
outras" (Adamson:208-209). Puma e Vison escaparam de todas as tentativas de assassinato, mas
resolveram separar-se e virar animais: "Doravante, visões acasalarão com visões e pumas com
pumas. Espécies diferentes não se unirão". E o Trovão virou uma nuvem no céu: "no tempo em
que ele tinha natureza humana, era realmente malvado demais" (M650b, Ibid.:211).
Percebe-se onde está a originalidade dessas variantes. Uma intriga quase idêntica à do
mito sahaptin recebe a função etiológica inversa, que por sua vez é a mesma de que os Sahaptin
encarregam o mito das duas ursas (M615), cuja intriga inverte essa. Em vez de justificar, como
fazia M645, o fato de certas espécies zoológicas viverem em regime comunitário, M650 pronuncia
uma série de divórcios, comparáveis à separação dos ursos em espécies de cabia a M615
consumar. Mas, para realizar-se sem que seu resultado se anule levando o grupo de volta ao
ponto de partida, essa transformação muda de registro. A desunião de que falava o mito das duas
ursas remetia ao registro alimentar, a de que se trata aqui, ao registro sexual: urso e grizzly não
comerão a comida um do outro, puma e vison não acasalarão entre si. Eles nunca o tinham feito,
é verdade, mas quase morreram porque Puma se expôs (e ao irmão) às tentações e riscos de
uniões tão afastadas que já não conseguia cumprir suas obrigações de afim. De modo que a
função dos mitos é, em ambos os casos, a mesma, delimitar na ordem social ou na ordem natural
os setores em que a máxima do "onde come um, comem dois" cede lugar ao "cada um por si".
Porém, enquanto os Sahaptin encarregam Puma e Lince de defender a primeira e Ursa e Grizzly
de defender a segunda, os Salish do rio Cowlitz empregam o primeiro par, mas num outro
registro, para fazer a demonstração de que seus vizinhos a montante encarregam o segundo. Isso
posto, e tendo em vista que já registramos a inversão das mensagens e a dos códigos, resta
apenas inverter os léxicos para que a transformação possa prosseguir. É justamente o que
acontece com o tipo I dos Chehalis (M648), em que código e mensagem se restabelecem, mas o
léxico se inverte. Voltando da máxima do "onde come um, comem dois" para a do "cada um por
si", o mito de Lince e Puma tem de mudar de vocabulário, mas sem que o andamento geral da
narrativa se altere. Os termos se transformam, pois, em seus contrários: guisado em assado,
recipiente de casca em espeto de madeira. Como postulamos até agora de modo implícito, uma
outra transformação atesta que o retorno efetuado pelo mito chehalis (M648) para a fórmula do
mito sahaptin do alto Cowlitz (M645) não resulta de uma conexão direta entre os dois, mas passa
HN 238
necessariamente pelo intermédio do mito salish do baixo Cowlitz (M650). Atenhamo-nos a esse
ponto.
Sabemos, pelo que foi apresentado, que o mito do lince e do puma e o das duas ursas
pertencem ao mesmo grupo de transformação. Mostramos, por outro lado (supra:255-264), que o
mito das duas ursas também pertence ao ciclo chamado dos veadinhos e dos ursinhos. Podemos
fornecer mais uma prova disso. Na extremidade sul da área ocupada por esse ciclo, uma versão
proveniente dos Pomo (M639, Barrett 2:344-349) reconstitui a armação do episódio consagrado ao
casamento de Puma, apenas deslocado do final para o começo. A simetria que prevalece entre
todos esses mitos se manifesta igualmente de outros modos: num caso, uma Corça é casada com
um Trovão, filho de uma Ursa, e no outro, a esposa de Puma é uma Ursa, filha do Trovão. E
sempre eclode um conflito entre o afim e o ascendente de seu cônjuge. Em quase todas as
versões do mito dos veadinhos e dos ursinhos, um personagem chamado Grua ou Garça44 faz o
papel de passador suscetível. As variantes chehalis M649a,b e certas versões humptulips (M651b),
de que voltaremos a falar, dão esse papel ao Trovão. Em compensação, M648, que não contém
esse detalhe, põe ao lado de Puma mulheres-gruas insuportáveis por causa da algazarra que
fazem, e M649, que o contém, substitui as gruas por gansos igualmente barulhentos, mas que
aparentemente não exercem o papel de passador nos mitos americanos. Chamamos
anteriormente (supra:260) a atenção para o papel específico do passador nos mitos que estamos
examinando. Trata-se, dizíamos, de um semi-condutor, cujos serviços não são reversíveis:
transporta em segurança uma categoria de clientes, mas intercepta e afoga a outra. As mulheres-
gruas, por sua vez, não se mostram nada suscetíveis: seu amor-próprio tolera que façam
propostas de casamento e sua delicadeza moral não as impede de exigir um pagamento pelo que
coletaram. M648 as oferece como exemplo a demonstrar que, contrariamente ao que elas
parecem pensar, o protocolo matrimonial não é reversível. Nesse campo, só pode haver trâmites
num sentido, do homem para a mulher e não da mulher para o homem. De modo que tal
protocolo também se apresenta como um semi-condutor, e a intervenção das mulheres-gruas não
é fortuita. Essas criaturas barulhentas que se instalam complacentemente num papel de, por
assim dizer, "passadas não suscetíveis", simplesmente invertem o Trovão das outras versões,
igualmente barulhento mas suscetível (não suporta que lhe toquem a perna quando a estende de
uma margem à outra para servir de passarela) e que duro na negociação do preço de seus
serviços; no que se mostra tão interesseiro quanto as mulheres-gruas quando Lince lhes pede o
fruto de sua coleta. Como passador suscetível, o Trovão das versões salish transforma um outro
velho que, no ciclo dos veadinhos e dos ursinhos, é uma Grua ou Garça. E o grupo também se
fecha aqui.
44
É muito difícil distinguir esses dois pássaros, tanto mais que, como notam Ballard (1:77 n.42) e
Godfrey (:43), a linguagem popular aplica correntemente o termo crane à Garça-Real.
HN 239
Uma outra versão, que junta os tipos I e II (M649b, ibid.:67-69), coloca o episódio das mulheres
barulhentas depois do do ogre, e continua com a história do fogo roubado e da troca de fígados.
Como em outras, os irmãos se separam e Puma promete a Lince que sempre reservará para ele
parte de sua presa. Enquanto isso, o ogre continua a perseguir Puma e ele se refugia na casa de
Trovão, que o prende e finalmente o libera mediante pagamento pelo serviço prestado. Uma
última e brevíssima versão (M649c, ibid.:69-71) pertence ao tipo II; ela identifica o ruído
produzido pela cabeça do ogre ao barulho do oceano: conforme ele parecer vir do norte ou do
sul, o tempo será bom ou ruim.
Desse modo reencontramos o motivo da partilha, mas transposto em termos
meterológicos. É significativo que o equilíbrio que se estabelece nessas versões entre os ventos e
os tipos de tempo, a partir de então regidos pela alternância, ponha também um ponto final num
conflito entre afins. As variantes humptulips insistem duplamente nessa correlação. De um lado,
afirmam a precariedade da partilha alimentar: mesmo destruído como ser cósmico nas versões
em que Puma consegue matar sua mulher grizzly, o urso, diz M651a (Adamson:310-315),
sobrevive na condição de espécie zoológica, sempre presente e sem dar a mínima importância à
regra da partilha entre pumas e linces, roubando sempre que pode a porção que os primeiros
destinam ao irmão caçula. Por outro lado, uma outra variante humptulips (M651b, ibid.:315-324)
desenvolve paralelamente o aspecto meterológico e o aspecto matrimonial: os diferentes ruídos
emitidos pela cabeça do ogre e sua proveniência explicam três tipos de tempo em vez de dois, e
o herói, além de enfrentar a malevolência do sogro, sofre também a da sogra. Acaba conseguindo
HN 240
apazigüar a ambos, dando o raio ao Trovão, que aceita o presente em troca, como declara, da
filha. Porque até então, conclui o mito, o trovão era ruído sem luz. De fato, não confirmam
nossas análises que apenas na tempestade a algazarra incompatível com o fogo de cozinha e a
luz, apesar de também ser fogo, ainda que celeste e não terrestre, podem conviver bem e
seguirem juntas a máxima do "onde cabe um, cabem dois"?
IV
DO BOM USO DOS EXCREMENTOS
Nem mesmo a noite podia separá-los; encontrava-os freqüentemente deitados no mesmo berço,
de rosto e peito colados, ambos com as mãos em volta do pescoço do outro, dormindo nos braços
um do outro.
J.H. Bernardin de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia,
Paris, edição de 1789, p. 19-20
Qualquer que seja o plano em que os mitos se situem — cósmico, meterológico, zoológico ou
botânico, técnico, econômico, sexual, social, etc —, são dominados pelas idéias de partilha, troca
e transação. Opõem-se às espécies que não acasalam entre si e evitam invadir os territórios umas
das outras as que praticam, como os predadores e carniceiros, uma certa forma de colaboração.
Opõem-se aos bens ou pessoas que são adquiridos nas feiras e mercados ou em conseqüência de
transações matrimoniais uma categoria de riquezas que, como o fogo de cozinha e a água
potável, pertencem a todos. Assim, os mitos que acabamos de passar em revista estabelecem
uma verdadeira tipologia das modalidades que a vida em relação é passível de assumir. Eles
analisam e distinguem os casos nos quais nem se troca nem se compartilha, em que se troca sem
compartilhar, em que se compartilha sem trocar, ou em que partilha e troca se confundem. Cada
um dos mitos faz, a seu modo, a teoria de um estilo de vida possível entre outros, ilustrados por
provérbios como "cada um por si", "toma lá, dá cá", "onde come um, comem dois" ou "cada um por
todos". E em cada caso, a responsabilidade da demonstração recai sobre uma dupla animal
diferente, cujos componentes se encontram, um em relação ao outro, na posição de parceiros,
adversários ou rivais.
Melville Jacobs, que empenhou-se em salvar tudo o que podia ser salvo, sublinhou várias
vezes que os mitos coletados por ele e por seus antecessores representavam apenas uma fração
ínfima de um vasto conjunto perdido para sempre. Seria portanto inútil tentar estabelecer um
quadro sistemático das duplas animais e de suas funções. Mas podemos ao menos listar as mais
importantes, as que vemos operar em mitos de que temos várias versões. Distinguiremos, pois, as
duplas formados por termos antitéticos (águia e coiote, águia e cangambá, etc.) das formadas
por termos análogos mas desigualmente marcados. Nesta última categoria, identificamos as três
duplas formadas por coiote e lobo, urso pardo (ou preto) e grizzly, e lince e puma. Em todos os
HN 241
casos, os animais vivem uma relação de intimidade de que um deles abusa. Resulta daí um
drama, cujo desenlace é a instituição da troca no primeiro caso, a da não-partilha no segundo, e
a da partilha no terceiro. Para completar o grupo, seria preciso acrescentar uma quarta dupla, ao
qual já aludimos (M614a-d; supra:252). Essa dupla, formado por Coiote e Raposa em posição de
irmão mais velho e irmão mais novo, respectivamente, transforma a que é formada por um ou
vários coiotes e lobos, estranhos entre si que roubam a comida uns dos outros. Não obstante,
trata-se sempre de fundar a origem da troca, encarada pelo ângulo ora das transações
comerciais, ora matrimoniais. Mas uma diferença significativa aparece entre os dois grupos.
O conflito entre o coiote e os lobos deve ocorrer na primavera ou no começo do verão, já
que em quase todas as versões os lobos comem ovos de aves, e é essa a época da postura. Por
outro lado, uma versão salish (M614c, Jacobs 1:169-171) do outro mito termina com uma
seqüência que evoca o inverno. Nela, depois de ter instituído o uso da moeda nas transações
matrimoniais, Coiote encontra crianças que declaram ter por mãe "aquela que provoca sustos
repentinos". Incrédulo, o demiurgo rapta as crianças mas, logo depois, uma ave escondida alça
vôo tão subitamente sob os seus pés que ele cai para trás e desmaia. A ave retorna e liberta as
crianças. Em seguida, aparece o espírito do gelo, que se aproveita do sono de Coiote para roubar
o saco cheio de riquezas que ele tinha pegado. No interior do grupo M614, observamos, assim, a
transformação:
O pássaro assustador é um tetraz. Na América do Norte, o termo inclui vários gêneros distintos,
mas nessa parte do continente ele parece aplicar-se sobretudo aos gêneros Canachites e Bonasa,
ou seja, diferentes espécies de tetrazes e frangas (infra:352ss). Se o mito salish faz intervirem o
tetraz e o espírito do gelo um após o outro, os Kalapuya, por sua vez, fundem os dois num único
personagem. Ouve-se o canto da ave na época do ano em que as provisões terminaram e reina a
penúria, o que às vezes obriga a comer os próprios mocassins. Atribui-se ao espírito do tetraz as
pesadas nevascas que retardam a chegada da primavera (Jacobs 4:34). Já os Bez Percé situam as
aventuras de Coiote e Raposa nos tempos de fome do final do inverno (M614e, Phinney:301-306;
cf. Boas 4:184-195).
Seria possível localizar as mesmas correlações sazonais nos outros mitos do grupo?
Certamente sim para o das duas ursas coletoras de bagas, já que essa é uma atividade estival e os
plantigrados dormem no inverno. Para fechar o ciclo, seria portanto necessário que o mito de
Lince e Puma transcorresse no outono, o que é sem dúvida possível em se tratando de animais
que vivem basicamente da caça. Ao que se adiciona uma indicação mais clara: no final de M644a
(Jacobs 3:194-195), Lince encontra um pescador da espécie de salmão chamada de truta
HN 242
steelhead, "cabeça de aço" (Salmo gairdnerii), devido à resistência de sua pele. Esse peixe sobe
os rios entre novembro e maio. Vários mitos ressaltam que ele é pescado no inverno
(Adamson:163-164; E. D. Jacobs: 167, 177), e inclusive o colocam em oposição diametral com o
salmão da primavera (M653a-e, Adamson:72-74, Ballard 1:133-134). Quando se considera os mitos
sahaptin do ponto de vista sazonal, eles parecem, portanto, organizar-se num grupo
quadripartite, em que o verão se opõe ao inverno, do mesmo modo que a discreta reserva que o
Urso e o Grizzly respeitam um em relação ao outro se opõe à aliança entre Coiote e Raposa
contra um inimigo comum. Esse primeiro par de duplas de termos contrastados é invertido num
outro, que opõe o outono à primavera do mesmo modo que se opõem a partilha de alimento de
mão única entre o Puma e o Lince e o roubo recíproco praticado por Lobos e Coiotes.
Se a codificação sazonal parece verossímil para as versões salish, sua aplicação é mais
difícil no caso das versões cowlitz, chehalis e humptulips. Com efeito, o fato de a coleta de
lacamas (palavra chinook para camácia, Camassia quamash) feita pelas mulheres-gruas de M648
se situar na primavera é reforçado pelo texto, que especifica serem "button lacamas"
(Adamson:62), ou seja, os primeiros bulbos, que os Chinook situados um pouco mais ao sul
colhiam no mês de março (Jacobs 2, I:75). Por outro lado, uma das provas a que o velho Trovão
submete seu genro, em M651b, consiste em juntar enormes quantidades de neve. Mas sabemos
(supra:285-286) que essas versões salish, longe de remeterem a um determinado período do ano,
se propõem a dar conta das mudanças de tempo que ocorrem em todas as estações. O que
significa que quando passamos dos Sahaptin para os Salish, uma transformação global interioriza,
num mito único e mais complexo, modalidades meterológicas ou climáticas que os Sahaptin
tratam separadamente, remetendo cada qual a um mito diferente. A mesma transformação
desloca a máxima do "cada um por si" do plano alimentar para o plano sexual, e a do "onde come
um, comem dois", da ordem da natureza para a da cultura. Mas isso não é tudo, pois a ordem em
que os mitos se distribuíram espontaneamente — pelo simples fato de que a interpretação de
cada um deles exigiu a intervenção de um outro — oscila constantemente entre dois tipos de
transações, ora matrimoniais ora econômicas, mas sempre concebidas segundo o modelo de uma
troca permitida ou proibida. E com efeito, o pensamento indígena não separava os dois tipos; não
distinguia claramente, do ponto de vista jurídico, a aquisição de uma esposa da de bens de
subsistência. Acontecia até de mulheres serem diretamente trocadas por produtos de consumo
corrente; os Salish do Cowlitz, por exemplo, "não sem se sentirem envergonhados disso", observa
a informante, às vezes pagavam com uma mulher os alimentos frescos e variados recoltados para
a venda pelos Sahaptin instalados a montante (Jacobs 1:224).
Tendo partido de M606, que abre com um drama familiar de que resulta um incesto e
termina com a instituição das feiras e mercados, fomos levados a mitos relativos a outras formas
de troca. À medida que esses mitos as inventoriavam e analisavam, trouxeram-nos a problemas
matrimoniais opostos aos que eram considerados no início: o mito de Lince e Puma não trata de
HN 243
incesto, mas dos riscos associados a matrimônios afastados demais. Irrealizáveis segundo M645,
que faz do herói um celibatário, tais matrimônios são bem sucedidos no final da versão
humptulips M651, que assim ilustra o último estado de uma única e mesma transformação.
Simplificando bastante, pode-se portanto dizer que M606 abre com a derrocada sangrenta do
casamento de um personagem chamado Arco com uma Ursa Grizzly, ao passo que M651 termina
com o sucesso desse mesmo casamento; pois que é também um caçador que o contrai, com a
filha do Trovão, que as versões intermediárias descrevem como um grizzly. O personagem da
mulher e os eventos de que ela toma parte passam progressivamente do início do mito (M606)
para o meio (M615-642), mas é sempre a mesma mulher e os mesmos eventos que encontramos, a
partir de M645 e até M651b, no final.
*
* *
Em tais condições, possui um interesse especial o mito sahaptin que inverte o conjunto do
sistema e permite, assim, apresentar uma demonstração a contrario da interpretação acima. O
mito em questão pertence a um pequeno grupo de contornos imprecisos45 ao qual, sem
investigarem seu significado ou seu alcance, os mitógrafos americanos deram o prosaico nome de
"Anus wiper". Mas quem se expressa na língua que foi a de Rabelais certamente pode caracterizar
com mais franqueza a personalidade do herói:
45
Que poderia ser estendido até a bacia do Missouri, mediante a inversão do personagem de Pipi-na-
Cama num outro que os Mandan chamam de "Esterno" ou "Osso-ruim" (M463, M469b, Bowers 1:291-293, 320.
Cf. infra:301). Mais perto dos Sahaptin, ver Kutenai, M695b, Boas 9:125, e Okanagon, M696c, d, Cline:201-
204, 244-247.
HN 244
Essa estranha história seria incompreensível, se não reconhecêssemos nela o produto de uma
inversão metódica. Toda a sua primeira parte pode ser reconstruída virando do avesso uma a uma
cada célula narrativa do mito klikitat M606. Nesse mito, um personagem chamado Arco (arma de
caça da humanidade futura) tem, por essa razão, uma relação de complementaridade com suas
duas esposas, Grizzly e Ursa (que levam os nomes de futuras presas). Aqui, é o contrário. Ursa e
Grizzly não são co-esposas que se hostilizam, mas amigas, e a relação entre Grizzly e seu marido
é suplementar, em vez de complementar, já que ele próprio é um Grizzly. Em M606, ocorre uma
separação temporária entre a mulher Grizzly e o marido, por uma razão natural, que é o fato de
ela estar menstruada. Em M654, o marido quer se separar da esposa definitivamente, e para isso
inventa um artifício. Ou seja, a tripla transformação:
A mulher Grizzly de M606 tem um filho e uma filha; do marido, logo metamorfoseado em arco,
não se ouve mais falar. A mulher Grizzly de M654 não tem filhos, e sim dois afins, o marido e a
pequena cunhada. De sua amiga Ursa não se ouve mais falar, a não ser para fazê-la morrer sob
uma borduna, que forma com o arco um par de termos correlativos e opostos. Os afins de Grizzly
desempenham, em M654, um papel simétrico inverso do que cabe aos filhos de Grizzly em M606.
HN 245
Vejamos: 1) sua relação, de incestuosa (M606), se transforma em canibal (M654); tal relação é
travada após o assassinato da ogra, e não antes; 3) o autor do assassinato é a mulher num caso, o
homem no outro; 4) cá e lá um buraco é o instrumento do assassinato, mas a ogra de M606 desce
num buraco natural, levada pela falta de água (falta de alimento umido), e a de M654 cava um
buraco artificial para nele depositar, conforme o mito, suas reservas de ossadas humanas
(excesso de alimento seco); 5) em M606, a mãe transformada em grizzly mata o filho sob
pretexto de tirar-lhe os piolhos, ou seja, de limpar-lhe a cabeça, procedimento inverso ao da
mulher-grizzly para com a cunhada, que ela não mata, mas usa para limpar-se, enchendo-lhe os
cabelos com o próprio excremento em vez de extrair os parasitas — espécie de sujeira — que
neles havia.
Após o assassinato da ogra, M606 encadeia com a história do desaninhador de pássaros, e
M654, com a de Pipi-na-Cama. Para prosseguirmos de modo proveitoso a comparação, convém
contudo introduzirmos algumas variantes:
Uma menina querida por toda a aldeia foi raptada por cinco irmãs Ursas.
Seu irmão, que se chamava Pica-Pau-de-Cabeça-Vermelha, foi procurá-la.
Encontrou-a num estado lastimável. Ela explicou que as ursas a obrigavam
a trabalhar duro, limpavam o traseiro em sua cabeça e não lhe davam
nada para comer. Pica-Pau deu-lhe um pássaro que ele tinha matado para
ela fingir que tinha caçado, e encheu a cabeça da irmã de plantas
cortantes, que machucaram as ursas quando elas se limparam. Como de
costume, elas ficaram nuas para a refeição da noite; e faziam muito
barulho para comer. Quando Pica-Pau fez sua entrada, elas se vestiram às
pressas. Ele aceitou comer com elas e passou a noite com uma delas, mas
ficou falando sem parar, para mantê-las bem acordadas. Esgotadas, elas
acabaram adormecendo. Pica-Pau pos fogo na casa e saiu com a irmã,
proibindo-a de pegar qualquer coisa. Mas ela não pode resistir ao
espetáculo dos cadáveres das ursas explodindo no fogo, nem à vontade de
pegar os dentes delas. Gesto fatal, pois assim contaminada, ela virou ursa
e começou a perseguir o irmão.
Ele buscou refúgio na casa de cinco mulheres, que chamou de primas,
depois de cunhadas, e que só lhe deram atenção quando ele as chamou
de esposas. Elas o esconderam e conseguiram enganar a ursa com
palavras de duplo sentido. Essas mulheres eram perigosos cabritos-
monteses ("mountain sheep", Ovis canadensis), que deixaram o herói
cozinhar sua refeição mas proibiram-no de tocar em seus bastões
(espetos?) de madeira de tuia. Mas ele os usou para atiçar o fogo. Os
bastões eram os "filhos" das mulheres, e ele os tinha destruído. Furiosas,
elas saíram atrás dele. Ele se refugiou numa casa cujo ocupante era um
menino, chamado Pipi-na-Cama, que concordou em escondê-lo atrás de
sua nuca, contanto que ele o chamasse de cunhado. Quando as Cabritas
chegaram, ele as borrifou com urina e elas morreram.
Logo depois as cinco irmãs de Pipi-na-Cama voltaram da caça.
Repreenderam-no por ter matado suas "primas" e as ressuscitaram,
pisoteando os cadáveres46. Em seguida, prepararam o jantar. Uma após a
46
Sobre a ressureição por pisoteamento, cf. Spinden 1:153; McDermott:242, 244ss.
HN 246
Essa versão coloca vários problemas, a começar pelo título com que o filho da informante a
registrou e publicou. Ele o intitula "Jovens estrelas". No entanto, o texto não menciona nenhum
astro. Deveríamos supor que, como ocorre entre os Kalapuya ao sul (Jacobs 4:173-175) e os
Coeurs d'Alêne ao norte (Boas 4:125-126), os protagonistas do mito se transformaram, após a
cena final, em constelação? A hipótese é plausível, mas só teria interesse se pudéssemos
identificar os astros em questão e esse não é, infelizmente, o caso. Quanto aos anões que se
costuram uns aos outros com esmero, mas que o herói fura, é tentador lembrar os pigmeus de
que falam os mitos salish da região de Puget Sound, que são mudos, e cuja boca é tão pequena
que só conseguem comer os vermes que proliferam no peixe podre (Haeberlin 1:429). Aliás, em
toda a região são freqüentes as menções a seres sobrenaturais tapados em cima ou em baixo, na
frente ou atrás, às vezes de vários lados ao mesmo tempo; ocorrem, por exemplo, entre os
Chinook (Sapir & Spier 2:279; Jacobs 2, I:80-105; II:388-409, cf. M598) e os Tillamook (E. D.
Jacobs:3-9). Em geral, esses personagens participam na qualidade de sujeitos passivos da
ordenação do mundo pelo demiurgo, que lhes dá uma vida normal perfurando os orifícios
ausentes. O fato de uma intervenção da mesma ordem ser aqui apresentada como destrutiva, e
de acontecer no momento em que o herói, refugiado no topo de uma árvore para escapar de um
perigo de origem terrestre ou até mesmo subterrânea, simultaneamente imita e contradiz o
personagem do desaninhador de pássaros, basta para convencer de que essa família de mitos
reflete os que consideramos até o momento, mas apresenta deles uma imagem invertida. E não é
o excremento o inverso do alimento?
HN 247
*
* *
Não se trata de retomar o estudo nesse nível, ainda mais na medida em que o grupo que
acabamos de ilustrar com dois exemplos compenetra, do modo mais insidioso, toda a mitologia do
noroeste da América e se estende para além dali. Sabemos que os Salish, os Chinook e seus
vizinhos imediatos atribuem a organização do mundo às obras de um demiurgo chamado Lua
(M375, M382, M506). Ele as realiza durante uma longa peregrinação de retorno para junto dos
seus, partindo da terra dos salmões, onde as duas filhas-da-leita, que o tinham raptado no berço,
criaram-no e casaram-se com ele. Pois bem, certas versões informam que Lua foi concebido no
céu por uma mulher que desejava ter uma estrela por marido. À diferença de sua análoga das
Planícies, ela consegue voltar para a terra, mas a corda ou escada que tinha utilizado se quebra
e, desde então, tornou-se impossível a comunicação entre o céu e a terra (infra:368). Nessa
forma integral, que a conecta a mitos longamente discutidos no volume anterior (quarta e quinta
partes), a gesta do demiurgo coloca, sob dois aspectos sucessivos, a questão da mediação entre
os mundos natural e sobrenatural, entre natureza e sociedade. Uma primeira tentativa de
conjunção no eixo vertical fracassa, e os humanos nunca mais poderão se comunicar com o céu;
mas uma segunda tentativa, no eixo horizontal, será bem sucedida graças à atuação do demiurgo,
e a subida dos peixes, de que os homens dependem para sobreviver, confirma periodicamente a
veracidade do mito.
Percebe-se claramente que, reduzida a esses contornos essenciais, a gesta do demiurgo
pode ser transformada na história do desaninhador de pássaros. Ambas começam operando num
eixo vertical, certamente com vistas a uma disjunção e não uma conjunção, nas versões do
desaninhador que discutimos até agora; porém, entre as tribos do interior (Nez Percé e Salish do
Planalto), logo voltaremos a encontrar a fórmula inicial, já que o herói preso no topo de uma
árvore consegue chegar ao céu, onde vive diversas aventuras antes de retornar à terra. Por outro
lado, as peregrinações que conduzem o enganador, à sua revelia, até o mar, invertem as do
demiurgo, tanto pelo seu caráter involuntário como pela direção que tomam, mas também
prenunciam a libertação (ou mesmo a criação) dos peixes.
Ora, quando os mitos do desaninhador se atêm ao aspecto disjuntivo, sabemos o que
aguarda o herói, em sua posição exaltada: sofre de fome e sede, definha, as aves o cobrem de
excrementos, enquanto suas esposas, que ficaram na terra, só recebem de seu novo senhor,
Coiote, alimento em pouca quantidade e poluto. Do mesmo modo, contam os Salish e os Chinook,
o demiurgo Lua, ao retornar para casa, encontra seu irmãozinho (feito da urina do mais velho, e
que mais tarde se tornará o sol) submetido aos maus-tratos de um enganador doméstico, Gaio-
azul, que o usa como limpa-bunda. Os mitos não se contentam, pois, com encarar operações
simples, tais como a conjunção e a disjunção, situadas num eixo horizontal ou vertical. Eles
HN 248
também distinguem as direções tomadas pela realização dessas operações, e os graus. Responde
ao desaninhador de pássaros, forma fraca e incompleta de um personagem que consegue subir ao
céu, o coveiro de ursos de M654, complementar de seu parente limpa-bunda, personagem
soterrado por um urso, que é umaincarnação animal do mundo subterrâneo.
Que as desventuras de Limpa-Bunda — personagem masculino ou feminino — representam
uma contrapartida subterrânea da visita ao céu, durante a qual um terráquio, homem ou mulher,
torna-se esposo de um astro, resulta também de uma função etiológica compartilhada pelos dois
grupos, que explicam a origem dos parasitas, na medida em que sua relação com o homem (que
eles comem) é a mesma que prevalece entre o próprio homem e sua presa. O jovem herói
chinook, roubado por uma ogra (M598a) que o cria com carinho e o alimenta com bichos imundos
que constituem sua alimentação costumeira (fórmula simétrica à de Limpa-Bunda), mata a mãe
adotiva e foge subindo numa árvore até o céu. Lá, ele encontra povos que iriam virar as várias
espécies de parasitas, piolhos, lêndeas, pulgas, etc. Simetricamente, a versão clackamas do mito
do limpa-bunda (M656a, Jacobs 2, II:315-331) conta que uma mulher já grizzly e em breve ogra
apareceu numa aldeia e se impôs como co-esposa a um de seus habitantes. Ao oferecer carne a
famílias de parasitas que até então eram vegetarianos, ela gerou neles o apetite por sangue.
Convém fazer aqui duas observações. Primeiramente, M654 e M655, que tratam da origem
da caça ao urso e suas técnicas (supra:291), poderiam inverter o motivo dos parasitas no episódio
de M655 em que o herói sobe até o cume de um pinheiro, não para chegar ao céu e lá encontrar
criaturas perfurantes, como em M598a, mas para fugir da terra tomada por criaturas anãs que ele
mesmo tratará de perfurar. Por que esses mitos fundam a caça aos ursos pelos humanos em vez
da caça aos humanos pelas pulgas e piolhos, estes assumiriam a forma de parasitas invertidos.
No mesmo sentido, mencionaremos um mito thompson (M655b, Teit 4:35, 5:362-365) em
que uma mãe e seu filho, que se salvam passando por um arco feito de um jato de urina do
menino (invertendo o personagem de Pipi-na-Cama), são perseguidos e acuados no topo de uma
árvore por um povo de parasitas. A versão nootka (M600f) do filho do ranho também confirma
essa interpretação, pois em vez de ser roubado por uma ogra, esse herói é, ao contrário, o único
dentre várias crianças a escapar disso, o que lhe permite partir em busca de seus irmãos e irmãs
e, mais tarde, libertá-los. Bem, como o herói clackamas, de quem ele é a contraparte, esse herói
sobe ao céu e também se casa com a filha do sol. Porém, em lugar de parasitas perfurantes, ele
lá encontra inicialmente moças-caracol, lindas mas cegas, cujos olhos ele abre usando o próprio
pênis como perfurador (supra:214, 251; infra:361). Convém não esquecermos que numa versão
wishram do mito do cônjuge do astro (M598g) também aparece, mas dessa vez na terra, a
contrapartida igualmente perfuradora dos parasitas, na forma de formigas, zangões e vespas. E
finalmente, introduziremos mais adiante um mito thompson (M658b, infra:299) que inverte os
que acabamos de discutir e cuja heróina possui um cãozinho chamado Parasita, que assim passa
do papel de parasita do homem para o de animal doméstico.
HN 249
Se o mito da criança roubada que foge para o céu e desposa um astro é, como
mostramos, simétrico ao das esposas dos astros, o mito contrário da criança que não é roubada
(nascida do ranho expelido por uma mulher, ou de uma pedra ingerida por ela) é, na primeira
dessas duas formas, simétrico ao importante grupo estudado no volume anterior sob o título de
"menino de pedra" (M466, M470, M487, M489) e que, por outras vias, já tínhamos conectado ao
das esposas dos astros. Ora, na gesta salish do demiurgo Lua, este também aparece como uma
criança roubada, mas pelas filhas-da-leita, que são em tudo o contrário de ogras, já que elas
mesmas são alimento e dão origem, umas às árvores úteis para os humanos (# cúmplices da ogra
em M598a), outras aos peixes comestíveis (cujo valor alimentar é ignorado pela ogra de M598a).
Entrevê-se assim um meio de consolidar um apanhado incrivelmente complexo de mitos num
único grupo (fig. 23).
Herói
único que não é roubado
roubado
Todos os personagens do gráfico têm uma conotação ou uma contrapartida celeste, lua ou suas
manchas, parélios, a que corresponde uma contrapartida subterrânea ou uma prova infernal (nos
dois sentidos do termo) imposta a personagens destinados a voltar a ser celestes, ilustrada pela
história de limpa-bunda. O desaninhador se move num plano intermediário, bloqueado a uma
altura mediana, sujado por aves em vez de ursos.
Quando esboçamos (supra:218-219) os primeiros contornos desse sistema, chamávamos a
atenção para variantes klallam de M600 em que o filho do ranho liberta a irmã, que um urso tinha
raptado e desposado. Ela volta para casa com a criança gerada por essa união, uma menina de
duas cabeças ou duas caras, e muito insolente, que ofende o tio lembrando-o que ele é feito de
ranho e provoca a partida dele para o céu. Essa menina meio ursa, ainda mais perigosa por ter
olhos na frente e atrás e não poder ser atacada de nenhum lado, faz uma breve intervenção num
mito chinook já mencionado (M646a, Jacobs 2, I:262-264) em que o filho do Trovão e de uma
humana a encontra e livra a futura humanidade do perigo hiperbólico que ela encarna. Mas
também a encontramos bem mais longe, entre os Menomini da região dos Grandes Lagos
(M657a,b, Skinner & Satterlee:305-311, Bloomfield 3:395-409), menino em vez de menina,
nascido da união entre um humano e uma ursa e por algum tempo reduzido pelas raposas ao
papel de limpa-bunda. O mito termina com a disjunção horizontal dos protagonistas, que vão uns
HN 250
para o norte e os outros para o sul, como os da versão clackamas (M656a), que partem em
direções diferentes, indo a mulher para a água, e portanto para o oeste, e seus filhos junto com o
tio para o leste, para as montanhas, enquanto o marido parte sozinho numa terceira direção.
Intermediário entre o grupo do limpa-bunda e o dos veadinhos contra os ursinhos, um
outro mito clackamas (M619, Jacobs 2, I:156-166) também desemboca numa tripartição do povo
mítico: uns foram para os rios, outros para as montanhas, outros ainda para os ares, e viraram
peixes, quadrúpedes e aves. De modo que estamos sempre diante do mesmo esquema.
Ficaremos por aqui. Essas rápidas indicações bastam para mostrar que, apesar de sua
estranheza, a história do limpa-bunda não se reduz a uma fantasia surgida in loco da imaginação
brincalhona de algum narrador. Aliás, seria fácil estender seu paradigma a toda a América do
Norte, mostrando que o motivo, tão difundido na região dos Grandes Lagos e mais a leste, de
uma esposa martirizada pelo marido que lhe queima o rosto com brasas transforma o da vítima
com a cabeça coberta de excrementos (infra:463, 465).
Interrompemos temporariamente a análise na versão nez percé em que a irmã caçula de
um herói que sofre de incontinência o convida cordialmente a compartilhar sua refeição e sua
cama. Esse episódio se esclarece à luz de uma outra versão:
Pipi-na-Cama tinha cinco irmãs. Um dia, ele matou uma criatura temível
que perseguia um rapaz e o escondeu nos cabelos. O mesmo incidente
repetiu-se cinco vezes seguidas com personagens diferentes, e o herói
conseguiu, assim, arrumar um marido para cada uma de suas irmãs. A
mais velha teve dois filhos, um menino e uma menina, que se
apaixonaram um pelo outro e fugiram juntos. A mãe saiu correndo atrás
deles mas não conseguiu alcançá-los. O casal incestuoso se refugiou em
terra estrangeira. Tiveram um filho. Todos os dias, ele dançava e cantava
"minha mãe também é minha tia, meu pai também é meu tio...". O pai
ficou com medo que alguém escutasse e o matou. O demiurgo enganador
apareceu e mandou o casal incestuoso se separar, obrigando o homem e a
mulher a encontrarem cônjuges entre os estrangeiros: "Assim será feito
doravante: ao atingirem a idade da razão, os irmãos, irmãs e primos
saberão que não devem dormir juntos. Agora é assim: é ruim irmão e irmã
virarem amantes" (Adamson:226).
Pelo motivo dos irmãos incestuosos perseguidos pela mãe que quer castigá-los47 esse mito se
junta ao dos Klikitat (M606), de que partimos. E este, por sua vez, esclarece reciprocamente o
outro, pois se a mãe de M658a é uma réplica enfraquecida da que se transforma em grizzly (mas,
transferido para a geração seguinte, o infanticídio subsiste), os casamentos das cinco irmãs com
humanos ocorrem entre cônjuges demasiado afastados. Em compensação, um casamento
posterior une irmão e irmã, ou seja, cônjuges demasiado próximos. Resulta desse duplo abuso,
HN 251
uma disjunção atual que teria sido preciso respeitar e uma conjunção potencial que teria sido
preciso evitar, a proibição do incesto e a instituição de uma exogamia razoável, unindo cônjuges
igualmente humanos, mas estrangeiros. Entre o grupo das duas ursas, de que faz parte M606, e o
de Limpa-Bunda, ao qual se conecta M658a, mitos thompson e shuswap (M658b,c, Teit 4:72-74,
1:707-709) ilustram um estado intermediário. A heroína, irmãzinha de quatro homens que passam
o tempo todo caçando, é o inverso de um limpa-bunda, já que, longe de a martirizarem do modo
que conhecemos, as quatro irmãs Grizzly que ela encontra no campo a mimam e cobrem de
presentes. Na verdade, elas queriam casar-se com os irmãos da menina e, conforme M658b,
conseguem seduzi-los misturando às escondidas seus pelos púbicos com as raízes que constituem
sua alimentação habitual, e que convencem a pequena a servir no próximo jantar. Ou seja, uma
tripla transformação:
Nem bem se casam, e as ursas só querem matar e comer seus maridos o mais rápido possível. Só o
mais velho consegue fugir com a irmãzinha. Não obstante a diferença de idade, que agrava a
relação incestuosa, ele a toma por esposa. Ela logo tem um bebê, que nina cantando "Ah, Seu tio
está caçando! Ah, seu pai está caçando!" (cf. M658a e a inversão, correlativa às precedentes, do
sentido em que a revelação é feita). A mais velha das irmãs Grizzly, que continuava procurando o
marido, ouve a mulher, mata-a e come-a junto com o bebê. O homem volta e reconhece a voz da
ogra. Junta toda a água dos rios num poço, perto da casa. Entra em casa, reclama de sede e pede
água à mulher, mas ela lhe diz que os rios estão secos. Ele a encaminha ao poço. Ela se debruça e
ele aproveita para empurrá-la por trás. Ela morre afogada e ele restaura a rede hidrográfica.
Vê-se que se a primeira parte do mito inverte M658a, a segunda inverte M606, já que aqui
a irmã e seu bebê morrem e o irmão escapa ileso, ao contrário do que acontecia no outro mito.
Além disso, a ursa canibal aparece como esposa em vez de mãe. E, finalmente, a ogra se afoga
numa água tornada superabundante, ao passo que a de M606 morre em decorrência de falta de
água, caindo num barranco seco.
A versão shuswap (M658c) diverge a partir do incidente dos pelos enfeitiçantes. Em vez
de se deixarem seduzir, os irmãos resolvem matar as ursas, mas morrem na luta. A jovem irmã,
aos prantos, assoa o nariz sobre o fogo, onde seu ranho vira um menininho. Seu nome, "Pedra-de-
Ranho", sintetiza por si só os dois grupos do "filho do ranho" e do "menino de pedra", cuja
47
O estudo do grupo salish dos irmãos incestuosos se encaixaria melhor num contexto diferente, que
foi o de nosso curso no Collège de France em 1968-1969. Aqui mal o afloramos, e remetemos, para pesquisas
mais amplas, a Teit 2:340-341, 5:287-288, Hill & Tout 5:336-338, 10:566-574, Cline:212-213, entre outros.
HN 252
48
É certamente aí que deve ser buscada a chave da inversão do grupo já assinalada (supra:299) entre
os Mandan. Pois a mulher canibal dos mitos mandan, em vez de limpar o traseiro em sua vítima, possui um
osso protuberante que ficará entalado numa fenda (% ânus) cavada intencionalmente por um jovem herói
chamado "Esterno" ou "Osso-Ruim", enquanto que o nome de seu homólogo sahaptin ou salish, se nossa
interpretação estiver correta, denotaria o "bom excremento". A pertinência da transformação que aqui
ocorre no sentido urina => osso, em outras palavras, excreção líquida => "increção" sólida, é confirmada
pelo ciclo de Cabeça Vermelha das Planícies (M463, M469, etc.), em que o braço ou perna anormalmente
fortes de um homem vestido de mulher revelam sua identidade, por sua vez revelada, na versão chinook do
mesmo mito (Jacobs 2, II:340-341, Hymes 2), por seu modo masculino de urinar.
HN 253
*
* *
Os desenvolvimentos acima decorrem da observação de que, entre os Sahaptin, tanto o mito do
desaninhador de pássaros como o de Lince e Puma possuem funções etiológicas correlatas e
opostas. Em suas formas norte-americanas examinadas até o momento, o primeiro pretende
explicar a origem das feiras e mercados, da troca portanto, e os define em relação à cultura. O
segundo funda a origem da partilha, definindo-a em relação à natureza. Cada mito ilustra,
portanto, um estado simétrico de uma transformação que se desenvolve progressivamente ao
percorrer uma gama de estados.
Mas esse desenrolar num eixo linear gera também fenômenos de ressonância. Como uma
melodia que seguisse sua própria curvatura enquanto cada nota, ao ser ouvida, evocasse a série
de seus harmônicos, a cada estado da transformação, percebida como uma série de estados,
corresponde um conjunto de elementos míticos superpostos e que formam acordes entre si. Ao
personagem que faz o papel de mediador, garantindo a transição entre dois estados ou dois
mundos, responde um anti-mediador, impotente ou mesmo dotado de uma eficácia negativa. O
herói de M654-655 e sua irmã, inicialmente rebaixada ao papel de limpa-bunda e depois
transformada em ogra, repartem entre eles as duas funções. O anti-mediador se inverte, por sua
vez, no personagem de Pipi-na-Cama que vem socorrer o mediador inicial, e reverte contra seu
antagonista a potência antes maléfica do excremento, que invertia a potência benéfica do
alimento. Esse duplo caráter, ao um tempo melódico e contrapontístico, de uma transformação
que se opera em dois eixos, o das sucessões e o das simultaneidades, e que assim se projeta como
encadeamento de sintagmas e como sistema de paradigmas, permite a ocorrência de atrasos ou
antecipações ao modo do que os músicos chamam de cadências rompidas ou evitadas. Com
efeito, no interior de um mesmo mito, mas em segundo plano, ou na forma de mitos distintos
situados em estágios diferentes, motivos ou incidentes se justapõem, pertencentes a estados
anteriores ou posteriores do grupo de transformação. Quando tais estados são distribuídos numa
ordem que, por comodidade, pode ser chamada de "natural", os mitos de limpa-bunda vêm bem
depois dos do desaninhador; pois é mais econômico, passando pela série de tipos intermediários,
transformar estes naqueles do que buscar o mesmo resultado no sentido inverso. No entanto, já
notamos (supra:295) que o motivo do limpa-bunda estava implicitamente presente na história do
desaninhador. Quase sempre, ele marca uma fase crítica que o herói atravessa na diacronia, e se
manifesta ainda mais claramente quando o herói se desdobra, no plano sincrônico, em dois
personagens, o seu próprio e o de seu jovem filho, que encarna a neutralização de sua função
mediadora. É o caso das versões yurok (M557) em que o filho do herói vira saco de pancadas do
avô, que o cega com seu esperma e assim se livra de uma testemunha incômoda, para melhor
saciar seus desejos incestuosos. Uma transformação tanto mais evidente do limpa-bunda na
medida em que permite passar da história do desaninhador para a (M598) do herói também
HN 254
trepado no alto de uma árvore, mas que de lá chega ao céu, para tornar-se esposo de uma
criatura solar. Ao retornar à terra com sua esposa, encontra o irmãozinho martirizado e cegado
por Gaio-Azul. A transição entre um mito e o outro é modulada por um terceiro, também
proveniente dos Chinook (M659, Boas 10:130-132; cf. infra:400, M712-713): o herói é abandonado
por seus companheiros numa ilha em pleno mar, a que tinham ido em busca de moluscos
(disjunção, vertical => conjunção, vertical => disjunção, horizontal). Na aldeia, Gaio-Azul,
enganador doméstico (# Coiote, enganador exótico) se apropria de duas das quatro mulheres do
herói. Como na história do desaninhador de pássaros, aqui mudado em coletor de moluscos, as
duas outras mulheres permanecem fiéis ao marido. Mas Gaio-Azul também vem defecar na casa
de suas vítimas, obrigando o menino da casa a limpá-lo com seu casaco e martirizando-o tanto
que quando seu pai o encontra, ele já está cego e careca (cf. M767a, infra:461). Vemos, assim,
que certas variantes do mito do desaninhador precipitam o movimento de tal modo que o baixo
de sua harmonia alcança, por assim dizer, uma parte alta reservada por outros mitos para uma
fase ulterior da mensagem que de ambos os lados é desenrolada por sua melodia comum.
Do mesmo modo, o mito do desaninhador, que se situa antes da série dos pares animais à
qual está ligada pelo que chamamos de abertura IV (mãe que vira grizzly quando está
menstruada), possui ainda assim, transposto na série dos pares animais, um equivalente que lhe
dá a réplica exata. Águia se apossa da mulher de seu irmão Cangambá e a leva para o céu.
Cangambá descobre seu paradeiro, consegue ser içado até eles, mas Águia corta a corda.
Cangambá cai e, na queda, perde a glândula anal que secreta o fluido com que ele ataca e se
defende. Ele parte em busca dela e a encontra em posse de estrangeiros que a utilizam como um
brinquedo. Recupera o que é seu graças a uma esperteza, mata e pilha os povos que lhe faltaram
com a consideração, e poupa os que demonstraram respeito para com ele. Levando as muitas
riquezas que pegou, primeiro ele enfrenta Puma, e escapa; em seguida, roedores chamados "cães
da pradaria" (Cynomys gen.) tiram-lhe tudo e o reduzem à condição atual de animal repugnante
mas inofensivo para o homem, e que um mero assobio espanta (M660a, Jacobs 3:207-215).
Uma outra versão (M660b, Jacobs 1:202-206) informa que a mulher raptada por Águia lhe
era previamente destinada; Cangambá tinha ficado com ela graças a um estratagema. O espírito
assobiador que faz Cangambá fugir e lhe rouba todos os tesouros é aqui o congelamento, o que
permite situar esse grupo de mitos, na série das transformações, bem perto dos que têm Coiote e
Raposa por heróis (M614), e que também destinam as riquezas roubadas às transações
matrimoniais: "Isto será para meus aliados por casamento; isto aqui para minha sogra, e isto aqui
para o meu genro. E isto para a minha roupa de casamento" (Jacobs 3:213). Uma terceira versão
(M660c, Jacobs 1:42-43) põe em cena Lobo e Cangambá. Eles são irmãos, Cangambá é casado,
Lobo deseja a cunhada e a rapta. Cangambá os persegue através de um terreno acidentado (eixo
vertical => eixo horizontal), tropeça e perde a glândula anal. Furado, não pode mais se
HN 255
alimentar, porque tudo o que come escapa de seu corpo. Ele tapa o reto escancarado com um
tampão de palha e consegue, finalmente, se alimentar.
Os leitores do primeiro volume destas Mitológicas certamente se lembrarão de que o
herói do mito bororo M1, afastado para o alto em vez de para baixo ou para longe, mas também
em decorrência de um incesto, sofre a mesma desventura que Cangambá: privado de fundilhos,
seu tubo digestivo não pode mais reter o alimento e o herói passa fome até ter a idéia de tapar a
abertura com um tampão (CC:44, 55-56). Mas há mais, já que tínhamos imediatamente
transformado esse herói furado por baixo no de M2, achatado por cima pelo peso de uma grande
árvore que lhe nascera do corpo. Depois de livrar-se dela, ele se transforma em juiz, como
Cangambá em M660a-b, poupando ou matando seus compatriotas (em vez de povos estrangeiros),
conforme estes lhe dão ou não ricos presentes; de modo antisimétrico, pois, com o
comportamento de Cangambá, que se apodera das riquezas daqueles que mata mas respeita as
pessoas e os bens dos demais, que o trataram com cortesia.
*
* *
Retornemos agora ao contraste mais simples que a inversão de suas respectivas funções
etiológicas permitia (supra:301) perceber entre o mito do desaninhador e o de Lince e Puma. Tal
inversão etiológica acompanha uma outra, relativa às cores. As mulheres de pele escura do
desaninhador são virtuosas e as de pele clara, infiéis. No mito de Lince e Puma, ao contrário, é a
carne clara que é boa, e a escura, ruim. A pertinência dessa inversão se evidencia num outro
grupo de mitos cuja armação toda, e não mais apenas a mensagem, é rigorosamente simétrica à
da história do desaninhador de pássaros:
Numa aldeia cujo chefe principal era Coiote, e Águia seu braço direito,
viviam dois irmãos, caçadores ricos e respeitados que mantinham
distância dos demais habitantes. O mais velho era casado. O mais novo,
solteiro, tinha um urso grizzly como cão. A mulher se apaixonou pelo
cunhado, que resistiu às suas investidas. Certo dia, quando eles estavam
sozinhos, ela arranhou propositadamente o próprio rosto com as patas de
um passarinho que tinha pedido a ele para matar. Quando o marido dela
voltou, ela alegou que aquelas eram as marcas de uma luta contra o
jovem, para proteger a própria virtude.
Louco de raiva, o homem quebrou e jogou no fogo as flechas que o irmão
tinha ficado fabricando em casa, e cobriu-o de censuras. O outro saiu sem
dizer uma palavra. Seguido por seu cão, atravessou quatro montanhas,
despiu-se no topo da quinta, que era a mais alta, subiu numa árvore e
desapareceu no céu (graças à ação mágica do cão, M661b). Nunca mais
foi visto. Cansado de tanto esperar (M661a), seu cão-urso resolveu ficar
vivendo nas montanhas.
Enquanto isso, o marido se arrependera de ter sido tão duro com o irmão
e resolveu ir à sua procura. Guiado pelos uivos do cão, encontrou o
animal, que lhe revelou a verdade, pois tinha testemunhado as tramóias
HN 256
Quais são as relações entre esse mito e o do desaninhador de pássaros? Primeiro, ele ilustra o que
poderíamos chamar de sua "transformação Putifar", registrada na América do Sul (Wagley &
Galvão:146-147; Murphy 1:87-88; e M135, Koch-Grünberg 1:56-60, cf. MC:235) e tão difundida na
América do Norte que todo o estudo do grupo poderia ser retomado por esse viés (cf. infra:454-
463, 474-475; S. Thompson 3:326-327).
Contentemo-nos com verificar em que ela consiste nesse caso em foco, pois alhures ela
assume outras formas. Em vez de o mais velho de dois homens tentar seduzir a ou as mulheres do
mais novo, é a mulher do mais velho (pai ou irmão) que tenta seduzir o caçula. Meio ou
conseqüência do ato transgressor, a árvore na qual o herói sobe o separa dos seus,
temporariamente num caso, definitivamente no outro. A volta à terra, quando ocorre, requer a
intervenção de animais prestativos que podem ser tão inofensivos quanto as borboletas ou a
HN 257
aranha das versões norte-americanas, ou ferozes como o jaguar das versões jê. É, pois,
significativo que M661, mito norte-americano que vira ponto por ponto a história do desaninhador
e dele apresenta a imagem simétrica, faça do grizzly (a fera mais temível dessas paragens
setentrionais) um equivalente do jaguar, mas com inversão da função que os mitos brasileiros
confiam ao segundo animal: em vez de facilitar a descida do herói, o cão-urso de M661 faz surgir
um pássaro comestível que seu dono tenta pegar, e que o leva até o céu, de onde ele nunca mais
retornará.
Como o jaguar sul-americano, até entã dono do fogo de cozinha e que, tendo-o cedido
aos humanos, passará a comer cru, o grizzly de M661, até então animal doméstico, viverá a partir
de então em regiões selvagens. Segundo uma versão yurok do mesmo mito (M661c, Erikson:287),
a gralha enegrecida pelo fogo de cozinha não mais comerá carne fresca e terá de contentar-se
com lixo.
Entre os Salish da costa, os Chinook e os Sahaptin limítrofes, a história do desaninhador
desemboca num episódio no qual um personagem semi-humano chamado Coiote, antes de assumir
sua forma animal definitiva, liberta em benefício da humanidade futura os peixes que eram
mantidos presos pelas andorinhas do mar (ou outras aves marinhas). Em M661, simétrico ao outro
mito, um personagem semi-humano assume temporariamente a forma animal para libertar, em
benefício de seus companheiros, a caça que é mantida presa por um casal de corvos, aves
terrestres.
Mas o episódio mais notável de M661 é certamente aquele no qual o herói ingere roupas e
adornos, o que o faz transformar-se de adulto grande e bem feito em criatura infantil e disforme.
Para interpretá-lo, convém começar notando que o episódio seguinte, no qual o herói é
pendurado pelos pés no alto da tenda — perto da saída de fumaça, diz o mito — e regurgita, na
fogueira portanto, tudo o que tinha engolido, antecipa a cena que mostra Corvo colocado na
mesma situação e enegrecido pela fumaça. Neste caso, um movimento ascendente que parte da
fogueira, análogo à defumação, que é um procedimento culinário, ao mesmo tempo enegrece e
enfeia um personagem anteriormente branco e belo. No outro caso, um movimento em sentido
inverso, análogo ao vômito, que é o contrário de um processo alimentar, devolve sua antiga
beleza a um personagem que tinha ficado feio.
Contudo, a conduta alimentar cujos efeitos são anulados pela suspensão do herói possui
um caráter anormal: diz respeito não a alimento, mas a vestimentas. Simetricamente, a
suspensão do corvo acima da fogueira também possui um caráter anormal, já que em vez de um
animal ser cozido, ele recebe uma nova roupagem. Essa conversão do código culinário em código
vestimentar permaneceria incompreensível se não notássemos que sua origem se encontra nas
versões norte-americanas do mito do desaninhador de pássaros, cuja transformação é rematada
por M661.
HN 258
49
Sem prejuízo de uma oposição explicitada mais ao norte entre corvo, larápio de alimento, e o
outro parasita do homem que é o camundongo, em que se transforma entre os Atabascanos setentrionais o
HN 259
ambígüa das conchas brutas ou trabalhadas, que de um lado são adornos costurados às roupas e,
do outro, mercadorias oferecidas nas feiras em troca de gêneros alimentícios ou meio de
pagamento para adquiri-los, bem como a outros bens. Por intermédio da entrecasca e das
conchas ao mesmo tempo enfeite e moeda, as ordens vestimentar e culinária eram objeto, nas
culturas indígenas, de uma união não apenas metafórica, mas real.
Mencionaremos um último argumento em favor dessa interpretação. Ao lado da
"transformação Putifar" do mito do desaninhador de pássaros, existe uma outra, que
examinaremos mais adiante (infra:385ss), em que Coiote, em vez de se apropriar de afins,
procura seduzir a própria filha (sobre o grupo como um todo, cf. Schmerler). Notemos apenas
que, na maior parte dos mitos desse grupo, Coiote deseja pela primeira vez a filha quando ela
está no alto da casa, para apagar um incêndio, e dá a ver suas partes íntimas ao pai, que ficou
em baixo. Esse incidente inverte claramente aquele no qual Coiote, na série do desaninhador,
põe fogo às roupas de suas noras para obrigá-las a se exporem. Seu homólogo Corvo procede de
modo ainda mais direto nos mitos bella coola e kwakiutl que retomam o mesmo episódio (Boas
12:90-91; Boas & Hunt 1, II:288-291). Por conseguinte, a mulher desejada, agente de uma
extinção num caso, torna-se sujeito passivo de um atiçamento no outro. Ora, numerosas versões
do mito em que Coiote seduz a própria filha explicam que ele recorreu ao fogo para alcançar seu
intento: fingiu morrer depois de ter mandado queimarem seu cadáver, de modo que, quando ele
reapareceu, tomaram-no por um estrangeiro e ele pode se casar com a filha, que era a única,
como ele disse para se justificar, que sabia acender corretamente o seu cachimbo. Versões
paiute e shoshone fazem-no comer o próprio pênis cozido debaixo das cinzas, como castigo.
