História Oral, Desigualdades e Diferenças
História Oral, Desigualdades e Diferenças
História Oral, Desigualdades e Diferenças
Organizao
REcife | 2012
ASSOCIAO BRASILEIRA
DAS EDITORAS UNIVERSITRIAS
FICHA CATALOGRFICA
SUMRIO
APRESENTAO........................................................................... 7
PARTE I - FONTES ORAIS E O OFCIO DO HISTORIADOR
1. Historiografia, diversidade e histria oral: questes metodolgicas ......... 15
Regina Beatriz Guimares Neto
2. Travessias e desafos.................................................................................. 38
Antonio Torres Montenegro
3. Subjetividade e histria oral: possveis interaes na autorizao
de cesso de uso de relatos............................................................................. 55
Marcos Fbio Freire Montysuma
4. Memria e politizao em testemunhos de operrios militantes
argentinos (1955-1976).................................................................................. 69
Pablo Alejandro Pozzi
APRESENTAO
acabam, ainda que paradoxalmente, por hegemonizar sentidos hierarquizadores combatidos pela prtica historiogrfica. Ao tomar esse
caminho, assume-se o desafio de pensar historicamente as formas
ambguas e contraditrias de representao do real, assim como as
faces mltiplas de traduo sociocultural das diferenas e dos conflitos vividos, especialmente aqueles situados em espaos entre fronteiras culturais e nacionais. Em torno dessas preocupaes, o livro
articula discusses temticas atentas a essas perspectivas e abordagens multidisciplinares e a outras experimentaes metodolgicas
da prxis da histria oral.
No primeiro ncleo de textos, Fontes orais e o ofcio do historiador, so discutidos desafios na produo e interpretao de fontes
orais, a partir de trajetrias de pesquisa e de reflexes sobre o ofcio
do historiador. Em seu artigo, Regina Guimares Neto (UFPE) discute terica e metodologicamente a relao entre a prtica da histria
oral, a escrita da histria e a questo da diversidade. A autora sugere
a observncia de alguns elementos durante a experincia cartogrfica
de prticas com a histria oral e a constituio do corpus documental,
assim como reflete teoricamente sobre a prtica da escrita baseada em
relatos orais. Antonio Torres Montenegro (UFPE) discute os desafios
que a opo por trabalhar com relatos orais significaram/significam
ao longo de sua prpria trajetria como historiador e a forma como
eles foram sendo enfrentados, diante dos deslocamentos causados por
uma perspectiva histrica no mais centrada no sujeito, na causalidade
e no real. Tambm a partir de seu prprio percurso de historiador,
Marcos Fbio Freire Montysuma (UFSC) procura discutir intermediaes entre pesquisa histrica baseada em histria oral e subjetividades.
Caractersticas particulares de testemunhos de integrantes da classe
operria argentina so apontadas e discutidas pelo historiador Pablo
Alejandro Pozzi (UBA). Ao levar em conta imagens, nfases e o modo
pelo qual os entrevistados estruturam suas explicaes, o autor aponta
como essas fontes orais so significativamente distintas das de sujeitos
8 provenientes de outras camadas sociais.
lugar de destino. O texto de Frotscher se preocupa em apontar caminhos metodolgicos trilhados em duas pesquisas sobre migraes
internacionais contemporneas, nas quais fontes orais e fotografias
so utilizadas. A autora discute como o entrelaamento de ambos
os tipos de fontes durante o trabalho de campo e de interpretao
desses movimentos populacionais permite aprofundar a anlise de
processos de traduo cultural ou mesmo de produo do outro
em estudos migratrios.
Por tlimo, o ncleo temtico Histria oral, ensino e diferena percorre as possibilidades e experincias da histria oral em
projetos desenvolvidos na escola e a partir dela que levam em conta
a diferena, discusso conduzida pelas historiadoras Geni Rosa
Duarte (UNIOESTE) e Bibiana Andrea Pivetta (Instituto Rosario
de Investigaciones en Ciencias de la Educacin, Argentina). O texto
de Duarte reflete sobre as relaes entre o conhecimento histrico
e seu ensino e avalia o papel que a histria oral pode exercer na discusso sobre didtica da histria. A autora pleiteia a incorporao da memria no ensino de Histria, entendendo a histria oral
como meio para apreender a heterogeneidade de experincias e os
conflitos vivenciados nas relaes sociais. Pivetta discute a aplicao da metodologia da histria oral como ferramenta didtica em
contextos complexos, a partir de sua experincia com a capacitao
de educadores de escolas bilngues e interculturais de populaes
indgenas na provncia de Santa F, Argentina, com o objetivo de
elaborar materiais didticos.
11
TE
PAR
PARTE I
FONTES ORAIS E O OFCIO DO HISTORIADOR
Traando caminhos diversificados, a histria oral que no
uma disciplina, mas uma metodologia ou prtica de pesquisa
afirma-se no cenrio intelectual do Brasil, da Amrica Latina e de
outras partes do mundo. No sem controvrsias, desafia novas questes tericas e metodolgicas que so fundamentais para as anlises
acerca da produo e dos usos dos documentos e no apenas orais
no mbito da historiografia.
Enaltecida ou hostilizada, a histria oral, com muita frequncia,
vista como uma chave para o tratamento de temas contemporneos
ou da chamada histria do tempo presente e mesmo relacionada a
outras temporalidades, destacando-se os textos que se referem s tradies orais. Em todo caso, desconstruindo a ideia de chave, aborda
temas relativos ao presente dos pesquisadores (e da sua articulao
com vrias reas do conhecimento). Ainda assim, no mesmo passo,
acusada de falta de consistncia terica em face dos impasses entre
oralidade e escritura, alm de outras impropriedades apontadas,
lanando-se a ideia da sua impossibilidade. No pretendo entrar no
1 Agradeo as leituras crticas e as contribuies generosas a este texto dos estudantes de doutorado do Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal de Pernambuco; a Leny C.
Anzai, a Marcos Montysuma e a Antnio Montenegro.
15
Penso que esse modo de proceder nos ensina muita coisa, a mais
importante delas encontrar os problemas que so formulados por
um autor, uma obra e, por que no, um campo terico ou uma prtica metodolgica que instauram a sua maquinaria prpria no nvel
da produo. Ora, a histria que lida com relatos orais deve procurar
ampliar os aportes tericos que do amparo s discusses e sistematizaes dos procedimentos de anlise prprios ao seu uso e s suas
peculiaridades como fonte documental, sem, no entanto, submergir
em infindveis consideraes tericas. Porm, diante dos desafios
e impasses, a pergunta insistentemente retorna: quais os problemas
formulados no campo dessa prtica metodolgica que mais se tornam recorrentes? Ou como podemos pensar sobre a especificidade
de uma prtica que privilegia relatos orais apreendidos como uma
arte de dizer/arte de fazer (CERTEAU, 2000, p. 152) e os inscreve
em textos escritos?
Diante disso, torna-se importante pontuar algumas questes.
Primeiramente, importante dizer que no se trata de fazer histria
oral em oposio ao domnio escriturstico moderno; isto , no
se trata de contrapor escritura versus oralidade, mas sim de refletir
16
acerca de um tipo especial de fonte, sem entender por fonte o registro
18
2 Sobre a questo da subjetividade, ver o instigante texto de Benito Bisso Schmidt, no Captulo 5 deste livro, Do que falamos quando empregamos o termo subjetividade na prtica
da histria oral?. Nele, o autor desenvolve uma importante reflexo sobre as relaes entre
histria oral, memria e subjetividades, atentando, sobretudo, para o uso conceitual do
termo subjetividade e suas implicaes polticas e culturais, isto , para a crtica da produo
do sujeito na sociedade moderna.
anlises com base nas suas condies de produo, meios de circulao e apropriaes diversas, interesses que envolvem tanto o entrevistador quanto o entrevistado (MONTENEGRO, 2010); suportes
materiais de inscries e transcries e outras tcnicas (ALBERTI,
2004). Insistirei muito mais, em face da complexidade apontada,
sobre as prticas de pesquisa e de escrita da histria.
De qualquer maneira, sem propugnar pela validade dos modelos e respostas acabadas, gostaria que pensssemos a histria e sua
relao com as fontes documentais (especialmente relevando o seu
estatuto discursivo e suas condies de produo), em particular,
os relatos de memria oral, como uma instigante tarefa que adentra
universos desconhecidos, de modo algum engessada em questionrios, modelos de anlise e regras estabelecidas a priori, os quais
impedem, a meu ver, o exerccio do pensamento.
Com efeito, caberia afastarmo-nos de controvrsias vazias e
estarmos atentos aos pressupostos tericos e metodolgicos relativos ao modus operandi da historiografia. Estes nos orientam a operar com quaisquer fontes histricas, sejam escritas, orais, visuais,
entre outras, observando as suas especificidades. Alis, o documento
escrito deixa de ser a referncia dominante que justifica o discurso
historiogrfico, abrindo espao a uma enorme diversidade de fontes
e testemunhos, convocados a fazerem parte de prticas autorizadas.
Essa variedade documental passa, portanto, a receber, cada vez mais,
a ateno redobrada dos historiadores, que procuram legitim-la
segundo as regras estabelecidas no campo da disciplina da histria
(CERTEAU, 1982; CHARTIER, 2007).
Porm, necessrio chamar a ateno, no mbito dos debates
metodolgicos mais atuais, para o fato de que no basta conferir
importncia e significado s fontes documentais (seu estatuto de
verdade e a sua funo de prova) ligadas aos objetos de investigao.
Deter-se em seu estudo implica perceber o que as relaciona s suas
condies de possibilidade, sem apagar o seu estatuto discursivo:
sejam sociais (onde se produziu e para quem se produziu), sejam tc- 19
20
3 Atentar para as questes que so levantadas por diversos historiadores, em especial conferir os
textos de Alberti (2004, 2008); Albuquerque Jnior (2007); Ferreira (2008); Heymann (2007);
Laverdi (2010); Montenegro (2010); Karnal e Tatsch (2009); Rezende (2010); Sarlo (2007).
4 Exemplares so as experincias de pesquisa que se desenvolvem no Brasil em diversos
campos temticos, como aqueles direcionados s questes do trabalho, memria e poltica (FROTSCHER; LAVERDI, 2009; GOMES, 2007; GUIMARES NETO, 2006a, 2006b];
JOANONI NETO, 2009); memria, relaes de gnero e histria oral (PEDRO; WOLFF,
2010; PEDRO; PEREIRA; JOFFILY, 2009); ensino da histria (FERREIRA; FRANCO,
2008), para citar apenas alguns trabalhos.
com a histria ao rs do tempo, mvel, liquefeito, que a relevncia dada aos mais variados tipos de fontes orais, visuais, escritas
, em suas especificidades histricas, vem ganhando legitimidade.
Essas fontes, compreendidas como documentos, recebem hoje tratamentos inovadores, atualizados segundo normas amplamente discutidas no campo da produo historiogrfica. No caso das fontes orais
e imagens visuais, no se tem mais a ingenuidade de consider-las
testemunhos do real, elos com a realidade, captura do real, ou
at mesmo levantar questes, tais como, reviver o passado e dar
voz aos silenciados, entre tantas afirmaes do mesmo tipo. Mas,
de maneira enftica, a orientao outra, procura-se ampliar os aportes tericos que do amparo s discusses e sistematizaes dos procedimentos de anlise prprios ao seu uso e complexidade;5 valoriza-se
o
movimento ou ao dos que professam a arte de pensar acerca das
palavras, dos testemunhos,6 e segundo certos autores, observando
rastros e vestgios no tempo. Os rastros no so evidentes, como
apontam as reflexes metodolgicas de Carlo Ginzburg (2007), que
observa a opacidade do mundo, e tambm de Marc Bloch (2001), no
seu livro pstumo, em que ressalta os testemunhos involuntrios. E,
nesse aspecto, sobressaindo o historiador leitor de hierglifos, deve5 Ver entre outras contribuies: Alberti (2004; 2008); Harres (2009); Janotti (2005); Luca
(2005); Mauad (2008); Montenegro (2010); Necochea (2005).
6 Ver Delgado et al. (2009); Janotti (2010); Necoechea (2005); Sarlo (2007).
21
7 Torna-se importante observar, para no cair no plano das simplificaes reducionistas, que
a noo de acontecimento, a qual atravessa todo o seu livro Como se escreve histria (1983),
para Veyne bastante precisa e sustenta sua tese sobre o significado da histria e sua escrita.
31
Para a escrita da histria, seguindo essas reflexes, a dimenso potica do discurso no deve ser vista como obstculo ao rigor
metodolgico que se exige da disciplina ou como aquilo que se contrape s regras da escrita da histria. Chartier (2007) tambm se
manifesta na mesma direo. Sobretudo, quando afirma, na trilha
aberta por P. Ricoeur (2007), que no apenas os documentos permitem dar autenticidade ao texto historiogrfico convocando R.
Barthes a este debate, para quem padecemos do ato compulsivo de
autenticar o passado , mas que a narrativa deve tambm produzir
inteligibilidade no dar a ver e a contar na configurao da arquitetura textual, criando vida no territrio dos mortos. E, de maneira
bastante enftica, coloca a escrita tanto quanto os documentos no
centro da operao historiogrfica:
Fundar a disciplina em sua dimenso de conhecimento, e de
um conhecimento que diferente daquele fornecido pelas
obras de fico, de uma certa maneira seguir ao longo da
falsia. Os historiadores perderam muito de sua ingenuidade e de suas iluses. Agora sabem que o respeito s regras
e s operaes prprias sua disciplina uma condio
necessria, mas no suficiente, para estabelecer a histria
como um saber especfico. Talvez seja seguindo o percurso
que leva do arquivo ao texto, do texto escritura, e da escritura ao conhecimento, que eles podero aceitar o desafio
que lhes hoje lanado. (CHARTIER, 2002, p. 17).
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37
2.Travessias e desafios
Antonio Torres Montenegro
O tema desse artigo contempla de maneira fundamental algumas
questes metodolgicas suscitadas tanto pela documentao como
pela leitura de autores diversos no campo da historiografia, da metodologia e da filosofia, entre outros.
Escrito inicialmente para a mesa-redonda Perspectivas terico-metodolgicas da histria oral no V Encontro Regional Sul de
Histria Oral Desigualdades e Diferenas , ao adapt-lo para
publicao, operei alguns deslocamentos analticos bem como diversos acrscimos e reformulaes.
Ao concluir a escrita desse texto, percebi que os percursos trilhados se apresentavam como travessias interminveis, quase uma
ego-histria, pois procurei pontuar questes, dilemas e desafios que
o trabalho com a documentao, de maneira geral as fontes orais de
memria, me foram possibilitando formular medida que avanava
na pesquisa e escrita da histria ao longo dessas ltimas dcadas.
Quando fui aceito para meu doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 1985, tinha como proposta geral
entrevistar pessoas das camadas trabalhadoras que nos habituamos
a denominar de popular, para ouvir delas o que construam e representavam como passado histrico. Partia ento da vaga suposio de
que muitas, ou a grande maioria, por no terem frequentado os ban38 cos escolares, no havia aprendido a histria oficial. Dessa forma, o
que representariam como passado histrico? As suas vivncias cotidianas na famlia, no trabalho, nos sindicatos, nas associaes recreativas e culturais, entre outros. Era ento necessrio entrevist-las
para conhecer essa histria.
Fui em busca de projetos de histria que utilizassem entrevistas
com trabalhadores como tcnica para produo de uma fonte que
pudesse servir de base pesquisa e escrita da histria. Nessa busca,
algum me recomendou um projeto desenvolvido no Centro de Histria Oral da Universidade de Indiana, dirigido pelo professor John
Bodnar, que no incio dos anos 1980 havia entrevistado quase uma
centena de operrios e funcionrios de diversos escales da fbrica
de carros Studebaker, a qual encerrara suas atividades na primeira
metade da dcada de 1960.
A minha reduzida bagagem de experincia de pesquisa tinha
sido at ento jornais, anais parlamentares, panfletos e tambm um
pouco de literatura do sculo XIX. Fora com essa documentao
que havia escrito minha dissertao de mestrado, acerca dos vinte
anos finais da escravido no Brasil. Recordo ainda o grande dilema
que foi a escrita da histria na dissertao, sobretudo porque pensava e defendia a necessidade de romper com uma narrativa centrada na cronologia. Estava e estou inteiramente convencido que
o relato histrico fundado na cronologia, e, portanto, prisioneiro
da causalidade, significa estar inteiramente submetido lgica e
ao domnio dos signos que a documentao apresenta. Difcil era
lidar com a permanncia dessa escrita linear, ou talvez, em que as
marcas de uma lgica histrica centrada em causas e consequncias
ainda tinham preponderncia sobre minhas novas leituras e quase
aprendizagens tericas e metodolgicas. S depois de defendida a
dissertao, aliviado do fantasma dos prazos e presses da banca e
do orientador, pude ento construir uma questo em torno do tema
da dissertao escravido/abolio, ou seja, indagar sobre quais os
meios que as sociedades utilizam para inventar e desinventar o tema
da escravido. Nos livros que ento escrevi, o paradidtico Reinven- 39
ou esboar um relatrio com um maior nvel de reflexo historiogrfica, apenas com o que ouvia. Definitivamente, no concordava
com a afirmao, que lera em algum livro ou manual de histria oral,
de que uma fita transcrita se transforma em um documento igual
a qualquer outro documento escrito. E, nessa hora, vinham lembrana os jornais ou os debates parlamentares em que pesquisara
para a dissertao e que me permitiam minimamente esboar um
relato historiogrfico. No entanto, aqueles relatos de memrias, to
preciosos, pareciam luzes que se acendem e se apagam. No era possvel ir adiante apenas com eles. Para poder escrever sobre aqueles suicdios era necessrio, por exemplo, conhecer a legislao trabalhista
dos EUA e do estado de Indiana, assim como a poltica trabalhista
da empresa; tambm pesquisar nos jornais e visitar o sindicato para
verificar se dispunha de arquivos sobre aquele tema. Por outro lado,
os relatos de memria me diziam de uma experincia de trabalho e
de vida numa empresa de carros, que normalmente a documentao
escrita no oferece. Os prprios arquivos das empresas, os arquivos
sindicais, os jornais, a legislao, entre outros, no contemplam esse
tipo de relato, em que a histria vivida no cotidiano em suas mltiplas dimenses apresentada sob os mais diversos enfoques.
