História Oral, Desigualdades e Diferenças

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HISTRIA ORAL, DESIGUALDADES E DIFERENAS

HISTRIA ORAL, DESIGUALDADES E DIFERENAS

Organizao

Antonio Torres Montenegro


Geni Rosa Duarte
Marcos F. Freire Montysuma
Mri Frotscher
Robson Laverdi

REcife | 2012

Universidade Federal de Pernambuco


Reitor: Prof.Ansio Brasileiro de Freitas Dourado
Vice-Reitor: Prof. Slvio Romero Marques
Diretora da Editora UFPE: Prof Maria Jos de Matos Luna
Comisso Editorial
Presidente: Prof Maria Jos de Matos Luna
Titulares: Ana Maria de Barros, Alberto Galvo de Moura Filho, Alice Mirian
Happ Botler, Antonio Motta, Helena Lcia Augusto Chaves, Liana Cristina da
Costa Cirne Lins, Ricardo Bastos Cavalcante Prudncio, Roglia Herculano Pinto,
Rogrio Luiz Covaleski, Snia Souza Melo Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lcia
Menezes Lima.
Suplentes: Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria
Figueiroa Barretto, Eduardo Antnio Guimares Tavares, Ester Calland de Souza
Rosa, Geraldo Antnio Simes Galindo, Maria do Carmo de Barros Pimentel,
Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana Cavani Rosas.
Editores Executivos: Afonso Henrique Sobreira de Oliveirae Suzana Cavani Rosas
Editora associada

ASSOCIAO BRASILEIRA
DAS EDITORAS UNIVERSITRIAS

FICHA CATALOGRFICA

SUMRIO
APRESENTAO........................................................................... 7
PARTE I - FONTES ORAIS E O OFCIO DO HISTORIADOR
1. Historiografia, diversidade e histria oral: questes metodolgicas ......... 15
Regina Beatriz Guimares Neto
2. Travessias e desafos.................................................................................. 38
Antonio Torres Montenegro
3. Subjetividade e histria oral: possveis interaes na autorizao
de cesso de uso de relatos............................................................................. 55
Marcos Fbio Freire Montysuma
4. Memria e politizao em testemunhos de operrios militantes
argentinos (1955-1976).................................................................................. 69
Pablo Alejandro Pozzi

PARTE II - HISTRIA ORAL, MEMRIA, SUBJETIVIDADE


1. Do que falamos quando empregamos o termo subjetividade
na prtica da histria oral?............................................................................. 83
Benito Bisso Schmidt
2. Memria e subjetividade em relatos de imigrantes portugueses................... 97
Roseli Boschilia .

PARTE III - HISTRIA ORAL, CIDADES E DIFERENA


1. sombra do jequitib................................................................................ 117
Marcos Alvito
2. O outro, esse incmodo sedutor................................................................. 140
Luiz Felipe Falco
3. Cidade, trabalho e homossexualidades vividas: aproximaes
reflexivas sobre a alteridade gay via histria oral.......................................... 162
Robson Laverdi

PARTE IV - HISTRIA ORAL, DESIGUALDADES


E MOVIMENTOS SOCIAIS
1. Dinmicas coletivas e novas subjetividades: significados e conflitos
nas relaes sociais no MST.......................................................................... 191
Davi Flix Schreiner
2. Desigualdades e diferenas: histria oral e movimentos sociais............... 218
Mnica Gatica
3. Que a diferena no se converta em desigualdade: organizaes sociais
e histria oral na Argentina contempornea .................................................. 231
Pablo Ariel Vommaro

PARTE V - MIGRAO, MEMRIA E IDENTIDADE


1. Migrao, memria e identidade: relatos de histria oral
no contexto de histrias familiares e nacionais.............................................. 247
Alexander Freund
2. Imagens de si e do outro: interpretao de fotografias e fontes
orais em estudos migratrios......................................................................... 259
Mri Frotscher

PARTE VI - HISTRIA ORAL, ENSINO E DIFERENA


1. Entre o que era e o que poderia ter sido: a histria oral e os desafios
para pensar o passado..................................................................................... 289
Geni Rosa Duarte
2. Projeto aborgene para a integrao ProAbi: a histria oral como
ferramenta de reflexo na ao ..................................................................... 309
Bibiana Andrea Pivetta

APRESENTAO

A organizao deste livro parte de uma premissa importante, a


de que as realidades contemporneas tm desafiado historiadores e
cientistas sociais, particularmente aqueles envolvidos com metodologias de trabalho de campo com a histria oral, a pensarem com mais
ateno na profcua e virtuosa vitalidade das dinmicas socioculturais
de experimentao das desigualdades, das diferenas e das alteridades
como fazeres histricos, permeados por sentidos contra-hegemnicos.
A delimitao em torno do eixo temtico Histria oral, desigualdades
e diferenas nasceu da proposio de discutir, de maneira mais articulada, as dimenses multirrelacionais de compreenso da oralidade
e das fontes orais como um todo, no interior e a partir da riqueza de
processos de produo da cultura e da vida social.
Embora o eixo temtico deste livro tenha sido inicialmente provocado pela realizao do V Encontro Regional Sul de Histria Oral,
que aconteceu de 25 a 28 de maio de 2009, na Universidade Estadual
do Oeste do Paran (UNIOESTE), campus de Marechal Cndido
Rondon, justo sublinhar que ele no se restringe a uma memria dos trabalhos apresentados. Muito mais que isso, esta publicao
resulta de um esforo de cooperao dialgica de carter interinstitucional que os autores vm cultivando nos ltimos anos. Parte
consubstancial do contedo reflete muito mais a energia reflexiva de
troca de experincias mobilizadas em prol da histria oral no mbito
desses intercmbios do que propriamente uma acomodao finalizada diante da concretizao desse evento.
No mbito profcuo dessa articulao que permanece ativada
entre seus pesquisadores, busca-se, assim, chamar a ateno para
a importncia da problematizao daquelas noes ainda persistentes as quais se baseiam em antigas dicotomias tpicas, centro
versus margem e/ou estrutura versus experincia, que por sua vez 7

acabam, ainda que paradoxalmente, por hegemonizar sentidos hierarquizadores combatidos pela prtica historiogrfica. Ao tomar esse
caminho, assume-se o desafio de pensar historicamente as formas
ambguas e contraditrias de representao do real, assim como as
faces mltiplas de traduo sociocultural das diferenas e dos conflitos vividos, especialmente aqueles situados em espaos entre fronteiras culturais e nacionais. Em torno dessas preocupaes, o livro
articula discusses temticas atentas a essas perspectivas e abordagens multidisciplinares e a outras experimentaes metodolgicas
da prxis da histria oral.
No primeiro ncleo de textos, Fontes orais e o ofcio do historiador, so discutidos desafios na produo e interpretao de fontes
orais, a partir de trajetrias de pesquisa e de reflexes sobre o ofcio
do historiador. Em seu artigo, Regina Guimares Neto (UFPE) discute terica e metodologicamente a relao entre a prtica da histria
oral, a escrita da histria e a questo da diversidade. A autora sugere
a observncia de alguns elementos durante a experincia cartogrfica
de prticas com a histria oral e a constituio do corpus documental,
assim como reflete teoricamente sobre a prtica da escrita baseada em
relatos orais. Antonio Torres Montenegro (UFPE) discute os desafios
que a opo por trabalhar com relatos orais significaram/significam
ao longo de sua prpria trajetria como historiador e a forma como
eles foram sendo enfrentados, diante dos deslocamentos causados por
uma perspectiva histrica no mais centrada no sujeito, na causalidade
e no real. Tambm a partir de seu prprio percurso de historiador,
Marcos Fbio Freire Montysuma (UFSC) procura discutir intermediaes entre pesquisa histrica baseada em histria oral e subjetividades.
Caractersticas particulares de testemunhos de integrantes da classe
operria argentina so apontadas e discutidas pelo historiador Pablo
Alejandro Pozzi (UBA). Ao levar em conta imagens, nfases e o modo
pelo qual os entrevistados estruturam suas explicaes, o autor aponta
como essas fontes orais so significativamente distintas das de sujeitos
8 provenientes de outras camadas sociais.

O ncleo temtico Histria oral, memria e subjetividades


constitudo pelas discusses dos historiadores Benito Schmidt
(UFRGS) e Roseli Boschilia (UFPR). Schmidt expe reflexes
de cunho terico sobre as relaes entre histria oral, memria e,
especialmente, as subjetividades. O autor acentua a importncia
da histria oral como meio para evidenciar o carter construdo e
histrico da subjetividade e para explicitar as prticas discursivas e
no discursivas que instituem formas determinadas de relao com
a verdade. Boschilia reflete sobre os conceitos de memria e subjetividade, tendo como fontes narrativas de imigrantes portugueses que
atualmente residem em Curitiba. O seu texto analisa o processo de
reconstruo da memria ancorada nas impresses e sentimentos
dos e/imigrantes, ou seja, nas experincias subjetivas dos narradores.
Em torno do ncleo temtico Cidades, histria oral e diferenas so organizadas as reflexes dos historiadores Luiz Felipe Falco
(UDESC), Marcos Alvito (UFF) e Robson Laverdi (UNIOESTE). A
partir de experincias concretas de pesquisa em histria oral, duas
delas em uma favela carioca e outra em uma comunidade quilombola, Alvito promove uma reflexo acerca da forma pela qual interpreta a narrativa dos entrevistados, alertando para a armadilha do
paternalismo diante das classes populares e sua suposta simplicidade. Falco, a partir de reflexes sobre a problemtica das diferenas culturais nas grandes cidades contemporneas, acentua como
a oralidade pode contribuir no sentido de se apreenderem os significados emprestados pelos habitantes s transformaes urbanas
e as impresses que esses processos imprimiram nos panoramas,
nas mentalidades, nos modos de vida e nas lembranas das pessoas comuns. Laverdi discute experincias de alteridade gay numa
pequena cidade do Oeste do Paran, em meio a transformaes econmicas pautadas pela agroindustrializao. O autor faz aproximaes reflexivas sobre a alteridade gay vivida para alm de seu aspecto
minoritrio, assumida em si mesma, pensando historicamente os
9
universos socioculturais que ela mobiliza e desloca.

No ncleo Histria oral, desigualdades e movimentos sociais,


os historiadores Mnica Gatica (UNPSJB/Trelew), Pablo Ariel Vommaro (UBA) e Davi Flix Schreiner (UNIOESTE) discutem a histria oral como metodologia para a percepo de condies objetivas
e subjetivas em estudos sobre movimentos sociais no campo e na
cidade. Em seu artigo, Schreiner analisa a ambincia, os modos de
ver, sentir e produzir nos acampamentos rurais do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Oeste e Sudoeste do
Paran, como espaos e tempos nos quais se criam novas subjetividades. O autor mostra como as narrativas informam sobre estratgias variadas de organizao da vida cotidiana para tornar possvel
uma comunidade de iguais e, contraditoriamente, sobre prticas que
negam outras subjetividades. Gatica parte das aes de sujeitos individuais e sujeitos coletivos e das tenses entre as condies objetivas e subjetivas, rememoradas durante as entrevistas, para explicitar
as potencialidades da histria oral na percepo de temporalidades
diversas e de diferenas e desigualdades entre membros dos movimentos sociais. O texto de Vommaro busca compreender as configuraes polticas, subjetivas e produtivas das organizaes sociais
urbanas de base territorial e comunitria que surgiram na Argentina a partir do fim da dcada de 1960 e comeo dos anos 1970. O
autor defende que a histria oral no deve ser vista apenas como
uma metodologia, mas tambm como uma perspectiva que permite
indagar as problemticas e conflitos que atravessam os sujeitos dos
movimentos sociais.
O ncleo temtico Migrao, memria, identidade discutido
pelos historiadores Alexander Freund (University of Winnipeg) e
Mri Frotscher (UNIOESTE). Em seu texto, o historiador Freund
defende a insero estratgica do conceito de memria coletiva
(HALBWACHS, 1990) nas pesquisas sobre experincias de migrao atravs da histria oral. O autor salienta como os relatos orais
constituem excelentes fontes para analisar os modos pelos quais
10 imigrantes e seus descendentes lidam com as memrias coletivas do

lugar de destino. O texto de Frotscher se preocupa em apontar caminhos metodolgicos trilhados em duas pesquisas sobre migraes
internacionais contemporneas, nas quais fontes orais e fotografias
so utilizadas. A autora discute como o entrelaamento de ambos
os tipos de fontes durante o trabalho de campo e de interpretao
desses movimentos populacionais permite aprofundar a anlise de
processos de traduo cultural ou mesmo de produo do outro
em estudos migratrios.
Por tlimo, o ncleo temtico Histria oral, ensino e diferena percorre as possibilidades e experincias da histria oral em
projetos desenvolvidos na escola e a partir dela que levam em conta
a diferena, discusso conduzida pelas historiadoras Geni Rosa
Duarte (UNIOESTE) e Bibiana Andrea Pivetta (Instituto Rosario
de Investigaciones en Ciencias de la Educacin, Argentina). O texto
de Duarte reflete sobre as relaes entre o conhecimento histrico
e seu ensino e avalia o papel que a histria oral pode exercer na discusso sobre didtica da histria. A autora pleiteia a incorporao da memria no ensino de Histria, entendendo a histria oral
como meio para apreender a heterogeneidade de experincias e os
conflitos vivenciados nas relaes sociais. Pivetta discute a aplicao da metodologia da histria oral como ferramenta didtica em
contextos complexos, a partir de sua experincia com a capacitao
de educadores de escolas bilngues e interculturais de populaes
indgenas na provncia de Santa F, Argentina, com o objetivo de
elaborar materiais didticos.

11

TE

PAR

PARTE I
FONTES ORAIS E O OFCIO DO HISTORIADOR

Historiografia, diversidade e histria oral:


questes metodolgicas
Regina Beatriz Guimares Neto

A prtica da histria oral e os novos desafios1


Traando caminhos diversificados, a histria oral que no
uma disciplina, mas uma metodologia ou prtica de pesquisa
afirma-se no cenrio intelectual do Brasil, da Amrica Latina e de
outras partes do mundo. No sem controvrsias, desafia novas questes tericas e metodolgicas que so fundamentais para as anlises
acerca da produo e dos usos dos documentos e no apenas orais
no mbito da historiografia.
Enaltecida ou hostilizada, a histria oral, com muita frequncia,
vista como uma chave para o tratamento de temas contemporneos
ou da chamada histria do tempo presente e mesmo relacionada a
outras temporalidades, destacando-se os textos que se referem s tradies orais. Em todo caso, desconstruindo a ideia de chave, aborda
temas relativos ao presente dos pesquisadores (e da sua articulao
com vrias reas do conhecimento). Ainda assim, no mesmo passo,
acusada de falta de consistncia terica em face dos impasses entre
oralidade e escritura, alm de outras impropriedades apontadas,
lanando-se a ideia da sua impossibilidade. No pretendo entrar no
1 Agradeo as leituras crticas e as contribuies generosas a este texto dos estudantes de doutorado do Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal de Pernambuco; a Leny C.
Anzai, a Marcos Montysuma e a Antnio Montenegro.

15

mago dessa polmica. H em um texto de Deleuze (2006), Sobre


Nietzsche e a imagem do pensamento, fazendo referncia a Kant,
uma questo por ele apresentada que bastante oportuna para essa
discusso:
[...] no basta simplesmente dizermos que no estamos de
acordo. preciso, antes de mais nada, saber admirar; preciso
reencontrar os problemas que ele [o autor] cria, a sua maquinaria prpria. por fora da admirao que se reencontra a
verdadeira crtica. Hoje, a doena das pessoas que elas no
sabem mais admirar; ou, ento, so contra, aferem tudo
por seus parmetros, e tagarelam, e escrutam. No convm
proceder assim; preciso remontar aos problemas que so
formulados por um autor. (DELEUZE, 2006, p. 179).

Penso que esse modo de proceder nos ensina muita coisa, a mais
importante delas encontrar os problemas que so formulados por
um autor, uma obra e, por que no, um campo terico ou uma prtica metodolgica que instauram a sua maquinaria prpria no nvel
da produo. Ora, a histria que lida com relatos orais deve procurar
ampliar os aportes tericos que do amparo s discusses e sistematizaes dos procedimentos de anlise prprios ao seu uso e s suas
peculiaridades como fonte documental, sem, no entanto, submergir
em infindveis consideraes tericas. Porm, diante dos desafios
e impasses, a pergunta insistentemente retorna: quais os problemas
formulados no campo dessa prtica metodolgica que mais se tornam recorrentes? Ou como podemos pensar sobre a especificidade
de uma prtica que privilegia relatos orais apreendidos como uma
arte de dizer/arte de fazer (CERTEAU, 2000, p. 152) e os inscreve
em textos escritos?
Diante disso, torna-se importante pontuar algumas questes.
Primeiramente, importante dizer que no se trata de fazer histria
oral em oposio ao domnio escriturstico moderno; isto , no
se trata de contrapor escritura versus oralidade, mas sim de refletir
16
acerca de um tipo especial de fonte, sem entender por fonte o registro

do que j est posto, dado, no sentido de expressar outra realidade,


de pertencer a ela, o que s se pode atingir por meio de mtodos adequados. Em um artigo publicado, fiz a seguinte reflexo: necessrio reconhecer que a fonte oral no o outro da fonte escrita: fazem
parte, tanto uma quanto outra, do sistema escriturstico moderno,
operando com os mesmos cdigos de referncia cultural (sem postular uma origem nica) (GUIMARES NETO, 2006a, p. 47).
No h retorno oralidade, esta no pode ser restabelecida
como forma de comunicao privilegiada, como existe em certas
sociedades grafas e mesmo em algumas comunidades em que no
prevalece o domnio da escrita. Diferentemente da Idade Mdia, os
textos escritos, predominantemente, no so produzidos para serem
transmitidos oralmente; no so construdos para serem lidos em
voz alta: a leitura realiza-se na existncia individual e social burguesa
e toma outras formas de socializao, assim como novas apropriaes culturais se fazem presentes. Deste modo, as fontes orais de
que dispomos no devem ser tratadas como reconstituies de um
elo perdido com a oralidade o que no impede de observarmos e
retirarmos ligaes matizadas, relaes duradouras e especiais com
as tradies, sem sucumbirmos, conforme sublinham Hobsbawm e
Ranger (2008), s invenes de um passado desejado ou s identidades restitudas. Ou como sugere, ainda, Durval Albuquerque
Jnior (2007, p. 230):
O oral no deve ser oposto dicotomicamente ao escrito,
como duas realidades distintas e distantes, mas como formas plurais que se contaminam permanentemente, pois
haver sempre um trao de oralidade riscando a escritura e
as falas sempre carregaro pedaos de textos.

Se escrever , antes de tudo, produzir um texto aquilo que se


tece, como para os romanos , a operao oral (contar, falar) tambm vista como uma prtica discursiva que movimenta a mquina
produtiva da fabricao dos textos. O relato oral pode ser lido como 17

um texto em que se inscrevem desejos, normas e regras e, tambm,


apreendem-se fugas; em suma, deve ser trabalhado, tecido e passvel
de ser lido como um texto articulador de discursos. Compreendo
que, na composio narrativa, os relatos encontram-se inseridos em
uma rede discursiva, na concepo de Foucault (1986), que, sem
totaliz-los, d-lhes sentido. Assinalo, ainda, que a produo narrativa no pode prescindir de uma potica da escrita, desviando-se
tanto do descritivismo (subsumido s observaes objetivas) quanto
do subjetivismo (subsumido s associaes subjetivas),2 que operam
igualmente sem a crtica do estatuto das fontes.
Outro aspecto crucial a ser debatido o de que a histria oral
prtica de pesquisa no ressuscita vozes e que ningum est autorizado a falar por outrem e nem ao menos tem o poder de salvar o
tempo passado. O tempo reconstruo (sem postular por continuidade cronolgica), respondendo s questes contidas no presente.
Assim, os relatos orais no devem ser pensados na perspectiva de
restitu-los sua totalidade (a uma totalidade prvia ou restaurada);
so fragmentos que devem ser avaliados em sua potncia multiplicadora de criar novos significados.
Este texto parte das indagaes e dos problemas que so formulados no campo da investigao que exercita a prtica de trabalho
com as fontes orais e a narrativa que resulta dessa ao. nessa esfera
que ambiciono instigar algumas reflexes, procurando contribuir
com o debate. E para ser mais direta, desde j, acolhendo a pluralidade das leituras possveis, distancio-me de abordagens que tm a
pretenso de estabelecer as regras verdadeiras ou que reconstroem
o caminho verdadeiro, como qualquer manual tem a presuno de
induzir. Os relatos orais so apreciados tendo em vista critrios de

18

2 Sobre a questo da subjetividade, ver o instigante texto de Benito Bisso Schmidt, no Captulo 5 deste livro, Do que falamos quando empregamos o termo subjetividade na prtica
da histria oral?. Nele, o autor desenvolve uma importante reflexo sobre as relaes entre
histria oral, memria e subjetividades, atentando, sobretudo, para o uso conceitual do
termo subjetividade e suas implicaes polticas e culturais, isto , para a crtica da produo
do sujeito na sociedade moderna.

anlises com base nas suas condies de produo, meios de circulao e apropriaes diversas, interesses que envolvem tanto o entrevistador quanto o entrevistado (MONTENEGRO, 2010); suportes
materiais de inscries e transcries e outras tcnicas (ALBERTI,
2004). Insistirei muito mais, em face da complexidade apontada,
sobre as prticas de pesquisa e de escrita da histria.
De qualquer maneira, sem propugnar pela validade dos modelos e respostas acabadas, gostaria que pensssemos a histria e sua
relao com as fontes documentais (especialmente relevando o seu
estatuto discursivo e suas condies de produo), em particular,
os relatos de memria oral, como uma instigante tarefa que adentra
universos desconhecidos, de modo algum engessada em questionrios, modelos de anlise e regras estabelecidas a priori, os quais
impedem, a meu ver, o exerccio do pensamento.
Com efeito, caberia afastarmo-nos de controvrsias vazias e
estarmos atentos aos pressupostos tericos e metodolgicos relativos ao modus operandi da historiografia. Estes nos orientam a operar com quaisquer fontes histricas, sejam escritas, orais, visuais,
entre outras, observando as suas especificidades. Alis, o documento
escrito deixa de ser a referncia dominante que justifica o discurso
historiogrfico, abrindo espao a uma enorme diversidade de fontes
e testemunhos, convocados a fazerem parte de prticas autorizadas.
Essa variedade documental passa, portanto, a receber, cada vez mais,
a ateno redobrada dos historiadores, que procuram legitim-la
segundo as regras estabelecidas no campo da disciplina da histria
(CERTEAU, 1982; CHARTIER, 2007).
Porm, necessrio chamar a ateno, no mbito dos debates
metodolgicos mais atuais, para o fato de que no basta conferir
importncia e significado s fontes documentais (seu estatuto de
verdade e a sua funo de prova) ligadas aos objetos de investigao.
Deter-se em seu estudo implica perceber o que as relaciona s suas
condies de possibilidade, sem apagar o seu estatuto discursivo:
sejam sociais (onde se produziu e para quem se produziu), sejam tc- 19

nicas (tais como os cdigos, regras e convenes que as orientam),


relacionando-as s prticas culturais e s escolhas interpretativas
(APPLEBY et al., 1994). Os documentos no nascem documentos
e encontram-se marcados pelos diversos interesses que coagem as
aes sociais nos presentes dos passados, isto , no tempo em que
foram produzidos ou no tempo, conforme aponta Albuquerque
Jnior (2009), em que surgiram como discursos e pronunciamentos, em especial; e, tambm, h que se destacar, fazem parte de um
conjunto de escolhas direcionadas pelo nosso presente ao presente
daquele passado especialmente visado e estudado (VEYNE, 1983).
Portanto, os documentos encontram-se mergulhados em uma complexa teia de relaes e imbricados com ela que as sociedades
mantm com o seu passado e o seu presente, conferindo presena ao
passado ou aos passados.
Os historiadores, orientando-se pelas sensibilidades e experincias construdas, preferem falar em dilogo entre o presente e o passado, refletindo acerca das implicaes desse dilogo com a memria
e a histria.3 Portanto, o documento est imbricado com as condies e relaes que as sociedades mantm com o seu passado, conferindo presena a um passado ou aos passados.4 Segundo Antnio
Paulo Rezende:
No podemos, no entanto, dispensar esse dilogo entre
passado e presente. Ele a base da vida, da narrativa e da
constituio de memria. Sem ele, sepultaramos qualquer
reflexo sobre a histria. A memria fortalece a relao
entre as experincias e as sensibilidades construdas [...]
(REZENDE, 2010, p. 26).

20

3 Atentar para as questes que so levantadas por diversos historiadores, em especial conferir os
textos de Alberti (2004, 2008); Albuquerque Jnior (2007); Ferreira (2008); Heymann (2007);
Laverdi (2010); Montenegro (2010); Karnal e Tatsch (2009); Rezende (2010); Sarlo (2007).
4 Exemplares so as experincias de pesquisa que se desenvolvem no Brasil em diversos
campos temticos, como aqueles direcionados s questes do trabalho, memria e poltica (FROTSCHER; LAVERDI, 2009; GOMES, 2007; GUIMARES NETO, 2006a, 2006b];
JOANONI NETO, 2009); memria, relaes de gnero e histria oral (PEDRO; WOLFF,
2010; PEDRO; PEREIRA; JOFFILY, 2009); ensino da histria (FERREIRA; FRANCO,
2008), para citar apenas alguns trabalhos.

Opondo-se s generalizaes, questiona-se sobre o tempo, a


histria e a escrita, meditando acerca de um tempo presente sem
ancoragens:
Escrever histria tambm mediar temporalidades, exercer
a atividade de traduo entre naturezas, sociedades e culturas de tempos distintos. Colocados nesta terceira margem
da temporalidade, que o presente, o historiador tem a
tarefa de construir com sua narrativa uma canoa que possa
mediar, fazer se tocar as margens do passado e do futuro.
(ALBUQUERQUE JNIOR, 2007, p. 33).

com a histria ao rs do tempo, mvel, liquefeito, que a relevncia dada aos mais variados tipos de fontes orais, visuais, escritas
, em suas especificidades histricas, vem ganhando legitimidade.
Essas fontes, compreendidas como documentos, recebem hoje tratamentos inovadores, atualizados segundo normas amplamente discutidas no campo da produo historiogrfica. No caso das fontes orais
e imagens visuais, no se tem mais a ingenuidade de consider-las
testemunhos do real, elos com a realidade, captura do real, ou
at mesmo levantar questes, tais como, reviver o passado e dar
voz aos silenciados, entre tantas afirmaes do mesmo tipo. Mas,
de maneira enftica, a orientao outra, procura-se ampliar os aportes tericos que do amparo s discusses e sistematizaes dos procedimentos de anlise prprios ao seu uso e complexidade;5 valoriza-se

o
movimento ou ao dos que professam a arte de pensar acerca das
palavras, dos testemunhos,6 e segundo certos autores, observando
rastros e vestgios no tempo. Os rastros no so evidentes, como
apontam as reflexes metodolgicas de Carlo Ginzburg (2007), que
observa a opacidade do mundo, e tambm de Marc Bloch (2001), no
seu livro pstumo, em que ressalta os testemunhos involuntrios. E,
nesse aspecto, sobressaindo o historiador leitor de hierglifos, deve5 Ver entre outras contribuies: Alberti (2004; 2008); Harres (2009); Janotti (2005); Luca
(2005); Mauad (2008); Montenegro (2010); Necochea (2005).
6 Ver Delgado et al. (2009); Janotti (2010); Necoechea (2005); Sarlo (2007).

21

-se assinalar ainda que, para Bloch, a imagem do historiador deve


ser captada na oficina, lugar da prtica, do exerccio metodolgico
direcionado pela pesquisa , munido de reflexo crtica, sem a qual
nunca poder instituir problemas. Problemas criados com paixo,
no universo da imprevisibilidade das aes humanas. Nessa perspectiva, Antonio Montenegro, como historiador sensvel aos signos da
matria da histria a vida , tambm procura destituir a verdade
aprisionada em um imprio totalizador, quebrando correspondncias simplificadoras entre conceitos, palavras e o mundo material/
real. Procura situar-se no fio da navalha, para desnaturalizar o jogo
tenso da linguagem e da histria:
[...] voltamos ao comeo desse percurso, ao movimento,
impossibilidade de capturar de forma absoluta os significados; ou mesmo determin-los, mediante uma relao que
se deseja natural entre o dito e o vivido ou o que se imagina
real. Rachar as palavras, romper seus liames naturalizados e
evidentes com as coisas, com o que se denomina real. A histria como o digladiar de sentidos [...] (MONTENEGRO,
2010, p. 44).

Percorrer essas trilhas considerar as fontes e testemunhos em


sua complexidade e enfrentar novos desafios. Assim que, nas dcadas de 1970 e 1980, as transformaes no campo da disciplina da
Histria no so apenas intensas, mas desestabilizadoras de verdades e procedimentos metodolgicos, em que fonte documental e discurso passam a receber outros tratamentos e reflexes tericas. Um
salto que obriga historiadores a se desfazerem da ideia do passado
tal como foi, colado explicao histrica, prisioneiro da evidncia
das fontes. Alm disso, refora a ideia de dar seguimento incorporao/apropriao de novos espaos temticos e fontes ao territrio
da histria.
Autores como Carlo Ginzburg e Natalie Zemon Davis, que em
seus livros apresentam resultados de suas pesquisas histricas, recu22
sando dados massivos ou mtodos estatsticos, questionam e anali-

sam modos de racionalidade social. Ginzburg privilegia as formas de


apropriao de textos/livros por pessoas comuns, criticando a reificao da noo de cultura popular, e tanto ele quanto Davis procuram dar vida maneira como homens e mulheres percebem e leem/
constroem o mundo, mobilizando discursos e prticas culturais.
Nessa perspectiva, no apenas a micro-histria, em suas diversas
vertentes (REVEL, 1998), mas tambm vrios estudos e investigaes no mbito da histria social e cultural oferecem leituras para a
anlise das estratgias dos atores, destacando as interaes/vinculaes e conflitos entre indivduos, famlias e comunidades. Interaes
estas que constituem o mundo social, dando significado atuao de
homens e mulheres em contextos histricos especficos. Por outro
lado, no mesmo movimento, apresentam-se assinaladas as determinaes que controlam ou limitam as trajetrias sociais e interferem
no jogo das aes dos indivduos e comunidades, contudo, valorizando o espao das negociaes polticas e culturais (CARVALHO,
2006, 2009; REIS, 2008; VAINFAS, 2008).
Abrindo ainda mais essa senda, na esfera de outras interpretaes historiogrficas, a dcada de 1990 amplia a crtica s noes
globalizadoras, totalizantes, que enfocam as sociedades. So publicados artigos e livros que propem estudar indivduos, grupos, comunidades especficas, revelando diversas lgicas que se mesclam e/
ou convivem entre si em diferentes planos e situaes. Lgicas estas
que podem ser designadas como estilos de racionalidade (LLOYD,
1990). Essas maneiras prticas de vivenciar e pensar o mundo so
mobilizadas segundo diferentes contextos de discursos e experincias, quando os indivduos lanam mo de uma pluralidade de
possibilidades. Portanto, no h univocidade de significados nas
experincias sociais.
Ao mesmo tempo em que essas abordagens valorizam enfoques diferenciados sobretudo, quando acentuam as aes dos atores sociais e recusam projetos de uma histria global e ocupam
cada vez mais espao no campo historiogrfico, a importncia do 23

estatuto narrativo da histria vendo sendo amplamente discutida.


No se trata da histria-narrativa (descrio que coloca em cena
indivduos e acontecimentos reveladores de uma verdade primeira
ou essencial, que, quase sempre, primam pela disposio linear) ou
do retorno da narrativa (alterando perspectivas de anlise entre
acontecimentos e estruturas). A problematizao que estabelece
um novo patamar de anlise a que se posiciona diante do prprio
estatuto do conhecimento histrico. A histria pensada tambm
como texto, no entendido como a expresso tcnica de um repertrio de palavras aparentemente coerentes, dispostas a cumprir sua
misso estrita de leitura documental (descritivista), mas uma escrita
urdida com palavras que produzem novos significados, ampliando
o seu campo de inteligibilidade. Explicando e narrando aquilo que
se tece, como para os romanos (e para as rendeiras...) , produz deslocamentos semnticos, estruturando-se em relato. Este, o relato,
tributrio do valor da linguagem literria que tem como material
as palavras e suas relaes , diz respeito ao novo, ao inesperado,
mutao, inveno, como assinala Roberto Machado (2009, p.
206).
As abordagens, os procedimentos e as operaes metodolgicas
frequentemente indicam opes diversas, considerando a multiplicidade das interpretaes. E so bem-vindas, ou deveriam ser. Do
mesmo modo, a utilizao de diversos tipos de fontes documentais
(visuais, orais, escritas, entre outras) na construo propriamente
narrativa da histria prope desafios constantes. Estes instituem
paradoxos, oposies, encontros e desencontros, mas que, por isso
mesmo, abrem-se a uma mirade de dilogos, ligados estreitamente
s histrias, com as quais lemos, discutimos e analisamos as relaes
entre o presente, o passado e o futuro. nessa perspectiva que se
torna pertinente explorar a produo da escrita da histria na relao com as prticas de produo das fontes orais, revelando como as
pesquisas e anlises elaboradas carregam as marcas das experincias
24 das quais os textos so resultados.

Relatos orais e a escrita da histria


Em face dos limites para discutir este tpico em apenas uma
parte do presente texto, torna-se necessrio traar brevemente um
percurso de orientao geral. Fao duas consideraes pontuais:
uma que passa pelas prticas de pesquisa que atuam na produo
das fontes orais (como ainda de outras fontes), constituindo um possvel corpus documental; e a outra, sem propugnar pela ordem de
importncia, que avalia as prticas da escrita da histria ou das histrias, a fim de dar conta das configuraes narrativas e retricas que
orientam a construo do passado e do presente. Assim, os registros
orais, testemunhos, declaraes e pronunciamentos diversos so tratados como fontes documentais numa operao complexa que no
compreende apenas as aes de transcrio, edio, arquivamento,
entre outros procedimentos tcnico-metodolgicos (autorizados no
campo historiogrfico), mas tambm a anlise crtica das suas condies de produo e discurso. E, ainda assim, a fonte oral se constituir
documento histrico na dinmica da linguagem escrita, que configura o texto como narrativa e discurso histrico. Segundo P. Ricoeur
(2007, p. 247), a histria uma escrita, de uma ponta a outra: dos
arquivos aos textos dos historiadores, escritos, publicados, dados
a ler. Nesse movimento, em que se entrelaam pesquisa e escrita,
ainda na trilha de Ricoeur (2007), importante observar as diferenas e possveis relaes entre testemunho (com base naqueles que
obtm credibilidade) e documento (operao historiogrfica), com
os quais os historiadores iro operar segundo as regras estabelecidas em seu campo de conhecimento. Ricoeur pontua as diferenas
entre os modos de representao do passado, distinguindo o conhecimento histrico das operaes da memria (tambm no caminho
aberto por diversos autores, como Pierre Nora); e parte de estruturas
fundamentais que marcam a operao historiogrfica e o trabalho
da memria, avaliando as diferenas entre a memria/testemunho
e o documento. Para o autor, a operao historiogrfica est ligada
25
indissoluvelmente aos relatos de memria, relativa s reminiscn-

cias que tm como referncia aqueles que narram os acontecimentos


nos quais se encontram envolvidos (base fiduciria). Em espanhol,
encontramos as duas palavras que nos ajudam a diferenciar: testimonio e testigo. A memria que tem como referncia a declarao
direta de quem a d testigo, testemunho que pode ser reconhecido,
identificado. J o documento, segundo Ricoeur, a memria de ningum, a memria de todos, a memria dos tempos, a memria
dos conflitos humanos, uma espcie de testemunho-arquivo (base
indiciria). Os documentos so resultados das operaes realizadas
no campo historiogrfico, inscries que selecionamos e passamos a
considerar como documentos; de estatuto indicirio, encontram-se
em uma teia, em uma rede social e cultural, contendo vrias informaes e acontecimentos entrelaados. Assim, pode-se pensar que o
documento a apresentao/representao daquilo que se escreveu
sobre, mas aquilo que se escreveu sobre s ganha estatuto de acontecimento, importncia e significado histricos a partir do momento
em que narrado, pertencendo a outra rede discursiva. A memria-testemunho tambm tem seus elos vitais inseparveis da vida social
e cultural, histrica; tem relao direta com os testemunhos. Esse
estatuto de testemunho se baseia na confiabilidade de quem relatou,
de quem viveu, ancorando-se nas experincias vividas; j os documentos, os registros que foram selecionados como documentos,
necessitam passar pelo conjunto ou pelo crivo das regras instauradas
no campo da histria. Critrios de seleo e constituio do corpus
documental, imprescindveis ao trabalho dos historiadores, devem
ser, pois, explicitados e analisados. E, hoje, alm das operaes j
estabelecidas como crtica interna e externa anlise dos mais diversos documentos, estes so estudados averiguando-se as suas condies de possibilidade, sem apagar o seu estatuto discursivo: sejam
sociais (onde se produziu e para quem se produziu), sejam tcnicas
(tais como os cdigos, regras e convenes que as orientaram), relacionando-as s prticas culturais e s escolhasinterpretativas. Esses
26 procedimentos, ao utilizar os documentos, levam a reconhecer seu

estatuto indicirio, que os coloca em relao a uma srie de outros


documentos, de outros escritos/textos de historiadores, que tambm
iro valid-los. Porque quando se diz que as regras do fazer histria
so compartilhadas, legitima-se o dilogo e o confronto, ou seja, o
debate. O dialogo, enfim, possibilita relacionarmo-nos com outros
textos. O que confere legitimidade ao discurso do historiador o fato
de que no se fala de um lugar isolado. Dialoga-se com vrios documentos (inclusive com outros suportes materiais, como os audiovisuais, por exemplo). Os historiadores estabelecem conversaes com
os pares; e participam de uma rede de aprendizagem, de uma teia
de leituras compartilhadas que, afinal, utiliza e seleciona notas, citaes e referncias bibliogrficas bem como se reflete nelas. Com elas
constri-se ou configura-se um quadro de onde se fala e para quem
se fala. Qual o lugar institucional? Esta uma pergunta to importante para delimitar o que se chama de campo de conhecimento que
confere legitimidade ao corpus documental escolhido. Por fim, como
vrios autores chamam a ateno, sobretudo historiadores e filsofos, o nosso lao com a memria. A histria possui uma relao
fulcral com a memria, contudo, postulando uma relao de no
equivalncia memria no histria , trata-se, ento, no s de
destacar as diferenas, mas de refletir sobre as relaes entre histria
e memria, em especial, sobre a presena do passado no presente e
as expectativas do futuro.
, sobretudo, com esse corpus documental, reunido, selecionado, que se tece o texto com os relatos de memria (lembrando
que para W. Benjamin (1985): a reminiscncia que prescreve, com
rigor, o modo da textura, tessitura, do texto). No se pode perder
de vista que a histria moderna relato escrito (historiografia), o
qual articula uma prtica atenta s regras discursivas de suas fontes
documentais, relacionadas ao lugar de enunciao, como prticas
discursivas.
27

Prticas de pesquisa: a histria oral entre


relatos e cartografias
Destacarei trs aspectos para o debate crtico, em que privilegio
as anlises acerca dos relatos orais como fontes documentais para as
prticas de pesquisa e construo da histria:
1. No que tange pesquisa de campo ou produo das fontes orais considerando tanto as histrias de vida como as entrevistas temticas , creio ser fundamental operar com o caderno
de anotaes. Tal atividade deve estar de acordo com a observncia s consideraes tcnicas e de mtodo relativas produo
das entrevistas, j indicadas neste texto, incluindo a identificao
dos entrevistados e entrevistadores, condies fsicas e sociais das
entrevistas, transcries e organizao dos textos e tcnicas de
arquivamento (ALBERTI, p. 2004). O caderno de anotaes pode
ser uma ferramenta de grande auxlio. Ele se movimenta no registro do que no foi dito e tem o papel de documentar atentamente
o que no foi declarado, mas que se encontra colado s palavras,
como os silncios e os gestos que compem o conjunto dos relatos na mesma dimenso das entrevistas/testemunhos. Para Montysuma (2006), o caderno de campo valoriza a pesquisa porque
possibilita anotar as circunstncias que envolvem uma entrevista,
o que cerca o entrevistador e o entrevistado, distinguindo particularmente a pessoa que relata. Tal prtica permite relacionar as
respostas aos sinais emitidos pelo rosto, pelas mos, pela postura
corporal. Nessa trilha, considero parte fundamental do trabalho de
constituio das fontes o registro de uma experincia cartogrfica
das prticas de pesquisa com a histria oral, aquelas que inscrevem
no campo da investigao (a) os gestos, os silncios, as imagens
que se projetam das palavras, ou seja, uma linguagem inscrita no
corpo, que no se confunde ou no se reduz aos gestos e silncios
produzidos em um discurso que iguala tudo subjetividade (ou a
uma ideia equivocada de subjetividade); (b) as projees carto28
grficas desdobradas das experincias nos espaos habitados/pra-

ticados (GUIMARES NETO, 2006a; 2008); (c) as configuraes


dos diversos tempos vividos em suas mltiplas linhas que tecem
as experincias lembradas e/ou involuntrias. Torna-se importante
assinalar que a lembrana no a repetio do mesmo, ela criao no de um igual ou cpia, mas de um equivalente, que tem
por base um ponto de vista espiritual, uma imagem, voluntria ou
involuntria (DELEUZE, 1987; PROUST, 1990); ou semelhante na
perspectiva de W. Benjamin (1985).
2. O trabalho de constituio do corpus documental: seleo e
reunio das entrevistas/testemunhos: a produo do lugar socioinstitucional, indicando a trajetria da memria-testemunho (no
instante da declarao) para o estatuto de memria-arquivo. Essa
prtica marcada pela dinmica do deslocamento da fase testemunhal, do relato de memria, para o texto escrito, instituindo
outro movimento inserido em relaes diversas (as dos pesquisadores e os interesses do seu lugar socioinstitucional) em nada
neutro; considerando esse trabalho de produo documental como
um ato de inscrio no universo da escrita que produz modificaes importantes (no se entendendo a escrita como o outro da
oralidade).
3. O entrecruzamento com outras colees documentais exige
tambm dilogos com diversas produes tericas e metodolgicas
que lidam com fotografias e outras fontes visuais; jornais, revistas
e impressos diversos; documentos oficiais; e tantos outros registros
que os historiadores trazem para o seu campo de anlise. Entrecruzamentos cruciais que instituem configuraes diversas e alteram
as percepes dos pesquisadores. Essa operao permite refletir e
interpretar no apenas as entrevistas/testemunhos e as implicaes
da memria individual e social, mas tambm as prticas discursivas no espao social, especialmente a posio do entrevistador e a
do entrevistado em relao aos grupos sociais envolvidos.
29

Prticas de escrita: a dinmica da narrativa histrica


do relato oral ao texto escrito
Para dedicar-me discusso das prticas de escrita da histria, recorro primeiramente a Paul Veyne: A histria narrativa
de acontecimentos (1983, p. 14). O vivido tal como conhecido
sai das mos dos historiadores e no dos atores (mesmo considerando a sua importncia central); o vivido no visto atravs de
uma mquina do tempo, no direto, , pois, narrado, por meio dos
documentos e testemunhos pelo conjunto de suas possibilidades ,
portanto, conhecimento parcial, sem ambio totalizadora.7 Veyne
vincula a compreenso histrica atividade narrativa, como assinala Paul Ricoeur (1994, p. 243), entendendo que o fato de figurar
numa intriga o que qualifica um acontecimento como histrico:
Um acontecimento histrico no somente o que acontece, mas
o que pode ser narrado ou o que j foi narrado nas crnicas ou lendas. No momento mesmo em que so narrados, transformam-se em
histrias, snteses narrativas (efeito da seleo, organizao, sntese),
resultados de escolhas constantes, que conferem significado a um
contexto designado como histrico. Nessa trilha, Veyne coloca em
outra dimenso as grandes querelas debatidas pela historiografia no
sculo XX, sobretudo acerca do factual e do no factual e da histria
quantitativa e no quantitativa: se o enfoque factual ou no, esse
debate deixa de ter importncia; assim como os mtodos quantitativos, que mobilizam nmeros, cifras e outros dados para as pesquisas.
Importa mais, para ele, o que pode ser narrado ou no. Ele compreende a histria como aquilo que integra acontecimentos diversos,
dando a eles significados (sem pregar a univocidade da palavra) e
trazendo pontos de vista diferenciados que elaboram um discurso
sobre o passado ou que presentificam esse passado, como na concepo de Walter Benjamin.
30

7 Torna-se importante observar, para no cair no plano das simplificaes reducionistas, que
a noo de acontecimento, a qual atravessa todo o seu livro Como se escreve histria (1983),
para Veyne bastante precisa e sustenta sua tese sobre o significado da histria e sua escrita.

Nessa linha de reflexo, para alm dos embates entre as vrias


posies tericas que incidem sobre a questo histria e narrativa,
as investigaes no campo da histria e os seus registros e anlises
decorrentes s adquirem estatuto de conhecimento quando ganham
corpo na construo narrativa, como escrita da histria. Somos ns
que conferimos, por meio dos documentos pesquisados manuscritos, impressos, fontes orais, processos civis e criminais, imprensa,
boletins, entre outros , a importncia relativa que lhes confere o
desenrolar da histria narrada. Os documentos, nessa perspectiva,
no dizem a histria, no recuperam o passado. O passado no
pode ser restitudo, refeito, ele narrado com anlises crticas, sempre mediado pela operao historiogrfica.8 Mas necessrio ver que,
para Veyne, a noo de intriga opera como uma lanterna mgica,
que implica consideraes de ordem terica e metodolgica: os
documentos, nessa tica, so vistos como fragmentos significativos,
habilmente selecionados, que devem quebrar a ideia da identidade
do sujeito e da univocidade da palavra e podem ser muito mais a
prova da incompletude do conhecimento. No mbito dessas consideraes, pode-se esboar um pensamento sutil, o de que apenas um
recanto do mundo ser iluminado. Para P. Veyne, assim como para
Paul Ricoeur (1994), h intriga todas as vezes que a histria rene
fragmentos e d sentido diversidade, porque a intriga (como atividade literria) cria efeito de coeso e torna possvel o relato histrico,
em que circunstncias, objetivos, fins e acasos das aes de homens
e mulheres adquirem novos significados.
A questo da escrita, nessa perspectiva, suscita um rico dilogo
entre histria e literatura. Na pista de algumas trilhas abertas por escritores como Orhan Pamuk, podemos tentar perscrutar alguns delica8 bastante conhecido o debate entre P. Veyne e Michel de Certeau, quando este responde
s indagaes de Veyne com as reflexes desenvolvidas, sobretudo, em seu texto A operao histrica, publicado na obra, em trs volumes, de 1974, Fazer histria, organizada por
Pierre Nora e Jacques Le Goff. Contudo, isso no impede que possamos valorizar os vrios
aspectos desse debate no campo epistemolgico e traar contribuies dos dois autores referentes s relaes entre historiografia e narrativa, que apontam as dissonncias e, por que
no, as ressonncias.

31

dos fios filigranas para indagarmos acerca das narrativas literrias


e o seu poder de criao e transformao do mundo pelo discurso
potico. O que pensa sobre a criao (poesia) e transformao do
mundo est, para ele, contemplado na questo mais importante, que
opera no poder da imaginao como a capacidade de transmitir significados aos outros (PAMUK, 2007, p. 67) e no como meio para
falsificar ou fantasiar a realidade, modo pelo qual, muitas vezes, a
imaginao compreendida. a imaginao do romancista que d ao
mundo limitado da vida cotidiana a sua particularidade, a sua magia,
a sua alma (p. 65). Tambm os historiadores tm a inteno de transmitir significados aos outros, realizar leituras diversificadas e elaborar anlises que desloquem evidncias simplificadoras, estruturando a
narrativa histrica. Investigam e relatam, assim, as especificidades da
vida cotidiana, da guerra, da morte; criando correspondncias e diferenas praticam e compem experincias. E, para o romancista, o que
marca esse ato de escrever a obedincia regra eterna da literatura:
o talento de contar as prprias histrias como se fossem histrias dos
outros, e contar as histrias dos outros como se fossem suas, porque
isso a literatura (p. 19). Em seu texto-conferncia, Pamuk diz que
devemos ser capazes de contar as nossas histrias como se fossem dos
outros, como tambm devemos ler uma histria e associ-la s nossas experincias, abrigando o mundo de algum como se fosse o seu
prprio (estilhaando o debate que prima pela anlise que divide o
singular e o universal, o objetivo e o subjetivo). Em ambos os casos,
na histria e na literatura, encontram-se os seus escritores envolvidos
com as imagens do mundo, para escrever o mundo. Estudos, pesquisas e escritos; tempo-espao envolvidos em problemas e questes. Sim,
aquele que escreve habita o mundo e o mundo vive nele. No h ao
que deixe de suscitar a questo to crucial para Pamuk (2007, p. 13):
Escrever transformar em palavras esse olhar para dentro, estudar
o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si
mesma [...] cercada pelas sombras, constri um mundo novo com as
32 palavras.

Para a escrita da histria, seguindo essas reflexes, a dimenso potica do discurso no deve ser vista como obstculo ao rigor
metodolgico que se exige da disciplina ou como aquilo que se contrape s regras da escrita da histria. Chartier (2007) tambm se
manifesta na mesma direo. Sobretudo, quando afirma, na trilha
aberta por P. Ricoeur (2007), que no apenas os documentos permitem dar autenticidade ao texto historiogrfico convocando R.
Barthes a este debate, para quem padecemos do ato compulsivo de
autenticar o passado , mas que a narrativa deve tambm produzir
inteligibilidade no dar a ver e a contar na configurao da arquitetura textual, criando vida no territrio dos mortos. E, de maneira
bastante enftica, coloca a escrita tanto quanto os documentos no
centro da operao historiogrfica:
Fundar a disciplina em sua dimenso de conhecimento, e de
um conhecimento que diferente daquele fornecido pelas
obras de fico, de uma certa maneira seguir ao longo da
falsia. Os historiadores perderam muito de sua ingenuidade e de suas iluses. Agora sabem que o respeito s regras
e s operaes prprias sua disciplina uma condio
necessria, mas no suficiente, para estabelecer a histria
como um saber especfico. Talvez seja seguindo o percurso
que leva do arquivo ao texto, do texto escritura, e da escritura ao conhecimento, que eles podero aceitar o desafio
que lhes hoje lanado. (CHARTIER, 2002, p. 17).