Portanto, se pelas razões expostas essa seqüência de eventos constantemente referidos ao fogo
inverte aquela em que consiste o mito do desaninhador, é necessário, a contrario, que o meio
empregado pelo mesmo personagem — forçando o filho a despir-se para apropriar-se de suas
roupas, sua aparência física e suas esposas — esteja fundado numa relação de congruência entre
nu e cru.
*
* *
Coiote e seu jovem irmão Águia têm uma conotação culinária. Os dois irmãos viviam juntos, Águia
caçava, enquanto Coiote ficava em casa. Cada um preparava sua própria comida: Águia punha a
ferventar as presas grandes que matava, e Coiote pegava camundongos e os punha sob as cinzas
para assar. Invejoso, Coiote matou o irmão e passou a levar uma vida errante: "Pouco importa,
disse ele, irei para a mata, pois se aproxima o tempo em que os índios povoarão esta terra".
O mito não é interessante apenas por proclamar a superioridade implícita do ensopado
sobre o assado, e do recipiente de entrecasca sobre uma técnica culinária tão rudimentar que
prescinde do uso do espeto (cf. supra:279). Por meio do par formado por águia e coiote50, (águia
: coiote) : : (ensopado : assado), ele exprime o que poderia ser chamado de universo culinário:
(águia + coiote) = CULINÁRIA. Mas, se é assim, resulta que em M661, o Corvo revoltado que priva
do meio de praticar a culinária (prendendo a caça) todos os habitantes de uma aldeia cujos
chefes são, justamente, Coiote e Águia, representa sua contraparte negativa: corvo = (águia +
coiote)-1. E, com efeito, a conotação culinária negativa do Corvo está na defumação que ele sofre
passivamente quando é enegrecido, ao passo que Águia e Coiote têm uma relação ao mesmo
tempo positiva e ativa, um com o ensopado, e o outro com o assado. Mas isso não é tudo. A Águia
e o Coiote podem formar um par de termos em correlação e oposição porque seu constraste se
manifesta duplamente: a águia é celeste e predadora, o coiote é terrestre e carniceiro. O corvo,
por sua vez, se qualifica para formar uma tríade com os dois outros animais porque é celeste
como um e carniceiro como o outro. Esse sistema aparentemente triangular guarda reservado um
quarto lugar para animais definíveis pelas duas relações ainda livres, predador como a águia e
terrestre como o coiote. Tais animais, que os mitos também põem em cena, são o puma e o
grizzly, um provedor e o outro canibal, ou seja, investidos respectivamente de conotação positiva
e negativa em relação à culinária.
Vê-se pelo exposto acima que o mito dos dois irmãos e o de Lince e Puma, que invertem
em eixos diferentes o do desaninhador, são coerentes consigo mesmos quando invertem também
os valores respectivos das cores, branco e preto ou claro e escuro, que os três mitos selecionam
para formar uma oposição pertinente. No que diz respeito a M661 em particular, essa oposição
cromática aparece duas vezes, na água branqueada com argila que é boa e na enegrecida com
carvão que é ruim, e no Corvo que, antes branco, fica preto. Como esse escurecimento se
apresenta como uma punição e faz Corvo regredir do estágio de predador para o de carniceiro e
como, finalmente, M663a estabelece a superioridade do primeiro sobre o segundo, pode-se
admitir:
claro escuro
mito do desaninhador: — +
50
O mito thompson sobre a origem do fogo (M663b, Teit 5:338-339) reparte os papéis entre três
animais. O castor rouba o fogo da gente de Lytton e o dá aos do rio Nicola e de Spences Bridge. Águia lhes
ensina a assar, e doninha a ferventar. De modo que, para essa versão, o universo da culinária consiste de
fogo, mais assado e ensopado.
HN 261
substituem essas divindades supremas por seus duplos animais, Marta e Doninha (supra:37), e
continua sendo afirmada entre os Chinook e os Sahaptin, onde os papéis do desaninhador e de seu
pai passam para Águia e Coiote. Contudo, a oposição simples, concebida pelos Klamath e Modoc
entre um mau demiurgo solar e um bom demiurgo lunar, torna-se aqui mais complexa. Para os
Salish e alguns de seus vizinhos, a ordem e o bom andamento do mundo dependem de um
equilíbrio satisfatório entre forças antagônicas de que o dia e a noite expressam apenas um
aspecto. Só a lua, quando ilumina levemente as trevas, ilustra essa temperança recíproca entre a
luz e a escuridão. Ela é, portanto, da noite e do dia, pois a experiência comprova que não é
exclusivamente da noite, já que as noites mais noturnas — porque mais escuras — são aquelas em
que ela não está no céu. Em compensação, contam os mitos, no tempo em que a lua pretendia
ser o astro do dia, ela ressecava e queimava a terra, e tornava impossível para os humanos viver.
À diferença da lua, o sol pode presidir ao dia sem que resultem semelhantes desastres;
mas também à diferença da lua, a experiência atesta que ele é incompatível com a noite. Sendo
apenas do dia, ele só tem direito a um lugar subalterno na cosmologia, réplica enfraquecida da
lua, que só ela reúne os dois aspectos. Por isso os mitos salish fazem com que ele nasça da urina
espremida dos cueiros de seu irmão Lua, depois de este ter sido roubado (M375). Essa
problemática permaneceria impenetrável se não compreendêssemos que, como tão
freqüentemente acontece nos mitos, de um ponto de vista lógico, se não histórico, a relação de
oposição é anterior às coisas opostas.
Num tal sistema, por conseguinte, o personagem do mau demiurgo solar se eclipsa, ou,
mais exatamente, os Salish o transformam em enganador cujos atos e gestos parodiam a obra
civilizadora do bom demiurgo Lua, ordenador do mundo e da sociedade, de modo que, como
enganador, Coiote vira uma espécie de Lua invertida. Um realiza sua obra com sabedoria e
generosidade, o outro a completa à revelia, por assim dizer, já que suas contribuições positivas
resultam de acidentes, imprevistos ou malogros. Entretanto, a mesma estrutura de oposição que
os Klamath e os Modoc concebem entre o desaninhador e seu pai continua existindo nessas
versões setentrionais. De sua afinidade solar reduzida a uma expressão negativa, Coiote conserva
uma predileção pelas mulheres de pele clara. De seu paralelismo com o demiurgo ordenador od
universo, de quem ele continua sendo discretamente a réplica, o desaninhador mantém uma
afinidade com a lua e com as trevas, que explica que as mulheres de pele escura sejam suas
preferidas.
É significativo que, para finalizar a interpretação desse vasto grupo de mitos, sejamos
obrigados a voltar aos exemplos que nos serviram de ponto de partida e que nos seja preciso
apreender, de um só golpe de vista, o conjunto como totalidade. De fato, a história do
desaninhador — compartilhada por todo o grupo — constitui o que poderíamos chamar de sua
51
De onde o charme muitas vezes pérfido das louras, a quem se atribui, como se sabe, a destruição
de lares. Charme esse a que o herói de nossos mitos, no entanto, mesmo em seu lar, fica insensível, ele que
HN 264
célula reguladora. A partir daí, os Salish e os Sahaptin engatam em dois aspectos para eles
essenciais da ordem do mundo, a liberação dos salmões e a instituição das trocas comerciais. Mas
os Klamath, e mais ainda os Modoc, viviam longe das grandes feiras do rio Columbia. Quando as
freqüentavam, era principalmente para negociar suas presas de guerra, prisioneiros condenados a
serem escravos, capturados pelos Klamath e seus aliados Modoc entre as tribos do rio Pit ou que
os Klamath sozinhos, agindo como intermediários, compravam de seus vizinhos meridionais para
depois vendê-los ao norte (Spier 2:38-43; Ray 3:134, 144). Sendo função da guerra mais do que
condição e meio de garantir a paz entre os homens, e dissociada das atividades de produção,
compreende-se que a troca não possa nesse caso oferecer um modelo plausível das relações
intertribais, e menos ainda fornecer uma solução para os problemas que toda ordem social tem
de resolver. Bem longe de se abrir para a fórmula da troca, a célula reguladora dos mitos klamath
e modoc desemboca na fórmula simétrica àquela dos jogos de competição entre tribos, que
também permitem desviar da guerra, não por transformá-la dialeticamente em seu contrário,
mas porque, com uma virulência atenuada, propiciam-lhe um substituto.
Afora isso, os Modoc viviam sobretudo de caça e coleta. Também pescavam na primavera
e em outras épocas do ano, mas os salmões não subiam seus rios e eles tinham de se contentar
com espécies de menor valor alimentar (Ray 3:192). Não era o caso dos Klamath, pois os salmões
e outros peixes invadiam várias vezes ao ano o seu rio epônimo e afluentes. No entanto, eles
aparentemente não se incomodaram com um ritual de pesca tão complexo quanto seus vizinhos a
oeste a ao norte. E seus mitos empurram a criação dos peixes para a origem dos tempos, bem
antes de o demiurgo entrar em conflito com seu filho e transformá-lo em desaninhador:
"Primeiro, Kmúkamch criou as coisas e os seres, e decidiu que todas as espécies de peixes
existiriam... Depois, e tendo realizado tudo isso, Kmúkamch fez o filho subir numa árvore para,
alegava ele, desaninhar águias..." (Gatschet 1, I:94). Conseqüentemente, a criação dos peixes
toma o lugar de sua libertação, e ocorre muito mais cedo na ordem de sucessão da narrativa. De
fato, vimos (supra:77, 85-93, 128) que é à origem da caça, e não da pesca, que os Klamath e os
Modoc remetem a história do desaninhador. Ora, por seu caráter combativo e aventureiro, no
plano da busca pelo alimento a caça se opõe à pesca do mesmo modo que, no plano das relações
intertribais, os jogos competitivos, que são um modo de guerra, se opõem aos pacíficos
intercêmbios comerciais. Chega-se assim a uma imagem de conjunto em que se inscrevem os
valores e as funções simétricas, sempre ligadas à infraestrutura, que o mito do desaninhador
recebe, de um lado, entre os Klamath e os Modoc e, do outro, entre os Salish da costa e os
Sahaptin (fig. 24).
KLAMATH-
MODOC
Desaninhador
de pássaros
SALISH-
SAHAPTIN
AMARGOS SABERES
I
A VISITA AO CÉU
No decorrer das discussões precedentes, centradas na mitologia dos Sahaptin e de seus primos
Nez Percé, não hesitamos, sempre que se fazia necessário, em servir-nos à vontade de mitos dos
Salish meridionais, tanto da costa como do interior, cujo território confinava com o dos Sahaptin,
e que mantinham com eles relações tão próximas, no comércio e nas alianças matrimoniais, que
é muitas vezes difícil atribuir determinadas versões do mesmo mito a uma das duas famílias
lingüísticas.
Tais discussões foram nos levando à história do desaninhador de pássaros. Cumpre,
portanto, examinar a forma que ela assume ao norte da área sahaptin, into é, na vasta família
lingüística salish que — à exceção de dois postos avançados isolados, que eram os Tillamook ao
sul e os Bella Coolla ao norte — ocupava um território contínuo desde a parte oriental da ilha de
Vancouver até o piemonte das Rochosas, incluindo a maior parte das bacias dos rios Columbia e
Fraser.
Essa investigação enfrentará dificuldades específicas, não apenas ligadas ao fato de que,
apesar do volume já considerável que ela representa, só conhecemos fragmentos da mitologia
salish; pois nesse particular, a situação não se distingue em nada daquela encontrada entre os
Sahaptin e seus vizinhos. Na verdade, a história e a etnografia dos Salish conspiram para
complicar a tarefa do analista. Cristianizados desde a primeira metade do século XIX, em certos
casos por iniciativa própria (como os Flathead, que lançaram expedições perigosas atravessando o
território de tribos hostis para chegar a Saint-Louis do Missouri e solicitar o envio de missionários,
dos quais o primeiro foi o célebre de Smet), os Salish do planalto, graças a seu temperamento
pacífico e suas disposições amigáveis para com os brancos, viveram em relativa tranqüilidade, a
não ser pela devastação causada pelas epidemias, até por volta de 187052. Quando, nessa época,
foram sendo progressivamente confinados em reservas, sua cultura tradicional tinha sido bastante
alterada, ainda mais porque influências vindas das tribos das Planícies tinham-se adiantado em
pelo menos um século às dos colonos. Os etnólogos, assim, reconstituíram essa cultura tradicional
a partir dos testemunhos dos informantes mais velhos e os relatos dos primeiros viajantes e
missionários, mas não a observaram realmente.
Apesar da diversidade das línguas no seio da mesma família, e a dos costumes,
instituições e modos de vida, entre os Salish da costa e os do interior, concorda-se em reconhecer
(Sapir 6; Ray 5) a originalidade de uma cultura cujas diferenciações internas foram se instalando
progressivamente, no contato com tribos das Planícies, de um lado, e com as da costa noroeste
do Pacífico, do outro; e não se deve subestimar o papel dos Iroqueses que, desde o final do
século XVIII, acompanhavam como guias os traficantes de peles, e que despertaram a curiosidade
dos Flathead em relação ao catolicismo e à Bíblia, e ao mesmo tempo certamente introduziam
elementos de mitos indígenas vindos do leste.
Lembramos, no prólogo, e não voltaremos a isso aqui, que essa região da América está
entre as de povoamento mais antigo e contínuo, desde aproximadamente 12.000-13.000 a.C. até
a época histórica. Entre o mar e as Rochosas, ela forma uma espécie de corredor, cuja
configuração poderia ter contribuído para afastar, e posteriormente isolar de modo duradouro,
um ou vários grupos de imigrantes vindos pelo estreito de Bering dos vales do interior53.
Originariamente, os Salish teriam sem dúvida habitado apenas uma parte de sua atual área de
difusão, que se considera ter ocorrido para o leste e para o sul. Mas a área em si, tomada como
um todo, se apresenta repleta e emoldurada por sítios muito antigos de idades comparáveis, nos
quais a presença humana foi ininterrupta por um longo período. Por mais que devamos ser
prudentes diante das reconstituições da escola gloto-cronológica, parece ser significativo que ela
estabeleça lapsos de seis a sete mil anos para a diferenciação interna das línguas salish (Swadesh
1, 2, 3, 4, 5, cf. Kroeber 10, Suttles & Elmendorf, Elmendorf 2). As tribos atuais teriam podido,
52
Não foi assim nas proximidades da costa, onde, para dar apenas um exemplo, os Nisqually de Puget
Sound, cuja população teria possivelmente atingido o total de duas mil pessoas, e não era certamente
inferior a várias centenas, foram massacrados pelos colonos em 1855-56. Em 1910, não passavam de
dezenove.
53
Supondo que, como afirma Bryan (:399), eles não tivessem podido passar pela costa: "Os que crêem
que pedestres possam ter se deslocado para o sul seguindo a costa do Alasca e da Colúmbia Britânica nunca
viram essas regiões, todas de fiordes abruptos e na qual muitas vezes, sem praia, as montanhas acabam
diretamente no mar". Cf. supra:11)
portanto, alargar seu território sem deixarem de permanecer mais ou menos na mesma região,
como herdeiras de seus ocupantes muito antigos.
Se os Salish, e talvez com eles os Chimakuan da costa que formam um enclave lingüístico
isolado, proviessem de uma antiga onda de povoamento da América, mantida por muito tempo
protegida do contato pela dupla barreira das Rochosas a leste e do oceano a oeste, seria mais
fácil compreender que tivesse sobrevivido entre eles, apesar das distâncias e tomando caminhos
divergentes, um fundo mítico que outras vagas de migração mais ou menos contemporâneas, mas
passando a leste das Rochosas, teriam posteriormente levado até o coração da América do Sul.
Como sugerem tantos exemplos, poderíamos portanto esperar encontrar nessa região recuada da
América do Norte um terreno ideal de comparação entre versões dos mesmos mitos provenientes
de ambos os hemisférios. Fica patente, e não paramos de verificar isso, seguindo Ehrenreich,
desde o início deste livro, que nenhumas outras regiões do Novo Mundo parecem apresentar
mitologias tão aparentadas, apesar dos aproximadamente dez mil quilômetros em linha reta que
as separam, quanto o Brasil central e meridional e a zona que estamos explorando, entre os rios
Klamath e Fraser.
Infelizmente, e mais ainda do que entre os Sahaptin e os Chinook, onde o problema já se
colocava, num plano muito diferente do da geografia e da história, a análise dos mitos salish
enfrenta enormes dificuldades. Não apenas ligadas aos modos de vida, técnicas, instituições
sociais e crenças religiosas, tão diversas entre a ilha de Vancouver e a costa, entre a costa norte
e Puget Sound, entre a beira-mar, o estreito da Geórgia e o interior, entre os vales fluviais e o
planalto. Muito pelo contrário, já que é lícito esperar que tais variações permitam verificar, com
base em numerosos exemplos, o modo como os mesmos mitos se transformam em função de
conjunturas econômicas e sociais diferentes. As populações do oeste, por exemplo, respeitavam
uma rígida hierarquia na qual a riqueza, ligada ao nascimento e à ordem de primogenitura,
contribuía para traçar uma linha de demarcação entre aristocratas, plebeus e escravos, ao passo
que as do interior eram amorfas com respeito a todos esses pontos. Várias delas não teriam nem
mesmo podido conceber noções como hereditariedade, categoria ou escravidão. Outras, a leste e
ao sul, por influência das Planícies, fundavam sua hierarquia social no mérito, cívico ou
guerreiro. Do mesmo modo, as gentes da ilha de Vancouver — e, em menor grau, os da costa do
estreito e os de Puget Sound — construíam o que certamente são as maiores casas jamais
observadas entre povos ditos primitivos: hangares irregulares, com paredes e teto de tábuas que
podiam atingir centenas de metros de comprimento. As habitações do interior eram bem
diferentes: no verão, eram abrigos rústicos cobertos com esteiras e entrecasca e, no inverno,
cabanas de forma aproximadamente piramidal enterradas até a metade, cuja armação era
recoberta de terra e desmontada a cada primavera. Dependendo de onde viviam, perto ou não do
mar aberto, de estreitos, rios ou lagos, as populações tinham na pesca ou na caça — além da
coleta de bulbos, raízes e bagas selvagens, sempre praticada com fervor — sua atividade
econômica principal. E ainda é preciso distinguir entre peixes do mar, como arenques e
candlefish (Thaleichthys), e peixes de rio. As cinco principais espécies de salmão (Oncorhynchus),
que constituíam o principal recurso, só subiam até bem longe no interior os rios de água fria, e
enquanto as cachoeiras não lhes apresentavam um obstáculo intransponível. Alhures, e por toda
parte durante o inverno, era preciso se contentar com a steelhead trout (Salmo gairdnerii),
menos apreciada.
Apesar dessas diferenças consideráveis, transparece um caráter comum, que imprime sua
marca a toda a mitologia da região. À exceção dos grupos do leste — Indios dos Lagos, Flathead e
Coeur d'Alêne — entre os quais se observa algo que se assemelha, em graus diversos, a uma
organização tribal claramente emprestada das Planícies, os Salish não conheciam tribo nem
Estado. Certamente sentiam uma vaga solidariedade entre gentes falantes da mesma língua ou do
mesmo dialeto, mas afora isso, a família extensa entre os povos do oeste, o bando semi-nômade
ou a aldeia semi-permanente entre os do norte e os do centro, e o grupo local ao sul, forneciam a
única base à ordem social. A chefia, hereditária ou eletiva, raramente conferia real autoridade.
Até mesmo em relação às sociedades aristocráticas de Vancouver, onde a ordem de precedência
e o prestígio da família tinham de ser constantemente reafirmados à custa de festas suntuárias e
distribuição de riquezas, foi possível dizer (Barnett 3) que, na ausência de poderes públicos e de
estado, o único governo eram as regras, inculcadas desde a infância e estritamente observadas.
Quer se trate de linhagens, de famílias, de bandos ou de aldeias, sempre estamos
lidando, portanto, com pequenas unidades sociais autônomas que, pelo menos na zona central
(pois os povos da ilha e da costa e os vizinhos dos povos das Planícies possuíam, por si ou por
força de outrem, uma índole mais guerreira) coexistiam pacificamente e se freqüentavam, ao
sabor de um temperamento sociável freqüentemente atribuído as gentes do Planalto. Esse
particularismo local e essa mobilidade geral não podiam ter deixado de ecoar nos mitos, de que
possuímos, para cada grupo dialetal e apesar do caráter incompleto de nossos documentos,
múltiplas versões que diferem umas das outras, bem mais e de um modo outro do que geralmente
acontece. Pois aqui tudo se passa, à primeira vista, como se a matéria-prima dos mitos,
fragmentada em pedacinhos, se recompusesse como um mosaico caprichoso, em que os mesmos
elementos podem entrar em diversas combinações. Decorre daí que a fronteira entre os tipos de
mitos costuma ser difícil, se não impossível, de traçar; hesita-se o tempo todo em decidir se se
passou de uma variante para outra do mesmo mito, ou de um tipo de mito a um outro, que
inicialmente nos parecera distinto.
Tal instabilidade da matéria mítica também pode ser explicada por outros fatores. Tanto
na costa como no interior, os Salish costumavam contrair casamentos com grupos vizinhos ou
afastados, ou para estender a rede de alianças políticas, ou porque a pax selica que reinava no
interior tornava esse tipo de casamento tão fácil quanto outros, ou até mais, em razão de um
sistema de parentesco fundado na filiação bilinear e na proibição do casamento entre primos
próximos. Como as transações comerciais eram tão ativas quanto as transações matrimoniais, e
com uma ou outra intenção, as pessoas se visitavam muito, é razoável pensar que, de uma ponta
à outra da área salish, cada mito, onde quer que tivesse surgido, logo se tornava uma coisa de
todos, mas a que cada pequena unidade social sabia dar um sabor local. De modo que a
investigação que estamos para iniciar possui um duplo interesse, teórico e metodológico. É ou
não é possível discernir regras de transformação e uma estrutura num complexo de mitos que é
ainda reconhecível, mas que parece ter sido decomposto e recomposto sem trégua por
pequeninas sociedades cujo caráter politicamente amorfo e a permeabilidade mútua poderiam
levar a crer que, à sua imagem, os grandes temas míticos que elas compartilham com as outras
culturas sul-americanas só subsistem, nelas, em estado atomizado?
*
**
É por uma breve volta aos mitos nez percé que convém, entretanto, dar início à
discussão. Vizinhos imediatos dos Salish ao norte, os Nez Percé são primos dos Sahaptin pela
língua, e fornecem uma transição apropriada entre essas duas famílias. Aliás, o modo como eles
contam a história do desaninhador de pássaros apresenta vários pontos em comum com as versões
coeur d'alêne, no que revela influências salish. Já evocamos as versões nez percé (M602a-h, p.
227). para demonstrar, contrariando Sapir, que engatam o mito do desaninhador no da liberação
dos salmões. A diferença capital, e em que as narrativas nez percé anunciam as dos Salish, onde
esse traço atinge seu mais alto grau de importância, reside no fato de, pela primeira vez desde
que começamos a examinar a história do desaninhador, ele não fica preso no alto de uma árvore
ou de um rochedo antes de descer de volta à terra. No intervalo, seu poleiro foi-se elevando
consideravelmente, ele atinge o mundo celeste, visita-o e lá vive várias aventuras. Esse traço é
particularmente nítido em M602b (Phinney:360-381) e M602c (Boas 4:135-137), que contam,
ambos, que o herói, chamado Jovem-Coiote, primeiro atravessou as nuvens e pos o pé num
mundo "igualzinho à nossa terra" segundo M602c, onde fazia muito frio.
Os primeiros habitantes encontrados se mostram hostis. Os últimos, que são aranhas,
gentis, pois que esses animais fabricam uma corda que o herói utiliza para descer de volta. Na
outra versão, são as mesmas aranhas que, hostis no início, depois ficam prestativas. De volta à
terra, o herói recupera sua mulher de pele escura — Gafanhoto ou Besouro — que lhe tinha
permanecido fiel, e transforma a de pele clara — Pata ou Cisne — em pássaro selvagem. Em
seguida, ele se vinga do pai, Coiote, mandando-o arrastar a caça com uma corda quebradiça e
criando acidentes no terreno, pois a terra era antes plana. Ainda mais retardado pelos obstáculos
que é obrigado a transpor com dificuldade, Coiote fica cansado, sofre com o calor, tem sede, e
se deixa seduzir pela água refrescante de um rio que o leva até as donas dos salmões. Elas o
recolhem e adotam, depois de ele ter assumido a aparência de um bebê. Mas Coiote fura a
barragem e libera os peixes (M602e, Boas 4:138-139; M602b). Segue o episódio que discutimos
longamente na parte precedente, do roubo recíproco de alimento (M602f, g, h, Boas 4:139-144),
que as narrativas nez percé sancionam com a atribuição de suas peles características aos lobos,
às raposas, aos cangambás ou aos guaxinins; propriedades naturais que, ao contrário dos bens e
serviços do âmbito da cultura, não podem ser intercambiadas (cf. supra:254).
Posto que veremos aparecer progressivamente um elo entre o motivo da visita ao céu e a
origem do fogo de cozinha, cabe ressaltar, sobretudo para os leitores familiarizados com os
volumes anteriores destas Mitológicas, que os Nez Percé fazem questão de afirmar o
desaninhador, mesmo antes de começarem suas aventuras, como inventor da fogueira. "Coiote
tinha um filho, que era chefe e homem corajoso. Ele subiu numa montanha perto do rio Snake.
Certa manhã, ele deu um pontapé num tronco caído e o fogo saiu. Está ardendo desde então,
para aquecer os humanos..." (M602c). " Coiote-Filho era o chefe de caça. Ele determinava para os
companheiros o local do encontro. Assim que chegava, corria para um tronco caído e o atingia
com o pé. As chamas brotavam e a madeira pegava fogo. Os caçadores se aqueciam em torno da
fogueira enquanto Coiote-Filho distribuía suas instruções" (M602b). Também nisso nos
aproximamos das versões salish, exceto que o episódio, ausente da história do desaninhador,
consta, entre os Thompson, numa outra narrativa em que pai e filho também têm o nome de
Coiote, e o jovem herói possui o mesmo poder milagroso (Teit 4:38)54.
De modo que, no exato momento em que a história do desaninhador abandona
definitivamente o gênero prosaico no qual primeiro a encontramos na América do Sul, para
assumir, com o episódio da visita ao céu, uma feição épica e significação cosmológica (mas,
afinal, todo o nosso trabalho consistiu desde o início em percebê-la, incluída no que poderia ser
tomado por uma mera "just so story", como dizem os ingleses, "história assim", no sentido de que
conta porque as coisas são assim), nesse momento, pois, o tema da origem do fogo ressoa, grave
e solenemente, nos primeiros compassos da sinfonia (quando entre os Jê do Brasil Central — M7-
12 — ele só aparecia no fim), atestando assim que se trata do mesmo drama, mas captado numa
etapa de seu desenvolvimento em que a origem do fogo está prestes a passar de terrestre para
celeste. Nesse instante crítico, em que o fogo não pode mais ser uma coisa e ainda não pode ser
a outra — ardendo, pois, no topo de uma montanha — o resultado final deve permanecer em
suspenso, e o único lugar disponível para o tema se encontra, conseqüentemente, no começo.
54
Dedicamos nosso curso de 1968-1969 no Collège de France à análise do grupo em que se insere essa
narrativa, e tentamos mostrar como ele se liga ao do desaninhador por uma série de transformações. Para
não sobrecarregar este volume, resignamo-nos a excluir essa demonstração, que esperamos poder retomar
na forma de uma publicação à parte. Cf. Annuaire du Collège de France, ano 69, 1969, p. 285-289.
Note-se ainda que as versões nez percé e thompson não qualificam o fogo no que toca a culinária,
mas exclusivamente no que se refere ao aquecimento para combater o frio, tratando, não de um
fogo doméstico, mas de fogueiras ocasionais exigidas por temperaturas inclementes e acendidas
em pleno mato.
Verifica-se assim, mais uma vez, a tese ilustrada ao longo de todos os nossos livros, de
que os mínimos detalhes dos mitos importam. Dos Klamath aos Salish meridionais, teremos na
verdade seguido a pista do mito do desaninhador de pássaros para constatar que, em toda essa
área, ele sofre uma transformação que o distingue das versões sul-americanas (nas quais,
contudo, ela é também perceptível, mas em estado latente, cf. CC:84). Ela consiste na passagem
da categoria de cru para a de nu, e associa a cultura menos à origem da culinária do que à do
vestuário (supra:44, 307). As versões nez percé, aliás, estão entre as que mais insistem nas belas
roupas do herói, que seu pai obriga a tirar; de modo que, dono do fogo que aquece no início do
mito, o herói vira um homem nu e tremendo de frio no meio.
Acabamos de ver como se manifesta a correlação entre os mitos nez percé e os mitos jê.
Já que estes últimos transformam o mito bororo de referência M1 de que partiu toda a nossa
análise, é preciso que também os mitos nez percé mantenham com M1 uma relação simétrica à
que detectamos entre eles e M7-12. E eles o fazem. O herói, autor do fogo que protege do frio,
mais tarde se vinga do pai provocando calor e falta de água (quando o velho Coiote passa sede),
ao passo que em M1, ele se vinga provocando chuva, abundância de água portanto, que priva o
pai de fogo ao molhar e apagar todos os fogos domésticos. Também nesse particular, os mitos nez
percé preservam sua originalidade, invertendo uma mensagem inalterada dos Klamath-Modoc até
os Salish, os quais todos, e de modo homólogo a M1, calam ou subentendem a origem do fogo,
mas fazem da chuva, da inundação ou de seu equivalente funcional o meio empregado pelo herói
para se proteger ou se vingar (supra:31).
A aproximação com as versões salish, ilustradas pelas dos Nez Percé, não impede
portanto (antes requer) que oposições se manifestem em outros planos. Uma das versões nez
percé (M602f), por exemplo, conta que os salmões retidos pelas cinco irmãs eram humanos
metamorfoseados aos quais Coiote devolveu sua natureza primeira, ao libertá-los, por inversão
dos mitos salish (M375, etc.) e sahaptin (M610), segundo os quais, para obter salmões para os
humanos, foi preciso mudar criaturas antropomorfas em peixes. Outra inversão característica
concerne à relação entre mundo terrestre e mundo celeste. A criação do relevo pelo herói nez
percé (que caberia comparar com a ação análoga da heroína no ciclo de Dona Mergulhão, cf.
supra:103-105, 109, 115, 118-120, 133) implica que a terra era anteriormente plana, aspecto que
os Salish ocidentais atribuíam antes ao mundo celeste, descrito, pelos Bella Coola (Boas 12:28),
Lévi-Strauss retornaria a essa região da América, retomando sua reflexão acerca desses mitos, em
História de Lince [N.T.]
os Thompson e os Klallam (infra:330, 366) como plano, sem relevo nem vegetação rasteira e
perpetuamente varrido pelo vento. Por outro lado, se os Nez Percé afirmam que a terra foi antes
plana e depois franzida, os Salish da costa e seus vizinhos sahaptin encarregam o ciclo do
demiurgo Lua, a que nos referimos várias vezes (M375) de explicar pela origem dos seismos
porque a superfície da terra se dilata e se contrai periodicamente (Adamson: 160, 172, 175;
Jacobs 1:140). Essa mitologia dos tremores de terra exiria um estudo à parte; talvez um dia o
façamos.
As versões nez percé, dizíamos, operam a transição entre as dos demais Sahaptin e os
mitos dos grupos salish seus vizinhos, que vamos abordar com os Coeur d'Alêne, cujo território
confinava com o dos Nez Percé ao norte.
Uma versão mais antiga, apesar de menos rica (M664b, Boas 4:120-121), informa o nome
do herói, que é Tô'rtôsemstem, forma freqüentativa cujo sentido evocaria a subida ou a descida.
Faltam os episódios das Aranhas caçadoras ou canibais e das mulheres Castores. Em
compensação, M664b descreve as duas fiandeiras como Aranhas que o herói chama de netas, em
vez de avós, a quem ele oferece primeiro contas, depois colares, mas que também só querem
cânhamo.
Com relação às versões nez percé, notaremos o que, à primeira vista, parece ser um
enfraquecimento da oposição denotada pelos nomes das duas mulheres, que se chamam Cisne e
Gafanhoto ou Besouro em M602, e Andorinha-do-Mar e Cisne em M664a, ou seja, duas aves
aquáticos aqui, uma ave aquática e um inseto terrestre lá. Ao mesmo tempo, invertem-se as
valências semânticas da mulher Cisne, que é branca, estéril e má entre os Nez Percé e negra,
fértil e boa entre os Coeur d'Alêne55. Mas é mesmo um enfraquecimento? Se tivéssemos mais
informações a respeito da identidade das aves que, na maioria dos mitos da região, eram
originariamente as egoístas donas dos salmões e, principalmente, se a transliteração inglesa
swallow que encontramos freqüentemente designasse andorinhas-do-mar, como sugere seu papel
subseqüente de acompanhantes dos salmões quando estes sobem os rios, determinado por Coiote
como castigo, apareceria uma correlação significativa entre a oposição entre as duas esposas e
aquela, muito mais marcada entre os Coeur d'Alêne do que entre os Nez Percé, entre as duas
categorias de aranhas que o herói visita no céu.
Vimos que, conforme as versões, os Nez Percé distinguem também duas categorias, uma
hostil, outra gentil, ou evocam apenas uma, hostil no início e depois gentil (supra:322). Porém,
mesmo no primeiro caso, mais próximo das versões coeur d'alêne, a oposição parece ser menos
fortemente marcada. Os primeiros habitantes do mundo celeste encontrados pelo herói adotam
para com ele um comportamento guerreiro (atacam-no com lanças, M602b,c) mais do que canibal
55
É provável que as andorinhas, que acompanham a subida dos salmões ao longo dos rios, ocupem no
pensamento indígena uma posição mais "baixa" do que os cisnes, grandes migradores aéreos.
(M664a). E, principalmente, o episódio dos encontros hostis é consideravelmente menos
desenvolvido pelos Nez Percé do que pelos Coeur d'Alêne, que imputam aos primeiros habitantes
do céu vários tipos de comportamento monstruoso — caçada por meio da defecação e
antropofagia quanto aos irmãos Aranha, homofagia quanto a suas filhas ou sobrinhas — a que o
herói põe fim fornecendo às mulheres Castores, canibais em relação à própria espécie, um
alimento mais decente e a seu pai, caça, o que lhe possibilita abandonar sua técnica de caça que
representa uma conjunção abusiva entre alimento e excremento.
São diferenças importantes, porque permitem resolver um enigma colocado por uma das
versões nez percé (M602c): a disjunção do herói, alçado ao papel de chefe de caça desde o
princípio, não ocorre, como em todos os outros casos, quando ele vai desaninhar filhotes de
águia, mas quando ele sobe na árvore para recuperar a caça que tinha deixado pendurada num
galho alto. Bem, as versões nez percé também diferem das demais pela natureza da remuneração
oferecida às aranhas prestativas. M602 b e c explicam que as fiandeiras tinham as mãos feridas
pelo trabalho e que o herói pagou-as com carne ou gordura de cervídeo que, como M602c explica,
serviriam para que elas tratassem suas escoriações. De modo que versões que colocam a caça em
primeiro plano no entanto calam sua função alimentar e reduzem a caça ao papel de auxiliar de
uma outra atividade técnica — a fiação do cânhamo — que diz respeito ao reino vegetal, e não
animal.
Se os Nez Percé procuram reduzir ao mínimo a distância entre a caça e o trabalho das
fibras têxteis, fazem-no, pois, tornando a primeira menos uma atividade do âmbito da
alimentação que fornece os meios da culinária do que um meio de obter a gordura indispensável
na condição de ungüento. Fica claro que os mitos coeur d'alêne adotam uma perspectiva
exatamente inversa: em vez de ganhar a ajuda de aranhas prestativas com um presente de carne
ou gordura, nem bem chega ao céu e o herói entra em conflito com aranhas hostis, em torno do
que acaba de caçar. Por outro lado, surge uma dupla oposição entre a caça e o trabalho das
fibras têxteis. Para começar, a primeira atividade serve para qualificar aranhas hostis, e a
segunda, aranhas gentis. Além disso, a caça em questão se manifesta nas formas mais abjetas
que se possa imaginar, assassinato por defecação, antropofagia, homofagia. De modo que os Nez
Percé conjugam caça e trabalho têxtil, ao passo que os Coeur d'Alêne as separam, reforçando
inclusive a disjunção ao conjugarem noutro ponto o alimento animal e os excrementos.
A etnografia contribui para esclarecer tais diferenças. Elas se manifestam menos entre os
Nez Percé e os Coeur d'Alêne que, como os demais povos a oeste das Rochosas, destacavam-se na
tecelagem e no trançado de fibras vegetais (cf. Teit 10:47-48), e mais entre os Nez Percé e seus
vizinhos das Planícies, que desconheciam as artes têxteis. Na verdade, a fronteira é atravessada
assim que chegamos aos Flathead (Teit 6:328-330), apesar de serem ainda Salish, vivendo
imediatamente a leste dos Nez Percé. Um texto significativo pode ser citado a respeito: "Eles (os
Nez Percé) quase sempre estavam em paz com os Flathead, que reconheciam como melhores
caçadores. Podiam contar com os Flathead para partir para as Planícies no inverno e voltar com
mais carne do que precisavam. Sendo assim, pensavam os Nez Percé, para que ir tão longe e
correr riscos, já que a carne podia ser adquirida dos Flathead? Não que os Nez Percé não
apreciassem carne; muito pelo contrário, "eram loucos por carne", disse um informante. Mas era
bem melhor comerciar do que ir combater os Blackfoot. Os Nez Percé também gostavam das
peles de cervídeo provenientes das montanhas das terras flathead, mais belas e mais numerosas
do que as suas... Aliás, era apenas no curtume das peles que a indústria dos Flathead sobrepujava
a deles.
"Conseqüentemente, os Nez Percé consideravam os Flathead melhores caçadores e
curtidores de peles do que eles próprios. Em compensação, os Flathead consideravam, e ainda
consideram, os Nez Percé os melhores cesteiros. Sempre admiraram as bolsas de trançado fino de
seus vizinhos, flexíveis e impermeáveis, e queriam muito possuí-las, pois apreciavam bastante sua
praticidade para proteger e transportar vários produtos. Como reconheciam a superioridade
artesanal dos Nez Percé e estes sempre estavam dispostos a vender, os Flathead não sentiam
nenhuma necessidade de aprender o ofício" (Turney & High 2:136-137).
Os Nez Percé, eram, portanto, o posto oriental mais avançado, por assim dizer, de uma
técnica que caracteriza a costa do Pacífico (Spinden 2:190). Nesse aspecto, os Coeur d'Alêne se
pareciam com todos os seus vizinhos, a norte, a sul, a oeste e a leste; na ordem: Índios dos
Lagos, Palouse e Nez Percé, Colville e Spokane, finalmente, Kalispel ou Pend d'Oreilles. "Os Coeur
d'Alêne não tinham nada que não tivessem as tribos vizinhas e, para eles, o comércio costumava
reduzir-se a uma troca de artigos sempre iguais, em função das necessidades ou das vontades de
cada um" (Teit 6:112). Os Nez Percé, ao contrário, diante de seus vizinhos orientais, podiam
considerar-se campeões das artes têxteis, já que eram cesteiros reputados e, além disso, as
principais fibras que serviam de matéria-prima — Apocynum e Xerophyllum — eram mais
abundantes em suas terras do que alhures. Suas bolsas chatas, que tanto interessavam aos
Flathead, e os chapéus troncônicos de suas mulheres eram merecidamente célebres pela
perfeição que se reconhecia em sua feitura. É compreensível, pois, que tenham tratado de
subordinar en seus mitos técnicas como a caça e o curtume de peles, em que não se destacavam,
àquelas cujo monopólio podiam reivindicar, em relação a seus parceiros comerciais, os Flathead,
e mais ainda em relação a seus vizinhos orientais das Planícies, que também eram seus inimigos
tradicionais (Spinden 3:226-227), e cuja presença ou ausência se prestavam mais, para eles, para
marcar a separação entre a barbárie e a civilização.
Mas nisso, como observamos diversas vezes, os Nez Percé seguiam a tendência comum a
todos os Sahaptin e, como veremos em breve, dos Salish. Numa região da América tão
completamente ignorante da cerâmica, o trançado de fibras pode merecidamente aparecer como
coextensivo à cultura. Os Nez Percé não teciam cobertas, como os Salish da costa, mas tinham
algumas delas e, embora suas roupas fossem geralmente de couro, o uso dos chapéus de fibra
trançada mostra que, mesmo entre eles, essa arte tinha uma relação com a vestimenta.
Participava também na habitação, com as esteiras de Typha e de Scirpus que recobriam as casas,
na caça e na coleta, com as bolsas e cestos, e ainda na culinária, com os cestos impermeáveis
que serviam para cozer os alimentos por imersão de pedras em brasa. Nesse sentido, na
hierarquia das operações culturais, a prioridade do trançado de fibras sobre a culinária podia
legitimamente se afirmar.
A mitologia dos povos situados entre os Coeur d'Alêne e os Thompson não é
suficientemente conhecida para que se possa afirmar que, como sugerem os raros documentos de
que dispomos, esses povos só conheceram a história do desaninhador numa forma curiosamente
invertida. Primeiro quanto às idades ou gerações, já que seus protagonistas não dois irmãos em
vez de pai e filho, e é o caçula que deseja a mulher do mais velho e tenta sumir com ele.
Também quanto às direções, pois o ninho de águia sempre está numa parede rochosa ao longo da
qual o irmão traidor ajuda o outro a descer e depois corta a corda, para que ele não possa subir
de volta (Sanpoil, M665a, Boas 4:108; M665b, Ray 2:147-149. Okanagon, M666, Cline:239-240).
Apesar dos elementos incontestavelmente indígenas (como o nome do herói em M665a, que é
Tempestade de Granizo, lembrando sua função meterológica em versões provenientes de ambos
os hemisférios, cf. M1, M557 e nossa discussão, supra:136-138), a comparação com certas
narrativas dos Shuswap e dos Thompson (Teit 1:702-707; 4:63, 87; 5:371-372) basta para
convencer de que essa forma particular que o mito assume resulta de um encontro com o velho
folclore francês, difundido entre esses índios desde o final do século XVIII pelos coureurs de bois
canadenses*.
A questão que se coloca aí não é tanto a da inversão, considerada do ponto de vista de
suas implicações formais, portanto, e mais a de saber porque tradições tão distantes umas da
outras puderam tão facilmente convergir e se unir em torno de um motivo preciso. Tratamos dela
numa apresentação oral e expusemos (supra:322 n.1) as razões que nos levam a deixá-la de
lado**.
*
* *
*
Coureurs de bois eram caçadores e coletores de peles que, desde o século XVII, partiam dos
estabelecimentos franceses no vale do rio São Lourenço, coração da colônia francesa, para o interior do
continente. Foram freqüentemente os primeiros europeus a entrar em contato com povos indígenas de
regiões que a colonização efetiva (inglesa ou norte-americana) só atingiria no século XIX. [N.T.]
Retornemos, pois, a formas míticas mais francamente americanas, e que os índios
Thompson do vale do rio Fraser ilustram com um alcance e uma riqueza de detalhes que
justificam toda a atenção que seremos levados a lhes dar:
* *
Lévi-Strauss dedica um capítulo de História de Lince a esses intercâmbios de histórias entre
coureurs de bois franceses e caçadores indígenas ao pé do fogo, intitulado "Mitos indígenas, contos
franceses". [N.T.]
ave tão estúpida que as mulheres e crianças conseguirão pegá-la com um
mero bastão com um laço na ponta". Jogou a outra velha no meio dos
troncos caídos e em apodrecimento, e transformou-a em galinha de crista
(ruffed grouse), dizendo-lhe algo que a pudicícia americana do final do
século XIX só ousou imprimir em latim: "et si quando pruris stipite alis
tunso gravida fies". Pouco familiarizados com os manuais confessionais,
só podemos traduzir a fórmula por "e se, quando você estiver no cio, um
tronco de árvore for atingifo por asas (ablativo absoluto), você
engravidará", mas sem entender porque uma observação tão inocente e,
como veremos mais adiante (p. 353), tão conforme aos dados da etologia
animal, pode provocar semelhante discrição.
Seguindo seu caminho, o herói azul de frio e morto de fome recebeu,
finalmente, a hospitalidade de um casal de Aranhas que o vestiram e
almentaram. O marido e a mulher lhe disseram que eram seus avós.
Passavam o tempo todo fiando fibras vegetais curtas e grosseiras
(Apocynum androsaemifolium, cf. Teit 9:497). Na verdade, faltavam-lhes
carne e matéria-prima para seu ofício. Ao que parece, durante sua
estadia junto às Aranhas o herói foi iniciado a todos os seus mistérios.
Ganhou muita sabedoria e matou vários cervídeos para dar a seus
protetores. E transformou alguns de seus pelos púbicos jogados no chão
numa densa cobertura de plantas que dão fibra da melhor qualidade
(Apocynum cannabinum, cf. Teit 9:498). As Aranhas mal sabiam como
agradecer.
Enquanto isso, Coiote, que tinha vestido as roupas e adornos do filho,
se fez passar por ele junto a suas esposas. Só a de pele escura
desconfiou. Coiote deu um jeito de inspecionar as partes íntimas das duas
noras. Ficou com aquela cuja brancura lhe agradou e expulsou a outra,
que sobreviveu graças à caridade das pessoas e logo deu à luz um menino
que já trazia no ventre quando do desaparecimento do marido, que
julgava morto. Quando foi chegando o verão, todos deixaram a aldeia
para caçar e coletar raízes selvagens.
Nosso herói sentia muita falta da terra. As Aranhas fizeram-no descer
dentro de um cesto com tampa amarrado na ponta de uma corda e
avisaram que, quatro vezes seguidas, ele deveria girar sobre si mesmo
sem abrir os olhos quando o cesto fizesse uma parada, primeiro sobre as
nuvens, depois sobre o nevoeiro, o topo das árvores e, finalmente, a
parte de cima das plantas. Teria tocado o solo no momento em que
ouvisse o canto das gralhas ou das cotovias.
O herói aterrissou sobre uma grande pedra chata que marca o centro
do mundo, perto do lugar onde atualmente se encontra a cidade de
Lytton. Partiu para o norte, em busca da família, e como não tinha canoa
para atravessar o rio Fraser, fez uma de cavalinha (Equisetum, cf. Teit
9:510), que afundou assim que ele atingiu a outra margem. A planta
ainda cresce naquele lugar. No caminho que levava a Beta'ni, onde ele
esperava encontrar toda a sua gente, foi ultrapassando a Formiga, o
Besouro, a Lagarta e outros viajantes lentos. Disse à Formiga que ia
acabar se cortando ao meio de tanto apertar a cintura. Essas criaturas lhe
disseram que sua família não estava longe, ele apertou o passo e viu a
esposa que tinha permanecido fiel a ele com o menino. Foi ele que o
reconheceu primeiro. Eles fizeram um acampamento à parte. Coiote e o
pessoal da aldeia não estavam conseguindo matar nada e, só lhes
restando comer raízes, logo começaram a passar fome.
O Corvo acabou descobrindo que o herói e sua mulher viviam na
abundância, enquanto todos os outros passavam fome. Obrigado a dizer
de onde vinha a gordura de cervídeo que seus filhos disputavam,
confessou a origem de suas provisões. Todos foram para a casa do herói,
comprimentá-lo pelo retorno e festejar com sua comida.
Só Coiote, envergonhado de seu comportamento, ficou isolado. O
filho foi ter com ele, dizendo que vinha lhe oferecer um cervídeo que
tinha matado e pendurado numa árvore do outro lado de um rio. Disse
ainda que tinha lá deixado também uma correia de transporte
luxuosamente decorada, mas na verdade não passava das tripas da presa.
Na volta, Coiote, todo contente, quis atravessar o rio. As tripas se
romperam, Coiote largou seu carregamento e caiu na forte corrente que
o arrastou até a confluência com o rio Thompson e depois no rio Fraser,
em que ele deságua. Para não se afogar, Coiote tinha-se transformado em
tábua de madeira flutuante.
Foi dar à terra no estuário, perto de uma barragem de pesca cujas
donas eram duas velhas. Uma delas pegou o pedaço de madeira e
trabalhou-o em forma de recipiente, mas quando tentou utilizá-lo, o
prato devorava os peixes tão depressa que as duas ficaram sem ter o que
comer. Furiosas, jogaram o prato no fogo, onde Coiote se transformou
imediatamente em bebê. Uma das mulheres ficou tocada com o choro do
bebê, pegou-o e adotou-o. O menino cresceu depressa, mas era
insuportável. Durante uma ausência das mulheres, descobriu que atrás da
barragem o rio estave cheio de salmões, peixes que até então ele e os
seus não conheciam. Furou a barragem, e também abriu quatro caixas das
mulheres que elas o tinham proibido de tocar. Das caixas saíram, na
ordem, fumaça, vespas, moscas (salmon-flies, bluebottle-flies, blow-
flies) e uma outra variedade de insetos (meat-bugs) que, desde então, se
multiplicam na estação dos salmões. Conduzidos por Coiote, os peixes
começaram a subir os rios.
Depois de um certo tempo, Coiote sentou na margem para descansar.
Avistou do outro lado do rio três ou quatro moças, virgens dizem alguns,
tomando banho. Chamou-as e ofereceu-lhes espinhas de salmão. A mais
jovem gritou "sim!" e foi repreendida pelas companheiras: "Você não
devia ter respondido!" Coiote mandou-as se alinharem na margem e disse
ainda, conta-se às vezes, que deviam afastar as pernas. Então ele esticou
o pênis, que atravessou o rio, alcançou a penetrou a mais jovem. As
companheiras tiveram dificuldade em arrancá-la do rio, pois ela parecia
muito doente; mas nenhum dos xamãs convocados por seus parentes
conseguiu curá-la.
Coiote foi introduzir os salmões no rio Columbia. Guiou-os em seguida
até a nascente do rio Okanagon e, no caminho de volta, ao longo do rio
Similkameen. Lá ele viu moças se banhando na outra margem, ofereceu-
lhes espinhas de salmão, mas elas recusaram. Disseram que preferiam um
certo pedaço (as cabeças, dizem outras versões, cf. M668a) de cabrito-
montês. Coiote concluiu que não era um povo apreciador de salmão56.
Cortou o rio com uma grande cachoeira impossível de atravessar para os
peixes e multiplicou os cabritos-monteses nas montanhas vizinhas. Por
isso as pessoas dessa região têm de ir até o rio Columbia ou os rios
Thompson e Okanagon para conseguir salmões. Coiote seguiu o curso dos
rios Nicola e Thompson e finalmente voltou para Lytton.
Vestiu-se como um xamã ou, segundo outras versões, fabricou uma
roupa com a palha de uma gramínea (Elymus triticoïdes) para visitar a
aldeia das primeiras moças que tinha encontrado. Acharam que ele era
56
Convém notar que a bacia do rio Similkameen era outrora ocupada por grupos atabascanos.
xamã e puseram a doente sob seus cuidados. Ele se fechou com ela numa
estufa e se pôs a copular, na esperança de que seu pênis se soldasse com
a ponta que tinha ficado na vagina da moça, e que era a causa de sua
doença. Pelos gritos da paciente, todos entenderam o que estava
acontecendo, mas Coiote conseguiu fugir e a moça ficou curada.
Quando Coiote estava no rio Columbia, jogou nele a própria filha, que
virou um rochedo cuja forma lembra a posição dela ao cair, com os
braços e pernas bem afastados.
Coiote realizou muitas outras maravilhas. Metamorfoseou a palha de
Elymus e cerejas selvagens em conchas preciosas, peles de peixe em
salmões, gravetos em arbustos carregados de frutinhas. Certo dia, ele
dispôs os falsos peixes e as falsas frutinhas diante da casa em que Dona
Grizzly estava hibernando, e convidou-a a fazer um festim, primeiro com
as provisões dela e depois com as que ele tinha trazido. Quando todas as
reservas de Dona Grizzly se esgotaram, Coiote se esquivou. No dia
seguinte, na frente da casa, havia apenas peles de peixe encarquilhadas e
ramos secos... (Teit 4:21-29).
Uma outra versão (M667b, Teit 5:205-206), proveniente do cânion do Fraser, omite o
episódio dos filhos artificiais e começa quando o herói já está casado. Os narradores às vezes
substituem a árvore dos filhotes de águia (madeira "crua") por uma falésia abrupta (rocha "crua").
Aqui, em vez de madeira podre, é pedra podre o alimento das velhas cegas. Essa versão se
mostra mais explícita que a outra no episódio do longo pênis de Coiote, explicando que a jovem,
penetrada pelo membro enorme de que não conseguia se desfazer, nem conseguia andar. Suas
companheiras tentaram livrá-la, mas não conseguiram cortar o pênis com facas e pedras afiadas;
para terem sucesso, foi preciso que Coiote as aconselhasse a usar uma planta dos brejos. Um
outro incidente aliás anunciava esse: segundo M667b, Coiote, que participou da festa de
reconciliação (ao contrário do que relata M667a), quis limpar a faca na própria testa, mas virou-a
do lado errado e fez um corte profundo.
M667b explica também como Coiote tornou-se pai de uma filha, depois de ter sido aceito
como genro por Carcaju, que encontrou para os lados do rio Okanagon ou do Similkameen. Em
compensação, faltam os episódios da cura da doente e da visita a Dona Grizzly.
Devemos a Teit outras versões, mais fragmentares, colhidas entre os Thompson dos rios
Nicola e Fraser (M668a-d, Teit 5:296-300). M668a enumera quatro filhos artificiais em vez de
três; o de argila dissolveu-se na água, o de resina derreteu ao sol, o de pedra afundou e o quarto
sobreviveu, porque era de madeira. Ao se despedirem do herói, as Aranhas prestativas deram-lhe
vários presentes: quatro pedras — que ele deveria jogar, uma de cada vez, a cada parada do
cesto na descida —, quatro peças de roupa de couro — casaco, túnica, perneiras e mocassins — e
quatro espécies de raízes ou bulbos comestíveis (das quais uma portulácea, Claytonia sp. e uma
liliácea, Erythronium sp.) que ele espalhou, originando-as na terra. A história prossegue com a
volta e a vingança do herói, o episódio do longo pênis, a repartição dos cabritos e dos salmões, o
casamento de Coiote com a filha de Texugo. Quando ele foi visitar a aldeia de sua vítima, a moça
adoecida, Coiote, usando roupas luxuosíssimas, fingiu não entender a língua local. Chamaram o
Camundongo de rabo curto, que era poliglota, para servir de intérprete, mas Coiote só aceitava
conversar por meio de sinais. Quando ele foi pego com a moça, saiu correndo e deixou as belas
roupas, que se transformaram em palha, gravetos e excremento. M668b conta que Coiote,
disfarçado de xamã, alegou só saber falar kalispel, língua de um grupo salish distante. Perseguido
pelo Colibri, escapou graças a um denso nevoeiro que tinha provocado por magia, rolando no
chão.
Uma terceira versão (M668c) situa no verão o episódio das banhistas. Cada vez que uma
delas aceitava sua oferta de salmão, Coite fazia os peixes subirem o rio e seu pênis
imediatamente o cruzava para penetrar a moça, ondulando na água como uma serpente. Sempre
que sua oferta era recusada, ele barrava o rio com pedras ou o cortava com quedas d'água que
impediam os peixes de passar. Certo dia, quando ele estava levando os salmões por um pequeno
afluente do Columbia, encontrou uma família composta de pai, mãe e duas filhas, que pescavam
peixinhos minúsculos ao pé de uma barragem improvisada. Eles receberam bem Coiote que, em
agradecimento, revelou-lhes a presença de salmões a jusante e ensinou-os a pescá-los. Ele
decretou que, naquele lugar, a pesca seria abundante todos os anos. Coiote pediu as moças em
casamento, foi aceito, e cada uma delas logo deu à luz um bebê, um menino e uma menina,
ambos capazes de andar ao nascerem.
Coiote decidiu partir em viagem levando a mais jovem de suas esposas e a filha. Porém,
assim que chegaram, ele lembrou-se da moça que tinha feito adoecer em Lytton e resolveu ir
visitá-la. Achou que a família estava atrapalhando, então jogou a esposa no Columbia, onde ainda
pode ser vista, transformada em rochedo, com as costas inclinadas e os joelhos saindo da água
que corre por sobre suas coxas e em seguida se junta numa espécie de tanque natural. "Aqui,
decretou ele, haverá um conhecido local de pescaria, e tirarão alimento em abundância do meio
das pernas de minha mulher". Transformou a filha também num rochedo, que hoje se vê na
margem.