Encerrado aquele estgio, meu relatrio se constituiu fundamentalmente numa dupla aprendizagem. Estava diante de uma fonte que
me oferecia outra perspectiva historiogrfica, ou seja, movimentos,
lutas, reflexes, sentimentos, relaes de poder e de trampolinagem
(como aprenderia mais tarde com Certeau) que as demais fontes
no costumam oferecer. No entanto, e ao mesmo tempo, no poderia prescindir das outras fontes, pois de certa forma elas possibilitariam construir um campo projetado em uma rede mais ampla, com
informaes imprescindveis para situar os mltiplos vividos que as
memrias relatavam.
Retornando ao Brasil vou, ento, em busca de homens e mulheres dos bairros pobres de Recife para realizar as entrevistas. E aqui
me deparo de sada com a forte crtica de que os intelectuais 41
duo daquela entrevista. Tambm outra aprendizagem foi descobrir que o Departamento de Memria da Federao de Moradores,
que recebia candidatos para entrevistas a conta-gotas, pois muitos
tinham receio de vir relatar suas histrias de vida, de um momento
para outro, passou a ter filas de candidatos na antessala de sua sede.
Minha alegre surpresa em breve se desvaneceu, pois um morador
acabou por me explicar o que se passava: Professor o seguinte, j
se espalhou no bairro que s vir aqui e contar umas besteiras e o
senhor paga dez reais. Pronto, estava desnuda outra vez a relao
de classe, de poder, e as brechas e piruetas que o povo cria para driblar pessoas, instituies, relaes to diferentes das do seu universo
cotidiano. Afinal, havia pensado desde o incio desse projeto, para o
qual tnhamos obtido recursos do governo estadual, que fora depositado na conta da Federao de Moradores e era por ela gerido, que
se eu tinha minhas horas de pesquisa pagas por uma bolsa, por que
no pagar tambm as horas em que aquelas pessoas eram retiradas
dos seus afazeres para falar de suas vidas. Passada a ingnua decepo, as dezenas de entrevistas at ento realizadas ajudaram-me a
compreender que nem todas as pessoas so capazes de transformar
suas lembranas em narrativa. Algumas apresentavam narrativas
sem concluir uma ideia, misturando e associando vrios temas quase
de forma simultnea, outros ainda, talvez movidos por um grande
receio de se comprometer ou dizer alguma coisa indevida quele
professor, transformavam seu relato em grandes e homricas apologias do seu passado. Talvez ainda devido minha pouca experincia,
no era capaz de interagir e mudar esse tipo de relao entrevistador/
entrevistado quando ela se apresentava. No entanto, mais tarde, num
outro projeto com professores aposentados da Faculdade de Engenharia da UFPE, encontrei professores que tambm no concluam
suas ideias, saltando, a cada momento, de um tema a outro, transformando seu relato de memria em um labirinto, sem o fio de Ariadne.
Havia ainda aqueles moradores e moradoras de Casa Amarela
que, ao comear a lembrar sua infncia e mesmo seu passado, eram 43
como um momento da minha caminhada. E talvez isso tenha incomodamente me tranquilizado, pois afinal aprendi a duras penas a
pensar o conhecimento e por extenso a produo do conhecimento
historiogrfico como movimento, inconcluso, e no como o estabelecimento de verdades acabadas e definitivas.
No podia deixar de me preocupar com os crticos que afirmavam, numa direo inteiramente oposta, no se poder confiar
na memria, pois a cada momento as pessoas narram as mesmas
lembranas de forma inteiramente diversa. Nesse perodo, a difcil
leitura de Henri Bergson foi muito proveitosa e ajudou a pensar,
por meio do seu famoso cone, uma resposta a esses crticos. Afinal, segundo Bergson, jamais retornamos memria original. Toda
memria seria sempre memria da memria, haja vista que ela se
interliga de maneira inseparvel s impresses apreendidas pela percepo a qual nos mantm em contato permanente com o mundo
ao nosso redor. E esta, em seu devir infindvel, estaria permanentemente apresentando novos acontecimentos, novas situaes, novas
experincias e, por extenso, outras formas de analisar e refletir
acerca do que nomeamos por real. Para expressar graficamente a
inseparvel relao entre a memria e a percepo, esse autor se utiliza de uma figura geomtrica em forma de cone. A base do cone
representaria a memria, enquanto as retas que se estendem da base
ao vrtice representariam a percepo. Dessa forma, a memria e a
percepo so indissociveis e no seria possvel a percepo pura,
nem tampouco a memria pura. Em todo ato de percepo estariam
presentes as marcas da memria, porm tambm todo relembrar
carrega as marcas, os signos, os sinais do presente, apreendidos pela
percepo em permanente contato com o mundo exterior. Por essa
razo o relembrar estaria marcado pelas impresses e experincias
do presente. Afinal, o vrtice do cone considerado o ponto de contato da percepo com o mundo exterior, sinnimo de constante
movimento e mudana. O lan vital pensado por Bergson, que, de
46 certa forma, o torna um autor sobre o qual Gilles Deleuze ir dedi-
Esse princpio seria uma das razes dessa luta ensandecida pelo
domnio da historia, pelo domnio da memria, pelo controle do que
o real, os acontecimentos, o passado e, por extenso, o presente e o
futuro e de como signific-los.
Essa opo metodolgica tambm nomeada construtivista
levou-me a ser acusado de ceticismo histrico, de solipsismo e ainda
de transformar o real em jogos de linguagem. No entanto, outros trs
autores ajudaram a, pelo menos provisoriamente, seguir essa trilha,
aqui brevemente delineada. Por um lado, o psicanalista Garcia-Roza
(1991, p. 31), quando em seu livro Introduo metapsicologia freudiana afirma que em nosso primeiro ano de vida:
48 A percepo no oferece objetos com os quais a palavra vai se articular
para obter seu significado. A percepo pura e simplesmente no
50
10 A anlise detalhada dessas duas reportagens foi publicada na Coleo Brasil Republicano
3, O tempo da experincia democrtica: da democratizao de 1945 ao golpe civil-militar de
1964 (FERREIRA; DELGADO, 2003).
As duas reportagens, muito bem construdas, articulavam informaes estatsticas, depoimentos diversos, fotografias, mapas, o que
lhes dava o poder de produzir um enorme efeito de verdade, embora
inteiramente oposto.
A primeira srie foi escrita por Antonio Callado para o jornal do
Rio de Janeiro Dirio da Manh e alcanou grande repercusso na
opinio pblica, reproduzida em diversos jornais, nas Assembleias
Legislativas de vrios estados e tambm na Cmara Federal. Alm de
denncias sobre como os latifundirios transformam a seca em um
grande negcio, por meio desses textos que se institucionaliza a
expresso indstria da seca. Poder-se-ia dizer que o debate promovido por Antonio Callado em suas reportagens, escritas aps viagem
pelo Nordeste, polariza de Norte a Sul do pas os setores que defendem o status quo versus aqueles segmentos que defendem reformas
sociais, polticas e econmicas. Naquelas dcadas, como bastante
conhecido por meio da literatura do perodo, essas duas foras eram
nomeadas respectivamente de direita e esquerda. Callado encerra
sua srie de reportagens narrando a experincia das Ligas Camponesas e a atuao de Francisco Julio, que, como advogado e deputado,
vem ajudando a fundar novas Ligas nos estados do Nordeste e de
outras regies. Para o jornalista, esse movimento poder se tornar
um ponto de partida para que o trabalhador rural do Nordeste deixe
a condio de escravo: O Nordeste tem um grande, imenso caso de
polcia, que exatamente seu tratamento do lavrador, l ainda muito
mais escravo do que homem livre (CALLADO, 1960, p.5 7-58).
Numa direo inteiramente contrria reportagem de Antonio
Callado encontra-se o texto escrito pelo jornalista Tad Szulc para
o New York Times, em outubro de 1960. Enviado a Pernambuco,
ele produz uma longa reportagem que, diferentemente de Callado,
aponta esse estado e o Nordeste como se constituindo em um grande
perigo para o Brasil, para os EUA e para o continente. Isso porque
seus trabalhadores rurais liderados pelas Ligas Camponesas defendem a reforma agrria na lei ou na marra, podendo a qualquer 51
momento ter incio um levante comunista que facilmente se alastraria por todo o pas. E a situao ainda se torna mais grave em face
da disposio do governo, entenda-se a prefeitura e o estado possurem diversos postos-chaves ocupados por comunistas. O prefeito
era do Partido Socialista, e o governador, embora um usineiro, para
conseguir se eleger, teve que ceder muitos cargos aos comunistas em
secretarias e rgos pblicos.
De que forma ler essas duas reportagens, que, mesmo tratando
de um nico tema, acerca de uma mesma regio, no mesmo perodo
de tempo, instituam realidades paradoxalmente diversas? Em primeiro plano, poder-se-ia dizer que elas produzem duas realidades
marcadas de significados inteiramente distintos. E, portanto, produzem distintos efeitos de verdade. No entanto, a verdade dessas reportagens no seria mais analisada por mim a partir de referenciais
externos ao discurso que enuncia e que o valida, mas da perspectiva
da rede social, poltica e cultural em que produzido.
Por outro lado, embora no tenha sido alvo de minha pesquisa
um estudo da recepo dessas reportagens, percebe-se, pelo livro
publicado posteriormente, que essa srie de reportagens foi amplamente divulgada. Nele consta a reproduo dos inmeros jornais
que republicaram os textos de Callado, assim como os incontveis
discursos a favor e contra nas inmeras Assembleias Legislativas dos
estados e mesmo na Cmara e no Senado.
A reportagem de Tad Szulc talvez tenha se somado aos relatrios
que o consulado dos EUA enviava a Washington por meio de agentes
da CIA que trabalhavam como funcionrios daquela instituio, e
seu efeito foi registrado por Joseph A. Page no livro A revoluo que
nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Tambm ainda como
efeito da ameaadora onda comunista que partia do Nordeste para
dominar o Brasil, como afirmava Tad Szulc naquela reportagem,
o governo dos EUA tenha enviado Edward Kennedy em agosto de
1961 a Pernambuco. Ele foi pessoalmente ao engenho Galileia, con52 siderado a sede da primeira Liga Camponesa, e, depois de conhecer
54
Este ensaio um dilogo ampliado com a minha prpria experincia de pesquisa no campo da Histria. E, de pronto, j alerto ao
leitor a respeito dos clichs reinantes que rotulam e/ou enquadram
o contedo elaborado sob um determinado prisma, delegando um
status fora de seu contexto ou inteno. Chamo a ateno que pelo
enredo que a escrita toma no se trata de um texto conhecido apenas
e to somente como um memorial. Na verdade, trata-se de uma
escolha, porque defendo a ideia de uma prtica de pesquisa militante, uma vez que estou envolto nas questes de meu cotidiano.
Minha formao acadmica contribuiu para uma prtica em pesquisa que caminha nesse sentido, conforme espero deixar claro atravs das ideias que aqui seguem. O itinerrio que tomarei se baseia
em trs momentos de minha vida acadmica, e somente.
Desde o perodo da graduao em Histria, na Universidade
Federal do Acre, ouvia alguns professores falarem de uma dada
objetividade histrica, de uma objetividade cientfica, amparada na
ideia de que ao pesquisador caberia a responsabilidade de assistir aos
acontecimentos de maneira neutra, sem envolvimentos, sem emoo. Era como se fosse possvel ao historiador ficar numa arquibancada assistindo, de fora, histria acontecer, comparando mal, seria
como assistir a um desfile de escola de samba ou algo semelhante.
Quando fiz o mestrado em Histria, na Universidade Federal do 55
58
61
Mendes como o tempo em que mais passaram a conceder entrevistas, as quais no retornam para seus domnios. Vem da a justificativa de sua atitude registrada nos seguintes termos:
Porque interessante a gente ter aqui a nossa histria registrada e
a gente tambm dispor dela, pra gente lembrar de alguns fatos que
passa na vida e depois a gente s lembra no momento como esse,
que tem algum suscitando essa lembrana, do contrrio passou, t
passado e gente s vivendo o presente, e acaba esquecendo alguma
coisa da histria de si prprio. Por isso importante ter uma cpia
desse produto final.12
Por um lado, o iderio de luta desses sujeitos em defesa de suas
culturas convertido em um instrumento til, com um contedo
administrvel pelos setores sociais que dominariam o conhecimento
acadmico. Estes, de posse das informaes, submetem tudo aos
seus interesses, garantindo a sua prpria projeo, sendo elevados
categoria de cientistas engajados, eventualmente, nas lutas preservacionistas, por estarem realizando pesquisas/entrevistas com os
seringueiros. Mas depois saem de Xapuri sem deixar nada para as
populaes locais. Ainda mais, levam consigo conhecimentos das
culturas das florestas teis aos seus propsitos aprisionando ainda
mais as experincias, as memrias e as histrias relativas aos passados e aos espaos que conhecem e vivem. Nunca mais voltam para
dar satisfaes dos escritos publicados. Por certo, as elaboraes
resultantes de tais contatos possivelmente comportariam ou seriam
passveis de censura pelo simples fato de os seringueiros no concordarem com o que foi escrito sobre o contedo que transmitiram. Por
isso Dercy Teles reivindica a devoluo do produto final, para manter sob o seu domnio e de seus companheiros as memrias registradas, guardadas no seu lugar de origem, para no serem lembradas
somente quando discutidas por pessoas de fora. Dercy pleiteia o
62
12 Entrevista realizada com Dercy Teles. Ver nota 12.
domnio de suas memrias para significar a sua histria, numa atitude protagonista do exerccio de elaborao. Assim fazendo acaba
discernindo papis, deixando de ser alvo til da elaborao do outro
de um modo passivo, apenas como fonte, como informante. Entendemos, e com justa razo, que quer ela prpria ser a pessoa a discutir
e a reinventar a sua prpria histria e a de seus companheiros, atuando e compartilhando o exerccio social criativo.
Com base nessa mesma compreenso, foi recepcionada a fala de
Dona Raimunda Gomes, lder fundadora da Associao das Quebradeiras de Coco, na regio do Bico do Papagaio, no Tocantins. No
momento da entrevista, no mais desempenhava um mandato poltico na diretoria, mas mantinha expressiva liderana junto s suas
companheiras. Ela, quando questionada se nos autorizava a utilizar
seu relato, falou nos seguintes termos:
Olha, eu autorizo sempre essa nossa histria. em qualquer
relato, em qualquer filme, porque ns fomos sempre escondidas, no Maranho, no Piau, no Par, em vrios lugares
deste pas, principalmente no Maranho, que o principal
lugar que as companheiras mais quebravam coco. Tem companheira a que quebra coco no Tocantins, mas vieram do
Maranho... A essa histria bom que ela seja divulgada.13
63
64
Era o tempo marcado pelos conflitos, porque a terra era boa, era
boa para plantar, como falam os agricultores. Mas a mesma terra
era tambm objeto de cobia dos fazendeiros, que queriam aqueles
espaos para plantar pastos utilizados na pecuria. Por isso Dona
Raimunda pontua de modo singular, no relato de suas experincias,
o perodo agudo dos conflitos motivados por disputas de terras. Sua
formao poltica se coloca no fazer cotidiano, no calor da hora das
aes, que exige dela e das companheiras uma atitude rpida para
frear o avano de jagunos, da polcia, enfim, para assegurar a estabilidade e a vida aos seus familiares. Mas, ainda que relate a importncia da luta pela conquista da terra, ela tambm adere, ou se v
15 Entrevista com Raimunda Gomes. Ver nota 14.
Mas so as mulheres que enxergam as terras ricas em babau e apontam para a terra boa para a famlia ocupar. Vem dessa compreenso
uma dimenso de lutar pela conquista de determinado espao de
terra. O parmetro que orienta a luta pela terra pressupe existir o
babau. Mas, para as mulheres, naquele momento, no havia a conscincia quanto ao uso dos recursos do ambiente, o babau como tal
no era cogitado como um instrumento que constitusse contedo
para elaborar o argumento que possibilitasse lutar por sua preservao. E, nesses marcos, a terra lhes pertenceria por uma relao de
carter cultural com aquela espcie de palmeira. Mas no por esse
entendimento que elaboram suas reivindicaes. A luta para sarem da linha da pobreza e a conquista da terra lhes possibilita tal
superao.
Mas, ao lutarem por aquela terra, mais tarde tomariam conhecimento da luta dos seringueiros de Xapuri, que se mobilizavam em
defesa da preservao das florestas que continham seringais. Dona
Raimunda e suas companheiras tambm se perceberam atuando em
defesa do babau. Mas, inicialmente, no perceberam que conquistando a terra, que continha o babau, tambm preservariam o meio
ambiente. S transcorrido determinado tempo que tal sentido lhes
pareceu to bvio, a partir da envidaro esforos para que essa condio seja reconhecida e se empenharo na organizao poltica da
categoria de mulheres extrativistas quebradeiras de coco.