Em face dessa postura metodolgica que a prtica da histria


oral, das entrevistas aos arquivos, dos testemunhos s narrativas
orientando-se pelos procedimentos metodolgicos compartilhados
pelos seus pares e dialogando com diversas reas do conhecimento
, tem como grande desafio a tarefa de colocar, compor e desdobrar
os relatos orais em textos escritos (abertos aos leitores!) para oferecer
sua contribuio produo historiogrfica.
33

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37

2.Travessias e desafios
Antonio Torres Montenegro


O tema desse artigo contempla de maneira fundamental algumas
questes metodolgicas suscitadas tanto pela documentao como
pela leitura de autores diversos no campo da historiografia, da metodologia e da filosofia, entre outros.
Escrito inicialmente para a mesa-redonda Perspectivas terico-metodolgicas da histria oral no V Encontro Regional Sul de
Histria Oral Desigualdades e Diferenas , ao adapt-lo para
publicao, operei alguns deslocamentos analticos bem como diversos acrscimos e reformulaes.
Ao concluir a escrita desse texto, percebi que os percursos trilhados se apresentavam como travessias interminveis, quase uma
ego-histria, pois procurei pontuar questes, dilemas e desafios que
o trabalho com a documentao, de maneira geral as fontes orais de
memria, me foram possibilitando formular medida que avanava
na pesquisa e escrita da histria ao longo dessas ltimas dcadas.
Quando fui aceito para meu doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 1985, tinha como proposta geral
entrevistar pessoas das camadas trabalhadoras que nos habituamos
a denominar de popular, para ouvir delas o que construam e representavam como passado histrico. Partia ento da vaga suposio de
que muitas, ou a grande maioria, por no terem frequentado os ban38 cos escolares, no havia aprendido a histria oficial. Dessa forma, o

que representariam como passado histrico? As suas vivncias cotidianas na famlia, no trabalho, nos sindicatos, nas associaes recreativas e culturais, entre outros. Era ento necessrio entrevist-las
para conhecer essa histria.
Fui em busca de projetos de histria que utilizassem entrevistas
com trabalhadores como tcnica para produo de uma fonte que
pudesse servir de base pesquisa e escrita da histria. Nessa busca,
algum me recomendou um projeto desenvolvido no Centro de Histria Oral da Universidade de Indiana, dirigido pelo professor John
Bodnar, que no incio dos anos 1980 havia entrevistado quase uma
centena de operrios e funcionrios de diversos escales da fbrica
de carros Studebaker, a qual encerrara suas atividades na primeira
metade da dcada de 1960.
A minha reduzida bagagem de experincia de pesquisa tinha
sido at ento jornais, anais parlamentares, panfletos e tambm um
pouco de literatura do sculo XIX. Fora com essa documentao
que havia escrito minha dissertao de mestrado, acerca dos vinte
anos finais da escravido no Brasil. Recordo ainda o grande dilema
que foi a escrita da histria na dissertao, sobretudo porque pensava e defendia a necessidade de romper com uma narrativa centrada na cronologia. Estava e estou inteiramente convencido que
o relato histrico fundado na cronologia, e, portanto, prisioneiro
da causalidade, significa estar inteiramente submetido lgica e
ao domnio dos signos que a documentao apresenta. Difcil era
lidar com a permanncia dessa escrita linear, ou talvez, em que as
marcas de uma lgica histrica centrada em causas e consequncias
ainda tinham preponderncia sobre minhas novas leituras e quase
aprendizagens tericas e metodolgicas. S depois de defendida a
dissertao, aliviado do fantasma dos prazos e presses da banca e
do orientador, pude ento construir uma questo em torno do tema
da dissertao escravido/abolio, ou seja, indagar sobre quais os
meios que as sociedades utilizam para inventar e desinventar o tema
da escravido. Nos livros que ento escrevi, o paradidtico Reinven- 39

tando a liberdade e Abolio, este ltimo para a Srie Princpios, j


me sentia livre da causalidade e, por extenso, da cronologia como
fio condutor e determinante do sentido historiogrfico.

Da Studebaker Casa Amarela
Fechado esse parntese, voltemos ao Projeto Studebaker em
Indiana University. Em janeiro de 1986, l estava eu numa fria Bloomington para pesquisar nesse acervo oral as entrevistas desses trabalhadores da fbrica de carros. E foram trs longos meses, ouvindo
e lendo as transcries de todo aquele conjunto de fitas gravadas.
Como muitas vezes ocorre quando estamos pesquisando uma documentao em que no temos ainda uma questo ou problemtica
definida, passei a anotar alguns temas que poderiam interessar-me
para, posteriormente, escrever um artigo e tambm o relatrio a ser
apresentado ao CNPq. Daquele amplo quadro de histrias de trabalhadores, um conjunto de relatos interessou-me e passei a tomar
notas. Nelas registrei: o orgulho que muitos expressavam ao dizer que
trabalharam centenas de sbados e domingos (imaginava impossvel
ocorrer algo parecido no Brasil); uma greve que ocorreu e a perseguio aos seus lderes; a questo de utilizar a estratgia de empregar
diversos membros de uma mesma famlia como forma de controle,
pois, se algum deles cometia uma falta, o pai ou aquele considerado
a autoridade da famlia era chamado pela direo da empresa; o problema do alcoolismo; e finalmente os casos de suicdios que ocorreram quando a empresa faliu. Este foi para mim o tema que mais
chamou a ateno, pelo desespero que os relatos expressavam, alguns
afirmando que trabalhadores perderam aposentadorias construdas
durante dcadas em questo de meses, semanas ou dias. Tambm
declaravam, em algumas entrevistas, que aquele havia sido um tema
pouco, ou quase nada, noticiado pela imprensa.
Concluda ento essa etapa, comecei a organizar as notas. Uma
sensao foi surgindo medida que a escuta das fitas avanava e
40
agora ela tornava-se mais clara: no havia como contar uma histria,

ou esboar um relatrio com um maior nvel de reflexo historiogrfica, apenas com o que ouvia. Definitivamente, no concordava
com a afirmao, que lera em algum livro ou manual de histria oral,
de que uma fita transcrita se transforma em um documento igual
a qualquer outro documento escrito. E, nessa hora, vinham lembrana os jornais ou os debates parlamentares em que pesquisara
para a dissertao e que me permitiam minimamente esboar um
relato historiogrfico. No entanto, aqueles relatos de memrias, to
preciosos, pareciam luzes que se acendem e se apagam. No era possvel ir adiante apenas com eles. Para poder escrever sobre aqueles suicdios era necessrio, por exemplo, conhecer a legislao trabalhista
dos EUA e do estado de Indiana, assim como a poltica trabalhista
da empresa; tambm pesquisar nos jornais e visitar o sindicato para
verificar se dispunha de arquivos sobre aquele tema. Por outro lado,
os relatos de memria me diziam de uma experincia de trabalho e
de vida numa empresa de carros, que normalmente a documentao
escrita no oferece. Os prprios arquivos das empresas, os arquivos
sindicais, os jornais, a legislao, entre outros, no contemplam esse
tipo de relato, em que a histria vivida no cotidiano em suas mltiplas dimenses apresentada sob os mais diversos enfoques.
Encerrado aquele estgio, meu relatrio se constituiu fundamentalmente numa dupla aprendizagem. Estava diante de uma fonte que
me oferecia outra perspectiva historiogrfica, ou seja, movimentos,
lutas, reflexes, sentimentos, relaes de poder e de trampolinagem
(como aprenderia mais tarde com Certeau) que as demais fontes
no costumam oferecer. No entanto, e ao mesmo tempo, no poderia prescindir das outras fontes, pois de certa forma elas possibilitariam construir um campo projetado em uma rede mais ampla, com
informaes imprescindveis para situar os mltiplos vividos que as
memrias relatavam.
Retornando ao Brasil vou, ento, em busca de homens e mulheres dos bairros pobres de Recife para realizar as entrevistas. E aqui
me deparo de sada com a forte crtica de que os intelectuais 41

costumam ir aos bairros populares desenvolver suas pesquisas e, no


final, nada deixam para essas pessoas. Ou seja, a apropriao da mais
valia dos patres tinha sua correspondente apropriao do saber
popular pelos intelectuais e acadmicos. Nesse sentido, o relato de
uma mulher, Tota, moradora do bairro Casa Amarela se tornou para
mim paradigmtico.
Depois que eles filmaram tudinho, eu digo: vem c. A tinha
um que entendia o que a gente dizia. Eu digo: vem c. A
tinha um que entendia o que a gente dizia. Eu digo: vai sair
alguma coisa sobre isso? Vai sair nada, no ?!! A vai ficar
tudo assim, ? Somente filmar, chegar l, vocs vo receber
o dinheirinho desse filme, n? Alguma coisa a, e a gente fica
nessa, n? [...] Eu digo: o menino com fome, o comer para
cuidar, eu aqui empalhada com vocs, vai sair nada no, ?
Eu digo: , para vim conversar besteira com a gente, vocs
s anda sem dinheiro, agora quando vier aqui, vou cobrar.
(MONTENEGRO, 1992, p. 25).

Foi ento que propus federao do bairro Casa Amarela fundar


um Departamento de Memria com os prprios moradores, treinados por mim e uma equipe. Todas as entrevistas seriam de propriedade do Departamento e criaramos uma linha de produo de
livros, programas de rdio e vdeo, de forma que todos aqueles relatos no fossem dirigidos apenas para embasar minha tese e nossos
artigos acadmicos. Isso efetivamente foi realizado e produzimos um
livro com trs entrevistas de moradores na ntegra, uma cartilha, seis
programas de rdio e um vdeo. Ouvir a histrias de vida dos moradores do bairro se constituiu em muitas aprendizagens. Algumas talvez s se materializaram alguns anos depois, como, por exemplo, a
dificuldade de lidar com um entrevistado que dizia ter combatido
na Coluna Prestes, mas seu relato se apresentava como uma grande
criao de sua imaginao. S anos mais tarde, lendo o artigo de
Janana Amado O grande mentiroso (1995) e o de Portelli Sonhos
42 ucrnicos (1993), pude constatar como fui no mnimo inbil na con-

duo daquela entrevista. Tambm outra aprendizagem foi descobrir que o Departamento de Memria da Federao de Moradores,
que recebia candidatos para entrevistas a conta-gotas, pois muitos
tinham receio de vir relatar suas histrias de vida, de um momento
para outro, passou a ter filas de candidatos na antessala de sua sede.
Minha alegre surpresa em breve se desvaneceu, pois um morador
acabou por me explicar o que se passava: Professor o seguinte, j
se espalhou no bairro que s vir aqui e contar umas besteiras e o
senhor paga dez reais. Pronto, estava desnuda outra vez a relao
de classe, de poder, e as brechas e piruetas que o povo cria para driblar pessoas, instituies, relaes to diferentes das do seu universo
cotidiano. Afinal, havia pensado desde o incio desse projeto, para o
qual tnhamos obtido recursos do governo estadual, que fora depositado na conta da Federao de Moradores e era por ela gerido, que
se eu tinha minhas horas de pesquisa pagas por uma bolsa, por que
no pagar tambm as horas em que aquelas pessoas eram retiradas
dos seus afazeres para falar de suas vidas. Passada a ingnua decepo, as dezenas de entrevistas at ento realizadas ajudaram-me a
compreender que nem todas as pessoas so capazes de transformar
suas lembranas em narrativa. Algumas apresentavam narrativas
sem concluir uma ideia, misturando e associando vrios temas quase
de forma simultnea, outros ainda, talvez movidos por um grande
receio de se comprometer ou dizer alguma coisa indevida quele
professor, transformavam seu relato em grandes e homricas apologias do seu passado. Talvez ainda devido minha pouca experincia,
no era capaz de interagir e mudar esse tipo de relao entrevistador/
entrevistado quando ela se apresentava. No entanto, mais tarde, num
outro projeto com professores aposentados da Faculdade de Engenharia da UFPE, encontrei professores que tambm no concluam
suas ideias, saltando, a cada momento, de um tema a outro, transformando seu relato de memria em um labirinto, sem o fio de Ariadne.
Havia ainda aqueles moradores e moradoras de Casa Amarela
que, ao comear a lembrar sua infncia e mesmo seu passado, eram 43

tomados por uma grande tristeza e iniciavam a chorar, fazendo-nos


imediatamente interromper e no insistir naquela operao de construo ou reconstruo das memrias. No somos psiclogos ou psicanalistas e um rememorar to doloroso tornava-se, do meu ponto
de vista, algo muito perigoso.
Encerrada essa etapa da pesquisa, veio o perodo de trabalho nos
arquivos e a coleta de documentos que ajudassem a situar historicamente os principais temas historiogrficos abordados naquelas entrevistas. Um deles, por exemplo, apresentou-se de forma marcante em
muitas memrias, a luta pela erradicao dos mocambos na dcada
de 1930 e 1940 levada a cabo pelo interventor Agamenon Magalhes.9
Descobre-se um verdadeiro pnico que se formou, gravado na memria de muitos desses homens e mulheres, em face do perigo de sarem
para o trabalho e quando retornarem para suas casas, estas haverem
sido derrubadas pelo Servio Social Contra o Mocambo. Nunca
esqueci um relato de um morador que diz ter enfrentado com uma
foice os funcionrios do Estado que tinham vindo derrubar sua casa
coberta de palha. Verdade ou no, Benedito Jos de Moraes, morador
de Casa Amarela, pelo menos para a histria se construiu, se apresentou, como um Hrcules. Ele conta que depois os homens voltaram e
negociaram com ele outra casa para morar. Narra ainda que alguns
enlouqueceram quando retornaram do trabalho para casa e a encontraram demolida (MONTENEGRO, 1992).
Desafios metodolgicos: histria e memria
Ao iniciar o perodo da escrita da tese, em contato com diversos autores e tericos da memria e da histria, Maurice Halbwachs
(1990) me provoca um grande choque. Isso porque, no seu clssico
A memria coletiva, apresenta como uma das suas teses principais a
ideia de que a memria e a histria so inconciliveis. A memria
44

9 Agamenon Magalhes se tornou ministro do Trabalho, Indstria e Comrcio de Getlio


Vargas em 1934, acumulando tambm a pasta da Justia em 1937. Com o golpe do Estado
Novo em 1937, torna-se interventor em Pernambuco, permanecendo no cargo at janeiro
de 1945, quando ento volta a assumir o Ministrio da Justia.

sempre viva e presente na vida das pessoas de uma comunidade,


porm, quando se transforma em histria, deixa de estar viva e
enviada aos arquivos. Ao mesmo tempo, sua compreenso da histria era cumulativa de histrias regionais apontando para uma histria das civilizaes. E, ento, como ficaria minha tese que trabalhava
os relatos de memria como fonte para histria? Foram diversas leituras e releituras desesperadas at o momento em que pude compreender que estava dialogando com um autor cuja obra foi escrita
na dcada de 1920 e que era preciso refletir sobre as concepes de
histria ento predominantes naquele perodo. No entanto, entre os
muitos aprendizados que essa sua obra me trouxe, destacaria a relao indissocivel entre memria individual e social. Nesse sentido,
esse autor me deu uma grande ajuda para pensar que no precisava
me preocupar com um nmero representativo de entrevistados, pois
de alguma forma um relato oral de memria, por mais particular
que ele seja, carrega as marcas da rede social, profissional, poltica,
cultural daquele entrevistado (HALBWACHS, 1990).
Concluda a tese, dois problemas passaram a atormentar-me.
Primeiramente as memrias que ajudaram a construir o percurso
historiogrfico da tese foram pensadas como provas do vivido e no
como reconstruo mnemnica realizada pelos entrevistados a partir de uma srie complexa de fatores que o presente produz, intervindo nesse itinerrio. S ento me dei conta que era preciso situar
aqueles relatos de memria como sinais, em constante movimento
de ressignificao e no como prova do vivido. Essa compreenso
me fez durante muito tempo ter gana de apagar da tese, depois transformada no livro Histria oral e memria: a cultura popular revisitada, a expresso resgate da memria ou, pelo menos, substitu-la
por construo ou ressignificao da memria. Por outro lado, nada
garantiria que, em breve espao de tempo, outra categoria ou mesmo
trecho do livro no precisasse ser substitudo ou ter sua escrita aperfeioada. Escolhi ento, diferentemente de muitos escritores e historiadores que optam por reescrever suas obras, aceitar aquele trabalho 45

como um momento da minha caminhada. E talvez isso tenha incomodamente me tranquilizado, pois afinal aprendi a duras penas a
pensar o conhecimento e por extenso a produo do conhecimento
historiogrfico como movimento, inconcluso, e no como o estabelecimento de verdades acabadas e definitivas.
No podia deixar de me preocupar com os crticos que afirmavam, numa direo inteiramente oposta, no se poder confiar
na memria, pois a cada momento as pessoas narram as mesmas
lembranas de forma inteiramente diversa. Nesse perodo, a difcil
leitura de Henri Bergson foi muito proveitosa e ajudou a pensar,
por meio do seu famoso cone, uma resposta a esses crticos. Afinal, segundo Bergson, jamais retornamos memria original. Toda
memria seria sempre memria da memria, haja vista que ela se
interliga de maneira inseparvel s impresses apreendidas pela percepo a qual nos mantm em contato permanente com o mundo
ao nosso redor. E esta, em seu devir infindvel, estaria permanentemente apresentando novos acontecimentos, novas situaes, novas
experincias e, por extenso, outras formas de analisar e refletir
acerca do que nomeamos por real. Para expressar graficamente a
inseparvel relao entre a memria e a percepo, esse autor se utiliza de uma figura geomtrica em forma de cone. A base do cone
representaria a memria, enquanto as retas que se estendem da base
ao vrtice representariam a percepo. Dessa forma, a memria e a
percepo so indissociveis e no seria possvel a percepo pura,
nem tampouco a memria pura. Em todo ato de percepo estariam
presentes as marcas da memria, porm tambm todo relembrar
carrega as marcas, os signos, os sinais do presente, apreendidos pela
percepo em permanente contato com o mundo exterior. Por essa
razo o relembrar estaria marcado pelas impresses e experincias
do presente. Afinal, o vrtice do cone considerado o ponto de contato da percepo com o mundo exterior, sinnimo de constante
movimento e mudana. O lan vital pensado por Bergson, que, de
46 certa forma, o torna um autor sobre o qual Gilles Deleuze ir dedi-

car um livro, Bergsonismo, numa poca em que aquele filsofo ainda


era criticado como idealista, tornar-se- uma leitura muito cara a
mim. O estudo desses autores ajudou a repensar a crtica dos historiadores ao uso da memria como fonte; pois assim como cada um
teoricamente opera um ressignificar constante das suas memrias,
a historiografia institui uma reescrita e uma releitura constante de
obras, acontecimentos e documentos a partir das novas experincias sociais, culturais, polticas, bem como em face de novas abordagens tericas e/ou a descoberta de novos documentos no presente.
Portanto o movimento de releitura e ressignificao das memrias
individuais e coletivas, como da prpria historiografia, so interminveis. Passei ento a argumentar com esses crticos da volatilidade
da memria que tambm a histria, os documentos, as obras, nossos
escritos so alvo dessa denominada volatilidade, afinal tudo que
slido desmancha no ar.
A questo do real
Todo esse percurso at ento narrado, medida que institua
algumas respostas s questes metodolgicas referentes memria
e histria, remetia a outra problemtica, poder-se-ia dizer, muito
mais radical, ou seja, a relao entre o documento e a realidade. E,
nesse momento, dois outros autores, duas outras leituras, iro direcionar o trabalho e obrigar-me a operar escolhas. Refiro-me primeiramente (sem ordem de importncia) ao livro Relaes de fora,
de Carlo Ginzburg (2002, p. 44-45), em que ele afirma no existir
mais a ingenuidade de pensar que o documento seria um reflexo do
real, mas a possibilidade de considerar as fontes como construo,
porm no incompatvel com a prova. No polo epistemolgico inteiramente oposto estava o livro Isto no um cachimbo, de Michel Foucault (1988). Esta obra provocou um grande impacto em mim, pois
definitivamente me fez repensar como a ordem da linguagem no se
reduz ordem das coisas, ideia com a qual j vinha trabalhando por
47
meio de outras leituras. A frase Isto no um cachimbo, escrita

por Ren Magritte, em seu quadro que tem acima o desenho de um


cachimbo, o ponto de partida de uma travessia de desconstruo
da perspectiva de pensar que os significados advm do mundo ou
do que durante anos denominamos realidade concreta; ou, como foi
amplamente discutida por Saussure (1970), a relativa autonomia da
linguagem em relao realidade, em que a relao entre o significante e o significado arbitrria. Somos ns, por meio de nossas
redes sociais, que construmos e significamos o mundo. Em outros
termos, vivemos nos discursos que acreditamos, ou aprendemos a
acreditar como verdadeiros por meio de nossas redes sociais e culturais. O real o que e como aprendemos a significar o mundo ao
nosso redor. Ou ainda como observa Foucault (2002, p. 35-36):
sempre possvel dizer o verdadeiro no espao de uma
exterioridade selvagem: mas no nos encontramos no verdadeiro seno obedecendo s regras de um polcia discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos.
A disciplina um princpio de controle da produo do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade
que tem a forma de uma reatualizao permanente das
regras.

Esse princpio seria uma das razes dessa luta ensandecida pelo
domnio da historia, pelo domnio da memria, pelo controle do que
o real, os acontecimentos, o passado e, por extenso, o presente e o
futuro e de como signific-los.
Essa opo metodolgica tambm nomeada construtivista
levou-me a ser acusado de ceticismo histrico, de solipsismo e ainda
de transformar o real em jogos de linguagem. No entanto, outros trs
autores ajudaram a, pelo menos provisoriamente, seguir essa trilha,
aqui brevemente delineada. Por um lado, o psicanalista Garcia-Roza
(1991, p. 31), quando em seu livro Introduo metapsicologia freudiana afirma que em nosso primeiro ano de vida:
48 A percepo no oferece objetos com os quais a palavra vai se articular
para obter seu significado. A percepo pura e simplesmente no

oferece objetos. Aquilo que ela recebe do mundo no so imagens de


objetos, mas imagens elementares (visuais, tteis, acsticas) que vo
constituir o complexo das associaes de objeto. Essas associaes
de objeto, por si mesmas, no formam uma unidade, no formam um
objeto; apenas na relao com a representao-palavra que essa
unidade vai surgir. a palavra que constitui o objeto como objeto.
Portanto, o que fornece ao objeto seu significado, e a fortiori sua
unidade, no a coisa externa, mas a articulao da associao de
objeto com a palavra.
Por outro lado, aquilo que na escrita de um psicanalista adquire
foro de uma teoria epistemolgica a partir da obra freudiana, no
relato de um neurologista que narra casos excepcionais de sua experincia clnica, adquire contornos de uma experincia clnica oftalmolgica. O Dr. Oliver Sacks narra o caso de um jovem, Virgil, que
ficou cego aos 6 anos e aps uma operao de catarata aos 50 anos
voltou a ver: Mas o que viu no tinha qualquer coerncia. Sua retina
e nervo ptico estavam ativos, transmitindo impulsos, mas seu crebro no conseguia lhes dar sentido: estava, como dizem os neurologistas, agnsico (SACKS, 1995, p. 129).
Em outros termos, no vemos com os olhos, mas com os significados processados em nosso crebro. O olho o condutor sensvel
das impresses exteriores, que s permite formar ou reconhecer uma
imagem se o significado foi anteriormente construdo por meio da
linguagem.
Parecia-me assim que por meio desse percurso filosfico, psicanaltico e neurolgico no havia mais como duvidar que percebemos
aquilo que denominamos real no como ele se apresenta, mas por
meio do universo de significados que a cultura possibilita interiorizar, e qualquer certeza de verdade que desejamos defender sobre
o mundo que nos cerca no advm da realidade exterior de forma
pronta e acabada, como a cincia clssica, cartesiana, newtoniana,
galileana havia ensinado. Ao mesmo tempo, parecia-me que traba- 49
lhar historicamente nessa perspectiva no significava reduzir todo

o conhecimento a um jogo lingustico, ou ao relativismo solipsista,


como se a ordem da verdade estivesse reduzida a um capricho individual. A ordem da verdade da ordem da cultura, ou ainda como
afirma Geertz (1995, p. 14): o homem um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu.
De certa forma, a partir dessa perspectiva de que as pessoas
esto significando, organizando, explicando o mundo com os referenciais que interiorizam por meio da sua rede social, em sintonia
com os sinais ou signos que captam do mundo a sua volta, que de
certa maneira analiso duas reportagens jornalsticas que tratam de
um mesmo tema ou objeto, o Nordeste no final da dcada de 1950 e
incio de 1960.10 O que me marcava de maneira radical nessas duas
reportagens era talvez o fato de que elas se apresentavam a minha
escrita em um perodo em que digladiava intensamente por meio de
leituras, aulas, debates com a questo do real e a produo dos documentos. Estava diante de duas sries documentais (publicadas na
imprensa) que construam, produziam, significavam uma regio o
Nordeste num mesmo perodo histrico, de forma inteiramente
diversa. Essa documentao me projetava irremediavelmente para
a reflexo acerca do tema Verdade e Poder que Foucault desenvolve em entrevista a Alexandre Fontana, publicada na Microfsica
do poder (1979, p. 13), em que afirma:
H um combate pela verdade ou, ao menos, em torno da
verdade entendendo-se, mais uma vez, que por verdade
no quero dizer o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar, mas o conjunto de regras segundo as
quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos especficos de poder; entendendo-se tambm que no se trata de um combate em favor da verdade,
mas em torno do estatuto da verdade e do papel econmico-poltico que ela desempenha.

50

10 A anlise detalhada dessas duas reportagens foi publicada na Coleo Brasil Republicano
3, O tempo da experincia democrtica: da democratizao de 1945 ao golpe civil-militar de
1964 (FERREIRA; DELGADO, 2003).

As duas reportagens, muito bem construdas, articulavam informaes estatsticas, depoimentos diversos, fotografias, mapas, o que
lhes dava o poder de produzir um enorme efeito de verdade, embora
inteiramente oposto.
A primeira srie foi escrita por Antonio Callado para o jornal do
Rio de Janeiro Dirio da Manh e alcanou grande repercusso na
opinio pblica, reproduzida em diversos jornais, nas Assembleias
Legislativas de vrios estados e tambm na Cmara Federal. Alm de
denncias sobre como os latifundirios transformam a seca em um
grande negcio, por meio desses textos que se institucionaliza a
expresso indstria da seca. Poder-se-ia dizer que o debate promovido por Antonio Callado em suas reportagens, escritas aps viagem
pelo Nordeste, polariza de Norte a Sul do pas os setores que defendem o status quo versus aqueles segmentos que defendem reformas
sociais, polticas e econmicas. Naquelas dcadas, como bastante
conhecido por meio da literatura do perodo, essas duas foras eram
nomeadas respectivamente de direita e esquerda. Callado encerra
sua srie de reportagens narrando a experincia das Ligas Camponesas e a atuao de Francisco Julio, que, como advogado e deputado,
vem ajudando a fundar novas Ligas nos estados do Nordeste e de
outras regies. Para o jornalista, esse movimento poder se tornar
um ponto de partida para que o trabalhador rural do Nordeste deixe
a condio de escravo: O Nordeste tem um grande, imenso caso de
polcia, que exatamente seu tratamento do lavrador, l ainda muito
mais escravo do que homem livre (CALLADO, 1960, p.5 7-58).
Numa direo inteiramente contrria reportagem de Antonio
Callado encontra-se o texto escrito pelo jornalista Tad Szulc para
o New York Times, em outubro de 1960. Enviado a Pernambuco,
ele produz uma longa reportagem que, diferentemente de Callado,
aponta esse estado e o Nordeste como se constituindo em um grande
perigo para o Brasil, para os EUA e para o continente. Isso porque
seus trabalhadores rurais liderados pelas Ligas Camponesas defendem a reforma agrria na lei ou na marra, podendo a qualquer 51

momento ter incio um levante comunista que facilmente se alastraria por todo o pas. E a situao ainda se torna mais grave em face
da disposio do governo, entenda-se a prefeitura e o estado possurem diversos postos-chaves ocupados por comunistas. O prefeito
era do Partido Socialista, e o governador, embora um usineiro, para
conseguir se eleger, teve que ceder muitos cargos aos comunistas em
secretarias e rgos pblicos.
De que forma ler essas duas reportagens, que, mesmo tratando
de um nico tema, acerca de uma mesma regio, no mesmo perodo
de tempo, instituam realidades paradoxalmente diversas? Em primeiro plano, poder-se-ia dizer que elas produzem duas realidades
marcadas de significados inteiramente distintos. E, portanto, produzem distintos efeitos de verdade. No entanto, a verdade dessas reportagens no seria mais analisada por mim a partir de referenciais
externos ao discurso que enuncia e que o valida, mas da perspectiva
da rede social, poltica e cultural em que produzido.
Por outro lado, embora no tenha sido alvo de minha pesquisa
um estudo da recepo dessas reportagens, percebe-se, pelo livro
publicado posteriormente, que essa srie de reportagens foi amplamente divulgada. Nele consta a reproduo dos inmeros jornais
que republicaram os textos de Callado, assim como os incontveis
discursos a favor e contra nas inmeras Assembleias Legislativas dos
estados e mesmo na Cmara e no Senado.
A reportagem de Tad Szulc talvez tenha se somado aos relatrios
que o consulado dos EUA enviava a Washington por meio de agentes
da CIA que trabalhavam como funcionrios daquela instituio, e
seu efeito foi registrado por Joseph A. Page no livro A revoluo que
nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Tambm ainda como
efeito da ameaadora onda comunista que partia do Nordeste para
dominar o Brasil, como afirmava Tad Szulc naquela reportagem,
o governo dos EUA tenha enviado Edward Kennedy em agosto de
1961 a Pernambuco. Ele foi pessoalmente ao engenho Galileia, con52 siderado a sede da primeira Liga Camponesa, e, depois de conhecer

as condies de vida dos trabalhadores, perguntou a estes o que mais


necessitavam. A resposta foi: energia eltrica. Alguns meses depois,
chegava Galileia um gerador de energia (PORFRIO, 2009).
No golpe de abril de 1964, o exrcito cercou o engenho Galileia,
prendeu e interrogou os moradores, procurando armas que dizia
existirem e com as quais acreditava que os moradores fariam a
revoluo , como documentou Eduardo Coutinho em Cabra marcado para morrer.
Esses percursos relatados se somam a uma aprendizagem cotidiana, pois somos cercados por uma avalanche de histrias que se
apresentam e so anunciadas como evidentes. Desfazer-se da ideia
de causa, de sujeito (enquanto indivduo ou classe), de essncia e
mesmo de um fim teleolgico para a histria, significa, para mim,
um exerccio permanente. Sobretudo porque exigi um desconstruir
de prticas culturalmente dominantes.
Referncias:
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n. 14, p. 125-136, 1995.
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Janeiro: Civilizao Brasileira, 1960.
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FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Organizao e traduo de Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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Zahar, 1991. v. 2.
53

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Cientficos, 1995.
GINZBURG, Carlo. Relaes de fora: histria, retrica, prova. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990.
MONTENEGRO, Antonio T. Histria oral e memria: a cultura popular revisitada.
So Paulo: Contexto, 1992.
PORFRIO, Pablo. Medo, comunismo e revoluo: Pernambuco (1959-1964). Recife:
Editora da UFPE, 2009.
PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrnicos: memrias e possveis mundos dos trabalhadores. Projeto Histria: revista do Departamento de Histria da PUC-SP, So
Paulo, n. 10, p. 41-58, dez. 1993.
SACKS, Oliver. Um antroplogo em Marte: sete histrias paradoxais. So Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingstica Geral. Trad. Antonio Chelini, Jos
Paulo Paes e Izidoro Blikstein. So Paulo: Cultrix, 1970.

54

3. Subjetividade e histria oral: possveis interaes


na autorizao de cesso de uso de relatos
Marcos Fbio Freire Montysuma

Este ensaio um dilogo ampliado com a minha prpria experincia de pesquisa no campo da Histria. E, de pronto, j alerto ao
leitor a respeito dos clichs reinantes que rotulam e/ou enquadram
o contedo elaborado sob um determinado prisma, delegando um
status fora de seu contexto ou inteno. Chamo a ateno que pelo
enredo que a escrita toma no se trata de um texto conhecido apenas
e to somente como um memorial. Na verdade, trata-se de uma
escolha, porque defendo a ideia de uma prtica de pesquisa militante, uma vez que estou envolto nas questes de meu cotidiano.
Minha formao acadmica contribuiu para uma prtica em pesquisa que caminha nesse sentido, conforme espero deixar claro atravs das ideias que aqui seguem. O itinerrio que tomarei se baseia
em trs momentos de minha vida acadmica, e somente.
Desde o perodo da graduao em Histria, na Universidade
Federal do Acre, ouvia alguns professores falarem de uma dada
objetividade histrica, de uma objetividade cientfica, amparada na
ideia de que ao pesquisador caberia a responsabilidade de assistir aos
acontecimentos de maneira neutra, sem envolvimentos, sem emoo. Era como se fosse possvel ao historiador ficar numa arquibancada assistindo, de fora, histria acontecer, comparando mal, seria
como assistir a um desfile de escola de samba ou algo semelhante.
Quando fiz o mestrado em Histria, na Universidade Federal do 55

Rio de Janeiro, ao preparar o projeto de pesquisa, fui ainda ensinado


que estudar os seringueiros da Amaznia brasileira das dcadas
de 1960, 1970 e incio de 1980 no passava de sociologia, pois no
teramos fontes e metodologias para estudar essas questes e suas
temporalidades.
Tais perspectivas me incomodavam porque no via a menor
possibilidade de discutir uma temtica sem paixo, sem cumplicidade. Depois me emocionei ao apresentar um seminrio no doutorado (PUC/SP), fiquei com a voz embargada, em silncio por alguns
instantes. Quando consegui expressar-me pedi desculpas por discutir o viver de seringueiros de modo to apaixonado. A professora
Maria Odila Dias imediatamente tomou a palavra e disse: S vale
discutir Histria com paixo!. Essa postura (deveras diferente das
anteriores) fez-me compreender que podemos trabalhar sem sofrer,
discutindo tudo que bem entendermos, bastando para isso nos comprometermos em deixar claro, de modo coerente, como construmos
o referencial terico-metodolgico que sustenta as nossas buscas.
Acredito no trabalho que me empenho a realizar, por contar com
o apontamento claro de como atuo no momento da pesquisa, do incio ao fim. No contato com as pessoas, tomo sempre o cuidado de
deixar bem claro o que orienta minhas aes naquela empreitada.
Falo das minhas intenes quando as procuro, lhes comunicando
quanto importncia de receber seus relatos/entrevistas/memrias
para constar de uma pesquisa. E para isso conto com a certeza do
envolvimento dessas pessoas, porque por algum motivo a minha presena e a de meus colegas naquele lugar lhes servem para algo. Da
por diante creio que estabelecemos uma cumplicidade que possibilita o desenrolar do trabalho, de modo a atender s variadas expectativas ali postas. Portanto, no vejo nenhum problema em assumir
paixes na prtica da histria oral.
A partir dessa perspectiva anunciada acredito haver uma responsabilidade poltica de nossa atividade para com a sociedade de
56 nosso tempo. Por esse motivo me envolvo na discusso histrica

situada da Histria do tempo presente. Nesse campo, compartilhamos


ideias que apontam para a discusso de questes rotineiras, cotidianas, algumas vezes instigantes ou nem tanto, dadas como presentes
na vida dos sujeitos, que perduram na memria das pessoas. E que,
por um olhar questionador, o pesquisador se lana no seu encalo,
problematizando aspectos da vida ordinria, corriqueira, da cultura.
Compreendemos que so as inquietaes do presente que movem
as pessoas na busca da soluo dos seus problemas. Logo, com elas
compartilhamos experincias e nos vemos envoltos em aes coparticipantes, no tendo assim como fugir responsabilidade nos processos com os quais interagimos.
por meio dos olhares questionadores lanados pela janela
da histria que buscamos alcanar respostas que nos satisfaam,
dividindo a construo da dignidade com as pessoas. E de muitos
modos, procurando tornar seus dias confortveis com verses do
(seu) passado que lhes satisfaam e com as quais consigam conviver em paz. E, dando visibilidade s pesquisas que vimos realizando,
ao abordarmos o cotidiano das pessoas, consideramos discutir uma
historicidade das aes desses sujeitos, atravs das tramas nas quais
estes se envolvem. isso que vislumbro atravs do trabalho que realizo. Logo, o que fao na pesquisa me situa numa dimenso poltica
do meu tempo, em comprometimento com os meus pares, com a
sociedade, com os povos com quem trabalho. Nessa prtica, no vejo
como no questionar aspectos da minha histria de vida acadmica , buscando decompor um quadro de verdades calcificadas por
determinadas teorias imutveis, em que a sisudez do distanciamento
cientfico se encarrega de destituir os sujeitos da interao histrica.
Quando ainda no mestrado, pesquisando o confronto entre brasileiros e bolivianos, no incio do sculo XX, encontrei um documento
elaborado pelo engenheiro e seringalista Gentil Tristo Norberto,
que, aps sofrer derrota militar, relata de prprio punho as formas
que os brasileiros deveriam adotar para impor uma derrota aos bolivianos. Ali apontava a necessidade de impedir o abastecimento de 57

gua e de gneros alimentcios bem como interceptar a entrega de


materiais blicos e a troca de correspondncias. Aps dez laudas de
recomendaes e conselhos, que mostravam como derrotar os oponentes, o Dirio militar (NORBERTO, 1901) encerrado mediante
o compromisso dos brasileiros de no mais pegar em armas, nem
semear a discrdia contra os bolivianos.
Atravs do fragmento acima, temos uma referncia clara a uma
ucronia na histria, tal como nos faz lembrar Portelli (1993). O se
que dizemos no existir em histria estava assentado num documento depositado no acervo do Arquivo Histrico do Itamaraty.
Ento, quando ouo comentrios que desqualificam a histria oral,
acusando-a de ser parcial, fragmentria, comprometida com um
lado, lembro-me sempre desse documento parcial, fragmentrio e
comprometido com um sentimento. Passados mais de dez anos da
referida pesquisa, aplaquei minhas dvidas por entender que a histria tem (ou est prenhe de) documentos fragmentrios, parciais
a nos provocar. Logo o trabalho de histria elaborado atravs da
chamada histria oral envolve uma ideia de pertencimento com os
sujeitos, com o tempo do historiador, mesmo quando a pessoa que
realiza a pesquisa no perceba suas aes. Essas condies ficam claras quando ocorre a escolha do objeto pesquisado. No me aflige
que determinados setores ignorem essas condies, porque seriam
imbudos de um distanciamento cientfico, um ato de estar fora a
equacionar suas frmulas pela adoo de referncias aparentemente
universais de anlise, que espelham tambm um pertencimento.
A professora Yara Aun Khoury, ao discutir diversidade cultural
e incluso social, durante o VII Encontro Nacional de Histria Oral,
na cidade de Rio Branco, em 2006, apresentou uma sugesto do que
entendia ser a nossa responsabilidade como historiadores nos dias
atuais. Na seguinte passagem:

58

Penso ser importante discutirmos essa questo atentos ao


atual momento poltico e s responsabilidades sociais que
temos nesse processo, como profissionais e como cidados.

Como historiadora, falo de um lugar que afirma a profunda


relao entre histria e vida e a figura do historiador como
homem do seu tempo. Eu e o grupo com o qual me alinho
procuramos retirar a histria do campo da erudio neutra e da mera especulao do passado, trazendo-a para o
campo da poltica. Colocamo-nos o desafio de superar um
pensamento nico; admitir e destrinchar as questes da
diferena, da diversidade, da multiplicidade, da pluralidade,
sem negar a contradio e o conflito; o desafio de buscar
ver essas diferenas e essa diversidade engendradas por um
embate de foras sociais, de campos que se opem ou se
complementam. [...] Nessa trajetria interessa-nos investigar processos sociais, lugares, momentos, grupos e coletividades, observando as relaes sociais vividas, o lugar que
diferentes sujeitos histricos ocupam nessa experincia,
compreend-los em sua singularidade. (KHOURY, 2006, p.
1).

Acredito ter oferecido atravs da citao uma possibilidade de


compreenso de minhas abordagens na pesquisa de campo. Se no,
vejamos: as pessoas que voc conhecer logo mais, ao longo deste
texto, no se situam num dado campo de domnio hegemnico, atuando na sociedade ou exercendo poderes proclamados pelo iderio
republicano na contemporaneidade liberal/neoliberal capitalista,
com acesso universal aos servios prestados pelo Estado burgus.
Estado este que cantado em prosa e verso, inclusive por setores
intelectuais que acreditam numa repblica justa, universal, sem predilees; que acessvel a todos indistintamente. Muito pelo contrrio, as pessoas com as quais interagimos se envolveram em lutas pela
sobrevivncia a todo instante de suas vidas. Muitas delas estiveram
sob a mira das armas de pistoleiros ou de policiais, ou de ambos ao
mesmo tempo.
Logo, a pesquisa que realizamos com a histria oral enxerga
esses setores e sujeitos, compreendidos como marginalizados/excludos/ignorados, exercendo poderes singulares para reivindicar e con59
quistar seus direitos. Inclusive intermediando com o pesquisador,

de modo claro e objetivo, as condies sob as quais concederiam a


entrevista para incluir em nossa pesquisa. E, uma vez mais, provocado pela professora Yara Aun Khoury, sinto-me integrado ao seu
campo de compreenso de uma responsabilidade social, assim como
tambm do exerccio da cidadania atravs da prtica de pesquisa histrica que realizo.
Vejamos o primeiro relato selecionado, realizado com Dercy
Teles, mulher que exercia a presidncia do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri pela segunda oportunidade, no perodo de 2006
a 2008. Vale lembrar que fora presidente anteriormente, apoiada por
Chico Mendes. Quando perguntada se autorizava gravar a entrevista
e se poderamos us-la em nossa pesquisa, escrevendo e publicando
textos, respondeu nos seguintes termos: Olha Marquinho, eu autorizo, desde que o produto final nos seja devolvido! N? (MONTYSUMA; CRUZ, 2006).
Dercy Teles no usa subterfgios, faz um discurso direto, vai ao
cerne do que entende constituir o seu problema principal na relao
com os pesquisadores que se dirigem a Xapuri s dezenas a cada
ano. Autoriza o uso de seu relato, mas exigindo que faamos a devoluo do produto final daquele trabalho, que compreende tanto os
relatos acumulados quanto os textos publicados que se utilizam do
contedo de seus discursos. E ainda complementa com um n?!,
em tom interrogativo exclamativo, convocando reflexo sobre a
nossa responsabilidade de lhes devolver o resultado daquele trabalho, por uma simples questo de justia, de direito a que tm de tambm usufrurem de seus resultados. Cremos tambm na ideia de que
no tico, nem justo, haver algo escrito sobre a pessoa sem ela ter
o domnio daquilo que foi publicado. O incio de seu relato muito
perspicaz, porque ao nomear-me de Marquinhos insinua certa proximidade, por conhecer-me de fato de muito tempo atrs, desde o
perodo em que trabalhei naquele sindicato, como assessor, nos idos
dos anos de 1980, e desse modo os companheiros me tratavam. Mas,
60 ainda assim, resguarda o devido distanciamento pronunciando as

condies sob as quais concederia seu relato. E justo que opere


nessas condies. Prossegue explicando o que vem ocorrendo e por
que age nos termos que foram versados:
Porque ao longo desses anos, principalmente depois da
morte do Chico Mendes, a gente j fez vrios trabalhos
dessa natureza. Centenas de entrevistas que a gente j tem
dado e a gente no tem o produto final desse trabalho, porque interessante a gente ter aqui. N?11

Por intermdio de sua fala acompanhamos a expresso de uma


estrutura de sentimentos presente nos seringais de Xapuri. Seu contedo est pleno de um sentido de pertencimento a uma cultura das
florestas, nos remetendo experincia constituda nas prticas do
fazer cotidiano. Esse fazer cotidiano objeto do olhar admirado do
outro, que para l se dirige na busca do novo ou do que eleito como
tal, dentro do campo dos significados de defesa ecolgica preservacionista das florestas tropicais. Essa corrida se d em razo da
figura de Chico Mendes e de seus companheiros, que lutaram contra fazendeiros e outros instrumentos utilizados pelo Estado para
manter a ordem, contra quem saram vencedores, conquistando as
reservas extrativistas e invertendo a ordem jurdica, aps longos
anos de confronto. O tempo marcado pela sindicalista longo, conforme ela prpria diz: ao longo destes anos. Entendemos que assim
se expressa como marca da sua conscincia de si na histria, na histria da militncia poltica de seu sindicato. Ela refere-se ainda ao
tempo do depois, por certo o mais procurado pelos pesquisadores,
remontando ao perodo das grandes derrubadas das florestas. Era
no tempo das grandes mobilizaes de seringueiros sob a liderana
de Chico Mendes frente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Xapuri. Por isso marca principalmente depois da morte do Chico
11 Entrevista realizada com Dercy Teles, em Xapuri, em 2006, por Marcos F. F. Montysuma e
Tereza A. Cruz. Faz parte do projeto de pesquisa, financiado pelo CNPq, Vises de gnero
na utilizao dos recursos ambientais na Amaznia: uma ponte entre o Acre e o Tocantins
(1964/2006).

61

Mendes como o tempo em que mais passaram a conceder entrevistas, as quais no retornam para seus domnios. Vem da a justificativa de sua atitude registrada nos seguintes termos:
Porque interessante a gente ter aqui a nossa histria registrada e
a gente tambm dispor dela, pra gente lembrar de alguns fatos que
passa na vida e depois a gente s lembra no momento como esse,
que tem algum suscitando essa lembrana, do contrrio passou, t
passado e gente s vivendo o presente, e acaba esquecendo alguma
coisa da histria de si prprio. Por isso importante ter uma cpia
desse produto final.12
Por um lado, o iderio de luta desses sujeitos em defesa de suas
culturas convertido em um instrumento til, com um contedo
administrvel pelos setores sociais que dominariam o conhecimento
acadmico. Estes, de posse das informaes, submetem tudo aos
seus interesses, garantindo a sua prpria projeo, sendo elevados
categoria de cientistas engajados, eventualmente, nas lutas preservacionistas, por estarem realizando pesquisas/entrevistas com os
seringueiros. Mas depois saem de Xapuri sem deixar nada para as
populaes locais. Ainda mais, levam consigo conhecimentos das
culturas das florestas teis aos seus propsitos aprisionando ainda
mais as experincias, as memrias e as histrias relativas aos passados e aos espaos que conhecem e vivem. Nunca mais voltam para
dar satisfaes dos escritos publicados. Por certo, as elaboraes
resultantes de tais contatos possivelmente comportariam ou seriam
passveis de censura pelo simples fato de os seringueiros no concordarem com o que foi escrito sobre o contedo que transmitiram. Por
isso Dercy Teles reivindica a devoluo do produto final, para manter sob o seu domnio e de seus companheiros as memrias registradas, guardadas no seu lugar de origem, para no serem lembradas
somente quando discutidas por pessoas de fora. Dercy pleiteia o
62
12 Entrevista realizada com Dercy Teles. Ver nota 12.

domnio de suas memrias para significar a sua histria, numa atitude protagonista do exerccio de elaborao. Assim fazendo acaba
discernindo papis, deixando de ser alvo til da elaborao do outro
de um modo passivo, apenas como fonte, como informante. Entendemos, e com justa razo, que quer ela prpria ser a pessoa a discutir
e a reinventar a sua prpria histria e a de seus companheiros, atuando e compartilhando o exerccio social criativo.
Com base nessa mesma compreenso, foi recepcionada a fala de
Dona Raimunda Gomes, lder fundadora da Associao das Quebradeiras de Coco, na regio do Bico do Papagaio, no Tocantins. No
momento da entrevista, no mais desempenhava um mandato poltico na diretoria, mas mantinha expressiva liderana junto s suas
companheiras. Ela, quando questionada se nos autorizava a utilizar
seu relato, falou nos seguintes termos:
Olha, eu autorizo sempre essa nossa histria. em qualquer
relato, em qualquer filme, porque ns fomos sempre escondidas, no Maranho, no Piau, no Par, em vrios lugares
deste pas, principalmente no Maranho, que o principal
lugar que as companheiras mais quebravam coco. Tem companheira a que quebra coco no Tocantins, mas vieram do
Maranho... A essa histria bom que ela seja divulgada.13

Dona Raimunda14 nos autoriza a usar o seu relato porque est


ela tambm situada numa estrutura de sentimentos e integrada num
pertencimento de responsabilidade coletiva na construo da histria das mulheres quebradeiras de coco. Por isso fala que autoriza
sempre essa nossa histria. Essa formulao aponta para a proximidade do pertencimento da/na histria construda/vivenciada por
13 Entrevista realizada com Raimunda Gomes, em So Miguel do Tocantins, em 2007, por
Marcos F. F. Montysuma. Faz parte do projeto de pesquisa, financiado pelo CNPq, Vises
de gnero na utilizao dos recursos ambientais na Amaznia: uma ponte entre o Acre e o
Tocantins (1964/2006).
14 Lder das quebradeiras de coco em So Miguel do Tocantins, Tocantins. Fundadora do
Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babau (MIQCB) e membro da diretoria do Conselho Nacional dos Seringueiros (MONTYSUMA, 2006).

63

ela e por suas companheiras, aquelas que foram sempre escondidas


pelos interesses de toda ordem. Dona Raimunda fala da construo
de uma invisibilidade das mulheres quebradeiras de coco e toda e
qualquer forma de dar visibilidade a elas lhe ocorre ser bem-vinda.
Por isso nos autoriza. Ela assim como suas companheiras e seus
familiares dirigiram-se para a regio, principalmente aquelas oriundas do Maranho, vem da o destaque para essa histria, a histria
dessas mulheres protagonistas, visto terem sido elas as que enfrentaram jagunos. essa histria, a vivida por elas, porque no outra,
elas no querem, no admitem que seja outra, por isso reivindicam
e autorizam que seja divulgada. Desse modo, assinala-se que tal processo ocorreu marcado pela perseguio no tempo dos conflitos de
terra, conforme rememora no trecho seguinte:
Porque em [19]79 eu j imaginava isso com as companheiras quando cheguei aqui. Quando chegamos aqui, era em
cima dos conflitos de terra muito grande que existia aqui...
que eram terras, que eram ocupadas pelo povo h muitos
anos. Desde [19]40, [19]50 o pessoal j migrava do Cear,
Maranho, Piau, de todo lugar... Porque a vida l pra fora
j tava ruim, e comearam a tomar... Estas terras aqui eram
muito boas.15

64

Era o tempo marcado pelos conflitos, porque a terra era boa, era
boa para plantar, como falam os agricultores. Mas a mesma terra
era tambm objeto de cobia dos fazendeiros, que queriam aqueles
espaos para plantar pastos utilizados na pecuria. Por isso Dona
Raimunda pontua de modo singular, no relato de suas experincias,
o perodo agudo dos conflitos motivados por disputas de terras. Sua
formao poltica se coloca no fazer cotidiano, no calor da hora das
aes, que exige dela e das companheiras uma atitude rpida para
frear o avano de jagunos, da polcia, enfim, para assegurar a estabilidade e a vida aos seus familiares. Mas, ainda que relate a importncia da luta pela conquista da terra, ela tambm adere, ou se v
15 Entrevista com Raimunda Gomes. Ver nota 14.

pertencente a outra categoria de ativistas polticos, qual seja, a de


extrativistas, filiando-se a outro grupo liderado por Chico Mendes.
A categoria de extrativistas no est posta nessa parte de seu discurso, s apareceria mais tarde. Mas aqui ela j d um prembulo do
que viria mais frente. Seu discurso ganha esse contorno porque, ao
discutir os conflitos agrrios, aponta para outras dimenses, dentro de outras temticas circunscritas no presente. Ou seja, a categoria extrativista, e extrativista como sinnimo de preservacionista
do meio ambiente, uma construo de significados no presente.
Vejamos:
Quando foi de [19]74 pra c comearam os conflitos de
terra, nessa regio, e a gente lutava pela terra e a gente no
falava que lutava pela sobrevivncia do babau, que a gente
no falava que lutava pela preservao do meio ambiente,
porque a gente tinha mais necessidade da terra, que era uma
questo fundiria. E a gente no via que lutava tambm pela
preservao do babau, porque a gente sem terra, com as
terras tomadas a gente era pobre. A gente no via que tava
mais abaixo da linha da pobreza porque as terras tinham
sido tomadas e a gente no tinha onde trabalhar, nem tinha
terra da gente nem dos outros pra trabalhar. E nisso no
tinha como preservar o meio ambiente porque no tinha
terra.16

A dimenso atribuda por Dona Raimunda luta das mulheres


pela conquista da terra, reconhecidamente, centrava-se na conquista
da terra em si, ignorando o babau como instrumento pelo qual elas
se vinculavam terra. E assim se vinculavam quela terra, e no a
outra terra, porque nela havia babau. Terra por terra, em tese qualquer uma bastaria, mas no: aquela terra que tem o babau. Mas
Dona Raimunda, ainda assim, destaca: a gente lutava pela terra,
porque, antes de tudo, reconheciam-se como agricultores. Naquela
cultura, cabe aos homens produzir os gneros alimentcios e cuidar
das plantaes da mandioca, do milho, do arroz e demais produtos.
65
16 Entrevista com Raimunda Gomes. Ver nota 14.