M668d descreve Coiote ricamente paramentado como xamã, com cochas dentalia. Nem o
Camundongo de rabo curto, que falava todas as línguas porque tinha tido maridos de várias
tribos, conseguia entendê-lo. Pediram-lhe por meio de sinais para curar a moça. Coiote foi pego
nu copulando com a paciente, saiu correndo e, para grande decepção dos moradores da aldeia, as
luxuosas roupas que ele deixara para trás viraram um monte de palha.
Duas outras versões (M669a,b, Teit 5:301-304) transpõem a história da liberação dos
salmões do Fraser para o Columbia. As quatro misterioras caixas que pertencem às feiticeiras
contêm, respectivamente, três espécies de moscas (blow-flies, sand-flies, horse-flies) e vespas
(M669a); ou moscas, vespas, fumaça e vento (M669b). Conforme M669a, as feiticeiras eram
jovens e Coiote, transformado em bebê e que elas deixaram dormir com elas, aproveitava para
abusar delas durante a noite. Mais tarde, ele se tornou genro de Cervo; depois de sua mulher o
abandonar, ele transformou a filha de ambos em rochedo no meio do Columbia, e deu-lhe o
mesmo aspecto e as mesmas propriedades que M668c reserva para sua esposa.
Devemos a Hill-Tout (10:551-561, M670a) uma versão tão rica quanto M667a, da qual só
apontaremos as diferenças. O coiote Snikia'p fez sucessivamente três filhos, de resina, de jade e
de fibras vegetais. Só o último sobreviveu. O pai levou-o consigo para visitar vizinhos poderosos e
temíveis que, como ele explicou, tentariam destruir a ambos. Sabendo as precauções a serem
tomadas, o jovem herói conseguiu escapar do afogamento e depois, junto com o pai, de um
grande incêndio; neste último caso, deitando-se num caminho limpo que o fogo não atingiu por
falta de matéria combustível. Junto a anfitriões mais hospitaleiros, ele se casou com as filhas de
Águia e de Pato. Uma tinha os cabelos e a tez vermelhos, a outra, pretos. O herói viajou muito e
tornou-se um grande caçador, dono de roupas luxuosas e conchas preciosas.
O episódio do desaninhador segue como nas outras versões, mas esta afirma que Coiote
queria as belas roupas do filho tanto quanto suas esposas, e que o herói, nu e tiritando no alto da
árvore, lutava contra o frio cobrindo o corpo com sua longa cabeleira. Voltaremos a esse detalhe
(infra:347). No céu, ele primeiro ouviu, e depois viu, duas velhas cegas que socavam no pilão
madeira de pinheiro para comer a polpa. Elas se transformam em tetraonídeos, aqui willow-
grouse (talvez o Lagópode dos salgueiros, Lagopus sp.) e black-grouse (o Tetraz escuro,
Dendragapus obscurus), o que lhea valerá ao menos ver a própria comida, em troca de se
deixarem facilmente pegar pelos caçadores, na falta de presas maiores. Depois, o herói, ainda
nu, arrancou flores bonitas que lhe agradavam e assim furou a abóbada celeste. Em seguida
chegou à casa das Aranhas prestativas, muito ocupadas fiando fibra de spat'tzin (Asclepias
speciosa segundo Hill-Tout, mas, cf. Teit 9:498, spa'tsen, Apocynum cannabinum)57. Como essa
fibra é a de melhor qualidade, para agradecer a seus protetores, o herói não pode, como em
M667a, criar uma outra que lhe seja preferível. Por isso ele se contenta em fazer crescer, graças
a seus pelos púbicos, campos mais próximos do que aqueles aonde as Aranhas tinham de ir para
colhê-la. Provido de carne e de cobertas tecidas em pelo de cabra, e munido de um punhal de
pedra, o herói começou a descida, interrompida três vezes pela travessia dos mundos
intermediários, o país das nuvens, o país da água, de onde vem a chuva, e o país do nevoeiro.
57
Teit (9:470, 498, 513) não desconhece a Asclepias speciosa que, segundo ele, os Thompson
chamavam de /spetsenêlp, spetsenilp/, nome que o grupo Utãmqt — o que se encontrava ao sul de Lytton,
no baixo Fraser — estenderia à Apocynum androsaemifolium. Embora os gêneros sejam distintos, suas flores
têm em comum a propriedade de reter pela trompa insetos indesejáveis, cujos cadáveres ficam pendurados
(Fournier: 865 e 867, a respeito desses dois gêneros originários da América do Norte introduzidos na França
no século XVII). De modo que poderia haver uma relação significativa entre a destruição dos insetos por
plantas têxteis, símbolos da cultura, e sua proliferação, concebida de certo modo como o preço a ser pago
pela humanidade, no plano da natureza, para obter salmões. Como enfatiza M670a: "Ele (Coiote) estava
todo feliz e tinha boa consciência; graças a ele, os salmões agora subiam os rios e as populações instaladas a
Mas como o cesto não podia se mover, por causa do vento que soprava desses mundos, a esposa
de Aranha escarificou as próprias coxas e pernas; o sangue virou neve e seu peso sobre o cesto o
fez descer58.
Depois de aterrissar perto de Lytton e deixar seu punhal enfiado numa árvore (onde ainda
pode ser visto, na forma de uma saliência que atravessa o tronco) para viajar mais leve, o herói
seguiu muitas pegadas que iam na mesma direção. E encontrou duas velhas, que caminhavam
agitando à esquerda e à direita galhos de pinheiro. Intrigado, perguntou a elas porque faziam
aquilo, e elas lhe explicaram que era uma marca de simpatia por uma viúva inconsolável, na qual
o herói reconheceu sua esposa Águia. Ele revelou sua identidade, mas as mulheres disseram que
não podiam vê-lo, embora não fossem cegas. Ele fez passes de magia diante dos olhos delas e
tornou-se visível. "Vocês fizeram mal — disse-lhes ele — em caminhar desse jeito, mas irei dar-
lhes uma leve punição, já que era por minha mulher". E transformou-as em larvas de mosca
(maggot). Vem em seguida a cena do reencontro, durante a qual o herói fez jorrar uma fonte
para que ele e sua mulher pudessem lavar o rosto coberto de lágrimas.
Apesar de o casal ter-se instalado num local isolado, e de o herói ter proibido as mulheres
transformadas em larvas de anunciar seu retorno, Corvo, que era serviçal da esposa infiel,
descobriu a presença do herói e contou a todos. Ele concordou em se apresentar; no dia seguinte,
ofereceu um banquete aos moradores da aldeia e distribuiu as cobertas que tinha trazido. Foi
proclamado chefe e tornou-se célebre. Mas continuava na intenção de se vingar do pai e
conseguiu, como nas outras versões. Segue o episódio da liberação dos salmões e da abertura das
quatro caixas, que contêm o vento, a fumaça, as moscas e as vespas. Essa versão não motiva o
episódio da mulher doente e de sua suposta cura, pois falta a história do longo pênis, mas
acrescenta que Coiote, para ser perdoado por sua impostura, argumentou que tinha dado aos
humanos os salmões e a brisa fresca que hoje sobe pelo vale do Fraser e ameniza o intenso calor.
Para constar, mencionaremos duas curtas versões antigas (M670b, Dawson:30-31; M670c, Boas
13:17-18), ambas provenientes dos Thompson. M670b designa os quatro patamares que o herói
atravessa no transcurso de sua descida do céu como mundo do molhado, mundo do frio, mundo
do nevoeiro e mundo terrestre.
Citaremos, finalmente, a versão lilloet (M671, Teit 2:306-309), na qual o episódio do
roubo recíproco de alimento precede o do desaninhador. No começo dela, Coiote faz para si
quatro filhos artificiais, de argila, de resina, de pedra e de casca do álamo balsâmico (Populus
montante poderiam obtê-los. Uma única desvantagem temperava sua satisfação: a fumaça e as moscas são
incômodas, as vespas mais ainda... " (Hill-Tout 10:560; cf. supra:332 e 335).
58
Comparar com Cline (:159): "(Entre os Okanagon meridionais) uma técnica mágica para acabar com
o mau tempo consistia em escarificar a própria cabeça e deixar o sangue escorrer na neve... (até que) o
vento sul trouxesse a chuva".
tacamahacca, Teit 9:497) e o relato termina com a vingança do herói, com Coiote morrendo
afogado num rio torrencial; e não poderá, portanto, liberar os salmões.
*
* *
No extremo sul da área salish, os Cowlitz (M672, Adamson:243-249) contam a história de
modo bastante diferente. As esposas do herói são quatro, duas "pretas" e duas "brancas", sendo
que estas últimas, infiéis, serão transformadas em camundongos. Como em M1, o herói se vinga
provocando chuva e inundação. Levado pelas águas que sobem, Coiote tenta se agarrar aos galhos
e, conforme eles se mostram acessíveis ou não, designa-lhes lugares específicos na hierarquia das
madeiras (cf. Chinook, M618, 620; supra:255). Depois de liberar os salmões, Coiote não sabe
como pegá-los, e suas irmãs-excremento (supra:276) lhe ensinam as técnicas de pesca e a arte
culinária. Segue o episódio do roubo recíproco de alimento (supra:288). Depois de se vingar de
seus adversários, Coiote transforma duas leitas de salmão em moças (supra:276) e as nomeia suas
filhas, mas logo depois tenta seduzi-las. Elas lhe dão uma sova e o abandonam. Mais tarde, elas
se casam com estrangeiros e dão origem às gentes do rio Cowlitz, que têm a pele clara, como as
fundadoras de sua linhagem.
É interessante que, apesar de suas afinidades com as versões sahaptin limítrofes que já
discutimos, M672 conclua com a tentativa incestuosa de Coiote com suas filhas postiças,
invertendo os filhos postiços que as versões thompson situam no começo. Na verdade, vários
mitos salish do baixo Fraser e da costa (Chehalis, M673, Boas 13:37-40; Comox, M674, ibid.:65-68;
Bella-Coola, M675, ibid.:262-263) preservam o motivo da visita ao céu e do encontro com as
velhas cegas, mas atribuem-no a um herói que desejava obter uma esposa celeste, filha do sol
segundo M673, sendo que o herói nascera de um casal de irmãos incestuosos. Consideraremos
mais adiante essa questão (infra:520).
Os Siciatl, que são Salish da costa, também intitulam "mito do sol" sua versão da história
do desaninhador, que transformam de outro modo:
O autor a quem devemos essa versão considera, não sem alguma probabilidade, que essa
narrativa tão imperfeita resulte de um empréstimo feito pelos Siciatl dos Thompson; mas não se
questiona quanto às alterações introduzidas. Contudo, ele mesmo fornece a provável razão delas,
ao notar algures (Hill-Tout 2:316) que, nessa região, só se podia pescar salmão em território
chehalis59. As tribos costeiras, entre as quais os Siciatl que ele menciona expressamente a esse
respeito, invadiam os Chehalis na época da pesca, e às vezes surgiam conflitos sangrentos.
Portanto, se os Siciatl não tinham salmão, não podiam atribuir sua liberação a um de seus heróis
culturais; e se o fizessem, tal liberação não poderia ocorrer na terra, e sim no céu. Essa inversão
básica certamente determinou todas as outras: vingança do pai precedendo sua perseguição,
visita do pai às damas do rio sem liberação dos salmões e descoberta deles pelo filho (que os
encontra, mas não os libera), transformação do pelo em rede de pesca em vez de plantas
têxteis... Esse mito deve, portanto, ser aproximado daqueles estudados no volume anterior
(OMM:219-224) nos quais tínhamos explicado pela ausência empírica de um animal, real alhures,
ao nível de criatura celeste e sobrenatural.
Com os Salish de Puget Sound, voltamos a versões mais clássicas. Não nos deteremos nas
versões colhidas ao sul por Ballard, que na verdade são klikitat, sahaptin portanto (Ballard 1:144-
150; cf. p. 147 n. 160); elas não contêm o episódio da visita ao céu e conseqüentemente não
interessam para a presente discussão. Mas eis uma versão autenticamente salish, proveniente do
nordeste da mesma região:
59
Entenda-se os Chehalis do baixo Fraser, na Colúmbia Britânica, cujo nome Hill-Tout transcreve
como "Stseelis", e Swanton (8), "Stalo". Eles têm uma homônima, outra tribo salish da costa do estado de
Washington, cujos mitos também utilizamos.
No tempo em que os animais não se distinguiam dos homens, havia
dois amigos, Raposa e Vison, que passavam o tempo todo pregando peças
um no outro. Certo dia, eles estavam viajando juntos, quando Vison se
afastou, a pretexto de reconhecer o terreno. Urinou num córrego e
transformou sua urina em truta. Depois, chamou Raposa, sempre
esfomeado, que se precipitou sobre o que esperava ser uma boa presa.
Logo depois de comer o peixe, Raposa sentiu-se mal e desconfiou que
estava grávido.
Suas irmãs ou filhas-excremento confirmaram suas supeitas e
revelaram-lhe a causa. Logo ele deu à luz um filho que cresceu depressa
e tornou-se bom caçador. Este casou-se com duas mulheres. Uma era um
pato pequeno e gorducho chamado butterball (Bucephala albeola?), que
ele amava muito, e a outra uma ave de espécie indeterminada que não
lhe agradava nada. Raposa cobiçava as mulheres do filho e levou-o até
uma árvore onde havia dois pássaros brancos empoleirados. O herói se
despiu completamente e subiu. Acabou chegando ao céu e os falsos
pássaros, que eram na verdade as filhas-excremento, voltaram para
dentro do corpo de Raposa.
Este vestiu as roupas do filho e usurpou-lhe a identidade. Só a
segunda mulher se deixou enganar. Raposa levantou acampamento e
partiu com sua conquista, enquanto a Pata os seguia chorando a morte do
esposo.
Enquanto isso, o herói errava pelo céu sem encontrar vivalma. Chegou
finalmente à casa de um velho peludo e taciturno que fabricava redes de
pesca. O herói se apresentou e ficou sabendo que seu anfitrião era uma
Aranha que de bom grado o mandaria de volta para a terra. Mas ele teria
de atravessar dois mundos intermediários, e de romper esses patamares
rolando sobre si mesmo até que o solo desgastado cedesse. Fazendo isso,
o herói perdeu todos os cabelos. Quando chegou à terra, onde fazia mais
calor do que no céu, não se esqueceu de amarrar na corda as quatro
peles curtidas que tinha prometido a Aranha como remuneração.
O herói encontrou o local de sua aldeia deserto. Ainda
completamente nu, e ainda por cima careca, seguiu os rastros dos seus e
alcançou primeiro a esposa que tinha-se mantido fiel. As correias de
transporte de seu fardo se arrastavam pelo chão. Ele pisou nelas várias
vezes e, a cada vez, a mulher tinha um sobressalto. Finalmente, ela
reconheceu o marido e, magicamente, fez crescer novamente os seus
cabelos.
Seguindo as instruções do herói, ela o escondeu em seu cesto, chegou
ao acampamento e disse que queria dormir com Raposa. O herói apareceu
de repente e recusou as roupas que o pai queria lhe devolver. Mandou o
pai junto com a esposa infiel buscar a caça, e deu um jeito para que a
carne se transformasse em madeira podre e para que a correia de
transporte se rompesse. Os culpados, enganados, tentaram atravessar um
rio a nado e a corrente os levou. A mulher desapareceu, mas Coiote
conseguiu chegar à margem e consultou suas filhas-excremento. Elas lhe
revelaram a presença, a jusante, das damas witlwitl, donas dos salmões
(cf. Ballard 1:146, witsowits, espécie de frango d'água). Mudado em
prancha de madeira, Raposa deixou-se levar até lá. As mulheres quiseram
utilizar o prato, mas ele devorava os salmões cozidos antes delas. Por isso
elas o jogaram fora, ele se transformou em bebê e disse que era o
irmãozinho delas. Certo dia, enquanto as mulheres, como de costume,
tinham ido procurar bulbos comestíveis (Indian potatoes: Claytonia),
Raposa comeu os salmões delas e consultou suas filhas-excremento, que o
aconselharam a romper a barragem, para que os salmões pudessem subir
o rio e as pessoas a montante, especialmente uma mulher e sua filha, não
mais passassem fome. Mas as donas dos salmões os defenderiam com
brio. Raposa, que era vulnerável na cabeça e no ânus, deveria proteger
esses dois pontos sensíveis com cestos.
Raposa venceu as feiticeiras e subiu orgulhosamente o rio conduzindo
os peixes. Chegou à casa da mulher com a filha, de que lhe tinham falado
suas conselheiras, e fingiu que só sabia se expressar em yakima (língua
sahaptin da região montanhosa a leste de Puget Sound), pois queria que
pensassem que ele era um grande chefe de um povo exótico. Encantada
com seu porte e não menos com os salmões que ele trazia, a mulher deu-
lhe a filha, apesar da diferença de idade. Ao cabo de alguns dias, os
salmões começaram a rarear e a jovem esposa abandonou Raposa com a
filhinha que acabara de dar à luz. Ela cresceu depressa, o chefe dos
Cabritos a pediu para o filho e Raposa a deixou ir para as montanhas
(onde vivem os cabritos) com o marido.
Como ele estava entediado sozinho, resolveu ir visitá-la. Fez-se passar
por grande chefe junto aos Cabritos, que eram uma raça de senhores.
Esfomeado como sempre, teve a idéia de comer os cueiros do neto, que
eram feitos de gordura fina. "Está sujo, cheio de xixi", disse a mãe. Mas
Raposa alegou que apenas fingia estar comendo os cueiros, em
demonstração de afeto pelo bebê, e para mostrar que não tinha nojo de
suas evacuações. A filha teve vergonha dele.
Raposa entendeu que era melhor partir e sumiu na noite, levando um
malhete de pedra. Achava que estava bem longe, quando deu de cara
com a filha, que o acusou de ladrão. Pois ele tinha girado em círculos
dentro da casa a noite toda. Ao amanhecer, a filha o expulsou de vez.
Raposa em seguida perdeu os olhos, numa competição ridícula (cf.
M375). Para recuperá-los, fez-se passar por uma velha chamada Doença,
cuja pele vestiu depois de matá-la. Disfarçado e alegando a fraqueza da
idade, pediu às netas da vítima para o carregarem nas costas.
Finalmente, retomou seus olhos dos aldeões que os exibiam e fugiu
provocando um denso nevoeiro. Resolveu voltar para o lugar de onde
viera e não mais tentar pregar peças (Haeberlin 1:399-411).
Depois desse mito, que curiosamente junta três temas que também estão presentes no
Chaco (Raposa fica doente por causa do pseudo-alimento oferecido por seu companheiro
demiurgo [cf. M210, MC:81]; o demiurgo grávido [cf. M532, supra:34]; e sua vã tentativa de
copular por trás com a mulher que o carrega nas costas [cf. M218, MC:92])60, convém terminar
essa revista dos Salish da costa com a breve evocação das formas vestigiais do mesmo mito que se
encontram entre os Tillamook, ramo da família lingüística salish isolado na costa, bem ao sul do
60
Em favor dessa aproximação, note-se que essa última aventura do enganador envolve, segundo
M218, a filha do Sol. Bem, o episódio de M677 em que ele gira em círculos a noite toda na casa dos cabritos-
monteses, achando que está fugindo com o que roubou, constitui a contrapartida terrestre, se não
subterrânea, de mitos dos Nez Percé em que Coiote, que subiu ao céu, comete o mesmo erro ao tentar fugir
da casa de Lua, um canibal (enquanto que os cabritos são comida para os homens) que ele acaba de matar,
ou cujo filho matou (Boas 4:173-174, 186-187). A discussão desse episódio se encaixaria melhor num outro
contexto, ao qual já aludimos (supra:322 n.1, 329) e que deixaremos de lado, pelas razões já mencionadas.
Sobre Coiote grávido, cf. Adamson:264; sobre Coiote copulando por trás: ibid.:253; Jacobs 1:110, 209-210;
2, I:90-91.
estuário do Columbia (M678, E.D. Jacobs:139-144). A história do desaninhador ali aparece numa
forma reconhecível, nas aventuras do enganador Vento-Sul que deseja se vingar de um
personagem do qual insiste — não obstante suas advertências — em pegar um cinturão feito de
duas cobras, que por pouco não o asfixia e devora. O interesse dessa transformação reside no
fato de que já encontramos (supra:251) e voltaremos a encontrar (infra:393) Coiote emprestando
um longo pênis que se volta imediatamente contra ele, em relação ao qual o cinturão de cobras
exibe uma evidente simetria. Bem, o enganador se vinga com o mesmo procedimento de que se
vale algures para livrar-se do filho e tomar-lhe as esposas, a saber, metaforicamente, tomar-lhe
emprestado um pênis que se pode supor — já que Coiote costuma ser descrito como um velho —
mais imponente do que o dele. O visitante forçado do céu, por sua vez, vinga-se fazendo com que
Vento-Sul seja raptado por uma baleia. Ele escapa e mora algum tempo com um Serpente
pescador que lhe ensina os ritos do preparo e cozimento do salmão. Depois, chega ao Columbia,
transforma um desconhecido em rochedo, e é engolido por um monstro aquático, sendo libertado
pelos donos das brocas de fogo, que provocam um incêndio no estômago do monstro. Sem saber
como nem porque, Vento-Sul se vê grávido e dá à luz uma filha, da qual tenta se livrar repetidas
vezes, mas ela sempre ressuscita. Ele acaba concordando em poupá-la, e a encarrega de espalhar
as doenças (cf. a velha avó Doença que mata Raposa em M677). Certo dia, ele pesca um salmão e
transforma as ovas em duas gêmeas, que adota. Elas crescem e, como insistem em remar em
ziguezague ele fica enfurecido e as chama de "minhas mulheres" em vez de "minhas filhas" (cf.
M672). Ofendidas, elas o abandonam e em seguida roubam o menino Lua, cuja gesta começa aí
(cf. M375).
E o que acontece com nossa história nos grupos salish que, no interior, ocupam uma
posição simétrica à das gentes da costa em relação aos Thompson? Os Shuswap conhecem o mito
do desaninhador, mas numa forma enfraquecida, que confirma nossa sensação primeira de que o
verdadeiro centro de gravidade, por assim dizer, das formas setentrionais do mito deve ser
buscado entre os Thompson.
Segundo os Shuswap do vale do Fraser (M679a, Teit 1:622-623), Coiote vivia antigamente
na casa de seu filho ou sobrinho Katlla'llst, "Três Pedras", que tinha duas mulheres, uma jovem e
a outra velha. Para conseguir ficar com elas, Coiote mandou Três Pedras ir ao topo de um
penhasco para desaninhar filhotes de águia, alegando que ele mesmo estava velho e fraco demais
para isso. Em nome de um pretenso costume ancestral, obrigou o rapaz a vestir suas mais belas
roupas, e depois a tirá-las antes de começar a escalada. Depois Coiote fez subir o rochedo e, com
o rapaz preso numa cavidade, sem poder descer nem subir, vestiu as roupas e esticou a pele,
para parecer jovem e poder tomar o lugar do filho.
Duas mulheres Roedores (Bush-tailed rat, Mouse), que colhiam cânhamo em baixo,
ouviram os lamentos do herói e, por meio de encantamentos mágicos, reduziram o tamanho do
rochedo. O herói agradeceu fazendo surgir um grande campo de cânhamo excelente, oriundo de
seus pelos púbicos. Ao retornar ao acampamento, Três Pedras retomou suas belas roupas e a
esposa mais jovem ao pai. Deixou-lhe a velha e abandonou-os para sempre.
Uma outra versão shuswap, proveniente do curso superior do rio Thompson (M679b, Teit
1:737-738), atribui uma esposa a cada um dos homens. O tio se apaixona pela mulher do
sobrinho, livra-se dele mandando-o desaninhar águias e toma o seu lugar junto da moça. As duas
criaturas prestativas chamam-se aqui Dona Aranha e Dona Camundongo. O herói agradece-lhes
obtendo para elas cânhamo de melhor qualidade do que o que elas possuíam.
Tais versões são fracas em vários aspectos: prendem o herói no topo de um penhasco ou
até na metade dele, em vez de despachá-lo para o céu; fazem a ajuda vir de baixo e não de
cima; e, finalmente, o herói se separa do pai ou tio, e até lhe deixa uma de suas esposas, em vez
de vingar-se dele.
O que não significa que os Shuswap desconheçam os outros episódios que os Thompson e
os grupos da costa articulam na forma de uma narrativa mais rica e coerente. Porém, como
também fazem os Lilloet (M671) em menor grau, transpõem tais episódios para um outro
contexto (M680a,b, Teit 1:627-630 e 739-741), bem conhecido pelos mitógrafos norte-americanos
pela rubrica do "anfitrião desajeitado" (bungling host), que já encontramos várias vezes em nosso
caminho (CC:180, 291 n.1; MC:68-69), quando sublinhamos o caráter altamente sagrado que, para
a maioria das tribos norte-americanas, possuem essas narrativas de tom burlesco e muitas vezes
escatológico. Ora, é fácil compreender as razões disso, se as desventuras do anfitrião desajeitado
constituem proposições simétricas que invertem o ciclo dos trabalhos do demiurgo. Este fez as
criaturas animadas ou inanimadas passarem do que eram para o que passaram a ser. O
enganador, ao contrário, como anfitrião desajeitado de uma série de criaturas, insiste em imitá-
las como elas ainda eram nos tempos míticos, mas não podem continuar sendo. E assim ele tenta
generalizar para outras espécies, e perpetuar no tempo, comportamentos ou modos aberrantes e,
por conseguinte, faz como se privilégios, exceções ou anomalias pudessem vir a ser a regra,
contrariamente ao demiurgo, cujo papel é por fim às singularidades e promulgar regras
universalmente aplicáveis a cada espécie e a cada categoria.
A versão lilloet (M671) e as versões shuswap (M680a,b) ilustram admiravelmente a
simetria que prevalece entre os dois grupos de mitos. Antes ou depois das diversas aventuras ao
longo das quais Coiote fracassa ao tentar imitar técnicas extravagantes de produção que, como
lhe explica cada um dos que ele quer tomar por modelo, "lhe são próprias e como que de sua
exclusiva propriedade", ocorre um episódio que corresponde exatamente ao das velhas cegas.
Esse episódio sucede na terra, e não no céu. Coiote primeiro engana, e depois cega, criancinhas
cujas mães são descritas como tetraonídeos, em vez de enganar e depois devolver a visão a duas
velhas cegas que logo irão virar aves dessa família. Aquelas se vingam, ao passo que — pelo
menos em algumas versões — estas se mostram prestativas... E essa vingança, motivada pelos
maus tratos infligidos por Coiote aos filhos das tetrazes ou galinhas do mato é idêntica à que o
herói, filho de Coiote, na história do desaninhador, perpetra contra o pai devido aos maus tratos
que ele lhe infligiu. De um lado, mães que têm queixas por causa de seus filhos, do outro, um
filho que tem queixas por causa do pai, ambos conseguem que o culpado — que é sempre Coiote
— caia na água61. A partir daí, os dois ciclos evoluem do mesmo modo: liberação e repartição dos
salmões, disposição do leito dos rios, Dona Grizzly ridicularizada, ou episódio do longo pênis
(M680b), que M680a transforma em "pênis curto" (pois Coiote nele copula na forma de um bebê),
enquanto consolida esse episódio com o da liberação dos salmões. De onde uma série de
questões, que convém agora abordar.
II
AS DUAS CEGAS
Apresentamos uma enxurrada de material mítico que, embora certamente não esgote as
variantes salish da história do desaninhador, já permite ter uma idéia de sua economia interna e
de sua distribuição. Várias observações preliminares devem ser feitas a respeito dessas duas
questões.
Tanto as versões do interior quanto as da costa atribuem quatro características ao herói:
é senhor da caça, e portanto também da carne; senhor dos belos adornos e luxuosas roupas;
61
Sobre esse episódio, bastante popular nos mitos do noroeste da América do Norte, que já
senhor do fogo que aquece; e, finalmente, senhor de uma água destrutiva, elemento que ativa
para se vingar. Como senhor do fogo (que só ele sabe fazer ou manter) e como senhor da chuva e
da tempestade, o herói dos mitos salish lembra seu congênere sul-americano, tal como nos foi
apresentado no mito bororo de referência. Essa é uma primeira semelhança, que leva
imediatamente a voltar a atenção para uma segunda, a saber, o papel de rolha que M1 e M667a
atribuem a tubérculos ou bulbos comestíveis. O herói de M1, inicialmente perdido no alto de uma
chapada e vítima de urubus que lhe comem o traseiro, ao descer de volta ao chão não consegue
manter o alimento que ingere, até ter a idéia de tapar o ânus aberto com uma pasta de
tubérculos comestíveis.
Já apontamos a freqüência desse motivo no noroeste da América do Norte (supra:303). O
mito thompson (M667a) que agora nos serve de referência o inverte: ao arrancar algo que toma
por bulbos comestíveis, e de que não pode se alimentar, o herói perfura a abóbada celeste e o
vento da terra é tragado pelos orifícios. Podemos afirmar que se trata de uma inversão porque as
pequenas tribos costeiras do Oregon, cujos mitos apresentam especial interesse devido à sua
posição isolada, favorável à preservação de temas arcaicos, conjugam a forma reta e a forma
invertida do motivo. Os Coos contam que o enganador, privado de intestinos e não podendo reter
os frutos que comia, tentou tapar o ânus com raízes de pastinaca selvagem (Jacobs 6:192; cf.
infra:506); mas foi um caule oco, também de pastinaca selvagem, que o demiurgo utilizou,
segundo os Tillamook, para evacuar um alimento nocivo que apenas fingia comer (E.D. Jacobs:9-
10). Qualquer que seja a planta chamada de pastinaca selvagem nessa região da América, e que
pode ser um Sium, um Heracleum ou um Lomatium (= Peucedanum), sempre se trata de uma
umbelífera cujo protótipo sagrado é, na costa e até os Kwakiutl, o Peucedanum. Na família das
portuláceas, uma relação análoga se verifica entre Claytonia e Lewisia rediviva, que os Flathead,
representantes mais orientais da família salish no interior, consideravam sagrada (A. P.
Merriam:115). Parece surgir aí um sistema de plantas, diretamente representadas por seu
protótipo ou por variantes combinatórias que ocupam um lugar mais modesto no seio do gênero
ou da família. Tratamos disso em nosso curso de 1968-1969; retomá-lo sobrecarregaria
desnecessariamente nossa discussão aqui.
Outra aproximação aparece, esta própria da América do Norte, entre os mitos salish que
exilam o desaninhador no céu, e os do ciclo chamado de do marido-estrela, ao qual o volume
anterior foi em grande parte dedicado. Em ambos os casos, um herói terrestre, homem ou
mulher, visita o céu e, segundo as versões algonquinas (M437,438), desce de volta à terra na
ponta de uma corda, graças a protetores sobrenaturais que lhe recomendam manter os olhos
fechados até que um pássaro de uma espécie expressamente designada seja ouvido. O herói
salish aterrissa sobre uma laje de pedra que marca o centro do mundo, termo que deve portanto
encontramos, cf. supra:288. Para outros exemplos, ver Boas 13:17, 57, 89, 114 e Hill-Tout 10:547.
ser tomado numa acepção espacial; pois bem, pelo menos uma versão ojibwa do mito do marido-
estrela precisa que o buraco da abóbada celeste pelo qual as esposas dos astros desceram de
volta à terra correspondia ao lugar das Plêiades, cuja culminação no começo da noite marca a
mudança de ano; ou seja, um centro do mundo também, mas dessa vez numa acepção temporal
(M444b, cf. OMM:202). A importância dessas confluências se revelará quando discutirmos as
versões salish e vizinhas do ciclo do marido-estrela juntamente com as do desaninhador em que o
herói desposa uma criatura celeste (infra:505-526).
Por ora, preferimos concentrar a atenção na região mais restrita que estamos
percorrendo desde o início deste livro, mas agora considerada em sua totalidade. Com as versões
thompson e lilloet, chegamos mais perto do que nunca, apesar da distância, das dos Klamath e
dos Modoc, de que partiu nossa investigação. Em ambos os casos, um demiurgo, que é ao mesmo
tempo um enganador, trata de ter um filho por meios próprios: ou o incorpora para novamente
dá-lo à luz depois de sua mãe ter morrido numa fogueira (entre os Klamath-Modoc e entre os
Salish mais próximos, cf. M565); ou, depois de várias tentativas, consegue uma criança viável
(M667a, M668a, M670a, M671); ou ainda o futuro pai é engravidado magicamente (M532-533,
M677, M678). Entre os Klamath e os Modoc, bem como entre vários grupos salish da costa, a
criança foi gerada por um casamento incestuoso, conjunção abusiva que é redobrada, agravada
ou substituída, conforme o caso, por outra, de ordem genital em vez de sexual, e que diz
respeito a um homem só.
Vimos que o nome do herói klamath-modoc, Aishísh, significa "o confinado" e evoca sua
inclusão temporária no corpo do demiurgo. Os Salish também lhe dão um nome, Tô'rtôsemstem
em coeur d'alêne (supra:325), Nli'ksentem, Tl'ikse'mtem, N'tlikcu'mtum ou N-kik-sam-tam em
thompson, termos que, segundo nossas fontes (Boas 4:120 n.1; 13:18; Teit 4:103 n. 43; Hill-Tout
10:554 n. 1), significam "levantado, erguido, elevado" ou "o escalador", e remetem à desventura
do herói despachado para o céu pelo pai. De modo que os dois nomes ou famílias de nomes se
correspondem simetricamente: um evoca a conjunção com o corpo do pai, o outro a disjunção em
relação ao mesmo pai, de quem o herói se vê, em dois momentos cruciais da narrativa,
abusivamente aproximado ou afastado.
Já fica claro, pela simetria onomástica, que no seio do vasto grupo panamericano que é o
mito do desaninhador de pássaros, as versões que inventariamos desde a bacia do rio Klamath até
a do Fraser constituem um sub-conjunto, com características de um grupo fechado. A impressão é
reforçada quando se nota, em ambos os casos, a recorrência de uma seqüência iniciática
(supra:58, 60, 101 e M667a, p. 331). É definitivamente confirmada quando se constata que
somente as versões salish permitem resolver um enigma próprio do ciclo de Dona Mergulhão que,
como mostramos, transforma o do desaninhador.
No estudo que dedicou ao primeiro desses ciclos e que discutimos (supra:52-53),
Demetracopoulou se interroga quanto à recorrência, em quase todas as versões, de um detalhe
cuja aparência gratuita intriga: a heroína incestuosa descobre o irmão mais novo, que os pais
mantinham escondido, graças a um cabelo que encontra, que é mais longo do que os de todos os
outros membros da família. Em desespero de causa, nossa autora decreta que o detalhe é
arbitrário: "nem explica nem justifica a série de episódios de que faz parte"
(Demetracopoulou:121).
Ora, as versões setentrionais do mito do desaninhador também insistem na longa
cabeleira do herói, e dão a ela uma função pertinente na narrativa. M670a, por exemplo,
descreve o herói gelado no topo da árvore usando os longos cabelos para cobrir o corpo como um
casaco, para se proteger do frio. M677, em compensação, faz com que ele os perca, e volte para
a terra careca; o primeiro cuidado de sua esposa fiel será restituir-lhe a cabeleira perdida. Entre
os Chilcotin, índios de língua atabascana vizinhos dos Lilloet e dos Shuswap, o mito do
desaninhador se enfraquece como antes de desaparecer, mas o incidente é cuidadosamente
preservado: o herói entrelaça as penas encontradas no ninho e seus próprios cabelos para
improvisar um casaco contra o frio (M681, Farrand 2:29-30). O que pode isso querer dizer, a não
ser que o herói, sempre descrito como dono de belas roupas, conserva em seguida sua conotação
ligada ao vestuário ainda que, no estado de nudez em que se encontra no topo da árvore ou do
penhasco, só esteja vestido sub specie naturae? A longa cabeleira, vestimenta natural, opõe-se
assim às roupas manufaturadas como cru se opõe a cozido, confirmando mais uma vez a passagem
do código alimentar ao código do vestuário, para a qual temos constantemente chamado a
atenção. Entretanto, vimos que algo análogo já transparecia em M1, em que o herói colocado na
mesma situação começa caçando lagartos para aplacar a fome e prende o excedente no cinturão
e nas braçadeiras. Logo os bichos começam a apodrecer, e ei-lo vestido de podridão, também ela
atinente à ordem natural, e que apresenta uma indubitável analogia com a calvície que afeta o
herói de M677, uma condição que, como mostramos há tempos (OMM:149-150), o pensamento
americano costuma associar ao apodrecimento.
Tudo isso também já existia, implicitamente, nos mitos dos Klamath e dos Modoc. Não
apenas porque o herói neles inventa os ornamentos de espinhos de porco-espinho, peças
marcantes do vestuário, assim como seu homólogo dos mitos salish cria as fibras têxteis (também
para recompensar as criaturas que o fizeram descer de volta à terra), mas porque esses mitos
meridionais se empenham em insistir na cabeleira excepcionalmente longa de seu herói. Segundo
M539 (Curtin 1:95-117), os cabelos do menino escondido vão até o chão, e M543 (ibid.:28) contém
uma observação reveladora, no sentido de opor como termos homogêneos de um par, a usurpação
das belas roupas e a abundância de caça: "O velho Kumush (=Kmúkamch) vive com Isis (=Aishísh)
e, às vezes, finge ser ele mesmo Isis. Veste as roupas de Isis e tenta cantar como ele. Mas não há
como se enganar, pois quando Isis está presente, sempre há carne fresca de cervídeo pendurada
nas árvores em torno da casa". Conseqüentemente, é normal que, no ciclo de Dona Mergulhão,
simétrico ao do desaninhador, um rapaz ricamente vestido seja afastado pela família dos desejos
anti-sociais de sua irmã, que só podem se manifestar abertamente quando a contrapartida
natural da conotação vestuária do herói — sua longa cabeleira — revela sua presença62.
*
* *
Passemos agora à consideração do mito salish em detalhes. As versões salish mais ricas
começam com as tentativas do enganador de fabricar um filho, em número de três ou quatro,
conforme o caso:
M667a: argila resina pedra
Thompson M668a: argila resina pedra madeira
M670a: resina pedra fibras vegetais
Lilloet M671: argila resina pedra casca de
álamo
[p. 349]
Se desconsiderarmos as ligeiras diferenças na quarta coluna, que podem estar ligadas a
dificuldades de tradução, apenas a ausência do filho "lenhoso" em M667a e a do filho "terroso" em
M670a colocam um problema. É claro que pode se tratar de esquecimentos em ambos os casos
mas, por desencargo de consciência e ainda que o exercício possa ser fútil, vamos ver se é
possível colocar esse traço em correlação com outros. A intriga qualifica três dos filhos em
relação à água: o primeiro se desfaz, o terceiro afunda (exceto em M667a, que o poupa dessa
prova) e o quarto flutua. Apenas o filho de resina é qualificado em relação ao calor do sol. A
oposição pertinente é, portanto, aquela entre céu e água. Mas a própria água apresenta diversas
conotações, positiva ou negativa, conforme permite ou não que a criatura sobreviva, e é
qualificada em termos de baixo, meio e alto, conforme a criatura afunda, se dissolve no
elemento líquido ou permanece na superfície. Em M667a — sem filho de madeira e na qual o filho
de pedra é viável — faltam as funções "alta" e "baixa" da água, permanecendo apenas a função
"média" que, na ausência do filho de argila, é a que falta em M670a.
Ora, existe uma outra diferença entre essas versões: elas atribuem ao herói, como
esposas, ora Mergulhão e Pato Selvagem, ora Águia e Pato. Já que a esposa Pato tem sempre o
papel de má, a oposição pertinente se transfere para a outra esposa, Águia ou Mergulhão. São
ambas aves, de modo que podemos desconsiderar essa característica invariante e operar mais
uma redução, chegando então a uma oposição entre céu e água. Sabemos que, entre as aves
62
Estendendo o mesmo raciocínio a um outro mito (M650a; supra:282), deduz-se da assimilação dos
cabelos e uma vestimenta natural e das equivalências já assentadas entre nu e cru e vestido e cozido, que o
aquáticas, o mergulhão ocupa uma posição eminente, e que o mesmo ocorre com a águia entre as
do céu supraterrestre.
Alargando o paradigma das esposas, tal como ilustrado pelos mitos que esta quinta parte
se dedica a comparar, obtém-se:
(+) (—)
Nez Percé: Besouro, Gafanhoto Cisne, Pata
Coeur d'Alêne: Cisne Andorinha-do-Mar
Thompson (Teit): Mergulhão Pata, Marreco [aparece aqui
pela 1a. vez?]
Thompson (Hill-Tout): Águia Pata
[p. 349]
Infelizmente, não é possível incluir a versão lilloet, em que nada permite identificar as
esposas do herói, das quais só se sabe que provêm de um povo de cesteiros. Não obstante essa
lacuna, fica evidente que as esposas nez percé, de um lado, e as esposas thompson da versão
Hill-Tout, do outro, ilustram um afastamento máximo, entre inseto subterrâneo e ave aquática
ou ave supraterrestre e ave aquática. Além disso, essas versões também se opõem uma à outra na
medida em que a boa esposa é num caso a subterrânea e, no outro, a celeste; de modo que
prevalece um afastamento entre elas, maior do que o que distingue cada uma delas de sua
companheira em ambos os casos.
Em compensação, as versões coeur d'alêne e thompson (Teit) ocupam uma posição
mediana em relação às precedentes, pois têm em comum o fato de oporem esposas que são,
ambas, aves aquáticas: Cisne e Andorinha-do-Mar ou Mergulhão e Pato. Cisnes e patos são
migratórios, partem em direção ao sul no inverno. Mas os mitos nos ensinam que, migratórios ou
não, andorinhas-do-mar e mergulhões interessam ao pensamento indígena por outros
comportamentos: as andorinhas-do-mar sobem os rios acompanhando os salmões, enquanto que
os mergulhões circulam entre os lagos do interior e da costa, em função das mudanças de tempo.
Conseqüentemente, Mergulhão e Andorinha-do-Mar formam um par no eixo leste-oeste e
relativamente baixo, ao passo que Cisne e Pato formam outro no eixo norte-sul, no qual também
voam mais alto quando das migrações sazonais. Porém, como os mitos coeur d'alêne e thompson
invertem as valências semânticas das esposas dentro do par (Cisne:Andorinha-do-
Mar::Mergulhão:Pato), pode-se dizer que, de um modo menor, esses mitos se invertem entre si
quanto às esposas assim como, num modo maior, invertem-se os mitos thompson (Hill-Tout) e nez
percé.
*
* *
Passaremos agora para a visita ao céu, que nos reterá por algum tempo. A descrição que
dela fazem os mitos corresponde bem à imagem que os Salish tinham do mundo celeste: uma
vasta planície nua incessantemente varrida pelo vento e onde faz muito frio. Para melhor captar
os mecanismos das transformações míticas, vale a pena notar que os vizinhos imediatos dos Salish
de Vancouver a oeste, isto é, os Nootka, invertem metodicamente essa imagem: segundo eles, o
mundo celeste se beneficia de uma perpétua serenidade, as canoas vogam elegantemente por
águas tranqüilas e não há gelo nem neve (Sproat:209). Os Salish, por sua vez, opõem ao frio
celeste o calor intenso que outrora reinava sobre a terra (Teit 6:176; 10:377). Os Tsesaut,
pequena população de língua atabascana encravada na costa, achavam o mesmo (Boas 21:569).
Na origem, portanto, de um ponto de vista climático, a terra e o céu eram completamente um ou
completamente outro, e o papel do ou dos demiurgos consiste em tornar a terra alternadamente
um e outro, enquanto o céu, tornado para sempre inacessível, já não precisa mais ser imaginado,
liberando para o mundo terrestre a posição semântica que, no tempo em que se podia ir até lá, o
qualificava de modo distintivo em relação à terra cá embaixo.
A planície celeste, dizem os Thompson, possui o aspecto de um planalto que termina
abruptamente, exceto, ao que parece, ao norte, pois esses índios concebem a terra como um
plano inclinado que se aproxima do céu e se une a ele no setentrião (Teit 4:23, 25, 104; 10:337,
341). Também neste caso uma outra tribo inverte a imagem cosmológica: segundo os Twana,
população salish de Puget Sound, é o céu que pende e se aproxima da terra até tocá-la, a oeste e
ao sul (Eells 3:681).
No céu, os primeiros encontros do herói são marcados pela hostilidade, aranhas canibais
ou guerreiras, objetos manufaturados que se revoltam contra seus usuários. Já analisamos a
transformação tocante à caça e ao canibalismo de um lado e à indústria têxtil do outro
(supra:326). De modo que basta aqui acrescentar que, se as hipóteses que formulamos naquela
ocasião estiverem corretas, as primeiras seqüências celestes significam que, disjunto da
humanidade pela malvadeza de seu pai, o enganador, o herói regride para uma condição pré- ou
anti-cultural, definida pela equivalência entre cru e nu. A partir desse grau zero, começa sua
obra própria, que é a de um mediador, inaugurada por ele ao decretar que os objetos técnicos
não mais poderão manifestar insubordinação. Não seria esse, efetivamente, um auge no estado
de cultura, cujo terminus ad quem se encontra assim delimitado? Resta a preencher o quadro em
si, uma vez traçados seus contornos.
Como veremos mais adiante, o episódio seguinte, centrado no encontro com as duas
cegas, é extremamente difundido na América do Norte. Porém, antes de alargarmos o campo de
visão, convém examinar o motivo no contexto reduzido em que primeiro o encontramos. Uma
versão particularmente concisa (M670c, Boas 13:17-18) retém o essencial: no céu, o filho de
Coiote visita duas velhas que são tetrazes; uma delas reclama que o herói cheira mal, ele se
irrita, joga-as longe e as transforma em pássaros.
As velhas estão uma diante da outra, cada qual de um lado de uma fogueira, disputam um
talo de cânhamo ruim que cresce ao longo do solo e vai de uma à outra (M667a), ou então passam
uma para a outra (ou melhor, não passam, devido à intervenção malandra do herói) um alimento
ruim, consistindo de madeira ou pedra podre. O herói surrupia esse alimento na passagem, de
mulheres que não podem ver porque são cegas, e acusam-se mutuamente de inabilidade ou má
vontade (M667a,b; M670a; M676). Porém, se não podem ver, cheiram, e principalmente nas
versões menos pudicas, em que o herói coloca o próprio pênis na mão da lograda em lugar da
comida, esta protesta porque o orgão fede. Sente-se desde aqui que o episódio opera
simultaneamente com vários registros, tecnológico, visual, alimentar, sexual, olfativo, etc.
Irritado com o comentário desagradável das velhas, o herói as joga em arbustos onde, conforme
M677a, elas se transformam em duas espécies de tetrazes, uma fácil de capturar e a outra sujeita
a um modo muito particular de fecundação (supra:330).
Todos esses elementos estão tão intimamente imbricados e a interpretação de cada um
deles é solidária da de todos os demais a tal ponto que não se sabe bem por onde começar.
Apresentaremos, pois, desordenadamente, uma série de considerações, na esperança de que
encontrem seus lugares por si sós. A palavra grouse [animal em que as velhas se transformam,
aqui traduzida por tetraz; N.T.], emprestada pelo francês do inglês, designa na América do Norte
várias aves da família dos tetraonídeos, e mais comumente os tetrazes e galinhas-do-mato. A
locução fool-hen parece ser indistintamente aplicável aos jovens tetrazes e a uma espécie em
particular, o Canachite canadensis ou franklini, "assim nomeado devido à sua despreocupação em
relação ao homem... e que se deixa matar a pedradas ou pauladas...; às vezes, pode-se até pegá-
las por uma pata" (Bent, Gallinaceous Birds:136, 140; Pearson 1936, II:16). As mulheres okanagon
capturavam essas aves com um bastão munido de um simples laço de fio na ponta, e as davam de
comer aos filhos pequenos para torná-los dóceis (Cline:24, 120). Os Thompson, mais altivos,
faziam o raciocínio inverso, e proibiam os maridos de mulheres grávidas de comê-las, para evitar
que a criança viesse a ser pusilânime como a ave (Teit 10:304). A mesma técnica de captura
descrita para os Okanagon e os Thompson existia entre os Flathead (Turney-High 2:113), e devia
ser ainda mais amplamente empregada, já que foi também observada entre os índios do
Similkameen (Allison:307) e entre os povos atabascanos ainda mais ao norte (Morice, t. 5:124).
Mitos salish descrevem mulheres fugitivas abandonadas à própria sorte, que conseguem
sobreviver comendo bagas e fool-hens (Boas 4:39). Outros mitos explicam que a ave ficou
medrosa porque, humana na origem, foi mantida prisioneira por um longo tempo (Elliott:174-
175). É atribuindo a ela essa natureza de caça fácil e ao alcance da mão, até mesmo para
mulheres e crianças, que M667a sela o destino de uma das velhas, mudada em Tetraz de Franklin
nas forestas em que a ave passa o inverno (Bent, l.c.:141). Em seguida, o herói transforma a
segunda velha em ruffed grouse, Bonasa umbellus ou Galinha-do-mato de crista que, como
confirma a ornitologia, se distingue da outra espécie por ser mais desconfiada dos homens
(Godfrey:129). Por isso o herói lhe dá um destino diferente: ela engravidará ao escutar asas
batendo contra um tronco. Com efeito, o macho da espécie, também chamado de drumming
grouse, "era chamado por certos índios de 'ave carpinteira', pois achava-se que batia as assas em
troncos para produzir o barulho de tambor" (Bent, l.c.:143). Audubon, que também fala do
tambor de madeira (drumming log), precisa que só o macho tamborila (ibid.:146), e Seton (cap.
II) descreve uma galinha-do-mato de crista "numa pose soberba... tamborilando sobre um tronco
caído".
Embora a tamborilagem em questão faça parte unicamente da parada nupcial e os
autores supramencionados tivessem plena consciência quanto ao seu mecanismo, em que o
tronco não desempenha papel algum, a não ser o de poleiro, vê-se que, também nesse caso, a
característica distintiva invocada pelo mito corresponde a crenças indígenas bem atestadas, que
se baseiam, pelo menos em parte, em dados da observação. Mas por que o mito escolhe apenas
duas características, tão diferentes uma da outra, para definir aves muito próximas e que, na
forma humana que lhes atribui inicialmente, eram exatamente iguais uma à outra?
No primeiro caso, trata-se de uma presa que, de modo anormal, tolera a contigüidade
física com o caçador, e, no segundo caso, de uma fêmea que, de modo não menos anormal, não
requer a contigüidade física com o macho para ser fecundada, pois que concebe à distância, pela
audição, supremamente eficaz no caso dela mas, ao passo que a outra deixa-se capturar
facilmente, pois que nem mesmo ouve a aproximação do caçador. De modo que, quer no plano
alimentar, quer no sexual, ambas as aves sofrem de um transtorno que afeta a categoria da
contigüidade. Quando o transtorno se manifesta por excesso, como ocorre na fecundação
auditiva, leva a espécie a se reproduzir, a propagar a vida, portanto. Quando se manifesta pela
falta, como ocorre na caçada aproximada, acarreta para a outra espécie o resultado inverso, ou
seja, a morte.
Confirmaremos mais adiante (infra:481-486) essa interpretação mostrando que, nessa
região da América setentrional, a ave chamada de faisão (pheasant), mas que na verdade é uma
galinha-do-mato63, desempenha o papel de intermediário entre o mundo dos vivos e o dos mortos,
pois pertence a ambos e é, em si mesma, literalmente, meio viva e meio morta. Em O cru e o
cozido (:209-213), tínhamos obtido dedutivamente o mesmo esquema quando procurávamos
determinar, por uma série de comutações, o lugar que cabe à "perdiz" sul-americana — também
um galináceo — no campo semântico formado pelos animais prestativos; não é pouca a satisfação
com que encontramos o mesmo esquema a milhares de quilômetros, verificado pelos mitos salish
de modo atual e não mais virtual, como na América do Sul.
Sentadas cada uma de um lado de um fogo, as velhas cegas disputam uma planta textil de
baixa qualidade que cresce longitudinalmente por baixo, ou um alimento podre que uma estende
à outra por cima. Ora, para os mitos dessa região, oferecer a alguém alimento por cima da
fogueira significa expor essa pessoa ao risco de queimadura. Um mito, em cujos detalhes não
entraremos, e de que existem numerosas versões (M682a-e; Boas 4:22-25; Teit 4:64-66; 1:673-
677; Hill-Tout 8:158-161; Farrand 2:41-42) põe em cena dois irmãos, Marta e Marta-Pecã, às
voltas com uma mulher misteriosa que lhes oferece alimento por cima de uma fogueira; no
momento em que se inclinam para pegá-lo, ela os puxa pelas mãos e os joga no fogo. Um dos
irmãos não consegue evitar a manobra, mas o outro salta por cima da fogueira, derruba a mulher
e toca-lhe as partes sexuais; e será a vez dela, vencida, de se apresentar no acampamento dos
dois irmãos para se casar com o vencedor.
Portanto, se a contigüidade direta entre o alimento e o fogo de cozinha tem para o
consumidor conseqüências maléficas, benéficas são, ao contrário, as conseqüências da
contigüidade física entre um homem e uma mulher. Todos os Salish conheciam um modo
particular de casamento chamado de "por toque". Os da costa organizavam danças de caráter
religioso durante as quais um homem podia tocar a mão de uma dançarina; o casamento seguia
automaticamente (Barnett 3:206). O mesmo ocorria, no interior, entre os Lilloet onde a touching
dance era um prelúdio ao casamento (Teit 11:268, 284), e entre os Thompson (Teit 10:323-324;
Hill-Tout 6:191-192), para quem qualquer contato acidental acarretava o mesmo resultado; e
também entre os Flathead (Turney-High 2:88-89), e os Okanagon: "Se um homem visse uma jovem
púbere despida ou se a tocasse, tinha de se casar com ela imediatamente... caso contrário, ela
não tinha outra escolha que não o suicídio, mesmo que apenas suas pernas tivessem sido
63
"Os colonos ingleses na América às vezes chamavam de 'faisão' a galinha-do-mato de crista" (Bent,
l.c.:310). "Propriamente falando, a galinha-do-mato de crista (Bonasa umbellus sabini), mais comumente
chamada de faisão" (Ballard 1:92 n. 80).
vislumbradas... Às vezes, rapazes recorriam a esse meio para obterem em casamento moças que
teriam recusado suas propostas" (Cline:114).
A presença, entre os Salish, de toda uma filosofia da contigüidade também resulta, a
contrario, de outras indicações. Um mito chehalis da Colúmbia Britânica (M682f-g, Hill-Tout
2:340; 6:217) conta que um jovem viúvo tomado pela dor foi até o país dos mortos para procurar
a mulher e trazê-la de volta para entre os vivos. Os mortos concordaram, contanto que na viagem
de volta ele se abstivesse de qualquer contato sexual e acendesse todas as noites uma grande
fogueira, e os dois se deitassem cada um de um lado, sem tentarem se unir. Na realidade, os
esposos squamish não dormiam próximos, e sim em ângulo reto, com os pés se tocando, a menos
que a falta de espaço os obrigasse a se deitarem um no sentido oposto do outro, mas era
raramente o caso (Hill-Tout 7:486).
Pois bem, a cegueira é uma condição que obriga à contigüidade aqueles que sofrem dela,
já que, sem poder ver, é preciso tocar. De modo que já pressentimos que a transferência de um
pseudo-alimento através do fogo entre cegas constitui a forma mínima — ultra-curta, e por isso
negativa — da periodicidade espaço-temporal, dando seqüência à disjunção máxima, na ordem
espacial, que representa a transferência do herói da terra para o céu. Essa formulação permite
fundir num único esquema os dois episódios consecutivos dos objetos revoltados contra seus
donos e das velhas cegas em M667a, e, em M664a, a caça por defecação das aranhas hostis, outro
exemplo de curto-circuito, que conjuga alimento e excremento. É mais tarde, junto das aranhas
prestativas, que assistimos à recuperação da periodicidade temporal pelo herói; mas com a
condição de que ele, ao descer do céu de volta para a terra (e ao contrário do que aconteceu na
viagem de ida) respeite quatro pausas e em cada uma delas permaneça algum tempo.