No demais lembrar que as pessoas haviam chegado regio
do Bico do Papagaio, no estado do Par, oriundas de outros estados
do Nordeste, j expulsas pelas parcas condies materiais e sociais
de sobrevivncia a partir das dcadas de 1950 e 1960. Ali constituam posse das terras devolutas e, com o passar dos anos, principalmente a partir da dcada de 1970, fazendeiros chamaram para si a
condio de donos da terra, questionando a posse daquelas famlias
extrativistas.
Vem desse perodo a luta pela terra na regio. Mas Dona Rai66 munda percebe que a prtica extrativista do babau, que lhes asse-
68
PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrnicos: memrias e possveis mundos dos trabalhadores. Projeto Histria, So Paulo, n. 10, p. 41-58, dez. 1993.
concentrado em entrevistar antigos militantes provenientes de setores mdios por sua acessibilidade e disposio de oferecer os testemunhos , o perodo estudado se apresenta notvel. Por um lado,
pela forte politizao de mulheres e, por outro, dos prprios trabalhadores. De fato, minha pesquisa sobre o Partido Revolucionrio
dos Trabalhadores Exrcito Revolucionrio do Povo (PRT-ERP)
deixa claro que por pouco essa organizao teria uma composio
social representativa muito prxima daquela da sociedade argentina
da poca, conseguindo envolver uma quantidade considervel de
operrios e operrias. Com relao aos mais de seis mil militantes
do PRT-ERP no final de 1975, pude reconstruir a histria de vida de
setecentos deles. Desse total, utilizando como categorizao a localizao social da procedncia da famlia, inferi que 45% provinham da
classe trabalhadora (trabalhadores rurais, industriais e da construo), incluindo uma quantidade que provinha de famlias de iderios
peronistas (POZZI, 2001, p. 73).
Trata-se aqui de lanar algumas ideias em torno de diferenas
que distinguem os testemunhos oferecidos por entrevistados de origem social trabalhadora, em particular a respeito de como explicam
o seu processo de politizao. A premissa bsica a de que as narrativas so significativamente distintas enquanto imagens, nfases e
modos de estruturar suas explicaes em relao queles que provm de outros setores sociais. O que parecem indicar os testemunhos que a politizao compreendida como algo natural, ou seja,
como uma extenso de sua experincia de vida, mais do que como
um despertar ou um processo de politizao.18 Por exemplo, explicou um entrevistado: Comecei a lembrar da vida de onde vivamos.
Nas obragens, como vivia a gente [...] que havia superexplorao, que
no pagavam salrio, que lhes pagavam com papis, com mercadoria, que no tinha atendimento mdico, que morriam sangrando por
suas feridas, por picadas de cobras, que se, at lepra tinha havido no
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claro era como que, veja, eu me sentia forte, era como dizia:
No, ou, eu no estou aqui arrependido de nada. Aqui eu
fui ignorante que no sabia nada e estou agradecido, no sei
se agradecido a Deus ou a quem agradeo que me trouxe
para c, para conhecer isto. E era como se aquilo fosse me
definindo politicamente. [...] eu sentia que havia feito meu
nome e que, alm disso, eu sabia o que queria, e o que queria
no estava em contradio com minha conscincia. Eu sempre, minha conscincia est tranquila, entende?21
73
tido, Vasco tenta a todo instante ser preciso, exato em sua explicao. Ele busca certa lgica no relato de seu processo de politizao,
de outro modo Poroto enfatiza que a militncia um produto de
sua vida e, por assim dizer, coloca-a como algo natural: certo,
estou aqui porque h luta de classes. Se, para Vasco, a militncia foi
produto de um despertar, para Poroto a politizao no nenhum
processo, tampouco um despertar, mas uma extenso da realidade
social que revelada de forma plena atravs de leituras polticas.
Outro testemunho similar ao de Poroto o de Goyo, um operrio mecnico de Crdoba, filho de pees rurais, que chegou militncia marxista proveniente de um passado catlico e nacionalista.
Uma vez mais se repetem os temas: a ironia, o uso da adjetivao
para ressaltar aspectos de sua histria e o fato de a militncia ser
apresentada como uma extenso natural de sua experincia de vida.
Como no caso de Poroto, a politizao no representa uma ruptura
com suas crenas anteriores, pelo contrrio, ele d nfase sua continuidade. Em ambos os casos, a educao (leitura) assume o papel
central para explicar a realidade. Goyo explica em seu testemunho:
74
De alguma maneira, Goyo e Poroto parecem rir do que entendem como sua situao prvia de militncia: a no compreenso das
chaves de sua prpria vida que, alm disso, so evidentes para outros
(Poroto e o comentrio do diretor, Goyo e o operrio militante do
PC). Uma vez mais, em Goyo se repete o processo em que a vida
leva politizao e o catalisador a educao. O tema da educao, sobretudo em seu aspecto autodidata, algo central na cultura
operria argentina. Desde a poca dos anarquistas, os trabalhadores
argentinos tm ressignificado as tradues do radicalismo artesanal
que difundem a ideia: a educao te far livre. Assim, o conhecimento no implica um despertar, e sim uma compreenso plena do
processo de explorao, sendo por assim dizer central dignidade
humana. Esse conhecimento se adquire tanto pela educao formal
como pela leitura e experincia de vida. Como expressou um entrevistado a este entrevistador: Eu fui a uma universidade que vocs
nunca pisaram, garoto: a universidade da rua.23 Um elemento central nessa educao pela transmisso oral so os ensinamentos dos
22 Entrevista realizada com Gregorio Goyo Flores, em Buenos Aires, em 1994, por
Pablo Pozzi.
23 Entrevista com Eduardo Tesini, em Nova Iorque, em 1983, por Pablo Pozzi.
75
76
77
26 Entrevista realizada com Humberto Tumini, em Buenos Aires, em 1991 e 1992, por Pablo
Pozzi e Mara C. Scaglia.
uma forte conscincia para si. E por isso que os testemunhos assinalam momentos culminantes de conflitividade nos quais haviam
sido protagonistas.
Aqui surge novamente o problema da politizao desses operrios argentinos. O que seria pertinente colocar o que entendiam os
obreiros argentinos em geral e estes testemunhantes em particular
por poltica. vlido sublinhar que nas entrevistas anteriormente
citadas, tanto Poroto como Goyo e Mario Leiva assinalaram que
tinham uma participao importante nas lutas operrias, algo igual a
uma ideologia (catlica, peronista ou nacionalista). Contudo, todos
eles no pareceram considerar essa participao como poltica; de
fato todos consideraram sua politizao como a militncia de uma
organizao determinada. A imagem que emerge aquela a partir da
qual a incorporao militncia foi algo natural, produto da experincia de vida e da estrutura de sentimento forjada durante vrias
geraes de uma famlia operria. Ao mesmo tempo, seria importante contrastar os testemunhos de operrios militantes com o de
no militantes e compar-los, por sua vez, a partir dos gneros.
No devemos supor que o testemunho de um operrio politizado
necessariamente expresse uma estrutura de sentimento que se pode
generalizar para o conjunto dos trabalhadores. Ao fim e ao cabo, a
prpria politizao algo que diferencia o operrio militante. Contudo, o que sugerem os testemunhos discutidos que os discursos e
narraes de cada um desses militantes se articulam a uma cultura
e sentido comuns, que so compartilhados pelo conjunto dos trabalhadores e os diferenciam de outros setores sociais.
Referncias:
POZZI, Pablo. El PRT-ERP: la guerrilla marxista. Buenos Aires: EUDEBA, 2001.
79
TE
PAR
II
PARTE II
HISTRIA ORAL, MEMRIA, SUBJETIVIDADE
85
86
esse emaranhado de informaes muitas vezes contraditrias. Talvez o historiador, inteirado das contribuies da psicologia, possa levar vantagem em outro sentido: apontando
a historicidade caracterstica dessas emoes, valores e representaes, e do prprio ato
de transformar em narrativa esses elementos, como se eles constitussem a histria de um
indivduo.
o mundo social [...] dispe de todo tipo de instituies de totalizao e de unificao do eu [...], sendo a mais evidente o nome prprio e sua manifestao concreta, a assinatura, que buscam assegurar
[...] aos indivduos designados, para alm de todas as mudanas e
de todas as flutuaes biolgicas e sociais, a constncia nominal, a
identidade no sentido de identidade consigo mesmo, de constantia
sibi, que a ordem social demanda. Ele ainda ressalta: [...] ele [o
nome prprio] s pode atestar a identidade da personalidade, como
individualidade socialmente constituda, custa de uma formidvel
abstrao. Contudo, diferentemente de Foucault, Bourdieu prope
como sada metodolgica no a anlise da produo dos sujeitos
por prticas discursivas e no discursivas, mas a interpretao dos
acontecimentos biogrficos como [...] colocaes e deslocamentos no
espao social, isto , mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuio das diferentes espcies de capital
que esto em jogo no campo considerado. Nessa perspectiva, no
h espao para o resgate da subjetividade, apenas para a anlise das
relaes sociais objetivas que [...] uniram o agente considerado [...]
ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espao de possveis (BOURDIEU, 1996, p.
183-184, 186-187 e 190, grifos do autor).
A perspectiva objetivista de Bourdieu foi criticada, entre outros,
pelo psiclogo Yves Clot que, no texto La otra ilusin biogrfica,
pondera:
Todo sujeito, no curso de sua existncia, enfrenta periodicamente situaes, encontros, acontecimentos que so fontes
de conflitos. A avaliao de seu campo de possibilidades subjetivo que denuncia, nos dois sentidos do termo, suas vacilaes ou suas negociaes nos proporciona um ponto de
referncia precioso para nos orientarmos no campo de uma
eventual clnica biogrfica. (CLOT, 1989, p. 40, grifo nosso).
91
rentes de pensamento que questionaram a centralidade do heri-homem, detentor de livre-arbtrio, senhor de seus caminhos, capaz
de avaliar serena e racionalmente suas condutas, do super-heri do
iluminismo enfim. Para ficarmos nos casos mais conhecidos, bastaria citar Marx e Freud. O primeiro procurou mostrar como a conscincia social determinada pelo ser social, pelo conjunto de relaes
de produo e de reproduo da vida humana nesse caso, ser que
Batman no seria menos um justiceiro e mais um defensor da propriedade e da ordem burguesas? J Freud pretendeu demonstrar o
papel preponderante das pulses do inconsciente na conformao
da personalidade segundo tal perspectiva, a opo do homem-morcego por fazer o bem talvez resultasse menos de livre-arbtrio e
mais da sua infinita obsesso em vingar os pais. De qualquer forma,
ambos, Marx e Freud, mostraram os limites da liberdade humana e
tambm os condicionamentos da subjetividade individual pelas relaes materiais de produo e pelos desejos inconscientes. Porm, os
dois, como homens do sculo XIX comprometidos com o projeto da
modernidade, no fugiram da ideia de uma essncia humana, seja
a busca pela emancipao, que s atingiria sua completude com a
abolio das classes, seja pela identificao de uma frustrao primordial, metaforizada no complexo de dipo.
Mais recentemente, e sobretudo a partir da dcada de 1960,
diversas correntes de pensamento seguidamente reunidas sob o
rtulo de ps-estruturalistas buscaram desestabilizar as supostas
essncias que organizam a nossa vida social e psicolgica, indicando
a sua historicidade, o seu carter de artefato e, em especial, mostrando que elas esto profundamente comprometidas com relaes
de poder que constituem sujeitos e subjetividades. preciso, ento,
que, concordando ou no com tais perspectivas, levemos em conta
esses debates, respondendo, por exemplo, a questes como: que definies de subjetividade estamos empregando em nossas pesquisas?
A quais posies de sujeito elas correspondem? Com que categorias
94 podemos analisar ou, ao menos, levar em conta a subjetividade
de nossos depoentes sem essencializ-la como uma categoria a-histrica ou trans-histrica? Ou ela constitui realmente uma essncia
do sujeito, conforme postulam certas correntes da psicologia? Ou
ainda (e confesso que essa direo me parece mais sedutora): como
a histria oral pode ser um meio til para, justamente, evidenciar
o carter construdo e histrico da subjetividade, para explicitar as
prticas discursivas e no discursivas que instituem formas determinadas de relao com a verdade e consigo e, em consequncia,
sujeitos morais como Batman e os personagens que habitam nossos
estudos?
Encerrar um texto com perguntas pode significar que seu autor
no conseguiu concluir satisfatoriamente o seu pensamento, o que
verdade nesse caso. Mas tambm revela um convite ao debate e, ao
menos, uma certeza: a importncia de empregar a noo de subjetividade de forma menos inocente e mais consistente em termos
analticos para, com isso, realizarmos uma associao satisfatria
entre os trs termos que compem o ttulo de nossa mesa: histria
oral, memria e subjetividades.
Referncias:
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Michel Foucault no campo da historiografia. In: ______. Histria: a arte de inventar
o passado. Bauru: Edusc, 2007.
AUGRAS, Monique. Histria oral e subjetividade. In: SIMSON, Olga Rodrigues de
Moraes Von (Org.). Os desafios contemporneos da histria oral. Campinas: rea de
Publicaes CMU/UNICAMP, 1997.
BOURDIEU, Pierre. A Iluso biogrfica. In: FERREIRA, Marieta M.; AMADO,
Janana (Org.). Usos & abusos da histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
CLOT, Ives. La otra ilusin biogrfica. Historia y fuente oral, Barcelona, n. 1 e 2,
1989.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Rio de Janeiro: PUC-RJ/NAU,
2008.
FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo Aurlio: dicionrio da lngua portu95
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JAMES, Daniel. Doa Maras story: life history, memory, and political identity.
Durham/Londres: Duke University Press, 2000.
POMIAN, Krzysztof. Sur les rapports entre mmoire et de lhistoire. Le Dbat, n.
122, p. 24-31, nov./dez. 2002.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von (Org.). Os desafios contemporneos da
histria oral. Campinas: rea de Publicaes CMU/UNICAMP, 1997.
VERISSIMO, Luis Fernando. Poderes. Zero Hora, Porto Alegre, p. 3, 31 jul. 2008.
96
Como ponto de partida para essa reflexo,31 e sem nenhuma preocupao com a originalidade, gostaria de fazer referncia ao palcio
da memria de Matteo Ricci (SPENCE, 1986).
Como sabemos, esse sacerdote jesuta, que trabalhou em Macau
no sculo XVI, ensinou os chineses a construir o palcio da memria. Segundo ele, uma pessoa poderia construir palcios modestos
ou grandiosos, dependendo das memrias que quisesse armazenar.
Mas, se desejasse um espao ntimo, poderia usar apenas o canto de
um pavilho, um altar num templo, ou, at mesmo, um objeto to
domstico como um guarda-roupa ou um div (SPENCE, 1986, p.
19). Assim,
a melhor forma de iniciar o treinamento da memria seria
imaginar-se percorrendo o interior de um prdio. Ao visualizar o movimento atravs desse espao, criava-se uma
sequncia para as lembranas. Cada um dos cmodos
devia aparecer com clareza aos olhos da mente, decorados
de maneira apropriada ao assunto que se queria recordar.
(SMITH, 2002, p. 78).
97
99
34 De acordo com Florentino e Machado (2002), esse perodo foi marcado pela entrada de
parcela significativa de imigrantes portugueses, cujo nmero superou em mais de sete vezes
a quantidade daqueles que desembarcaram durante todo o perodo colonial.
101
reconstruir a trajetria desses e/imigrantes que, embora tenham deixado heranas to presentes na nossa cultura cotidiana, ainda so
pouco conhecidos pela historiografia.
Nessa perspectiva, essa reflexo busca investigar as prticas discursivas sobre a experincia da e/imigrao, a partir das narrativas de quatro e/imigrantes, trs homens e uma mulher, que saram de Portugal no
perodo ps Segunda Guerra Mundial e hoje residem em Curitiba. Destaque-se que desses quatro, trs deixaram Portugal durante a infncia
presente no imaginrio social das populaes camponesas, ressurgindo nas narrativas de muitos imigrantes que chegaram ao Brasil no
incio da dcada de 1950. Em muitas narrativas, em meio s referncias sobre a precariedade de recursos, a aldeia natal ressurge como
o lugar de pertencimento e de coeso, sempre ancorado nas redes
familiares.
Seguindo os conselhos de Ricci, procuramos conduzir nossos
narradores para os espaos mais ntimos, muitas vezes escondidos nos palcios de suas memrias. Nessa direo, ao reconstruir a
memria sobre o lugar onde passou a infncia, um dos narradores
diz:
Lamoso, como toda aldeia, tem a capelinha da santa padroeira, tem as eiras, casas de pedra em runas, a rua do canelho, a rua do carrascal e a caleja do lameiro. Tem os cerejais
e a moreirica, uma ponte de pedra sobre ribeira, a lagoa
cheia de rs a coaxar, a fonte onde se colhia gua mo.36
Em seguida, narra a dor e angstia que sentiu ao saber que deixaria sua aldeia portuguesa para viver em um lugar estranho.
104
36 Entrevista realizada com Amlcar Fernandes Silva, em Curitiba, em 2005, por Roseli
Boschilia.
37 Entrevista com Amlcar Fernandes Silva. Ver nota 37.
105
Como diz Ecla Bosi (1979, p. 17), a memria assume uma funo decisiva, o passado no s vem tona das guas do presente,
misturando-se com as percepes imediatas, como tambm desloca
estas ltimas ocupando o espao da conscincia.