Mas so as mulheres que enxergam as terras ricas em babau e apontam para a terra boa para a famlia ocupar. Vem dessa compreenso
uma dimenso de lutar pela conquista de determinado espao de
terra. O parmetro que orienta a luta pela terra pressupe existir o
babau. Mas, para as mulheres, naquele momento, no havia a conscincia quanto ao uso dos recursos do ambiente, o babau como tal
no era cogitado como um instrumento que constitusse contedo
para elaborar o argumento que possibilitasse lutar por sua preservao. E, nesses marcos, a terra lhes pertenceria por uma relao de
carter cultural com aquela espcie de palmeira. Mas no por esse
entendimento que elaboram suas reivindicaes. A luta para sarem da linha da pobreza e a conquista da terra lhes possibilita tal
superao.
Mas, ao lutarem por aquela terra, mais tarde tomariam conhecimento da luta dos seringueiros de Xapuri, que se mobilizavam em
defesa da preservao das florestas que continham seringais. Dona
Raimunda e suas companheiras tambm se perceberam atuando em
defesa do babau. Mas, inicialmente, no perceberam que conquistando a terra, que continha o babau, tambm preservariam o meio
ambiente. S transcorrido determinado tempo que tal sentido lhes
pareceu to bvio, a partir da envidaro esforos para que essa condio seja reconhecida e se empenharo na organizao poltica da
categoria de mulheres extrativistas quebradeiras de coco.
No demais lembrar que as pessoas haviam chegado regio
do Bico do Papagaio, no estado do Par, oriundas de outros estados
do Nordeste, j expulsas pelas parcas condies materiais e sociais
de sobrevivncia a partir das dcadas de 1950 e 1960. Ali constituam posse das terras devolutas e, com o passar dos anos, principalmente a partir da dcada de 1970, fazendeiros chamaram para si a
condio de donos da terra, questionando a posse daquelas famlias
extrativistas.
Vem desse perodo a luta pela terra na regio. Mas Dona Rai66 munda percebe que a prtica extrativista do babau, que lhes asse-

gura alimento, produo de sabo, leo e at de moradia, exigia das


mulheres cuidados excepcionais com a palmeira do babau. Falo das
mulheres porque so elas que se dedicam integralmente sua manipulao. atravs das suas mos que se transmite a cultura extrativista do babau. Porque dominam todo o manejo, manipulam o
fruto para produzir receitas de toda ordem, que resultam em leo,
sabo, e tratam as palhas da palmeira para cobrir e cercar casas. Em
suma, conhecem as estaes e os meios para tornar o babau til em
seus cotidianos. E assim significou:
Ento por isso importante isso ser divulgado, principalmente dentro da universidade, porque dentro da universidade os estudos completamente distorcido da realidade da
vida da gente. J falei isso dentro da universidade de Piracicaba, onde eu tive, e na Universidade do Rio Grande do Sul,
na UNB [...]17

Ento, essas mulheres escondidas, tal como relatado por Dona


Raimunda, tm uma histria para ser conhecida. Foi por esse motivo
que autorizou o uso de seu relato destacando que importante isso
ser divulgado. Agora, caro leitor, veja o escrnio que se abate sobre
ns, os pesquisadores, que mantemos contato com essas populaes.
Em seu discurso, ela autoriza o uso desse contedo, para ser divulgado, por uma razo, conforme frisou: principalmente dentro da
universidade, porque dentro da universidade os estudos completamente distorcido da realidade da vida da gente. Com isso a entrevistada d a devida dimenso do quanto so vtimas em nossas mos,
por aquilo que somos capazes de produzir, distorcendo os ricos relatos que nos chegam. Temos, nesse trecho, a mais contundente crtica
ao trabalho que ns, os pesquisadores, realizamos com esses povos.
Seja em Xapuri, seja no Bico do Papagaio ou qualquer outro lugar,
temos a capacidade de elaborar, com o material adquirido, as mais
espantosas teorias e interpretaes que no lhes satisfazem, que no
67
17 Entrevista com Raimunda Gomes. Ver nota 14.

lhes agradam, que deturpam, corrompem, distorcem a sua realidade.


E Dona Raimunda, uma mulher que no foi universidade, percebe
isso e se posiciona criticamente. A seu modo, nos confia uma oportunidade para dar outros rumos sua histria, que de certo fora
deturpada por outras pessoas, em outras oportunidades.
Retomando as questes iniciais, temos ento que tanto a minha
histria de vida quanto aquelas situaes encontradas nas pessoas
com as quais venho interagindo possibilitam exercitarmos as prticas
em nosso ofcio. Tanto Dercy quanto Dona Raimunda nos provocam
a pensar numa militncia comprometida, poltica e eticamente, com
maneiras de nos comportarmos na relao com o outro, a considerar
a subjetividade intermediando as negociaes postas na ordem do
dia. Porque nos autorizar a usar um relato no pressupe apenas a
permisso ao pesquisador para poder us-lo livremente, mas, acima
de tudo, envolve comprometer-se com a manuteno de um sentido,
aquele dado pela pessoa que fala. Afastar-se dele significa corromper
o contedo que expressa a cultura e os sentidos polticos da fala do
outro. Dercy e Raimunda esto de prontido para essas dimenses
da subjetividade na histria oral. E, no fundo, tudo que elas mais
querem manter o domnio a respeito do que se escreve sobre as
suas histrias.
Referncias:
KHOURY, Yara Aun. Diversidade cultural, incluso social e a escrita da histria. In:
CONGRESSO NACIONAL DE HISTRIA ORAL, 14., 2006, Rio Branco, Acre.
Texto digitado.
MONTYSUMA, Marcos F. F. Projeto vises de gnero na utilizao dos recursos
ambientais na Amaznia: uma ponte entre o Acre e Tocantins (1964/2006). Florianpolis: UFSC/CNPq, 2006.
NORBERTO, Gentil Tristo. Dirio militar da expedio em volta da empresa 237-110. Rio de Janeiro: Acervo do Itamaty, 1901.

68

PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrnicos: memrias e possveis mundos dos trabalhadores. Projeto Histria, So Paulo, n. 10, p. 41-58, dez. 1993.

4. Memria e politizao em testemunhos de


operrios militantes argentinos (1955-1976)
Pablo Alejandro Pozzi
Traduo: Robson Laverdi
Durante os ltimos anos, diferentes pesquisadores tm se dedicado a estudar o fenmeno da militncia da dcada de 1966 a 1976.
A carncia de acesso s fontes documentais tem levado muitos a
depender de entrevistas com os diversos protagonistas como fonte e
janela para a subjetividade militante. Em geral, essas pesquisas tm
trazido uma indubitvel riqueza ao conhecimento histrico do perodo, incluindo aspectos como a complexidade dos processos de politizao individual e coletiva, a importncia da militncia feminina,
a construo de mitos nas histrias partidrias ou a continuidade de
tradies e sua ressignificao em prticas revolucionrias socialistas. Ao mesmo tempo, os entrevistadores vm sendo cuidadosos ao
trabalhar temas como: gnero, experincia, deferncia e hierarquia,
alm do papel da subjetividade no testemunho. O resultado tem provocado uma maior e mais profunda compreenso deste que considerado o perodo histrico central para a constituio da sociedade
argentina contempornea.
Um dos aspectos que deveramos comear a encarar nos testemunhos o tema das diferenas de procedncia social (ou seja,
de classe), tanto na dinmica entrevistador-entrevistado como para
explicar, entre outras coisas, as diferenas na estrutura narrativa, os
detonadores da memria e os significados e significantes do discurso.
Isso importante, em particular, porque, ainda que tenhamos nos 69

concentrado em entrevistar antigos militantes provenientes de setores mdios por sua acessibilidade e disposio de oferecer os testemunhos , o perodo estudado se apresenta notvel. Por um lado,
pela forte politizao de mulheres e, por outro, dos prprios trabalhadores. De fato, minha pesquisa sobre o Partido Revolucionrio
dos Trabalhadores Exrcito Revolucionrio do Povo (PRT-ERP)
deixa claro que por pouco essa organizao teria uma composio
social representativa muito prxima daquela da sociedade argentina
da poca, conseguindo envolver uma quantidade considervel de
operrios e operrias. Com relao aos mais de seis mil militantes
do PRT-ERP no final de 1975, pude reconstruir a histria de vida de
setecentos deles. Desse total, utilizando como categorizao a localizao social da procedncia da famlia, inferi que 45% provinham da
classe trabalhadora (trabalhadores rurais, industriais e da construo), incluindo uma quantidade que provinha de famlias de iderios
peronistas (POZZI, 2001, p. 73).
Trata-se aqui de lanar algumas ideias em torno de diferenas
que distinguem os testemunhos oferecidos por entrevistados de origem social trabalhadora, em particular a respeito de como explicam
o seu processo de politizao. A premissa bsica a de que as narrativas so significativamente distintas enquanto imagens, nfases e
modos de estruturar suas explicaes em relao queles que provm de outros setores sociais. O que parecem indicar os testemunhos que a politizao compreendida como algo natural, ou seja,
como uma extenso de sua experincia de vida, mais do que como
um despertar ou um processo de politizao.18 Por exemplo, explicou um entrevistado: Comecei a lembrar da vida de onde vivamos.
Nas obragens, como vivia a gente [...] que havia superexplorao, que
no pagavam salrio, que lhes pagavam com papis, com mercadoria, que no tinha atendimento mdico, que morriam sangrando por
suas feridas, por picadas de cobras, que se, at lepra tinha havido no
70

18 Todos os testemunhos citados se encontram transcritos e em udio, disponveis no arquivo


do Programa de Histria Oral, Instituto de Investigaes Bibliotecolgicas, Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (UBA), Argentina.

povoado em que eu vivia; e eles [os companheiros] me diziam isso


violncia, isso tambm violncia.19
Essa viso diferente daquela a que estamos acostumados, pois a
tendncia, tanto do investigador como dos entrevistados pertencentes aos setores mdios, explicar a politizao como um processo
vivido, e tambm externo, que produz um despertar para uma realidade social injusta e cruenta. Um exemplo disso o testemunho
de Vasco, um advogado, que at 1968 era estudante na Faculdade de
Direito da Universidade de Crdoba:
Eu lia tudo que estava acontecendo em Tucumn. A resistncia dos trabalhadores ao fechar os engenhos. As marchas. A situao social que se vivia em Tucumn. E isso me
impacta muitssimo. [...] Bom, nesse momento, Tucumn
era um barril de plvora. E a mim tudo o que era social me
interessava muito. E a partir dali me dava conta que isto, de
estudar e de estar na universidade e outras coisas, no me
permitia conhecer muitas coisas. Estava como que cansado
de uma vida de estudo, de no conhecer outras coisas. []
Primeiro vivi a situao social de San Jos. [] As pessoas
viviam muito, muito mal, muito mal. [] Ento, a situao
social me sensibilizou muito, muito impactante.20

A estrutura do testemunho clara: h uma progresso racional


dos fatos baseada num processo de estmulo-resposta. Diferentemente da entrevista anterior, consideramos o testemunho de Poroto,
um motorista de nibus urbano, ativista peronista, filho de lenhador
na provncia de Santiago del Estero:
Bom, me lembro que o dia em que se fundou o sindicato,
a mim me mantiveram preso [...] Porque o meu irmo o
haviam detido em Crdoba [...eu] no militava, mas era
irmo de um guerrilheiro [...] eu andava com a cabea em
outra coisa, nada a ver. [...] Me acusaram de qualquer coisa,
19 Entrevista realizada com Angel Poroto Gutirrez, em Santiago del Estero, em 1992, por
Pablo Pozzi.
20 Entrevista realizada com Carlos Vasco Orzaocoa, em Crdoba, em 1993, por Pablo Pozzi.

71

72

que sabia onde havia um esconderijo de armas [...], mas


nesse momento eu no tinha nada a ver com a histria do
PRT, nem de nada. Eu confiava em Deus eu calculo que
foi a que me saiu a religiosidade , que j se vai fazer justia,
que j vo me soltar. He, me soltaram com a anistia! [...]
Nos transferiram para a [priso de segurana mxima de]
Rawson [...] Eu queria estar com meu irmo. Ento, um dia
fao um pedido, uma entrevista com o diretor. O tipo me
concede a entrevista e me diz: voc que problema tem? E eu
lhe disse: Eu tenho um irmo que est em outro pavilho
e quero estar com ele para ter notcias de minha famlia. O
tipo disse: Mas voc comunista. Eu, para mim era uma
novidade. Ou seja, a priso me fez mudar, descobri coisas.
Era como se tivesse tomado conscincia de muitas situaes
que no as entendia, eu sempre confiava em Deus. Eu comecei a me desiludir com o peronismo, entende? Nem tinha
ideia do que estava acontecendo. Como dizem agora, era
um estpido total. Fiz-me amigo de um tucumano, que era
filho de um operrio de cana-de-acar; tambm do PRT, e
eu me lembro que ele dizia: No sei por que me prenderam,
mas no sei, creio em Deus, que vai se fazer justia. [Ele
dizia]: Mas ters que estudar algo aqui, aproveitar o tempo
at que o soltem. E me fiz amigo de um cara de Santiago
de Estero, igual eu. Um dia lhe disse: ter que me emprestar isso que vem de vocs, eram livros polticos. Comecei
a ler um, outro, eu gostava. E lendo os livros eu comecei
a pensar em poltica. Estava comeando a descobrir o que
era ideologia e era como que atravs dessa descoberta havia
comeado a me ver, a ver onde eu estava, por que estava
ali preso. Lembro-me que uma das coisas que havia me
impactado era a luta de classes. Eram coisas que a mim me
fascinavam, porque dizia: Isto certo, eu estou aqui porque h luta de classes e eu estou do lado de uma classe que
est enfrentando outra classe, e todos os que estamos aqui
somos de uma classe. Porque veja, o catador filho de catador de cana; Humberto pedreiro; outro que havia trabalhado nas minas de Jujuy; eu era motorista de nibus; tenho
um irmo que estuda, h estudantes, mas so filhos de gente
trabalhadora que esfola a bunda para estudar os filhos. E

claro era como que, veja, eu me sentia forte, era como dizia:
No, ou, eu no estou aqui arrependido de nada. Aqui eu
fui ignorante que no sabia nada e estou agradecido, no sei
se agradecido a Deus ou a quem agradeo que me trouxe
para c, para conhecer isto. E era como se aquilo fosse me
definindo politicamente. [...] eu sentia que havia feito meu
nome e que, alm disso, eu sabia o que queria, e o que queria
no estava em contradio com minha conscincia. Eu sempre, minha conscincia est tranquila, entende?21

Se, por um lado, o relato de Vasco uma progresso racional,


por outro, o de Poroto uma narrao existencial em que o eixo a
revelao do oculto. Para o primeiro, a politizao um processo que
se inicia com a informao jornalstica que o levara a conhecer uma
dada realidade, segundo ele, impactante. O impacto o que teria
gerado o despertar e a politizao, todo relatado em um tom srio e
contido, que tendia a enfatizar o peso do que havia dito. A mudana
para o operrio que viera de Santiago del Estero era de que ele era
comunista de fato, ou seja, sem se dar conta. Para o primeiro, a leitura foi o incio do processo, ainda que para o segundo o que promoveu a mudana foi o crcere e a leitura, que lhe permitiram explicar
[revelar?] o porqu de sua situao. De fato, para Vasco, a tomada
de conscincia poltica um despertar: h um antes e um depois.
J para Poroto, se bem que tambm haja um antes e um depois, o
divisor de guas no a confirmao da injustia, mas sim a explicao de sua realidade. Assim, a politizao no apresentada como
a ruptura, mas, numa forma secundria, de fato o que o completa
como ser humano.
Por outro lado, cada uma das narrativas articulada de forma
distinta. Poroto busca enfatizar os postos-chave de seu testemunho
com adjetivos contundentes (estpido) e com ironia, ainda que a
todo o momento buscasse reconciliar sua vida e sua militncia s
suas crenas (no sei se estou agradecido a Deus). Em outro sen21 Entrevista realizada com Angel Poroto Gutirrez. Ver nota 20.

73

tido, Vasco tenta a todo instante ser preciso, exato em sua explicao. Ele busca certa lgica no relato de seu processo de politizao,
de outro modo Poroto enfatiza que a militncia um produto de
sua vida e, por assim dizer, coloca-a como algo natural: certo,
estou aqui porque h luta de classes. Se, para Vasco, a militncia foi
produto de um despertar, para Poroto a politizao no nenhum
processo, tampouco um despertar, mas uma extenso da realidade
social que revelada de forma plena atravs de leituras polticas.
Outro testemunho similar ao de Poroto o de Goyo, um operrio mecnico de Crdoba, filho de pees rurais, que chegou militncia marxista proveniente de um passado catlico e nacionalista.
Uma vez mais se repetem os temas: a ironia, o uso da adjetivao
para ressaltar aspectos de sua histria e o fato de a militncia ser
apresentada como uma extenso natural de sua experincia de vida.
Como no caso de Poroto, a politizao no representa uma ruptura
com suas crenas anteriores, pelo contrrio, ele d nfase sua continuidade. Em ambos os casos, a educao (leitura) assume o papel
central para explicar a realidade. Goyo explica em seu testemunho:

74

Puseram um aviso no dia de eleio aqui, na minha seo;


e sa por unanimidade. Os chamava de negros, a puta que
o pariu [risos], eu no quero ser delegado, me vo encher
de merda, porque a todos enchem de merda. Ento, eu no
queria saber de nada. Mas bem, sa por unanimidade. Bah,
agarrei e j uma vez que agarrei bem este... vivi todo o processo da greve, que sa bem, tive uma grande experincia, e
me dei conta que havia muitas coisas que eu no entendia.
Eu tinha terror aos comunistas, mas terror, me parecia que
tinham cara diferente, que tinham uma viso... de.... assim
claro assim... eu me lembro havia um tal Nicols e tinha
uns olhos grandes assim e saltados e eu dizia, que cara de
comunista que tem esse tipo. Olha a imagem que teria eu!
Mas, terrvel, terrvel. E... e tinha um amigo que era do PC,
muito combativo, muito combativo, e ele me falava sempre.
[...] Este... em [19]65 saiu uma invaso a Santo Domingo,
e ns estvamos em uma assembleia pela discusso de

convnio e, num determinado, momento este rapaz pediu


a palavra e disse... que queria que a assembleia fizesse um
repdio contra os marines americanos que estavam invadindo Santo Domingo. Eu assoviei pra todo mundo! Eu
dizia: mas que negro estpido, mas que merda teria que
ver Santo Domingo conosco que estamos discutindo um
convnio coletivo! Deixem-me de encher o saco!. E chorava o pobre negro... Este... e bem depois com o tempo pude
entender. Quando perdemos a greve em [19]65, eu disse:
aqui isto uma confuso. E ento eu disse: bem, eu tenho
que me pr estudar. Eu me pus a estudar por meus prprios
meios, estudei, estudei, estudei, fui buscando e digo: puta
merda, tenho que ser um esquerdista! [risos] Foi atravs de
um processo muito, muito duro, porque eu era nacionalista,
eu sempre me reivindiquei como um nacionalista.22

De alguma maneira, Goyo e Poroto parecem rir do que entendem como sua situao prvia de militncia: a no compreenso das
chaves de sua prpria vida que, alm disso, so evidentes para outros
(Poroto e o comentrio do diretor, Goyo e o operrio militante do
PC). Uma vez mais, em Goyo se repete o processo em que a vida
leva politizao e o catalisador a educao. O tema da educao, sobretudo em seu aspecto autodidata, algo central na cultura
operria argentina. Desde a poca dos anarquistas, os trabalhadores
argentinos tm ressignificado as tradues do radicalismo artesanal
que difundem a ideia: a educao te far livre. Assim, o conhecimento no implica um despertar, e sim uma compreenso plena do
processo de explorao, sendo por assim dizer central dignidade
humana. Esse conhecimento se adquire tanto pela educao formal
como pela leitura e experincia de vida. Como expressou um entrevistado a este entrevistador: Eu fui a uma universidade que vocs
nunca pisaram, garoto: a universidade da rua.23 Um elemento central nessa educao pela transmisso oral so os ensinamentos dos
22 Entrevista realizada com Gregorio Goyo Flores, em Buenos Aires, em 1994, por
Pablo Pozzi.
23 Entrevista com Eduardo Tesini, em Nova Iorque, em 1983, por Pablo Pozzi.

75

76

companheiros de trabalho ou de bairro. Por exemplo, segundo Mario


Leiva, operrio mecnico cordobs, militante do peronismo de base:
Aos 15 anos me despediram por agitar os companheiros de trabalho.
Para que no houvesse briga, os patres me recomendaram a uma
oficina metalrgica para quando sasse da escola. Entrei a no tempo
das frias. Ainda ia ao secundrio. No quarto ano, um professor nos
dava matemtica. Dizia que para entender a matemtica tinha que
entender o peronismo e vice-versa. Ento a aula era uma hora de
poltica peronista e uma hora de matemtica. Sempre comeava
com a histria do peronismo. A me politizou unilateralmente, pois
o professor s falava da grandeza de Pern e de que o mais nobre
era ir trabalhar em uma fbrica de avies. Para fazer a Argentina
grande. O professor tambm nos dizia que os peronistas so os que
vm de baixo: os da base. Ademais, comeou a frequentar nossa
casa msicos que meu pai trazia: eram mais politizados e falavam
da revoluo. Diziam que tnhamos de fazer algo. Eram esquerdistas
peronistas.24
A estrutura e o tom do relato repetem pautas encontradas nos de
Goyo e de Poroto: o comeo esclarecendo que j havia antecedentes
de ativista, o tom irnico, a revelao. Mario inicia afirmando que
ele j era um ativista para explicar sua politizao atravs de uma
combinao entre o papel do seu professor no secundrio e o dos
esquerdistas peronistas. No entanto ele se esfora por assinalar a
diferena entre a viso de seu professor e uma viso classista, ao
especificar que somente falava da grandeza de Pern. Essa frase,
em sua narrao, marca a separao entre o intelectual politizado,
que no entende de tudo da realidade, e a experincia operria, que
somente pode ser compreendida na sua plenitude quando outros
trabalhadores a explicam.
Para ressaltar esse ponto, consideraremos brevemente dois testemunhos de antigos militantes do PRT-ERP. O primeiro o de Leonel
24 Entrevista realizada com Mario Leiva, em Crdoba, em 1994, por Pablo Pozzi.

Urbano, mdico nascido na cidade de Bahia Blanca, o segundo de


Humberto Tumini, filho de uma abastada famlia de Crdoba.
Explicou Urbano:
Lembro de ter lido a Jos Ingenieros [] Uma espcie de
bblia, para mim era... E quando tinha16, 17 anos, li uns
livros que iam me impactar para o resto de minha vida, que
ademais os recomendo a todos os que no o leram. Um foi
Mis gloriosos hermanos, de Howard Fast, um escritor norte-americano, comunista [] a histria de Jehuda, o Macabeu, e praticamente a reconstruo da primeira guerrilha
dos macabeus contra os assrios que invadiram a Judeia, e
um livro lindo. [] E esta a primeira histria de uma
guerrilha que eu tenho em mente, de uma guerrilha e por
uma causa justa. E de Howard Fast, tambm quase simultaneamente, devo ter lido Esprtaco [] Isso definiu parte
de minha formao poltica. E me lembro de dois livros,
um que se chama Operacin noche y neblina, que um livro
muito lindo, com dados histricos de como, desde a Hungria, Bulgria, do Leste europeu, se organizam uma rede
de contraespionagem antinazista, que para guerrear, para
resistir e para criar redes de escape de judeus e que depois
se podiam ciganos, comunistas.25

Em sua entrevista, Tumini contou como comeou a militar:


Eu de poltica no entendia uma merda. Era muito baixo
meu nvel poltico. [] Eu me contatei com dois amigos
que eu via que estavam em algo. Ento lhe disse: Por que
no me passam algo?. No vim a me convencer, eu fui falar
com eles. Disse-lhes: Vocs, o que fazem?. Passaram-me
um par de documentos que no tinham assinatura, eram
documentos de linha poltica, e no me diziam o nome da
organizao. Ento, eu no sabia em qual organizao estavam. Eu li os documentos e me pareceram bons; no entendi
uma merda, mas, ademais, ali dizia que havia que enfrentar
25 Entrevista realizada com Abel Leonel Urbano Bohoslavsky, em Buenos Aires, em 1999,
por Pablo Pozzi.

77

com as armas. Ento eu disse: Eu estou de acordo, vamos


fazer algo [] E bem, assim me somei ao ERP. Ou seja,
eu me somei ao ERP, marxismo-leninismo marxis... que eu,
com quarenta livros lidos nesse ano de [19]70.26

Claramente, no testemunho de Urbano, a leitura das obras de


Ingenieros e de Fast foram chaves em seu despertar poltico. Para
Tumini, o relato partiu de uma relao de amizade e de uma inquietude quase aventureira para clarear, imediatamente, ao ler quarenta
livros. Em vez disso, para Mario Leiva, Poroto e Goyo, as chaves
desse despertar se encontravam na prpria realidade de vida como
trabalhador. De nenhuma maneira isso implicava dizer que a experincia de vida no jogara um papel importante tanto na politizao
de Urbano como na de Vasco e de Tumini. Alm do mais, tratava-se de assinalar como se constri e se apresenta o testemunho. Para
os trabalhadores entrevistados, a politizao partia de uma explicao em torno de sua realidade laboral ou existencial, e a educao
servia para revelar e explicar uma vida j existente. Da que todos
os testemunhos de operrios sobre a politizao tendem a comear explicando a situao laboral do entrevistado, sua participao
em distintas lutas, para, eventualmente, recontar como um companheiro explica a realidade ou o leva a leituras polticas que o faam.
Por detrs disso, o que sugerem as coincidncias nos relatos desses trabalhadores militantes a existncia de uma estrutura de sentimento, um sentido comum, genericamente classista, que vai dando
contexto e explicao a uma vida durssima e muito explorada. Para
os entrevistados em particular, a luta de classes no um conceito
terico, a sua vida. Isso o que transmite Poroto, no como ideologia, e sim como experincia: os patres so o inimigo; o peronismo
um engano; a dignidade do ser humano est intimamente vinculada
luta consciente contra o sistema de explorao. a partir de suas
experincias como operrios que os entrevistados desenvolveram
78

26 Entrevista realizada com Humberto Tumini, em Buenos Aires, em 1991 e 1992, por Pablo
Pozzi e Mara C. Scaglia.

uma forte conscincia para si. E por isso que os testemunhos assinalam momentos culminantes de conflitividade nos quais haviam
sido protagonistas.
Aqui surge novamente o problema da politizao desses operrios argentinos. O que seria pertinente colocar o que entendiam os
obreiros argentinos em geral e estes testemunhantes em particular
por poltica. vlido sublinhar que nas entrevistas anteriormente
citadas, tanto Poroto como Goyo e Mario Leiva assinalaram que
tinham uma participao importante nas lutas operrias, algo igual a
uma ideologia (catlica, peronista ou nacionalista). Contudo, todos
eles no pareceram considerar essa participao como poltica; de
fato todos consideraram sua politizao como a militncia de uma
organizao determinada. A imagem que emerge aquela a partir da
qual a incorporao militncia foi algo natural, produto da experincia de vida e da estrutura de sentimento forjada durante vrias
geraes de uma famlia operria. Ao mesmo tempo, seria importante contrastar os testemunhos de operrios militantes com o de
no militantes e compar-los, por sua vez, a partir dos gneros.
No devemos supor que o testemunho de um operrio politizado
necessariamente expresse uma estrutura de sentimento que se pode
generalizar para o conjunto dos trabalhadores. Ao fim e ao cabo, a
prpria politizao algo que diferencia o operrio militante. Contudo, o que sugerem os testemunhos discutidos que os discursos e
narraes de cada um desses militantes se articulam a uma cultura
e sentido comuns, que so compartilhados pelo conjunto dos trabalhadores e os diferenciam de outros setores sociais.
Referncias:
POZZI, Pablo. El PRT-ERP: la guerrilla marxista. Buenos Aires: EUDEBA, 2001.

79

TE

PAR

II

PARTE II
HISTRIA ORAL, MEMRIA, SUBJETIVIDADE

1. Do que falamos quando empregamos o termo subjetividade na prtica da histria oral?


Benito Bisso Schmidt

Resolvi, neste texto, no apresentar aspectos de uma pesquisa


especfica, mas expor algumas reflexes de cunho mais terico
sobre as relaes entre os trs termos que compem o ttulo da
nossa mesa-redonda: histria oral, memria e subjetividades, especialmente sobre este ltimo, pois me parece e acentuo o carter
impressionista dessa afirmao que, em geral, ainda partimos, em
nossas investigaes que envolvem a metodologia da histria oral, de
uma noo muito vaga, de senso comum mesmo, do que seja subjetividade, sem nos preocuparmos com uma utilizao mais precisa
e teoricamente fundamentada do termo. Obviamente, as reflexes
que aqui proponho dialogam com a minha prtica de histria oral,
mas, reafirmo, as consideraes que seguem so prioritariamente
de ordem terica. Em todo caso, espero que elas contribuam para a
nossa discusso sobre as potencialidades e os limites da histria oral.
Como sabemos, a histria oral envolve a produo, atravs dos
complexos mecanismos da memria e por meio da relao dialgica entre entrevistador e entrevistado, de narrativas autobiogrficas.
Mesmo quando os nossos entrevistados falam de outras pessoas ou de
eventos dos quais no participaram diretamente, eles o fazem a partir
de suas vivncias e vises de mundo particulares ainda que socialmente condicionadas , de seu prprio eu. Afinal, como ressalta
Krzysztof Pomian (2002), a memria intrinsecamente egocntrica. 83

Uma das primeiras bandeiras da histria oral foi justamente a


possibilidade de trazer tona a subjetividade dos agentes, suas emoes e sentimentos, de inserir nas explicaes histricas a dimenso
subjetiva dos processos sociais. Tal expectativa relaciona-se com a
crtica aos grandes paradigmas de cunho estruturalista e/ou funcionalista, s explicaes macro-orientadas e s interpretaes que
levam em conta apenas os atos conscientes e os discursos racionais
dos indivduos (vistos aqui como encarnaes concretas da fico
cientfica do sculo XIX: o homo economicus). Nessa proposta
principalmente na chamada fase heroica, pioneira ou romntica
da histria oral , associaram-se, e seguidamente confundiram-se, os
termos subjetividade, indivduo, sentimento, inconsciente e irracional, termos esses que remetem a teorias sociolgicas, psicolgicas e
psicanalticas bastante densas e complexas, mas que, seguidamente,
serviam e ainda servem, creio eu para justificar a importncia da
histria oral como uma contra-histria, diferente daquela produzida de forma preponderante na academia.
Ao ser incorporada nas universidades, a histria oral passou por
um rigoroso repensar de seus referenciais tericos e de seus procedimentos metodolgicos, o que, segundo alguns autores, conduziu-a
a um distanciamento de seus projetos polticos iniciais. Os praticantes dessa metodologia tiveram que incorporar sua formao e
sua bagagem, por exemplo, os debates sobre memria e sobre suas
complexas relaes/tenses com a histria; tiveram tambm que discutir os aspectos narrativos das falas que colhiam, ficando atentos
no s e talvez no preponderantemente ao contedo emprico
delas, mas igualmente sua formulao como discurso, aos seus
encadeamentos lgicos e semnticos, sua funo de produtoras de
sentido. Dessa caminhada resultaram, a meu ver, os melhores trabalhos de histria oral, ou que empregaram de forma substantiva
essa metodologia, surgidos nas ltimas dcadas.27 Porm, parece-me
que as discusses sobre o termo subjetividade ainda no mereceram
84
27 Como exemplo bem-sucedido dessa reflexo, destaco o livro de Daniel James (2000).

o mesmo investimento em termos de debate e reflexo, ao menos


no coletivamente.28 Seguidamente ainda utilizamos e eu fao isso
com frequncia a palavra de forma vaga e imprecisa. Continuamos
um tanto deslumbrados com a possibilidade de recuperar a subjetividade dos nossos entrevistados, mas ou no pensamos muito bem
em como fazer isso, ou acreditamos que podemos faz-lo de forma
intuitiva.29 Acredito e essa a minha proposta para a discusso
que, de maneira geral, ainda estamos mal equipados, em termos
tericos e metodolgicos, para dar conta dessa dimenso. Normalmente, de maneira muito impressionista, descrevemos as emoes
dos depoentes e buscamos inferir as influncias destas sobre o que
eles lembram, recalcam, esquecem e silenciam. Por exemplo, analisamos os ditos e os no ditos que configuram as entrevistas a partir
da noo de trauma, que se tornou moeda corrente nos estudos
de histria oral. Mas ser que sabemos avaliar, com algum grau de
competncia, os efeitos dos acontecimentos traumticos sobre os
nossos entrevistados? No nos tornamos, muito seguidamente, psiclogos e psicanalistas de botequim, sem domnio efetivo do arsenal terico dessas reas de conhecimento e sem noo da distncia
que nos separa delas?30 Basta pensar, por exemplo, na diferena entre
28 Uma exceo a mesa-redonda Problemas da subjetividade em histria oral, ocorrida
no III Encontro da Associao Nacional de Histria Oral, em Campinas, no ms de maio
de 1996. Os textos do historiador Henry Rousso (Usos do passado na Frana hoje) e da
psicloga Monique Augras (Histria oral e subjetividade), apresentados naquela ocasio,
foram publicados em Simson (1997). Parece-me, contudo, que sobretudo o segundo texto,
no por acaso de uma profissional da rea da psicologia, que toca mais de perto o tema da
subjetividade, j que a interveno de Rousso se refere aos usos polticos do passado.
29 No se pode esquecer, porm, que, para muitos historiadores, talvez ainda excessivamente
apegados ao empirismo prprio de certas tendncias cientificistas do sculo XIX, a subjetividade caracterstica da metodologia da histria oral (e da fonte por ela produzida) vista
como um obstculo, um problema a ser minimizado ou superado, e no como uma varivel
potencialmente esclarecedora de determinados fenmenos sociais.
30 Nesse sentido, Augras (1997, p. 31-32), ao comentar a questo da intersubjetividade prpria da entrevista, reivindica que: [...] nesse ponto, foroso reconhecer que o psiclogo
leva vantagem pela sua prpria formao. Quer se filie a uma linha fenomenolgica [...],
quer se situe dentro de uma das diversas correntes psicanalticas [...] reconhece que qualquer encontro implica uma troca de emoes, valores e representaes. E o treinamento
do psiclogo clnico consiste na aprendizagem de uma escuta que lhe permite apreender

85

entrevista psicanaltica e entrevista de histria oral. Obviamente, no


tenho a mnima competncia para dar conta dessas questes. Meu
objetivo muito mais levant-las, traz-las discusso e, quem sabe,
apresentar alguns pontos que possam ajudar na sua resoluo.
Comecemos pelo mais simples: o dicionrio Aurlio define o
substantivo feminino subjetividade como qualidade ou carter de
subjetivo e o adjetivo subjetivo como:
1. Relativo a sujeito. 2. Existente no sujeito. 3. Individual,
pessoal; particular [...] 4. Passado unicamente no esprito de
uma pessoa. 5. Filos. Vlido para um s sujeito. 6. Filos. Que
pertence unicamente ao pensamento humano, em oposio
ao mundo fsico, i. e., natureza emprica dos objetos a que
se refere [...] (FERREIRA, 1986, p. 1620).

O verbete remete, portanto, a uma srie de termos que de forma


alguma so neutros, em especial sujeito, indivduo e pessoa; termos
estes profundamente comprometidos com uma determinada episteme, a do pensamento ocidental moderno, constituda desde o
Renascimento, mas que se afirmou com fora a partir do Iluminismo.
Pensamento que postula o indivduo como ponto zero do conhecimento, unidade dotada de razo e conscincia, consistncia e constncia, produtora de discursos e aes que s podem ser explicados
e compreendidos a partir da autoria, do interior daquele que proferiu a palavra e executou o gesto o agente, aquele que, para evocarmos o sentido gramatical do vocbulo sujeito, pratica a ao e que,
portanto, pode ser responsabilizado por ela. Essa figura, o indivduo
pensado como sujeito, legitima a prtica da histria oral. Afinal, ele
que fala, que o autor da fala e que, por isso mesmo, assina a famosa
carta de cesso, doando ao pesquisador os direitos sobre aquilo que

86

esse emaranhado de informaes muitas vezes contraditrias. Talvez o historiador, inteirado das contribuies da psicologia, possa levar vantagem em outro sentido: apontando
a historicidade caracterstica dessas emoes, valores e representaes, e do prprio ato
de transformar em narrativa esses elementos, como se eles constitussem a histria de um
indivduo.

lhe pertence: os significados que saram de sua mente e de sua boca.


O discurso, por mais social que o pensemos, na prtica da histria
oral sempre referido a um indivduo, a um sujeito, a uma pessoa,
Dona Tereza, ao Seu Joo. Famoso ou annimo, o depoente o rei,
aquele que tem sua identidade afirmada ou ocultada, explicitada ou
protegida, e a partir de quem o dito ganha sentido. somente desde
esse ponto de vista que podemos pensar em explorar a subjetividade
do depoente, aquilo que existe no sujeito, que se passa no esprito de
uma pessoa, que lhe particular, que o singulariza; pretenso aproximada da psicanlise, tambm uma teoria e uma prtica oriunda
da modernidade ocidental.
O que procuro ressaltar com essas consideraes que a noo
de subjetividade no deve ser pensada, sobretudo por ns historiadores, como uma figura ou uma dimenso a-histrica ou trans-histrica, uma essncia de todo ser humano, uma matria alojada
no corao ou na mente dos homens, algo natural e que pode ser
resgatado e analisado pelos praticantes da histria oral; ela , sim,
resultado de mltiplos percursos histricos que convergiram, no
sem tenses, para a fabricao do indivduo moderno, aquele que
possui uma determinada subjetividade. Talvez, ento, seja o caso
de darmos um passo atrs e entendermos como se constituiu tal
sujeito e, assim, avaliarmos melhor de que forma a histria oral pode
nos auxiliar a compreend-lo. Nesse percurso, recorro inicialmente
s contribuies de Michel Foucault.
Como sabemos, esse autor props uma crtica radical do sujeito
humano pela histria, procurando examinar como nossa sociedade
definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte,
relaes entre o homem e a verdade. Em A verdade e as formas jurdicas, ele afirmou:
Atualmente, quando se faz histria [...] atemo-nos a esse
sujeito de conhecimento, a este sujeito da representao,
como ponto de origem a partir do qual o conhecimento
87
possvel e a verdade aparece. Seria interessante tentar ver

como se d, atravs da histria, a constituio de um sujeito


que no dado definitivamente, que no aquilo a partir
do que a verdade se d na histria, mas de um sujeito que
se constitui no interior mesmo da histria, e que a cada instante fundado e refundado pela histria. (FOUCAULT,
2008, p. 10-11).

No final desse livro, um interessante debate envolvendo Foucault


e o psicanalista brasileiro Hlio Pelegrino ilustra bem a diferena
entre o que poderamos chamar de uma concepo essencialista
de sujeito e de subjetividade e outra que, na falta de melhor termo,
designaremos como historicista. Pelegrino define o complexo de
dipo como uma estrutura fundamental da existncia humana, ao
que Foucault rebate: [...] no absolutamente uma estrutura fundamental da existncia humana, mas um certo tipo de contrainte, uma
certa relao de poder que a sociedade, a famlia, o poder poltico,
etc., estabelecem sobre os indivduos. O debate continua e Foucault
argumenta com a sua costumeira ironia: Por que se desejaria sua
me? J no to divertido assim ter uma me... O que se deseja?
Bem, desejam-se coisas, histrias, contos, Napoleo, Joana dArc,
tudo. Todas essas coisas so objetos de desejo. Pelegrino vale-se,
ento, de um princpio bsico da psicanlise: Mas o outro tambm
objeto de desejo. A me o primeiro outro. A me se constitui dona
da criana e, logo depois, Foucault questiona: Qual o outro fundamental do desejo?. O filsofo esclarece seu ponto de vista: No
h outro fundamental do desejo. H todos os outros. Mais adiante,
Pelegrino volta carga, buscando ancorar o seu ponto de vista em
um exemplo cientfico: H umas experincias hoje de um psicanalista muito importante chamado Ren Spitz. Ele mostra o fenmeno
hospitalstico. As crianas que no tm maternizao simplesmente
perecem, morrem por falta de me materna. Foucault contra-argumenta elevando o grau de ironia: Compreendo. Isso s prova uma
coisa: no que a me indispensvel, mas que o hospital no
88 bom (FOUCAULT, 2008, p. 131-134).

Esse debate, aparentemente polido, mas na verdade repleto de


ataques pontiagudos, mobiliza duas perspectivas: uma que postula
a existncia de estruturas fundamentais do ser humano, de desejos
fundamentais, constitutivos da essncia do sujeito, de sua subjetividade, e alojados em lugares ocultos de sua psique; outra que no
acredita em fundamentos, apenas na histria, na pluralidade de
desejos que no derivam de uma mesma matria, e sim de prticas
discursivas e no discursivas mltiplas, concretas e historicamente
constitudas. Transitamos, assim, do desejo primordial oculto na
subjetividade para os desejos subjetivados pela ao de mltiplos
dispositivos de saber e poder.
Permito-me fazer, nesse momento, uma citao um tanto longa
do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jnior que, me parece,
esclarece com bastante preciso a forma usual como os historiadores tratam a questo do sujeito na histria e, por conseguinte, da
subjetividade, j que, como nos lembra o Aurlio, ela pertence ou
relativa ao sujeito e as crticas que Foucault dirige a tal perspectiva (chamo a ateno para as metforas futebolsticas empregadas
pelo autor):
Ns, historiadores, temos muita dificuldade em pensar o
sujeito como um exerccio, como uma funo que se exerce
numa ao, num discurso, como algo que no est pronto
no incio da ao [inclusive na ao de depor, diria eu], que
no vem antes do discurso, mas que seu resultado final,
sujeito que s aparece na prorrogao. Estamos sempre
buscando sujeitos originrios, aquele que deu o pontap na
ao, aquele que comeou o jogo, que deu a sada, quando
isto pouco importa, pois o jogo ou a Histria o que se
desenrola da para frente e seu resultado independe completamente de quem veio por escalao momentnea ou posio que ocupava ao dar o primeiro piparote no jogo. Sempre
alertamos para o fato de que os sujeitos em Histria so
coletivos; fazem parte de uma grande equipe; na Histria
no se joga sozinho; sempre dizemos que a Histria, como
o jogo, passa-se entre os jogadores, feita das suas jogadas, 89
de seus lances, mas mesmo assim estamos sempre buscando

aquele que da marca da cal deu o chute decisivo, cobrou o


penlti salvador, aquele heri que sozinho ganhou o jogo,
aquela mo salvadora que no ltimo instante desviou a trajetria do balo. (ALBUQUERQUE JNIOR, 2007, p. 177).

Deslocando essa reflexo mais geral para o campo especfico


da histria oral, pode-se indagar: ser que, em vez de, por meio da
entrevista, buscarmos trazer tona a subjetividade do entrevistado,
no seria mais proveitoso pensar que este ltimo tambm constitui a
sua subjetividade na e por meio da entrevista? Que o falar a um historiador figura catalisadora de um determinado saber-poder condiciona o sujeito falante, o qual, atravessado por mltiplos discursos,
sujeita-se e assujeita o seu interlocutor? Nesse dilogo/conflito entre
duas posies de sujeito a da testemunha capaz de dizer o que foi
e a do especialista (nico?) capaz de analisar o que foi dito , conformam-se subjetividades e talvez caiba a ns, praticantes da metodologia da histria oral, estarmos ainda mais atentos que os nossos
colegas de outras especialidades s estratgias, s tticas, aos avanos e recuos que configuram tal relao de conhecimento, na qual se
estabelecem as fronteiras entre o que pode ou no ser dito, no em
funo de traumas, por exemplo, mas em razo do que entra ou no
no jogo da verdade da histria tambm uma filha da modernidade,
vale lembrar.
Desde outra perspectiva terica, Pierre Bourdieu, no conhecido texto A iluso biogrfica, tambm desconstri a concepo
usual de indivduo-sujeito, tpica da modernidade, ao questionar o
pressuposto de [...] que a vida uma histria, [de que] uma vida
inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existncia
individual concebida como uma histria e o relato dessa histria. O
autor tambm alerta que o sujeito e o objeto da biografia (o investigador e o investigado) [o entrevistador e o entrevistado, acrescento]
tm de certa forma o mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existncia narrada (e, implicitamente, de qualquer existn90
cia). Buscando desnaturalizar tal pressuposto, Bourdieu indica que

o mundo social [...] dispe de todo tipo de instituies de totalizao e de unificao do eu [...], sendo a mais evidente o nome prprio e sua manifestao concreta, a assinatura, que buscam assegurar
[...] aos indivduos designados, para alm de todas as mudanas e
de todas as flutuaes biolgicas e sociais, a constncia nominal, a
identidade no sentido de identidade consigo mesmo, de constantia
sibi, que a ordem social demanda. Ele ainda ressalta: [...] ele [o
nome prprio] s pode atestar a identidade da personalidade, como
individualidade socialmente constituda, custa de uma formidvel
abstrao. Contudo, diferentemente de Foucault, Bourdieu prope
como sada metodolgica no a anlise da produo dos sujeitos
por prticas discursivas e no discursivas, mas a interpretao dos
acontecimentos biogrficos como [...] colocaes e deslocamentos no
espao social, isto , mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuio das diferentes espcies de capital
que esto em jogo no campo considerado. Nessa perspectiva, no
h espao para o resgate da subjetividade, apenas para a anlise das
relaes sociais objetivas que [...] uniram o agente considerado [...]
ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espao de possveis (BOURDIEU, 1996, p.
183-184, 186-187 e 190, grifos do autor).
A perspectiva objetivista de Bourdieu foi criticada, entre outros,
pelo psiclogo Yves Clot que, no texto La otra ilusin biogrfica,
pondera:
Todo sujeito, no curso de sua existncia, enfrenta periodicamente situaes, encontros, acontecimentos que so fontes
de conflitos. A avaliao de seu campo de possibilidades subjetivo que denuncia, nos dois sentidos do termo, suas vacilaes ou suas negociaes nos proporciona um ponto de
referncia precioso para nos orientarmos no campo de uma
eventual clnica biogrfica. (CLOT, 1989, p. 40, grifo nosso).

91

Retornamos aqui ideia de que cada indivduo-sujeito possui a


sua prpria subjetividade, que no poderia ser resumida ao conjunto
das relaes sociais objetivas das quais ele participa, correspondendo
mais a um terreno singular de conflitos e elaboraes cuja interpretao serve de ponto de referncia a uma eventual clnica biogrfica. Isso nos remete s questes colocadas no incio desse texto: ns,
profissionais que utilizamos a metodologia da histria oral, temos
domnio suficiente dos instrumentos tericos e metodolgicos
necessrios operacionalizao dessa clnica do campo de possibilidades subjetivo que denuncia os conflitos de nossos depoentes?
Caso a resposta seja negativa, o caminho seria nos aproximarmos
das reflexes da psicologia e da psicanlise? Mas, caso caminhemos
nessa direo, no estaramos des-historicizando a nossa prtica e
encarando a figura do sujeito que se singulariza pela sua subjetividade particular como universal, expresso de uma estrutura profunda e essencial do indivduo?
Alguns poderiam dizer: sim, mas as pessoas que entrevistamos
so os indivduos modernos ocidentais, constitudos como unidades
coerentes e integradas (j que a ausncia de coerncia e de integridade psquica significa, em nossas sociedades, ou patologia ou falta de
carter), que se consideram e so considerados como atores/autores
responsveis por seus atos e palavras. Tendo a concordar com essa
ponderao, sublinhando ainda, mais uma vez, que a prpria histria
inclusive a histria oral , como singular universal capaz de agregar
em uma sntese as mltiplas experincias humanas, s ganha sentido
no mbito dessa episteme moderna. Mas, por outro lado, se no questionamos tal posio de sujeito a do autor unificado, responsvel, e
que, desde a sua subjetividade, d sentido s suas falas , ocupada por
nossos entrevistados, no estaremos contribuindo, na verdade, para a
constituio de mais um dispositivo de produo de subjetividades,
de determinadas relaes com a verdade, profundamente comprometidas com certas formas de saber-poder as quais, por sua suposta
92 naturalidade, escapam crtica? Ou, se partirmos da perspectiva de

Bourdieu, a histria oral no atuaria como mais uma instituio de


totalizao e de unificao do eu, ao apostar no nome prprio como
definidor de uma certa identidade? Questes complexas sem dvida,
mas que, a meu ver, no podem estar ausentes da agenda de discusses
dos praticantes da histria oral.
Para complicar ainda mais essa j complicada reflexo, seria preciso acrescentar que, ao indivduo produzido pelo Iluminismo, corresponde um pressuposto tico: o livre-arbtrio. Mas, nesse ponto,
prefiro fazer um intervalo ldico e trazer as palavras de Luis Fernando Verissimo a respeito do personagem Batman e das diferenas
entre ele e o Super-Homem:
Desde o momento em que foi matar uma mosca e demoliu
a mesa, o Super-Homem conhecia seus poderes. Os poderes
definiram o homem. Ele no poderia ser outra coisa alm
de Super-Homem, sua vida estava decidida j nas fraldas.
Batman escolheu ser Batman. Nada determinava a sua
escolha. [...] Se a legenda do Super-Homem uma parbola
sobre a predestinao, a do Batman uma reflexo sobre
o livre-arbtrio. A nica coisa que une os dois a obsesso
em fazer o bem [...]. [O que a legenda do Batman nos diz],
e talvez por isso dure tanto, que o ser humano cheio de
imperfeies e maus impulsos, limitado pela biologia e condicionado por mitos e tradies, mas livre para escolher o
que quer ser. E decidir ser justo.
Est a, um super-heri do iluminismo. Longa vida para o
Batman. (VERISSIMO, 2008, p. 3).