Outros mitos da região contribuem para evidenciar a mesma problemática. No início de
M365a e M382, mitos salish da costa, Coiote, solitário, separa de seu corpo o próprio traseiro, a
fim de ter um assistente para vigiar sua barragem de pesca enquanto ele mesmo fabrica uma
canoa. Mas o traseiro se mostra incapaz de distinguir um salmão de um monte de espuma, depois
de folhas mortas ou de um pedaço de madeira boiando. Quando ele finalmente consegue pegar
um peixe, Coiote, em represália, come-o sem oferecer nada a seu auxiliar que, descepcionado,
franze os lábios. Daí provém o aspecto franzido do ânus, depois de Coiote o ter reposto no lugar,
a partir de então diferente da boca, quando antes eram completamente iguais, já que, na
origem, o ânus possuía, como a boca, o dom da palavra (Adamson:158-159). Uma segunda versão
do mesmo mito (M375b, Adamson:173-174) substitui esse episódio por um no qual Coiote, que
ficou cego, fabrica olhos de flor que não valem grande coisa, e os troca pelos do caramujo, que
desde então ficou cego. De modo que ou Coiote separa a parte inferior da superior, que antes
eram equivalentes no sentido de que ambas falavam, e resulta daí a diferenciação anatômica
entre a boca e o ânus, ou ele efetua uma troca de olhos, da qual resulta a diferenciação
zoológica entre espécies dotadas ou não de visão. Ora, essa disjunção inicial corresponde, nos
mitos chinook que já discutimos (M618 e M620, supra:262), à conjunção terminal que ocorre
quando Dona Grizzly, ao pintar o próprio rosto com seu sangue menstrual une, por assim dizer,
sua parte de baixo à sua parte de cima. Em ambos os casos, surge uma conseqüência mediata ou
imediata, na forma de separação anatômica, zoológica ou botânica: diferenciação entre as partes
do corpo e, um pouco mais tarde, das espécies de peixes em M375 (supra:262); diferenciação
entre as espécies de madeira em M618, um motivo que ressurge, de modo significativo, no grupo
de mitos que agora estamos discutindo (cf. M672, supra:337). Segundo os Bella Coola, de língua
salish mas isolados bem ao norte (M683a, Boas 13:241), a especiação — em outras palavras, a
não-contigüidade introduzida no seio do reino animal — precedeu à dissipação do nevoeiro
original que unia o céu e a terra confundindo a luz e a escuridão, e ao aparecimento do sol
visível. Os Thompson (M683b, Teit 5:313-314) tornam o aparecimento de uma descontinuidade
anatômica (diferenciação dos grupos indígenas pela cor da pele) consecutivo ao roubo do sol
visível por Coiote e Antílope, prelúdio de sua própria separação (a segunda espécie, Antilocapra,
freqüentava a encosta oriental das Rochosas). Por outro lado, vários povos salish da costa (M349,
Adamsom:71, 233, 346, 370) afirmam que o nevoeiro permitiu que o ladrão do disco solar fugisse,
ao tornar seus perseguidores praticamente cegos, já que não conseguiam ver nada. Vislumbra-se
aqui uma equivalência entre várias formas de disjunção ou conjunção anatômica — traseiro
separado do dianteiro, baixo unido ao alto, olhos alternadamente separados ou unidos — e, entre
o alto e o baixo, o céu e a terra, o papel alternadamente disjuntivo ou conjuntivo do nevoeiro,
termo mediador que conjuga extremos e os torna indiscerníveis ou se interpõe entre eles de
modo que não podem mais se aproximar. O nevoeiro se apresenta, portanto, como o contrário de
uma fogueira (CC:299).
No caso específico que nos ocupa, ilustrado entre os Salish pela história do desaninhador
de pássaros, a cegueira, comparável por seu efeito ao nevoeiro, que torna praticamente cegos os
que são por ele envolvidos — a menos que, sem poderem se ver, possam se tocar — constitui uma
manifestação entre outras da contigüidade. Ora benéfica, ora maléfica, a contigüidade mantém
nos mitos uma relação correlativa com diversos modos da especiação, isto é, com a introdução de
um princípio de descontinuidade entre as espécies vegetais ou animais, entre as raças humanas,
ou mesmo no seio de um meio qualquer ainda homogêneo, tal como o espaço ou o tempo. É
notável que, nas muitas variantes de que dispomos para M683, um traço seja constante desde os
Thompson (Teit 4:32-34) até os Wishram (Sapir 1:67-75): os filhos de Coiote, que morrem um
após o outro ao se revezarem para carregar o sol visível depois de tê-lo roubado, têm nome, mas
os de Antílope, que logram realizar a operação, não64. No tocante à individuação, os primeiros
são distinguidos, os outros, confundidos.
A contigüidade se apresenta no pensamento salish, portanto, como modo de uma
categoria mais ampla, a de continuidade, cuja teoria esboçamos várias vezes nos volumes
anteriores (ver índices remissivos, em "cromatismo" e "contínuo"). A conexão concebida pelos
Salish entre contigüidade e cegueira também é ilustrada pelos ritos: os Thompson prescreviam
que se mantivesse os olhos fechados durante as invocações às primícias — salmões, frutos ou
raízes comestíveis — e durante as orações cotidianas. Referindo-se aos Steelis (= Chehalis da
Colúmbia Britânica), Hill-Tout observa (2:330; 6:169-170): "Manter os olhos fechados durante as
encantações e os ritos mágicos era, para os Salish, uma regra essencial da liturgia. O fracasso
resultaria inevitavelmente se não fosse respeitada. Por isso, havia 'vigias de olhos', armados com
longas varetas, prontos para bater em qualquer pessoa que levantasse as pálpebras durante os
ritos para o primeiro salmão".
*
* *
Outros aspectos do episódio das velhas cegas, não menos importantes, emergem quando
se o aborda a partir das versões tillamook. Esse grupo de língua salish, separado do restante da
família e isolado ao sul do estuário do Colúmbia, preservou elementos certamente arcaicos de um
patrimônio mítico comum, e ao mesmo tempo elaborou-os seguindo vias que lhe são próprias.
Contam os Tillamook (M684a, Boas 14:30) que seis homens resolveram correr o mundo.
Certo dia, chegaram diante de uma porta que ficava abrindo e fechando com a rapidez de um
raio. Um dos homens conseguiu atravessar o obstáculo saltando e, do outro lado, encontrou duas
mulheres cegas que possuíam grandes provisões de carne de baleia. O homem as pegou e lançou
pela porta; um pedaço chegou até seus companheiros, outro ficou preso no batente. Ele quis
voltar, mas, na passagem, metade de seu traseiro foi cortada. A ferida foi tratada com
emplastros de argila.
Segundo uma versão mais recente (M684b, E.D. Jacobs:6-7), no decorrer de suas
peregrinações, o demiurgo Gelo, esfomeado, encontrou um povo de cestos repletos de víveres
que lhe deram uma surra (cf. M667a). Em seguida chegou diante de duas casinhas; a porta da
primeira abria e fechava rapidamente, no ritmo vocal da proprietária, que falava muito depressa
e se gabava de ter mais carne de baleia do que a vizinha que, por sua vez, falava lentamente,
porque estava desgostosa, e sua porta batia nesse ritmo. Gelo conseguiu entrar, comeu tudo o
64
Sobre esse contraste, que os mitos sublinham insistentemente, ver Cowlitz: M348, Jacobs 1:168-
169; Thompson: M668a, Teit 5:296; Coeur d'Alêne, Reichard 3:73; Sanpoil, Ray 2:177. Seundo os Shuswap
(Teit 1:597), as estrelas sem nome são terráquios que subiram ao céu e foram mortos pelo povo de cima. A
questão será retomada sob esse ângulo, infra:419-421.
que pode e levou o resto da carne para os companheiros. Ao atravessar a porta, perdeu parte da
nédega e fez um curativo com folhas. As mulheres eram duas velhas solteiras, a quem os
pescadores de baleia davam uma quantidade invariável de carne, um pouco menos para uma do
que para a outra, o que alimentava sua irritação.
De modo que, ao termo de um deslocamento horizontal em vez de uma ascensão vertical,
o herói tillamook também encontra duas velhas cegas entre as quais reina o desentendimento. A
diferença em relação às versões salish mais ao norte reside no fato de as velhas aqui serem
desiguais de saída (pois que recebem quantidades diferentes de alimento), quando entre os
Thompson, elas o são na chegada, transformadas em duas espécies distintas de tetrazes, mas que
são igualmente, como mostramos, qualificadas pelo excesso ou pela falta, mas quanto à audição,
na forma passiva. Pois uma ouve tão bem que basta uma batida de asas para emprenhá-la, e a
outra, tão mal que nem percebe a chegada do caçador. Aqui, a relação acústica é ativa: uma das
mulheres fala muito depressa e por isso se torna inabordável, ao passo que a outra, que fala
lentamente é, como o primeiro tetraz, fácil de abordar.
As crenças dos Puyallup-Nisqually, que são Salish do sul de Puget Sound, preservam o
contraste aplicando-o a animais como corujas, esquilos e gaios. Estes últimos pressagiam
acontecimentos funestos quando falam colérica e precipitadamente, ou eventos favoráveis,
quando falam lentamente, num tom calmo e alegre (M.W. Smith 2:218).
O motivo das portas que abrem e fecham, ou symplégades, pertence a um considerável
paradigma mítico cujo inventário foi realizado por S. Thompson (2:298), e que se estende por
uma vasta área da América, exatamente na forma em que o encontramos. Entre os Apache
Jicarilla e Lipan (M685a,b, Russell 2:256-271), por exemplo: duas velhas cegas, sentadas cada
uma de um lado de uma fogueira, agitavam um bastão acima da panela para proteger seu cozido,
mas apesar disso meninos conseguem roubá-lo; colocam uma panela vazia no lugar e, como ela
soa oca, elas acham que a água evaporou e que o cozido está pronto; resolvem fumar enquanto
esperam que esfrie, mas seu cachimbo também é surrupiado; as velhas acusam uma à outra de
ter fumado todo o tabaco e comido todo o cozido; brigam e batem uma na outra... Mesmo em
mitologia, duas negações valem uma afirmação. O ou os heróis conseguem neutralizar as duas
velhas porque elas introduzem no sistema dois termos negativos: opondo-se uma à outra devido à
sua negaividade, elas não podem se opor juntas ao herói, como as portas que abrem e fecham
que, também porque são duas folhas, são menos intransponíveis do que seria uma folha única que
não "batesse" na outra e ficasse sempre fechada.
Esse caráter de reciprocidade negativa inerente ao mitema das duas cegas, e que permite
reconhecer nele uma forma limite das portas que abrem e fecham, também sobressai em outras
versões, nas quais aparece isoladamente. Mencionaremos apenas dois exemplos. Os Menomini, a
quem já recorremos (M657a,b, supra:298), contam a história de dois cegos que são transportadas,
para protegê-las de ataques inimigos, para a margem afastada de um lago. Como viviam isolados
e sozinhos, havia uma corda estendida entre a casa e a margem do lago, para guiá-los quando
fossem pegar água. "Um dia, um dos cegos cozinhava enquanto o outro pegava água e, no dia
seguinte, invertiam os papéis, para que o trabalho fosse repartido equitativamente. Sabiam
exatamente a quantidade de comida de que precisavam em cada refeição, de modo que a
dividiam em duas porções iguais, que comiam no mesmo prato". Surge Guaxinim, personagem
enganador que se diverte perseguindo-os, deslocando a corda que um estava usando como guia,
comendo toda a comida do outro, e batendo nos dois. Tanto fez que os dois cegos acabaram
brigando um com o outro, e Guaxinim os repreende: "Vocês não deveriam acusar um ao outro
com tanta pressa" (M686a, Hoffman 1:211-212; cf. M686b, Saulteaux, Young:26-29; M686c,
Ojibwa, Radin 4:80; M686d, Arapaho, Dorsey & Kroeber:277).
Os Paviotso, que são Paiute setentrionais instalados no norte e oeste de Nevada, situam
os dois personagens cegos entre as estrelas: "postados cada um de um lado de uma rede para
pegar lebres e da qual pendiam fios que eles amarravam nas orelhas para perceberem os
movimentos da presa assim que era capturada... Nas refeições, passavam a comida um para o
outro". Dona Águia apareceu e roubou-lhes a ração. Reconhecida pelo toque, ela cuidou deles e
os curou temporariamente, mas eles voltaram a ficar cegos (M687, Lowie 4:238-239).
Na forma de uma porta de duas folhas que alternadamente permite e impede a passagem
entre dois mundos, o motivo das symplégades espalha-se por toda a América do Norte, dos
Esquimó às tribos das Planícies, dos Grandes Lagos, do sudoeste e do sudeste, e inclusive a costa
da Louisiana. Também é conhecido na América do Sul, notadamente entre os Tupinambá e os
Bororo, que colocam o obstáculo no caminho para o além (E.B., I:101). As symplégades
desempenham um papel central na mitologia dos Salish da costa (M375a-i; M382; M506,
Adamson:158-157, 276-284, 356-360; Ballard 1:69-80; Haeberlin 1:372-377; Boas 5:155; etc.), na
qual rochas que abrem e fecham defendem a entrada do mundo ocidental que, para eles, é o
reino dos mortos. Foi para lá que as filhas da leita (supra:262, 297) conduziram o demiurgo Lua
depois de tê-lo roubado, ainda bebê, de duas mulheres, das quais uma era cega e a outra virgem
(ainda que mãe do menino, que concebera milagrosamente), ou seja, duas condições
comparáveis às que são reservadas às velhas cegas pelos mitos do interior, que tornam uma surda
à aproximação dos caçadores e a outra fértil sem contato físico com o macho, em troca de ter
recuperado a visão.
Na série mítica M375 etc. o enganador Gaio-Azul (Cyanocitta sp.) consegue passar pelas
portas que abrem e fecham. Porém, a depender das versões — que nesse aspecto se repartem em
vários grupos — deixa nelas penas da cauda (Adamson:161), danifica a crista, que amassada para
a frente (ibid.:358), ou é atingido por uma das folhas da porta, que lhe achata a nuca (ibid.:375;
Ballard 1:73; Haeberlin 1:372-375). Em certos casos, ele consegue imobilizar as portas colocando
uma estaca atravessada entre elas (Adamson:175; Ballard 1:73).
Se aceitarmos a hipótese de que as duas velhas cegas são uma forma limite das portas
que abrem e fecham, será significativo o fato de seu visitante poder impunemente colocar o
próprio pênis na mão de uma delas. Com efeito, na série simétrica M375 etc. — que substitui um
exílio no céu por uma abdução no mar, e uma ascensão no eixo vertical por uma translação no
eixo horizontal — pelo menos uma versão (M375f, Haeberlin 1:372) descreve Gaio-Azul com o
aspecto de uma velha avó de nuca achatada, ou seja, uma imagem que inverte em três planos a
de um pênis — criatura feminina, não marcada quanto à capacidade geradora em razão de sua
idade e, finalmente, avó atingida no occipício, que por isso perdeu sua saliência natural —, ao
passo que, entregue a uma avó, o pênis do herói, saliência natural dianteira no baixo-ventre, não
é atingido.
Note-se ainda que, se na série M667 etc. as cegas visitadas pelo herói recuperam a visão,
na série simétrica M375 etc. Gaio-Azul, visitante do herói, tendo conseguido passar pelas portas
que abrem e fecham, recebe deste lascas de pedra nos olhos; fica cego, depois é curado pelo
demiurgo, mas conservará contudo uma espécie de belida que encobre sua visão.
Entre os dois estados extremos da transformação, as versões tillamook (M684a,b) ocupam
uma posição intermediária. Primeiro, porque nelas os motivos das mulheres cegas e da porta que
abre e fecha coexistem; em seguida, porque as mulheres possuem alimento verdadeiro (carne de
baleia) em vez de falso (areia, pedra ou madeira podre); e, finalmente, porque o herói deixa na
porta uma parte de seu traseiro, o que o opõe ao mesmo tempo ao dos mitos thompson que
entrega impunemente seu pênis (pedaço da dianteira), e a Gaio-Azul dos mitos salish da costa,
que danifica a ponta da cauda (traseira da traseira) ou a crista ou a nuca (ambas no alto em vez
de em baixo).
Portanto, às vezes o herói se vê de certo modo "castrado" de uma parte posterior, alta ou
baixa. Quando o dano o atinge na parte inferior (o que jamais ocorre na série M375 etc., exceto,
justamente, nas versões tillamook), ele se torna um "personagem perfurado", teoricamente
incapaz, como o do mito de referência M1, de guardar o alimento que ingere, a menos que
consiga tapar novamente o orifício. Quando, ao contrário, ele expõe o próprio pênis, sem no
entanto correr o risco de sofrer o que seria uma verdadeira castração, cabe a seus interlocutores
cegos cumprir a função de "personagens tampados". Isso requer algumas explicações.
Mitos dos quais já encontramos algumas versões (M680, supra:343) e que examinaremos
mais adiante em sua forma mais desenvolvida — na qual, significativamente para nós, remetem à
origem do fogo (infra:418) — contam que Coiote cegou os filhos das mulheres tetrazes colando-
lhes as pálpebras com resina. Em outros mitos, muito difundidos entre os Salish e os Nootka, de
que evocaremos apenas dois exemplos (M600f, Sapir & Swadesh 2:89-101; M688, Hill-Tout 7:546-
548), uma ogra ladra de crianças cola suas pálpebras com resina para impedi-las de verem seus
preparativos culinários. Esses exemplos já bastam para mostrar que, no pensamento salish, ser
sego equivale a ter os olhos tapados.
Atente-se além disso para o fato de, entre os Salish de Puget Sound, as ogras ladras de
crianças serem mulheres-caramujo (M600i-m, Ballard 1:106-112). Conforme uma dialética que já
conhecemos, os Nootka, vizinhos dos Salish da costa, desdobram-nas em ogras-de-resina que
conservam a mesma função e jovens e belíssimas moças-caramujo, que o herói encontra no céu,
e que são cegas. A pedido delas, ele esfrega a ponta de seu pênis nos olhos das moças e assim
lhes devolve a visão (M600f, Boas 13:117; Sapir & Swadesh 2:97). As criaturas lhe agradecem
indicando-lhe o caminho para a casa do Sol, com cuja filha ele deseja se casar.
E assim, fechamos o círculo, reencontrando no mito nootka habitantes do céu, jovens e
bonitas e não velhas, é verdade, mas em relação às quais, por imposição do pênis em ambos os
casos, o herói se comporta como "personagem perfurador" — quando encosta a ponta de seu
membro nos olhos delas, para lhes devolver a visão — tanto mais que, no começo do mito, as
ogras ladras de crianças as cegaram tapando-lhes os olhos com resina. Os mitos salish (M375b; cf.
também Tillamook, E.D. Jacobs:129-130), por sua vez, explicam porque os caracóis terrestres (#
celestes) são cegos.
Se as mulheres cegas dos mitos thompson podem se transformar em tetrazes, é, como
vimos, porque sua enfermidade, como os hábitos dessas aves, denota o que chamamos
(supra:353) um transtorno de contigüidade. É notável que esses mitos proponham uma conclusão
da mesma ordem a respeito dos caracóis. Pisar numa concha de caramujo e esmagá-la transforma
o responsável primeiro em endo-canibal, em seguida em exo-canibal, dizem os Coos (Jacobs 5:55-
56). As tribos da costa noroeste falam em seus mitos (M689a,b, Boas 2:161, cf. 747, 749; Seanton
2:175) de uma princesa arisca que repele todos os pretendentes, mas não consegue evitar um que
insiste em ficar no seu caminho na forma de um caramujo: "Ah! Que nojo! Não posso nem sair de
casa sem ver esse caramujo!". A respeito dos Twana, salish de Puget Sound, Eells (1:217; 3:622)
fornece uma informação curiosa: "Até a chegada dos brancos, os índios não comiam tetrazes nem
patos-selvagens; estes últimos, porque se alimentam de caracóis". A proibição quanto aos
tetrazes foi registrada esporadicamente na área costeira (Drucker:61), bem como aquela relativa
aos patos, sendo esta aparentemente restrita aos momentos críticos da vida individual, como
puberdade, iniciação, paternidade e maternidade, viuvez (Barnett 3:138, 152, 154, 168, 225,
281). Fontes mais recentes (Elmendorf 1:144) não corroboram a informação de Eells, cujo
interesse reside na associação, no seio da mesma tríade, dos animais nos quais as duas cegas são
passíveis de se transformar.
*
* *
De fato, só conhecemos até agora seus avatares em forma de tetrazes e caracóis. Porém,
desde os Nootka da costa oeste de Vancouver até os Tlingit do Alasca, as mulheres cegas
encontradas por um herói no céu e a quem ele devolve a visão se transformam não em galináceos
ou gastrópodes, criaturas terrestres, mas em aves aquáticas, patos ou gansos (M675a e seguintes;
inventário em Boas 2:842; ver também p. 883, 907-908; 13:55, 135, 202, 262-263; 22:203, 247;
Boas & Hunt 2, I:95; 2, II:215-233-234; Krause:275; Swanton 7:498; etc.). A título de exemplo,
citaremos a versão salish mais setentrional entre aquelas a que já nos referimos (supra:338):
Os leitores que conhecem os volumes anteriores certamente terão notado que M692
lembra um mito warrau (M406, OMM:111-112) em que uma união distante (de um homem com
uma beldade exótica, em vez de uma mulher com um personagem masculino e vegetativo nos
dois sentidos do termo) precede ou prepara a explosão do corpo (pela cabeça ou pelo ventre) de
um velho, de que resulta o abrandamento do calor do sol, antes excessivo. Os dois mitos, cuja
comparação será retomada mais adiante (infra:401), diferem na medida em que a intriga de
M406 transcorre num eixo horizontal, e a de M692 num eixo vertical; trata-se de viagem para
além-mar num caso, de ascensão no outro. Mas já apontamos, diversas vezes, a mesma
transformação no interior da mitologia salish, mostrando que no caso da visita ao céu, isto é, a
ascensão, o episódio das duas cegas atenua o motivo das symplégades, do qual representa uma
forma limite. Em compensação, uma série mítica simétrica (M375 etc.) explora plenamente o
motivo das symplégades, para além das quais os mitos desse grupo situam um par de mulheres
jovens e férteis em lugar de velhas estéreis. Essa não é, aliás, a única diferença entre os dois
pares de mulheres, já que as primeiras agem em conjunto, ao passo que as outras não perdem
nenhuma ocasião de se desentenderem (cf. os homens cegos de M686 e a significativa
admoestação de Guaxinim); além disso, umas foram geradas por alimento cru, pois que são filhas
da leita, e as velhas cegas comem um anti-alimento, cascalho ou pedra e madeira podres.
Corresponde à interceptação de um anti-alimento que uma das cegas passa para a outra,
antes de discutirem e acabarem batendo uma na outra, na série simétrica M375, a passagem de
Gaio-Azul, que desde então ficou cego, entre duas portas que também batem uma na outra. Pois
dessa passagem bem sucedida resulta para a humanidade, afinal das contas, a obtenção do
melhor alimento: o gesto do demiurgo Lua explica a origem dos salmões, frutos de sua união com
as filhas da leita (M375a, 382). Inversamente, seu pênis introduzido na mão de uma das velhas
também evoca uma união sexual, mas num modo derisório e até negativo. O membro, logo
liberado sem ter sofrido dano algum, tem por contrapartida as penas da cauda, a crista e a nuca
de Gaio-Azul, ou ainda o pedaço de nádega do demiurgo Gelo, arrancados ou deformados por
terem sido atingidos pelas portas. O fato de os mitos tornarem as duas cegas idênticas, mas ao
mesmo tempo desiguais (pela quantidade de alimento que cada uma delas recebe em M684a,b;
pelo destino diverso dos dois tetrazes em M667a) pode ser explicado de dois modos. Primeiro, as
portas que abrem e fecham são elas mesmas a um só tempo iguais e desiguais: duas folhas
idênticas, que oscilam no mesmo ritmo mas que, quando se aproximam, são impelidas por
movimentos opostos, de cima para baixo e de baixo para cima. Em seguida, determinamos que o
duplo motivo das symplégades e das cegas está estreitamente correlacionado a um terceiro, o da
"caçada aproximada" ao tetraz ou ao pato, na qual, como no caso das portas e das mulheres
cegas, manifesta-se uma contigüidade física, mas que envolve de saída seres essencialmente
diferentes, o caçador e a presa. Entre o esquema das symplégades e o da caça aproximada, o
esquema das duas cegas faz uma transição, por uma série (que se pode ordenar) de exemplos que
vão da igualdade absoluta a uma desigualdade que permanece sempre relativa.
Até agora, portanto, o motivo das symplégades se apresentou a nós de duas formas: uma
forma máxima, associada à translação horizontal de um herói num eixo leste-oeste, terra-mar, e
uma forma mínima, associada à elevação vertical de um outro herói num eixo baixo-alto, terra-
céu. Resta-nos verificar se ao seguirmos a evolução do motivo para aquém de sua forma mínima
ele se inverte para reencontrar sua amplitude inicial, mas gerando de si mesmo uma imagem
antisimétrica à das symplégades que tinha inicialmente assumido:
Quando a terra ainda era jovem e pouco arborizada, não havia lua
nem sol. Reinava um lusco-fusco perpétuo, humanos e animais falavam a
mesma língua. Duas mulheres, que estavam ocupadas extraindo rizomas
de arbustos comestíveis, discutiam se seria melhor para elas casar com
pescadores ou com caçadores, e se seu ensopado de arbustos ficaria
melhor acompanhado de carne ou de peixe. Acabaram achando melhor
desposar estrelas e foram para o céu com os maridos. Eles traziam muitas
presas, mas o esposo da mais velha tinha os olhos remelentos (cf.
OMM:196).
O mundo celeste se parecia com a terra, a não ser pelo fato de não
haver lá nem vento, nem chuva, nem temporal. Os homens estrelas
permitiram que as esposas continuassem extraindo rizomas de arbustos,
contanto que não cavassem fundo demais. Logo a mais velha deu à luz um
filho a quem deu o nome de Lua. As duas mulheres estavam entediadas, e
por isso infringiram a proibição e furaram o céu. O vento foi tragado pelo
orifício e elas avistaram a terra natal lá em baixo.
As mulheres fabricaram uma longa escada de corda e foram embora.
Quando chegaram à aldeia, foram festejadas, e todos quiseram ver a
escada celeste. Por diversão, fizeram dela um balanço monumental, que
ia de uma montanha a outra, do norte para o sul e do sul para o norte. Ao
arrastar pelo chão, a ponta do balanço cavou os barrancos que existem
até hoje.
Enquanto todos se divertiam, aquela das duas mulheres que era mãe
tinha entregado o filho aos cuidados de uma velha sapa cega. Ele foi
raptado por mulheres-salmão. Quando se deram conta disso, todos
largaram imediatamente o balanço para ir à sua procura. Só o rato ficou
lá, roeu a corda, e o balanço despencou, formando um grande rochedo no
vale do rio Snuqualmi.
Após várias tentativas, Gaio-Azul conseguiu atravessar a formidável
muralha, cortada horizontalmente em dois, cujas metades batiam uma
contra a outra e que protegia o país dos mortos, onde vivia o menino
roubado, agora já adulto. Este prometeu que logo voltaria para junto dos
seus e mais tarde se fez reconhecer por prodígios, como a criação da rede
hidrográfica e do relevo, a diferenciação dos animais, a invenção do fogo,
a destruição dos monstros... No final, tornou-se a lua (Haeberlin 1:373-
377; cf. versão puyallup, Curtis, vol. 9:117-121).
Uma versão klallam (M375l, Gunther 2:69-80) expõe as duas mulheres a diversas
aventuras no céu; elas atravessam uma barreira de chamas e depois, portas que abrem e fecham.
A corda pela qual desceram, que caiu enrolada em espiral, seria ainda visível na forma de um
grande rochedo na ilha de Vancouver.
Uma outra versão snuqualmi (M375j, Ballard 1:69-80) identifica os arbustos comestíveis
como Pteridium aquilinum pubescens, cuja coleta constitui uma tarefa propriamente feminina. O
balanço celeste oscila num eixo norte-sul, entre montanhas a meio dia de caminhada uma da
outra. Após o rapto de Lua, sua mãe cria o futuro Sol com a urina espremida dos cueiros do
menino desaparecido. Gaio-Azul encontra o demiurgo, já pai de família, trabalhando pedras para
fazer pontas de flecha. Irritado pelo aparecimento do intruso, Lua joga lascas de pedra nos olhos
do pássaro, que fica cego, e mais tarde, ao ser informado do motivo de sua visita, cura-o. O mito
em seguida descreve detalhadamente os prodígios realizados pelo demiurgo, que finalmente volta
para junto dos familiares e sobe ao céu com o irmão, para lá se tornarem um lua e o outro sol.
"Foi organizado um concurso para escolher dentre todas as criaturas as mais aptas a servirem de
astros do dia e da noite. Antes, Lua tinha decidido que o balanço continuaria funcionando, para
que no futuro todos pudessem subir ao céu e ter seus desejos satisfeitos. Contudo, enquanto as
provas eram realizadas, o rato roeu o balanço, que caiu, com ele junto. Em decorrência desse
acontecimento, Lua decretou que a partir de então os balanços serviriam para divertir, mas não
seriam tão grandes. E maldisse o rato, que foi condenado a roer e roubar tudo de que os humanos
precisam e a destruir as melhores coisas. Os espectadores, por sua vez, foram transformados em
rochas ainda visíveis, que parecem animadas, pois se levantam o tempo todo. Cada clivagem nova
pressagia a morte de um chefe".65
Eis aí portanto mitos que integram numa narrativa contínua a história das esposas dos
astros, longamente discutida no volume anterior (M425-M438), e a gesta do demiurgo Lua (M375a-
p; M382; M506), à qual nos referimos muitas vezes. A gesta transcorre num eixo leste-oeste,
terra-mar, e o demiurgo sobe os rios ao longo de suas peregrinações. Entre a terra e o mar, entre
os humanos e os salmões de que se alimentam, entre a terra dos vivos e a dos mortos, erguem-se
as symplégades, que M375h descreve com precisão como uma muralha dividida ao meio
horizontalmente, cujas metades sobem e descem sem parar. A história das esposas dos astros, em
compensação, transcorre num eixo alto-baixo, céu-terra, e para se evadirem as mulheres se
servem de uma escada de corda, depois utilizada como balanço que oscila longitudinalmente num
eixo norte-sul e, como precisa M375j, através de um rio: "o ponto de chegada é uma montanha ao
65
Do mesmo modo que os parélios, assimiláveis a "clivagens" do sol, alhures (cf. supra:213-218).
norte do rio, o ponto de partida, uma outra montanha ao sul" (Ballard 1:72). Entre o céu e a
terra, mas para uni-los em vez de separá-los, encontra-se o balanço, antes de o rapto do
demiurgo, para longe (M375g-h), ou sua elevação, para o alto (M375j), provoque o rompimento
desse meio de acesso ao mundo celeste. Fica claro que o balanço, que se movimenta
horizontalmente num eixo de oscilação vertical e garante a comunicação entre o céu e a terra no
final dos tempos míticos corresponde simetricamente às symplégades, que se movimentam
verticalmente num eixo de oscilação horizontal e impedem a comunicação entre a terra e o mar
antes da inauguração da era histórica, com o dom dos salmões aos humanos.
*
* *
Difundido pelo mundo todo, o tema das symplégades certamente pertence ao mais antigo
repertório mítico da humanidade. O mesmo provavelmente ocorre com o balanço, em torno do
qual a América construiu toda uma mitologia (S. Thompson 3:n° 169; Waterman 3), aliás fundada
no uso real do aparelho, particularmente entre os Salish, cujas línguas distinguiam o berço-
balanço — pendurado numa vara enfiada obliquamente no solo, a que o peso e os movimentos da
criança imprimiam oscilações verticais, às vezes alimentadas pela mãe ou por uma velha que
puxava um cordão (Hill-Tout 6:224; Barnett 3:132) — e o balanço verdadeiro que, pelo menos em
alguns grupos, era utilizado cerimonial ou ritualmente, aparentemente reservado às mulheres
adultas, mas de que temos poucas informações (Elmendorf 1:228). O uso de redes-balanço foi
também notado entre os Lilloet (Teit 11:261). Associado à lua, como nos mitos salish, o motivo
do balanço ressurge na América do Sul entre os Uitoto e os Tacana.
Sem abordarmos a fundo a questão do lugar e do papel que cabem ao balanço nos mitos e
nos ritos, basta-nos ter determinado que esse motivo forma com o das symplégades um par de
termos em oposição e correlação. Os mitos de Puget Sound, que os reunem, também consolidam
numa única narrativa a história das esposas dos astros e a gesta do demiurgo, dando a esta última
uma dupla conclusão: rompimento da comunicação espacial entre os mundos terrestre e celeste,
por meio da qual, com o aparecimento do sol e da lua, é instaurada a periodicidade temporal66.
Quer os mitos de Puget Sound resultem da fusão de duas histórias que até agora
encontramos isoladamente — história das esposas dos astros e gesta do demiurgo Lua — ou, ao
contrário, as duas narrativas subsistam como produtos da fissão de um mito único cujo modelo
original teria sido preservado pelos povos dessa parte do mundo, em qualquer uma das hipóteses
o mito do desaninhador se apresenta situado "no meio", por assim dizer, fazendo o papel de
dobradiça entre esses dois grandes ciclos da mitologia americana e estabelecendo sua
articulação. Isso já se evidencia no modo como o herói, após peregrinações celestes que
reproduzem em escala menor as do demiurgo na terra (comparar, por exemplo, o episódio dos
objetos revoltados ou dos monstros vencidos em M664a, M667a e em M375j), consegue, como as
esposas dos astros, descer de volta à terra graças a uma corda. Mas as modalidades,
aparentemente gratuitas, que a intriga impõe a essa descida fazem a transição entre as
symplégades, animadas de um movimento oscilatório no plano vertical, e a escada de corda que
vira um balanço, animada de um movimento oscilatório no plano horizontal. Pois esses dois tipos
de movimento são alternativos, ao passo que a descida do desaninhador é progressiva, e realizada
em etapas. Enquanto a corda se desenrola, o herói se desloca verticalmente de cima para baixo
e, a cada vez que um patamar horizontal o obriga a parar, ele deve rolar no mesmo lugar para
que seu meio de transporte se ponha novamente em movimento. De modo que os mitos
subordinam o progresso da descida a condições que remetem aos dois aspectos.
Para confirmar essa posição mediana, seria contudo preciso que, depois de termos
encontrado no mito do desaninhador o motivo das symplégades, levado ao limite no episódio das
velhas cegas, ali encontrássemos também o motivo do balanço, igualmente levado ao limite.
Basta colocar a questão para que a resposta se apresente, com todos os detalhes exigidos pela
hipótese. A versão thompson M670a permite demonstrá-lo.
No céu, o herói primeiro encontra duas velhas cegas que preparam sua refeição
triturando num pilão galhos de pinheiro. Ao voltar para a terra, ele também encontra primeiro
duas velhas cegas, agitando galhos de pinheiro enquanto seguem as pegadas dos aldeões que se
distanciaram delas. Em si, a oposição entre os gestos de umas e outras, aplicados ao mesmo
objeto, galhos de pinheiro, já parece ser reveladora; pois o primeiro envolve um movimento
vertical de cima para baixo, que lembra as symplégades, e o outro, um movimento horizontal da
direita para a esquerda e da esquerda para a direita, que lembra o balanço e que o texto, aliás,
descreve como um balanço (a transcrição inglesa emprega a mesma palavra: "two old women who
are swinging fir branches").
Agitar galhos de pinheiro seguindo uma pista poderia certamente corresponder a um
costume real, não descrito pela literatura. O emprego de galhos de pinheiro é mencionado
apenas por rapazes púberes e culpados de assassinato, que com eles esfregavam o corpo à guisa
de purificação (Barnett 2:259, 267, 289), e por jovens púberes e mulheres menstruadas, que
durante o seu isolamento percorriam à noite distâncias consideráveis, arrancando ramos de
coníferas e os espalhando ou prendendo a outras árvores (Dawson:13). Dada a presença de
pequenos grupos iroqueses na região do Fraser desde o século XVIII (supra:318), seria igualmente
possível pensar num rito que teria sido introduzido por eles, que o chamavam de "Waving of
66
A fórmula enunciada em OMM:48 pode, pois, ser completada do seguinte modo: berço:balanço ::
balanço: symplégades :: conjuntor:disjuntor.
evergreen branches" (Hewitt 3:942), a respeito do qual, como teve a bondade de nos confirmar o
eminente especialista dos Iroqueses, W.N. Fenton, depois de ter conversado acerca dele com
seus informantes, infelizmente não se sabe nada além dessa alusão.
Mas a dedução basta para interpretar, de modo muito mais satisfatório, o comportamento
misterioso das duas velhas. Se nossa hipótese inicial estiver correta, começaremos por
determinar que Lua bebê foi raptado enquanto a população da aldeia estava toda fora, brincando
com o balanço, e ele tinha sido entregue aos cuidados ineficientes de uma velha cega. Por outro
lado, os mitos de Puget Sound precisam que as esposas dos astros fabricaram uma escada de
corda, mais tarde utilizada como balanço, torcendo galhos de coníferas ("the sisters twisted the
branches into a rope", Ballard 1:71; "the girls twisted cedar twigs", Haeberlin 1:373).
Pode-se deduzir, dessas duas indicações, que balançando galhos de coníferas, em vez de
se balançarem em cordas feitas desses mesmos galhos, mulheres que são cegas em relação ao
herói retornado (tanto quanto os apreciadores do balanço o foram, a respeito do demiurgo
raptado pelas costas deles, por assim dizer), cometem uma falta de tato, pois para
demonstrarem sua simpatia para com uma jovem mãe cujo esposo desapareceu, adotam um
comportamento que reflete, e inverte, um outro movimento do qual resultará, também para uma
jovem mãe, a perda de seu filho.
Ao seguirmos a via que escolhemos, os mínimos detalhes de um episódio aparentemente
absurdo se vêem, portanto, explicados. E inclusive teremos, mais adiante, a oportunidade de
mostrar, a propósito de um outro mito (M762, infra:452ss), que o motivo do balanço, invertido
para o eixo vertical e levado, como aqui, a seu valor limite, integra um paradigma cujo campo de
operação se estende para muito além dos Salish, e que convém sempre interpretar do mesmo
modo. Mas ainda há o que dizer acerca das duas velhas, pois que a depender de serem terrestres
ou celestes, sua cegueira não se traduz do mesmo modo.
À diferença das velhas celestes, que são realmente cegas, a cegueira das velhas
terrestres só se manifesta em relação ao herói. Ele está na picada, diante delas, mas elas não
conseguem vê-lo, embora distingam perfeitamente o rio Thompson, à sua direita, e o rio Fraser,
à esquerda. Elas só vêem, portanto, o que está de um lado e do outro de um plano mediano ao
qual elas mesmas são contígüas. A descrição das duas velhas celestes inverte essa imagem, pois
que elas se situam de um lado e do outro da mesma fogueira, e não podem se ver, mas a fogueira
que se encontra no meio delas — certamente simétrica à picada, tanto mais que um episódio
anterior de M670a explica porque as picadas são incombustíveis, supra:335; cf. Hill-Tout 10:552 —
, que não podem ver, pelo menos percebem por contigüidade, já que nela preparam sua refeição.
Por conseguinte, assim como os respectivos comportamentos dos dois pares de mulheres,
suas formas particulares de cegueira remetem, uma ao balanço e a outra às symplégades (fig.
25); pois estas últimas se situam de ambos os lados de um plano mediano, no qual vêm a juntar-
se, ao passo que o balanço, oscilando acima de um vale profundo, toca o solo apenas em dois
pontos distantes um do outro, e é a meio-caminho que mais se afasta deles. Mas as expressões
metafóricas a que os mitos recorrem também provocam inversões internas. As velhas celestes são
symplégades que não conseguem se juntar para compartilhar um anti-alimento, ao passo que, ao
se unirem, as symplégades impedem os humanos de terem acesso ao verdadeiro alimento. As
velhas terrestres só são capazes de perceber rios separados por montanhas, o balanço só permite
atingir montanhas separadas por um rio.
Resta a esclarecer um último ponto: se os dois pares de velhas são simétricos, como a
transformação em vermes (maggots) de umas corresponde à transformação em tetrazes ou patos
das outras?
Os vermes de carne tinham um lugar considerável na vida e no pensamento dos índios
Thompson, como mostra um de seus ritos: "Quando um jovem queria se tornar um caçador
resistente, no final da época de subida dos salmões, ia para a beira dos rios, que ficavam cheios
de restos de peixes mortos, cheios de vermes. Enfiava as mãos até os punhos na podridão e assim
permanecia durante horas. Acreditava-se que esse tratamento endurecia as mãos e as tornava
resistentes ao frio..." (Hill-Tout 10:513). Encontramos, entre os Klikitat, um mito (M606a) em que
uma ogra ameaça Coiote de enfiar um monte de vermes em seu ânus. Mitos coos que
resumiremos mais adiante (M793, M795, Frachtenberg 1:41, 173, Saint-Clair:35-36, Jacobs 6:211,
245, 251) mencionam um doente cujas feridas estão cheias de vermes, que "lhe roíam o ânus, o
rosto, o nariz e as orelhas, e acabaram por devorá-lo". Os Salish da costa possuem mitos,
reminiscências do Velho Mundo (M693a,b,c, Haeberlin 1:428-430, Adamson:81-83; cf. também
Apache Lipan, Opler:46-47), em que homens injustamente acusados pela cunhada se perdem no
mar e encontram um povo de pigmeus que são perseguidos por aves aquáticas. Com bocas
minúsculas, esses seres são mudos, e se alimentam de vermes que infestam o peixe podre ou da
carne de conchas dentalia, iguais a pequenos chifres curvos. Como os tetrazes e patos, que
toleram uma aproximação extrema entre o caçador e a presa, os vermes que vivem no peixe
podre e em outras carniças, de que se alimentam, também remetem à contigüidade:
(caçador):(tetraz ou pato vivos) :: (verme):(peixe morto, carniça).
Uma contigüidade do mesmo gênero, mas nesse caso entre alimento e ornamento, exite
igualmente com respeito às conchas dentalia.
É possível avançar mais um pouco na interpretação graças a M667a e M668a (Teit 4:25;
5:297), em que outros personagens substituem as velhas transformadas em vermes. No mesmo
momento da narrativa, isto é, quando o herói, de volta à terra, descobre as pegadas dos
habitantes da aldeia a caminho de seus terrenos de caça e coleta, ele primeiro encontra os
retardatários, entre os quais Formiga, Besouro e Lagarta. Ocupando exatamente a mesma posição
que as velhas cegas, esses animais são comutáveis com elas. Porém, o herói se comporta para
com eles diferentemente, não os transforma em bichos, mesmo porque eles já vestem essa forma
na narrativa, e apenas admoesta Formiga: "Por que você aperta tanto a cintura? Assim, vai se
partir em dois!" Observação criptica, que outros mitos permitem esclarecer.
Lembremos inicialmente que mitos chinook (M598a-g, supra:213), relativos à origem dos
parélios (= sol cortado em dois), nos quais um herói que subira ao céu se casara com um astro,
também explicavam porque as formigas e vespas têm a cintura fina: sua cintura tornou-se
estreita demais. Salish do interior, que compartilham a mesma crença, fornecem uma precisão
suplementar: "A formiga e a vespa quiseram que os humanos fossem mortais porque elas mesmas
eram coveiras, como mostra seu cinto bem apertado em torno da cintura" (Cline:167). Também
entre os Thompson a Formiga aparece, ao lado da Aranha e da Mosca, entre os animais
instauradores da morte. Como o herói de M667a (que têm relações coniventes com as aranhas), a
Aranha diz à Formiga: "Você vai se partir em dois de tanto apertar o cinto, e vai morrer logo". A
Formiga responde que não morrerá de verdade e ressuscitará logo depois. Segundo os índios de
Puget Sound, a Formiga apertou demais o cinto quando se debatia a alternância entre o dia e a
noite. O mesmo motivo pode ser encontrado em toda a área lingüística e para além dela,
chegando até os Kutenai do piemonte das Rochosas, que contam que a Formiga apertou demais o
cinto quando se preparava para entrerrar o primeiro morto (Okanagon, Cline:167; Thompson, Teit
5:329; Puget-Sound, Ballard 1:75; Kutenai, Boas 9:213).
Como os parélios (supra:213-218) e os galináceos (supra:353; infra:481-486), as formigas
e outros insetos são, portanto, seres divididos ao meio, cuja cintura, reduzida ao mínimo,
mantém as duas metades unidas. No pensamento indígena, correspondem a outros pares,
igualmente indissociáveis, embora seus termos se oponham um ao outro, como dia e noite e vida
e morte. Por outro lado, os patos ligados à água e os tetrazes ligados à vegetação (cf. M667a:
coníferas para o Tetraz dos campos, álamos e amieiros para a Galinha do campo de crista) se
opõem ao grupo das velhas terrestres, composto de animais que vivem todos ao rés do chão ou
abaixo dele — vermes, formigas, besouros, lagartas. O que reforça a crença dos Thompson num
mundo subterrâneo onde vive um povo de formigas (Teit 4:78-79, 116 n.253; 5:214, 373).
Compare-se esse aspecto ao papel desempenhado pelo Rato nas versões de Puget Sound, que
também corta algo ao meio, no caso a escada de corda que garantia a comunicação entre os dois
mundos, e para qualificar seu ato, M375j recorre a uma terminologia que retoma, invertendo-a, a
que o mesmo mito aplica à definição do mundo celeste. Os humanos sobem ao céu pela escada
porque lá "they can get whatever they want". Em compensação, para maldizer o Rato, o herói lhe
diz "you will gnaw and steal what people want" e assim o opõe de modo especialmente vigoroso
ao céu, enquanto lugar onde todos os desejos serão satisfeitos, ao passo que o papel subterrâneo
do Rato será o de frustrá-los. Pois bem, o balanço também está ligado à terra, pois suas
oscilações criam nela o relevo. E as symplégades, que pelo menos uma versão (M375l) escolhe de
situar no céu, estão sempre associadas ao longínquo, de que o céu apresenta a realização mais
extrema, já que os salmões liberados garantirão a comunicação entre o mar e a terra, mas, após
o rompimento da escada de corda, a comunicação entre a terra e o céu será para sempre
abolida.
De modo que, na verdade, é a origem da vida breve (supra:153) e da periodicidade
(entendida num sentido a um só tempo cosmológico e biológico) que vemos reaparecer aqui,
evocadas ora pelas formigas coveiras, ora por vermes, símbolos da deterioração orgânica.
Contudo, essa origem da vida breve é transferida para o ciclo do desaninhador, ao passo que a
mitologia sul-americana faz dela uma função do ciclo da estrela esposa de um mortal, a qual
reproduz, às custas de uma mera inversão dos sexos, o ciclo norte-americano das esposas dos
astros, por sua vez fundador da periodicidade dos ritmos biológicos (cf. CC:155-171; OMM:178-
184). Versões salish do ciclo do desaninhador retomam mais uma vez o mesmo motivo, transposto
nas seqüências que agora iremos discutir, com a origem das doenças personificada por uma velha
cuja pele é vestida pelo enganador e que se chama Doença (M677), ou com a missão patogênica
que dá à própria filha, encarregando-a de espalhar as epidemias (M678).
O fato de o mito do desaninhador fazer o papel de dobradiça entre os mais importantes
ciclos míticos compartilhados pelas duas Américas já bastaria para explicar que ele se tenha
imposto a nós como mito de referência, quando ainda não tínhamos consciência desse papel
estratégico, que só uma longa análise estendida por quatro volumes nos permitiria evidenciar.
Ora, o ciclo do desaninhador tem uma difusão panamericana, como os dois outros que ele articula
e entre os quais garante a transição. Na forma dupla de esposas dos astros e de estrela esposa de
um mortal tínhamos localizado um deles, e seguido as etapas de suas transformações. Quanto à
gesta do demiurgo Lua, que tínhamos encontrado pela primeira vez na América do Sul, entre os
Baré (M247), é impressionante reencontrá-la em termos praticamente idênticos no noroeste da
América do Norte, entre os Salish de Puget Sound, os Klallam e os Nootka, por exemplo (M375j-o,
Ballard 1:69-80; Gunther 2:143-144; Boas 2:903-913; Curtis, vol. 8:116-123; Sapir & Swadesh
2:45-51). Aí está, sem dúvida, a manifestação mais patente da unidade profunda da mitologia
americana.
SEXTA PARTE
VOLTA ÀS ORIGENS
O FOGO E A CHUVA
In tal guisa i primi poeti teologi si finsero la prima favola divina, la più grande di quante mai se
ne finsero appresso, cioè Giove, re e padre degli uomini e degli dèi, ed in atto di fulminante; si
popolare, perturbante e insegnativa, che'ssi stessi, che sel finsero, sel credettero e con
ispaventose religioni, le quali oppresso si mostreranno, il temettero, il rivevirono e l'osservarono.
Foi sufocando as chamas de uma fogueira doméstica que a ogra de M720 espalhou a escuridão
para mais facilmente perpetrar seus crimes, e foi acendendo uma fogueira que seu celeste filho,
senhor da piroga solar, a fez morrer para castigá-la. Neutralizado na terra, o fogo de cozinha se
inverte em fogo destruidor no céu, num mito que atribui aos salmões uma origem celeste,
portanto imaginária e contrária à sua origem verdadeira, que outros mitos (M375, M382, M720a),
mais de acordo com a experiência, situam ao longe no ocidente, no mar de onde, efetivamente,
os peixes retornam todos os anos. Simplificando demais, poderíamos concluir que o pensamento
salish estabelece uma relação inversamente proporcional entre a origem do fogo de cozinha e a
origem dos peixes destinados à alimentação. Conforme os casos e os grupos, os salmões proviriam
de longe e o fogo, do alto. Ou então, ao contrário, o fogo proviria de longe e os peixes, do alto.
Veremos, contudo, que a realidade é mais complexa, pois certos mitos atribuem a mesma origem
longínqua ao fogo e aos salmões.
Já encontramos um exemplo dessa origem comum do fogo e dos peixes, num mito lilloet
(M717a, supra:404) no qual Corvo, agora dono da luz do dia, que roubou de seu amigo Gaivota,
avista uma coluna de fumaça que revela o local onde arde o fogo primordial, zelosamente
guardado pelos peixes. Corvo se aproxima de canoa, captura uma menininha e exige o fogo à
guisa de resgate. Depois partilha o fogo com as famílias que consentem em lhe dar em troca uma
esposa.
Mencionaremos rapidamente uma série de variações sobre o mesmo tema. Os índios do
baixo Fraser contam (M717b, Boas 13:43) como Castor e Pica-Pau roubaram do chefe dos peixes o
fogo e a filhinha ainda no berço; lançados no rio, o bebê e o berço originam os salmões. Castor
em seguida deu aos espíritos o fogo, que Vison por sua vez roubou, depois de decapitar-lhes o
chefe, e devolveu, em troca da broca de fogo. Duas versões provenientes dos Nanaimo, Salish da
ilha de Vancouver (M717c,d; ibid.:54-55) atribuem a posse do primeiro fogo a um povo
desconhecido, ou aos espíritos dos mortos. Em ambos os casos, Vison rapta um bebê exige o fogo
ou o intrumento que serve para produzi-lo para devolver a criança. Uma variante comox (M717e;
ibid.:80-81) substitui Vison por um cervídeo que conquista o fogo ou a broca de fogo depois de
ter atravessado symplégades. Os Kwakiutl (M717f; ibid.:158) dizem que Vison raptou o filho do
chefe dos espíritos e o trocou pelo fogo. Segundo os Klallam (M717g, Gunther 2:142, 146), o fogo
e o tempo bom, propício à pesca, foram obtidos dos mortos como resgate por uma ou várias
crianças raptadas pelo demiurgo. Aproximamo-nos da versão lilloet com os Skagit do norte do
estreito de Puget (M717h, Haeberlin 1:391-393): Corvo e Vison, dizem eles, roubaram a luz do dia
do povo do leste.
Os Thompson (M663b, Teit 5:338-339; cf. supra:309) falam de tempos idos em que a
madeira era incombustível e um povo que vivia perto do estuário do Fraser possuía o fogo. Os
habitantes de montante enviaram Castor, Doninha e Águia para conquistá-lo com um estratagema
(infra:435). Na volta, Castor ensinou como acender uma fogueira, Águia explicou a técnica da
grelhagem, e Doninha a do cozimento por fervura, com pedras incandescentes colocadas na água.
Uma parcela do fogo foi introduzida em cada madeira; desde então, a madeira queima. Uma
outra versão (M663c, ibid.:229-230) precisa que antes da conquista do fogo o sol era muito mais
quente do que hoje em dia; o alimento era colocado sob o sol, a quem imploravam que a cozesse
(cf. CC:295 n.1). Os Thompson do rio Nicola contam (M663d, Boas 4:2) que Coiote avistou do alto
de uma montanha, na direção sul, o longínquo clarão do fogo, que um povo desconhecido
possuía. Foi até lá com seus companheiros, deu um jeito para seu chapéu de lâminas de madeira
pegar fogo quando se aproximou da fogueira e fugiu. Os donos do fogo provocaram uma ventania
e toda a região foi tomada pelas chamas. Coiote respondeu provocando chuvas torrenciais, que
apagaram o incêndio. Desde então, fogo e fumaça existem por toda parte como inseparáveis; e
como no mito o vento serviu para excitar as chamas, hoje se assopra sobre o fogo para atiçá-lo.
Ao contrário do que ocorre no mito acima, a conquista do fogo se faz no longínquo norte
em certas versões thompson (M663e, Hill-Tout:561-563) que, de modo certamente significativo,
atribuem ao Castor, e não ao Coiote, o mérito por ela, o que as aproxima dos mitos salish do
planalto segundo os quais a conquista do fogo se deu no céu (infra:414-417), isto é, no alto, em
vez de longe. Não é menos significativo que as versões mencionadas acima, contrariamente aos
mitos sobre a conquista celeste, cuja função regressiva com respeito à continuidade primeira dos
reinos naturais já sublinhamos e voltaremos a sublinhar (supra:356; infra:418-421), louvem Castor
por uma outra conquista após a do fogo, a (M663f, ibid.:563-564) de uma coberta mágica ornada
com pinturas representando todos os utensílios, instrumentos e armas que viriam a constituir o
arsenal da cultura indígena tal como existia antes da chegada dos brancos. Castor recortou
cuidadosamente os modelos e seus companheiros se inspiraram neles para fabricar cada tipo de
objeto. Mas o proprietário da coberta se vingou, transformando Castor no animal que é desde
então.
De modo ainda mais claro que os Thompson (cf. M698a-e, supra:386-387), os Shuswap
estabelecem uma ligação entre a conquista do fogo e a guerra entre as espécies animais pela
posse dos salmões. Como no mito lilloet M717a, os quadrúpedes heróis dos mitos shuswap (M721a-
b, Teit 1:669) roubaram o fogo dos peixes. Na mesma ocasião, raptaram uma mulher grávida que
tornaram sua escrava e que pouco depois deu à luz um filho. Informado pela mãe de sua origem e
das desgraças que vitimaram sua raça, o menino pediu a proteção do trovão e do raio e, com a
ajuda desse fogo celeste e destruidor, exterminou os assassinos dos seus.
Um vasto grupo de mitos, registrados desde os Chinook ao sul, aos Nez Percé a leste e aos
Thompson ao norte, também conhecido pelos Salish da Costa, refere-se a um conflito triangular
que opõe humanos, peixes e quadrúpedes, em torno de uma jovem índia raptada por um salmão e
posteriormente pelos quadrúpedes — em geral os lobos — quando ela vai visitar sua aldeia natal
(Coeur d'Alêne, Reichard 3:119-121. Sanpoil, Ray 2:142-145. Thompson, Teit 5:231-232, 236-241.
Ver também Haeberlin 1:383-384, Jacobs 1:159-163, Boas 10:77, Phinney:222, Adamson:110,
etc.). Finalmente vencidos, os lobos assumem sua natureza animal, tornam-se inofensivos para os
humanos, renunciam ao fogo e adotam o alimento cru (Reichard, l.c.; Adamson:191, 307, 337)67.
Infelizmente, não seria possível estudar a fundo esse grupo de mitos, que apenas
resvalamos a propósito de M698e (supra:386), sem introduzir outras questões, a que aludimos
diversas vezes (supra:322 n.1, 329, 341 n.1, 346), explicando porque nos resignamos a deixá-las
de lado, o que não impede que voltemos a elas um dia. De modo que aqui faremos apenas duas
67
Fórmula que é invertida mais ao sul, entre os Tillamook (M652), que fazem dos lobos os donos de
um fogo que não se apaga.
observações. Primeiro, a guerra entre os protótipos das espécies animais e os humanos,
consecutiva ao rapto de uma humana por um peixe, faz claramente eco à repartição pacífica das
espécies animais entre os humanos, com a atribuição a cada grupo de seu alimento específico
(salmões para uns, cabras e cabritos para outros), após uma prova cujo objetivo é determinar os
que aceitam e os que recusam a troca de suas filhas entre eles. Assim, ao rapto de uma moça
humana por um salmão se opõe a outorga dos salmões aos humanos, contanto que concordem em
passar a trocar suas filhas entre eles, em vez de roubá-las. Os mitos hipostasiam os termos dessa
última alternativa considerando casos extremos, um em que o roubo de uma mulher se mostra
ainda mais exorbitante na medida em que é praticado por animais contra humanos, e outro em
que a troca matrimonial, contrária ao rapto, é instaurada e mantida dentro dos próprios limites
da humanidade.