Assim, no discurso de Maria Helena construdo no presente, e
prenhe de poesia, possvel perceber que as marcas da separao
irrompem no s nas reminiscncias da menina que deixou a aldeia
para encontrar a me de quem no mais recordava o rosto, mas tambm ocupam espao privilegiado no seu campo de trabalho como
escritora.
Jos Rodrigues, outro e/imigrante que saiu de Portugal ainda
criana, tambm faz um exerccio de reflexo sobre o fenmeno do
42 Entrevista realizada com Maria Helena Correa. Ver nota 40.
43 Entrevista realizada com Maria Helena Correa. Ver nota 40.
107
108
44 Entrevista realizada com Jos Rodrigues, em Curitiba, em 2008, por Laura Jackson e Celina
Bastos.
45 Entrevista realizada com Jos Rodrigues. Ver nota 45.
barro at chegar em Araruna [...] e voc fica com uma expectativa muito grande: eu vou ver uma casa maravilhosa. Era
um barraco de secos e molhados! Bem como a gente v
nos filmes de faroeste, uma casa de madeira, de tbua para
servir de degrau, com aquele tronco na frente, para os cavaleiros amarrarem os cavalos. Enfim, foi tudo diferente, tudo
novo pra mim. Era uma excitao muito grande, tudo, tudo,
uma mistura de fortes emoes com novidades.46
109
No interior da narrativa, a saudade se manifesta como uma felicidade triste que nasce do encontro fugidio com uma lembrana,
o prazer nascido do fugaz contato com um objeto do desejo que se
torna presente por instantes (ALBUQUERQUE JNIOR, 2006, p.
121). Fazendo jus afirmao desse mesmo autor, de que a saudade
se apresenta como um gosto que traz um desgosto iminente, o narrador d sequncia ao seu raciocnio dizendo:
110
111
Outras vezes, a resposta em relao ao seu lugar de pertencimento aparece de modo mais enftico, sintetizando com maior clareza o sentimento de identidade desses imigrantes:
[L] eu deixei a casa de xisto, as oliveiras, as cerejeiras, os montes de palha seca [...] Deixei amigos, as andorinhas, a neve.
Deixei as batatas, as sardinhas assadas, as postas de bacalhau
[...] deixei o riacho. Deixei o repicar do sino da igreja... L eu
deixei metade de mim. (CORREA, 2011, p. 167).
Luanda era estranha pra mim. Eu procurava a integrao e
no conseguia. E assim por meu mal sentia-me desterrado
em minha terra natal. Minhas razes, meus amigos, os meus
sonhos que no desabrocharam. Tudo afinal que era meu
tinha ficado em Portugal [...]52
112
52 Entrevista realizada com Amlcar Fernandes Silva, em Curitiba, em 2005, por Roseli
Boschilia.
Referncias
113
114
TE
PAR
III
PARTE III
HISTRIA ORAL, CIDADES E DIFERENA
1. sombra do jequitib
Marcos Alvito
Sem ter condies de ensinar algo de novo e extraordinrio
acerca da histria oral, gostaria de compartilhar aquilo que tenho
aprendido na aventura da pesquisa, sobretudo naquele momento
decisivo e muitas vezes mgico em que nos vemos diante de uma
outra pessoa e pedimos a ela que conte sua histria. Ser uma histria sobre histrias. Adoto aqui a perspectiva de Portelli (2005, p. 3) de
que em um trabalho de histria oral no estudamos as pessoas e sim
aprendemos com elas.
At um certo dia de maio de 1995, eu era um pacato professor
de Histria Antiga fazendo um doutorado na USP sobre o que eu
chamava de A apropriao social do corpo feminino em Atenas e
Esparta. Por conta de uma reviravolta pessoal e acadmica que no
cabe contar aqui, meses depois eu estava pesquisando a favela de
Acari. Localizada a cerca de 25 quilmetros ao norte do Centro do
Rio de Janeiro, era na poca formada por trs favelas e um conjunto
residencial onde moravam, em uma densidade demogrfica superior
de Copacabana, por volta de quarenta mil pessoas.
quela poca, Acari era um dos principais postos de venda de
drogas a cu aberto do Rio de Janeiro, palco de uma confrontao
cotidiana e sangrenta entre policiais e jovens traficantes. Em meio a
isso, uma comunidade de trabalhadores pobres, muitos deles acordando s trs horas da manh para pegar no servio pesado de car- 117
120
121
122
um ganhozinho de peixe uma mistura, n? Aquele ganhozinho de peixe, eu vim trouxe pra aqui, botei ali e vendi at
oito horas da manh. Aquele dia eu s fumei um cigarro pra
economizar o dinheiro pra poder no outro dia comprar dois
ganhos. A, desci, comprei dois, dois cestos e trouxe, botei
ali, at as oito horas, sobrou um pouquinho, botei na bicicleta, fui at aqui em baixo, vendi. No terceiro dia eu desci,
j trouxe trs, a j botei na porta embrulho da bicicleta, o
qual tenho ela at hoje. Isso j tem 25 anos.54
124
125
davam testemunhos acerca da sua vida pregressa como se as barbries tivessem sido perpetradas por outra pessoa. Esse tipo de relato,
capaz de atrair multides aos templos evanglicos, fato cuja periculosidade proporcional antiga criatura, era visto como exemplo
do poder da palavra de Deus. Aqui chegamos, finalmente, palavra.
Palavra sagrada que tem um poder mgico, uma eficcia, uma capacidade de transformar o prprio ser em outro. Em suma, a palavra
de Deus tem o poder de criar um novo mundo em que viver. Ela
constri uma redoma csmica, a Igreja encarnada na comunidade
de fiis que vivem nela, na palavra, em oposio aos que vivem
no mundo, onde o Diabo que impera. Por isso foi preciso, para
efetivamente se transformar numa missionria, obter a sabedoria
dentro da palavra, crescer espiritualmente na palavra. Era necessrio entrar bem na palavra de Deus. Antes ela pensava que ser
uma missionria era s chegar ali na frente, pegar o microfone, l
um versculo da Bblia, pronto, acabou. E quando ela vai conseguir
entrar na palavra? Somente aps confirmao do chamado divino.
Somente depois da prova pela qual passara (a tentativa de estupro
e a morte do seu perseguidor), somada profecia emitida por uma
senhora que nada vira, ela tem a certeza, aos 18 anos de idade, que
havia sido escolhida. Pois, nas suas prprias palavras: para ser uma
missionria no s chegar ali na frente e falar, tinha que descobrir
se eu tinha mesmo um chamado de ser uma missionria.
132
133
preciso sublinhar que estamos adotando o conceito de smbolo como algo que rene e distingue, sob a forma sensvel de um
artefato, todo um conjunto de valores, normas, crenas, estatutos e
sentimentos (VOGEL; MELLO; BARROS, 1998, p. 2, grifo nosso).
Tendo descoberto a centralidade do jequitib como smbolo do
quilombo So Jos da Serra, retornei comunidade em outubro de
2009 para realizar uma pesquisa de histria oral em parceria com
os estudantes dessa disciplina. No roteiro das entrevistas realizadas
pelos alunos, foi inserida uma pergunta acerca da relao da comunidade com o jequitib que permitiu aprofundar a investigao
acerca dessa rvore como smbolo.
Aqui precisamos ampliar nossas informaes sobre o quilombo
So Jos. Essa comunidade de descendentes de escravos foi reconhecida como remanescente de quilombo em 1998, a partir da tendo
lutado pela obteno das terras que vm cultivando h geraes e
que passariam a lhes pertencer de acordo com o artigo 68 das disposies transitrias da Constituio de 1988. A luta da comunidade
pela implementao do seu direito demorou 11 anos at que em
novembro de 2009 fosse assinado um decreto presidencial concedendo-lhes as terras. Antes disso, a existncia e a permanncia da
comunidade nessas terras estiveram sob forte ameaa. Seu acesso
terra foi progressivamente negado pelos fazendeiros que tentaram
inclusive expuls-los dali. Hoje em dia, enquanto esperam que o
Incra finalmente demarque sua propriedade permitindo-lhes tomar
posse, as dezenas de famlias da comunidade vivem apertadas em
apenas nove hectares. Com isso, muitos de seus membros, sobretudo os mais jovens, so obrigados a migrar para centros urbanos em
busca de trabalho. Apesar disso, a comunidade como um todo sempre volta a se reunir durante as duas festas anuais mais importantes:
o Treze de Maio e o Vinte de Novembro.
Essa resistncia a um ambiente hostil encontra uma correspondncia perfeita em uma das histrias contadas acerca do jequitib
134 pelo lder da comunidade, Antnio Fernandes do Nascimento, mais
135
Em vrias outras entrevistas, o jequitib aparece como dispensador de fora, energia e conforto para aqueles que estejam atravessando dificuldades. Bastaria sentar alguns momentos sua sombra,
abra-lo, eventualmente fazer uma orao, para que a pessoa seja
beneficiada.
Em nenhuma entrevista, todavia, seu papel central como smbolo religioso da comunidade fica mais explcito do que naquela
concedida por Me Tet (Terezinha Fernandes de Azedias), a me de
santo responsvel pelo terreiro de umbanda do quilombo So Jos:
Ah... o jequitib da gente uma coisa muito importante. A
gente respeita ele. Igual eu respeito o terreiro de umbanda
aqui em baixo eu respeito ele e aquela pedra grande. Que
ele uma segurana pra nossa vida. Enquanto a gente tiver
a gente sabe que tem vida e tem esperana. Todo dia a gente
136
Um smbolo funciona como aquilo que Geertz (1989, p. 107108) chama de modelo de e modelo para. Enquanto modelo de,
o smbolo descreve algo, representa algo. O jequitib um sinnimo
da ancestralidade, do enraizamento, da antiguidade da ocupao
daquele territrio pelo grupo. Ele condensa como o grupo v suas
origens, que remontam ao tempo do cativeiro (RIOS; MATTOS,
2005). Por outro lado, o smbolo tambm um modelo para, uma
espcie de manual de como se deve agir. Diante do sofrimento e das
dificuldades, deve-se resistir bravamente feito a rvore centenria:
Igual a gente ele no tombou, ele t sempre firme. Ento na firmeza
dele a gente tambm firma nossa cabea pra poder conseguir aquilo
que a gente quer. Por isso o destino da comunidade e do jequitib
est entrelaado: Enquanto a gente tiver [o jequitib] a gente sabe
que tem vida e tem esperana.
O que podemos concluir a partir destas trs histrias: Seu Tio
Peixeiro e sua saga de pioneiro, a missionria Miriam e a descoberta
de sua vocao religiosa e, por fim, o jequitib e o quilombo So Jos
da Serra?
Em todas as trs situaes, os relatos dos entrevistados pareciam
muito simples e at mesmo banais. Mas, para compreender efetivamente o que cada uma dessas pessoas estava querendo dizer, foi preciso, primeiramente, recuperar o contexto de suas falas e a situao
60 Entrevista realizada com Terezinha Fernandes de Azedias (Me Tet), no quilombo So
Jos da Serra, Valena, em 2009, por Arliny R. Cavalcante.
137
em que se deu o dilogo entrevistador-entrevistado. No caso dos ex-lderes comunitrios, seu depoimento visava garantir a preservao
da memria da luta coletiva e do papel que eles enquanto indivduos
haviam desempenhado. A Missionria Miriam queria dar um testemunho da sua f, tentando difundir a fora da palavra de Deus. J
os membros da comunidade do quilombo So Jos, em meio luta
pela terra, buscavam em seu discurso afirmar a identidade do grupo
e dos valores em nome dos quais eles continuavam (e continuam) a
resistir.
Mas o significado das palavras dos entrevistados, alm de levar
em considerao a situao da entrevista, deve remeter viso de
mundo do nativo, que deve ser investigada da forma mais profunda
possvel. Sem isso, nos arriscamos a sermos ventrloquos, fazendo
nossos entrevistados falarem aquilo que ns queremos dizer (PORTELLI, 1998, p. 72).
O historiador oral deve entender que as palavras aparentemente
singelas que nossos entrevistados generosamente compartilham
conosco merecem uma interpretao que faa jus sua complexidade de significados e profundidade histrica. Devemos perceber
que esses discursos podem ser to ricos e sutis como a sombra de
um jequitib.
Referncias
BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In: FERREIRA, Marieta de M.; AMADO,
Janana (Org.). In: Usos e abusos da histria oral. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
p.183-191.
FERREIRA, Marieta de M. (Org.). Histria oral e multidisciplinaridade. Rio de
Janeiro: Diadorim, 1994.
FERREIRA, Marieta de M. (Org.). Entre-vistas: abordagens e usos da histria oral.
Rio de Janeiro: FGV, 1994.
138
FERREIRA, Marieta de M.; AMADO, Janana (Org.). Usos & abusos da histria oral.
2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
139
140
Muitos, pessoas ou povos, podem chegar a pensar, conscientemente ou no, que cada estrangeiro um inimigo.
Em geral, essa convico jaz no fundo das almas como uma
infeco latente; manifesta-se apenas em aes episdicas e
no coordenadas; no fica na origem de um sistema de pensamento. Quando isso acontece, porm, quando o dogma
no enunciado se torna premissa maior de um silogismo,
ento, como ltimo elo da corrente, est o Campo de Extermnio. Este produto de uma concepo de mundo levada
145
146
dissertar sobre o Vale do Paraba (regio em que primeiro se expandiu em larga escala a
plantao de caf no sculo XIX e que hoje abriga um importante polo industrial), associou-o a benefcios sociais como o vale-transporte e o vale-refeio e concordou com sua concesso porque os parabas (como muitas vezes so designados genericamente todos os
nordestinos) ganham baixos salrios, gastando quase tudo com alimentao.
147
149
Na poca a que ele se refere, dcadas de 1950 a 1970, a Cachoeira do Bom Jesus no era um bairro da cidade como nos dias de
hoje, e sim campos de pasto e terra para plantar, habitados por uma
populao rarefeita e bastante pobre, muito diferente das camadas
abastadas que moravam no ncleo urbano. Essa situao, ele prossegue, tinha como base um determinismo perfeito, que pobre pobre
porque Deus quer, no havendo por isso nenhuma discusso ou reivindicao e nem como aspirar s coisas que existiam na cidade. A
cidade, Florianpolis, era ento um mundo distante, dando a sensao de que sua elite pouco se importava com aquela populao
pobre, limitando-se, ainda segundo Alton Laureano Teixeira, a usar
politicamente, eleitoralmente a gente, at mesmo com um pouco de
desprezo, porque o contingente era to insignificante que no tinha
peso.
150
64 Entrevista com Alton Laureano Teixeira, 63 anos, em Florianpolis, em 2005, por Janete
Pasini.
151
cidade e vem essa gente de fora semear a discrdia, a divergncia e o dio racial. De verdade, ns fomos atacados por
um bom tempo por esse tipo de comportamento, que cumpria um papel poltico bastante identificado com as foras
que ofereciam sustentao para a ditadura militar.66
152
66 Entrevista com Mrcio Jos Pereira, 50 anos, em Florianpolis, em 2009, por Luiz Felipe
Falco e Paulo R. Santhias.
67 A imprensa alternativa correspondeu produo de um jornalismo desvinculado da chamada grande imprensa durante o regime militar, entre outros motivos pela estreita vinculao dessa grande imprensa com o regime ento vigente, e teve grande expanso entre o final
da dcada de 1970 e meados da dcada de 1980, na esteira do processo de desagregao da
ditadura (CHINEM, 2004).
155
156
70 Entrevista realizada com Vera Lcia Custdio, 52 anos, em Florianpolis, em 2009, por
Luiz Felipe Falco.
71 No raro, nos depoimentos de pessoas que habitam a regio litornea de Florianpolis
h muito tempo, a meno, tambm, ao uso da violncia para expulsar a populao que ali
residia e que, muitas vezes, no possua o ttulo de propriedade das terras que ocupava. Por
outro lado, em partes dessa mesma regio litornea, as primeiras tenses e conflitos opondo
nativos e estrangeiros envolveram pescadores e surfistas, ainda que muitas vezes estes ltimos fossem ldimos filhos de famlias do ncleo urbano do municpio.
utilizado desde ento vrias vezes em campanhas publicitrias e eleitorais, ou mesmo em crnicas, charges e matrias jornalsticas de
diversos teores. Nelas, aludiam-se aos elementos indesejveis que,
desamando a cidade, no aceitavam de bom grado empreendimentos como a abertura de marinas ou a construo de arranha-cus
para abrigar hotis de luxo nas praias e reduziam, assim, as oportunidades de inverso e a oferta de empregos, ou ainda aos insolentes que
afrontavam a sociedade local e aos turistas pobres que no tinham
muitos recursos para gastar nas temporadas de vero (como remdio
para o assdio destes ltimos, por exemplo, era sugerido sem rodeios
um controle rgido dos acessos cidade).
Com isso, criou-se por vezes a impresso de que a cidade estava
dividida entre nativos e forasteiros, impresso esta que, com certeza,
no era ou exclusiva de Florianpolis, nem foi erigida por um mero
contrassenso (ELIAS; SCOTSON, 2003; FANTIN, 2000). Afinal, a
prpria alterao da composio demogrfica da cidade, do municpio e da prpria regio metropolitana parecia e parece justificar
uma percepo desse matiz, como se pode depreender a partir das
tabelas abaixo:
Tabela 1 Evoluo da populao dos principais municpios da Grande
Florianpolis (1950-2000)
Florianpolis
1950
1960
1970
1980
1990
2000
67.630
97.827
138.337
187.871
255.390
342.315
Palhoa
38.692
16.273*
20.655
38.031
68.430
102.742
Biguau
19.604
14.550*
15.360
21.434
34.063
48.077
So Jos
22.899
26.383*
42.434
87.817
136.293
173.559
Total
148.825
155.233
216.786
335.153
494.176
669.693
157
1960
1970
1980
1991
2001
Nascidos no municpio
81.041
107.443
120.724
155.958
196.322
Migrantes
16.786
30.894
67.147
99.432
145.993
Populao total
97.827
138.337
187.871
255.390
342.315
1960
1970
1980
1991
2001
Nascidos no municpio
82,85
77,67
64,26
61,07
57,36
Migrantes
17,15
22,33
35,74
38,93
42,64
100
100
100
100
100
Populao residente
160
JOHNSON, David E.; MICHAELSEN, Scott. Los secretos de la frontera: una introduccin. In: JOHNSON, David E.; MICHAELSEN, Scott. (Org.). Teoria de la frontera: los limites de la politica sultural. Barcelona: Gedisa, 2003.