O texto de Verissimo, como de costume, nos faz rir e pensar,


ao sublinhar a ideia de que praticar o bem e a justia uma escolha moral, tica, e no o resultado de uma predisposio natural
dos homens. Suas palavras soam como um alerta humanista em um
mundo que, insistentemente, nos revela a preferncia pelo mal e pela
injustia, justificada por vrios determinismos e fundamentalismos.
Contudo, do seio da prpria modernidade que gestou Batman,
93
heri por escolha, justiceiro por opo, tambm emergiram cor-

rentes de pensamento que questionaram a centralidade do heri-homem, detentor de livre-arbtrio, senhor de seus caminhos, capaz
de avaliar serena e racionalmente suas condutas, do super-heri do
iluminismo enfim. Para ficarmos nos casos mais conhecidos, bastaria citar Marx e Freud. O primeiro procurou mostrar como a conscincia social determinada pelo ser social, pelo conjunto de relaes
de produo e de reproduo da vida humana nesse caso, ser que
Batman no seria menos um justiceiro e mais um defensor da propriedade e da ordem burguesas? J Freud pretendeu demonstrar o
papel preponderante das pulses do inconsciente na conformao
da personalidade segundo tal perspectiva, a opo do homem-morcego por fazer o bem talvez resultasse menos de livre-arbtrio e
mais da sua infinita obsesso em vingar os pais. De qualquer forma,
ambos, Marx e Freud, mostraram os limites da liberdade humana e
tambm os condicionamentos da subjetividade individual pelas relaes materiais de produo e pelos desejos inconscientes. Porm, os
dois, como homens do sculo XIX comprometidos com o projeto da
modernidade, no fugiram da ideia de uma essncia humana, seja
a busca pela emancipao, que s atingiria sua completude com a
abolio das classes, seja pela identificao de uma frustrao primordial, metaforizada no complexo de dipo.
Mais recentemente, e sobretudo a partir da dcada de 1960,
diversas correntes de pensamento seguidamente reunidas sob o
rtulo de ps-estruturalistas buscaram desestabilizar as supostas
essncias que organizam a nossa vida social e psicolgica, indicando
a sua historicidade, o seu carter de artefato e, em especial, mostrando que elas esto profundamente comprometidas com relaes
de poder que constituem sujeitos e subjetividades. preciso, ento,
que, concordando ou no com tais perspectivas, levemos em conta
esses debates, respondendo, por exemplo, a questes como: que definies de subjetividade estamos empregando em nossas pesquisas?
A quais posies de sujeito elas correspondem? Com que categorias
94 podemos analisar ou, ao menos, levar em conta a subjetividade

de nossos depoentes sem essencializ-la como uma categoria a-histrica ou trans-histrica? Ou ela constitui realmente uma essncia
do sujeito, conforme postulam certas correntes da psicologia? Ou
ainda (e confesso que essa direo me parece mais sedutora): como
a histria oral pode ser um meio til para, justamente, evidenciar
o carter construdo e histrico da subjetividade, para explicitar as
prticas discursivas e no discursivas que instituem formas determinadas de relao com a verdade e consigo e, em consequncia,
sujeitos morais como Batman e os personagens que habitam nossos
estudos?
Encerrar um texto com perguntas pode significar que seu autor
no conseguiu concluir satisfatoriamente o seu pensamento, o que
verdade nesse caso. Mas tambm revela um convite ao debate e, ao
menos, uma certeza: a importncia de empregar a noo de subjetividade de forma menos inocente e mais consistente em termos
analticos para, com isso, realizarmos uma associao satisfatria
entre os trs termos que compem o ttulo de nossa mesa: histria
oral, memria e subjetividades.
Referncias:
ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. A histria em jogo: a atuao de
Michel Foucault no campo da historiografia. In: ______. Histria: a arte de inventar
o passado. Bauru: Edusc, 2007.
AUGRAS, Monique. Histria oral e subjetividade. In: SIMSON, Olga Rodrigues de
Moraes Von (Org.). Os desafios contemporneos da histria oral. Campinas: rea de
Publicaes CMU/UNICAMP, 1997.
BOURDIEU, Pierre. A Iluso biogrfica. In: FERREIRA, Marieta M.; AMADO,
Janana (Org.). Usos & abusos da histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
CLOT, Ives. La otra ilusin biogrfica. Historia y fuente oral, Barcelona, n. 1 e 2,
1989.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Rio de Janeiro: PUC-RJ/NAU,
2008.
FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo Aurlio: dicionrio da lngua portu95
guesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

JAMES, Daniel. Doa Maras story: life history, memory, and political identity.
Durham/Londres: Duke University Press, 2000.
POMIAN, Krzysztof. Sur les rapports entre mmoire et de lhistoire. Le Dbat, n.
122, p. 24-31, nov./dez. 2002.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von (Org.). Os desafios contemporneos da
histria oral. Campinas: rea de Publicaes CMU/UNICAMP, 1997.
VERISSIMO, Luis Fernando. Poderes. Zero Hora, Porto Alegre, p. 3, 31 jul. 2008.

96

2.Memria e subjetividade em relatos


de imigrantes portugueses

Roseli Boschilia


Como ponto de partida para essa reflexo,31 e sem nenhuma preocupao com a originalidade, gostaria de fazer referncia ao palcio
da memria de Matteo Ricci (SPENCE, 1986).
Como sabemos, esse sacerdote jesuta, que trabalhou em Macau
no sculo XVI, ensinou os chineses a construir o palcio da memria. Segundo ele, uma pessoa poderia construir palcios modestos
ou grandiosos, dependendo das memrias que quisesse armazenar.
Mas, se desejasse um espao ntimo, poderia usar apenas o canto de
um pavilho, um altar num templo, ou, at mesmo, um objeto to
domstico como um guarda-roupa ou um div (SPENCE, 1986, p.
19). Assim,
a melhor forma de iniciar o treinamento da memria seria
imaginar-se percorrendo o interior de um prdio. Ao visualizar o movimento atravs desse espao, criava-se uma
sequncia para as lembranas. Cada um dos cmodos
devia aparecer com clareza aos olhos da mente, decorados
de maneira apropriada ao assunto que se queria recordar.
(SMITH, 2002, p. 78).

Com muita frequncia, algumas pessoas, ao serem entrevistadas,


31 Tiveram participao neste trabalho de pesquisa alm das bolsistas do PIBIC Celina Fiamoncini e Giseli Cristina dos Passos, os alunos de graduao Celina Bastos, Laura Jackson,
Clarissa K. Gottfried e Thiago Evaldo Rosa.

97

parecem colocar em prtica esses ensinamentos, conforme podemos


verificar no exemplo abaixo:
Tinha a sala de visita, a sala de jantar, tinha o corredor, o
meu quarto, a copa, a cozinha, tinha a oratria, eu tinha um
oratrio bonito e grande que, alis, eu tenho at hoje, est
l na fazenda [...] Da tinha o banheiro e a escadaria que
descia, embaixo tinha dois depsitos grandes, um dei para
as crianas brincarem, tinha balana, tinha tudo e o outro
era para mantimentos.32

Devemos lembrar, contudo, como alerta Richard Smith


(2002, p. 78), que as expresses orais que uma entrevista
documenta [...] contm mais que palavras arrumadas em frases ordenadas, em narrativas de extenses variveis. Ou seja,
quem trabalha com a metodologia da histria oral no deve se
iludir com a frieza que as transcries incentivam, mas, pelo
contrrio, lembrar sempre que a palavra falada inseparvel da
emoo e do gesto. Por trs daquilo que dito, possvel perceber outras linguagens que surgem no s nos gestos, olhares
e outros movimentos do corpo, mas tambm nas pausas, nas
nfases, nos silncios e devaneios. Assim, nessa construo,
como diz Harold Pinter (apud LOWENTHAL, 1998, p. 75), o
passado tanto pode ser o que voc lembra, [como o que voc]
imagina que lembra, convence a si mesmo que lembra, ou finge
que lembra.
Por outro lado, preciso lembrar tambm que, sendo a memria um fenmeno social, ela carece da inter-relao com os outros
para que sua construo se efetive e, posteriormente, possa emergir,
ganhando materialidade a partir de prticas discursivas ou no.
Nesse percurso, longe de trazer tona uma lembrana congelada do passado, ao rememorar, a pessoa procura dar sentido a sua
narrativa a partir de cdigos, representaes e valores do presente,
98
32 Entrevista realizada com Aurora Pizzato Fruet, em Curitiba, em 1990, por Roseli Boschilia.

levando, desse modo, a memria a um processo de ressignificao


contnuo. E no exerccio dialtico de reconstruir o passado, a partir
de um olhar ancorado no presente, cada pessoa procura articular
questes ligadas ao seu universo particular, ou seja, aquilo que compe sua subjetividade, com o mundo social externo.
Como tributrias dessa experincia, surgem marcas singulares
que se evidenciam tanto na formao individual quanto na construo de crenas e valores compartilhados e que iro constituir a experincia histrica e coletiva de diferentes grupos.
Nesse sentido, como reflete Michael Pollak (1992, p. 5), a memria se configura como um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela
tambm um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstruo de si. Assim, pode-se afirmar que, ao lado das crenas
e dos valores, a reconstruo da memria constitui um dos vetores privilegiados no processo de socializao e identificao dos
indivduos.
Com base nesses pressupostos, ao trabalhar com o tema da imigrao, a partir de fontes orais, o pesquisador deve ter clareza que est
lidando com sujeitos deslocados, pois devemos lembrar, como alerta
Sayad (1998), que a mobilidade demogrfica impe igualmente um
deslocamento identitrio, na medida em que esse sujeito se v privado
do seu lugar no espao social e de suas referncias simblicas. Logo,
o ato de e/imigrar exige que o sujeito no s se posicione diante do
desconhecido, que perceba diferenas e semelhanas, mas, sobretudo,
que formule estratgias no sentido de desconstruir e reconstruir sua
identidade,33 de acordo com o contexto no qual se encontra.
33 Longe de ser vista de forma esttica, como fixa e definitiva, a categoria identidade deve ser
entendida aqui como algo em constante movimento, que resulta unicamente das interaes
entre os grupos e os procedimentos de diferenciao que eles utilizam em suas relaes
(CUCHE, 1999). Ou seja, ela constitui uma categoria de distino, baseada em oposies
simblicas, que serve para demarcar as igualdades e as diferenas existentes entre os grupos
sociais.

99

E , portanto, a partir da experincia, dos desejos, aspiraes e


motivaes presentes no imaginrio coletivo que o e/imigrante operacionaliza e reconstri seus sistemas simblicos e elabora determinadas representaes de si. Desse modo, refletir acerca da experincia
da e/imigrao tambm requer do pesquisador uma ateno especial
para questes ligadas s subjetividades, aos sentimentos, enfim, ao
conjunto de modos de percepo, afeto, medos e desejos que animam os sujeitos atuantes (ORTNER, 2007) e o meio social no qual
ele est inserido.
No caso dos portugueses, a experincia da e/imigrao marcada por algumas especificidades que os diferenciam dos demais
grupos de imigrantes que vieram para o Brasil a partir do sculo
XIX. Em primeiro lugar, vale lembrar que, a despeito de estarem presentes no territrio desde o sculo XVI, s passaram a ter o estatuto
de imigrante aps a Independncia ocorrida em 1822. Alm disso,
muito embora tenham constitudo um dos grupos mais numerosos34
no contingente de imigrantes, ao longo dos sculos XIX e XX, os
portugueses, ao contrrio de outras etnias, nunca mereceram qualquer espcie de subsdio por parte das polticas imigratrias.
Como se sabe, os imigrantes europeus que chegaram ao Brasil
no contexto da segunda metade do Oitocentos eram atrados com
o intuito de atender os objetivos propostos pela poltica imigratria
voltada recepo de camponeses que estivessem interessados na
aquisio de terras, em regime de pequena propriedade, e cuja mo
de obra estivesse direcionada, prioritariamente, produo agrcola.
Os portugueses, ainda que fossem na sua grande maioria originrios
do campo, no se enquadravam, entretanto, no perfil de imigrante
desejado pelo governo brasileiro. No processo de implementao das
polticas imigratrias, a preferncia por outras etnias, em detrimento
dos portugueses, estava vinculada, em grande medida, ao comportamento do grupo, mais afeito s atividades urbanas. Desde os tempos
100

34 De acordo com Florentino e Machado (2002), esse perodo foi marcado pela entrada de
parcela significativa de imigrantes portugueses, cujo nmero superou em mais de sete vezes
a quantidade daqueles que desembarcaram durante todo o perodo colonial.

coloniais, a forte inclinao para o comrcio e outras atividades afins


estimulava a fixao dos lusitanos nos grandes centros urbanos.
Assim, o perfil econmico dos portugueses contribuiu para que
eles permanecessem margem das polticas promovidas tanto pelo
Imprio quanto pelos governos provinciais no intuito de suprir a
carncia de mo de obra na rea agrcola.35 A ausncia do grupo na
documentao produzida acerca da imigrao colaborou para a sua
invisibilidade, sobretudo no que se refere historiografia voltada
para os estudos imigratrios.
Alijados das polticas governamentais, os portugueses buscaram
criar estratgias ou mecanismos de sobrevivncia com o intuito de
facilitar a sua insero na sociedade brasileira. Desse modo, as redes
de solidariedade, efetivadas a partir do apoio de conterrneos e da
ao promovida pelas associaes beneficentes, foram fundamentais
para a sua fixao no s nos grandes centros urbanos como Rio
de Janeiro e So Paulo, como tambm em ncleos menores como
Manaus, Pelotas e Curitiba. No caso do Paran e especialmente Curitiba espao privilegiado na presente anlise , a vinda de portugueses, durante o sculo XIX, acompanhou o fluxo dos demais grupos
de imigrantes que aqui chegaram at o final da Primeira Repblica.
Destaque-se que, embora os documentos oficiais no contenham
informaes substanciais sobre eles, uma vez que a maior parte passou por outras cidades brasileiras antes de radicar-se na provncia, a
sua presena na sociedade paranaense pode ser rastreada por meio
da anlise de outras fontes. Assim, alm de serem localizados nos
registros de desembarque de imigrantes no porto de Paranagu e nas
correspondncias do governo, muitos tambm podem ser encontrados nos anncios publicados em jornais e nos registros da Sociedade
Portuguesa Primeiro de Dezembro, fundada em Curitiba j em 1878.
A partir do rastreamento das fontes disponveis, possvel
afirmar que a imigrao portuguesa no Paran manteve-se estvel
35 importante destacar que, do mesmo modo que os portugueses, outros grupos, como os
espanhis e os rabes tambm no mereceram qualquer espcie de subsdio do governo
brasileiro.

101

durante quase um sculo, sofrendo um arrefecimento somente a


partir da dcada de 1930, quando o governo Vargas implantou uma
poltica de restrio vinda de novos imigrantes para o Brasil.
No interior desse novo contexto poltico, que coincidiu com a
instalao do regime salazarista em Portugal, os imigrantes portugueses passaram a enfrentar maiores dificuldades para entrar
no Brasil. Um dos fatores impeditivos nesse sentido estava vinculado exigncia feita pelo governo brasileiro de que portassem um
documento assinado por uma pessoa aqui residente, assumindo a
responsabilidade pela sua manuteno nos primeiros seis meses de
permanncia no pas. Diante das dificuldades para obter o referido
documento, conhecido como carta de chamada, muitos, impossibilitados de vir para o Brasil, se dirigiram s colnias portuguesas na
frica, que nessa poca ofereciam subsdios para aqueles que desejassem l trabalhar.
Vale lembrar, entretanto, que a partir de meados da dcada de
1970, uma parcela desses e/imigrantes, dentre os quais esto alguns
de nossos entrevistados, deixou as colnias africanas para fixar-se
no Brasil, em decorrncia dos conflitos polticos ocorridos por conta
dos movimentos de independncia naquele continente.
Desse modo, convm lembrar que durante o perodo salazarista,
apesar das medidas restritivas impostas pelo governo brasileiro, o
interesse dos portugueses pelo Brasil como pas de destino permaneceu. Nessa conjuntura, as redes de solidariedade entre os imigrantes
se intensificaram, revestindo-se de novos significados simblicos. O
apoio do imigrante estabelecido ao conterrneo que vinha em busca
de novas oportunidades podia ser o elemento unificador entre pessoas que, apesar das diferenas econmicas e sociais, partilhavam do
mesmo sentimento de deslocamento identitrio.
Tendo em vista a singularidade da imigrao portuguesa e tambm a ausncia de fontes para mapear, sobretudo, os indivduos que
chegaram ao Brasil, no perodo ps Segunda Guerra Mundial, a
102 histria oral se apresenta como uma metodologia privilegiada para

reconstruir a trajetria desses e/imigrantes que, embora tenham deixado heranas to presentes na nossa cultura cotidiana, ainda so
pouco conhecidos pela historiografia.
Nessa perspectiva, essa reflexo busca investigar as prticas discursivas sobre a experincia da e/imigrao, a partir das narrativas de quatro e/imigrantes, trs homens e uma mulher, que saram de Portugal no
perodo ps Segunda Guerra Mundial e hoje residem em Curitiba. Destaque-se que desses quatro, trs deixaram Portugal durante a infncia

e tiveram oportunidade de retornar ao pas de origem uma ou mais


vezes, depois de adultos. Para fazer o contraponto, selecionamos
ainda um quinto depoimento, do imigrante Candido Polido, que
nasceu em 1936, no Alto Douro. Veio para o Brasil com 25 anos, j
casado, e, diferentemente dos demais entrevistados, jamais retornou
a Portugal.
Embora tenhamos clareza de que os depoimentos carecem ser
trabalhados na sua inteireza de modo a possibilitar uma anlise mais
apurada das questes que desejamos problematizar nessa reflexo,
selecionamos alguns trechos com o intuito de exemplificar aspectos
que esto presentes ao longo das narrativas construdas por nossos
interlocutores. A partir dessas entrevistas pretende-se no s refletir
acerca das diferentes estratgias de e/imigrao, mas tambm problematizar, com base nas impresses e sentimentos dos e/imigrantes,
questes relacionadas aos laos identitrios dos narradores com a
cultura portuguesa.
Convm lembrar que no contexto enfocado pela pesquisa, compreendido entre o final da Segunda Guerra Mundial e o momento
imediatamente aps a Revoluo dos Cravos (1974), a sociedade
portuguesa continuava marcada por um intenso ruralismo, no qual
a famlia era vista como um ponto importante de construo e transmisso dos valores nacionalistas. Alm de defender o estatuto da
famlia, o regime salazarista procurava reforar a ideia de que no
mundo rural se encontraria o refgio seguro da virtude e da moralidade. Essa representao de um lugar mgico e aconchegante estava 103

presente no imaginrio social das populaes camponesas, ressurgindo nas narrativas de muitos imigrantes que chegaram ao Brasil no
incio da dcada de 1950. Em muitas narrativas, em meio s referncias sobre a precariedade de recursos, a aldeia natal ressurge como
o lugar de pertencimento e de coeso, sempre ancorado nas redes
familiares.
Seguindo os conselhos de Ricci, procuramos conduzir nossos
narradores para os espaos mais ntimos, muitas vezes escondidos nos palcios de suas memrias. Nessa direo, ao reconstruir a
memria sobre o lugar onde passou a infncia, um dos narradores
diz:
Lamoso, como toda aldeia, tem a capelinha da santa padroeira, tem as eiras, casas de pedra em runas, a rua do canelho, a rua do carrascal e a caleja do lameiro. Tem os cerejais
e a moreirica, uma ponte de pedra sobre ribeira, a lagoa
cheia de rs a coaxar, a fonte onde se colhia gua mo.36

Aps descrever a aldeia, como uma das tantas que existem no


norte de Portugal, Amlcar, com os ps no presente, procura refletir
sobre os motivos que provocaram o despovoamento da regio.
Falar de Lamoso para mim algo que sempre me d muito
prazer, e recordar passagens do tempo que l vivi, mais
ainda [...] Quando a minha famlia saiu de Lamoso, em
1947, ficaram l 21 famlias e pelo menos outras tantas
crianas em idade escolar [...] como a vida por l era muito
dura, vida de lavoura, medida que a garotada se tornava
adulta, ia procurar vida em outras paragens e assim Lamoso
foi-se despovoando [...]37

Em seguida, narra a dor e angstia que sentiu ao saber que deixaria sua aldeia portuguesa para viver em um lugar estranho.

104

36 Entrevista realizada com Amlcar Fernandes Silva, em Curitiba, em 2005, por Roseli
Boschilia.
37 Entrevista com Amlcar Fernandes Silva. Ver nota 37.

Quando meu pai comeou a pensar em ir para o Brasil,


em 1944 [...] eu fui invadido por um desgosto e uma agonia profunda [...] Fisicamente incapaz de parar o rumo das
coisas e de convencer meu pai a desistir da ideia, comecei a
pensar uma forma de ficar em Portugal e decidi que fugiria
na hora do embarque em Lisboa [...] Dois carros de bois
levaram-nos, junto com as malas, at a estao do Variz,
onde na manh do dia seguinte tomamos o comboio para
o Porto e depois para Lisboa. No dia 2 de abril, a bordo do
navio Mousinho, samos de Lisboa.38

Interessante notar que o desejo inicial da famlia Silva era migrar


para o Brasil. O projeto, no entanto, no se concretizou devido s
dificuldades encontradas pelo pai de Amlcar no sentido de cumprir
uma das exigncias do governo brasileiro, a apresentao da carta de
chamada. Diante da necessidade de emigrar, a famlia Silva preferiu
dirigir-se a Angola, pas que, naquele contexto, oferecia subsdios,
buscando atrair novos grupos de imigrantes. Foi preciso aguardar trs
dcadas para que, finalmente, Amlcar chegasse ao Brasil. Isso ocorreu
no momento das lutas pela independncia da Angola, em meados da
dcada de 1970, quando ele chegou aqui, com sua mulher e filhos.
J Maria Helena, filha de uma camponesa que, como a maioria
dos emigrantes, saiu de Portugal premida pelas condies materiais,
constri suas lembranas ancorada nas representaes acerca do
modo de vida que essas famlias comumente levavam nas aldeias.
Nasci em Valpao, aldeia insignificante, da regio de Trs-os-Montes, entre Chaves e Vinhais. Como todos do lugar, eu
vinha de uma famlia de camponeses que cultivavam o essencial para sobreviver, nas pequenas eiras, que vinham sendo
divididas e subdivididas h muitas geraes a ponto de cada
famlia no possuir mais que simples quintais. A minha casa
era de xisto, com um s cmodo, dividido em lugar de dormir e lugar de cozinhar. Ao rs do cho, o palheiro.39
38 Entrevista com Amlcar Fernandes Silva. Ver nota 37.
39 Entrevista realizada com Maria Helena Correa, em Curitiba, em 2005, por Roseli Boschilia.

105

Alm de evidenciar aspectos ligados estrutura fundiria, ao


clima e arquitetura, a sua narrativa destaca tambm outros elementos simblicos ligados no s ao patrimnio imaterial, mas prpria
subjetividade.
E havia o frio, e havia a misria, e havia o analfabetismo
secular. S fome no havia ali, por conta do que se criava e
plantava. Luxos? S o direito de sonhar. Creio que as pessoas s se lembravam de ser felizes no dia da festa do santo
padroeiro. E era essa vida: sofrida, minguada, previsvel,
conformada [...]40

Assim, na sua construo discursiva, ao lado da aridez do clima,


da carncia material e do conformismo dos camponeses, o sonho
aparece como um elemento capaz de provocar mudanas na vida,
pelo menos dos mais jovens. A referncia ao direito de sonhar serve,
talvez, para justificar a atitude da me que a deixou, temporariamente, em Portugal para tentar uma nova vida no Brasil.
Na dcada de [19]50, alm de minha me, muitas mulheres
partiram da aldeia ou de aldeias prximas. Ainda assim, o
nmero de homens que emigraram sempre foi mais elevado.
Todos partiam pelos mesmos motivos: a falta de perspectiva
do trabalho no campo, as eiras cada vez mais divididas entre
os parentes [...] o aumento da misria, o sonho de enriquecer. As mulheres acabaram quase todas como domsticas,
por conta de a maioria, talvez 90% delas, ser analfabeta.41

Aps trs anos de permanncia no Brasil, a me de Maria Helena,


finalmente, conseguiu saldar a dvida feita para custear a prpria passagem e pde ento fazer um novo emprstimo para mandar buscar a
filha. Impossibilitada de pagar a passagem de um adulto que pudesse
acompanhar a criana, recorreu a uma amiga de infncia que iria
embarcar no mesmo navio com o intuito de tentar a sorte no Brasil.
106

40 Entrevista realizada com Maria Helena Correa. Ver nota 40.


41 Entrevista realizada com Maria Helena Correa. Ver nota 40.

Sobre a experincia da partida, Maria Helena conta:


Apesar de ser muito criana, lembro-me da partida. Minha
av e tios preparam-me um parco enxoval que meteram
numa mala velha e carcomida pelo tempo [...] Parti com
mala e impacincia, num carro de boi, depois tomei um
nibus e, finalmente, entrei no navio, que era ingls, muito
velho [...]42

Contudo, aps o relato da viagem, retratada aparentemente como


o incio de uma aventura, ela passa a refletir sobre o significado que
a sada da aldeia teve para ela e a me.
Fui arrancada dos braos de minha av, eternamente enlutada e cega; arrancada do cho de minha terra, dos sons, das
cores e dos cheiros de minha aldeia para ser plantada em
So Paulo [...] Vivi com minha me durante 12 anos na casa
da famlia onde ela trabalhava como domstica.
Minha me fugira dos trabalhos sem fim dos campos para
acabar por definhar no trabalho sem fim como empregada,
numa casa alheia, numa ptria alheia, longe dos seus.43

Como diz Ecla Bosi (1979, p. 17), a memria assume uma funo decisiva, o passado no s vem tona das guas do presente,
misturando-se com as percepes imediatas, como tambm desloca
estas ltimas ocupando o espao da conscincia.
Assim, no discurso de Maria Helena construdo no presente, e
prenhe de poesia, possvel perceber que as marcas da separao
irrompem no s nas reminiscncias da menina que deixou a aldeia
para encontrar a me de quem no mais recordava o rosto, mas tambm ocupam espao privilegiado no seu campo de trabalho como
escritora.
Jos Rodrigues, outro e/imigrante que saiu de Portugal ainda
criana, tambm faz um exerccio de reflexo sobre o fenmeno do
42 Entrevista realizada com Maria Helena Correa. Ver nota 40.
43 Entrevista realizada com Maria Helena Correa. Ver nota 40.

107

deslocamento temporrio ao qual muitos emigrantes se submetiam,


visando buscar melhores condies de vida para sua famlia.
[O lugar onde nasci] era uma aldeia na beira do rio Mondego [...] Vivia eu, meu pai, minha me, minha irm e meu
irmo. A quando eu tinha 6 anos meu pai veio para o Brasil,
que isso era muito tradicional, a famlia toda j tinha feito
isso, meus avs, meus bisavs j tinham vindo para o Brasil.
Eles vinham, ganhavam um pouco de dinheiro e iam para
Portugal, compravam uma propriedade, faziam uma casa,
voltavam, ganhavam um pouco mais de dinheiro, voltavam.
Isso era o ritmo do imigrante na poca [...] Ento, o meu
pai veio pra c para trabalhar com o irmo dele, num armazm de secos e molhados em Flora, perto de Paranava, no
Norte do Paran.44

Ao fazer o relato sobre a deciso do pai, que, aps conseguir se


estabilizar economicamente, mandou buscar a esposa e os filhos,
Jos fala sobre as primeiras lembranas do Brasil:
A primeira lembrana que tenho foi em Santos. Eu no
convs do navio olhando, tentando achar meu pai [nesse
momento o entrevistado faz uma pausa, procurando evitar
as lgrimas], fazia quatro anos que a gente no se via, a de
repente eu vejo ele l embaixo, de terno, gravata e chapu na
cabea, essa foi a primeira emoo [...]45

E ele prossegue falando sobre a viagem de Santos ao interior do


Paran, nos idos da dcada de 1950, e a expectativa de chegar a Araruna, onde o pai j estava estabelecido na rea do comrcio:
Subir a serra de Santos para So Paulo foi uma aventura,
porque tudo era diferente, era realmente uma sensao
totalmente nova. Depois ir para a Estao da Luz, pegar o
trem, chegar em Maring [...] depois pegar o jipe, amassar

108

44 Entrevista realizada com Jos Rodrigues, em Curitiba, em 2008, por Laura Jackson e Celina
Bastos.
45 Entrevista realizada com Jos Rodrigues. Ver nota 45.

barro at chegar em Araruna [...] e voc fica com uma expectativa muito grande: eu vou ver uma casa maravilhosa. Era
um barraco de secos e molhados! Bem como a gente v
nos filmes de faroeste, uma casa de madeira, de tbua para
servir de degrau, com aquele tronco na frente, para os cavaleiros amarrarem os cavalos. Enfim, foi tudo diferente, tudo
novo pra mim. Era uma excitao muito grande, tudo, tudo,
uma mistura de fortes emoes com novidades.46

Com esses exemplos, o que se percebe que, ao recordarem os


tempos de infncia, marcada no s pela precariedade da vida nas
aldeias, mas essencialmente pela experincia do deslocamento, narradoras e narradores articulam o seu discurso a partir das referncias
cognitivas e emocionais, mesclando razo e emoo.
Desse modo, com o intuito de dar inteligibilidade s lembranas,
os e/imigrantes penetram no palcio da memria, em busca de um
passado que, em alguns momentos, apresenta-se fugidio e desordenado e, em outros, ressurge como se ainda fosse possvel ouvir o
canto dos pssaros, o rudo do riacho e o agradvel odor da comida
sobre o fogo de lenha.
Ao passar a portaria de pedra, vi que a porta de madeira
carcomida pelo tempo era ainda a mesma que tantas vezes
abri e fechei. Ao transp-la, senti um misto de expectativa e
emoo quase me dominarem. Eu estava de novo na minha
casa, no bero dos meus primeiros sonhos. Passei pela sala,
entrei na curralada, que pena me deu de ver tudo abandonado, mas algumas coisas estavam na mesma, como as
manjedouras de pedra onde as vacas comiam, at o lugar
das galinhas porem os ovos estava l [...] Voltei sala e passei cozinha. L encontrei outras velhas relquias, como o
armrio embutido na parede, entrada esquerda, onde
minha me guardava queijo, marmelada, presunto e outras
coisas [...] Tambm estavam l as vigas do fumeiro, a chamin de pedra [...] e a mesa de madeira onde fazamos as
refeies. (SILVA, 2010, p. 77).
46 Entrevista realizada com Jos Rodrigues. Ver nota 45.

109

Vale destacar que, ao serem convidados a falar sobre as rupturas


e ausncias em relao ao seu lugar de origem, a memria gustativa
emergia como um dos elementos que possibilitava uma reaproximao com os laos identitrios.
Estreitamente associadas sensorialidade, as lembranas sobre
a comida ressurgem nas narrativas dos e/imigrantes como referncia de pertencimento a uma determinada cultura, na qual padres e
modelos traduzem uma ordem social e simblica.
O meu av, ele tinha uma propriedade grande e ele era um,
enfim, aqui um pequeno agricultor, mas pra l, para o
tamanho de Portugal uma grande propriedade, e ele tinha
produo prpria de azeite, ele tinha produo prpria de
vinho. E na casa de meu av a gente comia umas bacalhoadas maravilhosas, porque ele pegava o azeite, e em vez de
usar o azeite em garrafa a gente pegava o potinho de azeite
mesmo e derramava em cima das batatas e do bacalhau,
ento me lembro muito desses momentos de refeio junto
com o meu av e com a famlia.47
Aquela batata com bacalhau, meu Deus, ainda hoje sinto
falta. Polvo, aquele polvo. A sardinha l muito gostosa
tambm. Colocar na brasa ou botar na frigideira [...] no
precisa botar azeite, no precisa nada, que a prpria gordura
dela, ela desmancha. E muito gostoso. E as frutas que tinha
tambm. Era demais.48

No interior da narrativa, a saudade se manifesta como uma felicidade triste que nasce do encontro fugidio com uma lembrana,
o prazer nascido do fugaz contato com um objeto do desejo que se
torna presente por instantes (ALBUQUERQUE JNIOR, 2006, p.
121). Fazendo jus afirmao desse mesmo autor, de que a saudade
se apresenta como um gosto que traz um desgosto iminente, o narrador d sequncia ao seu raciocnio dizendo:
110

47 Entrevista realizada com Jos Rodrigues. Ver nota 45.


48 Entrevista realizada com Cndido Polido, em Curitiba, em 2008, por Clarissa K. Gottfried
e Thiago E. Rosa.

Bem que eu gostaria de ir l outra vez, mas no d [...] Tenho


que me contentar em ficar aqui mesmo. Comer um feijozinho, arroz. De vez em quando ir [ao supermercado] e comprar um pedao de bacalhau e cozinhar com batata.49

Alm do saudosismo, que aparece, quase sempre, atrelado a um


passado idlico, mitificado, outra questo presente nas narrativas a
ambiguidade em relao ao sentimento de adeso sociedade receptora. Assim, no processo de reconstruo das lembranas, os narradores
deixam escapar, sutilmente, elementos que podem nos ajudar a refletir
sobre as relaes de adeso ou rejeio que eles estabelecem com seus
grupos de pertencimento. Ou seja, a partir das suas prticas discursivas, possvel encontrar pistas para discutir o lugar da sua ancoragem
identitria, procurando perceber at que ponto eles se encontram encerrados nas malhas de fidelidades e de pertencimentos que lhes impem
seus comportamentos (RUANO-BORBALAN, 2004).
Nesse sentido, quando provocados pelos entrevistadores, na tentativa de saber se hoje se sentem mais brasileiros do que portugueses,
os narradores, algumas vezes, se posicionam de modo contraditrio.
Estou morando mais tempo no Brasil. Aqui estou com 40
anos e pouco no Brasil. E l morei 25 anos. Ento quer dizer
que agora sou mais brasileiro que portugus [mas] no quis
me naturalizar. Fiquei assim mesmo.50
Minha casa no Brasil, sem dvida nenhuma, o que eu
ainda no consigo torcer pra seleo brasileira quando
ela joga contra Portugal [risos], no consigo, no tem jeito,
nem no futebol de salo, nem no futebol de campo, no
d, a o sangue puxa mais forte! Mas fora disso, eu vim pra
c, o Brasil me acolheu de forma maravilhosa [...] o Brasil
sempre foi muito generoso conosco, e com a minha famlia
toda. Aqui que eu ganho meu dinheiro, e que eu me envolvo
com a comunidade, aqui que eu criei meus filhos [...] ento
minha ptria esta aqui.51
49 Entrevista realizada com Cndido Polido. Ver nota 49.
50 Entrevista realizada com Cndido Polido. Ver nota 49.
51 Entrevista realizada com Jos Rodrigues. Ver nota 45.

111

Outras vezes, a resposta em relao ao seu lugar de pertencimento aparece de modo mais enftico, sintetizando com maior clareza o sentimento de identidade desses imigrantes:
[L] eu deixei a casa de xisto, as oliveiras, as cerejeiras, os montes de palha seca [...] Deixei amigos, as andorinhas, a neve.
Deixei as batatas, as sardinhas assadas, as postas de bacalhau
[...] deixei o riacho. Deixei o repicar do sino da igreja... L eu
deixei metade de mim. (CORREA, 2011, p. 167).
Luanda era estranha pra mim. Eu procurava a integrao e
no conseguia. E assim por meu mal sentia-me desterrado
em minha terra natal. Minhas razes, meus amigos, os meus
sonhos que no desabrocharam. Tudo afinal que era meu
tinha ficado em Portugal [...]52

Nesse turbilho de lembranas, em que o saudosismo parece


nascer da angstia diante da sucesso de novidades, como fruto da
insegurana na presena de novas estruturas sociais que vm substituir a antiga ordem, destruindo os lugares e as hierarquias sociais
j estabelecidos (ALBUQUERQUE JNIOR, 2006, p. 119), os e/
imigrantes explicitam o desconforto em relao experincia do
deslocamento. Termo este que, para muitos, condensa no s o isolamento geogrfico, a privao do espao social, o distanciamento
de referncias simblicas, mas acima de tudo as fraturas e cicatrizes
presentes na sua identidade subjetiva.
Enfim, podemos afirmar que, ao permitirem nossa entrada em
seus palcios da memria, os narradores, ainda que no tenham nos
dado a chave para acessar os espaos mais ntimos da sua subjetividade, possibilitaram que olhssemos, furtivamente, pelo buraco da
fechadura.

112

52 Entrevista realizada com Amlcar Fernandes Silva, em Curitiba, em 2005, por Roseli
Boschilia.

Referncias

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114

TE

PAR

III

PARTE III
HISTRIA ORAL, CIDADES E DIFERENA

1. sombra do jequitib
Marcos Alvito

Sem ter condies de ensinar algo de novo e extraordinrio
acerca da histria oral, gostaria de compartilhar aquilo que tenho
aprendido na aventura da pesquisa, sobretudo naquele momento
decisivo e muitas vezes mgico em que nos vemos diante de uma
outra pessoa e pedimos a ela que conte sua histria. Ser uma histria sobre histrias. Adoto aqui a perspectiva de Portelli (2005, p. 3) de
que em um trabalho de histria oral no estudamos as pessoas e sim
aprendemos com elas.
At um certo dia de maio de 1995, eu era um pacato professor
de Histria Antiga fazendo um doutorado na USP sobre o que eu
chamava de A apropriao social do corpo feminino em Atenas e
Esparta. Por conta de uma reviravolta pessoal e acadmica que no
cabe contar aqui, meses depois eu estava pesquisando a favela de
Acari. Localizada a cerca de 25 quilmetros ao norte do Centro do
Rio de Janeiro, era na poca formada por trs favelas e um conjunto
residencial onde moravam, em uma densidade demogrfica superior
de Copacabana, por volta de quarenta mil pessoas.
quela poca, Acari era um dos principais postos de venda de
drogas a cu aberto do Rio de Janeiro, palco de uma confrontao
cotidiana e sangrenta entre policiais e jovens traficantes. Em meio a
isso, uma comunidade de trabalhadores pobres, muitos deles acordando s trs horas da manh para pegar no servio pesado de car- 117

regador da maior central de abastecimento de alimentos da cidade,


a CEASA. Costumo brincar com meus alunos dizendo que o suco de
laranja que eles tomaram de manh provavelmente foi descarregado
de um caminho pelos braos firmes do pessoal de Acari.
A violncia tornara a rua e tambm as prprias casas, cujas
paredes muitas vezes eram atravessadas por tiros de fuzil um lugar
perigoso, afetando toda a vida comunitria, restringindo a circulao das pessoas, as brincadeiras de criana, as festas, os encontros e
at os jogos de futebol.
Uma das consequncias desse cenrio era a multiplicao de
igrejas evanglicas, sobretudo as de denominao neopentecostal,
com sua retrica maniquesta de uma oposio entre o Bem e o
Mal. Tudo que estava acontecendo no mundo era atribudo ao
Diabo que devia ser combatido, nas palavras de uma missionria
que vamos conhecer melhor mais adiante, com um exrcito de
anjos.
Era ali que eu, pesquisador iniciante, realizei minhas primeiras
entrevistas de histria oral, sem nenhum preparo anterior. Quando
digo sem nenhum preparo no estou exagerando. De incio, minha
nica leitura especfica havia sido o timo livro de Paul Thompson
(1992) A voz do passado. Mas, como todos os que pesquisam em histria oral sabem, a entrevista uma arte que s se aprende na prtica.
Uma das primeiras entrevistas que consegui, depois de seis
meses frequentando Acari, foi com os fundadores de uma associao de moradores do local. Preocupados com o destino a ser dado
ao seu depoimento, um deles negociou comigo, ou melhor, imps a
condio de falarem somente sobre o passado e de que eu no lhes
perguntasse nada sobre o que estava ocorrendo hoje (sobretudo
a violncia). Em suma, iriam tratar somente da fundao da associao de moradores e das lutas empreendidas por eles: a primeira
e precria rede de esgoto construda pelos moradores, a instalao
de cabines de luz exploradas por particulares e algumas melhorias
118 conseguidas com polticos.

Aqui eu j aprendia a minha primeira lio de histria oral:


devemos sempre nos perguntar os motivos pelos quais nossos entrevistados nos concedem uma entrevista. Depois de conversar com
um jornalista, o sambista e partideiro Aniceto do Imprio fez um
samba dizendo: sofri uma entrevista esta manh. Ou seja, se o etngrafo, no dizer de Clifford Geertz (1989), vive a perseguir sujeitos
inteligentes com perguntas obtusas, resta saber por que eles se sujeitam a isso. No caso dos fundadores da Associao dos Moradores do
Parque Vila Rica, eles tinham uma conscincia muito clara de que
haviam desempenhado um papel importantssimo na histria local e
estavam dispostos a sofrer uma entrevista para que isso fosse documentado e registrado. Portelli (1991, p. 59) ensina que contar uma
histria faz o narrador escapar do esquecimento; a histria constri
a identidade do narrador e a herana que ele ou ela quer deixar para
o futuro.
claro que o que iriam me contar seria uma verso parcial e
interessada, uma espcie de histria oficial para as futuras geraes,
o que ficou claro por conta de um incidente ocorrido durante a entrevista. Quando um dos entrevistados menciona divergncias internas
existentes na associao de moradores, interrompido por Seu Tio
Peixeiro, que havia combinado comigo a realizao da entrevista e
as condies na qual ela transcorreria. Com a autoridade de quem
estava na laje da sua casa, ele pede ao professor que desligue o gravador e, em seguida, lembra a seu antigo companheiro de associao
que eles no estavam ali para isso (falar dos problemas), e sim para
relembrar as conquistas da associao. claro que isso no diminui
o valor daquele depoimento, pois a histria oral deve deixar a verdade factual em segundo plano e atentar para a verdade do corao
humano (PORTELLI, 1991, p. ix). Aquele depoimento no estava
sendo concedido para servir de fonte imparcial a uma reconstruo da histria da comunidade, e sim para que aqueles homens
reafirmassem sua identidade de personagens relevantes da luta
comunitria diante do pesquisador, que, supostamente, seria capaz 119

de preservar e transmitir essa informao. Dentro desse esprito,


a meno s disputas internas na associao comprometia o objetivo
do depoimento.
Aceitas as condies de realizao da entrevista, ela comeou da
forma mais desastrada possvel, com o pesquisador iniciante embolando ansiosamente vrias perguntas iniciais. Assim que a confuso
desfeita e os entrevistados entendem que lhes estava sendo solicitado um breve relato de como haviam chegado a Acari, Seu Tio
Peixeiro comea a contar sua histria:
Bem, quando eu vim pra aqui, eu morava no Jorge Turco,
num quarto alugado, eu trabalhava na empresa de nibus
que faz a 362, mas eu achando que no dava pra continuar
pagando aluguel, eu tinha vontade de ter minha casinha,
nem que fosse numa favela, mas minha. Na poca eu no
tinha condio de comprar um terreno e construir uma
casa. Pelo qual eu vim sem conhecer ningum aqui dentro,
nunca tinha vindo aqui dentro, a vim de bicicleta, procurando, ia comprar um pedacinho l embaixo, l dentro do
brejo, naquela poca cem mil ris, n, foi em [19]71, a estiquei pra frente, vim at aqui, chegando aqui uma vizinha
me disse: , esse pedao da t desocupado, o moo roou
a, mas no apareceu mais, te aconselho esse pedao aqui,
que ele tambm no morava aqui. Mas, a minha situao
no tando boa, eu no tinha como fazer a casa. A comprei,
l no Jorge Turco, um bocado de madeira, umas pernas de
trs, no tinha dinheiro pra pagar o aluguel, dei um relgio
que eu tinha pra pagar o carreto, coloquei aqui a madeira,
deixei o vizinho do lado, que aqui tinha um barraquinho de
tubua, de madeira, tomando conta pra mim, e a outra vizinha aqui do lado, at que eu pudesse vim e fazer o barraco;
a vim, reuni uns colegas, vim, eu botei as madeiras, joguei
as telhas em cima, no tinha madeira pra cercar; comecei a
juntar tubua de caixote, que pra fechar o barraco.

120

A fechei um cmodo com tubua de caixote, no tinha porta pra


entrar, vim morar, num barraco de cho, precisava fazer a cozinha,

a fiz a cozinha, no tinha telha, tudo cercado de tubua de caixote,


a eu fui na lixeira, arrumei um encerado, tapei com encerado. A
fiquei, no tinha conhecimento nenhum. A cerquei, daqui at l na
frente, no pra vender, pra dar pras pessoas, de modo que pudesse
trazer pessoas conhecidas pra perto de mim, que eu aqui era completamente estranho, a comecei a dar esses pedaos daqui pra l, a
comecei a arrumar ambiente com os moradores.53
O que temos at aqui? primeira vista, nada de mais, apenas um
relato acerca de um motorista de nibus que, querendo se livrar do
aluguel, decide construir sua casinha, nem que fosse numa favela,
mas sua. No entanto, se ouvirmos com calma o que efetivamente
dito nessa narrativa, se a tomarmos a srio como uma construo
de significado, veremos que ela nos diz muita coisa. O narrador,
poca da entrevista, era um senhor de 60 anos que tinha se tornado um comerciante muito bem-sucedido na favela. Sua birosca
era um primor de organizao, cada produto, meticulosamente
arrumado, tinha afixado o preo em papeizinhos escritos mo.
Se voltarmos sua narrativa, elaborada 25 anos depois, podemos
reparar na voz tranquila, pausada e contida, mas que deixa transparecer certa emoo e um compreensvel orgulho ao relembrar o
incio difcil. Percebemos que o relato carregado da ideologia do
self made man, do empreendedor: seu desejo inicial de ter uma
propriedade nem que fosse numa favela, mas minha. Sem conhecer
ningum, esse indivduo vem de bicicleta procurando at que acha
um pedao para construir. Sem dinheiro para construir, compra
uns pedaos de madeira, vende seu relgio para pagar o transporte
do material, improvisando materiais como tbua de caixote (os
caixotes em que so transportadas as laranjas e outros alimentos no
CEASA) e um encerado (lona) encontrado no lixo, cerca sua propriedade e constri sua casa, de cho de terra batida e ainda sem
porta pra entrar. Mas toda essa notvel iniciativa individual coe53 Entrevista com Sebastio Carvalho Sobrinho (Tio Peixeiro), em Acari, Rio de Janeiro, em
1996, por Marcos Alvito.

121

xiste com uma percepo muito clara da necessidade de construir


relaes e da importncia delas. Ele descobre o seu pedao aconselhado por uma senhora a quem ele j chama respeitosamente de
vizinha. Depois que transporta a madeira para o terreno, tem que
contar com a ajuda de dois vizinhos para guardar os materiais e
garantir que aquela terra no seja ocupada por outrem. Voltando ao
local, no constri a casa sozinho, mas com a ajuda de colegas. A
conscincia de que a sua notvel disposio individual necessitava
de um ambiente propcio para dar certo expressa com clareza
no uso da palavra conhecimento. Ele diz a certa altura: No tinha
conhecimento nenhum. Que saber era esse que ele dizia no ter? No
era aquilo que se aprende em livros, mas aquilo que era essencial
para que ele se estabelecesse no local: conhecer os outros moradores.
Sendo assim, ele cerca outros terrenos em torno do dele, no pra
vender, mas para dar para outras pessoas da sua confiana, conhecidas, e assim criar um ambiente com os moradores. Portanto, ao
contrrio do que poderia supor um intelectual de classe mdia que
imagina esse outro que o morador de favela como algum premido somente pela necessidade, esse outro v a si prprio como
sujeito da sua prpria histria, a qual ele tem que construir passo a
passo, no s com as prprias mos e dos seus colegas, mas tambm
a partir de uma avaliao sociolgica sutil denotada pelo uso prprio do termo conhecimento.
Deixemos Seu Tio Peixeiro continuar a sua narrativa (em meio
aos fogos de artifcio soltados pelo trfico), at mesmo para nos ensinar por que ele tem o epteto de Peixeiro:

122

Mas sendo que eu tava licenciado pelo INPS, no tinha


nenhum convvio aqui dentro, amizade com ningum, eu ia
todo dia l pro Jorge Turco, e vinha noite, noite eu ia deitar cedo, quando era duas, trs horas da manh, acordava,
perdia o sono, a ficava rolando na cama... Descansando, n?
A, um dia eu inventei, tava com trs mil ris no bolso na
poca, a inventei de descer s trs horas, falei: ah, eu vou
descer pra ir a Ramos, a desci pra Praia de Ramos, comprei

um ganhozinho de peixe uma mistura, n? Aquele ganhozinho de peixe, eu vim trouxe pra aqui, botei ali e vendi at
oito horas da manh. Aquele dia eu s fumei um cigarro pra
economizar o dinheiro pra poder no outro dia comprar dois
ganhos. A, desci, comprei dois, dois cestos e trouxe, botei
ali, at as oito horas, sobrou um pouquinho, botei na bicicleta, fui at aqui em baixo, vendi. No terceiro dia eu desci,
j trouxe trs, a j botei na porta embrulho da bicicleta, o
qual tenho ela at hoje. Isso j tem 25 anos.54

claro que aqui temos uma narrativa mitolgica, quase bblica,


a parbola dos peixes que se multiplicam simetricamente at que ele
possa se estabelecer como comerciante. Afora essa tonalidade religiosa, o relato clssico de um capitalista bem-sucedido, no faltando inclusive o ascetismo forado: Aquele dia eu s fumei um
cigarro pra economizar o dinheiro pra poder no outro dia comprar
dois ganhos [de peixe]. Onde imaginamos carncia material, somos
confrontados com um relato acerca da inventividade (A, um dia
eu inventei, inventei de descer) e do aproveitamento dos recursos
disponveis. Onde sonhamos com uma difusa solidariedade coletiva,
encontramos o relato de um indivduo empreendedor que se relaciona de forma racional e calculada com a coletividade.
De que maneira a conscincia da desigualdade e da injustia
contamina nossas representaes da diferena? De que maneira ela
acaba sendo construda de acordo com a nossa leitura bem-intencionada e paternalista do Outro? O Outro para o pesquisador de
classe mdia que ainda maioria o pobre, o favelado, o negro, o
operrio (cada vez menos). O grande perigo consiste exatamente em
que busquemos na histria oral apenas a confirmao desse outro
imaginado, romntico e deliciosamente simples.
Tendo internalizado em nosso habitus os preconceitos da classe
a que pertencemos, somos surdos seletivos, muitas vezes incapazes de perceber que a narrativa dessas histrias aparentemente sim123
54 Entrevista com Sebastio Carvalho Sobrinho (Tio Peixeiro). Ver nota 54.

ples pode ser bastante complexa, elaborada, em um entrelaamento


de forma e contedo que contm metforas valiosas e reveladoras.
Mais uma vez seguindo Geertz, precisamos levar a srio aquilo que
o nativo diz.
Se me permitem outro exemplo acariano, eis o incio de outra
entrevista realizada por mim naquela regio, desta vez com a Missionria Miriam, 31 anos, que estava frente da igreja neopentecostal Misso Apostlica Milagres da F. Em uma salinha adjacente a
seu templo, cerca de uma hora antes de comear o culto noturno, a
missionria me contou como tinha se tornado uma lder religiosa:

124

Marcos, eu nasci l em Vila Kennedy, na rua [?] nmero 20,


Vila Kennedy. Eu nasci em casa mesmo, no nasci no hospital, eu sou a filha mais nova e tenho cinco irmos, comigo
so cinco, eu sou a mais nova, o outro j partiu, mais novo,
e na minha casa s quem cristo sou eu, no tem mais
ningum evanglico. Eu fui levada pra igreja com 6 anos,
tinha 6 anos nesse tempo, quando eu fui pra igreja. Eu no
fui levada pelos meus pais, meus pais no eram cristos,
fui levada por uma senhora da Igreja Congregacional, uma
igreja que tinha l em Vila Kennedy, ainda tem essa igreja, e
essa senhora se chamava Dona Juventina. Eu achava bonito
aquelas crianas todas da rua, festival dominical, n que se
chama, se chamava, e eu comecei, como diz, naquela coisa
toda de criana, gostava muito, fazia muita baguna na
igreja, s vezes eu virava at banco da igreja, criana, n,
com 6 anos. Eu me lembro como se fosse hoje. E dali eu
comecei. A as meninas foram se formando, foram ficando
mocinhas tambm. Mas as minhas irms tambm iam com
gosto pra igreja, a turma daquelas crianas toda.
E dessas crianas s quem escapou assim que ficou mesmo
at hoje na igreja, n, foi eu e mais duas moas, que hoje
seguiram outros caminhos, outras igrejas, que a Tnia e
Janete. E eu fiquei, mas eu fiquei nessa igreja at os 12 anos,
porque s tinham pessoas de idade l, n, ento eu no sei,
com 12 anos, vi as coisas assim mais clara na minha mente,
a senti um desejo assim de fazer algo para Deus. Entendeu? Com 12 anos. Ento eu dizia que queria ser uma mis-

sionria, eu no dizia pastora, eu dizia que queria ser uma


missionria, desde os meus 12 anos. Que eu queria ser uma
missionria, que eu queria fazer a obra de Deus. Entendeu?
Mais a eu no entendia nada. No tinha assim aquela sabedoria dentro da palavra. Eu pensava que ser uma missionria era s chegar ali na frente, pegar o microfone, l um
versculo da Bblia, pronto, acabou. Mas conforme a gente
vai crescendo, n, assim, espiritualmente dizendo, na palavra, no nada daquilo, a gente tem que estudar, n, entrar
bem na palavra de Deus. Ento para ser uma missionria
no s chegar ali na frente e falar, tinha que descobrir se
eu tinha mesmo um chamado de ser uma missionria. Eu te
falei, se eu tinha mesmo o chamado de ser escolhida, de ser
enviada a um lugar, n, ser uma missionria mesmo.55

Aqui, obviamente, temos outro tipo de relato. Indivduo e sua


vontade so relativizados, ao contrrio do caso do Seu Tio Peixeiro.
Trata-se de um relato acerca da predestinao, acerca do chamado
de Deus: no basta frequentar a igreja, porque de um grupo enorme
de crianas s trs moas escapam (ou se salvam), dentre elas a
futura missionria Miriam. O desejo de fazer algo para Deus e de
ser uma missionria surge aos 12 anos, espontaneamente, mesmo
que ela diga que ainda no entendia nada. Aqui, todavia, ao contrrio de Seu Tio Peixeiro, querer no poder, a vontade de Deus
que impera, era preciso saber se ela tinha mesmo o chamado de ser
escolhida. Mais frente, em outro trecho da entrevista, ela vai contar
como obteve a confirmao da sua vocao. Aos 18 anos de idade,
na avenida Brasil, dirigindo-se ao ponto de pregao que mantinha
perto do presdio de Bangu 1, a jovem missionria atravessa a rua
para escapar perseguio de um bbado que queria agarr-la e que,
ao segui-la, atropelado e morto por uma Kombi. Muito nervosa,
sentindo-se culpada e pedindo desculpas a Deus, ela chega ao ponto
de pregao onde tenta no demonstrar o que acontecera. Uma
senhora que nada sabia dirige-se a ela e a acalma, dizendo que Deus
55 Entrevista realizada com a Missionria Miriam (nome fictcio), em Acari, Rio de Janeiro,
em 1996, por Marcos Alvito.