Em segundo lugar, esse esquema que opõe o roubo à troca se insere num sistema mais
vasto junto com outro, fazendo emergir uma correlação entre os salmões e o fogo de cozinha,
respectivamente matéria e meio da culinária, ambos provenientes do mundo dos mortos ou dos
espíritos. Nesse sistema, o alimento e o fogo de cozinha são comutáveis: a obtenção de sua
presença permite a troca, a sujeição a sua ausência obriga ao roubo como compensação.
Correspondendo simetricamente ao filho da humana entre os salmões [no original, "filho do
salmão e da humana", mas ela já estava grávida quando foi raptada], dono de um fogo celeste e
destruidor que provoca a morte de seus raptores, o filho dos donos do fogo terrestre (que são os
espíritos dos mortos), ele próprio raptado e cujo preço do resgate é o fogo, parece portanto
poder ser deduzido, por intermédio de uma série de transformações, de uma armação global na
qual, tendo em vista a distribuição ao mesmo tempo compacta e restrita desse motivo, pode-se
lhe atribuir uma posição derivada em relação ao tema mais geral do fogo pura e simplesmente
roubado.
*
* *
Os mitos que situam ao longe a conquista do fogo que antes era dos espíritos dos mortos
ou dos peixes estão, efetivamente, concentrados em sua maior parte entre o norte do estreito de
Geórgia e a margem sul do estreito de Juan de Fuca. Em todo o entorno dessa área, são
conhecidos outros mitos segundo os quais a conquista do fogo ocorreu no céu. A relação de
simetria entre esses mitos e os precedentes é confirmada pelo fato de neles a falta inicial de fogo
resultava de a madeira ser, antigamente, incombustível, ao passo que nos outros prevalecia a
situação inversa, já que os ancestrais contavam com um fogo contínuo que ardia sem madeira e
que só perderam porque cometeram uma imprudência.
Os Tillamook, cuja posição isolada em relação ao restante da família salish certamente
explica a preservação, em seus mitos, de numerosos traços arcaicos, situam esse fogo milagroso
num tempo em que também as regras de exogamia funcionavam ao contrário:
Visto que o texto informa que, ao dispersar as brasas com o atiçador, a mulher quase
cegou a velha mãe-fogo, existe uma relação de simetria entre os mitos nos quais o herói — no
céu, em vez de na terra — cura a cegueira de suas protetoras sobrenaturais furando-lhes os olhos
com a ponta de seu pênis (M600f, supra:361; acerca da conotação fálica do atiçador, ver
infra:474). E, de fato, a situação que ele encontra no céu, onde passa frio e os produtos de
cestaria — símbolos da cultura do mesmo modo que o fogo doméstico — o atacam quando ele
tenta usá-los para preparar um banho de vapor e se aquecer, contrasta radicalmente com aquela
que é descrita por M722, em que a cultura se cria por si mesma, graças a um fogo maternal que
aquece seus filhos, alimenta-os e, desobrigando-os de trabalhar, cobre-os de objetos já prontos.
Uma segunda correlação aparece, mas num outro eixo, entre M722 e um mito nez percé (M655a)
em que o herói se casa com mulheres-cabritas e, desinformado, causa a morte dos "filhos" delas,
que são espetos de madeira, ao tentar utilizá-los como atiçadores. Ora, esse mito também
transforma do do desaninhador de pássaros (supra:293).
Os índios do estreito de Puget (Green River, Puyallup) contam histórias do mesmo tipo:
M723a, b, c. Estreito de Puget: a conquista do fogo
*
* *
Falando apenas dos pássaros, já nos vemos confrontados a várias espécies. As versões
M723b,c não esclarecem a identidade daquele que ajustou a corrente de flechas; M723c (Ballard
1:53) o nomeia /tistses/ e o descreve como "o menor de todos os passarinhos".
Um mito do rio Cowlitz, coletado em língua sahaptin mas, na verdade, de origem salish
(M725, Jacobs 1:145-146) diz que a corrente de flechas foi feita em conjunto por passarinhos
muito parecidos, um deles chamado /t'si'dadat/ e o outro a cambaxirra. Essa dualidade, já
aparente em M723b, mas menos marcada, também se manifesta entre o "passarinho" herói do
mesmo mito e Corvo, entre Pica-Pau e sua avó Caramujo em M724a, e entre os dois melros de
M724b. Os Klikitat, vizinhos dos Cowlitz, diferentemente, encarregam um só pássaro, o sapsucker
— pequeno pica-pau do gênero Sphyrapicus (Bent, Woodpeckers:145, 151, 154; Godfrey:278-280)
— da tarefa de prender no céu duas correntes de flechas, paralelas como os lados de uma escada
(M726, Jacobs 3:175-181).
Voltemo-nos para os Salish do Planalto. Os Kalispel ou Pend d'Oreilles (M727, Boas 4:118)
fazem da Cambaxirra o autor da corrente de flechas, e o Urso Grizzly o responsável por sua
ruptura, em conseqüência da qual o Esquilo voador desenvolveu suas membranas, o peixe
Catostomidae ("sucker") teve os ossos quebrados em pedacinhos, o que o encheu de espinhas, e
um outro peixe ("whitefish", Coregonus?) fez uma careta de medo, o que o deixou com a boca
arredondada e franzida68.
Segundo os Sanpoil (M728, Boas 4:107-108), foi na primavera seguinta e um dilúvio que
apagou todas as fogueiras que os animais subiram ao céu para conquistar o fogo. O Chapim
("chickadee", Parus sp.) atirou as flechas, o Hamster, o Castor e a Águia roubaram o fogo. Como o
Grizzly tinha quebrado a escada porque era pesado demais, cada um dos quadrúpedes voltou ao
solo carregado por um pássaro. Coiote, que tinha ficado para trás, improvisou asas e virou
morcego. O peixe catostomídeo teve os ossos quebrados, e por isso tem tantas espinhas.
Variantes muito próximas (M728b,c, Ray 2:152-157) acrescentam que o povo celeste urinou sobre
os ladrões, tentando apagar o fogo que eles tinham pegado. Foi por essa razão que eles, que já
68
Os Coregonus têm uma boca minúscula, devendo alimentar-se de animais mínimos e de plâncton.
tinham o fogo, inventaram as roupas para proteger da chuva e a prática de fazer reservas de
alimento prevendo o mau tempo.
Além de M728, os Sanpoil têm uma versão mais complexa:
Chapim estava indo juntar-se aos que queriam atirar flechas até o
céu, conforme lhe tinham dito, quando Coiote zombou dele. Sentiu-se
provocado e o matou, mas Raposa logo ressuscitou o compadre.
Num segundo encontro, Coiote desafiou Chapim numa competição e
ganhou todas as suas armas e roupas. Pouco mais tarde, cozinhou os dois
filhos das Frangas ou Galinhas dos campos, porque os pequenos só
grunhiam em vez de responder a suas perguntas. Chapim chegou nesse
momento, e prometeu aos pais desesperados que ressuscitaria seus filhos
se eles o ajudassem a recuperar tudo o que Coiote tinha tirado dele.
As aves montaram uma emboscada no caminho pelo qual ia Coiote e o
assustaram, voando de repente na sua frente. Ele perdeu o equilíbrio e
morreu no fundo do barranco. Raposa o ressuscitou mais uma vez. Chapim
já tinha conseguido recuperar suas armas e roupas, participou do
concurso e foi o único que conseguiu prender na abóbada celeste a
primeira das flechas da corrente, que os outros animais completaram.
Começou a grande ascensão. Grizzly foi o último a querer subir, mas
quebrou a escada, porque levava suas provisões, e teve de ficar em
baixo. Os outros animais, menos previdentes, não encontraram nada para
comer no céu69. Esfomeados e sem a escada, assumiram a forma de
diversos objetos e planaram até o solo. Só ficaram no céu dois pares de
amigos, Castor e Pica-Pau e Cão e Excremento. Cão comeu o companheiro
e desceu de volta à terra. Os dois outros roubaram o fogo, mas uma
inundação o apagou. Sobrou apenas uma brasa que uma pega conseguiu
proteger.
Para escapar de seus perseguidores, Pica-pau se escondeu atrás de
um monte de galhos, onde foi descoberto por uma velha terrestre.
Naquela época, Pica-pau era completamente vermelho, "era o rei dos
passarinhos". A velha o fez casar-se com sua neta, mas achava o genro
bonito demais. Por isso, ela acendeu uma grande fogueira com madeira
resinosa e o vento levou a fumaça até o lugar onde Pica-pau estava
sentado. Logo ele ficou coberto de fuligem, a só conseguiu proteger a
cabeça, para que algo restasse de sua beleza. A cabeça continuou
vermelha, mas o corpo, desde então, ficou negro (Ray 2:157-160).
O caráter regressivo dos mitos kalispel e sanpoil, evidenciado nesse último episódio,
também é revelado pelo comentário de que, na época em que estão situados, as espécies animais
não só eram mais belas como também eram mais numerosas do que no presente. Várias delas
foram exterminadas pelo povo celeste e viraram estrelas. Hoje em dia, na terra, estão apenas os
69
Essa versão parece, pois, evocar a origem das provisões de viagem, que convém preparar em
quantidade suficiente, mas não exagerada, contrariamente às provisões de inverno de que fala a outra
versão sanpoil (M728a, supra:417), em relação às quais a questão da limitação simplesmente não se coloca.
A oposição entre os dois tipos de reserva alimentar pode certamente ser explicada pelo fato de o herói de
sobreviventes do combate (Boas 4:118 n.2). Os Okanagon pensavam o mesmo, e também
atribuíam a paternidade da corrente de flechas ao Chapim. Mas explicavam o rompimento dela
como resultado de uma discussão acerca de seus pesos respectivos entre Urso Negro e Grizzly
(M730a,b; Boas 4: 85, 92).
Uma terceira versão okanagon (M731, Hill-Tout 8:146) chama de /tsisk$kena/ o pássaro
que foi o autor da corrente de flechas. É novamente o Chapim, como confirmam versões mais
recentes (M732a,b; Cline:218-222), em que o nome do pássaro é transcrito /tcuckakína/. Nelas,
dos dois pares que ficaram no céu, Cobra d'Água come Rã e Cão come Excremento. Na outra,
aparece apenas o primeiro par, com o mesmo desfecho. Em ambos os casos, os peixes quebram os
ossos ou a cabeça ao caírem, o que explica suas espinhas e a estranha forma da boca do bagre
("catfish") e da cabeça do catostomídeo.
Por outro lado, é possível que uma versão mais antiga (M733a, Gatschet 2:137-139)
reservasse o papel de pássaro heróico à Cambaxirra. Pelo menos é isso que escreve Boas (9:283),
que devia ter suas razões. Contudo, o próprio texto de Gatschet identifica o pássaro ao
Zonotrichia intermedia, um tentilhão portanto. Por outro lado, o nome indígena /tskan/ ou
/tseskan/ se parece mais com o do chapim mencionado no parágrafo anterior, e a descrição de
Gatschet de "um pássaro de cabeça preta com marcas brancas nas faces" caberia tanto ao chapim
quanto a certos tentilhões que também apresentam a oposição entre branco e preto, mas menos
acentuada. Apesar da constância do nome dado na América do Norte ao chapim (infra:437), tais
dúvidas convidam à prudência quando se quer identificar com precisão os animais dos mitos.
Seja como for, o pássaro de M733a possui, como o chapim segundo os Sanpoil (M729), um
arco e flechas de força prodigiosa, a que deve seu sucesso; Coiote e as Frangas o envolvem nas
mesmas aventuras que o mito sanpoil atribui ao Chapim. O mesmo ocorre em relação a um mito
kalispel (M733b, Boas 4:114-115) que conclui com a morte de Coiote provocada pelas Frangas e
sua segunda ressureição.
Já comentamos os mitos dos Thompson relativos à conquista do fogo realizada longe
(M633b,c; supra:412). Esses índios também têm mitos em que a conquista do fogo não aparece,
mas nos quais os habitantes da terra fazem guerra contra os do céu, embora por outros motivos,
como o gosto pela aventura, o temperamento belicoso (M734a, Teit 5:334) ou a intenção de
vingar o rapto de uma mulher (M734b, ibid.:246). Nesta última versão, os terráquios contam com
vários pássaros em suas fileiras, entre os quais Cisne como marido ofendido e Cambaxirra como
autor único da corrente de flechas. Uma versão mais curta (M743c, Boas 13:17) chega a
responsabilizar os pássaros, membros do povo terrestre, pelas primeiras hostilidades.
uma versão ser a Cambaxirra, e o da outra, o Chapim, pássaros associados, respectivamente, à má e à boa
estação (infra:437, 445).
Em compensação, os habitantes do céu incluem Ursos Grizzly, Ursos Negros e Cervos, o
que implica uma inversão radical dos mitos anteriormente examinados, em que Urso Negro e
Grizzly representam os terráqueos mais pesados, responsáveis pela ruptura da escada e
impedidos, unicamente por isso, de ir ao céu. As duas versões thompson concordam em enfatizar
a derrota sofrida pelos Terráqueos, que recuam desordenadamente para a escada, a qual é
quebrada devido ao peso. Muitos morreram na queda e outros, que estavam logo acima do lugar
em que ela se rompeu, tiveram de voltar apressadamente para o céu, onde foram mortos ou
aprisionados. Por isso as espécies de mamíferos e de pássaros são muito menos numerosas na
terra do que no passado. A maioria delas pereceu no céu ou virou estrela.
Uma curiosa versão proveniente do baixo Fraser (M735, Boas 13:31) lança uma ponte em
direção à história do desaninhador de pássaros, e a seqüência deste livro mostrará melhor o
porquê disso. Pica-pau e Águia, dois irmãos, tinham cada um um filho (cf. M718, supra:405).
Coiote, por inveja, quis se livrar deles. Transformou os excrementos de sua mulher numa bela
ave aquática, que os dois primos preseguiram até irem parar no céu. Seus pais organizaram uma
expedição para libertá-los, mas só o rapaz cuja avó era Pica-pau — que o ajudou marcando o
compasso com seu canto mágico (cf. M724a, em que uma avó divide o contínuo espacial
finalizando a escala cósmica) — conseguiu dirigir suas flechas até o céu. Todos os guerreiros
subiram, venceram os habitantes do céu e libertaram os dois rapazes. Mas derrubaram a escada
de flechas antes de Caramujo ter tocado o solo; o infeliz caiu e quebrou os ossos, o que explica
sua atual lentidão. De modo que, ao mesmo tempo que o episódio dos animais acidentados é
invertido (já que aqui Caramujo perde os ossos, em vez de certos peixes ganharem espinhas), o
motivo da conquista do fogo dá lugar à libertação de heróis ["um herói" no original] cujas
aventuras reproduzem as do desaninhador.
Terminaremos este inventário com os Shuswap (M736, Teit 1:749). Urso Negro e Carcaju,
um chefe dos Peixes, e o outro dos Pássaros70, reuniram os povos da terra para guerrear contra os
habitantes do céu. Só Cambaxirra, o menor dos passarinhos, conseguiu plantar sua flecha na
abóbada celeste. Outros informantes atribuem o grande feito a Beija-Flor ou a Chapim. Seja
como for, cada um dos pássaros, por ordem de tamanho, atirou uma flecha. Encaixadas pelas
extremidades, elas formaram uma escada que ia até o chão. Os guerreiros subiram por ela,
deixando em baixo dois chefes, para proteger sua retaguarda. Os dois começaram a discutir,
depois empurraram um ao outro contra a escada, e ela despencou.
Os Terráqueos atacaram os Celestes. Começaram vencendo, mas a sorte mudou de lado e
os Terráquios recuaram desordenadamente para a escada. Acuados, uns enfrentaram o inimigo,
outros se jogaram no vazio. Entre estes, os pássaros conseguiram voar até o solo e vários peixes
erraram o lago que tinham em mira e se feriram ao caírem nas pedras. Desde então, uma espécie
tem a cabeça achatada, outra a mandíbula quebrada e outra ainda a garganta ensangüentada
(sobre essa espécie de peixe, ver Adamson:163); os da espécie Catostomidae quebraram todos os
ossos, e ficaram com o corpo cheio de espinhas. Os Terráqueos que ficaram no céu foram mortos
ou transformados em estrelas.
Várias indicações presentes nos mitos sugerem que essas estrelas, as menores entre as
visíveis no céu, são também as que não pertencem a constelações nomeadas. No registro
astronômico, elas representam, portanto, uma espécie de contínuo residual que se opõe às
constelações, para as quais os Salish dispõem não só de termos descritivos, como também de
mitos específicos, que explicam a origem e a configuração de cada uma delas, correspondendo a
personagens terrestres que foram transportados para o céu e imobilizados em poses
características, como quadros vivos. Demos delas alguns exemplos (supra:294; cf. M719, p. 405).
Os pássaros, que podem voar, saíram-se bem da aventura celeste, mas as espécies de mamíferos
foram reduzidas em número, de onde se pode inferir que os afastamentos diferenciais entre as
que ficaram se tornaram mais pronunciados. No que diz respeito aos peixes, os mitos parecem
excluir as várias espécies de salmões e trutas, base da alimentação indígena, e reter apenas três
ou quatro gêneros, não consumidos, como o /tcoktci'tcin/, um peixinho de garganta vermelha
(Teit 1:692 n.1, 749 n.3), ou pouco apreciados, como os Catostomidae ("small, poor fish such as
suckers", diz o mito okanagon M697a, Boas 4:69). Também nesse caso, conseqüentemente, os
mitos dão conta sobretudo dos aspectos privativos da criação. Do conjunto dos peixes, cuja
origem é retraçada na gesta do demiurgo Lua, consideram apenas os que não são salmões, ao
contrário do ciclo do desaninhador que, entre os Salish, só se interessa pelos salmões (supra:380).
*
* *
Mas a primeira questão colocada pelos mitos sobre a guerra dos mundos, com ou sem
conquista do fogo como objetivo, está ligada a suas divergências ou obscuridades no que diz
respeito à identidade do passarinho que é o único capaz de prender no céu a corrente de flechas
ou de construi-la na totalidade. Seria fácil explicar a escolha pela Cambaxirra, por comutação no
eixo vertical do longo pênis, que vários mitos lhe atribuem (M701a-c, supra:393), em escada de
flechas, o que faria dela mais um argumento em favor da convertibilidade recíproca dos eixos
horizontal e vertical, que unem perto e longe, baixo e alto, como havíamos postulado, por outras
razões. Mas há mais: o longo pênis, conjuntor no eixo horizontal, é um corpo homogêneo de
superfície lisa, ao passo que a corrente de flechas, conjuntora no eixo vertical, é composta de
elementos discretos que precisam, portanto, ser articulados. Os mitos insistem nesse segundo
70
Acerca das razões pelas quais Carcaju é um dono dos pássaros, ver Lévi-Strauss 9:67-72.
aspecto, quando precisam que um colaborador ou protetor teve de intervir para fazer degraus
(M723), amarrar os elementos solidamente uns aos outros (M724a) ou ritmar o trabalho do
construtor marcando o compasso com seu canto (M735), e quando dizem que a corrente de
flechas formava uma espécie de escada (M726), e assim a descrevem, em quase todos os casos.
Diante do longo pênis, orgão natural que remete ao contínuo como a própria natureza, a corrente
de flechas, artefato artificial, ilustraria portanto o que há tempos chamamos de cromatismo
(CC:252-287, 325-333), verdadeira categoria americana do entendimento: por acumulação de
pequenos intervalos, a corrente de flechas cria contínuo com discreto. Parece ser significativo,
portanto, que permita subir ao céu, mas não descer de volta — já que é destruída antes — ao
passo que, nos mitos do desaninhador, uma outra obra cultural, a corda de cânhamo feita com o
trançado — uma técnica pacífica, ao contrário da caça ou da guerra, evocadas pelo emprego de
flechas — permite descer do céu sem ter antes servido para subir até lá. E com efeito, os mitos
do estreito de Puget sobre as esposas dos astros, comemorando uma época em que era possível
fazer o trajeto nos dois sentidos, referem-se a um artefato trançado como a corda reservada à
descida, mas em forma de escada, como a corrente de flechas, que permite apenas a subida.
Por que, afinal, certos mitos sentem a necessidade de substituir outros pássaros pela
Cambaxirra, cujo emprego parece tão apropriado? Se desconsiderarmos o beija-flor citado por
alguns informantes shuswap, certamente a título de passarinho muito pequeno (categoria que,
como veremos, possui em si mesma uma função pertinente), esses pássaros podem ser reduzidos
a dois tipos, de um lado, o Pica-pau de cabeça vermelha ou ainda o Sphyraphicus sp., gêneros
vizinhos aos quais reconheceremos a mesma função semântica71 e, do outro, o Chapim.
Comecemos por este último, a que se referem mitos que, como eles mesmos às vezes dizem, se
passam antes da guerra no céu pela conquista do fogo.
Uma velha vivia com seu neto perto de um rio. O menino quis
atravessar a água e convenceu um velho cervídeo a levá-lo nas costas.
Porém, no meio do rio, ele o degolou e matou (inversão do passador
suscetível, supra:399-400).
A avó começou a esquartejar o bicho. Atraídos pelo cheiro de carne,
cinco lobos resolveram roubá-la. A velha fabricou um manequim de
madeira podre à imagem do neto e o colocou bem à vista. Depois, por
magia, transportou-se com o neto e suas provisões para uma saliência na
parede de um rochedo escarpado. Os lobos atacaram a casa e só
encontraram a madeira podre do manqeuim. Tentaram saltar até o
refúgio, mas como era alto demais, não conseguiram. Deram-se por
71
Tanto mais que a identificação do primeiro é duvidosa, visto que o verdadeiro Pica-pau de cabeça
vermelha (Melanerpes erythrocephalus) não é um habitante costumeiro do extremo oeste do continente (cf.
Godfrey:276-277), e o próprio gênero Sphyraphicus inclui espécies de cabeça vermelha. Poderia tratar-se,
conseqüentemente, de um único pássaro.
vencidos e pediram um pouco de carne. A velha disse ao neto para jogar
na boca deles pedras ardentes envoltas em gordura. Todos os lobos
morreram, exceto o mais jovem, que não conseguiu engolir uma pedra
grande demais e apenas queimou os cantos da boca. Daí as marcas
escuras que os lobos têm nesse lugar.
Os dois refugiados ficaram vivendo na saliência do rochedo. Quando
todas as suas flechas acabaram, o rapaz procurou penas para empenar
novas flechas. Provocou uma briga entre duas águias e pegou as penas
que caíam. Ele se transformou em chapim e deixou a avó, para ir ao
encontro dos que estavam preparando a guerra contra o céu (Boas 4:107).
De modo menos claro do que o mito okanagon M733a, em que o assassinato do cervídeo
fornece ao herói a costela com que ele fabrica um arco, essa versão sanpoil evoca a origem das
armas mágicas graças às quais o herói conseguirá mais tarde atirar suas flechas até o céu. Mas
aqui o herói é um chapim, e lá, um outro pássaro. Por outro lado, seu personagem inverte o do
desaninhador, na medida em que a disjunção para o alto desempenha um papel salvador e
permite ao herói conseguir realmente penas de águia. Conforme a versão okanagon supracitada,
o pássaro /tskan/ inclusive conseguiu as penas para flechas graças a um estratagema que
combina as aventuras do desaninhador com um motivo ligado à conquista do fogo, disfarçando-se
de carniça para poder ser levado por uma águia para o ninho no alto de um rochedo escarpado e
lá pegar os filhotes.
E finalmente, a seqüência aqui narrada, anterior à guerra contra o povo celeste, lhe é
simétrica, na medida em que o herói, depois de ter subido não ao céu, mas muito alto, fere a
boca dos lobos e assim introduz na aparência física destes um afastamento distintivo próprio da
espécie. Essa alteração significativa resulta do lançamento de pedras ardentes (remetendo ao
fogo) do alto, sobre corpos que se encontram em baixo, ao passo que nos mitos sobre a guerra
celeste, certos peixes, em vez de quadrúpedes, têm a boca ferida por terem caído do alto sobre
pedras que estão em baixo e que, na beira de um lago, remetem à água; de que decorre
igualmente uma diferença específica no seio de uma outra família de vertebrados.
Os Shuswap e os Thompson colocam a origem do chapim num contexto que se aproxima
ainda mais do modo como os Salish do Planalto contam a história do desaninhador (referência:
M667a,b):
72
Nesses mitos, um velho sarnento fecunda uma filha de chefe cuspindo ou urinando sobre ela do
alto de uma escada ao pé da qual ela adormecera (ver Lévi-Strauss 20). Vê-se, portanto, que a flecha única
que atinge o alvo — representação simbólica da moça — na primeira tentativa está relacionada à corrente de
flechas da outra série mítica do mesmo modo que o jato de urina, suprindo a impotência sexual de um
velho, doente ainda por cima, está relacionado ao longo pênis. Encontramos novamente, pois, pelo viés de
uma demonstração indireta e a contrario, o princípio de convertibilidade recíproca entre o longo pênis e a
corrente de flechas, a que já tínhamos chegado por outro caminho. Veremos adiante (infra:436) que a
relação entre a coruja e a heroína, aqui de ordem metafórica, passa alhures para a ordem da metonímia.
para o céu, ao passo que aqui, a incorporação do herói ocorre no céu, após sua disjunção, em
circunstâncias que reproduzem as de que é vítima o desaninhador de pássaros. Ao mesmo tempo,
o papel de fabricante, na terra, de uma criança artificial (aqui filha em vez de filho) passa do
enganador Coiote para uma mulher grizzly que também figura nas versões salish do desaninhador,
mas como vítima de Coiote, que a engana num começo (M671) ou num final (M667a) de mito, ou
ainda numa narrativa separada (M680c), sempre a propósito do calendário.
Ora, os Thompson, Lilloet e Chehalis da Colúmbia Britânica têm mitos em que a mesma
velha solitária, que de Grizzly vira Carcaju, também substitui Coiote, mas duplamente, como
autor das filhas da leita em relação à série mítica M375 sobre a gesta do demiurgo Lua e em
relação ao grupo M696-697, em que Coiote quer se casar com a própria filha, cuja mãe é, às
vezes, um Carcaju.
As diferentes versões desse mito são facilmente identificáveis graças ao nome da velha,
Kayiam em lilloet e Kaiam em chahalis da Colúmbia Britânica, isto é, Carcaju. Na versão lilloet
(M741, Hill-Tout 3:177-189), seu marido, chamado Skwaskwaset, no começo a carrega nas costas,
mas irritado com o fato de as raptoras se afastarem mais cada vez que ele é obrigado pelo
cansaço a depositar seu fardo, ele transforma a mulher numa planta comestível chamada
/tsúkwa/, certamente o feto-aquilino Pteridium aquilinum, que tem o mesmo nome em
thompson (cf. Teit 9:482; supra:368).
A mãe do bebê roubado fez um outro com a urina espremida de seus cueiros. Certo dia,
quando esse segundo filho estava caçando nas montanhas, encontrou o irmão mais velho, que lhe
revelou o parentesco entre eles. O mais velho, que tinha se casado com suas raptoras, as
transformou em duas ursas, uma preta e a outra grizzly. Pôs fogo em madeira resinosa para
icendiar sua casa e destruir todos os seus bens e depois voltou para junto dos seus.
As versões chehalis da Colúmbia Britânica (M742a-b, Hill-Tout 2:342-354, Boas 13:30)
permitem interpretar o nome do marido, /Skwáskwustel/, quase igual na versão lilloet. Significa
"pedras de cozer", as que são colocadas ardentes em recipientes de entrecasca ou cestaria cheios
de água, para levá-la à ebulição, ou em fornos de terra. Depois de descobrirem a identidade de
sua avó travestida — que tinha esticado a pele para parecer mais jovem, mas que de qualquer
modo não conseguia comer, porque não tinha dentes — as duas netas a mataram de cócegas:
"Doravante — disseram elas — quando essa história for contada, o tempo será tranqüilo no lago".
Então elas roubaram um bebê da avó cega mas, à diferença da versão lilloet, não foi seu marido,
Pedra-de-Cozer, que a carregou nas costas, e sim sua filha, mãe do bebê roubado, na intenção de
ir mais depressa e diminuir a distância que os separava das raptoras. Mas a distância, ao
contrário, aumentava quando a carregadora depositava a mãe no chão. Desesperada para acabar
com aquilo, ela a transformou em planta comestível. Jogou o pai na água, onde ele se
transformou numa dessas pedras sob as quais os salmões se escondem. Então espremeu a urina
dos cueiros e nasceu-lhe um filho. Mais tarde, ele reencontrou o irmão nas montanhas e lhe
contou sua origem. Sabendo das maldades cometidas pelas raptoras, que tinham-se tornado suas
esposas, ele as matou numa fogueira de madeira resinosa e transformou a mais nova, que tinha
bom temperamento, em nuvem branca de verão, e a mais velha, desagradável, em nuvem preta
de inverno. Também transformou o filho que tinha tido com a primeira em melro ("robin", Turdus
migratorius), pássaro belo e gracioso, e o filho da segunda em corvo, de plumagem negra e voz
rouca (à diferença de seu congênere europeu, o melro americano possui o peitilho vermelho).
Cada fagulha da fogueira virou uma ave da neve (cf. supra:72-73). Os dois irmãos foram ao
encontro da mãe, que decidiu metamorfoseá-los em astros. O caçula, que se chamava
Sk.wumtcetl, virou o sol, e o mais velho, a lua. Uma variante transforma as duas mulheres em
catostomídeo e esturjão, e depois disso o irmão feito de urina se liquefaz devido ao calor da
fogueira.
Vê-se claramente que esses mitos reproduzem em parte a gesta do demiurgo Lua, que
também conclui com a metamorfose dos dois irmãos nos astros do dia e da noite. Mas estas são
versões, por assim dizer, perpendiculares e não paralelas, em que se opera uma tripla
transformação: Carcaju fêmea em vez de Coiote macho, filhas nascidas das ovas e não da leita de
peixe (o texto em inglês de M742a é bem claro quanto a isso: /keleg/, "the roe or eggs"; na
hipótese de o termo salish excluir as leitas, o que não ousaríamos afirmar, essa segunda
transformação seria, aliás, redundante em relação à outra)73, e, finalmente e sobretudo, já que
aqui não há duvida alguma, rapto do filho mais velho nas montanhas em vez de no mar, para a
terra firme e não para a água, para o leste e não para o oeste, com a transformação
concomitante de mulheres alhures próximas dos salmões em ursas, nuvens ou peixes dos estuários
e lagos. Contudo, por outro lado sabemos, pelas versões "normais" da gesta do demiurgo, que a
mulher, mãe ou avó do bebê roubado, capaz de fazer a terra se contrair ou se esticar, representa
os sismos causadores das dobras na crosta terrestre (supra:379); a não ser quando, numa versão
proveniente dos Salish da costa (M743, Boas 5:156), ela urina e cria os lagos, imagens úmidas em
negativo do relevo montanhoso.
A transformação do coiote macho em carcaju fêmea, dois personagens que, para cometer
incesto com a filha ou filhas — uma delas concebida normalmente, as outras geradas por alimento
cru — fingem morrer e assumem a aparência de um belo estrangeiro, remete à história da
liberação dos salmões, em que as manobras incestuosas de Coiote visam a neta de uma mulher
que é sempre descrita como um quadrúpede das montanhas, às vezes até um carcaju, de quem
ele se torna genro. Porém, nos mitos que estamos vendo, essa Dona Carcaju sofre uma dupla
transformação. Primeiro, de parente próximo para estrangeiro e, principalmente e por razões
evidentes, de mulher em homem, pois quer seduzir as próprias filhas ou netas. Trata-se,
portanto, de uma avó libertina, o que nos traz de volta a um tema que já aparecera em nosso
caminho, e que articulamos, graças a uma longa discussão (supra:143-166), com outros que nos
tinham levado até ele. Ora, nessa primeira forma, a história da avó libertina existe entre os
Thompson, os Lilloet e os Shuswap (M563b-e, Teit 1:678-679, 2:323-325, 4:66-67, 5:246-248).
Esses Salish do planalto fazem dela uma narrativa isolada ou a inserem em outros contextos, mas
sempre a remetem à vida breve, isto é, à impossibilidade de rejuvenescer os velhos ou de
ressuscitar os mortos, o que é evidenciado pelo motivo da boca desdentada, sempre presente,
para atestar que, a despeito de quaisquer estratagemas e artifícios, o envelhecimento constitui
um fenômeno irreversível.
73
Por intermédio de nosso amável colega P. Maranda, a esposa de um professor da Universidade de
Vancouver, a Sra. Kew, a quem agradecemos, explicou que a distinção existe em sua língua materna, o
cowichan, entre /galax/, "ovas de salmão" e /slgey?/, "leitas". O dicionário de Kuipers informa, em
squamish, /t'amk'o/, "ovas de salmão", /s)'amk'o/, "ovas de salmão em conserva para serem consumidas no
inverno" (p. 269, 291) e, ainda, /sp'e'l?xom/, que significaria "pulmão" ou "leita", conforme o informante (p.
282; cf. cowichan, musqean /sp'e'l?xwem/, "pulmão", Elmendorf & Suttles:20). A distinção também existe em
coos: /heléyîs/, "ovas", /méqL"u/, "leita" (Frachtenberg 1:34).
Essas páginas acerca da posição semântica do feto-aquilino foram escritas para os Mélanges en
l'honneur d'André G. Haudricourt (no prelo). [essa frase parece estar no lugar errado]
Além dessa função etiológica que passa ao estado latente, os mitos da avó travestida que
acabamos de introduzir possuem uma outra, mais explícita, a origem dos fenômenos igualmente
periódicos, mas de ordem telúrica ou meterológica, ligados ao relevo terrestre e às condições
atmosféricas, ou seja, ao mundo intermediário, os seismos que remanejam periodicamente o
relevo, ou, como em M742a, a origem do tempo calmo ou agitado (supra:428), um tipo de
acontecimento análogo àquele, mas relativo à atmosfera em vez do solo. Apenas algumas versões
mantêm o episódio sobre a origem do sol e da lua, conseqüentemente menos solidamente ligado
a esse grupo de mitos do que à gesta do demiurgo (M375, M382, M506), da qual constitui um traço
invariante.
Visto isso, pode-se compreender as razões da emergência, entre a gesta do demiurgo Lua
e o ciclo da avó libertina, dessas formas míticas à primeira vista heteróclitas que têm algo de um
e do outro, já que o principal protagonista é uma avó libertina mas que se transforma em homem
para poder, como Coiote, seduzir as filhas da leita. De fato, neste último caso, a ação desemboca
na origem do sol e da lua, em outras palavras, da periodicidade encarada do ponto de vista
astronômico. No caso da avó libertina, vimos que a ação desemboca na origem da periodicidade
biológica, tornada inelutável pela impossibilidade de baixar a freqüência do ritmo em que as
gerações devem se suceder, em prol de uma delas. Entre essas duas formas de periodicidade, e
entre um protagonista macho e uma protagonista fêmea, intercalam-se formas mistas, cuja
protagonista assume ambos os sexos e que, entre as duas manifestações extremas da
periodicidade — que continuam não obstante evocando, ainda que em surdina (esses motivos são
expressos com menos vigor ou regularidade) — faz surgir em primeiro plano uma terceira, a
periodicidade das estações (M742a), associada à periodicidade menos regular que, nos níveis
contíguos do solo e do ar, se manifesta por sismos e mudanças de tempo (fig. 29).
É significativo, portanto, que os mitos sobre a gesta do demiurgo Lua, que fazem de
Coiote o autor das filhas da leita, puxem, por assim dizer, os sismos para o lado da periodicidade
astronômica (M382, supra:379), ao passo que pelo menos um dos mitos sobre a avó travestida
desloca o foco inteiramente para mudanças de tempo, que a mera narração do mito basta,
dizem, para provocar. Do mesmo modo, no limite do grupo da avó libertina, mitos nez percé
(M571a-c, supra:165) conectam a perda da dentição por Coiote à origem da periodicidade dos
ventos. E mitos okanakon (M744a-b, Cline:228-229), enfim, fazem provir os patos, que são donos
da primavera, como sabemos (supra:364), dos dentes perdidos na água por uma ou várias ogras
posteriormente transformadas em mochos, das quais uma é assada num forno de terra. De modo
que o código meterológico realiza uma espécie de compromisso entre os códigos astronômico e
biológico.
Em todos esses mitos, as repetidas alusões ao forno de terra colocam a questão de seu
emprego ritual. Tratamos disso em nosso curso de 1968-1969 no Collège de France, em relação ao
que muitas vezes chamamos de série paralela, explicando porque devíamos deixá-la de lado.
Aliás, os mitos que mais interessam à presente discussão autorizam uma solução parcial, mas
suficiente, em função exclusivamente da cadeia sintagmática.
Rizomas de feto eram cozidos no forno de terra e prensados em pães que se conservavam
por muito tempo. Um dos pratos mais apreciados em toda a região costeira (dos Kwakiutl no
norte até as populações do estreito de Puget, passando pelos Bella Coola; cf. Boas & Hunt 2:343-
344, Eells 1:216, Haeberlin & Gunther:24, Curtis, vol. 9:52, 58, McIlwraith II:451) era feito de
rizomas de feto e ovas de salmão, um prato completo de inspiração das mais paradoxais, já que
esses gêneros alimentícios eram coletados em conjunturas opostas: os rizomas no outono, quando
a planta parava de crescer com a chegada do frio (Gunther 3:14, Haeberlin & Gunther:20), e as
ovas na época da desova, ou seja, quando a espécie crescia74. Pelo viés da culinária, já se vê
explicada a dupla associação entre, de um lado, uma avó-feto e mulheres de ovas de salmão e,
do outro, com um marido chamado "Pedra-de-cozer". Mas a avó é também velha. Com efeito,
parece que as mulheres jovens eram proibidas de coletar fetos, sob risco de adoecerem, tanto no
norte quanto no sul da área salish, entre os Kwakiutl (Boas & Hunt 2:616) e entre os Coos: "As
jovens esposas coletavam frutos e bagas; as mais velhas, os rizomas, raízes e bulbos de feto,
cenoura selvagem e camácia" (Jacobs 5:84)75.
74
A oposição em questão não é exatamente aquela entre verão e inverno. Conforme a espécie, a
época da desova se estende, para os salmões, do mês de agosto até novembro ou mesmo dezembro
(Netboy:48). Os Chehalis da Colúmbia Britânica davam aos meses de outubro e novembro nomes que
signigicavam "meses da desova" (Hill-Tout 2:334). Entretanto, eles também designavam um intervalo do
calendário, que ia do fim de julho ao começo de outubro, por uma locução cujo significado aproximado é
"junta das duas pontas do ano", e o fim desse período levava um nome específico, "época em que morrem os
salmões", pois, como explica a mesma fonte (ibid.:335), "os salmões morrem em massa imediatamente após
a desova". A época da desova anuncia, conseqüentemente, o fim de um ciclo anual e, pelo menos em teoria,
a coleta dos fetos pertence ao ciclo seguinte.
75
Mas não para os lados do estreito de Puget, a julgar por M375g-h e j, em que duas jovens
mulheres, por ocasião de uma coleta de fetos, desejam casar-se com estrelas (supra:368). A menos que essa
ocupação, assim como a decisão delas de dormir ao relento fora de estação, não revelem justamente o
desrespeito aos costumes que seria a causa primeira, ou ocasional, de suas desventuras subseqüentes.
O fato de uma mulher associada alhures aos sismos e que aqui faz a terra se esticar e se
contrair se tornar depois o feto-aquilino (Pteridium aquilinum) decorre provavelmente de certas
particularidades características dessa coleta. O feto-aquilino possui "um rizoma fino, lenhoso,
irregularmente ramificado que se espalha longe por debaixo da terra" (Abrams, I:23), que M741
também descreve como um "cipó rasteiro". As velhas coletoras tinham, portanto, de abrir o solo
em longas extensões com a cavadeira, e esse labor podia lembrar terremotos em miniatura. Não
se trata de uma especulação gratuita de nossa parte, já que grupos salish tão afastados entre si
quanto os Bella Coola e os Tillamook, ambos separados há muito tempo do grosso de sua família
lingüística e em direções diametralmente opostas, fazem essa associação quase nos mesmos
termos, embora os Bella Coola lhe atribuam uma origem recente, ao passo que os Tillamook
invocam um mito para justificá-la. "Há alguns anos — dizem os Bella Coola — um rizoma de feto-
aquilino que as mulheres tinham acabado de arrancar se transformou em cobra. As mulheres
ficaram com medo... enquanto olhavam, o solo desabou diante delas como se estivesse ocorrendo
um terremoto, e elas entenderam que aquela raiz era a "mãe" dos fetos" (M745a, McIlwraith,
I:92). Os Tillamook, por sua vez, contam (M745b, E. D. Jacobs:176-177) que um homem quis
comer a "mãe" dos fetos, arrancada por sua mulher, e que se parecia com uma cobra.
Imediatamente, a terra começou a tremer, bem como a casa em que ele estava.
Os Alsea, vizinhos dos Tillamook ao sul, fazem a mesma associação entre feto e cobra,
mas a exprimem em forma de metonímia em vez de metáfora, quando evocam uma Dona
Serpente arrancando rizomas de feto (Frachtenberg 4:129-131, 141-143).
De modo que a proibição feita às mulheres jovens de coletar rizomas de feto, registrada
nas fronteiras da área salish, poderia ser explicada pela associação que os próprios Salish fazem
— desde há muito tempo, o suficiente para que tenha persistido em dois grupos totalmente
isolados — entre os fetos e os sismos enquanto perturbações telúricas ligadas à periodicidade, aos
quais só as mulheres mais velhas, tendo atingido a menopausa, poderiam se expor sem correrem
o risco de comprometer, por tal contaminação, o bom andamento do universo (cf. OMM:421).
Assim, uma humana dona dos sismos, capaz de submetê-los às suas próprias necessidades
e vontades, torna-se "mãe" de uma planta alimentar que um humano não deve consumir, sob
pena de provocar um sismo, apesar de ela ser das mais saborosas de todas, como precisa M745b
(note-se que os Bella Coola, que secularizaram o mito, dizem, ao contrário, que as mulheres
comeram sem medo o rizoma serpentino assim que entenderam que era a "mãe" dos fetos). Uma
transformação simétrica afeta o marido, que passa de "pedra-de-cozer" para "pedra crua", "uma
dessas rochas no leito dos rios debaixo das quais os salmões se escondem" (M742a). Ou seja, de
Sobre a conotação invernal dos fetos, ver Frachtenberg 3:81: os índios do baixo Umpqua contam
que, antigamente, "comiam rizomas de feto secos no inverno e quase nada além disso; era assim que se
alimentavam durante o inverno".
utensílio para o preparo de um determinado alimento (no caso, um vegetal que, segundo os
mitos, os ursos apreciam muito), ele passa para o papel de obstáculo à busca de alimento, pois
quando os salmões se escondem sob as pedras, não se pode pescá-los. É este o alimento humano
por excelência, animal por sua natureza, ligado à água e não à terra; e, até onde se sabe, não
assado no forno, mas grelhado, ensopado ou secado. A transformação parece ser do mesmo tipo
que a que afeta o velho de M739c, exiado no céu por sua esposa Grizzly, que se chama Erva
Daninha, ou seja, uma planta que, à diferença do feto, é incomestível e fadada a permanecer
crua.
*
* *
Essa que pode parecer uma digressão acerca de fetos e forno de terra era indispensável
para elucidar certos aspectos dos mitos, e contribuirá para a interpretação de conjunto que deles
faremos. Contudo, é preciso lembrar que introduzimos o grupo da avó travestida com um objetivo
preciso, o de compreender os mitos relativos à origem do chapim, estão ligados a ele por uma
relação obscura, que cabe elucidar.
Voltemos, pois, ao chapim. Conforme as versões do mito consagrado à origem desse
pássaro, ora um irmão eternamente em busca da irmã perdida, ora a irmã e depois o irmão, se
transformaram em chapins sem jamais se reencontrarem. Esses personagens são originados pela
união entre uma mulher ursa (a mãe deles era uma grizzly) e um peixe, truta ou salmão, avistado
num lago à beira do qual a moça morava. O esquema do encontro reproduz o das esposas dos
astros, pois em ambos os casos uma jovem admira um ser sobrenatural e imprudentemente o
deseja por marido. Mas aqui não se trata de superar a oposição entre céu e terra, e tampouco
entre perto e longe (já que a protagonista mora à beira do lago). A oposição, antes cósmica ou
sócio-geográfica, passa a ser de outra ordem, a da taxonomia que separa as duas famílias animais
entre as quais o pensamento indígena introduz um afastamento máximo, não só porque o urso é
terrestre, ou mesmo subterrâneo, e o salmão aquático, mas também porque todos os mitos dessa
região da América concebem os salmões, alimento dos homens por excelência, como seres
antropomórficos e até sobrehumanos, e os ursos, muitas vezes canibais, como seres subhumanos.
Nesse sentido, o carcaju (Lévi-Strauss 9:67-72) parece ser uma réplica ligeiramente enfraquecida
do urso.
Ora, tais naturezas antitéticas, símbolos de uma disjunção extrema no seio do reino
animal, são integradas pelas crianças em sua aparência física, pois que eles são, como nos diz
M739, metade urso metade peixe. A avó consegue transformá-los de modo incompleto: o menino
se torna humano, mas a menina, transformada em cadela, fica a meio caminho entre a
animalidade e a humanidade (supra:424).
Para interpretar esse incidente, felizmente podemos nos ater à cadeia sintagmática, sem
termos de mobilizar o imponente conjunto de mitos que, nessa região da América, tratam de uma
mulher casada com um cão que também sofre uma derrota parcial ao tentar obrigar seus filhos-
cão a conservarem a forma humana, que só assumiam às escondidas, quando achavam que
ninguém os via. Com efeito, o par humano/cão possui uma relação de fácil compreensão com o
par urso/peixe. Um conjuga termos extremamente aproximados, o outro, termos extremamente
afastados. Além disso, o irmão e a irmã eram ambos, ao nascerem, urso e peixe, de modo que
cada um deles trazia em si uma diferença interna mas, por serem dois, sua idêntica constituição
criava entre eles uma semelhança externa. Após a transformação, o esquema se inverte, um dos
personagens vira humano, o outro, cão, e entre eles surge portanto uma diferença externa,
apesar de ambos serem "do mesmo sangue", como se diz, portadores de uma semelhança interna,
exatamente a que a avó pede ao menino que leve em conta, deixando a cadela se aproximar do
produto da caça.
O mito ilustra, pois, um esquema:
76
Em relação ao qual caberia investigar se não forma um par com a Lontra terrestre, que perdera o
fogo primordial que ardia sem madeira (M723b, supra:416), ao passo que ele conquista o fogo atual e o
deposita, em seguida, nas várias espécies de madeira. A realidade do par é atestada por M723a: a velha
dona Fogo tinha duas filhas, uma casada com Castor e a outra com Lontra-terrestre, e os dois maridos se
opunham como comedor de madeira e comedor de peixe, respectivamente. Furiosa porque seu marido
reservava para a sua mãe os maiores peixes, a mulher de Lontra matou-a, atiçando violentamente o fogo.
Não havia mais fogo em lugar algum, exceto numa casa longínqua onde Castor conseguiu pegá-lo, com sua
de forno no eixo que liga a natureza à cultura, observa-se apenas uma outra, que deixa a pedra
em estado bruto mas lhe destina uma função destrutiva em vez de construtiva. A primeira
transformação diz respeito à ordem da natureza, a segunda, à da cultura. Essa utilização das
pedras de fogo com finalidades mortíferas, em prelúdio à conquista ou reconquista do fogo de
cozinha, remete aos mitos jê, sobretudo a M7 e M8, em que o herói, antes de receber o fogo de
cozinha de uma fera amável (' antes de arrancar o fogo de ferozes inimigos), fere voluntaria ou
involuntariamente, com pedras lançadas em lugar de pássaros crus, a fera em potência que, no
plano da vida social, sempre é o cunhado que tira de um homem sua irmã. Ao passo que, em
M733a e M737, o herói mata ou fere feras reais, jogando sobre elas pedras de forno, recobertas,
como dizem os cozinheiros, com carne cozida, porque queriam roubar-lhe uma presa obtida numa
situação de contato físico e íntimo, uma espécie de incesto transposto à relação entre caçador e
caça e que, segundo a versão okanagon M733a, consistiu numa penetração física do animal pelo
ânus, a qual, na série conexa da avó libertina, torna-se a causa eventual de um verdadeiro
incesto (M562e, M564), transposto do eixo horizontal dos germanos para o eixo vertical das
gerações alternadas.
Bem mais ao norte, a mesma ligação existe entre o grupo do desaninhador e o da avó
libertina. Num mito kaska (M746a, Teit 8:462-463), por exemplo, uma mulher afasta a filha para
o topo de uma árvore, onde ela se metamorfoseia em mocho (cf. supra:425 e 426 n.1), para
assumir sua aparência física e tomar-lhe os dois maridos. Um mito esquimó de ampla distribuição,
do qual mencionaremos a versão proveniente da Groenlândia, por ser a mais afastada (M746b,
Rink:442-443), fala de uma mulher que detestava o filho, mau caçador, e roubou-lhe a esposa;
transformada em homem, tornou-se marido dela e viveram juntas até que o filho descobriu seu
refúgio e a matou.
*
* *
Mas por que o chapim? Em A origem dos modos à mesa (p. 192-193) respondemos
antecipadamente a essa pergunta, omstrando que o pensamento norte-americano liga o chapim à
periodicidade temporal77: os cortes de sua língua marcam o passar dos meses e seu canto anuncia
a primavera ou o verão. Esta última crença também foi registrada na parte ocidental da América
do Norte. Os Lilloet afirmam que certas pessoas são capazes de prever o tempo que irá fazer pelo
costumeira esperteza. Ele o depositou nas árvores, e desde então é possível tirar fogo da broca, instrumento
composto de dois pedaços de madeira friccionados um contra o outro (Ballard 1:51).
77
Mesmo levando em conta seu caráter onomatopéico, é notável a semelhança entre os nomes do
chapim em regiões bastante afastadas da América do Norte, entre povos falantes de línguas totalmente
distintas. Em cherokee, por exemplo, é /tsikilili/ (Mooney 1:281), em jicarilla apache, /tcitc'ike/ (Goddard
2:237), em thompson, /tcîski'kik/ (Teit 4:76), palavras de que podemos também aproximar os nomes do
"passarinho" não identificado /tsitses/ e /t'si'dadat/ dos Salish do estreito de Puget e de seus vizinhos
Sahaptin (supra:417).
canto e pelos movimentos do chapim (Teit, II:290). Como seus vizinhos da vertente oriental das
Rochosas, os Kutenai dizem que o chapim canta "Primavera! Primavera!" (Chamberlain:580, que
utiliza o termo tomlit em lugar do americanismo chickadee; mas ele era inglês de nascimento, cf.
Boas 25:326). Um de nossos mitos (M728a, supra:417) situa na primavera o concurso de tiro
vencido pelo chapim. Outros (M729-M733), menos explícitos, vão no mesmo sentido, já que
situam a conquista do fogo após as desventuras de Coiote com as Frangas ou Tetrazes que, nessa
mesma ocasião, segundo algumas versões, intervêm na qualidade de espíritos do frio, que fazem
demorar a vir a primavera (cf. M614c e supra:288, 303).
De modo que os mitos estabelecem uma dupla conexão, do chapim com a chegada da
primavera, de um lado, e com a conquista do fogo, do outro. Eles também opõem claramente o
fogo celeste e a água celeste, no episódio de M728b-c em que os habitantes do mundo superior
urinam sobre os terráqueos, provocando um dilúvio para apagar o fogo roubado. Por esse viés, é
possível estender e aprofundar a interpretação acima quanto ao papel do chapim, procurando
saber, conforme um método que costumamos empregar, se esse pássaro é transformável em
algum outro quando os mitos comutam a primavera com o outono ou o inverno, e o fogo com a
água ou a chuva.
Deixando provisoriamente de lado a transformação de chapim em cambaxirra, já que os
dois pássaros compartilham o mesmo papel, começaremos por notar que outros pássaros
aparecem nos mitos ao lado deles. Versões do sul do estreito de Puget (M723, supra:415) evocam
a colaboração de um "passarinho" e do Corvo. Outras, provenientes da parte setentrional,
despacham para o céu, como batedores, um par dioscurico composto por Melro do verão e Melro
do inverno (M724b, supra:416). Na série conexa, relativa à origem do chapim, versões chehalis da
Colúmbia Britânica (M742a, supra:427) ilustram uma série de transformações em que figuram
pássaros, fenômenos meterológicos ou peixes: as filhas da leita transformadas em nuvem branca
de verão e nuvem preta de inverno, o filho de uma das mulheres transformado em belo melro e o
da outra em feio corvo, as faíscas da fogueira ou as próprias crianças transformadas em aves das
neves, os dois heróis, em sol e lua, e, segundo uma variante, as filhas da leita transformadas não
em nuvens mas em esturjão e peixe catostomídeo (fig. 31).
M742a
filhas da leita
nuvens pretas de inverno nuvens brancas de verão
catostomídeo esturjão
corvo (—) melro americano (+)
aves das neves
herói
Lua #! > !$ Sol
M723
corvo "passarinho"
M724a
melro de inverno melro de verão
78
Ao passo que o tordo verdadeiro tem em thompson um outro nome, /qa'l+q'a?/, como teve a
bondade de verificar junto a informantes indígenas, a pedido nosso, nosso colega P. Maranda.
desses pássaros é dividida em duas metades, uma do inverno, e a outra do verão (Boas 2:182,
760).
Avancemos mais um passo. Os Carrier, de que acabamos de utilizar um mito, põem em
correlação e oposição o melro e um pássaro chamado em inglês de song sparrow, o tentilhão
canoro, Melospiza melodia: "... ambos chegam em março. O Melro canta durante a primavera e o
verão, mas o Tentilhão só começa a cantar em maio, porque durante os meses de março e abril
ele trabalha. Por isso, no inverno, o Melro não tinha mais nada para comer e, como o vizinho
vivia na fartura, propôs trocar suas perneiras vermelhas por comida. Mas Tentilhão não quis"
(M750, Jenness 2:254).
Essa versão indígena da fábula da cigarra e da formiga é especialmente interessante, ao
opor dois pássaros entre os quais a mesma função semântica se comuta conforme se considera o
extremo norte ou o extremo sul da área salish. Vimos que, ao norte, os Carrier atribuem ao melro
o poder de ir e vir entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. No extremo sul, os Tillamook,
que à diferença dos Carrier, são Salish, mas isolados do grosso de sua família lingüística,
enquanto que os Carrier são vizinhos dela, atribuem o mesmo poder ao tentilhão, mas
transferindo para o céu o mundo dos mortos que, para os Carrier, é subterrâneo: "O Tentilhão
tem um poder extraordinário: ele pode ir até o mundo dos mortos e retornar" (M751a, E. D.
Jacobs:12). Um outro mito da mesma proveniência (M751b, ibid.:98-99) incumbe o Tentilhão do
papel de passador pelo rio que separa o mundo dos mortos do mundo dos vivos.
Sem qualificativo, o termo inglês sparrow empregado por esses dois mitos pode dar
margem a dúvidas. Mas, justamente, o método das comutações, novamente posto à prova, indica
tratar-se do tentilhão, como a continuação da presente discussão terminará de demonstrar.
O mito tillamook M751a começa no inverno. O Tentilhão (sparrow) passa frio e importuna
o demiurgo Gelo vindo o tempo todo se aquecer junto à sua fogueira. Irritado, o demiurgo
queima o pássaro no ventre com um tição. É aí que o Tentilhão, como dissemos, voa até o céu
para queixar-se aos espíritos.
De modo que o Tentilhão tillamook é marcado de negro no ventre por um carvão de
madeira porque sente frio no inverno. Pois bem, os índios do sul do estreito de Puget contam uma
história muito parecida a respeito de um pássaro chamado /spetsx/ que é tratado com dureza por
seus cunhados (irmãos da esposa). Obrigado a catar lenha, ele retalha com muito esforço uma
árvore morta meio carbonizada, e os cunhados ficam indignados com o fato de ele não lavar o
rosto coberto de fuligem. A mulher acrescenta suas censuras às deles e Spetsx, vencido pelo
cansaço, vai para o rio, volta-se para o sudoeste para invocar o céu e começa a se lavar.
Imediatamente, começa a chover, os rios sobem, o vale é inundado e, todos os seus habitantes
morrem, exceto Spetsx, que sai voando e vai viver junto de seu antepassado, o Vento do sudoeste
que traz chuva. Atualmente, é sinal de chuva quando o pássaro se banha num dia ensolarado
olhando para o sul (M752a-d, Ballard 1:49-51; ver também p. 63).