161
162
Interessa discutir dimenses outras dessa experincia, interpretando-se o relato de Mrcio em mo dupla: apreender a historicidade
de como esses jovens so incorporados e assimilados como operrios
nessas dinmicas de produo. Isso porque tambm a esses jovens
no limitado o acesso ou a permanncia nas plantas industriais,
ainda que notria a compreenso corrente de ampliada discriminao aos homossexuais que vivem no campo ou mesmo nas pequenas
cidades. Desse modo, buscamos apreender como a alteridade gay se
processualiza como sentidos de pertena para gays e hteros nessas
novas relaes de trabalho e vida urbana no mbito dessas transformaes em curso.
Diante do desafio de interpretao dos relatos, temos em mente
que lidamos com fontes decorrentes de prticas humanas vivas, produzidas em mbitos de experincia marcados por estruturas de sentimentos, como assim nomeia to peculiarmente Raymond Williams
(1988). s entrevistas gravadas somam-se conversas informais com
trabalhadores e outros moradores da cidade, alm de outras leituras etnogrficas que trazem diferentes possibilidades interpretativas,
situadas para alm do plano da constatao das transformaes produtivas que, por vezes, so repetidamente comemoradas como aquelas substancialmente capazes de dirimir contradies que se pem
nesses universos relacionais vividos entre o campo e a cidade. Isso
porque, de maneira toda especial, como ainda expressa Pozzi (2009,
p. 91-92):
166
Ao se buscar, assim, pensar transformaes constitudas e interpretadas nos rastros do tempo, os relatos de histria oral do a ver
planos mltiplos e imbricados de experincia social histrica, tanto
de diferenas como de desigualdades que, por sua vez, so vividas
e contadas pelos entrevistados. Importa considerar, em plano mais
amplo, algumas dimenses histricas do conflito imbricadas nessas
transformaes, que podem ser lidas tambm em documentos de
expresso pblica produzidos sobre ou para a pequena Assis Chateaubriand. Uma imagem pblica, ou que se pretenda como tal,
potencialmente emblemtica nesse sentido. Trata-se da aluso
cidade redigida por pessoa ou instituio no identificada, no site
Wikipdia. Muitas vezes questionado pela sua metodologia considerada no fidedigna, o contedo abaixo tornado pblico permite
entrever uma disputa de sentidos muito marcante:
O municpio de Assis Chateaubriand, no dia 9 de maio de
1983, instituiu a frase Assis Chateaubriand Morada Amiga,
atravs da Lei n 594/83. O objetivo identificar o municpio de Assis Chateaubriand e o povo acolhedor que l reside
com sua amizade e cordialidade. A cidade de Assis Chateaubriand conserva ainda a magia de uma cidade pequena de
interior de estado, onde as pessoas ainda se cumprimentam
ao se encontrarem umas com as outras em andares pouco
apressados. So comuns os bons-dias, boa-tarde e boa-noite. (WIKIPDIA, 2009, grifo do autor).
Independentemente da discutvel credibilidade que se possa atribuir ao emprego de informaes veiculadas por sites mantidos com
a participao autnoma de internautas, como o caso do Wikipdia,
uma vez que o seu contedo aberto a contribuies livres de usurios, interessa destacar a importncia atribuda aos valores da fraternidade e da cordialidade preconizados no verbete da cidade. No
seria menos discutvel caso o contedo tivesse sido veiculado pelo
poder pblico e sua suposta oficialidade. Tambm se faz intrigante
o altrusmo harmonizante a partir do qual a Assis Chateaubriand 167
170
ajudava a trabalhar na fazenda. E da, o motivo foi que o proprietrio da fazenda no estava tendo lucro com a propriedade, da ele resolveu arrendar a propriedade para plantar
soja, era s gado. Da com isso ele seria obrigado a demitir
os funcionrios, j que no precisava mais. Da o meu pai
tambm foi um dos demitidos. Da a gente ficou sem rumo.
Pois a gente ficou morando dez anos l. Da a gente pegou
e pensou: pra onde a gente vai agora? Da o meu pai tinha
os netos dele aqui em Assis e da ele quis vir pra c. E eu
tambm, de incio eu me interessei em vir pra c porque eu
imaginava que aqui, por ser uma cidade um pouco maior,
eu conseguiria um trabalho de repente mais fcil do que em
Alto Piquiri ou naquela regio l. Da a gente conversou. A
gente chegou a conversar e chegou concluso de que seria
melhor a gente vir pra c. Da a gente veio pra c e estamos
aqui at hoje.74
173
77 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.
78 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.
175
176
Interessante destacar que, em relao ao acontecido, encontramos Mrcio agindo no apenas no sentido de encontrar uma maneira
mais amena de lidar com o conflito, nesse caso fazendo-se oculto.
Passa a contar, assim, de maneira quase dilacerada, como acionou
seus chefes para lidar com a agresso que sofrera. Na continuidade
do relato, contou como a situao teria sido resolvida pela sua chefia
que encaminhou e resolveu e, inclusive, faz um ano que ele veio perguntar pra mim e, porque agora eu mudei de setor. Alm de contar
como o conflito foi assumido e resolvido pela chefia, Mrcio pareceu
acentuar essa conduo prestativa, tanto que ele perguntou se o
pessoal do outro setor no est mexendo comigo, os caras.
A princpio, podemos ficar at comovidos com a to iminente
posio que teria sido tomada pela chefia, tal como foi contado por
Mrcio. Mas precisamos ir alm dessa rasa constatao, o que pode
nos ajudar a compreender outras tramas conflituosas e transformaes nesse meio. Para isso precisamos lidar com a resposta que o
jovem teria dado ao chefe quanto preocupao manifestada:
E eu falei assim: olha, acontecer, acontece. Mas como eu no
tenho tempo nem de ficar ouvindo o que eles falam, o que
eles fazem. Eu nem sei quem , mas acontece sim. E inclusive falou que se eu sentisse realmente prejudicado para eu
passar para ele tomar providncias. Quanto a isso, no tenho
o que reclamar do meu chefe, porque ele supercabea.83
177
178
179
O valor dado realizao nas relaes de trabalho aparece fortemente marcado na experincia de Mrcio. Seria bastante fcil acreditarmos precisamente que o modo como se lana no ambiente de
trabalho no frigorfico estaria descolado de um mbito maior, no caso
a vivncia social. Somos levados, no entorno dos sentidos em disputa evidenciados pelo dilogo, a pensar naqueles elementos constitutivos da experincia da alteridade gay no confronto com interesses
mais amplos e manifestos do capital, no caso em questo as formas
de explorao do trabalho implantadas nesse espao de incremento
na rea de agroindustrializao. Assim como a pensar nos contornos assimilados pela promessa de emancipao individual, alm de
outras expectativas que se engendram no horizonte de possibilidades para esses jovens trabalhadores. O entrevistado sintetiza:
como se fosse assim: quando eu me assumi, tomei uma
posio. como se, assim, algumas portas se fechassem
180
86 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.
esto em causa. Na prtica, a narrativa evidencia com alguma clareza, nesse campo das relaes de trabalho e em toda a sua extenso
consciente imbricada ao social, o quanto os valores e sentimentos
no so fixos, mas profundamente negociados a partir do conjunto
de correlaes de foras.
E, talvez, at mais que isso. No caso em evidncia, a posio de
Mrcio no se assegura num sentimento transversal marcado por
suposta maior visibilidade e aceitao gay no Brasil nos tempos que
correm. Assim como no se revela uma desdenhosa conscincia das
condies concretas de competitividade marcadas pelas novas relaes de trabalho que se constituam em seu meio.
Ao trazer para o centro da discusso uma suposta dvida apresentada pelo outro colega de trabalho, tambm gay, quanto assuno de sua orientao, o relato revigora nossa percepo em relao
vitalidade social presente na narrativa individual marcada na experincia intrincada por relaes de alteridade:
182
183
A solido parece contada como um sentimento poderosamente atuante quando se refere a sua vida em Assis Chateaubriand.
Em outros termos, Mrcio infere no ter encontrado uma morada
[to] amiga assim. Para se divertir entre os pares, precisa ir l em
Cascavel. No sei se voc sabe, tem uma boate GLS e a gente acos184
90 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.
91 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.
185
186
Fazer uma faculdade a distncia ou na rea de interesse ou atuao da empresa pode soar, primeira vista, como uma assimilao ao mundo da precariedade e uma internalizao da dominao
levada a efeito. Todavia, a partir do tecido tramado pela experincia
compartilhada por Mrcio em suas duas entrevistas, cabe pensar
com maior profundidade quanto aos sentidos implcitos de quebra
de paradigmas que sua trajetria imprime nesse lugar.
Do campo cidade, da cidade ao trabalho, de uma cidade a outra,
o relato de Mrcio mostrou-se construo narrativa consciente e
atenta ao campo de escolhas e determinaes moldadas pelas situaes concretas como protagonista de sua prpria histria em tenso
com o preconceito e a opresso vividos. Porm driblados com uma
coragem existencial toda particular. Em grande parte, demonstra
possuir fora negociadora compreensiva muito evidente.
A partir desses universos sociais trazidos cena reflexiva, viabilizados pela histria oral, no podemos, e muito menos devemos,
falar de um mundo gay j constitudo e cristalizado. Assim como
no podemos afirmar que a agroindustrializao foi conhecida total95 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.
187
Referncias
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1988.
188
TE
PAR
IV
PARTE IV
HISTRIA ORAL, DESIGUALDADES
E MOVIMENTOS SOCIAIS
Arnold van Gennep (1969), Les rites de passage. Para ele, trata-se
de um momento no qual fronteiras so ultrapassadas ou eliminadas, o que foi observado durante os ritos de tribos africanas. Os ritos
de passagem foram recorrentemente interpretados a partir dos anos
de 1960.97 Victor Turner (1974), a partir de Gennep, reelaborou o
conceito de liminaridade, apresentando elementos da situao liminar (homogeneidade, igualdade, anonmia, ausncia de propriedade
material). Trata-se de um tempo e um espao social que indicam
nivelamento social dos sujeitos em processos de passagem/travessia. Desenvolveu, tambm, o conceito de communitas: [...] uma
comunidade, ou mesmo uma comunho de indivduos iguais que se
submetem em conjunto autoridade geral dos ancios (TURNER,
1974, p. 119).
Na releitura de entrevistas, de documentos do MST e de trabalhos
de pesquisadores publicados, visualizei um lado positivo da liminaridade. Trata-se de um vivido paradoxal, ambguo e positivo no
fazer-se da experincia em um tempo e espao individual e coletivo.
Configura, pois, uma situao de transitoriedade de quem experimenta a excluso social, designa sujeitos que travam lutas cotidianamente para suas aes manterem coerncia com o que acreditam
e para suas escolhas morais no os impossibilitarem de continuar
a viver e a interagir com o(s) outro(s). Liminares so desordeiros/
rebeldes pessoas que vivem na fronteira e, nessa condio de contradies sociais, questionam sobre sua situao de vida, identificam
interesses comuns e se colocam em movimento, confrontando uma
ordem e um sistema social.
A liminaridade, no sentido aqui empregado, remete a tempos e a
espaos marcados pela pobreza, violncia fsica e simblica, assistncia precria ou inexistncia do atendimento sade, no existncia
da escola ou acesso a ela. Tambm se refere a sujeitos que ocupam
um espao e produzem um tempo de recriao de relaes de vizi97 Sobre a origem do termo liminaridade e sua reinterpretao no campo da antropologia, ver
DaMatta (2000).
193
Terra de direitos
Os acampamentos e as ocupaes so as principais formas de
luta do MST. O acampamento pode ocorrer s margens de uma rodovia, na propriedade improdutiva ocupada, ou, ainda, numa praa de
pedgio de rodovia, na cidade, geralmente em frente ao Incra ou
sede do governo estadual. Em qualquer um dos exemplos, trata-se de
terras de direito pblico: pblicas porque so do Estado ou de responsabilidade dele, pblicas para a manifestao do povo no Estado
de Direito ou, ento, porque no cumprem com a sua funo social
e, portanto, o Estado tem um dever constitucional, o de desapropri-las a servio do bem comum.
s margens das rodovias, os conjuntos de barracos de lonas pretas (algumas vezes amarelas), as bandeiras vermelhas e, no raras
vezes, cruzes expem a excluso social, engendrada pela explorao e pela expropriao promovidas pelo capital, dando visibilidade a um sujeito coletivo que no pode ser ignorado, o MST.
Evidenciam seu contedo: a luta pelo direito ao trabalho, contra
a terra improdutiva a servio da especulao imobiliria, contra o
agronegcio financiado pelo Estado e fornecedor de gros para o
mercado internacional, contra tambm aos cultivos geneticamente
modificados, denominados de transgnicos. A luta pela desapropriao de propriedades a servio do capital, para torn-las produtoras de alimentos soberania alimentar. E, na mesma medida,
por uma educao bsica para o campo, conjugada organizao
de cooperativas, para viabilizar a permanncia dos agricultores, e
continuidade da ao coletiva no Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra.
No obstante tenham sido agregadas novas bandeiras de luta
atuao do MST, a ocupao, prtica coletiva de rompimento
das cercas/divisas de propriedades privadas, tem se mantido como
forma principal de enfrentamento e de resistncia coletiva. A ocupao, seguida ou no da formao de acampamento, apesar das dife195
renas de forma e contedo, historicamente foi o meio encontrado
em 1978, no Sudoeste do Paran, um grupo de trabalhadores, inicialmente pequeno, com o apoio dos sindicatos autnticos e da Comisso Pastoral da Terra (CPT), a dialogar. Perguntavam-se acerca de
suas condies de vida e sobre a concentrao fundiria. Sabiam
que havia terras ociosas e terras griladas. Antnio Ribas98 relata que
[...] o banco estava tomando a terra. A gente trabalhava e pagava a
metade da renda pro patro. Assim, concluram: A terra est a, ns
temos direito, mas como vamos chegar? Vamos ocupar. Venceram o
medo e praticaram a primeira ocupao no Paran. E, nos anos que
se seguiram, eles multiplicaram essa ao.
A produo dessa noo de direito terra no se fez sem um
fundamento histrico, nem sem valores morais. As trajetrias de
vida dos acampados e dos assentados revelam mltiplas histrias de
expropriao e de explorao. A memria dessas experincias lhes
possibilitou confrontar as condies de sua existncia com o que
justo e injusto. Os valores morais permitiram que a igualdade formal
de sujeitos diferentes, expressa na reciprocidade contratual do trabalho, fosse questionada na vida cotidiana pelo narrador, a exemplo de
muitos outros na mesma condio, desnudando a desigualdade real
de tal relao de troca. Na explicitao da contradio entre igualdade
formal e desigualdade real, inerente forma contratual, engendrou-se
a resistncia individual e coletiva.
Nesse processo surgiu o MST, em janeiro de 1984, na cidade de
Cascavel, estado do Paran, que, contrapondo-se aos projetos de
colonizao e ao Regime Militar, definiu os acampamentos e as ocupaes como nica soluo para a conquista da terra e para a continuidade da luta pela reforma agrria.
Vidas em acampamentos
A vida em um acampamento, em meio s incertezas, ao medo e
s dificuldades, marcada pela luta coletiva por um pedao de cho
98 Entrevista realizada com Antnio Ribas, em Lindoeste, em fevereiro de 1999, por Davi F.
Schreiner.
197
198
Foi sofrido, mas para mim foi uma escola. O que eu aprendi
no acampamento no aprendi na escola, o estudo era pouco
pra mim. O acampamento foi uma coisa organizada, isso a
foi uma escola, foi sofrido mais eu gostei. No acampamento
199
A partir de 1998, os despejos foram executados pela polcia militar, a polcia de capuz, atrelada partidariamente e ideologicamente
bancada ruralista e UDR, e tambm pelas milcias privadas. Relatos de homens, de mulheres e de crianas evidenciam a barbrie na
prtica padronizada do aparato policial. Nos despejos, mulheres
e crianas foram separadas dos homens. Homens e mulheres, sob
ameaas, foram interrogados e identificados. Trabalhadores algemados, obrigados a deitar no cho, sofreram algum tipo de violncia
fsica e simblica.
Por ocasio do Tribunal Internacional dos Crimes do Latifndio
e da Poltica Governamental de Violao dos Direitos Humanos no
Paran, organizados por diversas entidades que lutam pela reforma
agrria e pelos direitos humanos, sob a presidncia do jurista Hlio
Bicudo, ex-membro da Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Valdecir Bordignon, em depoimento, relatou que, no
dia 29 de abril de 1999, foi prestar apoio a um acampamento na
fazenda Santa Maria, no Noroeste do estado. Durante a madrugada,
cerca de trinta policiais com metralhadoras, fuzis e ces, invadiram o
acampamento. A inteno dos policiais era clara: identificar as lideranas e fazer o despejo das famlias.