125

tinha lhe dado um livramento naquela noite. Treze anos depois,


quando estava sendo entrevistada, ela chama aquele episdio de
primeira profecia, em suma, do primeiro sinal que Deus lhe d de
que ela havia sido efetivamente escolhida por Ele para fazer a obra.
Voltando ao trecho citado, descobrimos neste relato uma forma
de saber, de conhecimento, muito sutilmente apresentada. Quando a
missionria diz que no tinha sabedoria dentro da palavra, chama
ateno um uso pouco comum da preposio. Afinal, ela no diz que
conhecia pouco a palavra de Deus, ela diz textualmente que No
tinha assim aquela sabedoria dentro da palavra. No uma fala
acidental ou ignorante, afinal logo depois ela vai dizer: conforme
a gente vai crescendo, n, assim, espiritualmente dizendo, na palavra, no nada daquilo, a gente tem que estudar, n, entrar bem na
palavra de Deus. A que se presta esse uso inventivo da preposio?
Por que a missionria diz que preciso crescer espiritualmente na
palavra de Deus? Por que ela diz ser necessrio entrar bem na palavra de Deus? O que isso significa? O que quer dizer estar dentro
da palavra?
claro que, se subestimarmos o Outro, no caso uma lder religiosa neopentecostal, seremos surdos a essa forma muito prpria de
expressar-se e iremos traduzir a mensagem para agir de acordo
com a palavra de Deus ou com o conhecimento da palavra de
Deus. Se assim o fizssemos perderamos totalmente de vista o que
realmente est sendo dito nessa narrativa enganadoramente simples. preciso entender que a experincia da converso religiosa
cria, no dizer de Santayana (apud GEERTZ, 1989, p. 103), um novo
mundo em que viver. A religio um sistema simblico que permite
reconstruir todo o sentido do universo em que passa a viver o crente.
No trabalho de campo, inmeras vezes me defrontei com pessoas
que afirmavam com toda a certeza serem novas criaturas em Cristo.
A cerimnia de batismo das igrejas evanglicas, por imerso nas
guas, realizada, ao contrrio do batizado catlico, somente depois
126 dos 18 anos, equivale a um renascimento. Por isso ex-bandidos

davam testemunhos acerca da sua vida pregressa como se as barbries tivessem sido perpetradas por outra pessoa. Esse tipo de relato,
capaz de atrair multides aos templos evanglicos, fato cuja periculosidade proporcional antiga criatura, era visto como exemplo
do poder da palavra de Deus. Aqui chegamos, finalmente, palavra.
Palavra sagrada que tem um poder mgico, uma eficcia, uma capacidade de transformar o prprio ser em outro. Em suma, a palavra
de Deus tem o poder de criar um novo mundo em que viver. Ela
constri uma redoma csmica, a Igreja encarnada na comunidade
de fiis que vivem nela, na palavra, em oposio aos que vivem
no mundo, onde o Diabo que impera. Por isso foi preciso, para
efetivamente se transformar numa missionria, obter a sabedoria
dentro da palavra, crescer espiritualmente na palavra. Era necessrio entrar bem na palavra de Deus. Antes ela pensava que ser
uma missionria era s chegar ali na frente, pegar o microfone, l
um versculo da Bblia, pronto, acabou. E quando ela vai conseguir
entrar na palavra? Somente aps confirmao do chamado divino.
Somente depois da prova pela qual passara (a tentativa de estupro
e a morte do seu perseguidor), somada profecia emitida por uma
senhora que nada vira, ela tem a certeza, aos 18 anos de idade, que
havia sido escolhida. Pois, nas suas prprias palavras: para ser uma
missionria no s chegar ali na frente e falar, tinha que descobrir
se eu tinha mesmo um chamado de ser uma missionria.

Para terminar, uma ltima histria, aquela que d o ttulo a


este artigo: sombra do jequitib. No incio de 2009, comecei a lecionar um curso para os alunos de graduao da Universidade Federal Fluminense (UFF) chamado Do jongo ao
samba: a dialtica da carioquice. Na primeira parte do curso,
referente ao jongo, vimos que ele fora uma criao dos escravos
do Sudeste, sobretudo aqueles que trabalhavam nas fazendas
de caf do Vale do Paraba. Ao final da pesada semana de trabalho, os escravos se reuniam no sbado noite para, em torno
de uma fogueira, cantar e danar ao som do caxambu e do can- 127

dongueiro, um par de tambores escavados com fogo no tronco


de rvores e recobertos com couro animal. Durante muito
tempo, os viajantes estrangeiros que descreveram essas festas,
muitas vezes dando-lhes o nome genrico de batuques, viram
nelas uma manifestao da irracionalidade, do descontrole, da
animalidade dos negros, como fica muito claro na representao que os viajantes Spix e Martius (apud SCHWARCZ; REIS,
1996, p. 40) fizeram de um batuque em So Paulo (Fig. 1).

Figura 1 - Batuque em So Paulo, 1820


Fonte: Ilustrao de Spix e Martius (apud SCHWARCZ; REIS, 1996)

Aps a Abolio, mesmo os folcloristas que vieram depois dos


viajantes estrangeiros pouco se importaram com as canes elaboradas por aqueles negros, um deles chegou, inclusive, a afirmar que
elas no tinham nenhum sentido.
Quando o historiador norte-americano Stanley Stein chegou
128 ao Brasil no final da dcada de 1940 para pesquisar e escrever seu

magnfico livro sobre o municpio de Vassouras poca do caf, ele


teve oportunidade de conversar com ex-escravos e seus descendentes. Stein foi a algumas festas de jongo na regio e logo percebeu
que as letras das canes muitas vezes remetiam poca da escravido e que eram carregadas de sentido. Na verdade, os jongueiros
chamavam-nas de pontos, dando exatamente a ideia de algo que fora
costurado, que tinha um n a ser desatado, ou seja, cujo significado
precisa ser interpretado.
Um dos jongos gravados por Stein na voz de um ex-escravo de
Vassouras foi este:
, com tanto pau no mato
Embaba coron
Com tanto pau no mato,
Com tanto pau no mato
Embaba coron

So apenas dois versos que se repetem. Seu significado, no


entanto, poderoso. Em seu livro, Stein comenta:
O jongo seguinte acerca da rvore embaba e do coronel
fazendeiro tipifica o aspecto de duplo sentido nos jongos:
Com tanto pau no mato/ Embaba coronel. De acordo
com um ex-escravo, a embaba era uma rvore comum,
intil por ser podre por dentro. Muitos fazendeiros eram
conhecidos como coronis porque ocupavam esse posto na
Guarda Nacional. Combinando os dois elementos, embaba
e coronel, os escravos produziam o superficialmente incuo, mas sarcstico comentrio. (STEIN, 1990, p. 248).

Na verdade, h ainda mais ns a desatar nesse ponto de jongo.


Alm de ser uma rvore oca por dentro, de polpa mole e imprestvel, a embaba era a rvore preferida do bicho-preguia, uma crtica
certeira ao dono da fazenda que passava o dia balanando na rede da
varanda enquanto seus escravos trabalhavam at 14 horas por dia.
129
Em um belssimo trabalho em que faz dialogar a histria e a antropo-

logia, outro historiador norte-americano, Robert Slenes, retorna ao


ponto sobre a embaba com dados novos provenientes dos estudos
sobre a frica centro-ocidental, a regio que forneceu a maior parte
dos escravos vindos para as fazendas de caf do Vale do Paraba no
sculo XIX.
O que Slenes descobre? Ele descobre que havia significados compartilhados pelos escravos provenientes das regies do Congo e de
Angola (frica centro-ocidental). Nessa rea cultural, ensina:
[...] homens (e ancestrais) de grande valia eram rotineiramente identificados com rvores de madeira de lei; assim,
por contraste, homens moralmente fracos, mesmo que
poderosos, facilmente poderiam ser comparados a paus
de polpa mole. Chamar o senhor de embaba, portanto,
era denunci-lo como impostor ou, pior, como feiticeiro,
algum que ganhou riqueza e proeminncia s custas dos
outros. De fato, na floresta da escravido o mundo decididamente estava de cabea para baixo. (SLENES, 2007, p. 132).

A interpretao no para aqui. Carmo Moraes, um jongueiro de


Angra dos Reis (apud THEOBALDO, 2003, p. 72), comentou que a
embaba uma rvore alta e imponente, mas que no d sombra,
ao contrrio das rvores de madeira de lei, ou seja, ao contrrio de
um verdadeiro chefe, o coronel no protege, no acolhe, no sentido
positivo de ficar sombra de algum. E mais, na rea cultural da
frica centro-ocidental, acreditava-se que um sacerdote (nganga),
ao colocar uma pitada de cinza nos cantos dos olhos das pessoas,
podia fazer os mortos aparecerem diante dos vivos. Chefes e sacerdotes acreditavam no poder curativo das cinzas do fogo domstico,
desde que este fosse alimentado com madeira dura, de queima lenta.
O mesmo jongueiro j citado assinala que a madeira da embaba
queima rpido, d um fogo frio e no fabrica carvo. A madeira de
lei, ao contrrio... (THEOBALDO, 2003, p. 72).
Sendo assim, vemos que em apenas dois versinhos os escra130
vos conseguiam fazer uma crtica devastadora ao senhor de escra-

vos. Se tomarmos a definio de cultura dada por Marshall Sahlins


(1990, p. 192) como a organizao da situao atual em termos do
passado, entenderemos que os escravos utilizaram toda a cosmologia e os valores da rea cultural centro-africana para traduzir e
expressar o que estava ocorrendo em um novo contexto histrico.
Usaram signos locais como a embaba e o coronel, carregando-os de significados do cdigo cultural que j compartilhavam na
frica.
Partindo dessa pista do valor da rvore de madeira de lei para
a cultura afro-brasileira e da possibilidade de que tenha ocorrido
aquilo que Sahlins (1990, p. 50) chama de reavaliao funcional das
categorias, vamos chegar a resultados bem interessantes. Mangueira
e Salgueiro, duas das principais escolas de samba do Rio de Janeiro,
foram buscar seu nome em rvores imponentes, de boa madeira e
que do generosa sombra. No caso da Mangueira, h uma msica
de Jos Ramos que a compara explicitamente a um jequitib, uma
rvore de tronco grosso, que pode alcanar a altura de um prdio de
vinte andares e viver mais de trs mil anos:
Madeira de dar em doido Jequitib
Deixa a Mangueira passar
[...]
, , , , , , o Jequitib do samba chegou

No restante da msica, a verde e rosa chamada de floresta de


sambistas, onde o jequitib nasceu e ficou mesmo que tenha
sido queimado pelo fogo, tombado pelo vento e atacado pelo
machado. Mas o jequitib, alm de invencvel, carregado de fora
e autoridade, tambm uma arma de crtica, uma madeira de dar
em doido. No seria essa msica uma crtica sutil e poderosa como
o jongo sobre a embaba, desta vez afirmando a sobrevivncia do
samba a despeito da violenta represso sofrida pelas manifestaes
131
culturais afro-brasileiras ao longo da histria?

E a sombra do jequitib? Em maio de 2009, fui com uma turma


de Histria da UFF ao quilombo So Jos da Serra, no municpio de
Valena, a trs horas de carro do Rio de Janeiro. Essa comunidade de
descendentes de escravos habita essas terras h 150 anos. Eles ainda
mantm viva a tradio da roda de jongo, sobretudo para celebrar
o Treze de Maio. E ainda danam em volta da fogueira cantando o
ponto sobre a embaba-coron.
L chegando, depois de 22 quilmetros de estrada de terra
batida, margem da qual avistei algumas embabas, fomos recebidos com uma deliciosa feijoada. Aps o almoo, eu e alguns alunos resolvemos conhecer o jequitib centenrio que domina o alto
de uma das encostas que circundam as terras do quilombo. Por um
acaso feliz que s posso atribuir bondade dos deuses, Nathanael da
Silva, um morador da comunidade que passou pelo nosso grupo, fez
questo de nos levar at l, pois j estava entardecendo e seria difcil
encontrarmos o caminho. Subindo por uma trilha muito bonita, em
meio s casinhas de sap e muitas flores silvestres, chegamos perto
do jequitib.
Nathanael nos mostrou uma estreita passagem na mata que
conduzia base da rvore. O jequitib do quilombo So Jos to
grandioso que suas razes abraam enormes pedras e seu entorno
fechado pela mata forma uma espcie de caverna, acolhedora como
um tero materno. Antes que me acusem de exagero, vejamos o que
disse Nathanael:

132

uma rvore que nasceu sozinha no mundo, n coitada...


Sem me, sem madrinha, que eu no sei quem me disso
tudo, naquela poca, s a me que sabia, n, a me de
santo, ela falou muita coisa... ela nasceu sozinha, ta uma
baita duma rvore grossa, muitas alegrias, essa raiz toda em
volta dela, uma maravilha, que uma me pra gente que
ns temos de coraes abertos, o que [est faltando?] ela,
chegou aqui a gente sai de corpo leve, quem achar que t
pesado, pede a ela, bate a cabea a que amanh, hoje mesmo
vai saltar igual cabrito, mas sempre t com viamento [?], n,

viamento, apesar que ns no temos luz pra [?] igual uma


vela, eu no sabia que [?] uma luz pra ela, mas sempre tem
os coraes aberto, ela me de ns todos, ela sempre ta...
da que nosso pai Oxssi, nossos caboclos faz trabalho, dia
de ano eles vm a faz uma oferenda pra caboclo a, tambm,
que esse caboclo da mata, t sempre a trabalhando, a tem
ndio a que vocs nem conhece, cada ndio a assim, .56

Vejam que o jequitib, na narrativa de Nathanael, simboliza a


comunidade de ex-escravos abandonados sua prpria sorte depois
da Abolio: sozinha no mundo [...] sem me, sem madrinha. O
jequitib o solo materno onde so depositadas as oferendas por
parte dos adeptos do terreiro de umbanda. A sua sombra representa
proteo e cura, uma divindade que abraa seus filhos de corao
aberto. Ela vista como a me ancestral cujo desaparecimento implicaria a extino do grupo, pois como nos disse Nathanael naquele
dia: Se morrer a nossa vida t ... cabou isso a , vai ter revirao...
mas num morre no porque ele nunca morreu, mas ele bom, bom
o jequitib, uma me pra gente.57 uma teia de significados perfeitamente compatvel com a cosmologia centro-africana trazida pelos
ancestrais de Nathanael h vrias geraes.
Para ampliar a interpretao seria interessante recorrer a uma
obra coletiva acerca do simbolismo das rvores em diversas culturas
(RIVAL, 1998). Laura Rival (1998, p. 1) assinala que as rvores fornecem alguns dos mais poderosos smbolos do processo social e da
identidade coletiva. Duas qualidades das rvores as tornam apropriadas para simbolizar as coletividades: a vitalidade e o poder de autorregenerao, sendo representaes culturais de reafirmao da vida e
negao da morte (RIVAL, 1998, p. 3). Na fala de Nathanael citada
acima, a existncia do jequitib e a da comunidade esto interligadas:
Se morrer a nossa vida t ..., sendo que a crena na vitalidade da
rvore inabalvel: mas num morre no porque ele nunca morreu.
56 Entrevista realizada com Nathanael Silva, no quilombo So Jos da Serra, Valena, em 2009,
por Marcos Alvito.
57 Entrevista com Nathanael Silva. Ver nota 57.

133

preciso sublinhar que estamos adotando o conceito de smbolo como algo que rene e distingue, sob a forma sensvel de um
artefato, todo um conjunto de valores, normas, crenas, estatutos e
sentimentos (VOGEL; MELLO; BARROS, 1998, p. 2, grifo nosso).
Tendo descoberto a centralidade do jequitib como smbolo do
quilombo So Jos da Serra, retornei comunidade em outubro de
2009 para realizar uma pesquisa de histria oral em parceria com
os estudantes dessa disciplina. No roteiro das entrevistas realizadas
pelos alunos, foi inserida uma pergunta acerca da relao da comunidade com o jequitib que permitiu aprofundar a investigao
acerca dessa rvore como smbolo.
Aqui precisamos ampliar nossas informaes sobre o quilombo
So Jos. Essa comunidade de descendentes de escravos foi reconhecida como remanescente de quilombo em 1998, a partir da tendo
lutado pela obteno das terras que vm cultivando h geraes e
que passariam a lhes pertencer de acordo com o artigo 68 das disposies transitrias da Constituio de 1988. A luta da comunidade
pela implementao do seu direito demorou 11 anos at que em
novembro de 2009 fosse assinado um decreto presidencial concedendo-lhes as terras. Antes disso, a existncia e a permanncia da
comunidade nessas terras estiveram sob forte ameaa. Seu acesso
terra foi progressivamente negado pelos fazendeiros que tentaram
inclusive expuls-los dali. Hoje em dia, enquanto esperam que o
Incra finalmente demarque sua propriedade permitindo-lhes tomar
posse, as dezenas de famlias da comunidade vivem apertadas em
apenas nove hectares. Com isso, muitos de seus membros, sobretudo os mais jovens, so obrigados a migrar para centros urbanos em
busca de trabalho. Apesar disso, a comunidade como um todo sempre volta a se reunir durante as duas festas anuais mais importantes:
o Treze de Maio e o Vinte de Novembro.
Essa resistncia a um ambiente hostil encontra uma correspondncia perfeita em uma das histrias contadas acerca do jequitib
134 pelo lder da comunidade, Antnio Fernandes do Nascimento, mais

conhecido como Toninho Caneco:


[...] esse jequitib, quando chegou uma poca, o fazendeiro vendeu o jequitib. E veio uns mineiro a, a gente fala
mineiro, porque os mineiro, ele, ele, eles ia pra mata, e chegava l jogava o pau no cho e saa da mata tbua, essas
coisas e tudo. E os mineiro andava, pegando, comprando
essas... madeira, assim, de lei, pra poder ele tirar tbua,
tbua mais valorizada, n? A o fazendeiro vendeu. Vendeu a comunidade, foi a primeira vez que a comunidade
se manifestou assim, dentro da comunidade, tomou uma
posio e abraou o jequitib. Falou: Essa rvore aqui no
vai ser derrubada. E a pra c que a gente viu o valor do
jequitib.58

Nessa narrativa, h uma contraposio entre o valor comercial


da rvore para os que vinham de fora (os mineiro) e o seu significado para a comunidade, que teria inclusive despertado para a fora
da sua manifestao coletiva (foi a primeira vez que a comunidade
se manifestou assim) diante da ameaa ao jequitib. Na mesma
entrevista, Toninho Caneco assinala que a rvore, que teria duzentos anos, chegou antes da comunidade, motivo pelo qual ele chama
o jequitib de aquele paizo forte, o pai de todos aqui na comunidade. Me para Nathanael, pai para Toninho Caneco, de qualquer forma o jequitib uma espcie de ancestral mtico de toda a
comunidade. Por isso, outro entrevistado, Sebastio do Nascimento
Fernandes, acha que o jequitib era lugar dos quilombola que era
refugiado pra l. Dessa forma, a rvore uma aliada daqueles que
teriam resistido escravido, ideia central na construo da identidade de uma comunidade remanescente de quilombo.
sobretudo como smbolo religioso que o jequitib aparece nas
narrativas. Joo Batista de Azedias, um dos entrevistados, acredita
que um ch feito com a casca da rvore capaz de curar o cncer.
58 Entrevista realizada com Antonio do Nascimento Fernandes (Toninho Caneco), no quilombo So Jos da Serra, Valena, em 2009, por Alvito Marcos. Com a presena dos alunos
de histria oral ad UFF.

135

Dona Carminha (Maria do Carmo do Nascimento Mximo) v no


jequitib uma fonte de energia que funciona como garantia para a
comunidade:
O jequitib porque ele , ali que est as foras todas, n!?
as foras tudo. O jequitib transformao numa tradio de fora. A raiz est toda ali, sabe? Tudo, assim, de bom
que voc quer alcanar alguma coisa, voc chega l, faz um
pedido, abraa nele. Faz um pedido de bom pra voc alcanar aquilo [...] As pessoas vai l, canta l. Assim, o povo do
centro canta l. Eles afirmando. Eles mesmo abraa... a
coisa mais importante que ns tem aquele jequitib ali.
Aquilo uma garantia. Aquilo uma fora, sabe? E as foras est toda l na raiz dele. uma fora muito forte, uma
corrente muito forte. A todo mundo fala l que muita gente
que vem aqui, eles falam que s no entrar daquela porteira
pra c, j recebe energia da fora dele. Tem gente que quer
botar at o p no cho pra receber aquilo. [risos] , muita
fora mesmo!59

Em vrias outras entrevistas, o jequitib aparece como dispensador de fora, energia e conforto para aqueles que estejam atravessando dificuldades. Bastaria sentar alguns momentos sua sombra,
abra-lo, eventualmente fazer uma orao, para que a pessoa seja
beneficiada.
Em nenhuma entrevista, todavia, seu papel central como smbolo religioso da comunidade fica mais explcito do que naquela
concedida por Me Tet (Terezinha Fernandes de Azedias), a me de
santo responsvel pelo terreiro de umbanda do quilombo So Jos:
Ah... o jequitib da gente uma coisa muito importante. A
gente respeita ele. Igual eu respeito o terreiro de umbanda
aqui em baixo eu respeito ele e aquela pedra grande. Que
ele uma segurana pra nossa vida. Enquanto a gente tiver
a gente sabe que tem vida e tem esperana. Todo dia a gente

136

59 Entrevista realizada com Maria do Carmo do Nascimento Mximo, no quilombo So Jos


da Serra, Valena, em 2009, por Hiolly B. de Souza.

vencer toda a nossa dificuldade daqui do lugar. Igual a


gente ele no tombou, ele t sempre firme. Ento na firmeza
dele a gente tambm firma nossa cabea pra poder conseguir aquilo que a gente quer. Pede a Deus por ele, vai l
abraa ele. A quando d acende luz [vela] pra ele. Quando
eu no vou acender luz l, eu vou no terreiro, pedindo a
fora pela natureza. E a... pelo nosso Brasil sagrado, que
ajude a aquela rvore conservar muitos anos de vida. Que
nada atinja ele. Ento uma coisa muito importante pra
gente.60

Um smbolo funciona como aquilo que Geertz (1989, p. 107108) chama de modelo de e modelo para. Enquanto modelo de,
o smbolo descreve algo, representa algo. O jequitib um sinnimo
da ancestralidade, do enraizamento, da antiguidade da ocupao
daquele territrio pelo grupo. Ele condensa como o grupo v suas
origens, que remontam ao tempo do cativeiro (RIOS; MATTOS,
2005). Por outro lado, o smbolo tambm um modelo para, uma
espcie de manual de como se deve agir. Diante do sofrimento e das
dificuldades, deve-se resistir bravamente feito a rvore centenria:
Igual a gente ele no tombou, ele t sempre firme. Ento na firmeza
dele a gente tambm firma nossa cabea pra poder conseguir aquilo
que a gente quer. Por isso o destino da comunidade e do jequitib
est entrelaado: Enquanto a gente tiver [o jequitib] a gente sabe
que tem vida e tem esperana.
O que podemos concluir a partir destas trs histrias: Seu Tio
Peixeiro e sua saga de pioneiro, a missionria Miriam e a descoberta
de sua vocao religiosa e, por fim, o jequitib e o quilombo So Jos
da Serra?
Em todas as trs situaes, os relatos dos entrevistados pareciam
muito simples e at mesmo banais. Mas, para compreender efetivamente o que cada uma dessas pessoas estava querendo dizer, foi preciso, primeiramente, recuperar o contexto de suas falas e a situao
60 Entrevista realizada com Terezinha Fernandes de Azedias (Me Tet), no quilombo So
Jos da Serra, Valena, em 2009, por Arliny R. Cavalcante.

137

em que se deu o dilogo entrevistador-entrevistado. No caso dos ex-lderes comunitrios, seu depoimento visava garantir a preservao
da memria da luta coletiva e do papel que eles enquanto indivduos
haviam desempenhado. A Missionria Miriam queria dar um testemunho da sua f, tentando difundir a fora da palavra de Deus. J
os membros da comunidade do quilombo So Jos, em meio luta
pela terra, buscavam em seu discurso afirmar a identidade do grupo
e dos valores em nome dos quais eles continuavam (e continuam) a
resistir.
Mas o significado das palavras dos entrevistados, alm de levar
em considerao a situao da entrevista, deve remeter viso de
mundo do nativo, que deve ser investigada da forma mais profunda
possvel. Sem isso, nos arriscamos a sermos ventrloquos, fazendo
nossos entrevistados falarem aquilo que ns queremos dizer (PORTELLI, 1998, p. 72).
O historiador oral deve entender que as palavras aparentemente
singelas que nossos entrevistados generosamente compartilham
conosco merecem uma interpretao que faa jus sua complexidade de significados e profundidade histrica. Devemos perceber
que esses discursos podem ser to ricos e sutis como a sombra de
um jequitib.
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138

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dAngola: iniciao e identidade na cultura afro-brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro:
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139

2. O outro, esse incmodo sedutor


Luiz Felipe Falco

O relato minucioso da rotina desprovida de herosmos, porm


plena de violncias, sofrimentos e humilhaes, vivenciada pelo
autor Primo Levi (2000) e pelos demais prisioneiros do campo
de extermnio nazista de Auschwitz durante a II Grande Guerra
impressiona, entre outras coisas, pelo modo como transcorriam diariamente aquelas violncias, sofrimentos e humilhaes. Amparadas
por um sentimento de superioridade racial e moral cultivado com
esmero, as brutalidades fsicas e psquicas pareciam se desenrolar
no por trabalho ou interveno humana, mas como uma automtica decorrncia ou imposio do mundo natural. Talvez por isso,
Levi adverte j no prefcio que no pretende revelar nenhum novo
detalhe atroz sobre o tema dos campos de extermnio, mas talvez
fornecer elementos para um sereno estudo de alguns aspectos da
alma humana. Escreve ele ento:

140

Muitos, pessoas ou povos, podem chegar a pensar, conscientemente ou no, que cada estrangeiro um inimigo.
Em geral, essa convico jaz no fundo das almas como uma
infeco latente; manifesta-se apenas em aes episdicas e
no coordenadas; no fica na origem de um sistema de pensamento. Quando isso acontece, porm, quando o dogma
no enunciado se torna premissa maior de um silogismo,
ento, como ltimo elo da corrente, est o Campo de Extermnio. Este produto de uma concepo de mundo levada

s suas ltimas consequncias com uma lgica rigorosa.


Enquanto a concepo subsistir, suas consequncias nos
ameaam. A histria dos campos de extermnio deveria ser
compreendida por todos como um sinistro sinal de perigo.
(LEVI, 2000, p. 7).

De acordo com ele, portanto, sua descrio poderia ser til


para compreender a concepo de mundo que presidiu a criao
e, ao mesmo tempo, para servir como aviso de um risco: tratava-se (e se trata), segundo Levi, da crena consciente ou no de
que cada estrangeiro um inimigo, que no mais das vezes jaz
no fundo das almas como uma infeco latente, manifestando-se
apenas espordica e descoordenadamente. E, talvez mesmo por
essa caracterstica pouco ordenada e quase involuntria, a convico de que o estrangeiro uma ameaa obstinada e permanente
no merece a devida ateno at o momento em que ela se torna
um perigo inadivel. Ou seja, at o instante em que se nota que
o estrangeiro no apenas o forasteiro, e sim todo aquele que
no pertence, ou no se considera pertencente ou no considerado como pertencente, a um determinado local, meio, categoria
ou cultura, e que em razo disso presumida sua incompatibilidade, o que lhe vale ser mantido parte ou mesmo ser despojado
quando for o caso.
Claro est que a incompatibilidade aludida aqui mais perceptvel, e tende a ter um curso mais facilitado, num pas ou num ambiente
social em que uma eventual cultura da intolerncia ou ainda uma
aplicada cultura da ordem e da obedincia irrestrita tenham fincado
razes antigas e profundas (ELIAS, 1997; REICH, 2001). Seria, porm,
uma ingenuidade e mesmo um engano com efeitos irreparveis desconhecer ou subestimar sua presena em sociedades com acentuada
disposio favorvel ao convvio com o outro, seja ele o estranho ou
o novo, at porque mesmo a uma cultura da intolerncia e uma cultura da ordem e da obedincia nunca estiveram totalmente ausentes,
141
como o caso do Brasil (CARNEIRO, 2002).

Neste pas, o processo de decomposio da ditadura militar


implantada em 1964, processo esse consumado em 1985 sob a hegemonia de lideranas polticas conservadoras, por ter sido impulsionado por significativas mobilizaes de trabalhadores e das classes
populares de um modo geral as quais tambm estimulou , criou
uma espcie de desateno para a constatao de que na sua esteira
tambm se articularam ou rearticularam grupos e organismos refratrios a maiores mudanas polticas, econmicas ou socioculturais,
a cosmopolitismos, convivncia com as diferenas, etc. Sem qualquer preocupao em hierarquizar sua importncia em termos do
nmero de adeses conseguidas ou da visibilidade social alcanada,
podem ser citados, entre outros: a Unio Democrtica Ruralista
(UDR), fundada em 1985 por proprietrios rurais motivados pela
resistncia a qualquer preo reforma agrria; os diversos agrupamentos que reivindicam a herana da Ao Integralista Brasileira,
movimento ultranacionalista de inspirao fascista criado na dcada
de 1930, a partir de seu lema Deus, Ptria e Famlia, com destaque
para a Casa de Plnio Salgado, organizada em So Paulo no ano de
1981, e para a Frente Integralista Brasileira (FIB), surgida em um
congresso nacional no ano de 2004; e os Carecas (Carecas do ABC,
Carecas do Subrbio, etc.), os white powers e as vrias modalidades
de neonazistas surgidas no incio dos anos 80 do sculo XX, dedicados a promover aes de cunho violento contra pessoas ou propostas
consideradas esquerdistas ou, conforme a inclinao ideolgica de
seus membros, contra homossexuais, judeus, negros, prostitutas e
quaisquer outros que manifestem sua alteridade irredutvel.
Portanto, o fato que a redemocratizao do Brasil no ficou
inclume a expresses de intolerncia e de violncia relacionadas
com a presena de um outro que impossvel reduzir ao mesmo, ao
idntico, expresses essas que inclusive podem ter sido incrementadas no perodo por variados motivos, como o caso da no condenao explcita das perseguies, das torturas e das mortes de presos
142 polticos durante o regime militar, tudo isso a pretexto de defender

o Brasil de projetos e interesses aliengenas. A persistncia da figura


do desaparecido poltico sem maiores informaes acerca do seu
paradeiro por parte das Foras Armadas, a manuteno do sigilo dos
arquivos dos organismos encarregados de reprimir aquilo que era
considerado como subversivo e a prpria impunidade dos torturadores que jamais responderam judicialmente por seus crimes justificam, ao menos parcialmente, um regime que sempre procurou
se apresentar como defensor de uma nao ameaada por projetos
escusos inspirados ou insuflados do exterior.
Seria, no entanto, um inequvoco despropsito imaginar ou
sugerir que o pas esteve ou est na iminnica de ser governado por
ultranacionalistas animados pelo uso da fora para reprimir ideias
ou comportamentos que desaprovam, ou seja, um tipo de aviso de
incndio, como o denominou Michel Lwy (2005) ao comentar as
Teses sobre o conceito de Histria! formuladas por Walter Benjamin em 1940. Existe, sem sombra de dvida, uma grande distncia
entre a iminncia de que o atual estado de exceo assuma suas feies mais endurecidas e excludentes de tudo o que for considerado
como nocivo para a sociedade brasileira e uma contemporaneidade
na qual a desconfiana e a indisposio para com o outro permanecem em certa medida incubadas, aflorando aqui e ali em circunstncias de descontrole, porventura espreita de uma ocasio propcia
para revelar todo o seu vigor.
No sentido inverso, e para no cometer injustias, cabe dizer que,
nesse mesmo meio, no difcil perceber a seduo e mesmo a aceitao do outro, estimuladas por um postulado amplamente aceito de
acordo com o qual a formao social brasileira foi marcada, desde o
seu comeo, pela presena de muitos povos e culturas que se misturaram em propores variadas e de maneira nada pacfica ou harmnica. E, no correr do tempo, tais presenas e misturas no pararam de
se acentuar por conta da imigrao europeia das ltimas dcadas do
sculo XIX e das primeiras do sculo XX; da expanso da fronteira
agrcola e das migraes internas em busca de melhores condies 143

de vida e de trabalho durante todo o ltimo sculo; da importncia


cada vez maior dos meios de comunicao de massa na difuso de
novos hbitos e de novas alternativas de lazer, com destaque para o
turismo; da maior integrao com outros pases da Amrica do Sul,
em especial Argentina, Bolvia, Paraguai e Uruguai; etc.
Na dimenso que ento se abre, o outro dispe de singularidades
que se descortinam como encantos secretos, despertando curiosidade e fascnio, instituindo porosidades e, por essa via, facultando
permutas inslitas. Nesses momentos, esse outro usufrui em toda
plenitude outra caracterstica encontrada em escala aprecivel na
sociedade brasileira, que certa resistncia em admitir o conflito
como parte integrante do convvio humano e, portanto, conformador das relaes sociais. Aqui, o conflito divisado muitas vezes
como negativo em si mesmo, como denunciador de alguma incapacidade ou insuficincia, devendo ser por esse motivo recalcado e
mantido em sigilo, o que, nessas condies, favorece a presena do
estrangeiro sem maiores sobressaltos.
Todavia, como nada perfeito e imune a tenses e conflitos
internos, os encantos secretos tambm so entrevistos pelo reverso
de toda atrao, ou seja, pela desconfiana e pela repugnncia diante
do desconhecido, do inabitual, que agora se converte no anmalo, no
anormal. A essa altura, o conflito no mais desestimado, ainda que
aparea camuflado no anonimato de uma broma maliciosa reproduzida distraidamente, na espontaneidade calculada de uma maledicncia ou de um improprio, no mpeto trivial de uma bravata
pronunciada com emoo intensa ou na candura de uma lembrana
conscientemente seletiva. A, no mais que de repente, como se fosse
um desatino, a fictcia deformidade se revela e revela o outro como
estrangeiro potencialmente temerrio.
Por seu carter episdico e por no formar um conjunto organizado de ideias ou um programa poltico-partidrio encarado com
legitimidade, pode parecer estril e excntrico ocupar-se com esse
144 tema. Afinal, como j afirmado anteriormente, no horizonte mais

imediato, no possvel vislumbrar o risco de um enrijecimento do


atual estado de exceo, por exemplo mediante a organizao de
movimentos ultranacionalistas e xenfobos com significativo respaldo entre a populao do pas. A desateno nas manifestaes de
intolerncia com o outro, porm, representaria no apenas um desdm em face dos perigos futuros, na realidade, isso consistiria, principalmenmte, em aceitar com ingenuidade a mera tolerncia para
com o outro e subestimar os sistemticos e sintomticos obstculos
atuais para um efetivo convvio democrtico com o diferente.
Identificar com preciso as expresses de inconformidade com
o outro na atualidade e na trajetria histrica recente do Brasil nem
sempre algo muito simples, entre outras coisas, pelo estatuto de no
aceitao do preconceito e da discriminao no imaginrio social.
Alm disso, desenhar um mapa da intolerncia com o outro no nosso
pas uma tarefa improvvel, tendo em vista a disseminao desse
tipo de sentimento por todo o territrio, alm da esterilidade de toda
mensurao que se pretendesse efetuar. Poder-se-ia, quando muito,
assinalar que negros e mulheres padecem generalizadamente de preconceitos indicadores de sua inferioridade nos padres dominantes
de avaliao profissional ou pessoal, enquanto o culto do machismo
e das prerrogativas masculinas bem como a homofobia contam com
uma anuncia indisfarada em certas expresses culturais do Nordeste (ALBUQUERQUE JNIOR, 2003) e a presena de carecas,
whitepowers e neonazistas mais frequente em So Paulo e no Sul
(SALEM, 1995).61
61 Apenas a ttulo de ilustrao, vale dizer que apelidos e formas de tratamento coloquial muitas vezes tornam o racismo evidente e, ao mesmo tempo, flexvel e impreciso, como se pode
notar na denominao de alguns atletas como Grafite, Jnior Nego e Rubens Feijo. Por
seu turno, os homossexuais so alvo preferencial de quase todos os humoristas brasileiros
que, por meio de piadas de um gosto duvidoso, procuram distrair suas plateias e lev-las
s gargalhadas. Finalmente, de outra parte, os nordestinos, que desde a dcada de 1950 se
dirigem a So Paulo em busca de trabalho e condies melhores de vida, enfrentam sentimentos indisfaradamente desfavorveis: ali nasceu a designao de gelo baiano para os
pr-moldados utilizados pelas autoridades de trnsito para organizar o trfego de veculos,
enquanto vem circulando pela internet a informao de que um aluno do terceiro ano do
ensino mdio de um colgio particular na capital paulista, ao ser instado numa prova para

145

Um dos locais privilegiados para perceber a inconformidade


com o outro a cidade contempornea, seja porque de sua prpria
natureza abrigar um elevado contingente de indivduos oriundos de
procedncias as mais diversas, seja pela resistncia ao cosmopolitismo oposta por alguns de seus moradores em razo do temor da
perda de identidade. Nesse sentido, as cidades apresentam mesmo
contradies insuperveis: nelas no possvel pretender uma completa homogeneidade e nelas, igualmente, a variedade se converte,
em certas situaes, num embarao, favorecendo a criao e a destruio ininterrupta de fronteiras que vincam seus territrios em
todas as direes (JOHNSON; MICHAELSEN, 2003). E isso ainda
mais perceptvel quando elas passam por um surto de transformaes urbanas rpidas e intensas, envolvendo o crescimento demogrfico inclusive pela incorporao de estranhos, a dinamizao das
atividades econmicas que abriga e a complexificao das relaes
socioculturais que d ensejo, impondo a mercantilizao de praticamente todos os aspectos da vida social e erigindo o individualismo
enquanto fator de dissoluo dos antigos mecanismos de controle
(SIMMEL, 2005).
Resultado bem tangvel desses processos de mudana, a produo de verses acerca de suas trajetrias e dos contornos que acabaram por adquirir traduz as diferentes sensibilidades e sociabilidades
existentes no contexto citadino, que ora incentivam a convivncia
com o outro, considerado como indispensvel para que as mudanas se efetuem e se consolidem, ora sancionam indisposies capazes
de gerar suspeitas, tenses e conflitos de difcil superao para com
esse mesmo outro. Apreender essas verses , ento, um exerccio de
interpretao dos significados emprestados s transformaes urbanas por parte daqueles que as experimentam de perto, com ou sem

146

dissertar sobre o Vale do Paraba (regio em que primeiro se expandiu em larga escala a
plantao de caf no sculo XIX e que hoje abriga um importante polo industrial), associou-o a benefcios sociais como o vale-transporte e o vale-refeio e concordou com sua concesso porque os parabas (como muitas vezes so designados genericamente todos os
nordestinos) ganham baixos salrios, gastando quase tudo com alimentao.

surpresa, prazer, ou com horror, e, nesse particular, a oralidade pode


contribuir em muito fornecendo de maneira mais efetiva as impresses que aqueles processos imprimiram nos panoramas, nas mentalidades, nos modos de vida e nas lembranas das pessoas comuns
(PORTELLI, 1996).
Indcios disso podem ser deduzidos das trasnformaes urbanas
que se fizeram sentir no Brasil ao longo da segunda metade do sculo
XX, perodo em que a populao das cidades sobrepujou a do meio
rural e, tambm, em que movimentos migratrios repartiram irregularmente pessoas, hbitos e representaes do mundo por todo
o pas (ANDRADE; SERRA, 2001), acompanhados de perto pelos
meios de comunicao de massa que potencializaram em muito o
conjunto de suas implicaes. Em consequncia, contatos e confrontos sucioculturais fizeram-se sentir em quase todos os lugares,
modificando em profundidade as relaes e as percepes do tecido
social em que estavam inseridas, aproximando o outro e sua seduo
incmoda.
Como exemplo e estudo de caso, ser tomada Florianpolis, capital do estado de Santa Catarina, Sul do Brasil.62 At a dcada de 1970,
ela tinha uma populao no muito numerosa, ainda que possusse
um nmero expressivo de funcionrios pblicos, e no mostrava
grande dinamismo em termos econmicos e culturais. Por isso foi
descrita, ou apresentada em rememoraes posteriores, em crnicas e
artigos jornalsticos, em opsculos de divulgao da cultura local, em
entrevistas com seus habitantes mais proeminentes (letrados, lideranas polticas, etc.), como pequena, pacata e mesmo provinciana,
62 Algumas das manifestaes de intolerncia mais recentes em Santa Catarina tiveram repercusso nacional, como a presena de dois estudantes blumenauenses declaradamente nazistas (um deles tinha uma sustica tatuada no corpo, que era exibida a todo instante com
orgulho) participando do VIII Encontro Regional de Estudantes de Histria (VIII EREH
Sul), realizado em abril de 2006, em Joinville, o que provocou debates em plenria durante
os quais vrios universitrios defenderam que eles deveriam ter o direito liberdade de
expresso, posicionamento esse que ao fim acabou derrotado, ou como o movimento fora
haole Floripa, que motivou uma investigao da Polcia Federal em 2007 por incitar a averso aos estrangeiros, em Florianpolis, mediante pichaes, adesivos plsticos em carros ou
mesmo agresses fsicas.

147

onde todos se conheciam e de algum modo se ajudavam, aspectos


esses que, conforme certas verses, teriam se perdido irremediavelmente no decorrer das ltimas dcadas do sculo passado, graas, em
especial, chegada de um grande nmero de estrangeiros.
O ncleo urbano do municpio dividia-se entre sua poro insular, em que ficava sediado o centro da cidade, as principais reparties pblicas, o comrcio mais vultoso e as residncias das famlias
de maior relevncia social, e sua poro continental, em redor da
qual existiam vrias pequenas localidades relativamente distantes
nas quais preponderavam as atividades de subsistncia pautadas na
agricultura e na pesca. E como os acessos eram precrios, e os meios
de transporte disponveis muito raros e caros para quase toda a populao, podia-se dizer que a vida transcorria num ritmo pouco frentico se comparado a outras capitais brasileiras. Todavia, a imagem de
uma cidade pequena, pacata e mesmo provinciana, onde todos
se conheciam e de algum modo se ajudavam, e que desapareceu em
grande parte por obra dos estrangeiros, no mnimo controversa,
correspondendo mais propriamente a uma operao de ilusionismo
vinculada aos interesses do grupo social que as formula.
De imediato, essas imagens que oscilam do buclico ao paroquial tendem a causar a impresso de que os habitantes da cidade e
do municpio eram culturalmente uniformes e estavam inteiramente
desconectados do que acontecia fora dos seus estreitos limites. Em
outras palavras, elas desconsideram que os moradores, tanto os do
ncleo urbano quanto os das localidades do interior do municpio,
tinham diferenas culturais em nada desprezveis e mantinham uma
srie de contatos com outros locais, como o atestam as viagens de trabalho, negcio, lazer ou estudo das parcelas mais endinheiradas da
populao ou as experincias dos embarcados indivduos pobres
que todos os anos se empregavam durante meses na pesca em lugares distantes, como Rio Grande do Sul entre as dcadas de 1940 e
1970 (RIAL, GODIO, 2006), sendo, pois, afetados com intensidade
148 pelo que acontecia no restante do pas, como o comprovam o envol-

vimento nas disputas poltico-partidrias e eleitorais que agitavam o


cotidiano e a imaginao da sociedade brasileira como um todo ou
ainda as influncias difusas proporcionadas pelo rdio, uma vez que
as emissoras tambm reproduziam programas do Rio de Janeiro e de
outras cidades maiores.63
Relacionadas com isso, duas sries de questes ganham relevncia. Primeiramente, as imagens de uma cidade pequena e pacata,
como que apartada do mundo, elidem as divises sociais que nela
tinham livre curso e que sustentavam redes de dependncia ligando
assimetricamente pobres e ricos a fim de garantir empregos pblicos, vagas na rede escolar ou bens os mais variados, como remdios,
alimentos e materiais de construo, em troca de votos nas eleies
ou outros tipos semelhantes de apoio. Mais ainda, tal silncio diante
das divises sociais escamoteia a ostensiva discriminao perpetrada contra a populao negra da cidade que, assim, permanece em
grande medida invisibilizada, afora no que se refere a momentos ou
contextos convenientes, como a exaltao do carnaval enquanto um
relevante atrativo turstico ou a referncia a antigos cabos eleitorais
que atuavam em determinadas localidades. Isto , existia um outro
ou, caso se queira, existiam outros no espao da cidade, nela nascidos ou nela ambientados de longa data, que ficam ocultos graas a
um refinado exerccio de prestidigitao.
63 Cabe lembrar que, entre a segunda metade da dcada de 1940 e a segunda metade da
dcada de 1970, o Brasil vivenciou uma srie de situaes econmicas e polticas, como
o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) durante o governo do Presidente Eurico
Gaspar Dutra (1946-1951); o suicdio do Presidente Getlio Vargas, os golpes e contragolpes para assegurar a realizao das eleies e a posse do Presidente Juscelino Kubitschek
(1954-1955, quando o ento senador catarinense Nereu de Oliveira Ramos, ex-interventor
no governo de Santa Catarina durante todo o Estado Novo e, depois, vice-presidente de
Dutra, assumiu a Presidncia da Repblica); o governo desenvolvimentista do Presidente
Kubitschek, com a construo de Braslia e a implantao da indstria automobilstica; a
renncia do Presidente Jnio da Silva Quadros e a crise poltica que culminou com o golpe
de Estado, o qual afastou o Presidente Joo Goulart e inaugurou uma ditadura militar no
pas (1964); o rpido crescimento econmico denominado milagre brasileiro (1968-1973,
sendo que seus efeitos continuaram a se fazer sentir at 1979); etc. E isso sem falar nas significativas transformaes culturais ocorridas ao longo de todo esse perodo, que deixaram
marcas indelveis em toda a sociedade brasileira.

149

A existncia desse outro, morador dos bairros pobres, das favelas


ou do interior do municpio, e quase sempre esquecido pelos habitantes do ncleo urbano, assim relatada em depoimento por Alton Laureano Teixeira, que nasceu e vive at hoje na localidade da
Cachoeira do Bom Jesus, norte da Ilha de Santa Catarina:
Percebamos que eram mundos diferentes, pois existia
muito desprezo, descaso com a periferia. A distncia entre
a periferia da Ilha e a cidade era incomensurvel, fsica e
culturalmente... As pessoas adoeciam e morriam aqui
crianas, jovens, velhos e ficavam aqui. Morriam porque
no tinha assistncia mdica. No tinha como ir pra cidade.
Era uma odisseia ir pra cidade. Ningum tinha automvel.
No tinha txi. No tinha telefone. No tinha posto mdico
[...] as pessoas adoeciam e iam a p de um bairro a outro
buscar uma dosa... Era uma distncia enorme. As pessoas
no tinham como ser socorridas. L na cidade era para uma
elite que no tinha nenhuma preocupao, nada. Isso aqui
no contava para a vida da cidade.64

Na poca a que ele se refere, dcadas de 1950 a 1970, a Cachoeira do Bom Jesus no era um bairro da cidade como nos dias de
hoje, e sim campos de pasto e terra para plantar, habitados por uma
populao rarefeita e bastante pobre, muito diferente das camadas
abastadas que moravam no ncleo urbano. Essa situao, ele prossegue, tinha como base um determinismo perfeito, que pobre pobre
porque Deus quer, no havendo por isso nenhuma discusso ou reivindicao e nem como aspirar s coisas que existiam na cidade. A
cidade, Florianpolis, era ento um mundo distante, dando a sensao de que sua elite pouco se importava com aquela populao
pobre, limitando-se, ainda segundo Alton Laureano Teixeira, a usar
politicamente, eleitoralmente a gente, at mesmo com um pouco de
desprezo, porque o contingente era to insignificante que no tinha
peso.
150

64 Entrevista com Alton Laureano Teixeira, 63 anos, em Florianpolis, em 2005, por Janete
Pasini.

Circunstncias semelhantes eram vivenciadas pela populao


pobre do ncleo urbano, em especial pela populao negra que sentia em todo momento a fora da discriminao e do preconceito,
havendo como atenuante o que porventura viesse a ser obtido nas
teias das relaes de dependncia. Confrontar isso no era nada fcil
e atraa a indignao das autoridades e das lideranas mais tradicionais da cidade, que reagiam ofendidas diante de qualquer contestao ordem social vigente. Exemplo disso abordado por Mrcio de
Souza, nascido e criado no ncleo urbano de Florianpolis, professor licenciado de Qumica da rede pblica de ensino fundamental e
mdio, militante antirracista e vereador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em seu terceiro mandato, ao recordar as repercusses da
pioneira comemorao do Dia da Conscincia Negra (20 de novembro), nos idos de 1980:
No incio da dcada de 1980, ns fizemos ainda em plena
ditadura militar o primeiro ato contra o racismo e as pssimas condies de vida da populao negra,65 promovido
pelo grupo Antonieta de Barros, presidido pelo professor
Oswaldo Silveira... O ato foi vigiado pelo sistema de segurana e informao da poca e acompanhado por vrias
pessoas (todos os partidos de esquerda estavam representados)... Foi o primeiro desse tipo em Santa Catarina.
[...] Ns tnhamos planejado a presena da bateria da Escola de
Samba Protegidos da Princesa, mas ela foi impedida de chegar
em razo da polcia ter fechado a descida do Morro do Mocot.
Na madrugada alguns dos nossos foram presos quando
faziam a colagem de cartazes convocando para o evento...
Depois do ato, ns tivemos uma srie de editoriais nos jornais chamando-nos de divisionistas, que ns queramos
implementar aqui o preconceito s avessas, [...] que ns
ramos pessoas que estavam chegando de outros locais do
Brasil para semear a discrdia na pacata Florianpolis, essa
cidade da igualdade, que isso nunca tinha acontecido na
65 A referncia discriminao e ao preconceito inclusive o espao de brancos e negros era
dividido, durante os bailes nos sales dos clubes, com uma corda, at pelo menos a dcada
de 1960 uma constante nos depoimentos da populao negra de Florianpolis.