Paira uma dúvida quanto à identificação do pássaro /spetsx/, parecido com o junco do
Oregon segundo alguns, ao passo que outros afirmam categoricamente que se trata do tentilhão
dos brejos (Melospiza georgiana?; Ballard 1:49 n. 2 e 50). Os Cowlitz, que nomeiam a avó
libertina /Spi'tsxu/, identificam o pássaro desse nome ao snow-bird, que é o junco (M562a,
Adamson:220; cf. M752h, ibid.:178). Os Chehalis de Washington também conhecem o pássaro
/spi'txu/, que Adamson (:1-23, M752e-g) traduz por thrush; tratar-se-ia provavelmente do melro
de colar (em inglês varied thrush, Ixoreus naevius, cf. supra:439), hipótese ainda mais provável
na medida em que esse pássaro de inverno, de grito "estranho e misterioso" (Pearson, III:240-241)
poderia ser o "Melro" anunciador de morte próxima em que se transforma a heroína do mito coeur
d'alêne M748a, depois de ter coberto o corpo com conchas dentalia, que originam a plumagem
variegada de marrom alaranjado, preto e branco, que opõe o "Melro do inverno" ao "Melro do
verão".
O desacordo que reina entre os informantes do estreito de Puget á, por si só, instrutivo.
Junco oregonus é o nome científico do snow-bird, que já apareceu em nossos mitos (cf. supra:72-
73 e 428), pássaro que possui o dorso rubro ou acaju (Pearson, III:46-47; Noms d'oiseaux...:20) e
pode, portanto, formar com o melro americano de peito rubro um par de termos em correlação e
oposição79.
Por outro lado, o tentilhão que, entre os Tillamook, sente frio no inverno e recebe uma
marca negra no ventre, causada por um tição ardente, também forma um par com seu congênere
do estreito de Puget, mascado de preto no rosto por uma madeira ainda fria, e que provoca o
vento do sudeste que, como sabemos por outras vias (M754a-g, infra:443), ao trazer a chuva e o
aumento da temperatura, põe fim aos rigores do inverno.
Dispomos, portanto, de dois páres de pássaros. Num deles, o junco — "ave do inverno por
excelência" (Pearson, l.c.) — se opõe ao melro, ligado ao verão, por trazer uma marca rubra atrás
em vez de na frente. No outro, o tentilhão enegrecido no ventre pelo calor, porque sentia frio, se
opõe a um tentilhão enegrecido no rosto pelo frio, em conseqüência do que ele mesmo produzirá
calor. O aparente desacordo entre os informantes poderia, portanto, resultar do fato de junco e
tentilhão serem, sob perspectivas distintas, comutáveis no seio de um par que os coloca a ambos
em oposição e correlação com o melro.
De todo modo, do sul para o norte e da costa para o interior, melro e tentilhão vão-se
substituindo nos mesmos papéis: no plano da periodicidade biológica, como pássaros
79
Note-se ainda, com a devida prudência, que entre os algonquinos orientais o nome do junco ou ave
das neves evoca o borbulhar (Speck 5:368-369), ou seja, um tipo de fenômeno presente em M740, em que a
anunciadores de morte e, no da periodicidade sazonal, como responsáveis pela chegada da
primavera. Os Flathead, como vimos, crêem que irritar os melros faz chover; os índios do estreito
de Puget dizem exatamente o mesmo a respeito dos tentilhões (Ballard 1:63 n.33).
Mas, cada um tem seu modo próprio de cumprir esse papel. O tentilhão está bem
preparado para enfrentar o pior do inverno, pois ao contrário do melro, em vez de cantar desde o
início da primavera, ele juntou provisões (M750). Assim, ele prolonga os benefícios do verão
inverno afora, contrariamente ao melro que canta bem cedo para provocar o derretimento do
gelo, acelerando, portanto, a passagem do inverno para o verão (M354b). A penúria alimentar de
que sofre o melro, para o bem comum, também é atestada mais ao sul, em mitos chehalis e
skokomish (M747a,b) nos quais o pássaro é condenado à fome pela mania que tem sua esposa de
descascar até o fim todas as camácias que coleta, o que faz com que ela sempre volte de mãos
vazias. Para puni-la, ele a queima no rosto de modo tão grave que elase joga no rio, onde as
pedras grudam em sua pele quente; vira uma larva de inseto que vive num casulo de areia
aglomerada. Também nesse caso encontramos, pois, um elo de correlação e oposição entre o
melro e uma criatura com o ventre ou o rosto queimado.
É digno de nota o fato de que, no que diz respeito exclusivamente à plumagem, todos os
pássaros que enumeramos são mistos, caracterizados pelo contraste entre branco e preto ou pela
presença pontual do vermelho. No primeiro grupo encontra-se o chapim de cabeça preta e faces
brancas, o tentilhão marcado de preto no rosto, no ventre ou, conforme M752c, ao redor dos
olhos. Certas línguas indígenas levam a aproximação ainda mais longe. A espécie de tentilhão dita
"de garganta branca" (Zonotrichia albicollis) é designada, em blackfoot, por uma abreviação do
nome do chapim (Schaeffer 2:43); é chamada de "chapim grande" em algonquino oriental, em que
a nomenclatura indígena chega muitas vezes a confundir os dois pássaros (Speck 5:368).
No segundo grupo, estão o melro americano de peito vermelho, o junco de costas rubras,
e o tordo solitário de peito com manchas e cauda avermelhada, bem como diversos
representantes da família dos pica-paus, aos quais voltaremos: pica-pau de cabeça vermelha, ou
picídio do gênero Sphyraphicus cuja cabeça também é manchada de vermelho e, finalmente, o
pica-pau rosado (Colaptes cafer), ave de faces com listras vermelhas cujo ovo vira o sol num mito
shuswap sobre a origem do astro (M753, Teit 1:738).
Para chamar a chuva quando fazia muito frio e o solo estava coberto por uma espessa
camada de neve, os índios do estreito de Puget fabricavam instrumentos musicais pintados de
preto de um só lado. Os rapazes jovens faziam-nos rodopiar e acreditavam que o ruído atraía o
vento do sudoeste. Ou então sujavam um tentilhão de preto para que fosse, assim que libertado,
lavar o rosto invocando o mesmo vento (Ballard 1:63 n. 31). Tais ritos remetem aos mitos M752a-
avó se transforma em bolhas de ar que rebentam na superfície da água. Ora, vimos que na versão cowlitz
essa avó libertina tem o nome do junco, /spi'tsxu/.
d e também a um grupo que não iremos examinar em detalhes, pois contêm contradições
inexplicáveis, que parecem dever-se a lacunas ou lapsos por parte dos informantes (M754a-g,
Ballard 1:55-64; M754h, Haeberlin 1:398-399). Contá-los fazia chover. Eles se referem a um
conflito entre os ventos do nordeste e os do sudeste, que seguiu o casamento de um homem de
um dos dois povos com uma mulher "castor das montanhas", Aplodontia rufa80, ou porco-espinho,
pertencentes ou não ao outro povo. O filho nascido de sua união, chamado Tempestades (as de
março, com fortes chuvas; cf. Ballard 3:81), salvou uma parenta, a única sobrevivente do povo do
sudoeste, que era perseguida por Corvo, membro do outro povo, que lhe cobria o rosto de
excremento. A chuva começou a cair quando o herói lhe fez sinal para lavar-se, e a inundação a
seguir dispersou ou destruiu quase que completamente o campo inimigo. Assim foi instaurada a
alternância das estações81.
O interesse desses mitos está no fato de serem convertíveis. Nas versões acima, eles
transcorrem num eixo horizontal cujos polos são o nordeste e o sudoeste, ao passo que outras
versões da costa transpõem a guerra dos ventos para um eixo vertical. Conforme os Chehalis de
Washington (M756a, Adamson:75-76), os ventos do sudoeste resolveram enfrentar em batalha os
ventos do nordeste, que provocavam um frio insuportável. Mas eles viviam no céu e, para chegar
lá, foi preciso que o pássaro das neves atraísse aabóbada celeste para a terra. Talvez em função
80
O aplodôntia não é um castor, mas o único representante de um gênero muito arcaico de roedores,
"meio castor meio esquilo" segundo os dicionários, que só existe nessa região específica da América, onde
vive nas florestas e matos densos e cava tocas que podem se estender por duzentos ou trezentos metros.
Esse animal aparece tão raramente nos mitos — ou, o que dá no mesmo, é tão raramente identificado — que
hesitamos em inclui-lo num sistema em que o aplodôntia seria comutável com dois outros roedores, o porco-
espinho, de que é aqui uma variante combinatória, e o castor, que se parece com ele. Essa permutação
circular seria, não obstante, muito sugestiva, pois forneceria mais um meio de consolidar os mitos sobre a
conquista do fogo e os das esposas dos astros, cujos heróis são, respectivamente, Castor e Porco-Espinho
(OMM:185-224; infra:520-526). Assim, limitar-nos-emos a propor, a título de hipótese de trabalho:
Castor:Aplodôntia:Porco-Espinho:Periodicidade espacialPeriodicidade espaço-
temporalPeriodicidade temporal
Ou seja, uma tríade homóloga às das páginas 430 e 448.
81
Não podemos abrir aqui o dossiê dos gêmeos, considerável nessa região, mas antes pertencente à
série paralela sobre a origem do vento e do nevoeiro, a que já fizemos alusão. Em favor da natureza dual
dos pássaros dotados de função meterológica, notaremos apenas que, no interior e na costa, mas mais ao
norte, certos temas desenvolvidos por M754a-h são remetidos aos gêmeos. No interior, os Shuswap lhes
atribuem o poder de clarear o tempo fazendo soar um instrumento (Boas 16:644), função simétrica à que as
populações do sul do estreito de Puget atribuem ao mesmo instrumento. Ao passo que entre os Nootka
costeiros, considera-se que os gêmeos, como o tentilhão mais ao sul, provocam a chuva ao lavarem o rosto
sujo de preto (ibid.:592).
Um breve mito coeur d'alêne sobre a origem da morte (M755, Boas 4:125) confere aos gêmeos, no
que tange à vida e à morte, a mesma ambivalência que os Carrier atribuem ao melro e os Tillamook ao
tentilhão. Dois gêmeos, um menino e uma menina certamente, certo dia desmaiaram e permaneceram
inconsicentes por muito tempo. Foi pelo menos o que todos acharam, pois quando eles ficavam sozinhos,
debatiam em segredo sobre as respectivas vantagens da vida, defendida por um, e da morte, defendida pelo
outro. A mãe os surpreendeu e interrompeu o debate. Desde então, de tempos em tempos, pessoas morrem.
Umas nascem enquanto outras falecem, sempre há mortos e vivos. Se os gêmeos tivessem podido chegar ao
fim de seu debate, hoje não haveria vida, ou não haveria morte. Um mito chehalis do estado de Washington
(M716b, Adamson:83-87) fala de gêmeos, irmãos siameses que insistem em querer andar cada um para um
lado, e atiram para direções opostas.
de um outro regime de ventos, os Kathlamet do baixo Columbia e outros Chinook contam a
mesma história mas colocam os ventos do sudoeste no céu e os acusam de causarem tempestades
devastadoras (M756b, Boas 7:67-71). Por isso deixaremos os Chinook e nos concentraremos nos
Salish.
Eles colocam do mesmo lado o céu, os ventos do noroeste, o tempo seco e o frio e, do
outro lado, a água, os ventos do sudeste, a chuva e o calor. Por outro lado, a manobra de Junco,
que puxa o céu até a terra, inverte claramente a da Cambaxirra ou do Chapim que, por meio da
corrente de flechas, constroem uma passarela que vai da terra até o céu. Resulta daí, primeiro,
que o tentilhão dos mitos do estreito de Puget (M752a-d) remete ao baixo quando se vira para o
sudoeste para chamar a chuva, e opõe-se assim ao chapim e à cambaxirra, que se voltam para o
alto para obterem fogo em vez de água; em seguida, que o junco, congruente ao tentilhão
(supra:441), por sua vez se opõe a esses dois pássaros. Mas sabemos também que, para os Salish,
e especialmente nesse grupo de mitos, a sede do frio está no céu, ao passo que na terra, nos
tempos míticos, o tempo era quente e seco. Nesse sentido, pode-se dizer que o junco invernal
aproxima o inverno (correspondendo ao alto) do verão (correspondendo ao baixo), enquanto o
chapim e a cambaxirra efetuam a mesma manobra no sentido inverso. Todos esses pássaros
operam, portanto, uma semi-mediação, bem sucedida apenas num sentido, e conforme àquela
que atribuímos, por razões outras, a melro e tentilhão.
*
* *
Não seriam pássaros demais? E aos que acabamos de considerar, ainda precisaríamos
acrescentar os pica-paus. Vimos que eles intervêm a título de conquistadores do fogo nos mitos
kliktat, isto é, sahaptin (M726), e skagit e sanpoil (M724a, M729), salish portanto. Tanto na
América do Norte como na América do Sul, os pássaros dessa família desempenham o papel de
mediadores espaciais, porque passam a maior parte do tempo no tronco das árvores, entre céu e
terra (CC:209; OMM:237). Uma indicação de Ballard (3:85) sugere que, na região do estreito de
Puget, o pequeno pica-pau do gênero Sphyraphicus, herói do mito klikitat, também poderia ter
uma função temporal. Quando questionado a respeito do calendário indígena, um informante
definiu do seguinte modo o período que vai do final de janeiro a fevereiro: "os patos ficam presos
no gelo; as trutas steelhead não podem nadar; o pica-pau sapsucker está lá". Quer esta última
fórmula signifique "ainda lá" ou "já lá", de todo modo, ela conecta o pássaro ao inverno. A
propósito dos picídeos diversos de plumagem com marcas vermelhas (o que os qualifica a
conquistar o fogo celeste), cuja presença é atestada nessa região da América, notou-se (Bent,
Woodpeckers, p. 145, 151) que, no final do outono, eles apenas abandonam as zonas mais
expostas ao frio e se instalam em locais protegidos. Como o melro de colar que, no inverno,
desce das montanhas para os vales, e como o junco, que permanece nas mesmas latitudes o ano
todo (Pearson, III:46-47, 240-241), os pica-paus, ou alguns deles, teriam portanto uma marcada
afinidade com o inverno.
Pode parecer mais difícil dizer algo a respeito da cambaxirra, pois a palavra corrente em
inglês, wren, recobre um número considerável de espécies e até gêneros diferentes. Mas, se os
mitos estiverem se referindo à espécie mais comum nessa parte do continente, o Troglodytes
Troglodytes pacificus Baird, cuja migração invernal é realizada localmente, para os vales
protegidos (Bent, Nuthatches, Wrens, etc.:175), e para cuja freqüência Hill-Tout (6:11) chama
especialmente a atenção, informando que "esse pássaro pode ser visto em toda a Colúmbia
Britânica e até ser encontrado em florestas tão densas que nenhum outro pássaro as freqüenta,
exceto o pica-pau", então, essa cambaxirra, também chamada hiemalis, teria com o inverno o
mesmo tipo de afinidade que os pássaros supracitados.
É possível, aliás, prová-lo a contrario, graças a mitos blackfoot (M701d, Josselin de Jong
2:25) que invertem aqueles provenientes dos Salish em que o enganador Coiote pega emprestado
o longo pênis da cambaxirra em troca do seu (M701a-c, supra:393). Com efeito, entre os
Blackfoot, é o próprio "Velho" (que corresponde ao enganador) que possui o longo pênis e que,
para afastar suspeitas, troca-o pelo de /nepumaki/, "pássaro da primavera" ou "pássaro do verão",
isto é, o chapim (Schaeffer 2:43). De modo que:
Vale contudo lembrar que os mitos desse grupo opõem menos o inverno e o verão
tomados em termos absolutos, do que as ocorrências meterológicas, que desempenham o papel
de semi-mediadores, que são as chuvas mais quentes do final do inverno e as que, devido ao
vento que as acompanha, refrescam o ar durante o verão; é como se umas inserissem o verão no
inverno e as outras, o inverno no verão. E as filhas da leita de M742 se separam uma da outra
para encarnar estações opostas na mesma forma, a de nuvens, carregadas de chuva em ambos os
casos.
Seja como for, é notável que os mitos, tão preocupados em dar uma origem ao Chapim e
em contar detalhadamente suas aventuras até a conquista do fogo, se interessem tão pouco pelo
passado de Cambaxirra (supra:150). Vizinhos dos Bella Coola na costa, embora não pertençam à
família salish, os Bella Bella fazem das cambaxirra instigadores da morte, para poderem construir
seus ninhos abaixo dos caixões que eles colocavam sobre plataformas ou apoiados em árvores
(M757a, Boas 24:29). Os Squamish, de língua comox, atribuem a ela o poder de fazer
amadurecerem os pequenos frutos fora de estação (M757b, Hill-Tout 7:529). Mas em geral, na
área que nos interessa, a cambaxirra não possui nenhuma aptidão especial; os mitos
simplesmente a opõem às demais espécies como "o menor dos passarinhos". Essa perífrase
costuma bastar para designá-lo, o que indica ser essa sua característica pertinente. Num eixo em
que todos os pássaros fossem dispostos por ordem de tamanho, a cambaxirra, termo não
marcado, ocuparia, portanto, um dos polos. Seu tamanho minúsculo contrasta com a imensidão
que separa céu e terra e que só ele, no entanto, é capaz de atravessar. Percebe-se aí que, como
incarnação de um polo espacial, a cambaxirra é posta em correlação e oposição com o chapim,
pássaro também minúsculo, mas a quem os mitos atribuem uma origem, cujas aventuras relatam,
e que encarregam do papel de mediador temporal (supra:437), antes de tornar-se, junto com a
cambaxirra — que como ele é o único capaz (mas em outras versões) de prender a corrente de
flechas no céu — um mediador espacial. Cambaxirra e Chapim possuem, portanto, uma dupla
função, um no eixo espacial e o outro no eixo temporal. Isso decorre do fato de que, sendo
comutáveis como autores da corrente de flechas que permite ir da terra para o céu (mas não de
voltar), eles também o são no ciclo da avó libertina, no qual ora um ora o outro desempenha o
papel de instaurador da vida breve (supra:149, 429). De um lado desses operadores medianos se
encontram os pica-paus, ligados à origem do fogo, mas não à da vida breve. A mediação que eles
asseguram é, portanto, de ordem espacial e, quer se trate da conquista ou da reconquista do
fogo, ela garante à humanidade um meio de aquecimento que pertence à cultura.
Do outro lado do diagrama, colocaríamos o Tentilhão que, ao dar fim ao inverno com
chuvas mornas, exerce uma mediação temporal e dá aos humanos um tipo de aquecimento que, à
diferença do outro, pertence à natureza. Quanto a isso, a função dos operadores medianos —
Cambaxirra e Chapim — também apresenta um aspecto misto: como autores da corrente de
flechas que permite a conquista do fogo, eles intervêm pelo lado da cultura, mas, como netos da
avó libertina responsáveis pela vida breve, eles o fazem do lado da natureza.
Se nos lembrarmos que o termo robin inclui certamente três pássaros, o melro
americano, o melro de colar e o tordo solitário, todos os três anunciadores de precipitações
atmosféricas (chuvas do final do inverno, chuvas do meio do verão, nevascas), restam por ser
qualificados apenas o "Melro" sincrético e o Junco. Mas sabemos que esses pássaros não ocupam
um lugar à parte, já que ambos são comutáveis com o Tentilhão: em extremidades opostas da
área salish, a função de passador entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos e a de iniciador
da primavera basculam, por assim dizer, de Tentilhão a Melro ou de Melro a Tentilhão (M354b,
M749, M751); ao passo que no centro dessa área (M752a-d), a função de mediador temporal,
garantidor da alternância das estações é, pelas razões que mencionamos, atribuída ou ao Melro
ou ao Junco ou ao Tentilhão.
De modo que três funções etiológicas, relativas à origem do fogo, da chuva e da vida
breve, se comutam entre si e, conforme a região (certamente em razão da dialética que impele
cada grupo a se querer ao mesmo tempo igual e diferente, contando os mesmos mitos que os
vizinhos, mas de outro modo), os operadores míticos também se comutam entre as funções.
Acompanhando de modo muito aproximado a distribuição geográfica dos temas, chegaríamos a
algo como o quadro abaixo:
Em baixo, à esquerda, a transformação da vida breve em seu contrário remete ao mito tillamook
M751b em que Tentilhão, passador dos mortos, opera uma ressurreição.
A armação geral do sistema se apresenta como um tríptico, conforme um esquema que
vale comparar com os das páginas 430 e 443. A evidente correspondência entre eles tem uma
confirmação suplementar no nome da avó libertina conforme M562a, que é o mesmo que se
atribui ora ao Tentilhão, ora ao Junco.
A não ser por uma exceção já mencionada entre os Shuswap (M753) — em que um Pica-
pau de uma espécie particular, que os demais mitos não citam, consegue tornar-se uma divindade
solar, distinta do sol visível, que virá em seguida de um de seus ovos — o Pica-pau costuma
mostrar-se tão inepto quanto o Melro para cumprir o papel de sol (supra:438). Nem o Tentilhão
nem o Junco poderiam ser considerados nesse sentido, dada a sua associação direta com o
inverno e com as chuvas que trazem seu fim. De modo que Pica-pau e Melro não aparecem
quando se trata de obter um aquecimento de ordem natural no que diz respeito ao Pica-pau —
que só consegue conquistar o fogo de cozinha — e, no caso do Melro, um aquecimento
proveniente do fogo e não da água (quanto ao Pica-pau como sol imprestável porque quente
demais ou sem luz, ver M758a-c: Sanpoil, Ray 2:137; Estreito de Puget, Ballard 1:79-80;
Okanagon, Hill-Tout 8:145 e Boas 2:724-728).
Não devemos esquecer que tais atos de mediação não reversíveis acarretam pesadas
contrapartidas. De um lado, empobrecimento quantitativo da ordem natural, na duração, pela
atribuição de um termo à vida humana e no espaço, pela diminuição do número de espécies
animais, em decorrência de sua desastrosa investida celeste. E também empobrecimento
qualitativo, já que o Pica-pau, por ter conquistado o fogo, perdeu a maior parte de suas penas
vermelhas (M729) e se, em compensação, o Melro adquiriu seu peito rubro, foi na forma de uma
lesão anatômica, decorrente de seu fracasso na mesma missão. De modo que, seja pela
destruição de uma harmonia primeira, ou pela introdução de afastamentos diferenciais que a
alteram, o acesso da humanidade à cultura se faz acompanhar, no plano da natureza, por uma
espécie de degradação que a faz passar do contínuo para o discreto.
II
JUNÇÕES
Por mais diversos que sejam os caminhos, os viajantes chegam ao ponto de encontro.
Chateaubriand, Viagem na América, Introdução
Passagem do contínuo ao discreto, conjugação da origem do fogo e da chuva com a da vida breve
que, na ordem temporal, fragmenta o fluxo demográfico e o recorta em níveis de gerações,
introduzindo entre eles afastamentos comparáveis às diferenças entre as espécies animais, na
medida em que o que teria podido permanecer indistinto deve necessariamente vir a separar-se:
desde o início de nossa investigação, o estudo da mitologia sul-americana tinha evidenciado todos
esses temas.
Neste volume, concentramos nossa atenção sobre uma região delimitada sa América do
Norte, nem tanto porque sua mitologia apresenta pontos em comum com a do Brasil e regiões
vizinhas, e mais porque, em ambos os casos, o campo mítico se organiza do mesmo modo. Não
são apenas os mitos tomados um a um que se parecem, mas também, e principalmente, suas
relações. Constatamos em várias ocasiões (supra:86ss, 138ss; OMM:338) que, se na América
tropical houver um mito B que transforma um mito A e um mito C que transforma o mito B, basta
que, nessa região setentrional a oeste das Rochosas, exista um mito A' homólogo a A para que se
possa deduzir, e em seguida verificar, que tal mito A' implica um B' que o transforma do mesmo
modo que B transformava A no outro hemisfério. O mesmo fenômeno se repete em relação a C e
C', e às vezes é possível ir adiante.
Que isso não leve a concluir que observações desse tipo sejam impossíveis alhures. Mas a
massa do material é tão vasta que uma análise da mitologia norte-americana que se pretendesse
exaustiva exigiria uma vida inteira, se não várias. De modo que nos limitaremos, por necessidade,
ao tratamento parcial que se pode encontrar neste livro e no que o precedeu. Entretanto, ainda
que fosse apenas para evitar equívocos de perspectiva, convém pontuar sumariamente itinerários
que permitiriam, em outras regiões da América do Norte que não aquela cujos mitos
examinamos, encontrar ao menos o mito do desaninhador de pássaros que nos serviu
constantemente de referência, uma escolha cuja razão de ser se nos foi revelando pouco a
pouco, e que está ligada à sua posição mediana, central até, num sistema em que ele
desempenha o papel de dobradiça; de modo que, onde quer que o encontremos, podemos ter
certeza de que o vasto conjunto mítico que ele articula também existe.
De modo não totalmente arbitrário, começaremos esta rápida investigação pelos
Arapaho, e seguiremos a mesma ordem que adotamos em A origem dos modos à mesa (p. 170)
para estudar o ciclo mítico das esposas dos astros que, convém lembrar, está em relação de
transformação simples com o do desaninhador. Acrescente-se que os mitos arapaho, aos quais já
fomos levados a nos remeter neste volume (supra:373), apresentam notáveis afinidades com os
dos Salish. Em que pese o atual afastamento geográfico, isso não é de surpreender, já que os
Arapaho, representantes mais meridionais da grande família lingüística algonquina, vieram do
norte. E a longa migração que os levou, de uma região provavelmente situada a oeste do lago
Superior até os atuais estados de Colorado e Kansas deve ter feito uma parada em Wyoming, onde
a fração mais conservadora da tribo ainda residia na época histórica. É bem provável que os
Arapaho tenham ali convivido com os Salish orientais que, antigamente, transbordavam para além
das Rochosas em direção às Planícies (supra:318)82.
Entre as versões salish e arapaho do mito do desaninhador, as diferenças são mínimas:
82
Gostaríamos de saber o que pensam os filólogos a respeito da aparente semelhança entre o nome
arapaho do enganador, transcrito como /Nih'änçan/ por Dorsey & Kroeber e o de um rival e concorrente do
enganador entre os Cawlitz, chamado /N,x-ntci/ na transcrição de Adamson (:230-233), nome de "um
animal (não identificado) de pelagem avermelhada e que se parece com um camundongo".
antes de desaparecer, o herói lhe tinha confiado os filhos e legado a
esposa. Ela concordou, mas seu novo marido logo começou a encrencar
com os enteados. Desde então, padrastos e madrastas muitas vezes se
mostram malvados. A mulher, que amava os filhos e sofria ao vê-los
maltratados, resolveu tornar públicas as circunstâncias suspeitas nas
quais seu marido havia desaparecido. Todo mundo foi até o pé do
rochedo, onde havia montes de contas, provenientes das lágrimas que o
herói tinha derramado por dias e noites seguidos. Pediram ajuda aos
gansos selvagens, que voaram até o topo, colocaram o homem nas costas
e desceram de volta. Foi tratado ali mesmo, recuperou-se e ficou gordo e
forte.
Então saiu à procura da mulher e dos filhos, encontrou-os e lhes deu
de comer; pois o rival tinha deixado as crianças sem comida, esparando
que morressem logo de fome. Em seguida, o herói se escondeu num saco
de carne, pegou o Enganador de surpresa e o matou. O cadáver foi
retalhado e os pedaços espalhados.
Mas o Enganador ressuscitou. Foi embora, sentou-se à beira de um
lago e começou a meditar acerca da morte: deveria ser tornada definitiva
ou não? Pendeu para a ressureição, ao ver um bastão, uma bosta seca de
bisão e um pedaço de miolo vegetal flutuarem depois de ele os ter jogado
na água. Mas um pedregulho afundou, o que o fez decidir pelo contrário.
Era melhor que as pessoas morressem de uma vez por todas, pensou, se
não, a terra logo ficaria superpovoada. Desde então, a vida só dura um
tempo, e depois, a gente morre (Dorsey & Kroeber:78-81).
O leitor terá reconhecido nessa última seqüência aquela que as versões salish mais
completas consagram à fabricação de um filho artificial pelo enganador (M667a, 668a, 670a,
671). Mas o problema ali era criar a vida livrando-se das servidões biológicas, ao passo que aqui
trata-se de, por meio da instituição da morte irrevogável, determinar um termo para a vida, a
partir de então submetida às mesmas servidões, mas no que toca seu fim, em vez de seu começo.
Perfeito exemplo da indissolubilidade de fundo e forma, o mito arapaho faz passar essa
seqüência, conseqüentemente, do começo para o fim da narrativa. Mostra-se assim solidário das
versões salish e, mais além, das dos Klamath e Modoc examinadas no início deste livro, com quem
os Arapaho também compartilham o motivo da origem dos adornos: contas originadas das
lágrimas do herói durante seu exílio substituindo os bordados de espinhos de porco-espinho que
ele inventa junto das irmãs salvadoras, durante seu restabelecimento. O lugar diferente que cabe
ao porco-espinho na mitologia das Planícies (OMM:170-224) impunha essa substituição.
Note-se, finalmente, que os Arapaho — que se interessam menos pela origem primeira do
fogo do que pelo progresso técnico representado pela invenção da pedra de fogo, em lugar da
broca extremamente incômoda (M760, Dorsey & Kroeber:8-9) — descrevem, no mesmo mito, um
meio de ascensão descontínuo, que permite subir até o céu mas não descer de volta, sucedido
por uma união contínua, mas dotada de função negativa exatamente por causa dessa
continuidade (supra:422). A rocha fácil de escalar porque possui degraus remete à escada ou
corrente de flechas dos mitos salish sobre a conquista do fogo; mas sua transformação em coluna
perfeitamente lisa pelo enganador remete ao longo pênis desse mesmo enganador (aqui
transposto do euxi horizontal para o eixo vertical), nos mitos salish em que ele recebe a mesma
função perversa, a de conquistar uma mulher que de outro modo estaria fora de alcance. O
motivo do longo pênis também está presente nos mitos arapaho (M761a-b-c, Dorsey &
Kroeber:63-65) mas, ao contrário do que acontece nos mitos salish, a coisa acaba mal para o
enganador, que morre de hemorragia quando seu membro é cortado. Foi a partir daí que os
homens passaram a ter um pênis de dimensões modestas, e que passaram a ser severamente
punidas as tentativas de estupro que apreciavam certas confrarias de rapazes nas Planícies
(OMM:320). Considerações tiradas da ordem pública mobilizam assim, com fins morais e práticos,
um motivo dotado alhures de um significado simbólico muito mais amplo.
Em compensação, um simbolismo importante estava ligado ao mito do desaninhador e o
ligava ao das esposas dos astros (cf. OMM:175, 207), pois ambos faziam parte da liturgia da dança
do sol. Dentro da casa ritual, um bastão bifurcado com as pontas orientadas para o leste e o
oeste, fincado na terra, sustentava os restos mortais de um passarinho não identificado, voltado
para o norte. Esse emblema simbolizava a descida do herói nas costas dos gansos (Dorsey &
Kroeber:80; Dorsey 5:86), um detalhe que ocupará um lugar considerável em nossas conclusões
(infra:532).
Ao lado dessa versão "normal" do mito do desaninhador, os Arapaho possuem uma outra,
menos facilmente reconhecível e sobre a qual convém nos debruçarmos com atenção, por razões
que veremos em seguida.
Como foi assim que terminamos a análise de M759, começaremos notando que neste mito
a oferenda de penas de águia a um monstro chifrudo lembra um rito da dança do sol (Dorsey &
Kroeber:28 n.; Dorsey 5:201-202). Esta é uma primeira ligação entre M759, M762 e o ciclo das
esposas dos astros.
Sobretudo, fica claro que M762 representa o que várias vezes chamamos, apenas
esboçando-lhe o esquema, de "transformação Putifar" do mito do desaninhador. Isso já
transparece no fato de a disjunção do herói ocorrer ao longe, um traço característico dessa
transformação desde os algonquinos centrais e, como veremos em breve, até os Chinook (M659),
afora o caso já discutido (M661, supra:304-308) no qual a conversão do código culinário em
código vestuário permite a manutenção da disjunção vertical, mas que nesse caso é definitiva, o
que é sinal de sua não-pertinência nesse contexto modificado.
Em M762, contudo, a transformação Putifar é sistematicamente invertida e apresenta de
si mesma, até nos mínimos detalhes, uma imagem virada. Em lugar de um herói ajuizado que
recusa o incesto com a esposa de seu pai ou irmão, ou que é disso injustamente acusado embora
ignorasse completamente as intenções de sua parenta, aqui, um vadio, ridicularizado pelo irmão
mais velho (que alhures tem o papel de marido ofendido), se comporta como um verdadeiro don
Juan, não dentro do círculo familiar, mas fora dele. Veremos a seguir que, nas versões
algonquinas, um dos que conspiram contra o herói (junto com o pai ou irmão dele) também se
apodera de seus bens; de modo que a agressão de que o herói é vítima o torna pobre. Em M762b,
em que seu irmão e demais parentes, próximos ou distantes, são obrigados a pagar altas
compensações às famílias das vítimas dele, sobretudo quando se trata de mulheres casadas, são
suas próprias agressões que provocam o empobrecimento, não seu, mas de seus familiares. Por
outro lado, os conspiradores de M762 prometem ao irmão do herói riquezas de todos os tipos,
contanto que ele concorde em servir a seus funestos desígnios. Ora, esse mesmo herói se
encontra tão desprovido de tudo no início que é preciso lhe fornecer roupas. Na verdade, aqui é o
ciúme coletivo que se exerce contra um homem que instiga as libertinagens do irmão e cuja
própria esposa nada tem a temer. Em vez de o ciúme agir de dentro para fora, age de fora para
dentro.
A transformação Putifar afasta o herói para uma ilha, terra cercada de água; em M762,
apesar de duplucada, a primeira tentativa de afastamento fracassa: não se consegue afogar o
herói num rio profundo, ou seja, água com terra dos dois lados. Esse episódio parece não ter
outro propósito senão excluir a outra fórmula ao invertê-la, afim de que a disjunção bem
sucedida mais tarde seja de ordem puramente terrestre, por ocasião de uma caçada ao bisão que
substitui a coleta de ovos de aves aquáticas. Mas, ao cavar com sua circulação insistente uma
fossa circular cheia de carne sempre fresca, o herói faz surgir um espaço vazio cercado de terra,
cuja imagem inverte a da ilha (saliência de terra cercada de água) na qual, segundo as versões
"retas", não há o que comer.
Cada vez mais afundado na terra, o herói de M762 também inverte o personagem do
desaninhador exilado no céu, e essa disjunção para baixo agrava, ao juntar-se a ela, a que os
heróis da transformação Putifar costumam sofrer, apenas para longe. Já mostramos (supra:372)
em que o galho agitado de baixo para cima para espantar as moscas, por teimoso respeito a uma
ordem, se opõe à corda trançada que permite a descida de volta do herói no ciclo do
desaninhador, contanto que ele respeite escrupulosamente as ordens recebidas; o mesmo ocorre
nas versões salish do ciclo das esposas dos astros, em que essas mulheres transformam sua escada
de corda em balanço cuja parte de baixo, ao contrário do galho, oscila a partir de um ponto fixo
no alto.
Após o banimento do herói, os principais responsáveis se tornam ricos na transformação
Putifar, aqui ficam pobres. E, se no primeiro caso, uma mulher cheia de ódio contra o cunhado ou
genro é responsável por sua disjunção, no segundo, a mesma mulher consegue, com suas
demonstrações de ternura, obter sua conjunção. Sujada de gordura — um alimento — por seus
concidadãos, essa mulher também reproduz a vítima coberta de excrementos que encontramos
no grupo M654-657, e que veremos reaparecer nas versões algonquinas da transformação Putifar,
ao custo de uma dupla inversão que afeta o modo de agressão e o valor simbólico do que é aqui
empregado (infra:459). Veremos, ao mesmo tempo, que o castigo aplicado aos malvados em
M762, uma surra com pauladas que, se tivesse sido levada um pouco mais adiante, ter-lhes-ia
quebrado as pernas quando eles dançavam ou tocavam tambor, inverte aquele que lhes é
reservado por uma versão omaha da história do desaninhador (M771a, infra:467), efetivado por
intermédio de um tambor mágico cujo som faz com que subam nos ares e depois despenquem no
solo, quebrando os ossos; ao passo que, conforme M762, o herói deve sua salvação ao som de um
apito mágico que o faz subir nos ares acima da água e depois caia ileso num local dos mais
confortáveis. M762, aliás, desvela seu parentesco direto com o mito do desaninhador numa
última seqüência, em que os inimigos do herói o levam para desaninhar águias, mas do outro lado
de um grande rio (o que exclui a ilha no meio de um lago da transformação Putifar), afastando-o
portanto no eixo horizontal, invertendo o eixo de disjunção vertical, traço invariante do ciclo do
desaninhador. Contrariamente ao que ocorre nesse ciclo, o herói coleta uma grande quantidade
de penas de águia, graças às quais poderá pagar o preço da passagem a um monstro aquático;
este último transforma, pois, no eixo horizontal, os passadores verticais representados pelos
gansos em M759, que também são criaturas aquáticas, mas sendo pássaros, vivem acima da água,
e não debaixo dela, e nas asas — ou seja, plumagem — dos quais o herói também será
transportado.
M762a não informa quanto ao fim do herói. Em M762b, ele morre numa tempestade de
neve ou fulminado por um raio. Fogo celeste num caso, frio intenso no outro, mas ambos opostos
ao modo como o próprio herói, nas versões algonquinas da transformação Putifar, destroi os
malvados graças a um intenso calor que emana da terra e faz ferver a água dos rios.
Quando introduzimos pela primeira vez o mito arapaho, foi para interpretar,
reconstituindo-lhe o paradigma, o incidente em si mesmo incompreensível das velhas cegas
agitando galhos de conífera numa versão thompson da história do desaninhador (M670a). Com
isso, buscávamos também demonstrar o valor operatório de um par de termos em oposição e
correlação, o balanço (de que os galhos agitados de baixo para cima apresentam a imagem
invertida) e as symplégades; e em relação a estas últimas, postulávamos ainda que eram
evocadas por um outro par de velhas cegas, no caso celestes. Agora acabamos de mostrar que
M762, que contém o motivo dos galhos agitados, inverte a transformação Putifar, por sua vez
transformação do mito do desaninhador. Se a hipótese avançada às páginas 370-374 estiver
correta, então as versões retas da transformação Putifar deverão conter o motivo das
symplégades. A prova nos será dada por mitos siuanos e algonquinos.
*
* *
83
Deixamos de lado uma pequena transformação moralizante, registrada entre os Arapaho e os Gros
Ventre (M763a,b,c; Dorsey & Kroeber:262, Kroeber 6:118-120) em que um rapaz, quer tenha ou não cedido
às investidas da cunhada (esposa do irmão), logo descobre que ela prefere um estrangeiro que encontrou e
com quem se junta para matá-lo. O herói vence, traz a mulher de volta para o irmão, confessa se for o caso,
e é perdoado. Juntos, eles matam a infiel.
assim, num mesmo mito, dois esquemas entre os quais as tribos da América do Norte de que
estamos agora tratando hesitam, conforme mitos aliás muito semelhantes pertencem mais ao
ciclo do desaninhador ou à transformação Putifar desse mesmo ciclo. Ora, qual é a diferença
entre os dois tipos? Ela provém do fato de a intriga do mito do desaninhador, quando o herói
obtém para os humanos o fogo de cozinha, estar fundada num antagonismo entre afins, mais
precisamente entre doador e tomador de mulher, que vai-se enfraquecendo eventualmente até
um vago laço de amizade (comparar M179 e M764), ao passo que a transformação Putifar se funda
num antagonismo entre parentes próximos, pai e filho ou irmão mais velho e irmão mais novo. Se
a armação do mito do desaninhador tal como se pode observá-lo desde os Klamath e Modoc até os
Salish parece desmentir esse contraste, é porque ela explora uma outra virtualidade do sistema:
84
Essas linhas foram escritas antes da publicação do segundo volume da Enciclopédia Bororo, em que
se encontra uma variante até então inédita de M1 que, se não for um remanejamento inspirado pelos
ligado a um outro, o surgimento, ao lado do parente ciumento (pai ou irmão), de um afim
malvado na pessoa do marido da irmã do herói que, em M765c, o martiriza tanto que ele,
socorrido por um monstro aquático, se vinga duas vezes, primeiro de um afim, e depois de um
parente. As versões assiniboine confirmam, portanto, a análise dos parágrafos acima.
E a confirmam igualmente de outro modo. Vemos surgir nessas versões um traço que as
tribos vizinhas, membros da família lingüística algonquina, também possuem. Quase todos os
heróis da transformação Putifar se vingam procedendo de modo semelhante: ou aproximam o sol
da terra (M765a) ou pedem à irmã mártir que acenda um grande forno, ou provocam eles mesmos
um calor intenso que transforma a água em vapor e onde morrem fervidos os traidores (M765c).
Fogo destruidor, portanto, de origem terrestre ou celeste mas, neste último caso, devido ao
rebaixamento do sol até a terra, invertendo o fogo de cozinha construtor que afasta o sol da
humanidade. Também fogo cuja obtenção, conforme o ciclo do desaninhador, libera os humanos
da cruel alternativa diante da qual se encontravam, entre comer cru ou, dispondo apenas do
calor do sol para cozinhar seu alimento, correr o risco de serem eles próprios queimados. Mas há
mais. Tanto entre os Assiniboine como entre os Cree (M766a,b), o herói aconselha perfidamente o
pai a se proteger do grande incêndio iminente cobrindo o corpo com gordura (de urso, especifica-
se em certos casos), o que o torna ainda mais inflamável. Como a gordura é alimento, e inclusive
o que confere à carne seu mais alto valor alimentar (infra:483), o fogo destruidor provocado pelo
protagonista se apresenta claramente como o inverso do fogo de cozinha. Além disso, a
transformação que apontamos acima (:455), do grupo M654-657, em que um herói ou heroína se
vê sujo de excrementos, justamente de urso, até M762, em que a sujeira da heroína provém de
gordura, um alimento, prossegue aqui por intermédio da mesma gordura, incinerada em vez de
cozida ou excretada, ou seja, passando da categoria do podre para a do cozido e, finalmente,
para a do queimado (cf. CC:300).
Um último aspecto das versões assiniboine merece nossa atenção. M765a conta que, no
caminho de volta, o herói viu dois precipícios cujas bordas se afastavam e se juntavam
rapidamente. Conseguiu passar por eles jogando dentro de cada um um peixinho, e aproveitando
o momento em que a terra se fechava para engoli-lo. Como havíamos postulado (supra:456), a
transformação Putifar restitui o motivo das symplégades, neutralizadas graças a uma oferta de
peixinhos feita por um humano e transpostas do eixo vertical para o eixo horizontal, invertendo
assim duplamente as verdadeiras symplégades que, no grupo M375, M382, etc, negam aos
humanos o direito de consumir peixes grandes enquanto não tiverem conseguido passar por elas.
Várias versões alginquinas dão ao herói ou a seu pai nomes que parecem ter algo em
comum: Ayatç (M766a), Aiwosé ou Aiswéo (M766b), %y$sä (M767a), Aiasheu (M767d), ou
editores, seria muito próxima da transformação Putifar, já que nela, em vez de um filho violentar a mãe, é
uma madrasta que seduz o enteado (E.B. II:303-359).
A'katah"neta (M505), mais distante. Petitot (1:451 n.1) traduz a primeira fórmula por "o
Estrangeiro" e sugere sua derivação a partir de dois radicais, um que singifica "ligado, amarrado"
e o outro "coberto, enterrado", o que inverteria o sentido que os Thompson dão ao nome do
desaninhador, "o elevado" (supra:347). Michelson, que era sem dúvida melhor lingüista, traduz (in
Jones 3:77) a última forma por "aquele que foi deixado para trás", sentido que satisfaz também a
análise mítica, por colocar em evidência o eixo de disjunção horizontal próprio da transformação
Putifar, que se opõe ao eixo de disjunção vertical próprio do ciclo do desaninhador, ao qual se
refere o nome do herói em thompson85.
Se fossem confirmadas, essas aproximações onomásticas teriam seu interesse aumentado
pelo fato de as versões algonquinas comprovarem por outros aspectos a hipótese que havíamos
avançado a propósito dos mitos salish, segundo a qual as velhas cegas seriam uma contrapartida
celeste das symplégades. Naquele momento, tratava-se de uma dedução, de que mitos
algonquinos fornecem agora a prova empírica, pois eles substituem as symplégades horizontais
que o herói tem de enfrentar na versão assiniboine (M765a) e na versão cree, que as chama de
"boca da terra" IM766a, Petitot 1:451-459), por duas velhas cegas com os antebraços e cotovelos
cobertos de ossos pontiagudos como punhais (M766b, Skinner 1:92-95), ou por duas velhas que
tentam asfixiar o herói sob seus joelhos inchados de pus, e depois outras duas, cegas, com
sovelas nos cotovelos (M767a, Jones 2, part 2: 381-399), ou ainda (M505, Jones 3:75-89) por dois
pumas canibais, também atestados entre os Assiniboine (M765c), e depois dois velhos cegos que o
herói incita a brigarem entre si e que acabam matando um ao outro, conforme um esquema já
ilustrado por outros mitos algonquinos e por mitos atabascanos e ute, em que se apresenta
isoladamente (M685-697, supra:358). A correspondência simbólica entre as duas cegas e as
symplégades, aliás, não decorre apenas do fato de os dois motivos serem comutáveis nos mesmos
mitos em várias tribos (e entre os Cree, de M766a a M766b), mas também do modo como tais
mitos contam de que maneira o herói conseguiu acabar com as ogras: "Arquitetou um
estratagema para que as velhas matassem uma à outra. Em vez de sentar-se entre as duas,
prendeu um fio de couro seco na ponta de um bastão e o agitou... Elas ouviram o barulho e
acharam que era o herói que estava se sentando. Então elas se viraram e ambas começaram a dar
cotoveladas para trás. Foram-se aproximando uma da outra, sem parar de dar cotoveladas, e
acabaram atingindo-se mutuamente, dando gritos de vitória dirigidos à suposta vítima. Mataram
uma à outra a punhaladas ao mesmo tempo..." (Skinner 1:94).
Na ilha em que fica preso, o herói de M766a e M767a se alimenta de ovos crus ou então
não encontra o que comer. Não tem fogo, portanto. Um monstro aquático o leva através da água,
85
A forma /$y$sä/, nome do pai do herói em ojibwa (cf. naskapi /ayas.i/, Speck 11), em
compensação, coloca problemas, pois Jones a traduz por "larápio de carne", locução cujo sentido mitos
e ele encontra uma velha que o alimenta com um caldeirão inesgotável e depois duas ogras, cujo
fim acabamos de ler. Conforme M766b e M767a (as versões M767b-c, Radin 4:27-31, são mais
pobres, e só as mencionamos para constar), o herói deve ainda evitar fazer tilintar os ossos
humanos pendurados ao longo do caminho, ou então desconhecidos, donos de cães ferozes,
alertados pelo ruído, irão matá-lo. O herói, descuidado, bate nos ossos, mas escapa cavando um
tunel subterrâneo, na entrada do qual coloca um arminho empalhado, para dar a impressão de
que é apenas uma toca. Engana os cães que o perseguem e seus donos, furiosos, acusam-no de
mentira e cumplicidade, e os matam. Segundo M767a, é uma bolsa mágica, feita de pele de
marmota, que perfura um túnel em torno das ossadas, mas sai antes do ponto e faz com que elas
tilintem. De todo modo, esse episódio no qual o herói se vê exposto a um perigo mortal no mundo
dos mortos, simbolizado por ossadas que não se deve fazer ressoar, e se salva graças a animais
subterrâneos, ainda que nem todos se mostrem à altura da tarefa, evoca de modo notável a
experiência do herói, no mito bororo de referência M1, no mundo das almas, de onde deve trazer
guizos rituais e chocalhos sem fazê-los ressoar, e realiza sua missão a contento graças a animais
aéreos dos quais o último, por ser lento ou desajeitado, escapa da morte por um triz (CC:43-44).
A proximidade fica ainda mais evidente quando se nota que, conforme M767a, as ossadas são
feitas de omoplatas, objetos rituais numa parte do mundo que praticava a escapulomancia
(Cooper 2), e que são igualmente rituais, na América do Sul, os chocalhos que permitem escutar
nesse caso (e adivinhar no outro) as disposições dos espíritos.
Quando o herói de M767a volta a sua aldeia, encontra a mãe completamente nua e cega
em razão dos maus tratos por parte do pai. Ele lhe dá roupas e lhe devolve a visão soprando sobre
seus olhos. Em M505, ao contrário, ele a castiga por ter adotado uma criança após o seu
desaparecimento e a obriga a queimar o filho substituto.
Segundo M766b, o pai, grande caçador de ursos, pensou que poderia escapar do fogo se
protegendo debaixo de suas provisões de gordura, mas isso são o salvou. Os únicos sobreviventes
do incêndio, o herói e sua mãe, se trasformaram respectivamente em Gaio cinzento (Perisoreus
canadensis) e em Melro americano (Turdus migratorius). Essa conclusão nos leva a um mito coeur
d'alêne (M748a, supra:439) no qual a mãe também vira melro e o filho, mergulhão. Vimos que a
esses dois pássaros são aí atribuídas funções aeriódicas no eixo temporal, um como anunciador de
morte próxima, o outro, de mau tempo. Mas o mito cree coloca o Melro em correlação e oposição
com o Gaio cinzento que, pelo menos entre os Algonquinos orientais, tinha uma sólida reputação
de pilhador de acampamentos e ladrão de carne. Eram chamados de "pássaro cobiçoso" ou
"larápio" e os índios tinham tanta raiva deles que os maltratavam com crueldade e os depenavam
vivos assim que os capturavam (Speck 5:365-366; Desbarats:66). Ora, o herói da versão kickapoo
vizinhos permitem elucidar (infra:461), mas cuja relação etimológica com os das outras versões não se
percebe claramente.
(M505) transforma seu serviçal em gralha, outra ave que rouba e come carniça, e o pai do herói
da versão ojibwa M767a, poupado pelo filho não se sabe bem porquê, e ao contrário das demais
versões, chama-se "larápio de carne" (supra:459 n.1). Isso basta para elucidar a função semântica
do Gaio cinzento. Se a de psicopompo, que os Coeur d'Alêne e os Carrier atribuíam ao melro,
fosse mantida entre os Cree, os dois pássaros estariam conjugados e opostos como, digamos,
"subtraidores", um de comida e o outro de anos de vida. No que concerne ao gaio cinzento, essa
função parece concordar bem com o nome que lhe dão os Algonquinos orientais e de que os
colonos ingleses tiraram "whiskey-jack", que é homônimo do que os índios dão a seu deus
enganador, Wiskedjak (Speck 5:365).
Uma outra confirmação nos vem de um mito cree (M768, Skinner 1:107-108) que começa
depois de um incêndio universal provocado (ou, como aqui, apenas previsto e anunciado) por um
herói cujo pai, com quem ele está brigado e que morre no fogo, chama-se Aiacciou, palavra
certamente da mesma raiz que, como notamos (:459), é constante no grupo. Ainda segundo
M768, o herói traçou um perímetro e deixou entrar nele todos os que queria poupar. Os mitos
anteriores reservavam essa mercê à mãe, eventualmente ao pai, e a uns poucos privilegiados
(M767a), mas aqui todas as criaturas puderam se refugiar. Após o incêndio, o herói atribuiu a
cada espécie animal suas características próprias e evitou assim a confusão que resultaria se uma
espécie quisesse ter-se apropriado das características de outra. Deu ainda um nome a cada
habitante da aldeia. Chamou à mãe de Melro, "por causa de sua tendência amorosa", crê o
informante, e deu a si mesmo o nome de Carouge (blackbird: Agelaius?), "porque essa ave só
volta na primavera". O mesmo ocorria com o melro americano, em relação ao qual Speck (5:372;
7:79) nota o retorno precoce e o papel meterológico quando canta durante o dia, como
anunciador de chuva (supra:438). Embora nesse mito seja feita uma transferência para o código
sazonal, os dois pássaros nele também presidem, ao lado de um outro (a irmã do herói,
transformada em Pica-pau dourado), à introdução de afastamentos diferenciais entre as espécies
animais e entre os humanos, a quem um nome próprio confere uma "marca distintiva", diz o texto
(cf. Lévi-Strauss 9:cap. 7). Em suma, nessa seqüência da transformação Putifar, o exílio do herói
para longe acarreta um grande incêndio terrestre destruidor e, em seguida, a instauração das
diferenças entre espécies. Ora, lembramos que os mitos salish associam o segundo resultado à
conquista construtiva do fogo celeste — expedição dirigida para o alto — e o interpretam como
efeito de subtrações efetuadas num contínuo zoológico primitivo (supra:419-420, 448).
No total, a transformação Putifar do mito do desaninhador (que por sua vez transforma
num outro eixo a gesta do demiurgo Lua) é acompanhada de uma série de operações topológicas
simples, das quais as principais são:
Ela reúne igualmente num único mito temas que, tanto a oeste das Rochosas como na
América do Sul, exigem dois: o do desaninhador no eixo vertical e, no eixo horizontal, a gesta do
demiurgo Lua (M375, M382, etc) ou, na Amazônia, a de Poronominaré (M247) e outros mitos
aparentados, entre os quais, como percebemos agora, pode ser incluído o mito xerente de Asaré,
longamente discutido em O cru e o cozido (M124, p. 206-245), com a transformação secundária
(em relação às precedentes) origem da lua => origem de Orion e das Plêiades. Isso decorre de
nossa discussão anterior de um mito blackfoot (M591, supra:197) e do fato de esse mito — que
transforma o de Asaré e também explica a origem das Plêiades — dar cabo de um grande incêndio
(comparável ao dos mitos anteriormente discutidos por fazer ferver a água dos rios) com a
chegada do tempo chuvoso. Ora, essa mudança de sinal numa conflagração de origem terrestre
ou celeste, aqui levada a seu termo, lá contida no momento oportuno, é acompanhada da volta a
um eixo de disjunção vertical, fechando, pelo menos nesse aspecto, o ciclo das transformações.
*
* *
Numa rica família, viviam um irmão e uma irmã, muito bonita, e que
o enganador Iktomi desejava. Este mancomunou-se com um parente que
invejava os muitos cavalos de seu jovem primo. O parente levou o primo
para pegar penas de águia numa ilha e o abandonou lá. Um monstro
aquático e chifrudo o levou de volta à terra firme. O herói encontrou a
irmã casada com Iktomi, que a torturava queimando-lhe o rosto com
tições. Matou o cunhado malvado, e também o primo ladrão. Decorou sua
casa com as penas de águia que tinha trazido e tornou-se o primeiro... O
texto para por aqui (Beckwith 2:411-413).
Uma versão mais antiga (M769b, Wissler 1:196-199; cf. também M769c, Riggs 2:139-143)
dá ao herói uma cunhada malvada (esposa de seu irmão mais velho, que o acusa injustamente de
incesto) e um não menos malvado cunhado, marido da irmã, e que a tortura assim que a obtém
como prêmio por sua cumplicidade. Abandonado por esse traidor numa ilha deserta, o herói se
alimenta de frutinhas e raízes selvagens que saem da terra fazendo muito ruído. Um monstro
aquático chifrudo o leva através do lago e morre fulminado por um raio; trata-se, portanto, como
nas versões algonquinas, de um passador suscetível às perturbações atmosféricas. O herói
encontra camundongos morando dentro de um crânio de bisão que choram a morte de seu "avô" e
os mata a todos. Depois, uma velha, que tenta matá-lo esmagado sob sua perna hipertrofiada,
mas é ele que a mata e incinera seu cadáver: "Se ele não tivesse feito isso, as mulheres teriam
conservado o poder de dilatar suas pernas e esmagar os homens com elas". Em seguida, ele visita
uma mulher que tenta envenená-lo servindo-lhe como refeição o próprio cérebro (que ela mesma
tirou por um buraco no topo do crânio) mas um rato de bolsa o ajuda, furando a panela e
esparramando toda a comida antes que ele coma. O herói mata a assassina jogando uma pedra da
fogueira no buraco do crânio dela, e queima seu cadáver: "Se ele não tivesse feito isso, as
mulheres continuariam a envenenr os homens misturando seu cérebro na comida que preparam".
O herói chega então à casa de uma velha hospitaleira, mãe de duas moças lindas que dormem
uma em cada ponta da casa. Elas convidam o herói, que fica impassível, elas brigam e ouve-se o
rangir de suas vaginas dentadas. Foi porque o herói matou as duas que as mulheres não são mais
perigosas para seus amantes. Depois dessa aventura, ele é perseguido por todas as espécies de
animais. Ele se disfarça de velho. Uma mulher, apesar de estar do lado de seus perseguidores,
fica com pena e lhe diz que no final da fila ele encontrará cangambás, porcos-espinho e texugos
velhos e fracos, que pode comer: "Foi assim que os humanos aprenderam a comer carne de
animais". Finalmente de volta, o herói reconheceu sua irmã numa mulher precocemente
envelhecida pelos maus tratos recebidos do marido. Ele deu uma surra no cunhado, e em razão
disso, "hoje em dia, às vezes, os parentes de uma mulher maltratada castigam seu cruel esposo".