A polcia j tinha uma lista de nomes de pessoas que poderiam
estar no acampamento. De posse dela, comeou a identific-las e
retir-las dentre as famlias agrupadas pelos policiais no centro do
acampamento. Bordignon foi uma delas. O comandante da operao
ordenou que ele levantasse, fosse algemado e levado para o estbulo,
onde havia vrios tanques de gua, bebedouros de gado.
200
Diante dessa configurao, a forma acampamento nos faz refletir sobre a construo de um mundo vivido na precariedade, que
politiza a experincia social, criando estratgias variadas para tornar
possvel a cooperao na luta e as condies para a sobrevivncia. O
vivido na precariedade remete liminaridade, ao residual, para usar
uma expresso de Henri Lefevre (1983), quilo que no capturado
pelas prticas de subordinao poltica e de dominao.
Nesse sentido, o acampamento na terra ocupada demarca uma
frao do territrio conquistada do capital e transformada em territorialidade camponesa. O conjunto dos barracos, as bandeiras, as
cruzes, a organizao em comisses e as roas comunitrias so elementos que apontam para a existncia de uma comunidade de interesses na luta pela permanncia na terra.
As inmeras experincias de acampamento ensejaram a elaborao de regras para a organizao da vida cotidiana. Nos acampamentos, os sem-terra organizam a vida orientando-se por normas
aprovadas em assembleias da executiva nacional e por regras que
eles prprios criam no fazer-se das experincias cotidianas. Nesse
sentido, observou-se que: (i) as diretrizes orientadoras gerais da executiva nacional preservam a autonomia de organizao prpria de
cada acampamento; (ii) a organicidade interna dos acampados deve
garantir a democracia de base (decises coletivas e diviso das tarefas); (iii) a vida cotidiana deve pautar-se pela observncia de valores
de uma economia moral comunitria - trata-se de prticas de costume, definidas em lei, e valores prprios da tradio cultural comunitria camponesa, como a solidariedade e a partilha, e se observa,
tambm, que doaes pecunirias devem ser aplicadas para o bem
de todas as famlias; enfim, introduz-se a a ideia de bens coletivos,
no seu conjunto, tendo em vista a luta poltica e o enfrentamento
com os jagunos e a polcia, em que a normatizao da vida cotidiana nos acampamentos marca um regime de guerra (MST, 1988).
Nesse contexto, os acampados organizam-se em comisses
(setores), que variam de acampamento para acampamento, mas, em 205
100 Entrevista realizada com Ftima Kellmer, no Assentamento Vitria, Lindoeste, em maro
de 1999, por Davi F. Schreiner.
207
212
Muitos militantes, cheios de vontade, mas carentes de pedagogia e mtodo, acabaram por transformar metas polticas
em regras imutveis para serem aplicadas a qualquer custo
[...] Vejamos: quem no contribui com o MST est fora;
quem no estiver na cooperativa no est com o MST; quem
no tem ncleos organizados no serve ao projeto; e, geralmente, rotulamos as pessoas que no concordam conosco
de vrios apelidos: lmpen, oportunistas, etc. Desta forma,
mais fcil expurgar algum do assentamento, ou do MST,
que trabalhar com as diferenas, j que as diferenas nos
obrigam a ter pacincia, a ser menos autoritrios e mais
pedagogos, nos obrigam a pensar e elaborar estratgias de
tempo prolongado e no resolver no imediato. (MST, 2001).
216
217
Com Eder Sader (1988) compartilhamos a ideia de que necessrio atender s mudanas que se operam nos comportamentos das
classes populares, revisando certas afirmaes coloquiais e levianas
que transferem linearmente pautas de comportamento da classe
dominante, como, por exemplo, a identificao com os novos processos produtivos, o consumo, o disciplinamento e a renncia de
direitos; valorizando experincias que tm sido invisibilizadas,
como procurei fazer ao investigar o coletivo de chilenos exilados no
nordeste de Chubut, ou, por exemplo, como fez o historiador Pablo
Pozzi, ao abordar outros problemas, em sua emblemtica obra Oposicin obrera a la dictadura (2008). H comportamentos de resistncia os quais somente podemos acessar e reconhecer trabalhando a
partir de uma histria construda de baixo e que atenda a subjetividades dinmicas.
Na Amrica Latina, o tema dos novos movimentos apareceu
nos anos 1980, mas devem se distinguir claramente dois momentos. O primeiro, registrado no final das ditaduras e na transio s
democracias, que em geral contou com uma composio plural em
termos de classe. Nesse momento, foi distintiva uma reivindicao
especfica por pertencimento etrio, de gnero ou em defesa do meio
ambiente, de direitos humanos ou por demandas de locus de vida,
como sustenta Ansaldi. O MST se transforma numa exceo, devido
sua composio (camponeses), suas reivindicaes e sua resistncia ao neoliberalismo. Num segundo momento, destacam-se os
movimentos sociais que combinam um duplo pertencimento, classista e tnico, e que se associam resistncia globalizao neoliberal. O ponto de partida foi o levante indgena-campons do Equador,
que se estendeu pelo mundo andino, Bolvia, Mxico e Guatemala.
Na Argentina, h alguns desses movimentos, basicamente urbanos
(piqueteros, fbricas recuperadas, assembleias de vizinhos), que
tambm se opuseram e se opem ao neoliberalismo. O particular
desse segundo momento que ele tem posto em discusso a legi220 timidade dos regimes democrticos, interceptando e at colidindo
com o Estado.
Ao trabalhar nos interstcios da relao entre histria e memria, estamos particularmente atentos s modificaes que sofrem as
representaes e os imaginrios bem como aos roteiros que as distintas organizaes e coletivos vo estruturando para dar conta de
suas trajetrias. Cremos que, ao revisar a emergncia dos novos
movimentos, podemos rastrear comportamentos que do conta de
identidades forjadas num largo processo de luta. Como entender e
explicar a emergncia do movimento de povoadores na rea perifrica da Grande Santiago sem considerar a experincia do poder
popular? Que dizer do Movimento Piquetero na Argentina que tem
recuperado prticas operrias do final do sculo XIX e comeo do
XX? Como entender o comportamento dos camponeses bolivianos
sem considerar a luta dos mineiros e a experincia da Revoluo de
1952? Que dizer da produo intelectual de mulheres ex-combatentes da rea Ixil na Guatemala?
Devemos trabalhar, como salientei no incio do artigo, numa
tenso entre as condies objetivas e uma anlise especfica dos
imaginrios, revisando sua construo identitria, que a que os
singulariza e que permite que sejam reconhecidos. Muitas vezes o
teor da reivindicao, o especfico daquilo que requerem, a suposta
espontaneidade que lhes atribuda pelos meios de comunicao,
ou inclusive pela represso que atribuem, impede uma problematizao ajustada. Por exemplo, o enfrentamento de uma comunidade
mapuche em Chubut com um conhecido apresentador de televiso,
Marcelo Tinelli, ou em outro caso com os empresrios italianos
Benetton, no d conta de reivindicaes de autodeterminao e
aes de resistncia frente ao Estado provincial e nacional, que no
somente remetem ao ato genocida levado adiante por Julio A. Roca,
como tambm a uma experincia urbana que tem mobilizado, com
forte carter etrio/tnico/de classe, uma liderana jovem e decidida.
Proponho que pensemos as distintas identidades, como diz
Rojas-Mix (2006), de um modo dinmico, apelando ao gerndio
221
sendo e no de modo essencialista.
social. Luisa Passerini (1978) e Ronald Grele (1991), quando abordaram a subjetividade e a qualidade textual do testemunho oral, destacaram justamente que se trata de uma oportunidade nica.
Bem, necessrio distinguir o que e como ocorreu do que se
narrou, j que uma questo metodolgica que inclusive pode ser
complexificada, ao cruzarmos a fonte oral com fontes mais tradicionais, escritas ou materiais. Isso implica que no podemos ignorar
que se trata de narraes institudas e que, portanto, sua verificabilidade merece o mesmo tipo de reparo. A informao documental a
que recorremos no nos servir para provar a exatido da fonte oral,
mas para interpret-la essencialmente.
Nosso objetivo contribuir para revelar subjetividades, para que
no fiquem presas ao passado, repetindo o trauma de modo circular, mas que se inscrevam numa perspectiva identitria histrica e
inclusiva.
Parafraseando Pablo Pozzi (2008, p. 8), pretendemos no
somente ser historiadores orais, mas historiadores, tratando de utilizar todas as fontes possveis. Somente um mau historiador utilizaria apenas uma parte do corpus documental o qual poderia acessar
(POZZI, 2008, p. 8).
Seguindo Thompson, entendemos que histria uma forma
dentro da qual lutamos, e muitos tm lutado antes de ns, buscando
no um saber indolente, mas marcas e traos para compreender
nosso presente e construir um futuro mais justo. Assim, se trabalhamos com histria oral, porque ela nos permite compreender e
documentar melhor temas bsicos, possibilitando conhecer e entender como experimentaram e manejaram distintas circunstncias os
sujeitos nos quais centramos nossa anlise: redescobrimos subjetividades, valorizamos os testemunhos e os transformamos em fontes
essenciais para a histria recente.
Atendendo s particularidades de nossa tarefa, devemos destacar que a construo no implica somente a informao documental,
224 mas as mesmas fontes, o que revela questes metodolgicas impor-
228
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230
232
103 Manteve-se o anonimato dos entrevistados por uma deciso exclusiva do autor. As entrevistas foram realizadas para uma tese, por equipes de pesquisa que coordenam o Centro
Cultural de Cooperao e por pesquisadores do Programa de Histria Oral, da Faculdade
de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires (UBA).
233
descobrimos que no se trata somente de dar conta e assumir as diferenas e de reverter as desigualdades, mas tambm necessrio que
as diferenas no se tornem desigualdades. Dito de outra maneira,
que o necessrio processo de assumir e sublinhar as diferenas possibilite a construo da igualdade.
Essa igualdade pode ser entendida tambm como a construo
do que comum, de espaos e relaes sociais comuns que permitam estender um projeto coletivo para alterar o estado de coisas existente em uma situao determinada.
A construo de comunidade, ento, permite que a diversidade
que caracteriza o territrio, as diferentes situaes individuais e a
violncia que domina a vida do bairro se transformem em capacidade criadora ao organizar-se em um projeto coletivo, comunitrio.
Se o poder (o Estado, o capital) separa, diferencia, classifica, divide,
as organizaes que investigamos se propem a reunir, integrar,
compor, igualar. Os vnculos baseados na alegria e na afetividade
desempenham um papel importante nesses processos.
Chegamos assim, a partir do caminho aberto pelo trabalho com
a histria oral nas organizaes sociais, a dar conta dos processos de
constituio de redes de relaes sociais comunitrias situadas territorialmente. Essas redes organizativas (intersubjetivas, interpessoais) mantm, a partir do territorial, um sentido amplo, um nvel de
organizao do bairro mnimo, no visvel, que pode se condensar
ou se concentrar (fazer-se visvel) em determinados momentos nos
quais confluem outros fatores.
As redes que analisamos esto constitudas por relaes de confiana, solidariedade e afinidade diversas como: parentesco, vizinhana, amizade, f religiosa, convices polticas, entre outras. E
esto sustentadas em prticas que podem ser mais ou menos visveis
a partir do exterior delas mesmas. Desta maneira, as redes territoriais mantm a organizao mais alm das condies polticas conjunturais imediatas ou em paralelo a elas.
234
Certamente o processo de constituio dessas redes est deter-
minado por elementos prprios da dinmica local, que, por sua vez,
possuem caractersticas especficas do sistema social dominante
(capitalismo e suas mudanas a partir de 1968-1973). Podemos
conceituar isto defendendo que a organizao social algo permanente, constitudo a partir dos territrios, e que o que caracteriza um
momento histrico determinado o modo pelo qual se (re)constitui ou (re)significa essa organizao e a sua qualidade, que pode ser
difusa ou concentrada.
Se identificarmos essas redes de relaes sociais como a trama
a partir da qual se constituem no unicamente as organizaes
sociais, o valor da histria oral se amplia, j que ela uma via de
ingresso privilegiada para poder apreender suas caractersticas e
dinmicas fundamentais.
Deslocamo-nos assim a outra dimenso significativa para compreender as configuraes polticas e subjetivas das organizaes
sociais: o processo de politizao dos espaos cotidianos. Uma poltica do e a partir do cotidiano que torna polticas (comuns, pblicas106 e conflitivas107) relaes e dimenses que antes permaneciam
no mbito do privado ou do ntimo.
Portanto, ao nos aproximarmos das prticas cotidianas que os
sujeitos sociais manifestam em diferentes espaos (lugares de produo, mbitos territoriais, familiares), a metodologia da histria oral
nos convida a explorar uma ampla gama de possibilidades para compreender os processos de ruptura e continuidade que protagonizam.
Os valores, saberes, linguagens, prticas, experincias e tradies
que se transmitem de gerao em gerao so possveis de perceber
atravs dos testemunhos orais dos protagonistas que produzem sua
experincia de vida. Assim, a entrevista, entendida como espao de
inter-relao, dilogo e intercmbio, permite-nos aproximarmos dos
106 Em nossa anlise, seguindo Virno (2002), pblico no sinnimo de estatal. Esse autor
concebe os espaos pblicos no estatais como mbitos de desdobramento do comum em
forma de autogesto, a partir das organizaes sociais, sem depender necessariamente do
Estado.
107 Conflito entendido como expresso poltica do antagonismo social.
235
lidades singulares: o investigador, o qual indaga acerca de um processo, organizao ou acontecimento histrico, e o sujeito, o qual
protagoniza o processo que o primeiro quer conhecer. Revisitamos
assim o problema da diferena e da desigualdade. O intercmbio que
constitui a entrevista expressa essa relao dialgica que, ainda que
diferente, no tem por que ser desigual.
Avanando, o dilogo que buscamos tambm uma interpelao. E essa interpelao, se a assumimos, nos leva a redefinir e
repensar nosso trabalho. Provoca-nos a reconfigurar nossos conceitos e reformular as perspectivas a partir das quais estudamos
alguma problemtica. Estimula-nos a sermos criativos e inovar no
processo de construo do conhecimento. No repetir frmulas e
tampouco nos repetirmos, seno repensar constantemente sobre
nossa tarefa.
Dessa maneira, a histria oral permite questionar a possibilidade
de construir um conhecimento absoluto e objetivo, incorporando
ao processo de investigao tanto a voz do investigador como a do
sujeito entrevistado.
Sem desconhecer a utilidade de outras fontes, como as documentais, que muitas vezes temos que analisar em relao com os testemunhos orais, consideramos que, para realizar uma histria integral
das organizaes sociais contemporneas (poderamos estender isso
e dizer uma histria integral das classes subalternas, dos trabalhadores, dos produtores), necessitamos valer-nos das fontes orais.
Dizemos que no descartamos para nada o trabalho de investigao histrica a partir de fontes documentais. Ao contrrio, em
nosso trabalho analisamos tambm os textos produzidos pelas organizaes sociais, assim como os documentos oficiais e jornalsticos.
Apresentam-se, assim, pelo menos quatro opes de trabalho
com documentos: os produzidos pelas organizaes sociais; as fontes
jornalsticas; os documentos oficiais; e os documentos escritos por
outras organizaes vinculadas de alguma maneira problemtica
237
que estudamos.
238
108 Pablo Pozzi (2008, p. 7) explica dizendo que se no fosse pela histria oral em geral,
tudo o que podemos fazer ver os oprimidos atravs das fontes gestadas pelos opressores.
Matizamos essa afirmao ao considerar, em nosso trabalho, documentos produzidos por
organizaes sociais, de onde tambm expressam suas vozes.
109 Por razes de espao, no discutiremos mais a fundo as implicncias do trabalho com
fontes orais neste ponto. Para exemplificar: Necoechea e Pozzi (2008); Benadiba e Plotinsky
(2005) e Necoechea (2006). Este ltimo trabalha a sugesto de noo de ponto de vista para
as anlises dos testemunhos a partir da histria oral.
242
110 Entrevista realizada com M. (mulher, 69 anos, protagonista de ocupaes e assentamentos), em Solano, em 2005, por Pablo Vommaro.
111 Entrevista realizada com I. (mulher, 50 anos, membro das CEBs e colaboradora da Igreja
de N. S. de Itati, durante as ocupaes de 1981, habitante do bairro velho de La Paz), em
Solano, em 2006, por Pablo Vommaro.
112 Entrevista com I. Ver nota 112.
243
TE
PAR
PARTE V
MIGRAO, MEMRIA E IDENTIDADE
O inverso tambm ocorria, pois ele via pouco sentido nas experincias da infncia e da juventude dos americanos (COSER, 1992, p.
21-22). Ele estava excludo da memria coletiva dos americanos, e
eles, da memria coletiva de Coser.