151

cidade e vem essa gente de fora semear a discrdia, a divergncia e o dio racial. De verdade, ns fomos atacados por
um bom tempo por esse tipo de comportamento, que cumpria um papel poltico bastante identificado com as foras
que ofereciam sustentao para a ditadura militar.66

A tentativa, por parte das autoridades vinculadas ao regime


militar, de preservar o territrio da cidade das perturbaes trazidas
pelos movimentos sociais, como o que buscava repudiar a discriminao e o preconceito que atingiam a populao negra, bem ntida
nesse depoimento. Os manifestantes foram mantidos sob vigilncia e alguns presos na madrugada, e depois do ato de protesto as
acusaes proliferaram atribuindo-lhes o intento de introduzir em
Florianpolis uma diviso racial ali desconhecida, impulsionando
um preconceito s avessas. No entanto, h igualmente um aspecto
digno de ateno, que a referncia gente de fora vinda para
semear a discrdia, a divergncia e o dio racial.
Essa meno no era nada casual e teve como pretexto o comparecimento, na manifestao, de um grupo de jornalistas, alguns
deles oriundos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, que, depois
de atrados para a cidade pelo projeto de renovao do principal
jornal catarinense de ento, O Estado, estavam naquele momento,
envolvidos com a mais bem-sucedida experincia de imprensa
alternativa em Santa Catarina, o tabloide Afinal, que mesclava uma
crtica poltica contundente ditadura militar e aos seus representantes no Estado (notadamente, o ento governador Jorge Konder
Bornhausen) com um sensacionalismo jocoso.67 Mas, em verdade,
reportar gente de fora espalhando discrdia j possua um alcance
bem maior para a Florianpolis da poca, porque as obras de infra-

152

66 Entrevista com Mrcio Jos Pereira, 50 anos, em Florianpolis, em 2009, por Luiz Felipe
Falco e Paulo R. Santhias.
67 A imprensa alternativa correspondeu produo de um jornalismo desvinculado da chamada grande imprensa durante o regime militar, entre outros motivos pela estreita vinculao dessa grande imprensa com o regime ento vigente, e teve grande expanso entre o final
da dcada de 1970 e meados da dcada de 1980, na esteira do processo de desagregao da
ditadura (CHINEM, 2004).

estrutura e de construo civil haviam levado, entre outras coisas,


retificao do traado, ao asfaltamento da rodovia BR 101 (que
acompanha boa parte do litoral do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil),
concludo em 1971, facilitando o acesso cidade e abrindo caminho para levas de turistas e de trabalhadores com diferentes nveis
de qualificao, e instalao da Eletrosul Centrais Eltricas S. A.,
empresa estatal de gerao e distribuio de energia, em 1976, para
a qual vieram transferidos muitos funcionrios naturais tambm do
Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul.
Ou seja, um outro, agora um estrangeiro portador de outras referncias culturais, j ostentava visibilidade suficiente para que lhe fossem adicionados defeitos e qualidades que impactavam o cotidiano
da cidade, facultando assim uma segunda srie de questes depreendidas da operao de ilusionismo aludida anteriormente, que a
mistificao do papel desempenhado pelos forasteiros no processo
de transformao urbana em Florianpolis, denunciados por atentar contra o ordenamento habitual da cidade ou por aproveitar a
ingenuidade dos pescadores nativos para adquirir terras beira-mar
por um preo aviltante. Tal presuno despreza ou menospreza as
muitas indicaes de que foram lderes polticos e empresrios locais
os responsveis por impulsionar vrias daquelas mudanas num
momento inicial e foram tambm os mais beneficiados por conta
de lucrativos investimentos, por exemplo, em incorporao imobiliria, construo civil ou atividades de lazer e de turismo. Isto , as
modificaes urbanas foram preparadas (para no dizer planejadas)
com antecedncia com o objetivo de auferir ganhos elevados com
a edificao de casas de veraneio e a criao de balnerios para os
habitantes do ncleo urbano, numa regio que no possua atrativos
para projetos industriais de vulto, nem terras agriculturveis de valor
aprecivel por sua fertilidade, extenso ou facilidade de escoamento
da produo, e isso muito antes da chegada, numa escala aprecivel,
de adventcios.
Nesse sentido, Moraes Coutinho Jnior, comerciante nascido, 153

criado e atualmente morando no bairro de Jurer, norte da Ilha,


recorda que foi um conhecido poltico e empresrio local, Aderbal Ramos da Silva, quem iniciou os negcios imobilirios naquela
regio litornea ao adquirir as terras de uma viva de quem se constitura advogado, em 1935, e, dcadas depois, inaugurar, em 1957,
um loteamento desenhado por Oscar Niemeyer. Mais adiante, a rea
foi comprada por um grupo econmico sul-rio-grandense, Habitasul, que ali implantou um dos empreendimentos mais luxuosos e
exclusivos da cidade, Jurer Internacional.
A Imobiliria Jurer era do Aderbal Ramos, o Deba, era
assim que ele era conhecido. O Deba, pro pessoal da poca,
ele botava muito medo. O pessoal tinha medo dele, ele era
o cacique da regio, ele era polcia, juiz, era tudo aqui, a lei
era ele. Na verdade eu acho que ele foi, no que eu tenha
sofrido, porque eu era criana na poca, mas pelo que eu
vejo falar, das pessoas mais corajosas, das que no tinham o
rabo preso com ele [...].
Realmente, quando chegou a Firma, como era chamada a
imobiliria, muita gente desse bairro, at pode-se dizer que
foi um batalho de gente, foi trabalhar para ela. Antes disso
no se tinha emprego, no se tinha salrio. Todos trabalhavam na plantao, na colheita do caf e na pesca. Cada um
tinha a sua terrinha. Esses morros eram todos plantados de
cebola, de fio a pavio... Nos engenhos de farinha tinha o pessoal que ia l raspar mandioca, sovar, e em troca o pessoal
ganhava o seu quinhozinho pra trazer pra casa. Mas no
era emprego. Emprego foi quando a Firma chegou, a comeou a girar mais dinheiro. Boa parte das pessoas aqui do
bairro comearam a abrir vala, na p, nesses campos, para
drenar o terreno.68

O domnio do litoral por atividades que nada tinham de rurais


ou extrativistas ocorreu, portanto, muito antes da chegada e fixao,
em larga escala, de estrangeiros oriundos do interior do estado de
154

68 Entrevista com Moraes Coutinho Jnior, 43 anos, em Florianpolis, em 2007, por J. L.


Santos.

Santa Catarina, de outros estados do Brasil ou mesmo do exterior,


acarretando uma significativa metamorfose na cidade, que aproximou as localidades e municpios do seu entorno por meio de estradas, de avenidas e de uma nova ponte ligando suas pores insular
e continental. No cerne desse processo, encontra-se a transformao
em mercadoria com equivalncia em moeda circulante de componentes do mundo natural e da vida social, conferindo valor de troca
tentador para terras que despertavam at ento pouca ambio porque reservadas a um labor agrcola rduo ou porque excediam a
capacidade de serem cultivadas.
Nessa mesma direo, Vera Lcia Custdio, professora de educao infantil na rede pblica de ensino municipal, que no se recorda
de ter enfrentado maiores problemas com pessoas que vieram residir
na cidade nas ltimas dcadas, salientou que o comeo das transformaes no bairro do Campeche, regio litornea do leste da Ilha,
inclusive com um forte impacto ambiental, foi provocado por pessoas da prpria cidade que ali ergueram casas de veraneio:
A primeira mudana aqui veio com o asfalto, que foi at
meio trgico na poca porque as pessoas no estavam acostumadas e muita gente foi atropelada e morreu... A j tinha
um acesso bom e os nativos passaram a vender os terrenos...
Ento, um dia, quando vi a mquina derrubando as dunas,
eu digo: Eu no acredito! Isso, para construir a casa de praia
do Paulo Toniolo, que um dos donos da Pedrita.69 Segundo
contam, seu Aparcio e seu Bertoldo venderam os terrenos
antes das dunas, mas para ver o mar ele simplesmente tirou
tudo e construiu a casa. Foi uma coisa bem triste para mim,
porque as dunas eram lindas...
O pessoal vendeu as terras porque achava que ia ficar rico,
e ficou cada vez mais pobre. No estavam acostumados a
69 A Pedrita a que ela se refere uma empresa que no incio, em 1973, explorava uma pedreira
no muito longe do bairro do Campeche, mas que hoje atua em vrios ramos da construo
civil. Um dos membros da famlia Toniolo, Paulo Toniolo Jr., foi preso pela Polcia Federal em 2007 durante a Operao Moeda Verde, voltada para combater presumidas fraudes
na obteno de licenas ambientais para a edificao de imveis por parte de autoridades
pblicas e de empresrios de Florianpolis.

155

ter dinheiro na mo, ento pensavam que podiam vender


para comprar qualquer coisa, comprar um fusquinha, ento
venderam tudo. Tem gente depressiva at hoje por isso, com
os filhos vivendo um por cima do outro...
Foi questo de ganncia mesmo. Sobre isso, tem at uma
histria interessante do seu Bertoldo: ele vendeu as terras
dele, fez um buraco, botou o dinheiro e plantou um p de
cana em cima. Depois, no sabia em que p de cana tinha
enterrado. Quando achou, o dinheiro caducou, perdeu todo
o valor, j tinha at mudado. Ele ento no aguentou, teve
um piripaque e partiu.70

As evidncias indicam, portanto, que o desejo de obter dinheiro


vivo para as mais diversas finalidades levou muitos agricultores ou
pescadores que habitavam certas regies prximas da orla martima
do municpio a venderem suas terras para empresrios locais ou para
membros das camadas abastadas da populao do ncleo urbano,
em especial durante a rpida expanso da atividade econmica no
perodo conhecido como milagre brasileiro (1968-1973) e nos
anos imediatos que se lhe seguiram. Com isso, casas de praia e balnerios passaram a ocupar a paisagem litornea e a contribuir para que
nela aparecessem novos personagens, como banhistas e surfistas, e
hbitos tipicamente urbanos, sem nenhuma afluncia substantiva de
estrangeiros, o que s comeou a ocorrer nos ltimos anos da dcada
de 1970.71
O apelo imagem do estrangeiro desagregador, pela fora do
poder de compra do dinheiro que trazia, pelos costumes excntricos
que com persistncia introduzia ou pela resistncia que opunha aos
projetos que poderiam trazer progresso para a cidade, foi, todavia,

156

70 Entrevista realizada com Vera Lcia Custdio, 52 anos, em Florianpolis, em 2009, por
Luiz Felipe Falco.
71 No raro, nos depoimentos de pessoas que habitam a regio litornea de Florianpolis
h muito tempo, a meno, tambm, ao uso da violncia para expulsar a populao que ali
residia e que, muitas vezes, no possua o ttulo de propriedade das terras que ocupava. Por
outro lado, em partes dessa mesma regio litornea, as primeiras tenses e conflitos opondo
nativos e estrangeiros envolveram pescadores e surfistas, ainda que muitas vezes estes ltimos fossem ldimos filhos de famlias do ncleo urbano do municpio.

utilizado desde ento vrias vezes em campanhas publicitrias e eleitorais, ou mesmo em crnicas, charges e matrias jornalsticas de
diversos teores. Nelas, aludiam-se aos elementos indesejveis que,
desamando a cidade, no aceitavam de bom grado empreendimentos como a abertura de marinas ou a construo de arranha-cus
para abrigar hotis de luxo nas praias e reduziam, assim, as oportunidades de inverso e a oferta de empregos, ou ainda aos insolentes que
afrontavam a sociedade local e aos turistas pobres que no tinham
muitos recursos para gastar nas temporadas de vero (como remdio
para o assdio destes ltimos, por exemplo, era sugerido sem rodeios
um controle rgido dos acessos cidade).
Com isso, criou-se por vezes a impresso de que a cidade estava
dividida entre nativos e forasteiros, impresso esta que, com certeza,
no era ou exclusiva de Florianpolis, nem foi erigida por um mero
contrassenso (ELIAS; SCOTSON, 2003; FANTIN, 2000). Afinal, a
prpria alterao da composio demogrfica da cidade, do municpio e da prpria regio metropolitana parecia e parece justificar
uma percepo desse matiz, como se pode depreender a partir das
tabelas abaixo:
Tabela 1 Evoluo da populao dos principais municpios da Grande
Florianpolis (1950-2000)

Florianpolis

1950

1960

1970

1980

1990

2000

67.630

97.827

138.337

187.871

255.390

342.315

Palhoa

38.692

16.273*

20.655

38.031

68.430

102.742

Biguau

19.604

14.550*

15.360

21.434

34.063

48.077

So Jos

22.899

26.383*

42.434

87.817

136.293

173.559

Total

148.825

155.233

216.786

335.153

494.176

669.693

Fonte: censos demogrficos do Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatstica *1967

157

Tabela 2 Populao residente em Florianpolis segundo local de


nascimento (1960-2001)
Populao\ Ano

1960

1970

1980

1991

2001

Nascidos no municpio

81.041

107.443

120.724

155.958

196.322

Migrantes

16.786

30.894

67.147

99.432

145.993

Populao total

97.827

138.337

187.871

255.390

342.315

Fonte: censos demogrficos do Instituto Brasileiro


de Geografia e Estatstica
Tabela 3 Percentual da populao residente em Florianpolis
segundo local de nascimento
Populao\ Ano

1960

1970

1980

1991

2001

Nascidos no municpio

82,85

77,67

64,26

61,07

57,36

Migrantes

17,15

22,33

35,74

38,93

42,64

100

100

100

100

100

Populao residente

Fonte: censos demogrficos do Instituto Brasileiro


de Geografia e Estatstica.

Esses dados permitem visualizar com nitidez a acentuada


mudana no padro demogrfico da cidade e da regio em que
ela est inserida, indicando no apenas um rpido incremento da
populao ali residente, mas principalmente a presena crescente de
habitantes que no so originrios de Florianpolis. E, se for considerado que, nesses nmeros absolutos ou nesses percentuais, esto
includos filhos e filhas desses estrangeiros nascidos na cidade ou no
municpio de Florianpolis e que mantm ao menos em parte referncias culturais de seus pais, bem como moradores que, at algumas
dcadas atrs, eram discriminados em sua condio de autnticos
habitantes da cidade ou do municpio, ao passo que, por outro lado,
tais nmeros absolutos e percentuais no incorporam turistas ou
indivduos que se encontram apenas de passagem, ento se torna
158
possvel franquear uma dimenso aproximada do carter cada vez

mais impessoal e multicultural exibido por Florianpolis no correr


das ltimas dcadas.
Mais ainda, se for levado em conta que a cidade, por ser uma
capital, abriga um grande contingente de funcionrios pblicos que,
nesse mesmo intervalo de tempo, passou a ser selecionado quase que
exclusivamente por concursos para os mais distintos cargos, com
diferentes graus de qualificao, atraindo candidatos de diversas procedncias, o impacto das transformaes urbanas torna-se maior.
Aqui no pesa simplesmente a presena do outro, nascido ou no na
cidade, mas a paulatina e progressiva desarticulao das relaes tradicionais de dependncia, que cada vez menos esto em condies
de pleitear, oferecer ou garantir empregos ou benesses com base na
pessoalidade.
Esmiuando a argumentao, a dinamizao das atividades econmicas derivadas da incorporao imobiliria e da construo civil,
da indstria do turismo e do lazer e da ampliao do setor de servios (em que acabou por se destacar tudo aquilo referente informtica) potencializou a vinda para a cidade de um grande contingente
de populao proveniente do interior do estado, de outros estados da
federao ou de outros pases, o que, associada maior exposio,
circulao e interao dos estrangeiros locais (antigos pescadores
ou agricultores e seus descendentes, negros e mestios de pele acastanhada ou trigueira, etc.), dotou Florianpolis de um novo e mais
variado colorido sociocultural e fragilizou as redes de dependncia pessoal, em parte porque muitos forasteiros possuam elevado
capital social e cultural, no necessitando, portanto, recorrer a elas,
em parte porque a mercantilizao de quase todos os elementos do
mundo natural e da vida social tornou obrigatrio lanar mo de
outras modalidades de sujeio.
Como desfecho, vale repetir que os processos aqui examinados
no so exclusivos de Florianpolis, tampouco vertem numa nica
direo. Nos territrios das cidades contemporneas, em realidade,
ocorrem mltiplos deslocamentos que impulsionam afinidades ele- 159

tivas, como as concebeu Goethe (2008), e amlgamas complexos, ao


mesmo tempo em que definem fronteiras estanques para impedir
passagens, apartar pessoas, ideias e costumes, cultivar uma presumida uniformidade legada pelos antepassados ou flertar, consentir
e celebrar prejulgamentos aparentados com a xenofobia ou com o
fundamentalismo. E, no que diz respeito ao domnio de tais fronteiras estanques, as advertncias de Primo Levi referidas no incio,
segundo as quais a convico de que cada estrangeiro um inimigo,
que jaz no fundo de muitos coraes e mentes como uma infeco
latente e se manifesta no mais das vezes em aes ocasionais e no
concatenadas, mantm toda uma atualidade impressionante e ameaadora, merecendo por isso todo o desvelo de suas mais provveis
vtimas.
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160

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SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do esprito (1903). Mana, Rio de
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161

3. Cidade, trabalho e homossexualidades vividas:


aproximaes reflexivas sobre
a alteridade gay via histria oral
Robson Laverdi
Porque se eu for dar importncia para o que as pessoas falam,
eu nem saa de casa. verdade, o que me move a minha conscincia. O que eu penso, o que Deus pensa de mim, pra mim, o que
importa. O que as pessoas, as outras pessoas que eu queria que me
apoiassem e que aceitassem como eu sou realmente, so meu pai e
minha me. O resto no me interessa, o que as pessoas pensam. E a
vida minha, sou eu que vivo, sou eu quem fao, eu sou uma pessoa
independente, sou uma pessoa de maior. Ento, acho que as pessoas
tinham que abrir um pouco mais a mente para poderem aceitar as
diferenas. Ns estamos vivendo no sculo XXI, as pessoas tinham
que se colocar na realidade atual, no ?72
Na transcrio acima, narrao e conscincia se constituem juntas, dando forma a uma fora subjetiva toda particular ao relato concedido por um jovem trabalhador do setor agroindustrial, de 23 anos,
de assumida orientao gay,73 que vive em Assis Chateaubriand, no
Oeste do Paran. Neste texto, vamos cham-lo Mrcio. Embora ele
no tenha expressado nenhuma preocupao ou restrio quanto
utilizao do nome verdadeiro, preferimos o uso de um nome fict-

162

72 Entrevista realizada com Mrcio (nome fictcio), 23 anos, em Assis Chateaubriand, em


maro de 2007, por Robson Laverdi.
73 Utilizamos o termo estrangeiro gay para nominar a experincia homossexual neste texto,
pois esse o modo corrente pelo qual os entrevistados se reconhecem a si prprios e aos
outros.

cio como forma de proteo a sua integridade fsica e social.

Desde que chegou a essa pequena cidade, pois proveniente


do meio rural do distrito de Paulistnia, municpio de Alto
Piquiri, trabalha no abatedouro avcola de uma grande cooperativa que tem se lanado com forte pulso de investimentos
no chamado mundo do agronegcio, cuja filial fica localizada
em cidade vizinha (omitida pelo autor) a Assis Chateaubriand.
Exceto Alto Piquiri, que est localizada na poro Noroeste do
Paran, Assis Chateaubriand e a cidade vizinha, onde trabalha, ficam localizadas na poro Oeste do estado. Para alm do
envolvimento emocional a que o relato convida, que forte,
de fato, ficamos estimulados a pensar, naquele mesmo movimento metodolgico advertido pelo historiador Pablo Alejandro Pozzi (2009, p. 92) de que o:
Testemunho (alm de sua beleza ou qualidade emocional)
faz sentido para os historiadores muito alm de sua construo como discurso, como narrao ou imaginrio. Seu
sentido dado (ou no) por aquele que fornece uma janela
especial para melhorar nossa compreenso de uma dada
sociedade. (traduo nossa).

A entrevista concedida pelo jovem Mrcio foi feita na pacata


Praa das Amricas, localizada nas cercanias de vrios bairros de
periferia da pequena cidade de Assis Chateaubriand, que atualmente
conta com populao estimada em pouco mais de 30 mil habitantes. O contato inicial foi feito pela indicao de outro jovem, tambm gay, que vive na cidade de Toledo e que fora entrevistado em
momento muito anterior, como parte de pesquisa mais ampla, sob
a responsabilidade deste autor, com outros jovens de orientao gay,
em alguns casos assumida publicamente, na regio Oeste do Paran.
Pouco mais de dois anos transcorridos desde a produo da
primeira entrevista feita com Mrcio, em 2007, outra conversa foi
gravada em 2009. A proposta foi produzir entrevistas em momen- 163
tos distintos. Tal proposio decorreu de questes trazidas pela fora

subjetiva de conscincia social histrica presentes no relato obtido


na primeira ocasio. Cabe dizer que fomos tocados pelo reconhecimento da extraordinria riqueza simblica que constitui a narrativa
desse jovem em relao a outras dimenses da experincia social de
que participa e na qual se constitui.
Entre essas dimenses, situam-se profundas transformaes nas
relaes vividas no trabalho e na cidade, por sua vez situadas num
cho mais amplo de tenses e expectativas de pertencimento que elas
produzem e so produzidas nesse meio. Em razo disso, toma vulto
a complexidade assumida por todo o campo de produo do relato,
que adquire importncia particular para reflexo histrica, tal como
adverte Pablo Pozzi (2009, p. 90-91):
Porque no se trata apenas de fazer entrevistas e contar
histrias, mas expressar questes complexas a partir das
experincias reais das pessoas. Trata-se de lidar com memrias vivas para que futuras geraes possam construir o seu
futuro. A boa histria oral uma forma que, a partir de
experincias individuais, um ser humano comum pode se
sentir refletido, aprender com essas experincias e repensar
a sua prpria realidade. (traduo nossa).

Em quase toda a extenso do Oeste do Paran, como em boa


parte do Brasil, assiste-se, por um lado, a um processo desenfreado e avassalador de emprego de capitais e outras energias sociais
e polticas na esfera produtiva da agroindustrializao. Os frigorficos de abate de aves, implantados na ltima dcada na regio, so
uma demonstrao concreta desse processo que engendra novas
dinmicas a serem vividas. Por outro lado, uma dilacerada e atuante
projeo de modos de vida urbanos so pressupostos para a materializao das mais diversas expectativas, que para esse campo de
experincias so concentradas. Na prtica, isso tem se materializado
em deslocamentos de pessoas do campo para cidade, assim como
nota-se um retorno de trabalhadores migrantes, de diferentes gera164
es, que haviam se deslocado para o Paraguai nas ltimas quatro

dcadas. Em relao a esse aspecto, na ltima dcada, quantidade


expressiva de homens e mulheres, trabalhadores pobres do campo,
especialmente jovens, tem regressado ao pas para se empregar nos
frigorficos recm-instalados em cidades de fronteira na extenso
entre Foz do Iguau e Guara.

A despeito do reconhecimento pblico de que essa fora


poltica de progresso econmica do agronegcio recebe olhares de investidores atentos, preciso dizer que essas transformaes no deixam de ser marcadas por conflitos e tenses vividos
como experincia social. Em relao a isso, percebe-se tambm
como tal fato se constitui narrado num mbito intersticial entre
a posio assumida no interior de uma classe trabalhadora
urbana em constituio e outra cuja constituio de identidades
gays encontra lastros mais amplos no Brasil das ltimas dcadas.
De um conjunto de 12 jovens de orientao gay entrevistados
nas cidades de Assis Chateaubriand, Toledo e Marechal Cndido Rondon, quatro deles haviam trabalhado ou trabalhavam
no setor industrial avcola. Sem contar o caso de outros tantos
que manifestaram expectativas de ingresso nesse setor.
Nesse mbito de experimentaes da ordem da realidade, h
muito mais a dizer do que simplesmente constatar o crescimento da
atividade produtiva agroindustrial para os denominados vocacionados mdios e grandes produtores rurais e celebrar festivamente
a abertura de vagas de trabalho no meio urbano. Interessa discutir
o sentido e a abrangncia do envolvimento de jovens trabalhadores
gays, que esto tambm presentes no setor e que se veem imbricados
nessas novas relaes de trabalho e viveres urbanos.
Tal preocupao se constitui como articulao de reflexo histrica, na medida em que se busca no apenas perceber como eles
ingressam ou vivem cotidianamente no interior e para alm desse
setor produtivo. Sobretudo, como lidam com o preconceito e a
homofobia, que so constituintes dessas e nessas relaes de traba165
lho e vida urbana.

Interessa discutir dimenses outras dessa experincia, interpretando-se o relato de Mrcio em mo dupla: apreender a historicidade
de como esses jovens so incorporados e assimilados como operrios
nessas dinmicas de produo. Isso porque tambm a esses jovens
no limitado o acesso ou a permanncia nas plantas industriais,
ainda que notria a compreenso corrente de ampliada discriminao aos homossexuais que vivem no campo ou mesmo nas pequenas
cidades. Desse modo, buscamos apreender como a alteridade gay se
processualiza como sentidos de pertena para gays e hteros nessas
novas relaes de trabalho e vida urbana no mbito dessas transformaes em curso.
Diante do desafio de interpretao dos relatos, temos em mente
que lidamos com fontes decorrentes de prticas humanas vivas, produzidas em mbitos de experincia marcados por estruturas de sentimentos, como assim nomeia to peculiarmente Raymond Williams
(1988). s entrevistas gravadas somam-se conversas informais com
trabalhadores e outros moradores da cidade, alm de outras leituras etnogrficas que trazem diferentes possibilidades interpretativas,
situadas para alm do plano da constatao das transformaes produtivas que, por vezes, so repetidamente comemoradas como aquelas substancialmente capazes de dirimir contradies que se pem
nesses universos relacionais vividos entre o campo e a cidade. Isso
porque, de maneira toda especial, como ainda expressa Pozzi (2009,
p. 91-92):

166

No caso da histria oral, suas pautas diferentes tm a ver,


sobretudo, com o fato de que pela oralidade se desencadeia
a memria para construir uma fonte que nos permita, de
uma forma mais completa, a compreenso de todo processo
social. [...] Se a histria o ser humano em sociedade no
tempo, ento a histria oral resulta numa fonte para o historiador apreender tanto a subjetividade de uma poca como
para obter informaes que de outra maneira no haviam
sido registradas. (traduo nossa).

Ao se buscar, assim, pensar transformaes constitudas e interpretadas nos rastros do tempo, os relatos de histria oral do a ver
planos mltiplos e imbricados de experincia social histrica, tanto
de diferenas como de desigualdades que, por sua vez, so vividas
e contadas pelos entrevistados. Importa considerar, em plano mais
amplo, algumas dimenses histricas do conflito imbricadas nessas
transformaes, que podem ser lidas tambm em documentos de
expresso pblica produzidos sobre ou para a pequena Assis Chateaubriand. Uma imagem pblica, ou que se pretenda como tal,
potencialmente emblemtica nesse sentido. Trata-se da aluso
cidade redigida por pessoa ou instituio no identificada, no site
Wikipdia. Muitas vezes questionado pela sua metodologia considerada no fidedigna, o contedo abaixo tornado pblico permite
entrever uma disputa de sentidos muito marcante:
O municpio de Assis Chateaubriand, no dia 9 de maio de
1983, instituiu a frase Assis Chateaubriand Morada Amiga,
atravs da Lei n 594/83. O objetivo identificar o municpio de Assis Chateaubriand e o povo acolhedor que l reside
com sua amizade e cordialidade. A cidade de Assis Chateaubriand conserva ainda a magia de uma cidade pequena de
interior de estado, onde as pessoas ainda se cumprimentam
ao se encontrarem umas com as outras em andares pouco
apressados. So comuns os bons-dias, boa-tarde e boa-noite. (WIKIPDIA, 2009, grifo do autor).

Independentemente da discutvel credibilidade que se possa atribuir ao emprego de informaes veiculadas por sites mantidos com
a participao autnoma de internautas, como o caso do Wikipdia,
uma vez que o seu contedo aberto a contribuies livres de usurios, interessa destacar a importncia atribuda aos valores da fraternidade e da cordialidade preconizados no verbete da cidade. No
seria menos discutvel caso o contedo tivesse sido veiculado pelo
poder pblico e sua suposta oficialidade. Tambm se faz intrigante
o altrusmo harmonizante a partir do qual a Assis Chateaubriand 167

Morada Amiga se faz presente no viver das pessoas a ponto de


necessitar de lei para identific-la como tal institucionalmente. Ademais, a virtualidade trabalha um sentido pblico, com vistas a conter
possveis formas em disputa acerca da apreenso quanto s indesejveis mudanas nos meios e valores que se moldam de maneira negativa na cotidianidade de Assis Chateaubriand.
A despeito da suspeio que se possa atribuir ao sentido de coletividade que aparece implcito no contedo publicado, no se pode
deixar de colocar em destaque o fato de que tal veiculao pela internet no deixa de disputar sentidos de pertena e contiguidade em
cho mais amplo de discursos outros tambm constitudos nesse
cenrio. Para enfocar mais esse aspecto, cabe dizer o quo curioso,
para no dizer perturbador, o emprego da composio discursiva
morada amiga, que se utiliza de duas notaes sociais adjetivadoras
muito poderosas, quais sejam: moradia e amizade.
Ao buscar valorizar a mgica aura de uma cidade pequena de
interior de estado e ao tecer uma ode de reconhecimento aos costumeiros tratamentos pessoais tradicionais que confeririam uma
marca prpria a Assis Chateaubriand, o contedo parece buscar dar
conta do carter fragmentrio trazido pela perigosa impessoalidade que talvez passasse a reger os novos modos de vida locais. Na
prtica, o emprego da identificao morada amiga e a reivindicao da lei em prol dela constituem reclamao institucionalizante de
valores universais para aquele meio citadino, entre os quais a acolhida, a amizade e a cordialidade. Em termos mais simples, seria a
admisso tcita de que tais valores, embora apregoados como inerentes a esse corpo social, no marcariam mais a esfera pblica das
relaes sociais vividas em Assis Chateaubriand. Todavia, ser que
tais valores evidenciados marcaram de fato os termos consensuais
que o documento propugna? Ao reivindicar dada permanncia de
valores e prticas relacionados a esses bons modos, no estaria o
site lidando concretamente com a crise de valores plantada e sentida
168 no presente?

Atribuir ao passado dada harmonia social ausente no presente


maneira convencional, todavia no confessa, de dizer que o presente
no a contm. Parece que se tem a evidenciado um desalinho temporal (e de domnio) fundado em lastro de perenidade dos ideais
industriosos de seus desbravadores. O tempo de outrora, que fora
narrado, aparece cristalizado como desejo consciente de progresso
dos primeiros homens que dominaram (e parecem continuar dominando) esse espao. No mbito reconhecvel do discurso laudatrio
eivado no presente acerca dessas marcas temporais:
Quando tudo era mata virgem onde o sol, com seus raios
luminosos, iluminava essas terras cheias de vida, onde os
pssaros e outros animais viviam harmonicamente conforme a Lei da Natureza, estava a sombra do surgimento de
um pequeno povoado que pertencia ao Municpio de Guara. L pelos idos de 1958, a Colonizadora Norte do Paran
S/A veio a desbravar a regio do Vale do Piquiri, tendo
como Presidente o Senhor Oscar Martinez, que voltou os
olhos para estas terras e entendeu que seria mais um grande
centro industrial, devido fertilidade do solo, pois so as
melhores terras do mundo. (PREFEITURA MUNICIPAL
DE ASSIS CHATEAUBRIAND, 2009).

A lei da natureza assume o panteo peremptrio reificador


da ocupao da regio do Vale do Rio Piquiri, onde est plantada a
municipalidade de Assis Chateaubriand. Se, por um lado, a mesma
lei da natureza abenoava o pequeno povoado que viria a ser
desbravado nos anos 1950, de outro lado, o heri dadivoso profetizava a qualidade de grande centro industrial que estaria fadado a
se constituir. No deixa de ser curioso perceber a articulao poltica
que relaciona, consecutivamente, a fertilidade do solo, que em tese
seria potencialmente importante para agricultura em contraposio
razo primordial vocacionada industrializao.
Um processo de largo espectro nesse mbito encontra-se em
curso no Oeste do Paran. O argumento que defende a industria- 169

lizao o que tem sido plantado com vigor discursivo na nova


economia do agronegcio. De to falado, tal processo foi transformado numa das verdades inquestionveis sobre a nova vocao econmica da regio. O setor cooperativo agropecurio, que no Brasil
tem ganhado uma virtuosa positivao e investimentos nas ltimas
dcadas, em razo da ideia marcada de valores de associativismo
ou cooperativismo, reivindica de muitos modos o passado rural e a
pujana agrcola como fundacionais do ento celebrado mundo do
agronegcio.
Com um pouco de ateno crtica, denota-se que tal processo de
agroindustrializao validado social e politicamente por alto grau
de inevitabilidade, tendo sido engendrado em processo destitudo da
ao e presena concreta de agentes sociais reais. Em outras palavras,
toma-se a agroindustrializao recente como mecanismo autoativado pela emergncia e emprego da alta tecnologia e produtividade
no campo, em grande parte autorizada moral e eticamente pela fora
cooperativista que j tomaria conta da regio desde os anos 1970.
Como ento relacionar to pujante e inevitvel processo de
agroindustrializao recente reivindicao de valores tradicionais
em Assis Chateaubriand, cuja experincia se liga ao jovem Mrcio?
Diramos que em muitas coisas. Em primeiro lugar, cumpre observar que a trajetria desse jovem, de modo diferente, reivindica outra
compreenso, no laudatria, da processualidade histrica que levou
a um patamar to comemorado a agroindustrializao recente em
toda a regio.
Filho de pequenos agricultores, Mrcio foi inicialmente empregado assalariado no campo. Contou assim como foi a sada para a
cidade:

170

Ento, aconteceu assim: meu pai trabalhava na fazenda,


meu padrasto na realidade, minha me, meu padrasto,
ento meus irmos, eu sou irmo deles por parte de me. O
meu padrasto japons. E ele trabalhava na fazenda. E eu
ajudava ele, trabalhava tambm. Meu outro irmo tambm

ajudava a trabalhar na fazenda. E da, o motivo foi que o proprietrio da fazenda no estava tendo lucro com a propriedade, da ele resolveu arrendar a propriedade para plantar
soja, era s gado. Da com isso ele seria obrigado a demitir
os funcionrios, j que no precisava mais. Da o meu pai
tambm foi um dos demitidos. Da a gente ficou sem rumo.
Pois a gente ficou morando dez anos l. Da a gente pegou
e pensou: pra onde a gente vai agora? Da o meu pai tinha
os netos dele aqui em Assis e da ele quis vir pra c. E eu
tambm, de incio eu me interessei em vir pra c porque eu
imaginava que aqui, por ser uma cidade um pouco maior,
eu conseguiria um trabalho de repente mais fcil do que em
Alto Piquiri ou naquela regio l. Da a gente conversou. A
gente chegou a conversar e chegou concluso de que seria
melhor a gente vir pra c. Da a gente veio pra c e estamos
aqui at hoje.74

Cabe notar que a vivncia do meio rural recordada por Mrcio


no foi representada como marco idealizado. contada como espao
social em transformao. At mesmo o grande fazendeiro, teoricamente em melhores condies econmicas, para o qual a famlia de
Mrcio prestava servios assalariados, no sobreviveu nova ordem
que se impunha. Isso levara o patro da poca, proprietrio, a arrendar as terras em outro sistema de produo, todavia de larga escala,
de soja e gado, obrigando, por certo, a demisso do pai.
A argumentao narrativa de Mrcio merece uma vista mais
detida. A dispensa do pai pelo fazendeiro foi contada sem conflitos,
retirando do proprietrio as expensas morais pela demisso. Independentemente do modo como narrou o episdio a partir do qual
indiretamente absolvera pessoalmente o patro, na prtica deixou
marcado o fato de que da a gente ficou sem rumo.
Uma expectativa maior parecia interpor o tom ameno atribudo
dispensa sumria pelo patro, at porque de incio eu me interessei em vir pra c porque eu imaginava que aqui [Assis Chateaubriand], por ser uma cidade um pouco maior, eu conseguiria um 171
74 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.

trabalho de repente mais fcil do que Alto Piquiri ou naquela regio


l. Em outras palavras, a narrativa parece no apenas considerar
como motivo do deslocamento a dispensa do antigo patro, mas
tambm, de outros modos, a expectativa que Assis Chateaubriand
assumia no horizonte de suas escolhas e de sua famlia. Cumpre
sublinhar, no relato, a insegurana que representava uma mudana
para a cidade. A compreenso quanto existncia de pessoas conhecidas pela famlia na cidade, no caso, netos do seu padrasto, a quem
respeitosamente chama de pai, contribuiu muito no processo, tanto
que da a gente conversou. A gente chegou a conversar e chegou
concluso de que seria melhor a gente vir pra c.
Na corriqueira conversa familiar, a deciso do deslocamento
para a cidade impunha ao narrador um sublime afastamento daquele
universo de trabalho rural. Em suas impresses: essa fase da minha
vida na fazenda foi muito difcil essa convivncia, porque eu me via
no meio daqueles homens trabalhando. No meio de homens se fala
tudo, de mulher, no sei o qu... E eu me sentia completamente perdido, totalmente. O sentimento de no pertencimento quele espao
lhe era remetido por uma questo crucial: Meu Deus! O que que
eu estou fazendo aqui?. De outra parte, a resposta cristalina: aqui
no o meu lugar!. Para Mrcio, os tempos da vida no campo e sua
lida l com outras pessoas, todos teoricamente heterossexuais, lhe
impunham um convvio social perturbado por sensaes de dor e
por novos anseios:
A vontade que eu tinha era de fugir daquele lugar. Eu no me
sentia bem. Eu no me sentia feliz, no era o que eu queria pra mim.
Nossa! Quantas vezes eu tentava conversar com a minha me e falava:
Me, isso no pra mim. Nossa sempre quis ir para a cidade, para
trabalhar, para ter uma vida assim diferente, conhecer gente, gente
assim como eu. Onde eu pudesse ter amizade, dividir essa experincia, conviver junto.75
172
75 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.

O desejo de compartilhar a vida com pessoas que lhe pudessem


acrescentar a sua existncia pessoal gay uma constante marcao
no relato de Mrcio. Segundo constatou, sua dificuldade consistia
no fato de que, no campo onde vivia e trabalhava, no tinha gays,
no tinham lsbicas, no tinha. Pelo menos no aqui assumido, porque se tinha era muito escondido, porque lugar desse [gestualidade]
tamanhozinho tem muito preconceito. Ao se colocar desse modo,
utilizando-se da gestualidade, quer expressar o tamanho pequeno do
lugar onde vive. Em seu relato, argumentou ainda:
Depois que eu me mudei, na verdade aconteceu depois que
eu me mudei, que eu vim aqui pra Assis [Chateaubriand],
que eu conheci bastante homossexuais, da me envolvi com
alguns deles porque houve aquela afinidade. Mas no foi
uma experincia, at ento pra mim, com os homossexuais
com os quais me envolvi, no foi sabe, uma coisa assim, que
me realizou cem por cento. Eu senti que alguma coisa faltava, que at ento eu s tinha me envolvido com homens
heterossexuais e os que eu me relacionei aqui eram semelhantes a mim, no houve aquela afinidade. Eu senti que
faltou algo, faltou alguma coisa.76

No relato de Mrcio, alm do deslocamento do campo para a


cidade, assume importncia a vivncia de relaes homossexuais, no
necessariamente com gays, que at ento pareciam estar plantadas no
mbito de idealizao. Implicitamente, o relato revigora a frustrao
vivida em relao s expectativas quanto s outras relaes pessoais
que entendia como difceis ou impossveis de serem vividas no campo.
Na prtica, parece se comprometer com uma reflexo difcil sobre as
quebras trazidas pela frustrao que lhe impunha alguma forma de
comparao e, por sua vez, de relativizao quanto aos sentidos do
viver urbano em sua trajetria. Parece at ironia, mas o jovem Mrcio
aparenta se dar conta de que o meio rural lhe preenchia a vida com
melhores experincias, gays ou no, que a vida urbana.
76 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.

173

Para Mrcio, a cidade no fora apenas promessa, era a realidade


que precisava ser compreendida, pois muitas vezes, quase que frequentemente voc sofria discriminao. As pessoas falavam, te colocavam em situaes. Pois,
Com o passar do tempo, eu aprendi a conviver, a filtrar. []
No fazer com que aquilo me fizesse mal. Porque eu entendi
que o preconceito sempre existiu e sempre vai existir. A
gente tem que aprender a conviver com ele. Infelizmente
uma coisa, a realidade. Existiu, existe, no ? A gente tem
que aprender.77

A narrativa de Mrcio passa a colocar em pauta uma srie de


situaes de conflito e discriminao que vivera no espao de trabalho na planta industrial do frigorfico de aves na cidade vizinha,
principalmente durante o deslocamento de uma cidade outra cotidianamente. Uma das marcaes narrativas mais contundentes que
foi trazida para o dilogo relaciona-se a viver a orientao sexual.
Nesse relato, chamou a ateno uma srie de situaes de preconceito vividas no transporte da sua cidade at o trabalho naquela
localidade:
Inclusive no nibus que eu vou, o meu banco do lado, at,
em dois anos em maio que eu vou completar na empresa,
nenhum homem senta comigo. J aconteceu de, por exemplo... Eu pego, eu sofro um pouco dentro do nibus por
causa disso. J aconteceu de o nibus estar cheio e ter um
banco do lado vazio, o cara ir em p daqui [Assis Chateaubriand] a [omitida pelo autor], mas ele no senta comigo.
Acontece!78

O transporte dirio de nibus constitui-se num espao social de


experimentao bastante dramtico para sua vivncia de trabalhador
e gay. Para Mrcio, no nada fcil ter que lidar com essa situao,
174

77 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.
78 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.

em que, tal como contou, no sobram dvidas quanto ao preconceito


vivido. Trata-se da distncia de mais de 40 km, o que equivale a uma
hora de viagem, motivo pelo qual se mostra magoado. Tal situao
no se restringiu ao transporte, mas ocorreu tambm no interior do
prprio espao de trabalho. Em sua narrativa:
Que nem ontem, por exemplo, aconteceu um caso. Eu entrei
no banheiro, da tinha dois caras conversando. Da o outro
saiu e, no que o outro saiu, o outro j saiu atrs. No queriam ser vistos junto comigo. Isso! No conversam comigo,
no me cumprimentam, no falam comigo. desagradvel,
mas79

O banheiro espao que faz parte do ambiente de trabalho e


narrado por Mrcio. Ressente-se, assim, de no poder compartilhar
esse espao do mesmo modo como outros trabalhadores do frigorfico em virtude da assuno de sua orientao sexual , pois o evitam.
Segundo o entrevistado, isso acontece muito:
No setor que eu fico, eu trabalho com mais dois caras. No
tem o que conversar com eles, no tem assunto. s questo
de trabalho. Eles comeam a conversar entre eles, falar de
futebol, falar de mulher, falar de carro e eu fico totalmente
perdido. Nossa! Eu no sei. De mim pra eles eu s converso
questes formais, sabe? No tem o que conversar. Os assuntos no batem.80

Fica muito claro que a indignao de Mrcio no em relao ao


fato de esperar um convvio marcado por relaes sexuais ou afetivas homo-orientadas. Esse jovem se ressente da impossibilidade de
viver sua experincia laboral em termos mais amplos, ultrapassando
a margem restritiva da condio de trabalhador. Para ele, o espao
de trabalho significa muito mais que o lugar para ganhar a subsistncia. O trabalho no frigorfico um espao de sociabilidade impor79 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.
80 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.

175

tante que, no caso denunciado, torna-se limitante vivncia integral,


restando apenas conversar de questes formais. Falar com colegas
sobre temas usualmente tidos como essencialmente heterossexuais ,
na leitura desse jovem, presso contra sua presena homossexual no
espao daquela indstria. De acordo com Mrcio,
O que eu quero no que as pessoas me aceitem. No isso o
que eu quero. Eu quero respeito. O fato de elas no me aceitarem como eu sou, eu queria que elas no se achassem no
direito de ficar me condenando, a minha vida, o tipo de vida
que eu levo. L no armazm onde eu trabalho, por exemplo,
l as pessoas, tipo assim, me respeitam, pelo menos assim
dentro da parte de trabalho, me respeitam sabe? Mas tem
aquelas pessoas que no conversam comigo, tem aquelas
pessoas que quando eu passo tiram sarro, fazem uma piadinha, um comentrio maldoso. S que eu procuro nem dar
importncia pra isso. Porque se eu for dar importncia para
o que as pessoas falam, eu nem saa de casa.81

A despeito do tom de desprezo para com tais questes, tudo


indica que Mrcio se ressente sim e muito do preconceito sofrido,
mas no o bastante para deix-lo preso a sua casa. De acordo com
sua elaborao quanto a esse processo, reconhece: eles no me querem ao lado deles, isso visvel. Ento, eu vou l, na hora que eu
chego eu troco de roupa e j saio. Na hora da janta eu vou l, escovo
os dentes, depois j saio e vou pra fila. O relato, por sua vez, no d
conta apenas do preconceito sofrido, mas tambm da compreenso
quanto aos desafios que sua orientao gay lhe impe para conviver
naquele espao de trabalho. Nesse sentido, interessante perceber
que essa convivncia difcil no se restringe apenas prtica de ficar
calado. Vejamos um exemplo trazido pelo jovem:

176

E aconteceu esse caso de o cara vir com uma revista [de


mulheres] para o meu lado querendo que eu olhasse e
falando: u, voc no gosta? Voc tem que olhar! E eu me
81 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.

senti mal porque tinha mais pessoas, mais caras e ficaram


rindo, ficaram zoando com a minha cara. Da eu subi l para
o meu setor e conversei com o meu superior. A a gente foi
conversar com o encarregado e foi resolvido naquele dia
mesmo.82

Interessante destacar que, em relao ao acontecido, encontramos Mrcio agindo no apenas no sentido de encontrar uma maneira
mais amena de lidar com o conflito, nesse caso fazendo-se oculto.
Passa a contar, assim, de maneira quase dilacerada, como acionou
seus chefes para lidar com a agresso que sofrera. Na continuidade
do relato, contou como a situao teria sido resolvida pela sua chefia
que encaminhou e resolveu e, inclusive, faz um ano que ele veio perguntar pra mim e, porque agora eu mudei de setor. Alm de contar
como o conflito foi assumido e resolvido pela chefia, Mrcio pareceu
acentuar essa conduo prestativa, tanto que ele perguntou se o
pessoal do outro setor no est mexendo comigo, os caras.
A princpio, podemos ficar at comovidos com a to iminente
posio que teria sido tomada pela chefia, tal como foi contado por
Mrcio. Mas precisamos ir alm dessa rasa constatao, o que pode
nos ajudar a compreender outras tramas conflituosas e transformaes nesse meio. Para isso precisamos lidar com a resposta que o
jovem teria dado ao chefe quanto preocupao manifestada:
E eu falei assim: olha, acontecer, acontece. Mas como eu no
tenho tempo nem de ficar ouvindo o que eles falam, o que
eles fazem. Eu nem sei quem , mas acontece sim. E inclusive falou que se eu sentisse realmente prejudicado para eu
passar para ele tomar providncias. Quanto a isso, no tenho
o que reclamar do meu chefe, porque ele supercabea.83

Embora a preocupao de recuperar o sentido dessa posio


supercabea, assumida pela chefia, algo mais parece se constituir
82 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.
83 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.

177

em seu movimento narrativo:


E voc vai se expor? Claro, no vai. Vai ser ali particular e
tal. Mas voc vai estar assim se expondo, se desgastando,
aquele desgaste emocional. Aquilo vai mexer com voc. Vai
te fazer mais mal assim. Quanto mais voc mexe, mais se
desgasta, te faz mal. E voc acaba deixando de lado, resolve
remediar.84

Ao mesmo tempo em que levanta o fato de ter tido a coragem


de buscar seus direitos como trabalhador, assim como de referenciar
positivamente a resposta da empresa ao episdio de preconceito, o
jovem Mrcio denota compreender a existncia de um parmetro de
possibilidades plausveis para aquele gesto, pois quanto mais voc
mexe, mais se desgasta, levando-o a remediar.
A narrativa apresenta, com relativa clareza, o modo pelo qual
esse jovem levado a compreender os limites de sua coragem denunciadora das injustias vividas naquele espao de trabalho. At mesmo
porque, como disse Mrcio, esse um caso. Isso , porque difcil
voc administrar isso. No estabelecimento do dilogo, precisamos
compreender que h tambm um flanco aberto pelos interesses pessoais projetados por ele para aquele espao, pois desde que eu entrei
na empresa, eu queria mostrar a minha capacidade, mostrar que eu
tenho potencial, que eu sou igual a um homem, a minha vida. Nesse
momento, o jovem delimita assim suas referncias de entendimento
em relao ao que vive no trabalho e em sua vida sexual:

178

Essa questo da minha orientao sexual, eu sou gay do


porto pra fora. A partir do momento que eu entrei do porto para dentro, eu vou agir como um homem, eu vou trabalhar e vou mostrar que eu tenho capacidade. Inclusive, eu
fao muita coisa que muito homem no faz. Eu vou atrs, eu
fao acontecer e procuro mostrar que o fato de eu ser gay
no quer dizer que eu no sou capaz de trabalhar igual a um
homem, ou de, se chegar a um cargo, de repente, de respon84 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2007. Ver nota 73.

sabilidade, de decises. Pelo contrrio, eu ajo normalmente


e sempre procuro colocar que eu tenho capacidade. Eu sou
um homem, no ? L eu trabalho como tal e procuro fazer
acontecer. Mas meio complicado porque muitas vezes,
como as pessoas j sabem de mim, todo mundo no ? As
pessoas torcem o seu nariz e pensam: ah, no tem capacidade, no pode fazer. Mas voc, a cada dia, voc tem que
est provando que voc capaz, que voc pode. Porque as
pessoas so muito doentes s vezes, muito maldosas nesse
sentido.85

Embora o relato de Mrcio seja individual, podemos deslocar


nossa ateno para alguns elementos de significao de sua experincia que no parecem reduzidos a sua individualidade, mas ao universo social vivenciado por outros gays na esfera do trabalho. Quais
sejam: o fato de assumir para si, ainda que subliminarmente, o desafio
de ser melhor que quaisquer outros trabalhadores, como uma forma
de superar a internalizao de sua inferioridade pelo fato de ser gay.
Claro que isso no pode ser tomado como categorizao sentencial
quanto aos desejos mais profundos de realizao profissional desse
jovem. Muito menos deixar de crer que o ambiente de trabalho em
questo esteja fortemente marcado pelo sentido de competitividade
elevado no mbito da gesto das atividades laborais. Todavia, o tom
narrativo deixa explicitamente marcado o quanto esse dilema se faz
presente na experincia de vida desse jovem, uma vez que a cada dia,
voc tem que estar provando que voc capaz, que voc pode. O relato,
por sua vez, chama a ateno pela aura de tenso mais ampla vivida
por esses trabalhadores. To assim que atualmente foi at divulgado
um documento no mural. Todo mundo passou por um treinamento
e que a empresa no pode discriminar ningum. Seja por orientao
sexual, cor, religio, por opinio poltica ou qualquer aspecto.
No conjunto das tenses em torno da assuno de sua orientao
sexual, o panorama reflexivo de sua narrao se deslinda com uma
85 Entrevista realizada com Mrcio (nome fictcio), 25 anos, em Assis Chateaubriand, em
julho de 2009, por Robson Laverdi.