O herói reencontrou o pai, que morreu de emoção ao vê-lo, e todos os seus familiares. Foi caçar
para eles, e matou bisões que pássaros e outros animais disputaram ferozmente com eles. Todos
os humanos morreram nessa luta: "É por isso que hoje animais comem homens" (Wissler 1:196-
199).
Essa conclusão inesperada acrescenta uma última função etiológica a todas as que já
tínhamos localizado. Refere-se certamente a animais carniceiros, comedores de cadáveres, os
únicos sobreviventes de uma desordem primitiva na qual as mulheres agiam como
estranguladoras, envenenadoras e castradoras, exceto em relação aos velhos. Como a de Riggs
(M769c), uma versão proveniente dos Dakota do Canadá (M769d, Wallis 1:78-83) mostra o herói
obrigado pelo enganador (aqui chamado Aranha) a beber a própria urina e comer os próprios
excrementos. No caminho de volta, ele também encontra vários personagens. Primeiro, três
velhas hospitaleiras, e depois duas mulheres canibais, que ficam tentando asfixiá-lo com cobertas
feitas de cabelos humanos; em seguida, elas ficam menstruadas e, então, ele se casa com elas.
Cada uma delas dá à luz um menino. Ao crescerem, esses filhos levam os pais a uma visita aos
parentes paternos. O herói encontra sua irmã casada com Aranha, que a tortura queimando-lhe o
rosto com tições. É a vez dele de obrigar o cunhado cruel a beber a própria urina e comer seus
próprios excrementos, depois o destrói pelo fogo e provoca uma grande conflagração que mata
todo mundo, exceto seu pai e sua mãe (na versão Riggs, ele tem de ressuscitar os pais,
assassinados pelo cunhado, e só mata a este último numa fogueira).
Ao longo dessa passagem dos Algonkin aos Sioux, assinalamos várias transformações.
Primeiro, uma que poderia não ser significativa apenas em francês, da bolsa feita de um couro de
marmota (M767a) para o rato de bolsa (bolsa como continente => bolsa como conteúdo). Pois
num caso, o animal ou seus restos animados cava uma psssagem que o afasta de ossadas
maléficas e, no outro, o animal faz um buraco no fundo de uma panela e abre o caminho para
uma matéria que, ao contrário, é mole, o cérebro, que se opõe ao tecido ósseo duro como a
medula que as omoplatas, mencionadas por M767a, não possuem. Em M766b e M767a, tudo gira
em torno de não fazer barulho, o que o herói ou o animal que o auxilia não conseguem. Em
M769b, ao contrário, ele consegue ficar quieto quando as duas mulheres brigam por ele e se salva
duas vezes graças a um ruído: o primeiro é o que as cenouras selvagens de que ele se alimenta na
ilha fazem quando crescem, e o segundo, o das vaginas dentadas de suas sedutoras, que o alerta
e impede que ele mesmo seja comido.
As ogras semelhantes a symplégades dos mitos algonquinos possuem armas cortantes e
viradas para fora, como ossos pontiagudos e sovelas; a não ser pelo joelho cheio de pus de
M767a, que inverte nesse caso específico o miolo envenenado de M769b. As dos mitos dakota —
excetuando-se M769c, que associa ambos os tipos — possuem armas contundentes ou viradas para
dentro, como pernas em torniquete ou vaginas dentadas, e ainda os sufocadores de cabelos
humanos (M769d), que se opõem aos punhais de ossos como mole de opõe a duro e, portanto, do
mesmo modo que se opõem miolo e ossos sem medula interna. O incidente dos camundongos
instalados num crânio de bisão, que ilustra um contraste paradoxal entre vida e morte, também
poderia conotar essa mesma oposição. Mas, para termos certeza, precisaríamos explorar o
paradigma a que esse motivo pertence e que, na mitologia das Planícies, parece ser comutável
com vários outros. Por isso, deixaremos esse aspecto do mito de lado.
Perguntemo-nos, antes, qual seria a razão das transformações que acabamos de
inventariar. A versão Riggs (M769c) e a versão dakota canadense (M769d) ao mesmo tempo
prolongam e desdobram uma transformação que viemos acompanhando por todos os mitos desse
grupo, desde o conjunto M654-657 (cabeça da vítima emporcalhada com excrementos, supra:290-
296) até o traidor queimado por intermédio de alimentos (M765a, M766a,b), passando por uma
vítima maculada com alimento cozido (M762). Ora, aqui, primeiro uma vítima, na pessoa do
herói, e depois um traidor são obrigados a comer excrementos; e uma outra vítima, a irmã do
herói, é queimada no rosto com tições. A oposição máxima, (excremento:alimento :: fogo
destruidor:fogo construtor), se situa entre o início do mito, em que o traidor obriga o herói a
beber sua urina e comer suas fezes, e o final do mesmo mito, em que o herói mata todo mundo
num incêndio. Mas não sem ter antes, num penúltimo episódio, aplicado duas vinganças juntas
sobre a pessoa de seu principal inimigo, conjugando assim, na ordem sincrônica, as categorias
podre e queimado, que a narrativa opõe na ordem diacrônica, começando por uma e terminando
pela outra.
De modo que, ao organizarem desse modo seu mito, os Dakota do Canadá parecem
efetuar a síntese das versões tradicionais de seu grupo de origem com as que se verificam entre
os Algonkin. Estes últimos concluem com um incêndio que destrói toda a população, queimando
notadamente o pai do herói, apesar de ele ter se coberto de gordura para se proteger, o que o
assemelha ao alimento cozido. A versão mais rica de que dispomos, proveniente dos Dakota das
Planícies (M769b) conclui de modo exatamente inverso: o pai, que não tem culpa de nada, morre
de emoção ao rever o filho e este, caçando para alimentar os familiares, mata-os
involuntariamente, porque os animais brigam com eles pela caça, massacram-nos e comem seus
cadáveres. Em vez de evoluir para a categoria do queimado, como as versões algonkin, essa
versão dakota evolui para a categoria do podre, a que pertencem os corpos que apodrecem
rapidamente. Um procedimento que, aliás, parece condizente com o restante do mito, pois os
primeiros encontros do herói evocam, direta ou metaforicamente, a atividade sexual que diz
respeito a seres jovens, mas por ocasião da qual o herói corre o risco de ser comido cru, ao passo
que seu último encontro, antes de retornar à sua aldeia, permite-lhe passar (e à humanidade com
ele) a comer carne cozida, mas porque ele assumiu a posição de um velho. O mito passa da
juventude à velhice, passa para a morte e, finalmente, para a decomposição. Os mitos
algonquinos adotam um procedimento bem diverso, já que nele os encontros do herói evocam
insistentemente a terra dos mortos, de onde ele volta para assumir seu lugar entre os vivos. Isso
pode ser apresentado na forma de um quadro:
DAKOTA DO CANADÁ
(queimado) + (podre)
[p. 466]
E quanto a outras tribos do grupo lingüístico siuano? Os Ponca e os Omaha possuem uma
versão bastante modificada do encontro com seres sobrenaturais análogos às symplégades. Entre
eles (M770, variante omaha de um mito já utilizado, ver OMM, M469c, J.O.Dorsey 1:185-188, 201-
206), trata-se de Trovões canibais, diante dos quais o herói fica invisível (o que os torna cegos em
relação a ele). Ele rouba deles, em vez de alimento como nas versões salish, um cachimbo aceso
com o qual provoca queimaduras neles, que se acusam mutuamente. O herói acaba se mostrando
e consegue que os Trovões deixem de ser canibais e se alimentem de caça. Desde então, os
trovões auxiliam os humanos em vez de destrui-los, dando-lhes grandes chuvas refrescantes
durante verão. Essa volta ao código meterológico é acompanhada, como era de esperar, por um
movimento no eixo de disjunção que sobe da horizontal para a vertical. E assim voltamos ao mito
do desaninhador. Os Omaha efetivamente o conhecem, pois contam (M771a, J. O. Dorsey 1:586-
609) que um orfão pobre e desprezado foi o único que conseguiu flechar um "passarinho muito
vermelho"86, e assim ganhar um concurso cujo prêmio era a filha do chefe. O enganador Ictinike,
seu rival inconformado, leva-o para caçar perus selvagens e o obriga a subir numa árvore, depois
de tirar toda a roupa, para pegar uma suposta flecha perdida. A árvore sobe até o céu e o herói,
preso, é salvo por quatro pássaros, águia, falcão, gralha e pega, que se revezam para levá-lo até
o solo. Ele volta ao acampamento, recupera suas roupas mágicas e organiza uma dança geral ao
som do tambor. Todos os participantes são lançados pelos ares, despencam e quebram os ossos. O
que nos faz reencontrar ao mesmo tempo o ciclo do desaninhador e a conclusão do mito arapaho
M762 (supra:452-456); e todo o conjunto algonquino-siuano se fecha por esse lado.
Terminaremos esta rápida incursão para o leste pelos Iroqueses. Conforme a versão de um
mesmo mito (M772a, E. Smith:85, Cornplanter:157-181), um homem ou uma mulher detestava o
filho de um casamento anterior do cônjuge. Livrou-se dele prendendo-o numa caverna ou numa
toca de porco-espinho, na qual o tinha mandado entrar para pegar filhotes. M772a conta que o
herói chorou muito, depois adormeceu e acordou na casa dos animais, que estavam deliberando
acerca de como haveriam de alimentar o hóspede que, ao contrário deles, não podia comer cru.
M772b não contém essa seqüência e engata diretamente na intervenção de uma ursa, moradora
da caverna, que recolheu o herói e o criou junto com seus filhotes. Os ursos são, com efeito, os
únicos animais a cujo regime alimentar os humanos podem se acomodar: frutos secos, nozes,
favos de mel... Passaram-se assim vários anos, mas certo dia um caçador achou a toca da ursa e a
matou, bem como aos filhotes; capturou o herói, que tinha ficado como um bicho selvagem,
ensinou-o a falar e o reeducou. Segundo M772b, ele foi devolvido ao pai, pois sua madrasta
86
Os Arapaho têm uma narrativa muito próxima (M771b, Voth:43). O pássaro, possivelmente um
rabo-ruivo (redstart, Setophaga ruticilla) chamado de "faísca" pelos Algonkin orientais (Speck 5:369),
poderia ser, portanto, o pássaro não identificado que simboliza a descida bem sucedida do desaninhador nos
ritos arapaho da dança do sol (supra:452). Com efeito, outra testemunha desses ritos descreve um bastão
malvada tinha morrido nesse meio-tempo, e o herói ensinou aos homens os ritos da dança do
urso, que é celebrada desde então. Em M772a, ele se casa com a filha de seu tutor, cuja esposa
não gostava dele, porque nunca trazia "carne macia de urso". Ele acabou resolvendo matar um
urso, apesar da consideração que tinha pelo povo da mãe adotiva. Mas o castigo veio
rapidamente: na volta, ele foi atravessado por uma estaca e morreu.
Esse mito, que inverte pássaros em porcos-espinho e mundo celeste em mundo
subterrâneo, parece estar bem longe daqueles de que partimos. Não obstante, ele restitui de
modo notável um episódio do mito timbira M10 que ocupava um papel essencial em nossas
primeiras interpretações (CC:79 e 156-171). Nele, um herói adotado pelo jaguar provoca o ódio
da madrasta, que está grávida e por isso extremamente sensível, e se irrita muito com o ruído
que o herói faz ao mastigar carne grelhada. Essa madrasta reclama dele porque ele come carne
dura demais, a outra, porque ele não lhe dá de comer uma carne macia o bastante. A
conseqüência disso é, no primeiro caso, que ele atravessa a pata da mulher-onça com uma flecha
e, no segundo, é ele próprio atravessado.
Esse mito do nordeste da América do Norte inverte duplamente, portanto, as versões sul-
americanas. O animal prestativo, sendo o jaguar, pode alimentar o herói conforme a cultura —
pois o jaguar sul-americano foi o primeiro dono do fogo de cozinha, no tempo em que os humanos
comiam cru — e sendo o urso, ao contrário, é o único que permite ao herói alimentar-se conforme
a natureza — já que o que os ursos comem é compatível com o regime alimentar dos humanos.
Pois bem, essa inversão entre mitos provenientes dos dois hemisférios é, por sua vez,
função de uma outra, que pode ser observada entre os mitos do extremo leste e do extremo
oeste do hemisfério norte. É digno de nota que, ao afirmar sua afinidade com os humanos, a ursa
de M772b escolha opor-se não aos outros animais selvagens, mas aos cães: "Nós, ursos, somos os
mais próximos da sua raça. Nós compartilhamos os mesmos usos... Dizem que os cães são os
animais mais próximos dos homens... mas... vocês não podem comer comida de cachorro e,
durante o inverno, tampouco podem viver como eles" (Cornplanter:174). De fato, como os
humanos, os ursos hibernam em refúgios semelhantes a casas que os protegem do frio, e comem
frutos secos e nozes...
Basta considerar mitos da costa oeste que resumimos e discutimos (supra:43, 145-147,
177, 237, etc.) para avaliar o alcance da reviravolta: entre os Salish e os Sahaptin, as ursas
aparecem como ogras. E os cães, situados a meio-caminho entre a humanidade e a animalidade,
foram quem deu aos humanos o fogo de cozinha (como o jaguar norte-americano) e o instrumento
para acendê-lo (supra:103,138); além disso, se os ursos hibernam, foram os cães que iniciaram os
ventos mornos da primavera (Jacobs 1:30-33). Sabe-se que os cães desempenhavam entre os
com um tufo de artemísia (no lugar do pássaro, segundo Dorsey) "e, além disso, algo vermelho,
aparentemente um pedaço de pano" (Kroeber 3:288. Acerca desse emblema, ver infra:532.
Iroqueses um duplo papel, de vítima propiciatória, holocausto oferecido ao sol em pleno inverno,
para implorar seu retorno (Hewitt 3). De modo que os sistema, do leste para o oeste, permanece
o mesmo, mas todos os termos trocam de lugar: a contigüidade física que, na costa oeste, cria
uma afinidade metonímica entre cães e homens desaparece no leste, dando lugar a uma
semelhança metafórica entre os modos de vida de ursos e humanos. Como se podia prever, o nó
dessa inversão está situado a meio-caminho, entre os Blackfoot, onde (M591) os cães, amigos dos
humanos, põem fim a um grande incêndio (meio de seu holocausto para o sol entre os Iroqueses)
chamando a chuva; é essa a origem das Plêiades, cuja culminação no crepúsculo (Shimony:174)
anunciava para os Iroqueses, justamente, a época do sacrifício dos cães87:
CÃES {
Costa oeste Blackfoot Iroqueses
inventam o fogo {intercedem junto ao
de cozinha } sol
{ apagam um incêndio
chamando a chuva}
fazem a primavera} {vítimas propiciatórias
queimadas numa fogueira
QUASE-HUMANOS PRO-HUMANOS ANTI-HUMANOS
[P.469]
Esse duplo paralelo entre, de um lado, o nordeste da América setentrional e, do outro, o
leste e o oeste da América do Norte, ajudam a convencer de que a mitologia americana constitui
um todo.
*
* *
Olhando para o sul, para a periferia da área na qual, como mostramos nas primeiras
seções deste livro, o mito do desaninhador se transforma no de Dona Mergulhão, notam-se
primeiramente as formas fracas. Entre os Takelma, pequeno grupo lingüístico do sul do Oregon
cercado por Athapaskan, a história do desaninhador se insere de modo episódico entre outras
aventuras de Coiote (M773, Sapir 5:83-84). Vimos (M636a-b, supra:259) que os Maidu transferem
87
Entre os Blackfoot e os Iroqueses, o mito cree M766b fornece mais uma transição. Nele, os cães são
bichos ferozes a serviço de espíritos matadores que os acusam de mentir e os matam quando o herói os
engana e consegue escapar deles (supra:460). De modo que os cães, que já eram anti-humanos, se
comportam objetivamente como se fossem ainda pro-humanos. Existem outras transições. Entre os
atabascanos do norte, acreditava-se que morder a orelha de um cão e fazê-lo ganir provocava trovoadas
(Jetté:351) e entre os Yokuts e os Mono, prevalecia a crença inversa, de que o cão celeste, dono da
tempestade, faria parar a chuva se escutasse um cão na terra ganir por ser maltratado com essa finalidade
(Gayton & Newmann:29; ver também p. 48-50, em que gêmeos criados por uma cadela viram os trovões).
Note-se, finalmente, que o mito tão difundido a oeste das Rochosas a respeito da origem da humanidade
atual, gerada pela união entre uma mulher humana e um cão, assume uma forma inversa e simétrica no
leste do continente, entre os Montagnais, para os quais a humanidade atual nasce da união entre um
personagem macho e sobrehumano, o demiurgo, e uma fêmea de hamster (Perrot 1864:160).
seu tema para o ciclo dos veadinhos contra os ursinhos. Entre os Ute, em compensação, o tema
do desaninhador se destaca em primeiro plano. Sabe-se que esse grupo lingüístico ocupava um
imenso território na região chamada de Grande Bacia, que corresponde ao atual Utah,
estendendo-se largamente para Wyoming, Colorado e Nevada. Divididos em pequenos bandos
nômades, os Ute viviam de coleta mais do que de caça, num meio semi-desértico do qual sabiam
explorar todos os recursos, e que contrastava com as regiões adjacentes tanto quanto sua língua,
ramo da família uto-asteca, sua organização social e seu modo de vida os distinguiam dos povos
vizinhos, Sahaptin ao norte, tribos californianas a oeste, Navajo e Pueblo mais ao sul, Crow,
Cheyenne e Arapaho a leste.
Pois bem, entre os Ute, observa-se um duplo fenômeno. De um lado, o mito do
desaninhador se reconstitui quase que completamente. Do outro, consolida-se com seu
complementar, isto é, a transformação Putifar. Essa dupla operação é realizada de modo tão
preciso e elegante, e com tamanho engenho na utilização dos meios, que merece uma atenção
mais detida, tanto mais que seu autor é um povo a que nem os colonos nem os etnógrafos
parecem ter dado o devido valor.
Na verdade, essa tendência à síntese já aparece entre os Mono, cuja fração oriental
pertence à mesma família lingüística que os Ute. Contam eles (M774a, Gifford 1:338-339) que
Coiote mandou um dos dioscuros, seu sobrinho matrilateral e genro, chamado Baumegwesu,
desaninhar águias num despenhadeiro, e o empurrou nele. Um outro tio materno do herói, o
Junco ou ave das neves, conseguiu tirá-lo de lá, mas só depois de ter cumprido a exigência do
sobrinho de provar sua habilidade e sua força escalando um alto rochedo. Lembramos que mitos
de proveniência bem mais setentrional (M756a) encarregam o Junco de abaixar a abóbada celeste
até a terra, ao contrário de Cambaxirra e Chapim que, com a corrente de flechas, procedem no
sentido oposto. Aqui também o Junco inverte os outros animais prestativos comuns ao ciclo do
desaninhador, elevando o herói de baixo para cima, em vez de fazê-lo descer de cima para baixo.
E se opõe igualmente ao Coiote, que joga o herói para baixo, em vez de elevá-lo até o céu.
Conforme outras versões, que se aproximam mais das registradas entre os Ute (M774b,
Gayton & Newman:45-48, cf. p. 75-78, 94-96 e Steward:406), o herói Pumkwesh foi o inventor
das flechas, do instrumento usado para endireitá-las, da guerra, da caça ao urso, da poliginia
sororal e da domesticação de animais. Invejoso do genro de sua irmã Junco, Coiote o jogou no
fundo de um barranco. Ele foi recolhido por águias e um morcego, "avô" da pobre vítima que aqui
tem o nome do pássaro Tohi (Pipilo sp.?) o levou de volta para cima, depois de ter provado sua
robustez. Este último incidente também se encontra nas versões navajo. Por ora, convém
introduzir o mito do desaninhador tal como se encontra entre os Ute:
88
E tampouco a dos Pueblo, pela mesma razão. Lembramos, no entanto, que foi à mitologia dos
Pueblo que dedicamos nossos primeiros esforços de interpretação, em 1951 (Lévi-Strauss 21), e que foram
do mito do desaninhador, integrada à gesta dos dioscuros (cf. mito mono M774a), está
estreitamente relacionada à de seus vizinhos. O que pode ser constatado no modo como os
Navajo mantêm e transformam o episódio do atiçador.
Entre os Navajo, a história do desaninhador faz parte dos mitos de emergência. Ela se
situa na época em que os dioscuros se encarregaram de destruir os monstros que assolavam a
terra, entre os quais as águias. Auxiliado por três roedores, marmota, camundongo e tamias (?),
um dos dioscuros matou um monstro chifrudo. Mandou fazer um disfarce com as tripas cheias de
sangue e usou o estômago como máscara. Foi disfarçado assim provocar as águias em seu ninho,
no alto de um rochedo que cresceu tanto que o herói não conseguiu mais descer. Passou fome e
sede. Duas lindas moças de pele clara e com os olhos rodeados de preto apareceram e lhe deram
milho fervido. Eram Rolas (turtledoves). Em seguida, surgiu uma velha Morcega que deu provas
de sua força carregando quadro rochas grandes em seu cesto e desceu o herói até o solo. Ele teve
de se proteger, para que a velha furiosa não lhe cortasse as barrigas das pernas. Eles se
aproximaram, juntos, das águias mortas, e a Morcega começou a depená-las. Em seguida, ela
violou a proibição que lhe havia feito o herói de penetrar num vale profundo onde cresciam
girassóis selvagens; ela perdeu ali todas as suas penas, que sairam voando, transformadas em
passarinhos (M776a, Haile & Wheelwright:63-75).
Numa variante (M776b, ibid.:108-109), o mais velho dos gêmeos, transformado em coiote
pelos malefícios de um indivíduo dessa espécie, recuperou sua forma original graças à magia de
humanos que o acolheram. Mas seu inimigo, Coiote, levou-o numa caçada às águias, e fez subir o
pico onde o herói estava. Um passarinho chamado Tsehnutl-Tsosi ajudou-o a descer (cf.
Haile:162, tsenaolchosi, "cambaxirra dos cânions", Catherpes mexicanus). O herói mais tarde se
vinga de Coiote fazendo-o engolir pedras em brasa, recobertas com pólen comestível para
parecerem apetitosas. Coiote morreu profetizando que um prodígio acompanharia sua
ressureição: no dia apontado, as sete estrelas Dilgegeh apareceram (cf. Haile:38, 44; dileye, "as
Plêiades").
A terceira e mais complexa das versões (M776c, Haile & Wheelwright:112-118) apresenta
um herói humano diferente dos dioscuros mas igualmente transformado em coiote por um animal
da espécie que se apodera de suas armas e de sua máscara, usurpando-lhe a identidade junto de
sua esposa e filhos.
Tratado por um esquilo, o herói recupera a forma original e parte em busca dos seus. Mas
não havia mais ninguém no acampamento. Um atiçador esquecido chamou-o e aconselhou-o a ir
para o leste. No caminho, o herói encontrou outros utensílios — panela, cuia de barro, escova de
cabelo — que o guiaram. Acabou encontrando a mulher e os filhos, junto com Coiote, que o
continuados por J.-C. Gardin em relação à mitologia dos Zuni (material inédito) e pelo saudoso L. Sebag em
relação à dos Keresan, a que ele dedicou um importante trabalho que se encontra em vias de publicação.
recebeu fingidamente bem. Dizendo que precisava de penas para repor as da máscara e das
flechas que ele tinha roubado, ele levou o herói para desaninhar águias que, na verdade, eram
gafanhotos. Como nas demais versões, o rochedo cresceu mas, além disso, o trovão transportou o
herói para o céu, enquanto o rochedo diminuiu e ele ficou sem caminho de volta. Os gêmeos
divinos, alertados pela mosca Dontso, que era o mensageiro deles, sairam à procura do herói.
Acabaram por encontrá-lo preso no "templo da noite" e guardado por um fogo violento
alimentado por dois demônios. Eles apagaram o fogo, neutralizaram os guardas e reanimaram o
herói, que estava desmaiado. Depois de lhe terem ensinado todos os seus cantos, os dioscuros
levaram seu protegido de volta para casa e recomendaram-lhe que nunca mais deixasse Coiote
tomar a palavra em primeiro.
O herói pediu farinha /gloh-deh-glohtsosi/ (cf. Haile:185, 209, tl'o'dei-; Elmore:44,
tl'ohteei'tsoh, Chenopodium) à mulher, cobriu com ela pedras em brasa e as deu a Coiote, que as
engoliu e morreu. Depois, deu um emético à esposa e a purificou, assim como às crianças.
Porém, pouco depois, o herói foi carregado para o céu pelo vento. Foi recebido por uma
mulher-aranha, cujos filhos tinham sido comidos pelas vespas. O herói tinha uma broca de fogo, e
a usou para por fogo na lenha e destruiu todas as vespas, exceto quatro, de que descendem os
insetos atuais. O texto, assaz obscuro, parece indicar que a mulher-aranha ensinou o herói a usar
a broca para acender o primeiro fogo. Em seguida, ela o fez descer pelo seu fio. De volta à terra,
o herói foi convidado a uma competição entre animais diurnos e noturnos para decidir quem
reinaria sobre a terra, o dia ou a noite. Mas o jogo acabou empatado e, desde então, luz e
escuridão se alternam (cf. Eaton:219-220). Surgem então dois crânios pertencentes a gêmeos
mortos antigamente por uma tribo inimiga (Taos). As formigas pretas recolheram seu sangue e
carne, e todos os seres sobrenaturais colaboraram para refazer e reanimar os corpos. Essa é a
origem de uma cerimônia.
Nota-se imediatamente que o papel das formigas inverte o que lhes é atribuído mais ao
norte, pelos Salish e pelos Kutenai, de coveiras (supra:375). Aqui porém, o poder de ressuscitar
os mortos, que está na origem de um rito de cura, aparece como função da periodicidade diária,
instituída pouco antes; em cuja instituição as formigas também desempenham um papel segundo
os índios do estreito de Puget (Ballard 1:75), em razão de sua constituição anatômica que,
dividindo o corpo em duas metades, as torna aptas a conotar pares de termos correlativos e
opostos, como dia e noite, ou vida e morte. Se o herói navajo, como parece, aprende a fazer fogo
durante a sua estadia no céu, isso nos coloca bem perto de nosso ponto de partida: depois das
torções que os Ute imprimem ao mito do desaninhador, os Navajo reconstituem seu tema. A
ligação com as versões ute persiste, contudo, em vários detalhes, como a prova prévia de sua
capacidade que se exige do animal prestativo e, sobretudo, o papel idêntico que é atribuído ao
atiçador, que os Navajo incluem numa série de utensílios domésticos prestativos; uma simples
inversão leva daí aos utensílios revoltados que o herói thompson encontra no céu e condena a
para sempre servirem seus futuros usuários.
Já que os grãos de girassol e os de quenopódio serviam para fazer farinha (Bailey; Vestal),
podemos sem dúvida aproximar o oferecimento de pedras em brasa cobertas com farinha de
quenopódio a Coiote da proibição feita à Morcega, em seu próprio interesse, de se aproximar dos
girassóis, que nas terras navajo florescem nas terras baixas na época das chuvas (Elmore:11). Por
ter desrespeitado essa interdição, a Morcega perde as penas de águia que, numa versão dakota, o
herói consegue conservar e usa depois para decorar sua casa ou tenda (M769a, supra:463)89. As
penas perdidas por Morcega dão origem aos passarinhos e, embora M769a seja interrompido antes
do final, seu título, "o povo dos pássaros", permite supor que a casa coberta de penas tem alguma
ligação com a origem dessas criaturas. O fato é que todas as versões do mito navajo, afora as que
utilizamos (M776d, Matthews:119; M776e, Haile 1:123-125; M776f, Wheelwright:89-92; M776g,
O'Bryan:87-92) insistem na perda das penas ornamentais em decorrência da travessia do campo
de girassóis. A explicação desse singular episódio poderia estar numa observação de Vestal (:51):
"Colocavam laços de crina de cavalo nos girassóis para capturar pássaros de penas amarelas ou
azuis". Ora, M776e precisa que as penas de águia, recolhidas com tanto cuidado por Morcega, se
transformaram em pássaros inicialmente cinzentos, e depois de diversas cores. Tratar-se-ia,
portanto, da origem das penas ornamentais em ambos os casos.
Conseqüentemente — e não nos estendendo mais sobre versões indissociáveis do restante
da mitologia navajo — parece que essas versões do mito do desaninhador possuem relações
estreitas com as de populações vizinhas e afastadas. A roupa de entranhas que o herói navajo
veste para atrair as águias, arpximar-se delas portanto, remete, por exemplo, às entranhas de
cervídeos que, conforme as versões nez percé (M571c), Coiote insiste em guardar, e cujo peso
obriga os gansos a se separarem dele. Os dois demônios que guardam a prisão do herói navajo,
por sua vez, evocam as symplégades; e se ele tem de tomar cuidado para que a Morcega não lhe
corte as pernas num ataque de mau humor, é porque ela, aqui animal prestativo, não deixa de
manter um elo com as duas velhas cegas de cotovelos cobertos de ossos pontudos, análogas às
symplégades, que segundo os Algonkin orientais são as antepassadas dos morcegos (Speck 5:373).
Uma observação para terminar. Nos mitos navajo, como nos dos Dakota (M769b), Maidu
(M636a,b), Sanpoil (M737), Assiniboine (M765a,c) e Cree (M766a,b), o traidor — às vezes coberto
de gordura — morre no fogo, ou engole pedras em brasa envoltas em gordura ou em farinha, o
que o transforma metaforicamente em forno de terra. Depois de ter sido vítima desse mesmo
tratamento, Coiote faz se levantarem as Plêiades (M776b), um detalhe que nos leva a
observações anteriores sobre essa constelação que, ora no registro temporal do calendário, ora
89
Note-se, em favor dessa aproximação, que o bico de grou ou de garça, arma mágica do herói
dakota (supra:464), tinha um papel importante na liturgia navajo (Haile 2:22-23).
no registro espacial das configurações estelares, indica a época ou o o local em que se estabelece
a comunicação entre céu e terra. Em certos mitos do ciclo das esposas dos astros, as Plêiades são
a porta do céu (M444b).
Podemos, portanto, nos perguntar se as Plêiades, cuja origem tantos mitos sul- e norte-
americanos — dos Matako e Makuxi aos Wyandot (CC:247-248), aos Iroqueses (M519g,
Beauchamp:281-282) e os Thompson (M591f, Boas 13:21) — explicam por uma recusa de alimento,
não correspondem simetricamente ao forno de terra: a constelação como um buraco no céu,
resultante de ausência de alimento, o forno de terra como um buraco na terra, em que se
concentra muito alimento; lugar também paradoxal, onde um fogo de origem celeste é entregue
ao mundo subterrâneo que passa a ser seu depositário. Além do que o fogo celeste tem natureza
solar e, como vimos nos volumes anteriores (CC:166; OMM:29-30), as Plêiades possuem uma
afinidade com a lua. Voltaremos a encontrar essa interessante questão em nossas conclusões.
SÉTIMA PARTE
A AURORA DOS MITOS
Has omnes, ubi mille rotam volvere per annos, Lathaeum ad fluvium deus evocat agmine magno:
scilicet immemores supera ut convexa revisant, rursus et incipiant in corpora velle reverti.
Virgílio, Eneida, VI, v. 748-751.
"O que pensar de uma lei que só pode ser executada por revoluções periódicas? Trata-se,
simplesmente, de uma lei natural fundada na inconsciência dos que a ela são submetidos".
F. Engels, nota em K. Marx, O Capital, vol. 1
I
OS OPERADORES BINÁRIOS
"Uma vez entendida essa regra lógica, tomai os contrários alegria e tristeza, e depois branco e
preto; se preto significa luto, branco há de significar alegria."
Rabelais, Gargantua, I, cap. X
De um extremo ao outro do Novo Mundo, dir-se-ia que povos que falam línguas, possuem modos
de vida, práticas e costumes que nada têm em comum, não obstante buscaram com tenacidade,
sob os climas mais diversos, localizar certas formas de vida animal (e certamente isso se aplica
aos demais reinos), seguir, por assim dizer, seus rastros, comparando sempre que possível
espécies, gêneros ou famílias, com o intuito de encarregar alguns deles do papel de algoritmo a
seviço do pensamento mítico, para efetuar as mesmas operações.
Assinalamos tais ocorrências várias vezes. É o caso do papel atribuído às lontras, tanto
marinhas como fluviais, do Alasca até o sul do Brasil (MC:169-173); e também nas duas Américas,
do destino reservado aos pássaros da família dos icterídeos, como vigias, protetores ou
conselheiros (OMM:31, 188-195). Ao longo deste livro, em várias ocasiões, fomos levados a
aproximar a função semântica que os mitos da América do Norte atribuem às aves da família dos
tetraonídeos — tetrazes e galinholas — das funções análogas já destacadas na América do Sul, em
relação aos tinamídeos. Como muitas vezes acontece, trata-se de animais de espécie, gênero e
família diferentes, mas que pertencem à mesma ordem; no caso, a dos galináceos. Tudo se passa,
portanto, como se uma espécie de saber oculto orientasse tais aproximações, embora os critérios
que as inspiram serem de natureza diversa daqueles a que recorrem taxinomias mais científicas.
Mas o caso dos galináceos fornece outras lições. Em O cru e o cozido (:209-231),
aventamos a hipótese de que os inambus (Crypturus sp., atualmente Grypturellus sp.)
desempenhariam uma função semântica ambígua, na fronteira entre a vida e a morte, ao termo
do que chamamos alhures (MC:31 n.1, 209-212; OMM:172; Lévi-Strauss 14) de dedução
transcendental. Pois a observação empírica dos hábitos dessas aves nada revela nesse sentido, e
a conclusão se apresentara a nós indiretamente, no decurso de uma tentativa de reduzir vários
zoemas a suas invariantes. Partindo da hipótese de que um mito xerente, M124, transformava um
mito bororo, M1, havíamos atentado, entre outros indícios, para a presença em ambos os casos de
uma tríade de animais prestativos. Em M1, tratava-se, primeiro, de Colibri e Pomba, constituindo
um par de termos em correlação e oposição com respeito à água, e depois de um inseto, o
Gafanhoto, caracterizado por um vôo mais lento e mais baixo, que quase acaba com ele durante
uma expedição na companhia dos dois pássaros; mas ele retorna vitorioso, ainda que quase
morto. Como o mito xerente M124 inclui também um par de animais arborícolas, pica-paus e
macacos, em correlação e oposição com respeito ao fogo — celeste e destruidor para os
primeiros, terrestre e construtivo para os outros — deveria decorrer daí (mediante a aplicação,
num caso simplificado, de uma fórmula canônica proposta desde o início de nossas pesquisas, cf.
Lévi-Strauss 1958:252; MC:212) que a transformação que afeta os dois primeiros termos da tríade
seria fechada, e que uma relação de transformação idêntica deveria definir, em ambos os casos,
o terceiro termo. Em M124, o terceiro termo designa "perdizes", ou seja — tendo em vista que
não há fasianídeos na América do Sul — aves da família dos tinamídeos.
A partir do momento em que concebíamos, a título de hipótese, que esses tinamídeos
pudessem ocupar uma posição ambígüa e equívoca, no limiar entre a vida e a morte, tornava-se
possível detectar, em sua constituição e seus hábitos, bem como nos mitos e crenças a seu
respeito, elementos que não sugeririam nada nesse sentido, se tomados isoladamente, mas aos
quais a hipótese que evocamos há pouco permitia conferir sentido. Os tinamídeos se distinguem
das demais criaturas dos ares por um vôo pesado; na categoria do alto, ocupam uma posição
relativamente baixa. Os antigos Tupinambá usavam suas penas brancas e pretas em adornos de
guerra. Diz-se que certos tinamídeos e cracídeos cantam à noite, a intervalos tão regulares que
são como uma espécie de relógio da mata; são, portanto, associados a formas bem curtas de
periodicidade. Os mitos aliás chamam a atenção para as afinidades noturnas dessas aves, que
definem como caça desprezível, cujo caldo amargo é o único alimento permitido aos rapazes
reclusos, etc. Contudo, tais indicações não bastariam, por si sós, para verificar a hipótese; vagas
e fragmentares, teriam menos ainda permitido formulá-la.
Graças a mitos da América do Norte, provenientes da região a oeste das Rochosas, agora
podemos apresentar a prova daquilo que avançávamos baseados exclusivamente em mitos da
América tropical. Será preciso, para tanto, começar por arrolar uma série de indicações
rigorosamente conformes às que resumimos acima. Já que não há tinamídeos na América do
Norte, tais indicações dizem respeito a uma outra família da ordem dos galináceos, os
tetraonídeos, que encontramos repetidas vezes nos mitos dos Sahaptin e dos Salish.
Um mito munduruku (M16, CC:93) opõe um mau caçador, que só mata inambus, aos
maridos de suas irmãs, capazes de caçar porcos do mato, caça de qualidade superior, que ele
tenta trocar por suas aves. Um outro mito de mesma proveniência (M143, CC:265) evoca o caso
de um mau caçador que só traz inambus para a mulher, e tem de escutar seus comentários
desagradáveis. Pois bem, os Ojibwa da região dos Grandes Lagos começam exatamente do mesmo
modo um de seus mitos: um homem, casado e com muitos filhos, é tão mau caçador que não
consegue nem mesmo trazer uma franga de crista, a presa de pequeno porte mais fácil de
apanhar, para alimentar a família. Seus cunhados, mais bem sucedidos, zombam dele. No dia
seguinte, sua sogra faz, não um caldo amargo, como em M143, mas uma sopa, e a serve tão
quente ao genro que ele a derruba e queima o próprio peito. Esse incidente o desmoraliza; ele
perde a vontade de caçar e, quando volta com uma mísera franga, sua mulher o põe para fora de
casa (M777, Jones 2, II:443-451). O mito também explica porque a franga é uma caça de
qualidade inferior: sua carne branca não tem gordura. O restante da narrativa trata da busca
desesperada por carne bem gorda. É certamente significativo que essa busca, finalmente bem
sucedida, engate na história do enganador transportado por gansos e que eles jogam lá de cima,
já que versões ocidentais, já discutidas (supra:165, 471) encadeiam esse episódio num outro em
que o enganador, após uma falta de ordem alimentar, perde todos os dentes e se torna incapaz
de se alimentar.
Mas vamos nos ater à franga. A alusão à sua carne branca ecoa uma opinião bastante
difundida, já que os Ten'a, que são atabascanos do noroeste, dizem que a carne de um
tetraonídeo (willow-grouse: lagópode dos salgueiros?) fica completamente branca quando cozida
(Jetté, 1a. parte:301). Ainda num plano estritamente alimentar, uma ambigüidade própria aos
tetraonídeos se evidencia no nome que os algonquinos ocidentais dão à franga de crista. Os
Penobscot e os Malecite apreciam bastante a sua carne, mas ainda assim chamam-na de "ave
ruim"; porque é escandaloso, como revela um velho informante, que uma carne tão boa seja tão
magra (Speck 5:358). Tais julgamentos concordam com o que um viajante europeu, Maximiliano
de Wied, formulou no Brasil a respeito do inambu: "sua carne é muito boa... como gelatina;...
quase não tem gordura" (in Brehm 2, vol. 4:494). Encarada por esse ângulo, a ambigüidade que
caracteriza os galináceos no pensamento dos indígenas das duas Américas parece ser da mesma
ordem que a que fez duvidar, nos primeiros séculos do cristianismo, se convinha ou não incluir as
aves, junto com o peixe, no cardápio dos dias magros (Hastings, vol 5:767a).
Mas há mais: nos dois hemisférios, os mitos exploram essa ambigüidade do mesmo modo.
Os Chinook classificavam os tetraonídeos com as raízes amargas (Jacobs 2, I:77; cf. M143), entre
os alimentos de tempos de penúria. Também os utilizavam para fazer um caldo para os doentes,
prática igualmente registrada entre os Salish da costa que, na versão humptulips da gesta do
demiurgo Lua (M375c, Adamson:276-284), transformam em "faisão" — ou seja, em franga de
crista, cf. supra:353 n.1 — a mãe da criança raptada, e lhe atribuem como últimas palavras o
seguinte: "Viverei escondida nos arbustos, pois me transformaram numa ave triste. Serei humilde
por toda a minha vida. Quando alguém adoecer, será alimentado com minha carne, a única que
os doentes conseguem manter no estômago. Se o doente estiver em estado grave, e a vomitar,
isso indicará sua morte próxima". Depois, ela cortou os cabelos bem curtos, exceto no meio,
como se usasse um chapéu em sinal de luto; e transformou sua mãe em mergulhão, ave que
freqüenta os lagos.
Ave sem gordura, e de temperamento lúgubre, especialmente apropriada para alimentar
doentes, ligada à morte... todas essas características também estão reunidas nos mitos sul-
americanos. Vimos que, na América do Norte, os da região que nos interessa além disso
consideram a franga como um espírito do frio, que atrasa a chegada da primavera e prolonga a
penúria com as tempestades de neve que provoca no final do inverno. Para os Kalapuya, ela é
dona das doenças (Jacobs 4:272-274). Os Sanpoil proíbem os pais que estão prestes a ter um filho
de comer sua carne, para evitar que a criança grite até perder a respiração e seja atacada de
convulsões (Ray 1:124).
Os Salish e seus vizinhos vão, portanto, mais longe do que seus congêneres sul-
americanos, e logo entenderemos porque. Entre os Salish, as características atribuídas à franga
possuem um fundamento mítico claramente enunciado. Os povos do sul do estreito de Puget
(M778a-g, Ballard 1:128-132) contam que um pretendente recusado matou uma moça-franga. O
pai dela, também frango ou então tentilhão dos brejos, conforme a versão, foi buscá-la na terra
dos mortos, mas estes se recusaram a recebê-lo: "De todo modo, os frangos não ficam o tempo
todo entre os vivos, desaparecem todos os anos durante uma estação completa, quando vão
visitar os mortos". Por isso, certas pessoas não comem franga, com medo de morrer antes do
tempo (l.c.:129-130). Vimos que, para os Tillamook, o tentilhão é o intermediário entre o mundo
dos vivos e o além, e que os Carrier, mais ao norte, atribuem a mesma função ao melro,
chamando a atenção para suas idas e vindas diárias (supra:439). Ao colocarem o frango na mesma
categoria que o tentilhão, os Salish do estreito de Puget apenas transformam um ritmo cotidiano
em ritmo sazonal, mas permanecem claramente dentro de um sistema que persiste na América
do Sul, atribuindo aos galináceos, que anunciam a passagem das horas, uma função noturna
igualmente ligada à periodicidade cotidiana. Quanto a isso, é significativo que uma das versões
salish explique com a viagem de Frango ao reino dos mortos — de onde ele tentou trazer de volta
dois de seus netos, e só conseguiu salvar um deles — o costume de matar gêmeos, considerados
como uma monstruosidade naquela parte do mundo: "Só se deve ter um filho por vez", conclui o
mito (Ballard 1:131). Duas crianças que nascem ao mesmo tempo provocam uma desordem nos
ritmos biológicos.
Um informante acrescenta a esse grupo de mitos o seguinte comentário: "A filha de
Frango é caolha. Quando fala com os espíritos, olha com o olho cego. Os índios nunca comem
cebça de franga porque elas são meio mortas. Quando a filha olha do lado direito, dirige-se aos
vivos. A cabeça é uma espécie de fantasma" (Ballard 1:133).
Trabalhando com mitos sul-americanos, havíamos inferido (pois eles mesmos não dizem
nada que se pareça com isso) que para compreender a função semântica do zoema "galináceo"
era preciso admitir que ele conota a intersecção entre a vida e a morte, e a passagem de uma à
outra. E eis que agora mitos da América do Norte enunciam de modo explícito e enriquecem com
um detalhado comentário uma proposição que nos parecera necessária por razões puramente
lógicas. Não poderíamos ter esperado uma melhor demonstração da validade e da fecundidade de
nosso método, que não só nos permite resolver problemas à primeira vista heteróclitos, dando-
lhes uma mesma solução — o que realiza a economia a que aspira toda investigação científica, e
indica que ela se aproxima de seu termo — mas, principalmente, apresenta com a incarnação
imprevista de um símbolo numa imagem um tipo de evidência que se pode justificadamente
chamar de apodíptica, pois tal imagem, presente a milhares de quilômetros de distância no
discurso patente de sociedades de língua e cultura totalmente diferentes daquelas de onde
partimos, materializa um esquema ao mesmo tempo abstrato e oculto. Depois disso, poderia
parecer supérfluo acrescentar confirmações indiretas. Ei-las, no entanto.
Em mitos chinook já discutidos (M566, supra:155) pertencentes ao ciclo da avó libertina,
Guaxinim leva uma surra da avó por ter desperdiçado a comida de ambos e se vinga dela fazendo-
a engolir bolinhos de polpa de fruta cheios de espinhos. Ela engasga, pede água, e a recebe num
chapéu furado. A velha sai voando, transformada em Franga. Como havíamos notado na ocasião,
esse mito tem um correspondente exato entre os Bororo (M21, CC:102-103), em que mulheres
que não têm comida, porque seus maridos são incompetentes, dão a eles pequis (Caryocar sp.)
cheios de espinhos; eles engasgaram, começaram a grunhir como porcos do mato e se
transformaram nesses animais, dando origem a eles. Sabemos agora que, se na América do Sul os
porcos do mato são o melhor tipo de carne, nas duas Américas, os galináceos são a presa mais
desprezada. De modo que é o mesmo mito que persiste, em regiões tão afastadas, apenas
modificado por uma inversão dos valores atribuídos aos que sofrem a metamorfose em cada caso.
A segunda confirmação nos vem dos mitos thompson pertencentes ao ciclo do
desaninhador. Vimos que as velhas cegas que o herói encontra no céu se transformam em duas
espécies de tetraonídeos, uma fecundável de longe pela audição, e a outra fácil de capturar, ou
seja, que pode ser pega de perto. Como o primeiro aspecto concerne à perpetuação da vida de
uma espécie, e o outro, a interrupção prematura dela para uma outra, o desdobramento das
espécies finalmente torna patente, por outra via, o mesmo tipo de ambigüidade. Na pessoa da
Franga cuja cabeça é meio viva meio morta, vida e morte, normalmente afastadas pela duração
da existência individual, encontram-se paradoxalmente próximas.
Fica assim confirmado que a franga, como outros galináceos americanos, é uma ave que
conjuga em si vida e morte. Os índios Wichita (M370, OMM:45) transpõem a mesma ambigüidade
para a galinha das pradarias (Tympanuchus sp.)90. Quando assumem forma humana, essas aves
são inimigos especialmente temíveis, porque são ambidestras e podem manejar o arco com
ambas as mãos. Tais mãos são, portanto, gêmeas, e como os primeiros gêmeos que os Salish do
estreito de Puget atribuem à filha de Frango, são perigosas.
*
* *
De uma ponta à outra da região que nos interessa, partindo dos Alsea e dos Tillamook ao
sul e subindo a costa até os Tlingit, no norte, uma das narrativas mais populares fala da Raia.
Acontece, às vezes, de ela ser substituída por algum outro peixe, cuja espécie não é fácil
identificar, pois em chinook há nomes diferentes, mas em outras línguas como o alsea, da família
yakonan, as diversas espécies de linguado e a raia são designadas pelo mesmo vocábulo, /hul"'
hul"'/, que também designa um personagem mítico que faz papel de intermediário ou passador
(Frachtenberg 4:70 n.10, 72-73, 253). Tais incertezas não têm a menor importância, pois, como
veremos, os mitos se interessam a todos esses peixes pelo mesmo motivo, o fato de serem
chatos, de modo que sua face ventral, que se apóia no fundo do mar, não possui a mesma
contextura que sua face dorsal. Um inventário do grupo encontra-se em Boas 2:658-660 e 842.
Os Tillamook evocam um singular duelo entre Raia e Cervo (M779, E. D. Jacobs:11). Este
estava certo de que venceria, pois seu adversário era tão largo que todas as flechas haveriam de
atingi-lo em cheio. Mas Raia sempre conseguia se apresentar de perfil no bom momento e,
quando foi a sua vez de atirar, foi Cervo que morreu. Num mito já citado (M756b, supra:444), os
Kathlamet situam no céu um acontecimento do mesmo tipo: os animais, aliados contra os Ventos
do sudeste, ao se prepararem para o combate, quiseram dissuadir Raia de acompanhá-los, porque
era largo demais, diziam, e por isso um alvo fácil demais; era melhor que voltasse para a aldeia,
disseram-lhe, mas Raia demonstrou seu talento para esquivar-se, e deixaram que ficasse.
Esse talento faz com que os Salish do sul do estrito de Puget encarreguem Raia de liderar
a guerra contra o Vento sul, que acaba sendo poupado pelos animais vitoriosos, contra a
promessa de soprar apenas de vez em quando (M780a, Ballard 1:69). Segundo os Klallam, os
90
Também os tetraonídeos, que os Shuswap (Teit 1:629) colocam no mesmo grupo, com outros
representates da família. Tratamos da questão dos galináceos em nosso curso no Collège de France, em
1965-1966.
animais guerrearam contra o Vento norte. Raia disse que conseguiria resistir ao vento se
colocando de perfil, mas ele o fez rodopiar, e ele teve de ceder as honras de vitorioso a
Cambaxirra, que conseguiu fazer o Vento prometer que não sopraria por mais de sete dias
seguidos (M780b, Gunther 2:121).
Os Quinault e os Quileute tinham línguas diferentes, mas eram vizinhos na costa. Eles
contam (M781a-b, Farrand 1:108-109, Reagan & Walters:319) que por ocasião da guerra do povo
terrestre contra o povo celeste, Raia esquivou-se dos dardos de Corvo colocando-se de lado, e
conseguiu perfurar o bico do adversário. Os Quileute dizem ainda que um habitante do céu urinou
sobre Raia, ou então que um terráqueo matou uma raia, depositou-a provisoriamente diante da
casa de um de seus inimigos celestes e voltou para o seu acampamento, do outro lado do rio;
retornou pouco depois, com fogo para cozinhar seu peixe, mas era de noite, e o habitante do céu
tinha saído nesse meio tempo e, sem ver a raia, tinha jogado nela água suja, e a carne desse
peixe tem até hoje esse gosto (M782a, Farrand & Mayer:264-266; M782d, Reagan:51-54; M782e,
Reagan & Walters:319).
Há uma história do mesmo tipo entre os Nootka do cabo Flattery:
A não ser por raras exceções, deixamos as tribos da costa noroeste do Pacífico fora de
nossa investigação. Por isso, apenas notaremos que o estratagema do Linguado para fazer o Vento
hostil cair, aproveitando o contraste entre suas duas faces, uma rugosa e a outra escorregadia,
foi registrado entre os Kwakiutl, os Bella Coola, os Tsimshian, os Haida e os Tlingit (M787a-g,
Boas 22:227, Boas & Hunt 1, I:358, II:98, Boas 24:32, 2:79-81, Swanton 9:129, Krause:189).
Entre os mitos que acabamos de resumir, vários (M756b, M781a, M782b) precisam que
Raia ficou no céu, como um dos animais retardatários que morreram e foram transformados em
constelação. Os Quinault davam a uma constelação o nome de /djagage'h/, "a Raia", que talvez
fosse Orion (Olson 2:178). Diz-se que constelação a que os Twana davam o mesmo nome,
/kwikwä'äl/ em sua língua, era vizinha da Ursa Maior (Elmendorf 1:537). Os Makah davam nomes
de peixe a várias constelações, como Baleia, Linguado, Raia e Tubarão, entre outros, mas não foi
possível identificá-las, porque eles se recusavam a apontá-las com o dedo, devido a um terror
supersticioso; mesmo para falar das estrelas, preferiam que o céu estivesse encoberto (Swan
2:90). A crença de que certas constelações são peixes transformados pode ser encontrada até
entre os Tlingit, que chamavam as Plêiades de "o Peixe-pau" e uma constelação não identificada
de "Pescadores de linguado" (Swanton 2:107).
Mencionamos há pouco a raia como um dos animais retadatários transformados em
estrelas, de que já falamos em relação aos mitos que lhes dizem respeito (supra:420). Esses
mitos, que também se referem a um combate de ordem cósmica, invertem aqueles em que
aparece a raia, no sentido de que tratam da domesticação do fogo, e não do vento e da chuva, ou
então da sujeição dos ventos gelados do norte em vez do vento sul, que traz tempestades91. Pois
bem, eles substituem o episódio da raia por um outro, em geral protagonizado por Serpente e Rã.
O primeiro episódio se situa antes do combate cósmico, e o segundo, depois, quando os animais
estavam descendo do céu: "Eles viram a Serpente saltar, cair e quebrar os ossos. A Rã ficou
pulando de alegria e, desde então, as serpentes comem as rãs" (M725, Jacobs 1:145-146). O mito
chehalis (M756a, Adamson:75, cf. também 77) sobre a guerra do Vento sudoeste contra o Vento
nordeste encarrega a Serpente, que é um grande guerreiro e é vesgo, de comandar as operações.
Não houve perdas no campo do sudoeste, mas Serpente desapareceu e foi tido por morto. Ele
reapareceu, contudo, e ouviu sua irmãzinha Rã que estava se lamentando e fazendo comentários
a respeito do fato de ele ser vesgo que ele considerou insultantes. Ele a matou e comeu. Desde
então, as cobras são inimigas das rãs. O mesmo incidente figura numa versão do mito do estreito
de Puget sobre a conquista do fogo (M723b, Ballard 1:52-53).
A Serpente é qualificada, como a Raia portanto, por uma particularidade anatômica.
Porém, no caso desta, trata-se de uma dupla oposição entre face e perfil e entre a face superior
e a inferior, ao passo que no caso da primeira, trata-se de olhos cuja visão se entrecruza. Os
mitos fornecem a prova de que esses dois tipos de ambigüidade são comutáveis.
Uma versão chehalis da gesta do demiurgo Lua (M382, Adamson:173-177) transfere para o
eixo horizontal a história da conquista do fogo e, ao fazê-lo, conta-a ao contrário. Alhures, os
ventos do noroeste são os donos celestes do frio, do anti-fogo, portanto. Aqui, um povo de
galinhas das pradarias vive na terra — mas a leste, onde faz frio — não em contradição com o
fogo, mas sem possui-lo. Por isso eles dançam sobre a comida para cozê-la, e passam o tempo
todo ocupados nisso. O demiurgo Lua vem vistá-los, dá-lhes a broca de fogo e ensina-lhes a
cozinhar num recipiente de madeira com água que se faz ferver colocando nela pedras ardentes.
Esse episódio, que reintegra os galináceos (supra:481-486) num vasto sistema cuja unidade
começamos a vislumbrar, precede um outro em que Lua encontra o Salmão e o Linguado, que
eram cegos. Lua lhes dá a visão, mas o Linguado fica estrábico.
Em nota (p. 176 n. 2), Adamson, que considera esse último incidente estranho e confuso,
observa que seu informante o omitiu da versão em língua indígena que deu mais tarde a Boas.
Contudo, numa forma apenas ligeiramente modificada, ele aparece no mito nootka sobre a
guerra contra os ventos e a origem das marés (M784, supra:488) em que a Sardinha, depois de
fracassar em sua missão, volta com os olhos perto da boca e não mais afastados como antes; ou
seja, ela fica vesga. Seu malogro, e essa particularidade anatômica que dele decorre, a opõem ao
Linguado, que em seguida consegue fazer os ventos escorregarem em sua face viscosa. Na versão
chehalis, que ao mesmo tempo inverte a guerra pela conquista do fogo e a guerra para a
91
É verdade que o mito klallam M780b manda Raia guerrear contra o vento norte, mas nesse caso ele
sai derrotado em vez de vencedor.
domesticação dos ventos frios, o Linguado, variante combinatória da Raia, se vê estrábico como a
serpente eficaz ou a sardinha das versões "retas"; esta última é também um peixe, mas, como a
Serpente, é redonda e não chata, à diferença da raia e do linguado.
Os mitos que incluem o episódio da Raia explicam que ela ficou para trás no céu e virou
uma constelação. Temos boas razões para supor que o mesmo ocorreu com a Serpente. A versão
snohomish precisa que a Serpente e o Lagarto, que ficaram presos no céu devido à ruptura da
escada, só puderam voltar para a terra na primavera seguinte (M724b, Haeberlin 1:412). Esse
detalhe parece indicar que os dois répteis davam nome a constelações do inverno. Devemos
então concluir que os peixes chatos, cuja posição semântica, como acabamos de ver, é simétrica
à deles, representam constelações de verão? Isso significaria desconsiderar uma outra
transformação, que poderia passar despercebida se não recorrêssemos a um paradigma comum
aos dois hemisférios, que permite elucidar em parte a dúvida apontada à p. 489 quanto à
constelação chamada de "a Raia".