Desde os estudos fundamentais de Halbwachs, o conceito de
memria coletiva foi tornado preciso, especialmente por meio de
trabalhos de psicologia cognitiva e social (Bruner, Assmann e Welzer), bem como por meio das novas neurocincias (Schacter). Alm
disso, h vrios estudos empricos relacionados a determinadas
memrias coletivas, na maioria dos casos, memrias coletivas nacionais, como, por exemplo, a memria alem com relao ao Terceiro
Reich (Rosenthal, Welzer, dentre outros) ou a memria canadense
com relao I Guerra Mundial (Vance). No obstante, o fenmeno
fundamental descrito por Coser em sua obra foi muito pouco investigado at o momento: quando pessoas migram, elas no perdem
apenas a sua integrao memria coletiva de seu pas de origem; ao
mesmo tempo, elas adentram um ambiente cuja memria coletiva
lhes estranha. Essa dupla alienao e desorientao, muitas vezes,
descrita por migrantes atravs de uma imagem que expressa o fato
de se sentirem perdidos entre dois mundos ou at mesmo dilacerados. Isso ocorre comumente quando os imigrantes no tm a possibilidade de manter por anos e dcadas um contato com a sua antiga
ptria, de modo que eles logo ficam excludos da memria coletiva
de seu pas de origem. Muitos dos alemes por mim entrevistados,
os quais emigraram para os Estados Unidos da Amrica aps a II
Guerra Mundial, em sua maior parte, voltaram Alemanha pela primeira vez apenas 15, 20 ou 30 anos depois de sua emigrao. A maioria viu isso, na verdade, como uma bela experincia, porm, quase
todos tambm disseram que a Alemanha havia se tornado estranha
para eles, que ela no era mais a sua ptria, que eles no mais poderiam ou quereriam viver l (HARZIG, 1998; ANTOR; BROWN;
CONSIDINE, 2003, p. 3).
248
Diferentemente da lngua e das formas de convivncia e de comportamento externas, os imigrantes no conseguem apreender a
memria coletiva de sua nova ptria. De vez em quando, eles tero
uma ideia dessa memria coletiva, mas para eles, na maioria dos
casos, ela ser acessvel apenas num plano intelectual, mas no num
plano emocional. Em geral, a maioria dos imigrantes se integra econmica e socialmente de uma forma relativamente rpida e bem-sucedida, mesmo que muitas vezes isso exija grandes sacrifcios,
sobretudo nos anos iniciais. Mas, at agora, ainda no foi extensamente explorado at que ponto e de que maneira ocorre uma integrao s memrias coletivas do pas anfitrio.
Eu advogo a insero estratgica do conceito de memria coletiva na pesquisa sobre experincias de migrao. O conceito de
memria coletiva pode dar respostas a dois conjuntos de questes.
Investigar migrao e memria oferece, em primeiro lugar, respostas
a questes sobre identidade e, em segundo lugar, respostas a questes a respeito de poder social. Vamos primeiramente questo da
identidade. Com relao a esse assunto, no devemos nos restringir
identidade do indivduo, tampouco identidade de um grupo ou
subgrupo tnico (por exemplo, de um grupo poltico que se constitui
enquanto pertena tnica). Ao menos no Canad, essas focalizaes
da identidade individual e da identidade de grupos tnicos parecem
ser predominantes. A maioria dos estudos histricos trata de grupos
tnicos isolados, ao passo que a maioria dos estudos sociolgicos distingue grupos tnicos, dentre outros motivos, pelo fato de o governo
federal canadense orientar as estatsticas federais com base nesses
estudos. Em estudos menores, muitas vezes tambm se pesquisa a
histria de uma organizao tnica, seja ela a histria de uma igreja,
de um banco cooperativo ou de uma sociedade de canto. Todas essas
pesquisas certamente s teriam a ganhar se utilizassem as entrevistas
de histria oral no somente como meros conjuntos de fatos, mas
tambm inquirindo como a memria constituda e como cons249
truda de forma narrativa, em conjunto com o entrevistador.
Em pesquisas sobre identidade de grupos, no devemos negligenciar principalmente a identidade da famlia. Desse modo, podemos
desenvolver estudos fascinantes, que so dependentes da composio
da famlia (por exemplo, com relao sua origem tnica). Vejamos
dois breves exemplos no estudo sobre a Vergangenheitsbewltigung113
em famlias alems, em que se abrem duas grandes lacunas. Em primeiro lugar, at agora foram entrevistadas famlias alems apenas na
Alemanha, mas no no exterior. Em segundo lugar, na Alemanha so
indagadas apenas famlias alems; por outro lado, famlias com um
histrico de migrao so sistematicamente (inconscientemente?)
excludas (por exemplo, WELZER, 2002). Uma exceo o trabalho
de Viola Georgi, que inquiriu jovens alemes com um histrico de
migrao sobre a forma como so confrontados e como lidam com
o passado alemo nazista no que diz respeito s aulas e s excurses
de turma. Dessa forma, percebe-se que para esses jovens, provindos
de famlias de imigrantes, ocupar-se com o passado desempenha um
papel central no julgamento da identidade e da pertena na sociedade alem com origem na imigrao (GEORGI, 2003, p. 11). Por
outro lado, com relao a imigrantes alemes no Canad, percebe-se que a ocupao com o passado nazista desempenha um papel
igualmente importante e que ela influencia bastante decisivamente a
identidade canadense j h vrias geraes (FREUND, 2006; 2009).
O segundo grupo importante, que no pode ser negligenciado
no que se refere aos migrantes, a nao. No caso dos migrantes, isso
, evidentemente, no mnimo duplamente complicado, visto que se
tem pelo menos duas naes nas quais os migrantes desenvolvem a
sua identidade. Essas identidades esto intrinsecamente vinculadas
e em comunicao constante, por vezes, inconscientemente. Na tentativa de se situar e de se posicionar na memria coletiva da famlia
e da nao, ou seja, de modo a construir a sua identidade, os indivduos no so, todavia, autrquicos. Eles se referem a esboos coleti250
113 N. E.: Vergangenheitsbewltigung: as diversas formas pelas quais a sociedade alem lidou
politicamente com o passado nacional-socialista depois da II Guerra Mundial.
das guerras, e sempre houve imigrantes que defenderam veementemente os direitos de outros. Mas, em princpio, esses mitos histricos
nacionais, que constituem parte da memria coletiva, socialmente
apresentam um efeito de organizao.
Os imigrantes precisam, afinal, se integrar a essas grandes narrativas. Isso um processo simples se eles acreditam nos ideais dessas
narrativas mestras, como, por exemplo, no princpio norteador do
liberalismo, de que toda pessoa responsvel pela prpria felicidade,
e tambm na liberdade democrtica, que muitos imigrantes no
conheciam ou conheciam apenas de forma restrita em seus pases
de origem. Conforme podemos ver, os imigrantes alemes do ps-guerra que vieram para o Canad tm dificuldades para se integrar
ao mito histrico dominante, segundo o qual a nao canadense foi
constituda nos campos de batalha das guerras mundiais. De forma
semelhante, difcil para alguns ex-cidados da Repblica Democrtica Alem acreditar que eles teriam simplesmente desperdiado
quarenta anos de suas vidas em uma ditadura de injustia, que eles
s iriam provar dos frutos da democracia e do capitalismo na velhice
e que eles ainda teriam que ter demonstrado gratido incondicional por isso. Ainda em 2009, ano em que foram comemorados os
vinte anos de queda do muro e os sessenta anos de Repblica Federal
da Alemanha, e no qual quarenta anos de Repblica Democrtica
Alem foram simplesmente silenciados, esses migrantes involuntrios, que, ao amanhecer, acordaram em um novo Estado, sem ter
dado um passo e sem ter atravessado nenhuma fronteira, tm dificuldade para se adaptar nova memria coletiva. Coser (1992, p.
22) observou uma alienao semelhante entre colegas soviticos no
comeo dos anos 1990, eles se sentiam coagidos a esfolar as suas
memrias coletivas como uma pele e a reconstruir um conjunto
completamente diferente de memrias coletivas.
Todavia, ns no devemos ver essas experincias de migrao
somente como uma histria da perda e da alienao. Trata-se tam252 bm de uma convergncia de diferentes memrias coletivas, que
253
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WELZER, Harald et al. Opa war kein nazi: nationalsozialismus und holocaust im
familiengedchtnis. Frankfurt: M. Fischer, 2002.
mente, exercendo atividades que no exigiam qualificao profissional, principalmente em indstrias, restaurantes e construo civil.
A maioria tinha documentos de identidade falsos de algum pas da
Unio Europeia (com ou sem o nome verdadeiro), outros permaneceram no pas como turista. A minoria dos entrevistados possua a
cidadania austraca. No caso da ustria, houve um fluxo migratrio
de brasileiros do Oeste do Paran a partir do incio dos anos 2000,
por causa da atuao de mediadores dessa regio que providenciavam papis falsos e indicavam empregos (sobre esse fluxo migratrio, a disputa entre brasileiros no mercado de trabalho na ustria
e suas experincias de fronteira, sejam jurdicas, socioeconmicas,
culturais, ver Frotscher (2008a)).
Nesses dois casos de migrao temporria, pudemos observar
que alguns entrevistados, depois da primeira estadia naqueles pases,
iniciaram uma migrao pendular. A diferena entre os dois fluxos
migratrios se deve menos ao pas de destino e mais ao tipo de estadia, legal ou ilegal, e de ocupao laboral.
As narrativas orais e visuais desses entrevistados configuram
olhares sobre a alteridade, os quais fixam fronteiras entre o l e o
aqui. So olhares de emigrantes provindos de um pas emergente e
que se dirigiram a pases europeus por conta das diferenas socioeconmicas e do desejo de acmulo rpido de capital para melhor viver
financeiramente no Brasil aps o retorno. Eles migram, retornam e
migram novamente dependendo das situaes e possibilidades nos
pases de origem e de destino. Trata-se de correntes migratrias causadas no somente pelas desigualdades socioeconmicas vividas no
capitalismo globalizado contemporneo, motivaes pessoais tambm constituem um push factor relevante.
Discutiremos o tema das migraes internacionais a partir da
perspectiva dos estudos culturais dedicados questo da identidade e da diferena. As fotografias e os relatos orais e escritos de
migrantes podem configurar imagens da alteridade e, assim, concomitantemente, expressar uma autorrepresentao de si e da cultura 261
A fotografia abaixo, por exemplo, foi escolhida por Pedro Bernard116 para compor seu lbum de fotografias disponvel no Orkut, a
rede de relacionamentos da internet mais popular no Brasil na poca
da entrevista.
263
117 Alm de usar linguagem coloquial, comum nos e-mails, chats e redes de relacionamento
na internet, Pedro troca a letra z pela s na conjugao do verbo fazer, o que revela seu
grau de escolarizao.
cidade do estado de Vorarlberg, ustria. Logo abandonou seu projeto de ser jogador de futebol profissional e conseguiu, com a ajuda
do tio, um emprego como ajudante numa fbrica, com o propsito
mais realista de economizar dinheiro. No momento da entrevista,
ainda trabalhava naquela fbrica. Dois anos mais tarde, voltou ao
Brasil, onde atualmente ajuda a administrar o comrcio da famlia.
O propsito de acumular bens acentuado na entrevista atravs
da repetio insistente da palavra objetivo para expressar sua permanncia naquele pas. Tal fato coincide com a associao sugerida
pela fotografia:
Mas que nem eu falo, as pessoas que to l, to com um
objetivo, normalmente to com um objetivo. Tambm tem
brasileiros que gostam e ficam por l mesmo. Isso difcil,
mas tambm tem. Mas normalmente vai com um objetivo. Se
tu tem um objetivo, se tu quer, tu consegue. assim mesmo,
se tu pe um objetivo na tua vida... seno a vida no teria
graa, n. uma experincia mpar, voc t saindo fora do
pas, ento tu coloca um objetivo, se tu no coloca um objetivo, a tua vida tambm no vai ter graa assim, n. O pessoal t trabalhando e tal, mas voc no vai vai ter lazer e tal,
n. Mas tu tem que colocar um objetivo, se tu no coloca um
objetivo, ento da tu fica... que nem eu falo, se tu no colocar
um objetivo: ah, vamos economizar e tal pra investir l.118
267
269
Sua e tinham a possibilidade de se formar num curso profissionalizante. Esses fatos so representados como uma grande vantagem em
relao ao programa atual.
Mrcio, outro entrevistado do mesmo distrito e que viveu a
primeira experincia na Sua nos anos 1980, escolheu, para nossa
pesquisa, uma fotografia muito singular, que retrata uma declarao
de amor esposa escrita na neve num dia de inverno: [nome da
esposa], eu amo voc. Como a fotografia de Pedro, com a paisagem
dos Alpes ao fundo, a de Mrcio sugere a presena do migrante no
exterior em razo da neve. Mas, diferente daquela foto, esta foi batida
com uma cmera analgica e foi meticulosamente planejada. Depois
de escrever na neve, em grandes letras, sua declarao de amor, Mrcio subiu num silo da propriedade onde trabalhava e tirou a fotografia. muito simblica a escolha da neve, algo espetacular para um
brasileiro, ainda mais para expressar a saudade da esposa deixada no
Brasil.
Nesse caso, a fotografia a materializao dos sentimentos mais
ntimos do migrante. No apenas o objeto fotografado, mas a prpria produo da fotografia e seu envio pelo correio expressa a saudade da esposa e tambm do filho recm-nascido. O complexo ato
fotogrfico foi um meio de lidar com essa situao difcil. Esse um
exemplo de como as fotografias podem ser mais do que suportes da
memria social. Podem tambm ser um meio utilizado para manter relacionamentos durante a estadia no exterior e, assim, procurar
ligar o presente ao futuro.
As fotografias podem ser tambm utilizadas para afirmar identidades grupais. Durante o trabalho de campo, pudemos adentrar
no espao domstico de algumas famlias de estagirios e assim
captar outras funes sociais de fotografias de migrantes. Algumas
famlias guardam e mostram fotografias dos parentes no exterior a
outras pessoas, incluindo a entrevistadora, como forma de mostrar
o sucesso do migrante e, assim, da prpria famlia. Frequentemente
270 so dispostas em porta-retratos na sala de estar. Dessa forma, pre-
271
272
123 Fotografias tambm so usadas por entrevistados para expressar visualmente um sentimento de pertencimento nacional, como pudemos constatar em investigao em andamento sobre imigrantes alemes no Brasil.
124 Grande parte dos emigrantes brasileiros provinha do estado do Paran. O alagamento
causado pela construo da usina hidreltrica de Itaipu, a mecanizao da produo de
Sandro retornou sozinho para o Brasil, rea de fronteira com Paraguai e Argentina, em 2002, iniciando logo a seguir uma histria de
migraes pendulares para a ustria.
Entre as fotos mais significativas de sua experincia neste ltimo
pas, destacamos, abaixo, uma foto em particular.
A fotografia mostra uma cena referente ao sistema de sade austraco que impressionou o entrevistado: a chegada de um helicptero
para atender a um paciente que havia acabado de sofrer um infarto.
A cena ocorreu na pousada situada na propriedade na qual o entrevistado/fotgrafo trabalhava.
A imagem faz mais do que documentar uma cena espetacular.
Ela estabelece um dilogo com a falta de assistncia mdica cotidiana sentida e relatada pelo entrevistado durante os anos vividos no
Paraguai. Os significados daquele evento para quem decidiu abandosoja e a consequente concentrao de terras fizeram com que muitos pequenos agricultores
procurassem terras mais baratas no Paraguai.
273
nar esse pas exatamente por conta dos problemas sociais e econmicos so assim expressos na entrevista, ao interpretar a fotografia: se
tivesse uma ambulncia no local, sabe, com UTI, uma coisa para ser
transportado, [mas] no tem nada. uma vila [...].125
Outros trechos oferecem mais elementos para compreender os
motivos da fotografia, os significados atribudos a ela e o porqu
de t-la escolhido para mostrar entrevistadora. Alm de ser uma
prova das melhores condies de vida na ustria, serviu para justificar a si mesmo e entrevistadora a sua sada do Paraguai e suas
constantes migraes a trabalho para aquele pas, mesmo aps seu
casamento no Brasil e o nascimento de seu filho. Para ele, o trabalho
no exterior uma forma mais rpida de acumular dinheiro para a
famlia.
Interessante salientar que meses depois da entrevista, quando
Sandro afirmou no querer mais retornar Europa em razo da
famlia e da constituio de uma pequena empresa, tornou a emigrar,
dessa vez para a Sua. Isso mostra o carter voltil da permanncia
num lugar, prprio das migraes pendulares, vividas por sujeitos
que negociam cotidianamente as possibilidades de vida e de trabalho, conforme as situaes socioeconmicas do pas de origem e de
destino.
A fotografia e o relato oral anteriormente analisados nos lembram que todos os discursos so localizados, como acentua Stuart
Hall (1996, p. 68). Segundo o mesmo autor: Todos ns escrevemos e
falamos desde um lugar e um tempo particulares, desde uma histria
e uma cultura que nos so especficas. O que dizemos est sempre
em contexto, posicionado (HALL, 1996, p. 68). A produo de um
discurso da diferena, nesse caso expresso visualmente e oralmente,
processa-se em dilogo com as experincias vividas no Paraguai e no
Brasil, marcadas pela falta e/ou precariedade de assistncia mdica
e hospitalar e dificuldades de transporte. Aquela imagem, por274
125 Entrevista com Sandro Baier (nome fictcio), em Marechal Cndido Rondon, em 2008,
por Mri Frotscher.
das na construo de um conhecimento sobre o outro (BITTENCOURT, 1998, p. 200-201). A anlise do processo de elaborao da
fotografia nos permite entender o olhar, a viso de mundo e o universo cultural do seu autor. Ela permite captar no apenas a mensagem literal, mas tambm a mensagem cultural da fotografia.
O relato oral pode nos auxiliar a captar a mensagem cultural da
fotografia. Nesse sentido, a perspectiva da histria oral, preocupada
com a construo e a atribuio de significados aos fatos (PORTELLI, 1996), se aproxima da pesquisa baseada em imagens, preocupada no unicamente com o seu carter documentrio, mas tambm
com o processo imagtico e a atribuio de significados produzidos
pelos atores sociais.