179

fora incrvel, fazendo parecer que Mrcio talvez assumisse o papel


de refm dessa situao:
Atualmente trabalho na gesto de qualidade. Tem um ano
e meio j que eu ento passei a este setor. Nossa! Depois
que eu ento passei, me senti muito valorizado, sabe? Muito
reconhecido pelo meu trabalho, pelo meu esforo, pela
minha dedicao, sabe? E assim quando as coisas comeam
a dar certo na tua vida voc se sente mais motivado, mais
inteirado pra cada vez se dedicar mais. Cada vez se esforar
mais. Cada vez se doar mais, pra aprender coisas novas. E na
verdade so dois lados: a vida pessoal e a vida profissional.
Ento, a gente s vezes tem que procurar sempre conciliar
as duas, s vezes uma no anda muito bem, mas a outra est.
E assim vai indo. Mas nessa questo do campo profissional,
sabe, atualmente estou muito satisfeito, sabe, graas a Deus
consegui chegar onde eu almejava e estou bem contente,
sabe.86

O valor dado realizao nas relaes de trabalho aparece fortemente marcado na experincia de Mrcio. Seria bastante fcil acreditarmos precisamente que o modo como se lana no ambiente de
trabalho no frigorfico estaria descolado de um mbito maior, no caso
a vivncia social. Somos levados, no entorno dos sentidos em disputa evidenciados pelo dilogo, a pensar naqueles elementos constitutivos da experincia da alteridade gay no confronto com interesses
mais amplos e manifestos do capital, no caso em questo as formas
de explorao do trabalho implantadas nesse espao de incremento
na rea de agroindustrializao. Assim como a pensar nos contornos assimilados pela promessa de emancipao individual, alm de
outras expectativas que se engendram no horizonte de possibilidades para esses jovens trabalhadores. O entrevistado sintetiza:
como se fosse assim: quando eu me assumi, tomei uma
posio. como se, assim, algumas portas se fechassem

180
86 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.

sabe, talvez no no campo profissional, mas de repente na


amizade pra algumas pessoas, assim. Elas fecharam a porta
pra mim de tal forma, assim, que pra mim conseguir abrir
sabe, muito difcil. Uma barreira to alta que pra derrubar
leva tempo, tem que ter pacincia sabe? E assim, s vezes
eu at falo, quando tem pessoas [gays] que perguntam, que
conversam comigo e tal, e falo assim: olha essa deciso cabe
a voc. Posso te colocar os prs e contras do que eu passei,
mas uma deciso somente sua. Voc que tem que saber o
que voc quer pra tua vida. Eu s no acho que voc deva
levar outra vida, querer viver de aparncias. Agora se voc
quer viver publicamente ou de repente s pra algumas pessoas, pros amigos, talvez voc assim, pra quem no quer
de repente assim sofrer tanto, no ter de frente uma preparao ou sabe ser assim, mais87

O trecho da narrao assume uma compreenso poltica do jogo


em questo. possvel relacionar algumas dimenses, entre outras,
que brotam desse dilogo. Cumpre destacar diferentes mbitos dialgicos assumidos pela narrativa em relao a essas dimenses. O
primeiro confere ao entrevistador um papel de espelho para a prpria compreenso do caminho que assumiu, validando-se com uma
narrativa calcada na interposio imitadora da realidade: como se
fosse assim. Em segundo momento, a narrativa assume entonao
poltica pautada pela assertiva: tomei uma posio. Em seguida,
Mrcio relaciona sua experincia individual de outras pessoas que
vivenciam o mesmo drama da assuno pblica de sua orientao
gay. Vale finalmente considerar a defesa de sua posio em relao
ao que passei.
Curiosamente, Mrcio, embora talvez se sentindo mais fortalecido pelas decises que tomara e pelas conquistas que alcanara, no
assume sua escolha como um nexo universal a partir do qual outros
gays devessem assumir o mesmo caminho. Para ele, cabe, em cada
experincia, compreender o jogo das relaes e possibilidades que
181
87 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.

esto em causa. Na prtica, a narrativa evidencia com alguma clareza, nesse campo das relaes de trabalho e em toda a sua extenso
consciente imbricada ao social, o quanto os valores e sentimentos
no so fixos, mas profundamente negociados a partir do conjunto
de correlaes de foras.
E, talvez, at mais que isso. No caso em evidncia, a posio de
Mrcio no se assegura num sentimento transversal marcado por
suposta maior visibilidade e aceitao gay no Brasil nos tempos que
correm. Assim como no se revela uma desdenhosa conscincia das
condies concretas de competitividade marcadas pelas novas relaes de trabalho que se constituam em seu meio.
Ao trazer para o centro da discusso uma suposta dvida apresentada pelo outro colega de trabalho, tambm gay, quanto assuno de sua orientao, o relato revigora nossa percepo em relao
vitalidade social presente na narrativa individual marcada na experincia intrincada por relaes de alteridade:

182

Quando eu entrei [empresa omitida pelo autor] assim, acho,


tava nuns trs meses assim que eu, que eu cheguei concluso que eu tinha dois caminhos pra seguir: ou eu assumia e
vamos em frente ou eu ia tentar fazer como muitas pessoas
fazem, como muitos homens que eu conheo. tentar viver
um mundo, uma vida de aparncia. O que seria conveniente
voc arrumar uma namorada, s que no estaria sendo
feliz. Eu sempre falo pras minhas amigas: gente eu no seria
capaz de fazer isso comigo, eu no seria feliz viver uma coisa
que no pra mim. Eu tenho que viver o que tenho vontade,
a vida uma s. Eu no posso ficar vivendo uma vida pra
tentar agradar os outros e deixar a minha felicidade. Felicidade tambm tem parte da gente, voc tem que fazer tua
felicidade, voc que escreve a tua histria, s depende de
voc. E, assim, quando eu assumi l [empresa omitida pelo
autor] pras pessoas E assim, rapidamente, numa proporo muito grande, a notcia correu. E assim foi uma fase
muito difcil da minha vida porque eu fui muito discriminado pelos homens. As pessoas se afastavam muito de mim,

os homens, assim, que no tinham um entendimento e que


no sabiam de repente conviver com uma pessoa assim. At
ento, naquele tempo tinha poucas pessoas que tinham essa
coragem de chegar e assumir a tua orientao sem medo de
qualquer coisa.88

Mrcio, nessa perspectiva, pensa sua existncia e ao como um


todo no social em que participa, avaliando tambm o sentido de sua
ao:
Com o passar do tempo eu mostrei, acredito eu, pras pessoas que o fato de voc ser homossexual no diferencia voc
de uma pessoa. Voc igual a todo mundo, o que diferencia
s esse desejo que a gente tem. Esse modo de vida. Mas na
sociedade voc pode exercer a sua funo, outra pessoa normal sem nenhuma dificuldade. E muitos, na verdade, so as
pessoas com as quais voc convive que tm dificuldade de te
aceitar hoje, de conviver com as pessoas assim. uma forma
diferente de estar pensando, de pensar.89

A partir de sua forma diferente de estar pensando, o enredo


narrativo de Mrcio permite discutir uma trama social envolvida no
processo de assuno da alteridade gay naquele meio. Exemplo disso
a meno a um colega de trabalho, que ele elege para representar a
dinamicidade das tenses existentes no cho da empresa e alm dele:
No, eu no sei onde que ele [colega de trabalho] mora.
Ele trabalha [empresa omitida pelo autor] tambm. Eu at
fiquei bravo com ele. Teve um dia, um perodo que eu fui
trabalhar no outro turno. Da ele tava l trabalhando e tal e
eu fui pra conversar com ele. Da eu peguei eu me senti na
liberdade de falar isso pra ele. Da conversa vai, conversa
vem, e da eu falei assim: olha, eu admiro muito as pessoas
como ns que assumem a sua sexualidade. Da ele parou e
olhou pra mim. Assumir o qu? Da eu falei: ah, ser gay. E
ele: mas eu no sou gay! Aquilo eu fiquei to sem graa. Eu
88 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.
89 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.

183

fiquei to constrangido, que eu Eu no sabia nem o que


falar. Eu fiquei vermelho. Eu perdi a fala. Eu [risos]90

Em questo, Mrcio colocou muito mais do que a decepo com


o colega de trabalho que no demarcou vivenciar do mesmo modo a
situao de experincia pblica da homossexualidade. Tal prtica de
dilogo propugnado pela sua transparncia, evocada por um sentimento de pertena, pareceu no ser a tnica de todas as experincias
gays. Tanto que o levou a ficar vermelho em sua fisionomia diante
da surpresa. Nesse intercurso, Mrcio desvendou para esta anlise
outras dimenses dessa dificuldade de lidar com a alteridade gay na
vida societria, que no exclusiva ao pblico homossexual:
Assim, em relao aqui na cidade, aqui onde eu moro, ainda
no sei de repente, no vou dizer que falta de tempo ou
no, porque sempre acaba sobrando um tempinho, mas
acredito que eu no fiz novas amizades aqui na cidade com
as pessoas do meio [gay]. Acaba que eu conheo outras
pessoas mais fora, de outras cidades atravs de amigos, de
amigas, tal. Que a gente vai se conhecendo e acaba estabelecendo algum vnculo de amizade. Mas com as pessoas
daqui [Assis Chateaubriand], que nem eu te expliquei j a
vez passada [primeira entrevista gravada em 2007], que eu
no tenho muitas amizades na cidade. Tenho poucas amizades e assim essas pessoas daqui da cidade, as que eu conheci,
eu posso dizer no tive muita felicidade assim em conhec-las porque eram pessoas que no vieram a somar na minha
vida, no vieram agregar sabe uma coisa legal. No91

A solido parece contada como um sentimento poderosamente atuante quando se refere a sua vida em Assis Chateaubriand.
Em outros termos, Mrcio infere no ter encontrado uma morada
[to] amiga assim. Para se divertir entre os pares, precisa ir l em
Cascavel. No sei se voc sabe, tem uma boate GLS e a gente acos184

90 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.
91 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.

tuma [costuma] sempre ir pra l. Todo sbado que d pra gente ir a


gente vai pra l.
A amiga lsbica e Mrcio compartilham esse significado de solido: at assim eu sempre falo pra ela [amiga] brincando que eu no
gosto de sair aqui em Assis porque eu no me sinto Em partes eu
no me sinto vontade quando saio em Das pessoas, dos jovens,
dos points. Cascavel, que uma cidade maior, com mais de 250 mil
moradores, localizada a pouco mais de 80 km de onde vive, tem centralizado a ateno de muitos jovens gays pela existncia de espaos
de maior sociabilidade para o pblico LGBT.92 Embora no sendo
isso uma regra, pois muitos jovens entrevistados no trilham esse
mesmo caminho.
O deslocamento para Cascavel, nos finais de semana, assume
assim outros sentidos:
S que de repente indo l eu sinto uma maior liberdade pra
voc conhecer as pessoas, pra voc realmente ser quem voc
. Voc poder agir como voc. Voc poder se divertir, sem
de repente No uma questo de voc despertar a ateno, mas numa questo de voc ser julgado, de voc93

Para Mrcio, a danceteria LGBT:


um local assim que no sai briga. um local assim gostoso pra voc danar, pra voc ouvir uma msica, pra voc
conhecer gente. E, assim, por ser a mais prxima aqui da
regio, ento todas as pessoas assim do meio [gay] vo pra
l. Ento acaba sendo um local de encontros. Ento de
repente no sai somente pra94

possvel afirmar com alguma segurana que tais experincias,


por mais que sejam narradas com intuito de marcar com fidelidade
os sentidos sociais de crueldade e violncia vividos por ele e compar92 Lsbicas, gays, bissexuais e transexuais.
93 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.
94 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.

185

tilhados por outros jovens homossexuais, no retiraram de Mrcio a


energia de seu propsito de realizao pessoal. Pois, durante a realizao da segunda entrevista, em julho de 2009, j traava horizontes
onricos para seu futuro:
Ento, eu estou vendo pra comear voltar a estudar. O ano
que vem, agora, no comeo do ano, agora, instalou l em
[omitida pelo autor] uma faculdade a distncia que uma
vez por semana. Da a minha chefe veio conversar comigo
me falando, me apoiando e que ela ia me liberar pra mim
poder ir uma vez por semana pra assistir s aulas. E eu estou
bem empolgado pra poder, pra comear a estudar. Ento
vai ser alguma coisa. Da bem na rea, o curso gesto
de processo industrial. E da eu estou bem empolgado pra
comear a fazer.95

186

Fazer uma faculdade a distncia ou na rea de interesse ou atuao da empresa pode soar, primeira vista, como uma assimilao ao mundo da precariedade e uma internalizao da dominao
levada a efeito. Todavia, a partir do tecido tramado pela experincia
compartilhada por Mrcio em suas duas entrevistas, cabe pensar
com maior profundidade quanto aos sentidos implcitos de quebra
de paradigmas que sua trajetria imprime nesse lugar.
Do campo cidade, da cidade ao trabalho, de uma cidade a outra,
o relato de Mrcio mostrou-se construo narrativa consciente e
atenta ao campo de escolhas e determinaes moldadas pelas situaes concretas como protagonista de sua prpria histria em tenso
com o preconceito e a opresso vividos. Porm driblados com uma
coragem existencial toda particular. Em grande parte, demonstra
possuir fora negociadora compreensiva muito evidente.
A partir desses universos sociais trazidos cena reflexiva, viabilizados pela histria oral, no podemos, e muito menos devemos,
falar de um mundo gay j constitudo e cristalizado. Assim como
no podemos afirmar que a agroindustrializao foi conhecida total95 Entrevista com Mrcio (nome fictcio), realizada em 2009. Ver nota 86.

mente em seus interesses e prticas de domnio e concentrao de


riqueza. Todavia, como buscamos destacar nessa discusso, a histria oral assume no apenas o papel metodolgico de reflexo, mas
o de norte desafiador para testar nossa capacidade interpretativa de
compreender o mundo em suas relaes entre o universo individual
e o social, tal como tanto propugnou Raymond Williams (2003).
O caminho que buscamos trilhar neste texto permitiu, pelo
menos em parte, entender e ultrapassar algumas armadilhas da discursividade vazia da morada amiga como um dos sentidos em disputa naquele meio, de modo a dar conta da concreticidade pulsante
da alteridade gay que tambm est presente. Ainda que ela no se d
de forma majoritria, no espao dessa planta industrial e em outras
relaes e espaos de trabalho.
Temos alguma clareza ainda para afirmar, entretanto, que no
penetramos em todos os campos e sentidos dessa experincia social.
Em parte porque, embora desejemos apreender sua totalidade, ela
nos escapa pela incapacidade de nos colocarmos no lugar de pertencimento do outro. Noutra parte, porque nosso prprio entrevistado, cioso de seu mundo, compreendendo as mazelas da ignorncia
humana, revelou-nos apenas o que acredito que o que eu queria passar pra voc foi de acordo com que voc foi fazendo as suas perguntas. claro que eu no consegui passar tudo de mim. Nesses termos,
como da compreenso de Mrcio, e de nossa prpria compreenso
tambm, o que foi dito o resultado de uma relao conforme voc
foi fazendo as perguntas. O que nos acalanta nesse processo, com
insuspeita fora de significao, que mas alguma parte de mim
acho que eu consegui passar com essa conversa.

187

Referncias
LAVERDI, Robson. A vida fora do armrio e outras dinmicas envolvendo jovens
de orientao homossexual masculina em pequenas cidades do Oeste do Paran
(2007-2009). Marechal Cndido Rondon: Projeto de Pesquisa UNIOESTE, 2007.
POZZI, Pablo Alejandro. Historia social, historia militante: um producto
colectivo. Histria & Perspectivas, Uberlndia, n. 40, p. 81-115, jan/jun. 2009.
Disponvel
em:
<http://www.historiaperspectivas.inhis.ufu.br/viewarticle.
php?id=211&layout=abstract>. Acesso em: 22 nov. 2010.
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WIKIPDIA. Assis Chateaubriand (Paran). Disponvel em: <http://pt.wikipedia.
org/wiki/Assis_Chateaubriand_%28Paran%C3%A1%29>. Acesso em: 24 nov. 2009.
WILLIAMS, Raymond. La larga revolucin. Buenos Aires: Nueva Visin, 2003.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo y literatura. Barcelona: Ediciones Pennsula,
1988.

188

TE

PAR

IV

PARTE IV
HISTRIA ORAL, DESIGUALDADES
E MOVIMENTOS SOCIAIS

1.Dinmicas coletivas e novas subjetividades:


significados e conflitos nas relaes
sociais no MST

Davi Flix Schreiner


Trabalhadores!
Os trabalhadores rurais, seus modos de vida e seus movimentos
sociais, durante muito tempo foram ignorados pela produo historiogrfica no Brasil. No eram vistos como sujeitos da histria, capazes de ao coletiva transformadora. Nas ltimas dcadas, sobretudo,
essa interpretao passou a ser gradativamente superada pela visibilidade que os prprios trabalhadores sem-terra alcanaram com a
sua organizao e as suas conquistas em movimentos sociais e, ao
mesmo tempo, pelas novas perspectivas, metodologias de pesquisa e
de abordagens de temas e de problemas no campo da histria.
Uma das contribuies para essa mudana de enfoque na produo historiogrfica deve-se s possibilidades abertas pela histria
oral como mtodo para o estudo e a escrita de uma histria vista
de baixo. Para alm dessa questo, agrega-se a constatao de que
a realizao das pesquisas no pode contar com fontes escritas, pois
so escassas ou no existem. Nessa direo, a riqueza de um conjunto vasto de trabalhos realizados sobre os chamados movimentos
sociais do campo, a partir dos anos de 1980, refora a percepo das
mltiplas formas de abordagem de uma diversidade de temas e de
191
questes a partir da histria oral.

Inmeros estudos realizados a partir de fontes orais tm dado


voz aos trabalhadores do campo e movimento s suas prticas. Uma
historiografia influenciada pelas mudanas no interior do debate
marxista96 explicita os diversos modos de vida do campesinato. O
campons emerge no mais como algum que no faz e no participa da histria, como resduo de um passado a ser superado, mas,
sim, como sujeito, cujo modo de ser porta os possveis de um novo
tempo de organizao social.
Nessa linha de interpretao, trabalhos vm analisando as experincias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
na luta pela terra e pela reforma agrria. Destaco, entre tais estudos, aqueles que procuram incluir em suas anlises os significados
que os prprios trabalhadores rurais atribuem s suas experincias
cotidianas no processo de luta pela conquista da terra e pela permanncia nela. Essa perspectiva, alm de explicitar a importncia do
MST como agente de transformao social, abriu a possibilidade de
desmistificar certa viso poltica romntica ou idealizada em relao
ao MST, ao trazer anlise os conflitos e as contradies vividas nos
processos da luta pela terra, em especial, na organizao das relaes
cotidianas nos assentamentos rurais.
nas experincias em situaes de liminaridade, como as vividas em acampamentos e em ocupaes de terra, que pessoas esto
tecendo valores humanistas em oposio barbrie. Liminar
deriva da palavra latina limen, que quer dizer soleira da porta. A
acepo designa aquele que est em posio (espacial, temporal
ou outra) inicial, limtrofe ou de passagem (FERREIRA, 2009). Do
ponto de vista antropolgico, a expresso liminaridade designa temporalidade ou situao marginal, paradoxal e ambgua, que antecede
ou acompanha a passagem de mulheres e/ou de homens a uma nova
categoria ou posio social.
A ideia de liminaridade tributria da obra do antroplogo
192

96 Refiro-me, em especial, influncia das obras de Eric Hobsbawm, de Edward P. Thompson, de


Raphael Samuel e de George Rud. No que se refere aos estudos da questo agrria e camponesa, a
influncia do pensamento do francs Henri Lefebvre tambm significativa nas cincias humanas.

Arnold van Gennep (1969), Les rites de passage. Para ele, trata-se
de um momento no qual fronteiras so ultrapassadas ou eliminadas, o que foi observado durante os ritos de tribos africanas. Os ritos
de passagem foram recorrentemente interpretados a partir dos anos
de 1960.97 Victor Turner (1974), a partir de Gennep, reelaborou o
conceito de liminaridade, apresentando elementos da situao liminar (homogeneidade, igualdade, anonmia, ausncia de propriedade
material). Trata-se de um tempo e um espao social que indicam
nivelamento social dos sujeitos em processos de passagem/travessia. Desenvolveu, tambm, o conceito de communitas: [...] uma
comunidade, ou mesmo uma comunho de indivduos iguais que se
submetem em conjunto autoridade geral dos ancios (TURNER,
1974, p. 119).
Na releitura de entrevistas, de documentos do MST e de trabalhos
de pesquisadores publicados, visualizei um lado positivo da liminaridade. Trata-se de um vivido paradoxal, ambguo e positivo no
fazer-se da experincia em um tempo e espao individual e coletivo.
Configura, pois, uma situao de transitoriedade de quem experimenta a excluso social, designa sujeitos que travam lutas cotidianamente para suas aes manterem coerncia com o que acreditam
e para suas escolhas morais no os impossibilitarem de continuar
a viver e a interagir com o(s) outro(s). Liminares so desordeiros/
rebeldes pessoas que vivem na fronteira e, nessa condio de contradies sociais, questionam sobre sua situao de vida, identificam
interesses comuns e se colocam em movimento, confrontando uma
ordem e um sistema social.
A liminaridade, no sentido aqui empregado, remete a tempos e a
espaos marcados pela pobreza, violncia fsica e simblica, assistncia precria ou inexistncia do atendimento sade, no existncia
da escola ou acesso a ela. Tambm se refere a sujeitos que ocupam
um espao e produzem um tempo de recriao de relaes de vizi97 Sobre a origem do termo liminaridade e sua reinterpretao no campo da antropologia, ver
DaMatta (2000).

193

nhana, de solidariedade, de ajuda mtua e de cooperao. Dessa


forma, o acampamento visto como uma comunidade de interesses
compartilhados, divergentes e contraditrios.
Diante da pobreza extrema, da violncia, da falta de trabalho,
enfim, das condies materiais de existncia, a organizao e a luta
coletiva tornam-se estratgias para produzir um novo tempo. Nesse
sentido, este artigo tem como objetivo refletir sobre a ambincia, os
modos de ver, sentir e produzir nos acampamentos rurais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), como espaos e
tempos nos quais se criam novas subjetividades. O que proponho
dialogar com diferentes vozes de resistncia de trabalhadores rurais
sem-terra e assentados rurais do Oeste e do Sudoeste do Paran, que
evidenciam os acampamentos e as ocupaes de terra como formas polticas coletivas de enfrentamento e de mudana. Trata-se de
narrativas acerca de uma conjuntura de extrema precariedade, que
informam sobre estratgias variadas de organizao da vida cotidiana para tornar possvel uma comunidade de iguais, a qual, no
entanto, revela prticas que negam outras subjetividades.
Utilizo a categoria de subjetividade(s) referida noo de sujeito,
aos seus modos de viver, sentir e interpretar as relaes, bem como
criao de estratgias de produo de sentidos, de escolhas e de
enfrentamentos individuais e coletivos. Ou seja, os sujeitos so
portadores de interesses mltiplos, convergentes, desencontrados
e contraditrios. No vivido, a prxis contraditria e nela que
se produzem as subjetividades. Assim, a acepo de subjetividade
remete ideia de um certo espao de autonomia dos sujeitos, um
espao em que partilham e confrontam interesses diversos. Nesse
processo constituem ambincias e so constitudos por e nelas como
sujeito(s), engendrando as condies para uma nova qualidade de
vida individual e coletiva, alicerada nas diferentes formas de reciprocidades e de insurgncias.
194

Terra de direitos
Os acampamentos e as ocupaes so as principais formas de
luta do MST. O acampamento pode ocorrer s margens de uma rodovia, na propriedade improdutiva ocupada, ou, ainda, numa praa de
pedgio de rodovia, na cidade, geralmente em frente ao Incra ou
sede do governo estadual. Em qualquer um dos exemplos, trata-se de
terras de direito pblico: pblicas porque so do Estado ou de responsabilidade dele, pblicas para a manifestao do povo no Estado
de Direito ou, ento, porque no cumprem com a sua funo social
e, portanto, o Estado tem um dever constitucional, o de desapropri-las a servio do bem comum.
s margens das rodovias, os conjuntos de barracos de lonas pretas (algumas vezes amarelas), as bandeiras vermelhas e, no raras
vezes, cruzes expem a excluso social, engendrada pela explorao e pela expropriao promovidas pelo capital, dando visibilidade a um sujeito coletivo que no pode ser ignorado, o MST.
Evidenciam seu contedo: a luta pelo direito ao trabalho, contra
a terra improdutiva a servio da especulao imobiliria, contra o
agronegcio financiado pelo Estado e fornecedor de gros para o
mercado internacional, contra tambm aos cultivos geneticamente
modificados, denominados de transgnicos. A luta pela desapropriao de propriedades a servio do capital, para torn-las produtoras de alimentos soberania alimentar. E, na mesma medida,
por uma educao bsica para o campo, conjugada organizao
de cooperativas, para viabilizar a permanncia dos agricultores, e
continuidade da ao coletiva no Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra.
No obstante tenham sido agregadas novas bandeiras de luta
atuao do MST, a ocupao, prtica coletiva de rompimento
das cercas/divisas de propriedades privadas, tem se mantido como
forma principal de enfrentamento e de resistncia coletiva. A ocupao, seguida ou no da formao de acampamento, apesar das dife195
renas de forma e contedo, historicamente foi o meio encontrado

por camponeses, em diferentes lugares e momentos, para ter acesso


terra ou assegur-la.
A ttulo de exemplo, podem-se mencionar as ocupaes coletivas
dos camponeses ndios no Peru, no incio dos anos 1960, descritas
por Eric Hobsbawm (1998). No Brasil, os trabalhadores sem-terra
ou com pouca terra, atingidos por barragens e indgenas, desde os
anos 1960, vm montando acampamentos para reivindicar terra. A
ocupao, com a montagem de acampamentos, como forma de ao
coletiva de enfrentamento direto, passou a ser utilizada pelos trabalhadores sem-terra apenas em fins dos anos 1970, quando a luta pela
terra passou a ser articulada para alm do mbito local.
As entrevistas revelam uma diversidade de sujeitos denominados
de trabalhadores sem-terra. Alguns autores afirmam que so pessoas
que perderam as suas terras na dcada de 1960 e 1970 e foram para
a cidade. Como, porm, perderam a terra se a maioria nunca teve
terra? Os processos migratrios para o Oeste do Paran no realizaram a utopia da propriedade familiar para a maioria dos migrantes
e, em geral, quando realizaram o projeto da propriedade ou da posse
da terra, ela no foi suficiente para a reproduo desse modo de vida.
A maior parte do contingente migratrio para a regio se deu nas
dcadas de 1960 e 1970. Todavia, a partir dos anos 1970, as relaes
de trabalho no campo sofreram transformaes, levando muitos
trabalhadores sem-terra ou com pouca terra, inclusive incentivados
pelo governo federal, a migrar para o Norte do pas participando de
projetos de colonizao ou para as cidades. Sem apoio do governo
e sem condies para produzir, muitos retornam para as regies de
onde saram. Somam-se a esse contingente os atingidos pela construo de usinas hidreltricas (38.000 pessoas Itaipu), os retornados do Paraguai (brasiguaios) e os pequenos proprietrios rurais.
Esses trabalhadores (parceiros, meeiros, arrendatrios, pees,
pequenos proprietrios, entre outros) tm, em comum, experincias
de vida marcadas pela migrao e pela insero em relaes subal196 ternas de trabalho no campo ou na cidade. Essas vivncias levaram,

em 1978, no Sudoeste do Paran, um grupo de trabalhadores, inicialmente pequeno, com o apoio dos sindicatos autnticos e da Comisso Pastoral da Terra (CPT), a dialogar. Perguntavam-se acerca de
suas condies de vida e sobre a concentrao fundiria. Sabiam
que havia terras ociosas e terras griladas. Antnio Ribas98 relata que
[...] o banco estava tomando a terra. A gente trabalhava e pagava a
metade da renda pro patro. Assim, concluram: A terra est a, ns
temos direito, mas como vamos chegar? Vamos ocupar. Venceram o
medo e praticaram a primeira ocupao no Paran. E, nos anos que
se seguiram, eles multiplicaram essa ao.
A produo dessa noo de direito terra no se fez sem um
fundamento histrico, nem sem valores morais. As trajetrias de
vida dos acampados e dos assentados revelam mltiplas histrias de
expropriao e de explorao. A memria dessas experincias lhes
possibilitou confrontar as condies de sua existncia com o que
justo e injusto. Os valores morais permitiram que a igualdade formal
de sujeitos diferentes, expressa na reciprocidade contratual do trabalho, fosse questionada na vida cotidiana pelo narrador, a exemplo de
muitos outros na mesma condio, desnudando a desigualdade real
de tal relao de troca. Na explicitao da contradio entre igualdade
formal e desigualdade real, inerente forma contratual, engendrou-se
a resistncia individual e coletiva.
Nesse processo surgiu o MST, em janeiro de 1984, na cidade de
Cascavel, estado do Paran, que, contrapondo-se aos projetos de
colonizao e ao Regime Militar, definiu os acampamentos e as ocupaes como nica soluo para a conquista da terra e para a continuidade da luta pela reforma agrria.
Vidas em acampamentos
A vida em um acampamento, em meio s incertezas, ao medo e
s dificuldades, marcada pela luta coletiva por um pedao de cho
98 Entrevista realizada com Antnio Ribas, em Lindoeste, em fevereiro de 1999, por Davi F.
Schreiner.

197

como lugar de trabalho e de produo da vida. A perspectiva dos


sem-terra acampados , portanto, prospectiva: terra, trabalho, autonomia e produo de alimentos para a vida. A luta do MST, todavia,
no se limita a essa propositura, pois objetiva transformaes mais
profundas na sociedade brasileira. A gente trabalha por uma transformao!, afirma Lcia Ferreira dos Santos (SANTOS, 1998, p. 28).
poca desse depoimento, Lcia participava da Marcha Nacional
por Reforma Agrria, Emprego e Justia, promovida pelo MST. A
Marcha iniciou em 17 de fevereiro de 1997, com cerca de 1.300 sem-terra de diferentes acampamentos e assentamentos do pas, em oposio ao governo Fernando Henrique Cardoso (FHC).
O relato da ex-empregada domstica, com 23 anos, duas filhas,
divorciada de um ex-militante do MST, evidencia que a luta pela vida
a levou a participar de acampamentos e, com o passar do tempo, despiu-se de representaes preconceituosas atribudas aos sem-terra,
tornando-se uma liderana do Movimento. Sua fala sintetiza a dinmica de construo, como sujeito de ao, na luta coletiva pela terra. A
expresso Primeiro a terra, depois a vida [...] (SANTOS, 1998, p. 33)
indica a conquista da terra para nela produzir as condies materiais
de existncia. Dessa dimenso, a narrativa desloca-se para um sujeito
coletivo (o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o conjunto de suas reivindicaes poltico-sociais, entre as quais a reforma
agrria.
A exemplo da avaliao de Lcia, os relatos dos trabalhadores
sem-terra que entrevistei, acerca da vida nos acampamentos, dimensionam tais espaos como bem organizados, onde a maioria das
decises so coletivas. um tempo de aprendizado, que brota da
experincia vivida. Dalmiro avalia esse tempo comparando-o ao da
escola.

198

Foi sofrido, mas para mim foi uma escola. O que eu aprendi
no acampamento no aprendi na escola, o estudo era pouco
pra mim. O acampamento foi uma coisa organizada, isso a
foi uma escola, foi sofrido mais eu gostei. No acampamento

eu aprendi muito, olha se eu for dez anos na aula eu no vou


aprender tanto o que aprendi no acampamento.99

Dalmiro aponta pelo menos para dois sentidos relacionados


experincia de acampamento: (i) nela se fortalece a conscincia de que
os trabalhadores sem-terra so capazes de se organizarem, e (ii) que
no vivido ocorre o aprendizado de como tecer a organizao coletiva.
Nesse sentido, na leitura de Dalmiro se pode visualizar certa convergncia com a concepo do MST de que os sujeitos se educam na luta, ao
participarem de acampamentos, de ocupaes e de caminhadas. Para o
Movimento, entretanto, o aprendizado na experincia deve levar formao de um sujeito coletivo disciplinado. A cartilha do MST intitulada
Como organizar a massa uma das evidncias materiais nesse sentido.
Quanto mais a massa se apega aos smbolos, aos lderes e organizao,
mais ela luta, mais se mobiliza e mais se organiza (MST, 1991, p. 24).
Desse modo, os sujeitos passam a reivindicar, alm da terra, a reforma
agrria e transformaes sociais mais profundas.
Todavia, ainda que os entrevistados interpretem o acampamento
como tempo de aprendizado, embora de modos diversos, a vida cotidiana nesse espao tambm dimensionada como de carncia, de
medo e de sofrimento e, no menos, como de relaes de solidariedade, de reciprocidades horizontais num mundo de precariedade e
de enfrentamento.
A possibilidade do despejo sempre iminente. Quando ocorre o
confronto com a polcia militar e/ou com grupos armados dos fazendeiros, no raras vezes, se faz mediante aes de extrema violncia,
como ocorreu no Paran em fins da dcada de 1980 e incio dos anos
de 1990. O Grupo de Operaes Especiais (GOE) do governo Lerner, com o apoio da Unio Democrtica Ruralista (UDR), deflagrou
grandes operaes em todo o estado. Em geral, de madrugada, trabalhadores foram algemados, interrogados, identificados por meio
de fotografias e de filmagens e sofreram violncias fsicas.
99 Entrevista com Dalmiro Kellmer, no Assentamento Vitria, Lindoeste, em fevereiro de
1999, por Davi F. Schreiner.

199

A partir de 1998, os despejos foram executados pela polcia militar, a polcia de capuz, atrelada partidariamente e ideologicamente
bancada ruralista e UDR, e tambm pelas milcias privadas. Relatos de homens, de mulheres e de crianas evidenciam a barbrie na
prtica padronizada do aparato policial. Nos despejos, mulheres
e crianas foram separadas dos homens. Homens e mulheres, sob
ameaas, foram interrogados e identificados. Trabalhadores algemados, obrigados a deitar no cho, sofreram algum tipo de violncia
fsica e simblica.
Por ocasio do Tribunal Internacional dos Crimes do Latifndio
e da Poltica Governamental de Violao dos Direitos Humanos no
Paran, organizados por diversas entidades que lutam pela reforma
agrria e pelos direitos humanos, sob a presidncia do jurista Hlio
Bicudo, ex-membro da Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Valdecir Bordignon, em depoimento, relatou que, no
dia 29 de abril de 1999, foi prestar apoio a um acampamento na
fazenda Santa Maria, no Noroeste do estado. Durante a madrugada,
cerca de trinta policiais com metralhadoras, fuzis e ces, invadiram o
acampamento. A inteno dos policiais era clara: identificar as lideranas e fazer o despejo das famlias.
A polcia j tinha uma lista de nomes de pessoas que poderiam
estar no acampamento. De posse dela, comeou a identific-las e
retir-las dentre as famlias agrupadas pelos policiais no centro do
acampamento. Bordignon foi uma delas. O comandante da operao
ordenou que ele levantasse, fosse algemado e levado para o estbulo,
onde havia vrios tanques de gua, bebedouros de gado.

200

A primeira coisa foi o afogamento. [...] me retiraram do


tanque, me bateram, me chutaram, me pisaram e a comearam a fazer algumas perguntas, [...]: Quem eram as lideranas daquela regional, [...], quem tinha mandado ocupar
aquela fazenda? [...]. E que eles jamais podiam admitir que
ocupasse aquela fazenda, e tambm falavam que tinham
matado dois em Querncia do Norte, pra eles tanto fazia
matar mais [...]. A, depois me espancaram, n, mandaram

eu correr para que me atirasse nas costas, eu no corri.


Depois me colocaram na gua de novo, num tanque. Depois
me espancaram de novo e, logo aps, eles me fizeram ajoelhar e a comer esterco de gado, com uma faca no pescoo
e uma pistola automtica na cabea, e fizeram eu ingerir
esterco de gado. A logo aps me deixaram nu, nesse local,
e a ameaavam me estuprar, fazer vrias coisas comigo. A
fiquei nesse perodo duas horas e meia a trs horas nessa
tortura. (BORDIGNON, 2001, p. 38-39, grifo nosso).

O que se evidencia nas aes do aparato policial do Estado relatadas


pelos trabalhadores uma tecnologia de poder de carter seletivo, cujos
alvos so sujeitos sociais capazes de protagonizar e mediar aes coletivas. Por isso, a exemplo do que ocorreu em outros despejos, os trabalhadores identificados como lideranas foram levados para a delegacia de polcia,
onde foram autuados em flagrante por formao de quadrilha, crcere privado e esbulho possessrio e ficaram presos durante 42 dias.
Deve-se registrar, no entanto, que a violncia contra os trabalhadores
sem-terra, todavia, no um caso isolado. Em todo o pas, entre 1985 e
2007, segundo dados da Comisso Pastoral da Terra (CPT), foram
assassinados 1.373 trabalhadores. O assassinato, a tortura, as prises,
a existncia de uma lista de lideranas ameaadas de morte pela UDR e
os despejos ilegais contam com a conivncia, em muitos casos, do poder
Judicirio. Imputar ao Judicirio toda a culpabilidade no que se refere
violncia no campo no s no seria justo como significaria desconsiderar a sua contribuio na resoluo dos conflitos agrrios. A Comisso
Parlamentar de Inqurito, criada para apurar as causas e os desdobramentos da violncia no campo brasileiro, conclui, no entanto, que:
[...] parte de seus membros [do judicirio] tem contribudo decisivamente com as injustias, com a intocabilidade
da propriedade privada, com a instituio do latifndio e
legitimado as formas mais absurdas de violncia contra trabalhadores e apoiadores da reforma agrria. Inmeros casos
que servem como exemplo desta ineficcia do Judicirio
201
nos foram relatados: o uso indevido das aes possessrias

que se destinam defesa da posse para a proteo da propriedade. (ABRA, 1992).

Na mesma direo, Antnio Srgio Escrivo Filho e Darci Frigo,


este ltimo dirigente da CPT/PR, questionam, em artigo publicado
em CPT, Conflitos o Campo 2010: [...] qual tem sido o papel do sistema de justia Poder Judicirio, Ministrio Pblico e Polcia Judiciria?.
Segundo eles:
As prises, em regra geral, esto relacionadas a conflitos coletivos, envolvendo trabalhadores rurais sem terra, quilombolas,
indgenas, atingidos por barragens, pescadores, trabalhadores
rurais, entre outros. Relacionando o nmero de prises com
o nmero de conflitos nos ltimos trs anos, vamos verificar
que, para 1.538 conflitos, registraram-se 438 prises em 2007,
o que representou uma priso para cada 3,5 conflitos. Em 2008,
em 1.170 conflitos houve 168 prises, uma priso para cada 7
conflitos. Em 2009, 204 prises em 1.184 conflitos, uma priso
para cada 5,2 conflitos. (CPT, 2010).

Os meios de comunicao tm contribudo para essa situao. A


maneira como os grandes meios de comunicao resgataram esses
acontecimentos do terreno movedio da luta pela terra criminalizou a ao coletiva dos sem-terra em rede nacional ao represent-la
como subverso, como desordem, e os sem-terra como baderneiros, chefes dos sem-terra, bandidos, invasores e vagabundos.
Do ponto de vista da desmoralizao e da recriminao da ao coletiva, essas representaes valorizam o isolamento, a individualizao,
ajudando a apagar a memria das experincias de luta e desfigurar a
conscincia dos direitos.
Na contramo dessa prtica de criminalizao, os acampamentos, as marchas e as ocupaes de terra se mostram espaos pblicos e comunitrios bem como tempos interativos e comunicativos.
nesses movimentos que os sem-terra interpretam as relaes de
202 explorao e de expropriao a que estavam submetidos, ali ento

se percebem como sujeitos portadores de direitos e passam a lutar


como sujeitos polticos coletivos para alcanar objetivos individuais e coletivos. Ao mesmo tempo, diante das diferentes formas de
violncia, continuam a se organizar como meio de proteger-se e de
conquistar a terra.
Em resposta aos despejos violentos ocorridos entre fins de 1997
e primeiro semestre de 1999 e como forma de pressionar o governo
a fazer desapropriaes para o assentamento de nove mil famlias
no Paran, o MST articulou grupos de sem-terra de acampamentos
de todo o estado. No dia 6 de junho de 1999, marcharam de Ponta
Grossa em direo a Curitiba. frente carregavam uma cruz. Em
Curitiba, acamparam na praa Nossa Senhora de Salete, no Centro
Cvico, ladeada pelo Palcio do Governo, Palcio da Justia e Assembleia Legislativa. Alm disso, continuaram a promover ocupaes,
pois tinham clareza de que o Estado s promove desapropriaes
quando pressionado pela mobilizao dos trabalhadores.
Nesse sentido, os dados acerca da criao de assentamentos so
reveladores. Entre 1987 e 2009, foram realizadas 6.086 ocupaes de
terra em todo o pas. Cerca de 80% dos assentamentos criados resultaram da ocupao de terras. Esses dados revelam que a ocupao
da terra no est esgotada. Prova disso so as desapropriaes de
propriedades improdutivas que o Ministrio da Poltica Fundiria
e do Desenvolvimento Agrrio e o Incra tm realizado e a grilagem
de mais de 100 milhes de hectares que esse Instituto identificou e
divulga. O que h uma gritante concentrao fundiria, consubstanciando a distoro da funo social da terra. O resultado do Censo
de 2006 revelou que cerca de 15 mil latifundirios detm fazendas
acima de 2,5 mil hectares e possuem 98 milhes de hectares. Cerca
de 1% de todos os proprietrios controla 46% das terras.
Esse quadro desnuda, pois, o problema agrrio como sendo, sobretudo, uma questo poltica e, at o momento, o direito agrrio apenas
tem regulado as mudanas em curso e de forma a no permitir o enfrentamento direto da questo e sua superao. Historicamente, a reao das 203

classes conservadoras diante da possibilidade de mudanas profundas


na estrutura agrria levou a opes conservadoras: regulou o j existente ou no executou o previsto na legislao. Do Estatuto da Terra, de
1964, a desapropriao de terras para reforma agrria no foi colocada
em prtica, e governos militares optaram pelos projetos de colonizao
como forma de evitar conflitos em reas de tenso social. O processo de
elaborao do I Plano Nacional de Reforma Agrria (PNRA) de 1985 e
a Constituio Federal de 1988 foram momentos, depois de 1964, nos
quais a reforma agrria entrou na agenda poltica de modo mais enftico.
Tambm, contraditoriamente, momentos nos quais as foras favorveis
sua realizao sofreram uma considervel derrota: o I PNRA previa
assentar 1,4 milho de famlias e s foram assentadas cerca de 100
mil e, na Constituinte, foi aprovado um captulo da Constituio Federal dedicado reforma agrria muito aqum das expectativas dos movimentos sociais.
No passado recente, os programas da poltica agrria do governo
Fernando Henrique Cardoso - entre outros, o Cdula da Terra,
criado em 1997, e o Banco da Terra, criado em 1998 - instituram a
chamada reforma agrria de mercado, cujo mecanismo de aquisio
de propriedade no a desapropriao para criar projetos de assentamentos de famlias, mas a compra direta e imediata de terras. Tais
programas se mostraram incuos. Durante o governo Lula, segundo
dados oficiais do Governo Federal (2010), teriam sido assentadas
574.609 famlias. Alm de o nmero ser questionvel, por incluir
regularizaes de posses, projetos de colonizao, entre outros, ele
est longe de atender s milhares de famlias que demandam terra.
Nessa conjuntura, a resistncia organizada dos sem-terra tem
recolocado o problema da posse da terra como uma questo de resistncia expanso do capitalismo no campo. Nas terras ocupadas,
os sem-terra, inicialmente, at a conquista do assentamento, montam novos acampamentos. Organizam-se para solucionar problemas
relacionados falta de alimentos, segurana, sade, educao,
204 entre outros, enfrentando os impactos da situao de conflito.

Diante dessa configurao, a forma acampamento nos faz refletir sobre a construo de um mundo vivido na precariedade, que
politiza a experincia social, criando estratgias variadas para tornar
possvel a cooperao na luta e as condies para a sobrevivncia. O
vivido na precariedade remete liminaridade, ao residual, para usar
uma expresso de Henri Lefevre (1983), quilo que no capturado
pelas prticas de subordinao poltica e de dominao.
Nesse sentido, o acampamento na terra ocupada demarca uma
frao do territrio conquistada do capital e transformada em territorialidade camponesa. O conjunto dos barracos, as bandeiras, as
cruzes, a organizao em comisses e as roas comunitrias so elementos que apontam para a existncia de uma comunidade de interesses na luta pela permanncia na terra.
As inmeras experincias de acampamento ensejaram a elaborao de regras para a organizao da vida cotidiana. Nos acampamentos, os sem-terra organizam a vida orientando-se por normas
aprovadas em assembleias da executiva nacional e por regras que
eles prprios criam no fazer-se das experincias cotidianas. Nesse
sentido, observou-se que: (i) as diretrizes orientadoras gerais da executiva nacional preservam a autonomia de organizao prpria de
cada acampamento; (ii) a organicidade interna dos acampados deve
garantir a democracia de base (decises coletivas e diviso das tarefas); (iii) a vida cotidiana deve pautar-se pela observncia de valores
de uma economia moral comunitria - trata-se de prticas de costume, definidas em lei, e valores prprios da tradio cultural comunitria camponesa, como a solidariedade e a partilha, e se observa,
tambm, que doaes pecunirias devem ser aplicadas para o bem
de todas as famlias; enfim, introduz-se a a ideia de bens coletivos,
no seu conjunto, tendo em vista a luta poltica e o enfrentamento
com os jagunos e a polcia, em que a normatizao da vida cotidiana nos acampamentos marca um regime de guerra (MST, 1988).
Nesse contexto, os acampados organizam-se em comisses
(setores), que variam de acampamento para acampamento, mas, em 205

geral, os setores de limpeza, de sade, de segurana, de alimentao e


de educao nunca esto ausentes. Cada setor tem um coordenador.
Alm das comisses, as famlias organizam-se em grupos para discusses que envolvem o cotidiano da luta e para desenvolver trabalhos em conjunto. Os coordenadores dos grupos e os coordenadores
dos setores formam a coordenao do acampamento. Os problemas
e o planejamento das atividades so discutidos nos grupos e as decises so levadas pelos coordenadores coordenao central. Quando
no se chega a um consenso, a coordenao convoca uma assembleia
dos acampados. Homens, mulheres e crianas participam.
Na medida em que todos so valorizados, espraia-se entre os
acampados o sentimento de igualdade, fortalecendo a unio e a solidariedade do grupo. A igualdade entre o homem e a mulher tambm
passam a ser questionadas. A avaliao de Ftima Kellmer, nesse sentido, exemplar:
Deu uma mudana grande, porque a maioria das mulheres, eu mesma no participava de movimento nenhum. Se
viesse com essa histria pra mim eu no estava nem a. No
dia a dia do acampamento deu pra ver que no por a, tem
que se organizar, a mulher tem os seus direitos, isso t na
Constituio.100

O reconhecer-se como sujeito portador de direitos ato gerador


de reflexos na vida cotidiana dos assentamentos, em que a mulher
participa da cooperativa e se organiza para diferentes lutas, como
no Assentamento Vitria: a mulherada se rene pra ir na Prefeitura brigar pelo nibus escolar. O aprendizado na luta no significa,
todavia, necessariamente, que os trabalhadores, uma vez assentados,
continuem atuando como militantes do MST.
Indaguei a um assentado, em uma de minhas incurses ao Assentamento Vitria, como ele se via hoje, como um colono/pequeno
agricultor, como um sem-terra ou como um assentado. Neuri Spe206

100 Entrevista realizada com Ftima Kellmer, no Assentamento Vitria, Lindoeste, em maro
de 1999, por Davi F. Schreiner.

roto respondeu-me: Sou um pouco de cada um. Evidencia-se, nessa


autorrepresentao uma dupla referncia. De um lado, um modo de
vida campons em recriao, cuja centralidade se articula na posse
ou propriedade da terra e no trabalho familiar. De outro lado, a identificao com o conjunto dos trabalhadores que lutam pela terra e
pela permanncia nela. Na observao pessoal, a assentada Sirlene
Andrade elabora o sentido que atribui ao sem-terra:
[...] sem-terra aquele que est em cima do lote, mas que
participa de uma organizao, porque teve um Movimento
que trouxe ele at aqui. Mas tem muitas pessoas que, se voc
chega na casa e pede pra colocar um cartaz, uma bandeira,
do Movimento Sem Terra, no deixam de jeito nenhum.101

O sem-terra aquele que participa de uma organizao coletiva,


no apenas na fase da luta pela terra, mas continua a luta aps a
conquista do assentamento para viabilizar a permanncia no campo.
Trata-se de lutar por crditos financeiros governamentais para a produo, para a moradia, para viabilizar cooperativas, bem como de
continuar lutando pela reforma agrria. Nesse sentido, o fragmento
da fala da entrevistada aponta para posicionamentos diversos. De
um lado, de modo geral, h um reconhecimento da importncia da
organizao coletiva, do MST, para a conquista da terra. De outro
lado, muitos j no participam do MST e manifestam-se contrrios
s suas lideranas. Em outros termos, aps a conquista da terra, a
comunidade de iguais, vivida no tempo de acampamento, se desfaz
diante de interesses divergentes.
Cabe, ento, questionar: o que, efetivamente, leva grande parte
dos assentados a no participar mais do MST? Se partirmos do pressuposto de que os sujeitos so portadores de interesses, devemos
perguntar-nos sobre o que move os trabalhadores rurais a ingressar
em acampamentos! Certamente, entre os motivos, o principal a
101 Entrevista realizada com Sirlene Andrade, em Lindoeste, em abril de 1999, por Davi F.
Schreiner.