Vimos que essa versão snohomish apresenta uma anomalia em comparação com os demais
mitos sobre a conquista do fogo (supra:416). São os habitantes do céu que inauguram as
hostilidades contra a terra, irritados com o barulho noturno de um carpinteiro que fabrica
canoas. Eles o raptam e prendem. Os animais terrestres sobem ao céu e o libertam, em troca da
promessa de que, a partir de então, ele só trabalharia de dia. Esse episódio, que começa
portanto antes da expedição ao céu, ocupa na cadeia sintagmática a mesma posição que é
alocada ao episódio da Raia nos mitos sobre a guerra contra o Vento, que é aprisionado graças a
um estratagema de um peixe chato, e que os animais libertam em troca da promessa de passar a
soprar apenas intermitentemente92. Nem é preciso sublinhar que o Carpinteiro, trabalhando dia e
noite, fazia um alarde contínuo que, no plano acústico, equivale a uma tempestade igualmente
contínua: fica claro que os dois procedimentos são simétricos, bastando inverter os valores
respectivos do Carpinteiro e dos ventos. Isso posto, surge uma questão: o Carpinteiro que, uma
vez libertado, ficará em silêncio à noite e fará barulho de dia, não inverteria a Raia que, antes de
sua captura e transformação em constelação, era fina de perfil e larga de frente? A aproximação
parece ser ainda mais apropriada na medida em que o Carpinteiro de M724 que trabalha sem
parar é barulhento, o Vento de M785 que sopra sem parar é fedorento e, por ter estado no céu, a
Raia se torna fedorenta segundo M782a-b. Estamos aqui diante da equivalência entre barulho e
fedor cuja realidade demonstramos, a partir de outros dados, várias vezes (CC:299-302, MC:311-
363, supra:473), e na mais recente, aliás, a propósito da história de Coiote que os gansos,
irritados com o barulho que ele faz, deixam cair do céu para onde o levaram, ao passo que aqui,
92
Isso nos permite resolver uma dificuldade que havia incomodado Boas (2:660), relativa a uma
versão haida (Swanton 9:32-34) intermediária entre os dois tipos.
é o contrário, os habitantes do mundo de cima levam o Carpinteiro para o céu porque ficaram
irritados com o barulho que fazia.
Munidos dessas certezas intuitivas, vamos dar um salto ousado, mas que será amplamente
justificado pelo que segue, até o sul da América tropical. Os Matako do Chaco contam num de
seus mitos (M788, Métraux 3:59-60) que certo dia um homem ouviu um ruído no fundo de uma
lagoa e quando mergulhou nela viu pessoas construindo uma grande casa, sob a direção de um
mestre carpinteiro. Este era, justamente, Raia, que ensinou o homem a construir casas. Por isso
as casas matako têm forma de raia.
Desse modo refazemos o itinerário percorrido a propósito dos galináceos, mas no sentido
inverso. Os mitos sul-americanos tinham nos fornecido o princípio de uma dedução
transcendental, cuja prova empírica estava contida nos da América do Norte, que incarnavam em
imagens algo que ainda não passava de um esquema abstrato e teórico, nascido da especulação.
Agora, ao contrário, são mitos norte-americanos que servem de ponto de partida para uma
dedução que caberá aos do outro hemisfério validar, ao designarem expressamente a Raia como
mestre carpinteiro. É verdade que ele constroi casas, e não canoas. Mas mostramos (OMM:154-
155) que não apenas na América como também em outras partes do mundo, a canoa móvel e a
casa imóvel são comutáveis: ora, a relação entre o carpinteiro snohomish e as canoas que fabrica
é da ordem da contiguidade, ao passo que a relação entre seu confrade matako e as casas
indígenas é de semelhança. Essa torção do sistema sugere que se o carpinteiro norte-americano,
que transforma a raia dos mitos simétricos da mesma região, se compromete a ter uma atividade
exclusivamente diurna, o tipo de periodicidade a que se submete é de caráter diário. Nesse caso,
a constelação correspondente seria visível o ano todo, exceto, evidentemente, durante o dia, e
sua localização nas imediações da Ursa Maior parece ser mais verossímil do que perto de Orion.
Além disso, se os dois conjuntos comutáveis — Raia de um lado, Serpente e Lagarto (ou
Rã) do outro — remetem a constelações opostas pelo tipo de periodicidade que caracteriza cada
uma delas — somente diurna e noturna ou, ademais, sazonal — constatamos que essa oposição
forma sistema com uma outra, já extraída dos mesmos mitos (supra:356). O que nos permite
formular:
(constelações permanentes : constelações sazonais) :: (estrelas não nomeadas : estrelas
nomeadas).
Efetivamente, estrelas anônimas são também permanentes, por hipótese, diríamos, já
que há sempre no céu estrelas que se equivalem pelo simples fato de não serem identificadas. E
por essa via constatamos que, como mostramos alhures (Lévi-Strauss 9:226-286, supra:356, 462),
nomear é classificar e, portanto, introduzir a descontinuidade.
*
* *
Essa não é a primeira vez que topamos com Raia em nosso caminho. Em Do mel às cinzas
(:264 n.1) já notamos que os Warrau e os Baniwa, na América do Sul, e os Yurok, na América do
Norte, comparam a raia ao útero ou à placenta: "a raia se parece com os orgãos internos das
mulheres", dizem os Yurok (M292d, Waterman 4:191, Erikson:272). Os Wiyot, os Tolowa e os Hupa
possuem mitos análogos aos dos Yurok, em que uma Dona Linguado, ou uma outra criatura
sobrenatural chamada Maiyotel, captura seus amantes e os exila além-mar (M292e-h, Kroeber
7:97, Goddard 1:116 n., 132). Documentos recentes relativos à América do Sul corroboram as
opiniões dos Warrau e dos Baniwa. Os Tukano comparam a raia à placenta (Reichel-Dolmatoff
4:21, 77). Os Trumai do Brasil Central fazem eco aos Yurok num de seus mitos (Monod, ms.):
"Será que essa raia não é a mesma coisa que uma mulher?" — pergunta-se um índio. E continua:
"Sim, é a mesma coisa; e ele se deitou em cima dela...". Seremos mais prudentes ao fazer uma
outra aproximação, que poderia ser significativa. No mito nootka M786a, Corvo deseja muito
comer o fígado da Raia que, assinala M786b, era bem gorda. Bem, os Kalina da Guiana, que falam
uma língua carib, chamam a raia de /ereimo/, talvez composto de /ere/, "fígado", mais um
sufixo /imo/ usado para formar os nomes de animais temíveis (Ahlbrinck, art. "ereimo", "imo"). A
aproximação poderia parecer descabida se são soubéssemos por outras vias (MC:315) que os
indios sul-americanos muitas vezes acreditam que o fígado é feito de sangue coagulado, e
funciona como um reservatório de sangue menstrual. A equiparação da raia ao fígado, que talvez
se baseie apenas numa semelhança externa, poderia assim remeter à "função útero" desse peixe,
bem atestada em outros casos.
Lembraremos ainda um mito amazônico (M147, CC:269) em que uma heroína lunar e
civilizadora mata animais hostis defumando-os num fogo de resina, e é obrigada a repetir a
operação para acabar com o porco do mato, o tapir, a cobra grande e a raia. Embora o texto não
seja nada explícito, aparentemente atribui à raia a capacidade de esquivar-se, como na América
do Norte. Por outro lado, os Tacana da Bolívia, que dizem que a raia nasceu do pus (comparar
com M782c) saído de um deus ao sair de uma cobra monstruosa que o tinha engolido, não dizem
que ela é capaz de se virar, ao contrário dos Salish. E inclusive dizem que a raia, ao avistar rãs ou
girinos que estavam cantando e dançando para saudar uma tempestade, ficou tão cheia de
admiração que quis imitá-los; como ela não conseguia rodopiar, acabou caindo e morreu (M195,
M789, Hissink & Hahn:107-109, 265-266). Os Tumupasa crêem que as raias são os chapéus dos
espíritos da água, e que simbolizam a lua (ibid.:76-77).
De modo que, nas duas Américas, observa-se a mesma associação da raia com os orgãos
geradores femininos, útero e placenta, de um lado, e do outro, com objetos manufaturados,
como casas, canoas, chapéus que, de vários modos, possuem funções envolventes e protetoras, e
que, como sabemos, várias populações americanas concebem efetivamente como símbolos
uterinos (Reichel-Dolmatoff 1, 4, passim).
Além disso, os Salish comutam em seus mitos a raia e um par de termos composto por
cobra e rã; a primeira certamente conota, pelas razões já expostas, uma constelação visível
durante o ano todo em função de uma simples periodicidade dia-noite, ao passo que as últimas
conotam uma constelação visível apenas durante metade do ano. Essa tríade de termos
complementares ou antagônicos reaparece nos mitos tacana sobre a dança das rãs, que também
possuem um caráter claramente sazonal. Com efeito, eles agrupam as cobras e as rãs, que
dançam juntas numa variante, e se opõem à raia, que não consegue imitá-las pois sua
constituição anatômica a impede de manter o equilíbrio quando tenta rodopiar. Nisso já fica
clara uma oposição extrema entre raia e cobra: uma tem a forma de um losango achatado, a
outra, a de um cilindro alongado. Mas as conotações simbólicas que detectamos na raia,
registradas nos dois hemisférios, permitem desenvolver a oposição em outros planos. Se a raia é
uma criatura uterina, a cobra apresenta uma afinidade com o pênis que um vasto grupo de mitos
(M49-52, M150-159, M255-256, etc.) explora metodicamente. A raia, cuja instabilidade
constitutiva pode ser uma vantagem ou uma desvantagem, e a cobra, estrábica, aparecem como
os derradeiros avatares de uma transformação que viemos seguindo desde os seus primeiros
estágios, ilustrada nos volumes anteriores pelos motivos da mulher de vagina grande, dona de
uma cobra e transformável em sarigüéia (fedorenta como a raia) e do homem de pênis longo,
transformável em tapir sedutor dotado de enormes testículos (CC:255-256, MC:354, OMM:67).
Pois bem, já sabemos que a Rã ocupa, entre essas duas séries, uma posição intermediária. Como
"mulher grudenta", ela se apresenta como contrapartida do homem de pênis longo (OMM:42-68).
Mas, por outro lado, digamos, a Rã que sofre de incontinência urinária, responsável pela
menstruação, agarrada ao rosto de Lua e dona de um chapéu mágico (M382, OMM:60), também
têm uma relação de complementaridade com a Raia na qual se urina, criatura uterina ou
placentar, e que serve de chapéu para os espíritos (fig. 32).
RÃ
1 forma mista
2 sangue menstrual
3 função hermafrodita
(OMM:160, 248-249)
(função "chapéu" negativa) (mulher-grampo)
(função "chapéu" positiva) (homem de pênis longo)
RAIA COBRA
1 losango achatado 1 cilindro alongado
2 útero, placenta 2 pênis
3 função fêmea 3 função macho
4 chapéu dos espíritos lunares: 4 amante da lua:
"cobre-os" "penetra-a" (M256)
Fig. 32 — Raia, Rã e Cobra. [p. 494]
Salientamos várias vezes que os mitos sobre a guerra dos terráqueos contra os habitantes
do céu ou os ventos possuem uma função subsidiária. Além da conquista do fogo, no primeiro
caso, e do estabelecimento do regime dos ventos, no outro, esses mitos explicam a origem das
estrelas ou, mais precisamente, mostram porque as estrelas se dividem em duas categorias, a das
menores e mais numerosas, agrupadas numa multidão anônima, e a das constelações que, como
as famílias animais de que se originaram, possuem formas distintivas e nomes próprios. Vimos
também que, em todos os casos, a ação mítica isola do grosso da tropa um par de protagonistas.
Conforme intervenham antes do combate ou depois dele, são formados por Raia em oposição a
Corvo ou Cervo, ou Cobra e Lagarto, ou ainda Cobra em oposição a Rã. Já que Cobra é uma
imagem simétrica da Raia, pode-se dizer que, de modo positivo ou negativo, a Raia está sempre
presente.
Pois bem, existe um mito bororo, resumido e discutido em Do mel às cinzas (M292a, p.
263-280) em que a Raia desempenha um papel central e que tem por função etiológica explicar a
origem do nome das constelações. Quanto ao código astronômico, esse mito ocupa, portanto, o
mesmo lugar que os mitos da América do Norte em que a Raia também intervém, com uma
diferença: a oposição entre estrelas nomeadas e não-nomeadas, que os Salish situam num plano
sincrônico (certas estrelas tên nome, outras não), entre os Bororo se situa num plano diacrônico:
antes as constelações não tinham nome, agora elas têm.
O mito bororo, bem como os que dele aproximamos no decorrer da reflexão, opõe um
filho de polaridade celeste (pássaro em M2, ave de mau agouro em M292b, interlocutor das
estrelas em M292a) e um pai de polaridade terrestre ou aquática (dendróforo e criador da água
em M2, caçador que deixa a caça pela pesca em M292a, transformado em raia e condenado a
viver na lama em M292b). Conseqüentemente, esses mitos de um certo modo tratam, como os
dos Salish, de um conflito, entre o campo da terra ou da água e o campo do ar ou do céu, mas
com uma inversão dos polos: à diferença dos mitos norte-americanos, os mitos bororo tomam o
partido do personagem de afinidades celestes. Essa inversão vem acompanhada por outra, que
afeta diretamente a Raia. Nas versões quileute (M782a-b, supra:487), a Raia passa a ter mau
cheiro por ter sido maculada com molhado (urina ou água suja). No mito bororo M292a, a Raia se
torna maculante porque ficou impregnada de cinzas quentes, da categoria do queimado.
Lembramos que, irritado com a impaciência do filho, o pai lhe joga na cara o peixe semi cozido
na brasa, que gruda na pele do menino, o queima e cega.
Há mais. Se, numa versão quileute, a Raia fica fedorenta, é porque seu dono no começo
não tinha fogo para cozinhá-la. E se, no mito bororo M292a, ela se torna maculante, é também
por falta de fogo, mas no tempo, e não no espaço, já que o fogo não tem de ser buscado alhures,
está lá, mas não assa com rapidez suficiente. Em conseqüência disso, em vez de fedor, surge
uma terrível algazarra de gritos e ruídos na mata, que faz eco ao choro do menino. As regras de
transformação que definimos para passar da Raia quileute, tornada fedorenta, para o Carpinteiro
snohomish barulhento (que, entre os Matako, é uma raia) são portanto respeitadas na íntegra, na
passagem da América do Norte para a América do Sul93. A analogia aparece ainda mais
claramente quando notamos que, nos mitos da América do Norte, a Raia e o par comutável com
ela, formado por Cobra e Rã, intervêm na conquista do fogo de cozinha ou na domesticação da
tempestade e da chuva, e essas duas funções, de dono da tempestade e da chuva e dono do fogo,
são reunidas pelos Bororo na mesma pessoa, a do herói de M1, que tem em comum com o de
M292a o fato de ser separado do pai em conseqüência de um incesto, real ou metafórico, sexual
num caso, alimentar no outro (pois que o menino esfomeado quer juntar-se a um peixe ainda cru
e que é, aliás, um símbolo uterino). E, em ambos os casos, a disjunção se faz em direção ao céu.
Note-se ainda que corresponde ao menino com o rosto coberto de brasas ardentes pelo pai, por
intermédio de uma raia não cozida, um menino de M292b que é coberto de zombarias por ter
comido um rato cozido (o que causa a transformação do pai em raia) e, em M782b, uma raia não
cozida, que por isso será coberta de água suja e transformada em peixe que cheira mal. Como já
mostramos, em Do mel às cinzas (:260-285), aqui também os insultos constituem o equivalente,
no plano lingüístico, do fedor e do barulho.
*
* *
Passemos agora para uma outra família animal, a dos ciurídeos. Há na América do Sul um
pequeno esquilo arborícola do gênero Sciurus, chamado de acutipuru ou coatipuru na bacia
amazônica e de serelepe ou caxinguelê mais ao sul. A etimologia destas duas últimas palavras
parece ser duvidosa, e a das duas primeiras, controversa. Estas reunem dois morfemas, dos quais
o primeiro designa outros pequenos quadrúpedes, como o quati. O segundo morfema é um sufixo
por meio do qual a lingua geral forma nomes de animais ou plantas que dão sorte, como o
pássaro uirapuru, do canto maravilhoso, a planta tajapuru, que favorece a pesca e os amores, ou
a árvore manacapuru, cuja raiz, tomada em infusão, embebeda, mas traz sucesso na caça. O
esquilo também goza de alta reputação, devido à sua pelagem sedosa, sua longa cauda e sua
93
Do mesmo modo que é respeitada a regra de transformação definida em OMM:321 e supra:219, de
um objeto celeste — lua ou constelação — em rocha terrestre de cor clara, por uma versão quileute que leva
à transformação Putifar por inversão do mito do carpinteiro (M724c, Reagan:81-84): responsável por uma
disjunção para longe, em vez de vítima de uma disjunção para cima, ele metamorfoseia o irmão avarento
(em vez de incestuoso) em rocha branca de calcita.
rapidez94, mas principalmente por uma outra razão: diz-se que é um dos raros animais capazes
(além do quati, por sinal) de descer das árvores mais altas com a cabeça para baixo. Um acalanto
amazônico atribui-lhe o poder de fazer as crianças dormirem; na mesma região, acreditava-se
que no momento em que a decomposição do cadáver se completa, a alma o deixa e sobe ao céu
na forma de um acutipuru (Rodrigues 1:288; Stradelli 1:362; Câmara Cascudo, vol. I:11; Ihering,
art. "serelepe").
Na parte da América do Norte estudada por este livro, o mesmo papel de psicopompo,
mas com uma coloração sinistra, cabe a um outro ciurídeo, o esquilo-voador, do gênero
Glaucomys. Esse roedor na verdade não voa, mas plana, graças à pele flexível que une suas patas
traseiras às dianteiras. Segundo os Okanagon (Cline:171), o esquilo-voador anunciava morte
próxima, crença compartilhada pelos Klikitat, como mostram mitos (M790d-e, Jacobs 1:45, 3:207)
que dizem ainda que o esquilo-voador foi antigamente um monstro canibal, e que possuem
equivalentes na região do estreito de Puget (M790f, Haeberlin 1:427-428). Mais ao norte, os
Tsimshian também o viam como um animal perigoso, que gosta de lançar pinhões do alto das
árvores e de assustar os passantes (M790h, Boas 23:205). Os Makah, de língua nootka, ao
contrário, viam no esquilo-voador um talismã de boa sorte, e por isso não o caçavam
deliberadamente mas, se acontecesse de pegarem um, consideravam-no como um presente
inesperado (Gunther 6:116).
Portanto, ora do lado da vida, ora do lado da morte, os ciurídeos de ambas as Américas
conotam igualmente o espaço que as separa. Vários mitos dos Carrier (entre os quais M749,
Jenness 2:99) falam de uma moça que morreu de rir ao ver um esquilo descendo de uma árvore.
Segundo os Hoh e os Quileute (Reagan:66-67, 80-81), uma mulher presa no topo de uma árvore foi
salva por um esquilo ou por um personagem cômico. A comicidade associada ao esquilo ou a uma
criatura que faz o papel dele decorreria do fato de ele descer de cabeça para baixo, como seu
congênere sul-americano? Uma versão quileute (M790g, Andrade:58-63) afirma isso, e inclusive
atribui a esse comportamento do animal a libertação de sua protegida. Os Coeur d'Alêne
acreditam que existe uma raça de anões sobrenaturais que sobem e descem das árvores bem
depressa, e sempre com a cabeça na frente. Eles são vermelhos e carregam os seus bebês
invertidos. Aqueles que se aproximam deles desmaiam e, quando voltam a si, percebem que
estão encostados numa árvore, de cabeça para baixo. Além desse povo de anões, existem outros
94
O coati-puru (acutipuri) tem, no entanto, um papel dos mais ambíguos, que não aprofundaremos
aqui, num grupo de mitos kaxinawá (M790a-c, Abreu:209-226), em que ele fornece um alimento mágico aos
índios famintos, reduzidos a comerem terra. Depois disso, ele seduz uma mulher e, transformado em
morcego, castra o marido dela. Os homens se juntam para atacá-lo, mas ele consegue escapar, levando a
comida que tinha trazido. Pierre Clastres informou-nos de que o quati desempenha um papel considerável
em certos ritos dos Guayaki, que parece fundar-se nas mesmas idéias em voga mais ao norte a respeito do
acutipuru. Ele sugere, aliás, que o sufixo /-puru/ poderia ser idêntico ao guarani /-mburu/ que, segundo
Cadogan (4:18-59), conotaria um estado de fervor religioso (cf. supra:493, o sufixo kalina /imo/).
que se vestem com peles de esquilo (Boas 4:127 n.1; Teit 6:180). Embora se trate de raças
distintas de anões, as referências à roupa de pele de esquilo e ao estilo de descer de cabeça para
baixo, aplicada por transposição ao modo de carregar os bebês e de tratar as vítimas humanas,
mostra bem que o pensamento indígena postula uma estreita afinidade entre os anões e os
ciurídeos.
E assim, tanto na América do Sul como na América do Norte, animais dessa família, de
gêneros distintos, são concebidos com o aspecto de seres sobrenaturais capazes de fazer as
crianças dormirem e de fazer os adultos desmaiarem, ora anunciadores de morte próxima, ora
acompanhantes da alma quando esta deixa seu invólucro mortal para dirigir-se definitivamente
para o além. Em ambos os hemisférios, essas crenças paralelas são relacionadas a um estilo de
mover-se próprio dos ciurídeos, que descem das árvores de cabeça para baixo.
O leitor terá certamente notado que os três tipos de animais cujo papel nos mitos
acabamos de examinar intervêm na medida em que cada um deles serve de suporte para uma
oposição binária. Tal oposição, ligada à anatomia, à fisiologia ou aos hábitos, depende de
fenômenos observáveis e, portanto, remete a uma dedução empírica. Era o que ocorria no caso,
visto acima (:213, 275), das formigas e das vespas, cuja cintura fina parece dividir o corpo ao
meio e permite encarregar esses insetos do papel de separadores para instituir a alternância
entre dia e noite, vida e morte; ainda mais considerando, como sugere um mito alsea (M799b,
Frachtenberg 4:141), que certos insetos parecem continuar vivos mesmo depois de cortados ao
meio.
Os galináceos, do mesmo modo, reunem de modo paradoxal dois traços opostos, a
presença de carne e a ausência de gordura. Os peixes chatos, por sua vez, parecem
anormalmente largos quando vistos de frente e anormalmente finos quando vistos de perfil. E
finalmente, à diferença de outros quadrúpedes, certos ciurídeos conseguem virar completamente
sobre si mesmos, para irem para cima ou para baixo.
Mas as crenças míticas não se atêm aos dados da observação. Sobre o resultado da
dedução empírica, isto é, o binarismo, elas aplicam uma dedução transcendental que, para além
do esquema abstrato de uma escolha entre os supremos contrários que são a vida e a morte,
dedica-se a gerar toda uma imagística, que reincorpora ao real: cabeça da franga viva de um lado
e morta do outro; gnomos sobrenaturais que explicitam as características observadas no esquilo
no plano empírico, por meio de comportamentos presumidos e análogos para com seus filhos e
seus inimigos; constelações permanentes, cujo caráter distintivo está no fato de, por estarem
sempre presentes no céu, serem invisíveis de dia, como a raia se apresentando de perfil, e
plenamente visíveis à noite, como a raia de frente.
Tocamos aqui o cerne da questão, como evidencia uma comutação que afeta o
personagem de Dona Raia, observável quando se passa dos povos da costa para os do interior.
Segundo os Yurok, os Wiyot, os Tolowa e os Hupa (M292d-f, supra:492), essa diaba, ou alguma
outra criatura equivalente, prendeu o demiurgo entre as coxas durante o coito e o levou para
além-mar. Bem, os Nez Percé contam uma história análoga (M542a-b, supra:69), em que o mesmo
papel de diaba cabe a uma Dona Borboleta. Tendo em vista as aproximações que sugerimos há
pouco entre animais presentes nos mitos das duas Américas, é digno de nota o fato de os Tukuna
do Amazonas fazerem a mesma narrativa que os Nez Percé, apenas substituindo o pênis pelo
estômago. Dizem eles (M292i, Nimuendajú 13:122-123; cf. OMM:96) que um jaguar matou e
comeu o demiurgo (mas precisamente o pai dos demiurgos, mas ele compartilha essa qualidade
com seus filhos) e, com o estômago da vítima, fez uma trombeta, e começou a tocar. Os filhos
conseguiram tirá-la das mãos dele mas, por causa de um gesto desajeitado, o estômago saiu
voando e, depois de vários acontecimentos, acabou caindo nas asas abertas de uma borboleta
azul do gênero Morpho, ao qual as tribos amazônicas atribuem poderes maléficos. O inseto
fechou as asas com o estômago do demiurgo e não quis devolvê-lo. Para libertar o orgão
aprisionado, foi preciso abrir com fogo um buraco redondo nas asas da borboleta.
Pois bem, a Borboleta se presta ao papel de operador binário tanto quanto a Raia; quando
abre as asas, é bem larga, e quando as fecha, vista de frente ou de costas, é bem estreita. E se
os Wichita assinalam a ambigüidade dos galináceos ao descreverem a galinha das pradarias em
forma humana como ambidestra (supra:486), os Kutenai dizem num mito (M791,
Chamberlain:578) que uma Borboleta em forma humana foi inicialmente considerada como sendo
uma mulher, embora pertencesse ao outro sexo.
A transformação de Dona Raia em Dona Borboleta que se vê ao passar dos Yurok para os
Nez Percé se prolonga entre os Navajo, com uma inversão de sexo. Num mito (M792a-b,
Pepper:178-183, O'Bryan:163) cujas heroínas são as moças enclausuradas que já tiveram um papel
neste livro (supra:36), elas caem nas mãos de um homem-borboleta que as rapta e as sujeita a
maus tratos. Uma versão (M792b) que retoma o tema yurok do exílio além-mar diz que esse
personagem maléfico "costumava raptar as mulheres e arrastar seus maridos para o outro lado da
água para matá-los".
Essas considerações acerca de Dona Raia e Dona (ou Senhor) Borboleta sugerem uma
outra hipótese. Ao exilar suas vítimas do outro lado do oceano, o personagem desempenha uma
função complementar à que os Salish atribuem, na série M375, às symplégades, a de impedir o
retorno de um herói exilado do outro lado da água em que se encontra a terra dos mortos.
Tratar-se-ia, pois, aqui também, de uma oposição entre os mortos e os vivos.
Pois bem, esse exílio a que as symplégades impedem de dar um fim é provocado por Dona
Raia precisamente porque ela não é symplégades, mas se fecha e depois se recusa a abrir-se. Nos
mitos sobre a guerra contra o povo celeste, que se desenrola no eixo vertical e não no horizontal
(mas mostramos, supra:444, que eles são convertíveis entre si), a Raia está em correlação e
oposição com a Cobra estrábica. Ora, num certo sentido, as symplégades não são pedras
estrábicas? Isso nos permite vislumbrar um modo de consolidar num mesmo grupo o motivo das
symplégades, que pertence à gesta do demiurgo Lua, o da Raia, integrante do combate entre
habitantes da terra e os habitantes do céu, e, finalmente, o papel de anti- symplégades que cabe
a Raia e Borboleta. Além disso, a Raia dos mitos quileute (M782a-b) emporcalhada de um lado e
deixada limpa do outro no momento de instaurar um determinado tipo de periodicidade sazonal
apresenta uma notável analogia com o instrumento pintado de preto de um lado só que os índios
do estreito de Puget faziam vibrar para chamar a chuva e o degelo, com a avó dos mitos
correspondentes e com o tentilhão dos mitos vizinhos, que tem o rosto enegrecido ou sujado, e
depois lavado.
Estamos diante da noção de operador binário, à qual parece que devemos atribuir a
incrível tenacidade demonstrada pelos índios das duas Américas ao longo dos milênios, e através
de espaços imensos, de geologia, clima, fauna e flora os mais diversos, para preservar, recuperar
ou substituir zoemas considerados indispensáveis para determinadas operações (fig. 33).
Evidentemente, é preciso que todos os mitemas, quaisquer que sejam, se prestem a operações
binárias, pois elas são inerentes aos mecanismos forjados pela natureza para permitir o exercício
da linguagem e do pensamento. Mas tudo se passa como se certos animais fossem mais
apropriados do que outros para desempenhar esse papel, seja em razão de um aspecto marcante
de sua constituição ou de seu comportamento, ou porque, por uma propensão sua também
natural, o pensamento humano apreende mais depressa e mais facilmente propriedades de um
certo tipo. O que dá no mesmo, aliás, pois nenhuma característica é marcante em si, e é a
análise perceptiva, em si combinatória e capaz de atividade lógica no nível da sensibilidade, que
por intermédio do entendimento confere significado aos fenômenos e os erige em texto. Tais
textos, que desse modo tornam-se passíveis de serem traduzidos em linguagens cada vez mais
abstratas, servem por sua vez para articular outros textos. Digamos, pois, que os operadores
binários são aqueles que, sem esperar que a dedução transcendental intervenha e se ponha a
trabalhar, já se revelam à dedução empírica como algorritmos95. Eles constituem, assim, as peças
básicas da vasta máquina combinatória que é o sistema mítico. Esse papel fundamental explica
porque os povos que penetraram nas Américas em vagas de migração sucessivas, pela costa ou
pelo interior, nas planícies ou nas montanhas, se esforçaram consciente ou inconscientemente
por não deixar que as peças mestras de seu sistema se perdessem ou se dispersassem, e trataram
95
Essa transparência da experiência sensível à análise nem sempre se manifesta, por sinal, de forma
binária. A título de exemplo, mencionaremos as aves de rapina que, na região que nos interessa, se dividem
em três categorias, conforme a espécie ou gênero considerado se alimenta de pássaros, peixes ou pequenos
quadrúpedes. O que faz com que as aves de rapina tenham, de saída, uma tripla valência, que as conecta ao
ar, à àgua ou à terra. Estes elementos, por sua vez, podem ser classificados como tríade ou ser opostos dois
a dois, no seio de um par alto/baixo, no qual o segundo termo requer uma dicotomia subsidiária, entre terra
e água.
de localizar e reconhecer, sempre que possível, espécies, gêneros ou famílias; e na falta delas,
de buscar os gêneros e famílias mais aptos a reconstituir uma relação invariante com formas
inteiramente novas de vida animal ou vegetal, uma distribuição diferente da fauna e da flora, e
com a exploração de ambas com técnicas e modos de vida que também eram diferentes.
II
O MITO ÚNICO
"Um minuto libertado da ordem do tempo recriou em nós, para ser sentido, o homem libertado da
ordem do tempo."
M. Proust, O tempo reencontrado, II
[verificar traduções disponíveis]
Em O cru e o cozido, desde a "abertura" do que viria a ser uma longa busca, anunciamos que ela
procederia por meio de progressões em rosáceas (CC:12). Ao longo destes quatro volumes,
efetivamente, percorremos e fechamos circuitos mais ou menos amplos, sempre pegando com
nosso fio mitos esparsos, para ligá-los a outros, que logo seriam, por sua vez, atrelados a grupos
que viriam a se fundir em conjuntos cada vez mais vastos, e que, ao mesmo tempo, tornavam-se
menos numerosos.
O primeiro desses circuitos, gerador de todos os demais, unia o mito bororo de origem da
água (M1) e mitos jê de origem do fogo (M7-12). Juntos, inseriram-se num ciclo mais vasto,
reunindo-se a mitos de origem da vida breve e de origem das plantas cultivadas (M87-92). Todos
esses mitos, caracterizados pelo emprego de um eixo de disjunção vertical, foram em seguida
conectados a outros, que lançam mão de dois eixos de disjunção, um horizontal e o outro vertical
(M124-125). Num último movimento de nossa agulha, pegamos com o mesmo fio os primeiros
mitos (M1, M7-12) de que tínhamos partido, e os últimos (M171-175, M178-179), com os quais se
encerrava a investigação em O cru e o cozido.
O segundo volume mantinha o mesmo procedimento, alargando-o. Por intermédio de M21-
27, M1 e M7-12 se começavam por formar grupo com novos mitos, M188-191 (MC:50). O mesmo
ocorria com M216-217 e M259-266 (MC:188-193). Em seguida, uma série de vaivéns levando
sempre de volta ao ponto de partida costuravam M7-12 e M273 (MC:215), M2 e M292 (MC:265) e,
finalmente, M1, M7-12 e M300-303 (MC:303).
Tendo mostrado, na primeira parte de A origem dos modos à mesa, que circuitos não
menos obrigatórios do que os demais — entre M130 etc. e M354, entre M354 e M365-385, entre
todos eles e M393-394 (OMM:17-91) — impunham o recurso a motivos norte-americanos, podíamos
e devíamos expandir a rosácea até que ela englobasse os mitos do hemisfério boreal. Tal
alargamento foi feito em duas etapas, primeiro por intermédio de um circuito ainda sul-
americano, maior do que os anteriores e recapitulativo, de certo modo, unindo M1, M7-12 e
M405-406, e depois por um outro, no qual era possível situar um mito sul-americano (M10) no
início e mitos norte-americanos (M428, M495a) no final (OMM:250-251, 351-352). A figura 41, à
página 386, ilustrava em forma de diagrama o duplo périplo assim realizado pela mitologia das
duas Américas.
O leitor deste volume terá constatado que, do início ao fim, esse procedimento, que
consiste em encadear na mesma série mitos provenientes das duas Américas, não apenas foi
mantido, como se acelerou. Vaivéns cada vez mais rápidos, conjugados à multiplicação de
perspectivas e à dos ângulos de análise, permitiram consolidar aquilo que, no início, poderia
parecer uma junção frouxa e precária de retalhos de formas, texturas e cores díspares. As
costuras e os cerzidos, aplicados metodicamente aos locais mais frágeis, acabaram produzindo
uma obra homogênea, cujos contornos se ajustam, em que as nuances se fundem e se
completam; peças que pareciam ser disparatadas, uma vez que encontramos os lugares que
cabem a cada uma e sua relação com as vizinhas, se apresentam como um quadro coerente. Os
mais ínfimos detalhes, por mais gratuitos, estranhos, ou até mesmo absurdo que possam ter
parecido no início, nele ganham significado e função.
Mas colocam-se, então, questões fundamentais: quais são a origem, a razão de ser, e
também, qual é a história desse quadro? Como pode ele representar algo e fazer sentido, quando
cada um dentre um sem número de pintores, a milhares de quilômetros uns dos outros, que falam
línguas e são portadores de tradições diferentes, sem combinação alguma entre eles, concebeu e
executou apenas um pedacinho mínimo dele? Graças a que misteriosa conivência esses pedaços se
completam, se correspondem ou respondem uns aos outros? E o quadro, como é, afinal? Repete
centenas de vezes a mesma imagem? Exprime uma harmonia e um equilíbrio fortuitos,
decorrentes de uma colaboração feita ao acaso mas da qual teria resultado, justamente em
virtude do número e da diversidade dos participantes, uma aparente regularidade, devida a
múltiplas diferenças que de algum modo neutralizaram umas às outras? Ou deveríamos concluir
que, no continente americano inteiro, existe apenas um mito, inspirado a uns e outros por um
desígnio secreto, tão rico nos detalhes de sua composição e na multiplicidade de suas variantes
que vários volumes não terão bastado para descrevê-lo?
Deve ser possível dar pelo menos um começo de resposta a essas perguntas. Seria um
começo, se pudéssemos mostrar que os grandes temas desse quadro, tal como tentamos decifrá-
los e compreendê-los, mas mobilizando para tanto uns oitocentos mitos — número que
praticamente dobraria se contássemos todas as variantes — se manifestam entre determinados
povos na mesma ordem e com o mesmo significado que lhes demos. Pois que nós elaboramos um
mito a partir de mitos, quando essas narrativas bem localizadas no tempo e no espaço antes
proporiam, em estado natural, o corpo cuja síntese procurávamos fazer num laboratório, a qual
podíamos somente postular que deveria corresponder, nalgum lugar, a algo real. No entanto, se
tal objeto real não passasse de um esquema inconsciente, gerador dos mesmos fenômenos em
vários lugares, a hipótese não poderia ser verificada, e as razões para adotá-la residiriam
unicamente em sua fecundidade para dar conta de incoerências aparentes, resolver contradições,
elucidar questões etnográficas e obter nesses vários campos uma solução econômica. Seria bem
diferente se, no meio do território delimitado para o qual o caminhar espontâneo da investigação
nos dirigiu imperiosamente, determinados mitos conferissem a essa hipótese uma existência
concreta. Eles nos concederiam o mesmo favor que a um astrônomo a visão, na objetiva seu
telescópio, de um corpo celeste que ele sabia existir graças a seus cálculos mas jamais tinha
visto, exatamente no lugar onde deveria estar, com a massa e o movimento exigidos para que
todas as aparentes anomalias do sistema a que pertence se confirmassem como provas da
realidade de sua existência.
Ora, na região da América do Norte sobre a qual este livro se debruça, tais mitos existem
e possibilitam fazer a demonstração. Provêm todos de grupos costeiros, distribuídos ao longo de
uma faixa estreita que vai do sul do Oregon até para além do Fraser, uma região caracterizada
tanto pelo reduzido tamanho das sociedades que ali vivem e de seus territórios quanto por uma
diversidade lingüística extrema. Além dos Salish marítimos, como os Quinault e os Tillamook, ou
simplesmente costeiros como os Cowichan, Lkungen, Lummi, Klallam, Twana, etc., ela inclui
alguns grupos atabascanos separados do grosso de sua família lingüística, e os únicos
representantes de pequenas famílias isoladas, Coos, Yakonan (atualmente ligados à família
penutiana), Chmakum... Não se sabe quase nada a respeito destes últimos grupos, cuja cultura
tradicional e o efetivo demográfico foram logo destruídos. Parece ser esse o caso dos Coos em
especial, do sul do Oregon, que chegavam a uns 1.500 indivíduos no início do século XIX.
Escolhemos começar por eles esta fase derradeira de nossa investigação porque, sendo o
elemento mais meridional da pequena amostra a que pretendemos nos restringir, viviam
aproximadamente na mesma latitude que os Klamath, a uma distância de não mais de duzentos
quilômetros destes. Como esse livro, partindo dos Klamath, foi subindo progressivamente para o
norte, mantivemos a mesma ordem para estudar um microcosmo mitológico no qual estão
condensados todos os grandes temas abordados desde o começo de nossa investigação, e de que a
região inventoriada ao longo deste livro já oferecia um modelo reduzido, mas ainda em escala
maior do que a que vai agora nos permitir extrair sua fórmula quintessenciada.
Dispomos de versões mais recentes desse mito, que se inserem numa cosmologia
(M793b,c; Jacobs 6:184-186, 188-192, 210-222). Como outros povos da costa, os Coos acreditavam
numa dinastia de cinco demiurgos enganadores, que reinaram sucessivamente sobre o mundo e
nele deixaram as marcas de seus grandes feitos. A intriga de M793c apresenta o quinto demiurgo
no papel de desaninhador e seu pai, o quarto, no de perseguidor.
Naquela época, dizem, pai e filho visitaram um povo que não tinha nem fogo de cozinha,
nem água, nem comida, porque o chefe da aldeia onde vivia o quarto demiurgo detinha esses
elementos e gêneros de primeira necessidade e se recusava a dá-los. Chamados pelo quinto
demiurgo, todos os animais se uniram e, graças a diversos estratagemas, ganharam no jogo o
fogo, que eles depositaram na madeira das árvores, a água, que se espalhou por toda parte, e
todos os alimentos. A partir de então, foi possível matar a sede e cozinhar os alimentos no fogo,
em vez de colocá-los sob as axilas dos jovens, que foram então postos a dançar até que a comida
estivesse quente.
Então, o quinto demiurgo casou-se com duas mulheres e foi viver com elas junto do pai.
Segue o episódio do desaninhador, com uma única modificação: o pai transforma seus
excrementos sanguinolentos num pequeno pica-pau do gênero Syraphicus. Perseguindo o pássaro,
a mando do pai, o herói some no céu. O velho fica com as noras e cega os netos com seu
esperma. Essa é a origem dos corrimentos purulentos que, desde então, às vezes afetam os olhos.
No céu, o herói foi hospedado por um casal de Aranhas venenosas. O marido e a mulher
tinham metade da cabeça queimada pelo calor que Dona Sol irradiava durante suas visitas
cotidianas. Todos os dias, ela parava na casa deles para comer, mas sempre ficava furiosa,
porque sempre levava a comida fora da boca, que não conseguia encontrar. Graças a seu pênis de
gelo, o herói temperou o ardor de Dona Sol. Ela retomou seu curso diário e mandou-o ir casar
com sua irmã mais nova, Lua, que tinha a vantagem, disse ela, de ficar em casa de tempos em
tempos.
As Aranhas prestativas fizeram diversas recomendações ao herói, que lhe permitiram
superar as provas impostas pelos sogros. Como na outra versão, ele retornou à terra para buscar
as mulheres e os filhos, que lhe contaram suas desgraças. A família toda subiu ao céu, exceto o
pai, que o herói renegou e condenou a virar coiote.
Deixaremos de lado alguns aspectos desses mitos, embora a contragosto. A predileção de
Dona Sol por estômagos humanos se insere num paradigma compartilhado pelos Coos, os Salish, e
principalmente os Nez Percé, que contam como Coiote decapitou ou castigou Lua, então canibal,
que se alimentava de testículos humanos (Boas 4:173-175, 186-187). Como Lua é macho nesses
mitos, eles se conectam a M793a-c por uma tripla transformação: 1) lua => sol; 2) macho =>
fêmea; 3) testículos => estômago. Não cabe aqui examinar esses mitos que, como mostramos em
nosso curso no Collège de France em 1968-1969, situam-se antes do lado da série paralela sobre a
origem do vento e do nevoeiro, a que já nos referimos (supra: 322, 329, 441). Bem, o modo como
M793c começa (supra:506) já indica que os mitos coos se situam do lado da água e do fogo. Por
outro lado, Dona Sol, que não consegue encontrar a própria boca quando come, parece sofrer de
uma certa forma de cegueira; mas o texto não diz nada nesse sentido e outras interpretações são
possíveis, tanto mais que mitos kaxinawa aos quais fomos levados há pouco (M790a-c), por uma
singular confluência, referem-se, como esses, a vários tipos de alimento que um ser sobrenatural
(nesse caso, o acutipuru), consegue, por meios mágicos, para um povo tão miserável que tem de
comer terra para sobreviver. Ora, diante de sua primeira refeição de frutas e legumes, esse povo
age exatamente como Dona Sol diante de sua refeição canibal: os convivas não encontram a boca
e acabam enfiando a comida no nariz. Se todos esses mitos fizessem parte do mesmo conjunto,
apesar da distância que os separa, a inépcia dos protagonistas talvez decorresse apenas de sua
gulodice. O mito kaxinawa que vem depois deles na coletânea de Abreu fala, aliás, de um outro
personagem sobrenatural e guloso, um sapo que devora os pratos de servir junto com a comida
que neles está (M390; OMM:64).
Seja como for, um parentesco evidente entre M793 e mitos sul-americanos se mostra na
seqüência em que um demiurgo enganador sem fundilhos não consegue se alimentar, até ter a
idéia de tapar o traseiro com uma rolha de grama. Já evocamos esse incidente (supra:303), para
mostrar que as versões da história do desaninhador provenientes dessa região setentrional da
América levavam de volta ao mito de referência M1. Pois neste, o herói enfrenta a mesma
dificuldade quando se transforma em carniça sob os lagartos putrefeitos com que cobre o corpo e
torna-se presa dos urubus, que lhe devoram o traseiro. No caso presente, a mesma condição
resulta de uma estadia no ventre de uma baleia, de que o herói sai igualmente putrefeito, tendo
perdido o invólucro carnal e ficado completamente careca. Trata-se aqui do pai, e não do filho,
do perseguidor, e não de sua vítima. Mas duas observações se impõem a esse respeito. Ao
alinharem os protagonistas em seqüência numa dinastia de cinco demiurgos, os Coos tornam-nos
mais facilmente comutáveis. Em segundo lugar, M793 se situa, como M1, na intersecção de duas
séries míticas, a do desaninhador de pássaros propriamente dita e aquela que chamamos de
transformação Putifar (supra:462). Da primeira, ela empresta a disjunção vertical do filho para o
céu e, da segunda, a disjunção horizontal na água, imposta ao pai. No caso de M1, interpretamos
essa construção especial pela dupla função etiológica que se pode atribuir a esse mito, que
explica simultaneamente a origem da água celeste, na forma de tempestades e ventanias, e, se
não a origem do fogo doméstico, pelo menos a de sua restauração. Mito de origem da culinária,
dizíamos então (CC:72-73). E não é esse também o caso de M793a-c, em que o demiurgo, levado
de volta ao estado de natureza junto de uma baleia (cuja função semântica precisaremos mais
adiante) e por isso reduzido à putrefação, reconstitui por meio de uma espantosa anamnese o
regime alimentar da humanidade, bem como as técnicas de obtenção e cozimento dos principais
alimentos? Nesse sentido, não é por acaso que tal redescoberta começa por bagas comestíveis
cruas e passe em seguida para o repolho fedido; pois essa aracéia malcheirosa, ainda próxima da
categoria do podre, é a primeira planta que floresce na primavera, antes mesmo de a neve ter
começado a derreter. Nessa época do ano, tratava-se muitas vezes do único alimento disponível
para evitar que os índios morressem de fome, e os Kathlamet contam num de seus mitos (M794,
Gunther 3:22-23) que, antes de conhecerem o salmão, os humanos quase que só comiam isso. Em
M793, a descoberta dos salmões segue a do repolho fedido, de modo que o mito respeita uma
dupla progressão natural e cultural: (bagas, cruas) ! (aracéia, assada no forno) ! (salmão,
ferventado)96.
A dupla etiologia que postulamos para M1 se apresentava, em O cru e o cozido, de forma
hipotético-dedutiva. Os mitos coos confirmam-na empiricamente. Pois M793c difere das demais
versões ao situar a reconquista da culinária antes da seqüência do desaninhador — ao passo que
M793a coloca sua redescoberta no final — e inclui nessa reconquista o fogo, a água e os
alimentos. Fazem o mesmo mitos dedicados mais especificamente à origem dos primeiros
elementos:
96
É possível que o repolho fedido e as filicópsidas [para evitar a confusão que poderia ser gerada
pela palavra 'feto', recuperada na seqüência] estejam em correlação e oposição. As receitas dos Kwakiutl
associam constantemente as folhas do primeiro e fetos secos (Boas & Hunt 2, I:passim). Uma versão
tillamook da viagem para o outro lado do oceano (M684a, Boas 14:27-30) confronta o herói a mulheres que
colhem repolhos fedidos em vez de rizomas de fetos, como nas demais versões salish; e entre os próprios
Tillamook (M800, Boas 14:136-137), quando o encontro acontece no céu. Teríamos, portanto: [(eixo
horizontal terra água) : (repolho fedido)] :: [(eixo vertical terra céu) : (rizomas de feto)] :: [primavera :
outono] (cf. supra:431; infra:515).
M795. Coos: origem do fogo e da água
97
Exceto, em pequena escala, pelos Quinault e os Quileute, à imitação dos Makah.
98
Aos exemplos já mencionados, acrescentemos o dos índios francófonos Abenki: "Um 'remédio
escaldado' é um produto vegetal fervido ou aferventado. Quando o informante delcara que "as batatas foram
plantadas cedo demais, foram escaldadas", para os biólogos, isso significa que os tubérculos, mortos pela
geada, apodreceram ou fermentaram. Para o informante, eles se comportam como tubérculos aferventados"
(Rousseau 1:148). Um ditado registrado por Seton (cap. 32) no norte do Canadá ressoa no mesmo sentido, ao
afirmar, de um modo que não poderia ser mais conforme ao que chamamos de triângulo culinário:
"Fried meat is dried meat,
Boiled meat is spoiled meat,
Roast meat is best meat."
apodrecimento no ventre da baleia no início e o cozimento por fervura do salmão no final. A que
é descrita por M796 também se situa entre dois termos afins, o assamento sobre pedras ardentes
no início e depois, o dos salmões no espeto.
Ao mesmo tempo, o sistema dos alimentos bascula entre um mito e o outro:
[p. 512]
Como antídoto à fome, a baleia é melhor do que o repolho fedido; por conseguinte, para
que o sistema esteja em equilíbrio, é preciso que o aferventado seja superior ao assado, o que
confirma uma ordem hierárquica já notada entre os Chinook, a respeito de M663 (supra:309).
Conseqüentemente, os mitos coos, que partem de um ponto mais baixo na escala culinária e
chegam mais alto, constituem versões mais fortes do que a versão alsea.
Ora, isso já podia ser deduzido do fato de a versão alsea ignorar completamente as
aventuras celestes do herói. Em lugar de seus complicados entreveros com Dona Sol, seu
casamento com Lua e as sucessivas vitórias nas provas impostas pelos sogros, M796 reduz sua
estadia celeste a pouca coisa: um encontro apenas, com os Trovões, que só querem saber de
despachá-lo de volta para a terra o mais depressa possível. Os Trovões acumulam, em suas cinco
pessoas, os papéis antitéticos que os mitos coos repartem entre animais prestativos e uma família
cósmica hostil.
Se postularmos que a versão alsea é a mais fraca de todas, ela pode servir de ponto de
partida para uma série, na qual as versões coos estão ordenadas na seqüência. Diríamos então
que M793a é mais forte do que M796 e mais fraca do que M793b, que representaria, portanto, a
mais forte das três versões. Essa ordenação decorre de três tipos de considerações.
Em primeiro lugar, entre os animais prestativos, as garças, aves barulhentas ligadas à
água, estão mais próximas dos trovões do que das aranhas de cabeça queimada, estas vítimas de
um fogo de origem solar, o que as coloca mais em oposição do que em correlação com a
tempestade.
A família cósmica de M793a também é mais fraca do que a de M793b: Dona Sol, o termo
mais marcado do sistema, não faz parte dela, e só o sogro o persegue. Em M793b, ao contrário,
Dona Sol e Dona Lua são irmãs e a mãe delas hostiliza o herói, bem como sua filha mais velha, de
que é um dublê no interior da célula familiar.
Finalmente, M793a enfatiza sobretudo a origem da menstruação, instigada por Dona Lua,
ou seja, uma forma relativamente curta de periodicidade biológica. M793b, em compensação,
nada diz acerca desse tema, e concentra toda a sua atenção na moderação do calor solar, isto é,
numa periodicidade de nível astronômico (ver o quadro na página seguinte).
COOS ALSEA
M793b: M793a: M796:
Sol e Lua irmãs;
sogros hostis
Sol, não-irmão de duas Luas;
só o sogro hostil
Trovões, prestativos
Aves aquáticas, prestativas
Aranhas venenosas de cabeça
queimada, prestativas
Periodicidade astronômica Periodicidade biológica Periodicidade meteorológica
(menstruação)
[p. 514]
Fica claro que, também entre os Coos, o aspecto macho está ligado à periodicidade
astronômica, já que o herói a institui ao violentar Dona Sol, e o aspecto fêmea, à periodicidade
biológica, concebida na forma da menstruação feminina, presidida por Dona Lua. Mas, e o
travesti?
*
* *
Os Coos, os Alsea e seus vizinhos, Tillamook e Takelma, possuem um mito — que aliás
está ligado a outros, estudados em A origem dos modos à mesa (M482-486) por um caminho que
não iremos explorar — no qual o travesti desempenha um papel importante. As versões coos
(M798a,b,c; Frachtenberg 1:149-157; Saint-Clair:32-34; Jacobs 6:235-238) contam que um
carpinteiro fabricante de canoas certo dia foi decapitado por um desconhecido. O corpo foi
encontrado por seu irmão mais novo, que descobriu de onde viera a agressão (porque o cão da
vítima latia olhando para o céu). Ele atirou várias flechas uma depois da outra, que foram
formando uma escada, pela qual ele subiu até o céu. Lá em cima, encontrou a mulher do
assassino coletando rizomas de feto e submeteu-a a um interrogatório minucioso, para saber sua
rotina e seus hábitos. Depois disso matou-a, esfolou-a, vestiu-lhe a pele e se fez passar por ela.
Apesar das informações fornecidas pela vítima, ele quase se traiu várias vezes, notadamente
quando deu rizomas a um velho casal que a mulher sempre deixava de fora da distribuição (cf.
M656a, supra:296). Quando anoiteceu, ele decapitou o assassino, pegou a cabeça do irmão e
fugiu. Não conseguiram ir atrás dele, porque ele tinha furado todas as canoas, e ele desceu de
volta à terra pela escada de flechas. Quando chegou à aldeia, todos os moradores se reuniram,
puseram o cadáver do carpinteiro de pé, apoiado num pinheirinho e colaram a cabeça no lugar. O
homem ressuscitou. O povo celeste não podia descer à terra para se vingar. As pessoas de baixo
viraram pica-paus, que têm a cabeça vermelha por causa do sangue que escorreu do pescoço
cortado.
A versão mais recente atribui ao carpinteiro quatro irmãos e dois filhos, e são estes
últimos que ela encarrega de ir recuperar a cabeça cortada. Todas essas sete pessoas são
pequenas aves de rapina qu, como explica uma das versões, da qual falaremos, em seguida,
matam as outras aves cortando-lhes o pescoço. Como são dois, os irmãos têm de encontrar no céu
duas mulheres, com quem resolvem se casar e cujas roupas vestem. Para a travessia do rio que os
separa da aldeia dos assassinos, essa versão faz intervir um passador, papel que a gesta alsea do
transformador Seúku (supra:510) confia à raia ou a algum outro peixe chato /hul"' hul"/, mas
sempre para recuperar uma cabeça cortada (Frachtenberg 4:71-73). Quando os irmãos descem de
volta à terra, percebem que a cabeça do pai, que tinha sido pendurada pelo povo celeste acima
de uma fogueira, para defumá-la, estava inutilizável. No lugar dela, colam a cabeça do assassino,
que era menor. É por essa razão que as aves de rapina têm uma cabeça bem pequena.
Na articulação entre M798a,b, que se referem à origem dos pica-paus, e M798c, que os
substitui por pequenas aves de rapina, estão as versões alsea (M799a,b; Frachtenberg 4:125-149).
De modo mais lógico, elas atribuem aos celestes cortadores de cabeça a segunda identidade e,
aos terrenos, a primeira (pica-pau de pescoço branco numa das versões, por causa da argila
branca que serviu de cola). Mas, ao contrário do que ocorre no conjunto coos-alsea M793 e M796,
aqui é a versão alsea que é a mais forte; ela atribui ao canoeiro uma esposa-cão que lhe dera dois
filhos de forma humana, cujas aventuras no céu são bastante complexas. Eles encontram um
primeiro grupo de informantes e os transformam em moscas (daquelas que continuam se
mexendo depois de serem cortadas, cf. supra:498) e, depois, as esposas do assassino, coletoras
de rizomas de feto que são mulheres-cobra (cf. supra:432). Matam-nas e vestem suas peles; é por
isso que desde então as cobras trocam de pele. Como todos os habitantes, e não apenas o casal
de velhos, recusam os fetos oferecidos pelos heróis disfarçados, eles os transformam em pulgas
(M799a). Ainda segundo M799a, foram os dois heróis que transformaram o pai em pica-pau, e eles
próprios viraram cães.
Uma outra versão provém dos Tillamook, grupo salish isolado do grosso dessa família
lingüística, instalado na costa, na vizinhança imediata dos Alsea (M800; Boas 14:136-138). Como
na segunda versão alsea, só um dos filhos do herói tem como mãe uma cadela e tem uma
aparência física meio-cão meio-humano. O pai é, aqui também, caçador. Interrogadas pelos dois
irmãos, as mulheres que eles encontram no céu lhes dizem que nunca dão rizomas de feto a
grandes larvas (grubs em inglês) que moram numa das casas da aldeia. Os heróis matam as
mulheres mas não vestem suas peles, apenas suas roupas. Mas eles cometem vários deslizes e "um
homem chamado Qä'tcla", a cuja identidade voltaremos (infra:519) suspeita de sua impostura e
quase os delata. No caminho de volta, os heróis ressuscitam suas duas vítimas e se casam com
elas. Prendem a cabeça do pai com ataduras de entrecasca, mas ela permanece vermelha, devido
ao sangue derramado, e o homem se transforma em pica-pau.
Os Takelma, que vivem no interior, têm um mito (M801; Sapir 5:155-163) que pode ser
reunido aos precedentes por intermédio de várias transformações:
99
Inclusive com um eco significativo, entre os Coos, do esquema ouvir/não ouvir ou ver/não ver que
os mitos das duas Américas utilizam para evocar esse motivo. "Vou fazer ressoar o ar dez vezes seguidas —
diz aos ancestrais o demiurgo enganador — e, durante esse tempo, vocês devem ficar de olhos fechados, se
não serão privados de saber e de sabedoria." Os povos são desiguais quanto a isso porque uns abriram os
olhos antes dos outros durante as badaladas do demiurgo (Jacobs 6:225-226).
no outro, uma das versões coos (M798c) e a versão tillamook afirmam que os heróis trouxeram
para a terra as mulheres com quem tinham se casado no céu.
*
* *