O helicptero que aparece na fotografia anterior um smbolo
das carncias vividas pelo migrante no Paraguai. A foto demonstra
seu descontentamento em relao sua vida nesse pas e tambm no
Brasil. Suas experincias nos trs pases o fazem comparar os modos
de trabalho e de vida e apontar suas diferenas em diversos momentos da entrevista. A escolha da fotografia demonstra como esses pensamentos o acompanhavam h muito tempo e como o abandono da
vida no Paraguai ainda o comovia. As diferenas socioeconmicas
tambm entre Brasil e ustria constituem a razo de suas migraes
pendulares e a fotografia, assim, seria a prova de que as condies
materiais de vida seriam melhores l do que aqui.
A estadia no exterior resulta na produo de artefatos visuais que
tm, para a maioria dos migrantes, estatuto de realidade fotografada,
mesmo que a imagem fotogrfica produza uma sntese entre o evento
representado e as interpretaes construdas sobre ele (BITTENCOURT, 1998, p. 199). Por conta disso, as fotografias nos parecem
fontes significativas para investigaes preocupadas em discutir as
representaes sociais do outro e de si em movimentos migratrios.
Mesmo que a maioria dos entrevistados que trabalharam na
agropecuria na Europa provenha de uma regio onde predominam
276 atividades do mesmo ramo, todos mencionaram diferenas entre
126 Entrevista realizada com Edilmo Bahr (nome fictcio), em Marechal Cndido Rondon, em
2007, por Mri Frotscher.
127 A produo agrcola no Oeste do Paran foi mecanizada a partir dos anos 1970 e, desde
ento, a regio absorve novas tecnologias e uma das maiores produtoras de soja e milho
do pas.
279
Esse trecho demonstra como a situao de ilegalidade lhe causou dilemas morais. Todos os migrantes entrevistados sofreram ao
viver longe da famlia, mas os que estavam em situao legal tinham
a possibilidade de se integrar sem receios sociedade de destino.
Sobretudo no caso dos estagirios, o programa visa estimular sua
integrao famlia dos empregadores.129
No caso de muitos imigrantes ilegais entrevistados, entretanto,
essa compensao permanece bloqueada ou dificultada. Para Valdir,
128 Entrevista realizada com Valdir Alberto Becker (nome fictcio), em Marechal Cndido
Rondon, em 2007, por Mri Frotscher.
129 No programa da Agroimpuls, por exemplo, os estagirios devem morar com as famlias
dos proprietrios, o que os ajuda de certa maneira a estabelecer contatos mais intensivos ou
mesmo amizades. Alguns dos ex-patres chegaram a visit-los depois no Brasil. Um dos
ex-estagirios casou com uma sua e Mrcio, entrevistado citado anteriormente, convidou
um amigo suo para ser padrinho de seu filho.
281
por exemplo, um contato mais prximo e aberto com seu patro lhe
parecia impossvel por causa dos papis forjados. Era complicado,
para ele, lidar com esse conflito moral insolvel, o que tornou sua
estadia difcil, ainda mais aps ter constatado a reao do patro ao
ser descoberto pela polcia. Na retrospectiva, durante a entrevista,
o constrangimento em no poder revelar sua situao lhe comove
emocionalmente mais do que o relato de sua extradio.130
Na prtica da histria oral, assumimos que o passado sempre
reinterpretado no momento da entrevista. Durante o processo de
rememorao, a reconstruo dos fatos combina passado, memria e interpretao, os quais sempre se encontram entrelaados.
Constatao similar pode ser considerada na interpretao de relatos baseados em fotografias.
Momentos marcantes no passado muitas vezes so fixados
atravs de fotografias. Elas podem confirmar ou mesmo construir
memrias individuais e coletivas. Fotografias podem constituir a
base para determinadas interpretaes do passado, o que no quer
dizer que elas no possam ser ressignificadas mais tarde. No caso
acima, deve-se distinguir dois diferentes momentos. O primeiro est
no passado, quando a fotografia foi tirada. Naquela ocasio, o motivo
da fotografia foi associado a uma suposta diferena cultural e nacional. O segundo o momento da entrevista, quando Valdir explica e
reinterpreta a situao fotografada. Nessa oportunidade, ele justifica
no ter revelado sua situao ilegal ao patro em razo de seu firme
propsito de ganhar dinheiro a qualquer custo, um objetivo que ele
relativiza durante o resto da entrevista. Na poca da entrevista, a distncia temporal e geogrfica o faz observar a situao a partir de
282
130 O principal objetivo dos imigrantes ilegais entrevistados era acumular dinheiro para
investir no Brasil. Valdir, por exemplo, vendeu um terreno para poder pagar os papis falsos, cerca de R$ 3.800,00, e os custos da viagem. Trabalhadores ilegais so mais frequentemente e facilmente passveis de explorao. So em geral mal pagos e no tm chance de se
defender perante o empregador. Muitas vezes no fcil reobter o dinheiro investido. Uma
extradio muito cara e para aqueles que no trabalharam o suficiente para pagar os custos
do voo e dos papis, a runa financeira. Alm disso, a extradio pode causar problemas
legais, os quais bloqueiam o retorno por um determinado perodo.
131 As deportaes foram noticiadas em uma srie de reportagens de um jornal local (O PRESENTE, 2006).
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TE
PAR
VI
PARTE VI
HISTRIA ORAL, ENSINO E DIFERENA
293
295
truio da cobertura vegetal, como tambm as formas de apropriao da terra, o trabalho e a produo.
D. Ivone, 84 anos na poca da entrevista, moradora do distrito do Borman, em Guaraniau, relatou as vrias migraes que
viveu. Primeiro veio de Santa Catarina para o Paran com o marido
e dois filhos, obtiveram uma posse, venderam, compraram outras
terras, ocuparam reas na regio, em diversos municpios. Foram
para Rondnia, voltaram. Hoje, viva e aposentada, ela vive num
pequeno pedao de cho, agora escriturado (segundo ela, comprado
do governo). Pelo seu relato, o que a atraiu, e ao marido, foi justamente a facilidade para adquirir terra boa e abundante. Assim D.
Ivone relata essa atrao:
A onda da febre do ouro, todo mundo vinha pro serto pra fazer
fortuna, l a terra era muito picada, ns tava na colnia e, da, pra
c diz que no precisava nem limpar a roa, plantava um milho e
botava os porco, no precisava nem colher nem limpar a roa, nada,
ento deu uma febre do ouro, que eu digo, ns viemos, todo mundo
pra c e ns viemos junto.134
bastante significativa a construo da imagem a febre do
ouro, lembrando a conquista do oeste dos filmes norte-americanos.
Decorre disso a sua autorrepresentao como pioneiro, desbravador,
civilizador, dentro da qual no faltavam as referncias aos ndios,
como se ver adiante. A facilidade de criar porcos no sistema de safra
(criao solta) organizava as relaes das pessoas do lugar. E era
fcil, ento, abrir uma posse:
Ah, entre os povo do lugar, o povo indicava, , l tem um
lugar muito bom, e ia l e tomava posse por conta, no
tinha no ningum morando, e tinha ndio, muito ndio, a
gente tem muito medo dos ndio, eles roubavam criana e
da meu marido cuidava da safra e eu comecei dar aula, ai,
todo mundo era analfabeto, ningum sabia nada, e da eu
298
134 Entrevista realizada com D. Ivone, no Distrito de Borman, Guaraniau, Paran, em 2008,
por Geni Rosa Duarte, Paulo Jos Koling e Nilceu J. Deitos.
299
A sua chegada, entretanto, foi anterior prpria organizao
e loteamento do lugar. A memria junta os perodos antes da formao do ncleo urbano com os posteriores, e com o presente, no qual
figura com fora o processo de concentrao fundiria:
Plantava feijo, arroz, milho, lidava muito com safra que se
falava antigamente, hoje no se fala mais... roava o mato e
da soltava a porcada pra engordar, era a maior fonte de...
300
136 Entrevista realizada com Agostinho, no Distrito de Guapor, Guaraniau, em 2008, por
Paulo Jos Koling.
Da depois quando foi criado o patrimnio137 que foi loteado, da foi feito lotes pequenos e comeou a vir muita gente
do Norte e comearam a diversificar a plantao e comearam a plantar o algodo, que no conhecia at ento, da
bastante anos foi plantado o algodo, como eu posso falar...
Fazia azeite l... hortel, aqui foi cultivado o hortel tambm e da isso ficou at a dcada de [19]70, caf tambm,
at setenta e poucos e o povo comeou a vender as chcaras
pequenas, os fazendeiros foram entrando e comprando e
esse povo foi dispersando e hoje ns fiamos em bem pouca
gente.138
No sem conflitos, decorrentes inclusive das lealdades polticas que iam se formando no processo de constituio dos diferentes ncleos urbanos na regio, desagregando o sistema de respeito
aos contratos de posse, muitas vezes feitos sem documento preliminar nenhum: um vendia, ia embora, o outro dizia que era dono
e pronto!. A disputa por terras possibilitava expulsar os posseiros:
uns coitadinhos!, segundo o Sr. Agostinho, inclusive valendo-se de
outros expedientes:
Vamos fazer uma comparao bem simples: eu tinha uma
posse, ele tinha outra e ela outra, da voc ia l no Estado e
documentava essa terra, pegava um ttulo a troca de arru137 Patrimnio era o pequeno ncleo urbano formado.
138 Entrevista com Agostinho. Ver nota 138.
139 Entrevista com Agostinho. Ver nota 138.
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302
A narrativa que se repete sempre de um tempo passado de afluncia. Como veio para a regio quando esta se encontrava em uma
situao mais estruturada, a viso que ele apresenta do local de
uma totalidade a partir da constituio de uma amostra de todos os
estados brasileiros, estabelecida sem conflitos, numa perspectiva de
evoluo e progresso:
Plantavam milho, arroz, feijo. No incio ento, aqueles
nordestinos montavam ento aqueles barraquinho feito de
madeira rodeado de eucalipto, de palmito e com a cobertura com a folha de palmito tambm. Mais tarde j foram
fazendo uma casinha melhor, da veio a primeira serraria
do Guapor. Tinha muita madeira aqui, tinha muita peroba,
cedro, canela, tudo que tipo de madeira tinha aqui e muito
palmito... [...] Ento foi esse o comeo do Guapor, foi ento
a partir de [19]65, 66, 68, 70.142
Fica claro, portanto, que as formas de ocupao da regio mesclam no s diferentes migraes, mas estas ocorriam segundo um
processo heterogneo de apropriao da terra, em que convivem
diferentes formas de entender o seu significado. A privatizao da
terra, desse modo, conviveu de forma conflituosa ou no com
outras formas nas quais ela era entendida no como mercadoria,
mas amalgamada ao indivduo, como lugar de trabalho e vivncia.
Esse processo no se relacionava ao modo como se dava a posse da
terra, mas s formas de sua utilizao e nesse sentido a organizao comunitria dos pequenos proprietrios, no necessariamente
141 Entrevista realizada com Arthur, no Distrito de Guapor, Guaraniau, Paran, em 2008,
por Geni Rosa Duarte e Paulo Jos Koling.
142 Entrevista com Arthur. Ver nota 139.
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304
Para concluir depois, melancolicamente, ao se referir a uma situao que no parece ter volta:
E no vai voltar mais, por que? Porque o fazendeiro no vai
vender cinco alqueire pra ningum mais, n? [risos] No vai
mais dividir no! Ento vai ser daqui pra pior, quem pensa
num terreno que no segurar ou enjoar de ter, cai na mo do
fazendeiro da... cada vez fica pior, n?145
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308
146 A seleo das escolas foi realizada pela Diretora Geral de Educao do Ministrio de Educao de Santa F e pela equipe de capacitadoras ProAbi em consenso com os diretores e
docentes dos estabelecimentos que intervieram no projeto.
uma vez que a ideia era tomar esses eixos selecionados, analis-los
terica e praticamente e o mais importante da proposta aplicar
no processo de ensino-aprendizagem o mtodo da pesquisa-ao
(eixo transversal do projeto) como uma indagao sistemtica e
autocrtica do agir docente na sala de aula (ver Fig. 6.).
313
incorporando saberes cientficos, propor problemas que os incentivem a buscar explicaes mais complexas, intercambiar pontos de
vista; em sntese, atingir um pensamento crtico-reflexivo em relao
ao seu entorno sociocultural.
A importncia do conhecimento desse processo de aprendizagem por parte do docente no aborgene torna-se indispensvel
para compreender a contemporaneidade, explicar o passado e poder
reconhecer a diversidade cultural em relao aos diferentes espaos
intertnicos que so vivenciados dentro da escola.
Dificuldades e aes superadoras no ensino
das cincias sociais
Acreditamos que o ensino das cincias sociais na escola visa a
que os alunos, a partir de sua aprendizagem, consigam explicar a realidade social na qual vivem, mas para alcanar esse objetivo devem
conseguir construir o conceito de processo histrico totalidade
complexa e dinmica na qual se desenvolvem as aes passadas e
presentes dos homens , em que os fatos se sucedem devido passagem do tempo; isso requer o trabalho com a noo de temporalidade,
mudana social e multicausalidade dos acontecimentos histricos. A
partir desse ponto de vista, os fatos histricos so compreendidos e
so explicados como parte de um processo histrico que transcorre
atravs do tempo e durante o qual se organizam e se transformam as
sociedades.
O reconhecimento da diversidade cultural no mbito da escola
comporta o desafio de integr-la sociedade global. Em uma etapa
de nossa histria, negou-se o direito diferena e de fato as aes
polticas tenderam uniformidade; atualmente, o risco de reproduzir e acentuar a diferena sem a possibilidade de mtuo enriquecimento, o que geraria uma nao fragmentada.
Aceitar a diversidade cultural implica estar e relacionar-se com o
mundo a partir de diferentes ngulos, a partir de diferentes perspec318
tivas, e essas outras perspectivas ampliam e enriquecem a sua pr-
perspectiva daqueles que viveram os processos a partir da experincia concreta, enquanto os enfoques tradicionais distinguem lapsos
de tempo em funo de certos fatos convencionais, ideologicamente
determinados, que tm pouca relao com a vida cotidiana dos grupos sociais.
A histria oral deixou de constituir algo mais que um procedimento de aprovisionamento de informaes para transformar-se num mtodo amplamente utilizado pelos cientistas sociais. No
caso especfico dessa metodologia de investigao em contextos
de diversidade cultural, sua utilizao na aula duplamente enriquecedora, devido ao fato de que os documentos com que contamos para reconstruir a histria dos Povos Originrios no levam
em conta a cosmoviso dessas etnias e, ao trabalhar com relatos
que so contribuio de membros pertencentes comunidade
dos alunos, estaremos afirmando sua autoestima e sua identidade.
A oficina de histria oral d resposta a uma necessidade
de sistematizar e reelaborar os contedos curriculares trabalhados
pelos professores na sala de aula. A utilizao da histria oral atravs
do trabalho de campo e dos mtodos prprios dessa disciplina permitiu aos professores:
- aplicar a investigao histria na escola;
- elaborar material didtico para trabalhar nas aulas;
- adquirir conhecimento do outro diante da necessidade de
trabalhar conscientemente na diversidade;
- facilitar a busca de um cdigo comum entre docentes e alunos que partem dos saberes prprios, hipteses e conceitos
prvios para o desenvolvimento da aprendizagem;
- proporcionar um enfoque ativo e no passivo da histria ao
trabalhar com pessoas pertencentes comunidade, conhecidas dos alunos.
O trabalho no ProAbi apontou em primeiro lugar para o
resgate da histria oral das etnias de cada escola, sejam elas aborge321
148 Reproduzimos os termos utilizados nas instituies escolares para nomear os diferentes
grupos tnicos da regio.
Referncias
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Sobre os autores
Alexander Freund
Professor titular da ctedra German-Canadian Studies e professor associado de Histria da Universidade de Winnipeg. Vice-presidente da Associao de Histria Oral do Canad e vice-presidente
da Associao de Estudos tnicos do Canad. Membro da diretoria
da Associao Internacional de Histria Oral IOHA (2008-2010).
Autor do livro Aufbrche nach dem Zusammenbruch: Die deutsche
Nordamerikaauswanderung nach dem Zweiten Weltkrieg (Gttingen:
V&R unipress, 2004) e de diversos artigos e captulos de memrias
sobre o nacional-socialismo entre imigrantes alemes na Amrica do
Norte. Atualmente trabalha na preparao do livro Encounters: dealing with the past abroad. Germans, jews, and the nazi past in North
America, 1945-2005 e de uma coletnea sobre histria oral e fotografia, em conjunto com Alistair Thomson.
Antonio Torres Montenegro
Professor do Departamento de Histria e do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco.
Ps-doutor pela State University of New York Stony Brook (2000),
doutor em Histria pela Universidade Estadual de Campinas (1991).
Presidente da Associao Brasileira de Histria Oral ABHO (19961998). Membro da diretoria da Associao Internacional de Histria
Oral IOHA (2008-2010). Autor dos livros Histria, metodologia,
memria (So Paulo: Contexto, 2010) e Histria oral e memria: a
cultura popular revisitada (So Paulo: Contexto, 1992).
Benito Bisso Schmidt
Doutor em Histria Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas, professor do Departamento e do Programa de
327
Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande
Marcos Alvito
Doutor em Cincia Social (Antropologia Social) pela Universidade de So Paulo (1998). Professor associado da Universidade
Federal Fluminense. Autor do livro As cores de Acari (Rio de Janeiro: 329
333
Formato
15,5 x 22 cm
Tipografia
Leftist Mono Sans
Minion Pro
Papel
Capa em Triplex 250g/m2
Miolo em Offset 75g/m2