207

conquista da terra, mas este tambm um dos objetivos do MST. O


que nos leva, ento, a perguntar sobre os significados que os sujeitos
atribuem conquista da terra e sobre os seus modos de organizao
da terra e do trabalho.
Nesse sentido, as experincias vividas nas relaes de trabalho,
relatadas por Ivani Taborda e seus familiares, que os levaram deciso de acampar, so significativas. Trabalhavam, no municpio de
Planalto, Sudoeste do estado, como arrendatrios.
Era repartido com o patro. Conforme a gente colhia, dividia. O patro era meio velhaco, combinava que ia dar as
meia, depois quando chegava no final ele no pagava. [...]
Da eu disse pro meu marido: no adianta ficar aqui trabalhando desse jeito que a gente trabalha e no sobra nada. L
no acampamento a gente vai tentar um pedao de terra pra
gente, da o que a gente faz da gente.102

O fragmento da entrevista nos revela, inicialmente, que Ivani


e seus familiares confrontaram a reciprocidade da relao formal
(contratual) com a desigualdade real na relao de trabalho. Concluram que a explorao era tamanha que jamais realizariam a utopia
de adquirir terra. Nesse caso, como na maioria, a reciprocidade contratual no significa igualdade.
A referncia l, no acampamento, da entrevistada, indica a
imagem de um grupo de famlias que no so proprietrias e que
esto unidas para lutar pela terra. Nesse sentido, quando mulheres e
homens decidem deixar de ser arrendatrios optando pelo acampamento do MST, a representao de sem-terra (sem a terra, exemplo:
arrendatrio, boia-fria) ganha novo contedo. Assumir a condio
de acampado significa reconhecer-se como expropriado da terra e
das condies necessrias reproduo social no campo. Ao mesmo
tempo, partilhar com outras famlias de origens e de trajetrias
diversas, que se autorreconhecem numa mesma condio de vida
208
102 Entrevista com Sirlene Andrade. Ver nota 102.

e trabalho, produz a representao dos sem-terra (uma identidade


poltica coletiva de luta pela terra como movimento social).
O consenso em torno desse objetivo to forte a ponto de as(os)
trabalhadoras(es) passarem por cima do medo, especialmente o de
desrespeitar as leis. Quando homens e mulheres, geralmente durante
a madrugada, aps terem recolhido os pertences e as instrues j
terem sido recebidas, em caminhes ou a p, rompem as cercas do
territrio improdutivo e imediatamente comeam a construir barracos de lonas pretas, tm conscincia de que se trata, em princpio, de
uma transgresso da lei da propriedade privada e, na mesma medida,
de que a Constituio Federal de 1988 s garante proteo jurdica
propriedade fundiria que cumpre com a sua funo social. Por
conseguinte, entendem que sua ao legtima.
Como afirma um dos assentados do Projeto Vitria, Getlio
Sengel: A terra pra quem vive nela, quem nasceu nela, se criou
e trabalha nela. Quando assim no ocorre, sentem-se no direito de
ocup-la. A ocupao , pois, ao para a realizao de um conjunto
de expectativas de direitos. Ao mesmo tempo, como o fragmento da
fala de Ivani aponta, a opo pela luta coletiva no elimina, necessariamente, os interesses dos sujeitos individuais. Sua opo pela luta
coletiva para conquistar um pedao de terra para a famlia.
Para o MST, todavia, alm de as ocupaes e de os acampamentos
serem formas polticas de enfrentamento coletivo para a conquista
do assentamento e para a continuidade da luta pela reforma agrria,
tambm so experincias necessrias aos sem-terra para discutir formas de posse e de uso coletivo da terra. Por isso, nos acampamentos,
o Setor de Frente de Massa desenvolve discusses sobre as possveis
formas de organizao da terra e do trabalho no assentamento e estimulam as famlias a lavrar e a semear a terra em mutires ou em
grupos de famlias, cultivando roas comunitrias. So formas de
reciprocidade horizontais, baseadas em valores morais que se contrapem desigualdade da relao de troca na economia capitalista.
Assim, no raras vezes, a roa coletiva, o mutiro e a troca de dias 209

de servio so adotados nos primeiros anos de assentamento. Com o


passar do tempo, a recorrncia a essas prticas diminui.
Coletivo(s), insurgncias
Nesse sentido, os depoimentos dos assentados evidenciam que as
lideranas da CPT, dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs)
e do MST, por volta de 1978, j discutiam, nos acampamentos e em
assembleias com os trabalhadores rurais, formas para uma agricultura
alternativa e mecanismos para superar os entraves colocados na comercializao dos produtos agropecurios. Em inmeros assentamentos,
a terra e o trabalho coletivos foram experimentados enquanto meios
de enfrentamento das dificuldades impostas agricultura familiar. A
partir de 1989, de forma mais efetiva, o MST passou a elaborar uma
proposta de cooperao para os assentamentos rurais com o objetivo
de viabiliz-los economicamente, formar e liberar quadros para o conjunto das lutas dos trabalhadores e consolidar a base do Movimento.
Para essa finalidade, o MST privilegiou a formao de cooperativas de
produo agropecuria, chamadas de CPAs.
O referencial poltico-ideolgico que informou o processo de
implantao da cooperao nos assentamentos rurais encontra-se
em diversos documentos do MST, sobretudo no Caderno de Formao no 11, publicado em 1986. A anlise desse Caderno e de outros
documentos revelou representaes desqualificadoras que tm por
objeto os assentados que optam pela propriedade e trabalho familiar,
entre as quais a de que lhes falta capacidade de gesto, no planejam,
no assumem compromissos e tm dificuldades de aplicar normas.
Esses, entre outros problemas apontados, estariam relacionados a
no superao de determinados vcios prprios da condio camponesa, como o individualismo, o personalismo, o oportunismo e a
autossuficincia.
Na medida em que o campons visto como incapaz de mudana
de atitude por si s, as lideranas do MST, para implantar o trabalho
210
coletivo e as cooperativas, intervm na vida cotidiana dos assenta-

dos de diversos modos, entre os quais a realizao de laboratrios


experimentais de campo, manipulando o vivido atravs das representaes. O que se conclui que o MST, orientado por uma utopia
igualitarista e informado por uma concepo de mundo moderno,
dialogou a partir de uma viso do urbano e de teorias estranhas ao
meio rural. A concepo dualista que norteia a proposta de cooperao do MST, do coletivismo versus individualismo, redutora do
modo de vida dos assentados e de suas utopias.
As 65 entrevistas que realizei mostram que os assentados rejeitam formas fechadas de cooperao, sobretudo a forma coletiva da
terra e do trabalho. A luta coletiva momentaneamente: enquanto
perdura a luta pela terra. Conquistada a terra, momento que tambm o de organizao do assentamento, uma contradio impe-se
aos assentados: transformar a situao excepcional (a comunidade
de iguais, com suas formas de solidariedade e de organizao do trabalho) vivida no tempo de acampamento em sua vida cotidiana no
assentamento ou recriar o seu modo de vida campons anterior, alimentado como utopia na memria, utopia que implica a apropriao
individual da terra.
A maioria das famlias busca, atravs da luta pela terra, a recriao de um modo de vida campons, cujo fundamento o trabalho familiar em lotes que sejam seus e em relaes de cooperao
comunitrias. No se trata de mera restaurao do passado, mas
de escolhas de valores. A terra, o trabalho, a famlia e a liberdade
so elementos importantes no universo campons brasileiro: a terra
como patrimnio da famlia, sobre a qual se realiza o trabalho, que
constri a famlia a terra como valor de uso e no para fins mercantis (WOORTMANN, 1990).
No obstante a resistncia dos assentados coletivizao, com a
criao do Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA), em 1991,
e da Confederao das Cooperativas de Reforma Agrria do Brasil
(Concrab), em 1992, o MST desencadeou uma poltica de estmulo
formao de cooperativas, sobretudo das CPAs, em detrimento de 211

outras formas de cooperao. Diante do fracasso das primeiras CPAs,


o movimento criou e incorporou outras formas organizacionais, justapostas e hierarquizadas. O SCA deveria envolver, alm dos grupos
coletivos e semicoletivos, as associaes para a produo agropecuria,
as associaes para uso compartilhado de mquinas, e trabalhar com
todos os assentados. Ocorreu, contudo, que, na trajetria, os assentados que aderiram s suas propostas foram estimulados e apoiados e os
que resistiram sofreram presses e retaliaes por parte das lideranas.
Assim, embora o MST afirme, como princpios do sistema cooperativista, a gesto democrtica, direo coletiva, diviso de tarefas
e de funes, centralismo democrtico, crtica e autocrtica, na prtica, no raras vezes, esses princpios cederam lugar, nas relaes das
lideranas com a base, a prticas autoritrias e clientelistas.
A percepo dessa contradio levou o movimento, reiteradamente, a afirmar, na sua poltica organizativa da cooperao, a
necessidade de envolver tambm os individuais. O documento
Pedagogia do Trabalho com os Assentamentos, elaborado pelo
Grupo de Estudos do MST de So Paulo, discutido nos encontros
regionais do MST no Paran, parte da percepo da ocorrncia de
mecanismos autoritrios e de excluso social nos processos de organizao da vida cotidiana e da produo nos assentamentos.

212

Muitos militantes, cheios de vontade, mas carentes de pedagogia e mtodo, acabaram por transformar metas polticas
em regras imutveis para serem aplicadas a qualquer custo
[...] Vejamos: quem no contribui com o MST est fora;
quem no estiver na cooperativa no est com o MST; quem
no tem ncleos organizados no serve ao projeto; e, geralmente, rotulamos as pessoas que no concordam conosco
de vrios apelidos: lmpen, oportunistas, etc. Desta forma,
mais fcil expurgar algum do assentamento, ou do MST,
que trabalhar com as diferenas, j que as diferenas nos
obrigam a ter pacincia, a ser menos autoritrios e mais
pedagogos, nos obrigam a pensar e elaborar estratgias de
tempo prolongado e no resolver no imediato. (MST, 2001).

O documento evidencia que o MST se tornou uma organizao


social dos dirigentes, o que provocou a reduo da participao das
bases. Prticas de imposio, e no de convencimento e politizao,
permeiam o trabalho de base nos acampamentos e nos assentamentos. O que se v so relaes de favor, de mando, de obedincia e
de controle de outras subjetividades, criando novas desigualdades
entre os sujeitos. Como o documento reconhece, h necessidade de
militantes menos autoritrios e de desenvolver um trabalho tambm com os assentados individuais tendo em vista o projeto de
transformao social. preciso dialogar com e nas diferenas e no
subordin-las a um projeto totalizante e, portanto, excludente.
Novas tessituras de um movimento
As mltiplas experincias nos acampamentos e nos assentamentos, a crtica e a autocrtica do MST s suas propostas e s prticas das
lideranas junto base, bem como a interpretao, pelos sem-terra,
das relaes sociais, do vivido na liminaridade e da prpria atuao
do Movimento evidenciam a dinmica do fazer-se de uma prxis que
se assenta na premissa libertria. Durante os ltimos anos, a autocrtica levou o MST a reafirmar o dilogo como prtica educativa:
preciso mais dilogo e menos monlogo. O pedagogo popular,
a partir da realidade vivida, deve ver, tratar todas as familias como
base do Movimento, estabelecer a crtica do mtodo e melhorar o
entendimento do que pensa e quer um campons(a) (MST, 2001).
O que se busca, portanto, facilitar a independncia individual e, ao
mesmo tempo, a emancipao coletiva.
Nesse sentido, a meu ver, a perspectiva adotada pelo MST,
embora no tenha abandonado a proposio das formas coletivas
fechadas de organizao da terra e do trabalho, tem sido a de estimular os diferentes modos horizontais de reciprocidade, o exerccio
da democracia participativa, da solidariedade e do cooperativismo,
procurando envolver todas as famlias. As formas de cooperao,
213
contra a reinsero excludente do capitalismo, continuam a ser vistas

como instrumentos para a continuidade da luta pela reforma agrria


e para a insero poltica e social dos assentados.
Ao mesmo tempo, novas prticas polticas de cooperao na luta
passam a ser valorizadas, como tambm as tradies e os valores dos
modos de vida dos assentados. Com a produo orgnica e agroecolgica, a agroindustrializao e a comercializao, o MST pretende
inserir o assentado no mercado, elevando a melhoria da qualidade de
vida. A educao passou a ser vista como elemento central no processo de conscientizao e de organizao dos assentados. Assim, a
luta por uma educao bsica do campo fortaleceu-se nos anos 1990,
articulada a temas como a cooperao e a defesa do meio ambiente.
Nesses termos, nos assentamentos est se produzindo uma nova
ambincia, que no nica, tampouco homognea. Trata-se de espaos e de tempos dinmicos, de relaes sociais de reciprocidades
horizontais e verticais, convergentes e divergentes. Diferentemente
da situao de liminaridade, vivida no acampamento, agora se tem
um territrio geograficamente determinado. As famlias produzem
as suas condies materiais de existncia e participam, sempre que
podem, sem prejudicar a vida familiar e os trabalhos no lote, e, no
raras vezes, para alm do que podem, do MST. A maioria das famlias, todavia, no mais participa das atividades e das mobilizaes do
Movimento.
Observa-se, desse modo, um deslocamento: da luta mais abrangente do Movimento para a preocupao com a produo de alimentos para a manuteno da famlia e com a outra parte que
comercializada, que vai para o mercado. Por diferentes caminhos,
embora no de forma to articulada e pelos meios projetados pelo
MST, a produo e a comercializao de alimentos objetivam a soberania alimentar.
Nesse sentido, a meu ver, a terra no cumpre apenas com a sua funo social, contribuindo para eliminar a fome entre as famlias rurais,
mas a sua utilizao aponta para a necessidade de uma poltica agrria
214 de humanizao e de potencializao das decises locais como base

estrutura do poder poltico nacional. Nesse sentido, observo que a


criao de assentamentos tambm tem produzido um impacto social
e econmico, sobretudo nos pequenos municpios, a partir de investimentos do Estado na instalao dos sem-terra, com a construo de
escolas, moradias e infraestrutura nos lotes, e como com a venda de
produtos agropecurios pelas famlias no comrcio local.
Para alm das convergncias e dos desencontros que tm marcado
a formao de um sujeito coletivo, o MST, bem como dos conflitos e
dificuldades que os sujeitos enfrentam para participar da construo
de projeto(s) coletivo(s) e incorporar-se a eles, diante da necessidade
de enfrentar e superar problemas, de opinar sobre a organizao e de
recriar todas as dimenses do cotidiano vivido que os trabalhadores
elaboram novas subjetividades, engendrando-se como sujeitos individuais e como sujeitos coletivos na luta por direitos.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o sem-terra acampado
sujeito liminar. Vive numa situao de transitoriedade e, ao vivenci-la de maneira coletiva e como pessoa, com interesses e expectativas, valores e conflitos diversos, (re)cria prticas e formas de superar
essa conjuntura liminar. A conquista do assentamento apenas uma
delas. Ao participar de lutas coletivas, nelas tambm desenvolve um
aprendizado, constituindo-se como outro, individual e coletivo em
um movimento social.
A maioria tem optado pela posse do lote de terra e pelo trabalho
familiar e so trabalhadores que j no mantm os mesmos laos e
compromissos com o Movimento. Outros, com a mesma opo de
posse e uso da terra, continuam na luta. H inmeros exemplos de
filhos e de filhas de assentados, nascidos em acampamentos e em
assentamentos, que foram criados/educados na luta, ou ouviram
seus pais falarem de suas experincias liminares, e passaram a lutar
ou esto lutando por um pedao de cho, formam a base e/ou so
lideranas no MST.
Nessa perspectiva, pode-se falar na existncia de uma prxis
educativa, prxis que se faz na criao de tempos e de espaos de 215

liberdade e de autonomia, em que h contradio, opresso e


represso, e que se tece na interpretao das relaes sociais e no
dilogo. Nesses termos, nas relaes contraditrias dos sem-terra
em movimento no MST, as experincias educativas so recriadas e
ressignificadas, dimensionando historicamente uma prxis sociopoltica transformadora.
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216

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217

2. Desigualdades e diferenas: histria oral


e movimentos sociais
Mnica Gatica
Traduo: Mri Frotscher
Para pensar desigualdades e diferenas na Amrica Latina, primeiro necessrio assinalar a superposio de temporalidades,
aquilo que Fernando Caldern enunciou como tempos mistos, o que
supe atender a distintas chaves de interpretao: as classes sociais,
o gnero, o tnico e tambm a gerao. Entendo que a anlise de
classe basal, mas importante atentar para outras chaves, evitando
cair num modelo de anlise monocausal e procurando compreender
quais articulaes se produziram entre as diferentes desigualdades
sociais. Justamente nos movimentos sociais contemporneos, o trnsito para romper com a invisibilizao sups organizao e autoidentificao, o que tem resultado em novos temas e novas prticas. Nossa
bagagem terica e metodolgica pressupe contar com afinados instrumentos para rastrear identidades, experincias e conscincias.
Como historiadores, no recuperamos, mas criamos a partir de
indcios, ancorados num presente que nos interpela; nosso trabalho
tem que dialogar com a dinmica vivida por nossas sociedades, no
apenas para produzir consensos, mas para contribuir no sentido de
propiciar mudanas. Trata-se de compreender e revelar o significado vital, corrosivo, agressivo e rebelde de muitos atos [que] aparentemente [podem ser os] mais insignificantes (GILLY, 1986, p.
104). Nossa disciplina uma ferramenta para pensar, para entender
218 o presente e assumir que ele pode ser modificado, j que no um

fato natural; estudamos o passado, mas olhando para o futuro, como


diz Josep Fontana.
Propomos ento trabalhar com um enfoque interpretativo que
privilegie as experincias e crenas, recuperando matizes e prticas
sociais, reconstruindo percepes e discursos que permitam recuperar sujeitos histricos coletivos os quais muitas vezes tm permanecido na opacidade.
Se nossa vontade explicar o comportamento dos movimentos
sociais, pertinente considerar, como bem sustenta Waldo Ansaldi
(2005/2006), certas correlaes:
1) revisar o padro de acumulao de capital, as formas de
ao coletiva e o marco institucional que regula as relaes
sociais e polticas, sem que se suponha a total desapario
de formas precedentes;
2) a correlao entre os ciclos de intensificao das lutas
de classes e os pontos de inflexo mais altos dos ciclos
econmicos;
3) revisar o uso do termo movimento social, que se refere,
desde a metade do sculo XIX, ao movimento operrio,
mas que, desde os anos 1930 do sculo passado, utilizado
na Frana e nos pases anglo-saxes no plural: movimentos
sociais. Para alm das diversas acepes, entendemos que
se devem destacar os componentes racionais e conscientes
da ao social e atender, ento, sua intencionalidade.
Entendo que existem pr-condies estruturais, mas os movimentos no se desenvolvem, nem poderiam faz-lo, sem ideologia; no h ao humana que no passe pela conscincia, como nos
demonstrou Antonio Gramsci (1997).
Elizabeth Jeln (1986, p. 18) se refere aos movimentos sociais
definindo-os como aes coletivas com alta participao de base,
que utilizam canais no institucionalizados e que, ao mesmo tempo
em que vo elaborando suas demandas, vo encontrando formas de
ao para express-las e se vo constituindo em sujeitos coletivos, 219
quer dizer, reconhecendo-se como grupo ou categoria social.

Com Eder Sader (1988) compartilhamos a ideia de que necessrio atender s mudanas que se operam nos comportamentos das
classes populares, revisando certas afirmaes coloquiais e levianas
que transferem linearmente pautas de comportamento da classe
dominante, como, por exemplo, a identificao com os novos processos produtivos, o consumo, o disciplinamento e a renncia de
direitos; valorizando experincias que tm sido invisibilizadas,
como procurei fazer ao investigar o coletivo de chilenos exilados no
nordeste de Chubut, ou, por exemplo, como fez o historiador Pablo
Pozzi, ao abordar outros problemas, em sua emblemtica obra Oposicin obrera a la dictadura (2008). H comportamentos de resistncia os quais somente podemos acessar e reconhecer trabalhando a
partir de uma histria construda de baixo e que atenda a subjetividades dinmicas.
Na Amrica Latina, o tema dos novos movimentos apareceu
nos anos 1980, mas devem se distinguir claramente dois momentos. O primeiro, registrado no final das ditaduras e na transio s
democracias, que em geral contou com uma composio plural em
termos de classe. Nesse momento, foi distintiva uma reivindicao
especfica por pertencimento etrio, de gnero ou em defesa do meio
ambiente, de direitos humanos ou por demandas de locus de vida,
como sustenta Ansaldi. O MST se transforma numa exceo, devido
sua composio (camponeses), suas reivindicaes e sua resistncia ao neoliberalismo. Num segundo momento, destacam-se os
movimentos sociais que combinam um duplo pertencimento, classista e tnico, e que se associam resistncia globalizao neoliberal. O ponto de partida foi o levante indgena-campons do Equador,
que se estendeu pelo mundo andino, Bolvia, Mxico e Guatemala.
Na Argentina, h alguns desses movimentos, basicamente urbanos
(piqueteros, fbricas recuperadas, assembleias de vizinhos), que
tambm se opuseram e se opem ao neoliberalismo. O particular
desse segundo momento que ele tem posto em discusso a legi220 timidade dos regimes democrticos, interceptando e at colidindo
com o Estado.

Ao trabalhar nos interstcios da relao entre histria e memria, estamos particularmente atentos s modificaes que sofrem as
representaes e os imaginrios bem como aos roteiros que as distintas organizaes e coletivos vo estruturando para dar conta de
suas trajetrias. Cremos que, ao revisar a emergncia dos novos
movimentos, podemos rastrear comportamentos que do conta de
identidades forjadas num largo processo de luta. Como entender e
explicar a emergncia do movimento de povoadores na rea perifrica da Grande Santiago sem considerar a experincia do poder
popular? Que dizer do Movimento Piquetero na Argentina que tem
recuperado prticas operrias do final do sculo XIX e comeo do
XX? Como entender o comportamento dos camponeses bolivianos
sem considerar a luta dos mineiros e a experincia da Revoluo de
1952? Que dizer da produo intelectual de mulheres ex-combatentes da rea Ixil na Guatemala?
Devemos trabalhar, como salientei no incio do artigo, numa
tenso entre as condies objetivas e uma anlise especfica dos
imaginrios, revisando sua construo identitria, que a que os
singulariza e que permite que sejam reconhecidos. Muitas vezes o
teor da reivindicao, o especfico daquilo que requerem, a suposta
espontaneidade que lhes atribuda pelos meios de comunicao,
ou inclusive pela represso que atribuem, impede uma problematizao ajustada. Por exemplo, o enfrentamento de uma comunidade
mapuche em Chubut com um conhecido apresentador de televiso,
Marcelo Tinelli, ou em outro caso com os empresrios italianos
Benetton, no d conta de reivindicaes de autodeterminao e
aes de resistncia frente ao Estado provincial e nacional, que no
somente remetem ao ato genocida levado adiante por Julio A. Roca,
como tambm a uma experincia urbana que tem mobilizado, com
forte carter etrio/tnico/de classe, uma liderana jovem e decidida.
Proponho que pensemos as distintas identidades, como diz
Rojas-Mix (2006), de um modo dinmico, apelando ao gerndio
221
sendo e no de modo essencialista.

Em relao perspectiva da histria oral, pertinente assinalar


que no cremos que seja possvel equipar-la a um saber especfico
ou a um tipo particular de histria, j que o fundamental para qualquer historiador a tarefa de interpretar os documentos, sejam eles
escritos, materiais ou orais. Enquanto metodologia ou estratgia de
aproximao, a histria oral remete a uma dimenso tcnica, mas
tambm a uma perspectiva terica que se enriquece com o aporte de
outras disciplinas, contando com uma especificidade e remetendo a
uma srie de problemas. Ela possui caractersticas, preceitos e atributos distintos, mas, especialmente, produes que evidenciam resultados peculiares. No somente um mtodo, mas um movimento,
como diz Eugenia Meyer, uma ferramenta de trabalho imprescindvel para a anlise do passado recente e tambm um instrumento de
denncia.
No podemos deixar de observar que a narrao no somente
d conta de algo que ocorreu, mas tambm se constitui ela mesma
em um evento que tem efeitos sobre os comportamentos coletivos e
individuais (PORTELLI, 2005, p. 36). A diferena essencial que se
coloca no tratamento da fonte oral justamente o tipo de pergunta
que podemos realizar e que pode superar o limite da informao,
para dar conta da representao. As fontes orais nos dizem no
somente o que as pessoas fizeram, mas o que se desejava fazer, o que
acreditavam estar fazendo e o que agora pensam que fizeram (PORTELLI, 1991, p. 42). a especificidade que Pollak (2006, p. 43) assegura quando se refere sensibilidade epistemolgica aguada com
a qual devem trabalhar os investigadores a partir dessa perspectiva.
Nos anos 1960, a proposta foi descobrir vozes daqueles que
no haviam sido escutados, uma espcie de potencial ideolgico
liberador, [] a noo de democratizar a prtica historiadora propriamente dita, o que talvez correspondeu a um momento poltico
(JAMES, 1995, p. 44). Mas, seguindo Thompson (1978), cremos que
esse intento de democratizao foi um sonho irreal. Mesmo assim, a
222 histria oral segue representando uma boa ideia democrtica, tanto

que inclusive, e principalmente, incorpora sujeitos que seriam


excludos de uma histria mais tradicional.
Levar adiante essa tarefa no implica dar a palavra queles que
optaram pelo silncio, nem tentar iludir com interpretaes aleatrias, sem integrar na interpretao todo o material reunido: as
entrevistas realizadas e as rejeitadas, os resultados obtidos e as dificuldades da investigao.
Buscamos colaborar, no somente recuperando a palavra dos
que perderam, porque nesse caso continuaram perdendo, mas revisando e dando conta de que o sculo XX e o que vivemos do XXI tm
sido um perodo de atrocidades, o qual tambm implicou obteno
de direitos e revolues, como bem destacou Alessandro Portelli, em
junho de 1998, na X Conferncia de Histria Oral, no Rio de Janeiro.
Parafraseando Thompson (1978), podemos dizer que uma das
coisas mais lindas do nosso ofcio quando vemos que as pessoas
se sentem melhor, porque puderam contar sua histria; agora no
podemos ir to a fundo, ser to profundos como os psicanalistas,
j que no estamos formados nessa disciplina e nosso objetivo est
contextualizado a partir das transformaes ou permanncias sociais
(JAMES, 1995, p. 47). Nossa anlise se enriquece ao registrar e interpretar aspectos que a psicanlise tem definido como memria e
represso, sexualidade e fixaes, mas que so difceis de aplicar, no
somente por conta da especificidade da disciplina, mas, sobretudo,
porque trabalhamos com o lembrado mais do que com o reprimido,
mesmo que tambm tratemos de interpret-lo. Outras disciplinas
podem contribuir com ferramentas, mas devemos continuar definindo nossa prpria bagagem.
Pode parecer que, com a observao anterior, desacreditamos
ou desmerecemos nossa investigao, mas o que procuramos nos
centrar na peculiaridade da anlise que realizamos, atendendo s
mudanas e permanncias na diacronia, inscrevendo-nos na totalidade. Nosso desafio conjugar a no uniformidade da experincia
humana com a pretenso de generalidade e explicao da cincia 223

social. Luisa Passerini (1978) e Ronald Grele (1991), quando abordaram a subjetividade e a qualidade textual do testemunho oral, destacaram justamente que se trata de uma oportunidade nica.
Bem, necessrio distinguir o que e como ocorreu do que se
narrou, j que uma questo metodolgica que inclusive pode ser
complexificada, ao cruzarmos a fonte oral com fontes mais tradicionais, escritas ou materiais. Isso implica que no podemos ignorar
que se trata de narraes institudas e que, portanto, sua verificabilidade merece o mesmo tipo de reparo. A informao documental a
que recorremos no nos servir para provar a exatido da fonte oral,
mas para interpret-la essencialmente.
Nosso objetivo contribuir para revelar subjetividades, para que
no fiquem presas ao passado, repetindo o trauma de modo circular, mas que se inscrevam numa perspectiva identitria histrica e
inclusiva.
Parafraseando Pablo Pozzi (2008, p. 8), pretendemos no
somente ser historiadores orais, mas historiadores, tratando de utilizar todas as fontes possveis. Somente um mau historiador utilizaria apenas uma parte do corpus documental o qual poderia acessar
(POZZI, 2008, p. 8).
Seguindo Thompson, entendemos que histria uma forma
dentro da qual lutamos, e muitos tm lutado antes de ns, buscando
no um saber indolente, mas marcas e traos para compreender
nosso presente e construir um futuro mais justo. Assim, se trabalhamos com histria oral, porque ela nos permite compreender e
documentar melhor temas bsicos, possibilitando conhecer e entender como experimentaram e manejaram distintas circunstncias os
sujeitos nos quais centramos nossa anlise: redescobrimos subjetividades, valorizamos os testemunhos e os transformamos em fontes
essenciais para a histria recente.
Atendendo s particularidades de nossa tarefa, devemos destacar que a construo no implica somente a informao documental,
224 mas as mesmas fontes, o que revela questes metodolgicas impor-

tantes: em princpio, a entrevista um dilogo com adequaes em


relao a certos esquemas ou pautas acerca de um problema ou de
questes determinadas, tendo um propsito profissional, e ela supe
um processo de ao recproca; uma comunicao interpessoal,
estabelecida entre o investigador e o sujeito. Sua natureza oral, mas
tambm temos a oportunidade de captar os gestos, a transpirao, o
pranto, os tons de voz, as nfases. Ns, entrevistadores, no somos
passivos, j que buscamos e provocamos reflexes e evocaes, quer
dizer, somos coautores, tendo a oportunidade de validar e ressignificar o narrado; e paralelamente, no momento da transcrio, revisitamos e interpretamos, avanando mais alm da questo lingustica
ou narrativa.
Poderamos assinalar que ambicionamos, atravs da histria
oral, obter informao de indivduos e grupos, o que tambm supe
a possibilidade de influenciar; ela uma ferramenta e uma tcnica
extremamente flexvel, capaz de adaptar-se a distintas condies e
circunstncias, permitindo colher dados relevantes e significativos e
superando a informao que nos pode proporcionar um documento
mais tradicional. Os mesmos sujeitos apresentam dados relativos a
suas condutas, opinies, desejos, atitudes, expectativas, que por sua
mesma natureza seriam quase impossveis de se registrar de outro
modo. bastante frequente detectar mentiras ou omisses. Pode-se
deformar ou exagerar respostas, mas ns, entrevistadores, temos a
possibilidade de controlar e validar o desenvolvimento, superando
obstculos, contendo silncios e, quantas vezes, prantos e dores no
superados.
No possvel formular normas ou pautas inquebrantveis para
levar a um bom termo, mas, obviamente, quem nos brinda com seu
testemunho merece todo nosso respeito e agradecimento, e recomendvel atuar com espontaneidade e franqueza, sem astcias ou
rodeios. Estamos construindo uma fonte a partir de um ato voluntrio, em mrito a uma tarefa que temos nos colocado previamente, e
225
que supe a separao sujeito/objeto.

Bem assinala Pollak (2006, p. 74) que a situao da entrevista


, ela mesma, da mesma forma que o escrito autobiogrfico, um
momento de testemunho e de reconstruo de identidade para a
pessoa entrevistada. um material muito rico em informao, j
que d conta das adaptaes e articulaes prvias e posteriores ao
fato ou problema que destacamos.
Os sujeitos que entrevistamos em nossa investigao frequentemente constituem uma memria contra-hegemnica denunciando
excessos como deteno, tortura, encarceramentos , constituindo-se em critrio de legitimao experiencial do ouvido, do visto e do
vivido, e que posto em funcionamento atravs de uma reelaborao
e codificao lingustica, numa situao de comunicao determinada (SCHRMANN, 2004, p. 2).
Em nossa anlise propomos aplicar a perspectiva da histria
vista de baixo, j que nos permite rever a histria das grandes personalidades e dos grandes fatos para fazer uma sntese mais rica, fundindo a experincia da gente comum com temas mais tradicionais da
histria. Agora, nesse reconhecimento da histria vista de baixo est
implcito a existncia da estrutura e do poder social que esto permeando a mesma realidade vista de cima. Bem sabemos que o poder
impe esquecimentos e memrias, mas os que resistem necessitam
conservar seu passado, especialmente aquele que busca ser invisibilizado; e, muitas vezes, a memria preservada por aqueles que perderam os de baixo nos canaliza a buscar em arquivos e repositrios
mais tradicionais, enriquecendo nossa anlise. Bem assinala Adolfo
Gilly (1986, p. 19) que a gente no se reconhece na histria que se
vangloria, mas naquela que lhe permite compreender seu passado,
discernir sua vida e entrever seu futuro.
Quando pensamos a classe operria, entendemos como definitivo o elemento subjetivo, quer dizer, sua conscincia, e cremos que
estar comprometidos com os trabalhadores levar adiante uma prtica social, uma linguagem e uma relao entre o intelectual e a vida
226 cotidiana que d conta dele.

A memria coletiva cumpre uma funo para a identidade de


um grupo social, desse modo favorecendo a integrao, e representa
a projeo de interesses compartilhados. Bem nos recorda Todorov
(2000, p. 51) que a representao do passado constitutiva no
somente da identidade individual a pessoa constituda de suas
prprias imagens acerca de si mesma mas tambm da identidade
coletiva. Em outras palavras: a organizao e a definio na conscincia dos de baixo, de sua identidade de classe frente aos de cima
o nico fundamento slido e possvel de uma renovada verso da
identidade [...] [que] somente se define, se reconhece a si mesma e se
conquista na luta. (GILLY, 1986, p. 113).
Considerando ento que h uma relao entre a memria social
e a identidade, sabemos que os atributos e valores desta estaro
influenciados pelos parmetros do grupo ou coletivo de pertencimento; e, portanto, a memria e os mesmos testemunhos se inserem numa linguagem e numa narrao prvia, que constituiro um
marco de comunicao e sociabilidade, o qual pode implicar uma
homogeneizao e estilizao. A considerao que desde o presente
se institui permitir ou no resolver seu valor exemplar.
Sendo a realidade intersubjetiva e considerando que os significados que as pessoas atribuem aos objetos e sucessos de sua prpria biografia se constroem na interao, a retomada de lembranas a partir
das narrativas dos prprios sujeitos central, porque mesmo os limites
ou distores das lembranas podem representar potencialidades teis
para reler e interpretar o passado ou para interpretar-se a si mesmo em
uma contnua reelaborao (MONTESPERELLI, 2004).
Como bem acentua Pollak (2006, P. 38-39), a construo da identidade um fenmeno que se produz em referncia aos critrios de
aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e se processa por
meio da negociao direta com os outros, portanto devemos pens-la como dinmica e dialtica, desde uma perspectiva no essencialista. Assim, quando a memria e a identidade esto suficientemente
constitudas, institudas e conformadas, os questionamentos e os 227

problemas levantados pelos outros no provocam a reconfigurao


nem no nvel da identidade coletiva, nem no da identidade individual j que funcionam por si s. Significativamente, em perodos
calmos, momentos em que diminui o conflito, as preocupaes com
a memria e a identidade so menores (POLLAK, 2006, p. 41).
Ao ter a oportunidade, em 2008, de visitar com os colegas da
UNIOESTE o Assentamento Antnio Companheiro Tavares, do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, localizado no
municpio de So Miguel de Iguau, e hoje o problematizando, penso
na pertinncia da noo de trabalho utilizada por Raphael Samuel
(1996) em Theatres of memory. Essa noo permite considerar a
memria no como o resultado imediato, mas como o produto de
uma prtica social formadora que se apropria do passado segundo
modalidades especficas. Ao revisar o material fotogrfico, destaca-se
a construo, a necessidade de suportes materiais (lugares, imagens,
discursos), instrumentos e prticas (comemoraes, atos, homenagens) (CHAUVIN, 2005, p. 98).
Assim, a conscincia se fundamenta num passado compartilhado, e quando evocamos quem somos, estamos tambm nos
referindo a quem somos e a quem queremos ser: memria, histria e identidade se fundem indissociavelmente num mesmo ato
(RIVERO; BELLELLI; BAKHURST, 2000, p. 382).
Diante da questo em debate, tambm pertinente atender
necessidade de distinguir as identidades atribudas, frequentemente
de cima, e as identidades reivindicadas ou contra-hegemnicas nas
quais centramos nosso interesse.

228

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230

3. Que a diferena no se converta


em desigualdade: organizaes sociais
e histria oral na Argentina contempornea
Pablo Vommaro
Traduo: Robson Laverdi
As reflexes que apresentamos foram formuladas a partir do
trabalho com duas experincias de organizao social: o Movimento de Trabalhadores Desempregados de So Francisco Solano
(MTD de Solano), que nasceu em 1997 em Quilmes, sul da Grande
Buenos Aires; e as ocupaes de terras e construo de assentamentos urbanos que se constituram na mesma rea entre agosto e
novembro de 1981.
O principal objetivo de nossa pesquisa compreender as configuraes polticas, subjetivas e produtivas das organizaes sociais
urbanas de base territorial e comunitria que surgem na Argentina a
partir do final da dcada de 1960 e comeo da de 1970.
Quando escolhemos trabalhar com organizaes sociais contemporneas, a metodologia proposta pela histria oral se apresenta como uma ferramenta extremamente frutfera por permitir
nos aproximar das produes subjetivas de seus integrantes, seja no
nvel individual ou coletivo. Por isso, para ns, a histria oral no
constitui somente uma metodologia, mas tambm uma forma de se
aproximar da realidade, uma perspectiva a partir da qual indagar as
problemticas e conflitos que atravessam a vida dos sujeitos com os
quais trabalhamos. , portanto, um aporte de formulao terico-conceitual que nos permite compreender a realidade social, para
231
poder, ento, transform-la.

O trabalho a partir da histria oral resgata, destaca, valoriza e


pe em relevo as diferenas, alm de ajudar a no reproduzir desigualdades do presente enraizadas em processos histrico-sociais
do passado. Muitas vezes, ao lidarmos com outras fontes, como as
documentais, estatsticas, etc., essas diferenas so negadas ou so
mais dificilmente assumidas, e as desigualdades so perpetuadas.
Aproximarmo-nos dos testemunhos dos protagonistas dos processos histricos permite reverter as desigualdades sociais reproduzidas muitas vezes nos relatos da historiografia oficial ou tradicional.
Por outro lado, trabalhar a partir da oralidade possibilita assumir a
diferena como fortalecimento e no como debilidade, valorizando
os processos de singularizao e subjetivao como processos de
constituio de sujeitos polticos que no so unvocos nem homogneos, mas singulares. Desta maneira, partir da diversidade, da pluralidade, da multiplicidade implica reconhecer a diferena. Contudo, a
histria oral nos permite descobrir que a diferena potencializa. No
significa necessariamente debilidade j que no divide, permitindo
construir o que comum sobre bases slidas, assumindo as complexidades, conflitos, ambiguidades e contradies das subjetividades e
das relaes humanas.
Pr em relevo o que comum no significa tentar homogeneizar
a organizao social com a qual trabalhamos ou apagar as diferenas
que lhe so inerentes e constitutivas. Ao contrrio, uma das maiores riquezas desses tipos de organizao poder trabalhar a partir
das diferenas, das diversidades, tentando construir o comum. Quer
dizer, a capacidade de voltar-se potencializa o heterogneo, o mltiplo, o diverso, evitando que se transforme em desigualdade.
Alguns testemunhos de nossos entrevistados nos permitem pensar e aprofundar essas problemticas.
Uma das entrevistadas, M.,103 membro do MTD de Solano, nos

232

103 Manteve-se o anonimato dos entrevistados por uma deciso exclusiva do autor. As entrevistas foram realizadas para uma tese, por equipes de pesquisa que coordenam o Centro
Cultural de Cooperao e por pesquisadores do Programa de Histria Oral, da Faculdade
de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires (UBA).

dizia o seguinte sobre essa questo:


[...] as diferenas creio que existem, neg-las me parece
que seria algo que no nos enriquece. A busca que estas
diferenas sejam algo para enriquecer e no para separar, e
que as diferenas no sejam desigualdades. Creio que a est
um pouco a ideia. Da mesma forma, creio que uma busca,
creio que de preconceitos estamos cheios e as diferenas so
muitas no todo. [...] isso, ir construindo partindo da diferena como algo positivo e no como algo que se veja como
desigualdade.104

Outro, J., acrescentava:


Assim, emerge a ideia que a multiplicidade disperso, que
necessrio criar uma ferramenta que aglutine toda a massa
proletria para emancipar os povos. Ou seja, que necessrio driblar para hegemonizar e ganhar a revoluo. Isso para
ns mentira.105

Um documento produzido pela mesma organizao que os


entrevistados antes citados integravam propugnava:
[] pretendemos abordar o tema de uma perspectiva que
contemple que no somos iguais entre os seres humanos,
que estas diferenas que existem entre uns e outros, e que
sejam bem-vindas, so fundamentalmente uma condio
de horizontalidade como uma relao social entre desiguais, que se constri coletivamente em funo do conjunto, superando a centralidade do poder [...]. (MTD DE
SOLANO, 2003).

A busca que as diferenas no sejam desigualdades, dizia


nossa entrevistada M. e argumentava claramente a questo. Ento
104 Entrevista realizada com M. (mulher, membro do MTD de Solano, Bairros San Martn e
Santa Rosa), em Solano, em 2003, por Pablo Vommaro.
105 Entrevista realizada com J. (rapaz, membro do MTD de Solano, Bairro San Martn), em
Solano, em 2002, por Pablo Vommaro.

233

descobrimos que no se trata somente de dar conta e assumir as diferenas e de reverter as desigualdades, mas tambm necessrio que
as diferenas no se tornem desigualdades. Dito de outra maneira,
que o necessrio processo de assumir e sublinhar as diferenas possibilite a construo da igualdade.
Essa igualdade pode ser entendida tambm como a construo
do que comum, de espaos e relaes sociais comuns que permitam estender um projeto coletivo para alterar o estado de coisas existente em uma situao determinada.
A construo de comunidade, ento, permite que a diversidade
que caracteriza o territrio, as diferentes situaes individuais e a
violncia que domina a vida do bairro se transformem em capacidade criadora ao organizar-se em um projeto coletivo, comunitrio.
Se o poder (o Estado, o capital) separa, diferencia, classifica, divide,
as organizaes que investigamos se propem a reunir, integrar,
compor, igualar. Os vnculos baseados na alegria e na afetividade
desempenham um papel importante nesses processos.
Chegamos assim, a partir do caminho aberto pelo trabalho com
a histria oral nas organizaes sociais, a dar conta dos processos de
constituio de redes de relaes sociais comunitrias situadas territorialmente. Essas redes organizativas (intersubjetivas, interpessoais) mantm, a partir do territorial, um sentido amplo, um nvel de
organizao do bairro mnimo, no visvel, que pode se condensar
ou se concentrar (fazer-se visvel) em determinados momentos nos
quais confluem outros fatores.
As redes que analisamos esto constitudas por relaes de confiana, solidariedade e afinidade diversas como: parentesco, vizinhana, amizade, f religiosa, convices polticas, entre outras. E
esto sustentadas em prticas que podem ser mais ou menos visveis
a partir do exterior delas mesmas. Desta maneira, as redes territoriais mantm a organizao mais alm das condies polticas conjunturais imediatas ou em paralelo a elas.
234
Certamente o processo de constituio dessas redes est deter-

minado por elementos prprios da dinmica local, que, por sua vez,
possuem caractersticas especficas do sistema social dominante
(capitalismo e suas mudanas a partir de 1968-1973). Podemos
conceituar isto defendendo que a organizao social algo permanente, constitudo a partir dos territrios, e que o que caracteriza um
momento histrico determinado o modo pelo qual se (re)constitui ou (re)significa essa organizao e a sua qualidade, que pode ser
difusa ou concentrada.
Se identificarmos essas redes de relaes sociais como a trama
a partir da qual se constituem no unicamente as organizaes
sociais, o valor da histria oral se amplia, j que ela uma via de
ingresso privilegiada para poder apreender suas caractersticas e
dinmicas fundamentais.
Deslocamo-nos assim a outra dimenso significativa para compreender as configuraes polticas e subjetivas das organizaes
sociais: o processo de politizao dos espaos cotidianos. Uma poltica do e a partir do cotidiano que torna polticas (comuns, pblicas106 e conflitivas107) relaes e dimenses que antes permaneciam
no mbito do privado ou do ntimo.
Portanto, ao nos aproximarmos das prticas cotidianas que os
sujeitos sociais manifestam em diferentes espaos (lugares de produo, mbitos territoriais, familiares), a metodologia da histria oral
nos convida a explorar uma ampla gama de possibilidades para compreender os processos de ruptura e continuidade que protagonizam.
Os valores, saberes, linguagens, prticas, experincias e tradies
que se transmitem de gerao em gerao so possveis de perceber
atravs dos testemunhos orais dos protagonistas que produzem sua
experincia de vida. Assim, a entrevista, entendida como espao de
inter-relao, dilogo e intercmbio, permite-nos aproximarmos dos
106 Em nossa anlise, seguindo Virno (2002), pblico no sinnimo de estatal. Esse autor
concebe os espaos pblicos no estatais como mbitos de desdobramento do comum em
forma de autogesto, a partir das organizaes sociais, sem depender necessariamente do
Estado.
107 Conflito entendido como expresso poltica do antagonismo social.

235

sujeitos que protagonizam os processos histricos que estudamos,


produzindo um deslocamento mltiplo acerca dos problemas de
estudo que construmos.
Por um lado, ficamos prximos dos sujeitos histricos, encurtando a suposta distncia que deve existir entre o investigador e o
objeto investigado. Essa diluio da distncia que fundamenta boa
parte do conhecimento social permite recolocar a relao sujeito
investigador objeto investigado, para propor outro vnculo em que
as duas partes so reconhecidas como sujeitos e o conhecimento
produzido a partir dessa relao , ento, subjetivo e situado.
Por outro lado, a partir desse ponto, na entrevista so colocadas
em jogo as subjetividades daquelas pessoas que a constituem. Longe
de negar as implicaes subjetivas, a entrevista, enquanto espao que
pode transformar os seus protagonistas, permite encarar as modalidades de objetivao dos problemas e processos estudados a partir
do reconhecimento e da assuno das subjetividades que se pem
em jogo e se reconfiguram a. Assim, a entrevista como acontecimento, expresso e atualizao de processos anteriores e tambm
em sua dimenso performativa um espao de transformao, de
criao ou inovao.
Ademais, construir o testemunho oral (uma fonte oral) implica
assumir-se a partir de um no saber ou assumir que h outro sujeito
que, no estando legitimado como investigador ou intelectual,
conhece elementos sobre um fato ou processo que ns no conhecemos. A histria oral significa tambm, ento, reconhecer que
existem outros saberes e outras formas de conhecimento. Se pretendermos que a partir da fonte oral podemos interpretar, compreender
(e transformar) a realidade social que estudamos, temos que ser tambm capazes de assumir esse outro saber, esse outro conhecimento,
em todas as suas dimenses e implicaes, ainda quando questionem nossos prprios pressupostos.
A histria oral, assim como a entendemos, permite construir um
236 dilogo sistemtico entre dois sujeitos com capacidades e potencia-

lidades singulares: o investigador, o qual indaga acerca de um processo, organizao ou acontecimento histrico, e o sujeito, o qual
protagoniza o processo que o primeiro quer conhecer. Revisitamos
assim o problema da diferena e da desigualdade. O intercmbio que
constitui a entrevista expressa essa relao dialgica que, ainda que
diferente, no tem por que ser desigual.
Avanando, o dilogo que buscamos tambm uma interpelao. E essa interpelao, se a assumimos, nos leva a redefinir e
repensar nosso trabalho. Provoca-nos a reconfigurar nossos conceitos e reformular as perspectivas a partir das quais estudamos
alguma problemtica. Estimula-nos a sermos criativos e inovar no
processo de construo do conhecimento. No repetir frmulas e
tampouco nos repetirmos, seno repensar constantemente sobre
nossa tarefa.
Dessa maneira, a histria oral permite questionar a possibilidade
de construir um conhecimento absoluto e objetivo, incorporando
ao processo de investigao tanto a voz do investigador como a do
sujeito entrevistado.
Sem desconhecer a utilidade de outras fontes, como as documentais, que muitas vezes temos que analisar em relao com os testemunhos orais, consideramos que, para realizar uma histria integral
das organizaes sociais contemporneas (poderamos estender isso
e dizer uma histria integral das classes subalternas, dos trabalhadores, dos produtores), necessitamos valer-nos das fontes orais.
Dizemos que no descartamos para nada o trabalho de investigao histrica a partir de fontes documentais. Ao contrrio, em
nosso trabalho analisamos tambm os textos produzidos pelas organizaes sociais, assim como os documentos oficiais e jornalsticos.
Apresentam-se, assim, pelo menos quatro opes de trabalho
com documentos: os produzidos pelas organizaes sociais; as fontes
jornalsticas; os documentos oficiais; e os documentos escritos por
outras organizaes vinculadas de alguma maneira problemtica
237
que estudamos.

O valor das primeiras e das ltimas enorme j que permite


aproximarmo-nos de dimenses que muitas vezes podem estar
esquecidas ou silenciadas nos testemunhos orais, assim como complexificar vises e completar dados ou processos.
A respeito das fontes jornalsticas, muitas vezes questes relacionadas s organizaes por ns estudadas aparecem como crnicas
em sees policiais dos jornais de modo que os testemunhos includos so mutilados ou tergiversados. Chegamos a a uma nova problematizao que nos abre a histria oral: a maioria das fontes (em
especial, as documentais), com as quais trabalham os historiadores,
so produzidas pelas classes dominantes.108 Reproduzem, como
dizemos, as desigualdades e injustias passadas e presentes.
Ao contrrio, a histria oral permite aproximarmo-nos das subjetividades e das prticas cotidianas de quem, como protagonistas
dos sucessos que estudamos, foi silenciado pelos produtores daquelas fontes.
Assim, as fontes orais nos permitem indagar, por um lado, na
memria e na lembrana. Por outro, descobrir um ponto de vista
ou uma perspectiva particular sobre um processo, que guarda uma
relao complexa e mediada com o relato das coisas tal como aconteceram. 109 De todo modo, o que h que explicar que, ao trabalhar
com a oralidade, interpretamos a histria das percepes atuais dos
sujeitos sociais os quais protagonizaram as experincias que estudamos, as que chegam atravs das entrevistas realizadas. Quer dizer,
trabalhamos com percepes, recordaes, sensaes e saberes, com
esquecidos e silncios, sobre um passado mais ou menos longnquo,
que esto construdos a partir da vivncia daqueles dias, a experin-

238

108 Pablo Pozzi (2008, p. 7) explica dizendo que se no fosse pela histria oral em geral,
tudo o que podemos fazer ver os oprimidos atravs das fontes gestadas pelos opressores.
Matizamos essa afirmao ao considerar, em nosso trabalho, documentos produzidos por
organizaes sociais, de onde tambm expressam suas vozes.
109 Por razes de espao, no discutiremos mais a fundo as implicncias do trabalho com
fontes orais neste ponto. Para exemplificar: Necoechea e Pozzi (2008); Benadiba e Plotinsky
(2005) e Necoechea (2006). Este ltimo trabalha a sugesto de noo de ponto de vista para
as anlises dos testemunhos a partir da histria oral.

cia vivida nos anos transcorridos e o presente no qual se produz a


entrevista.
Por outro lado, a situao da entrevista tem um valor metodolgico que no se pode desligar de seu valor poltico. Encarar uma
entrevista tambm estar disposto a assumir um compromisso poltico. No s de indagar as subjetividades polticas do entrevistado,
mas tambm colocar em jogo as do entrevistador. Assim, a histria
oral uma aposta poltica para construir uma histria distinta da
hegemnica, que expresse outras vozes e ponha em relevo outras
prticas e produes que no so hegemnicas nas sociedades nas
quais vivemos.
Histria oral tambm significa assumir o compromisso de resgatar (valorizar) a memria coletiva expressa no nvel social e individual. Desde j, existem mltiplas relaes entre ambas as memrias
que no sero matria de anlise neste texto.
O compromisso de quem faz histria oral implica, ademais,
iniciar uma abertura da investigao at outros espaos e sujeitos.
Reconhecer, como dizemos, que os nicos que produzem conhecimento no so somente aqueles que habitam a universidade. Pr em
relevo os saberes e as experincias dos sujeitos sociais que integram
as organizaes com as quais trabalhamos. Construir conhecimento
junto com eles, reconhecendo que cada um pode aportar elementos distintos, mas igualmente valiosos e significativos. Isso tambm
significa facilitar para que as organizaes sociais possam construir
sua prpria histria. No que faamos nossa histria por eles, nem
sobre eles, sim que construamos uma histria com eles, a partir de
suas vozes.
Chegados a este ponto, nos parece necessrio realizar alguns
esclarecimentos. Por um lado, que as concepes apresentadas
acerca da histria oral tentam no ser substancialistas ou essencialistas. possvel recorrer aos caminhos que abrem o trabalho com os
testemunhos orais somente se estamos dispostos a assumir uma postura poltica, terica, conceitual e metodolgica alternativa domi- 239

nante no campo acadmico. Por isso concebemos o fazer da histria


oral como a situao de um compromisso com a expresso de uma
disposio a encarar certas questes que no so naturais, nem esto
dadas, mas que devem ser produzidas. Temos que estar preparados
para assumir que no sabemos sobre algo, sendo capazes de escutar
o outro. Temos que assumir outros saberes, apreender os processos
de dominao e resistncia que participam do cotidiano: as redes
sociais de organizao (e solidariedade) em nvel territorial, as prticas inovadoras e as alternativas que produzem os sujeitos como
expresso do antagonismo social.
Por outra parte, trabalhar com a histria oral implica assumir
tambm um conjunto de problemas, muitos dos quais no poderemos dar conta aqui, mas queremos somente deixar marcados.
Podemos comear mencionando a polifonia e polissemia que so
inerentes ao trabalho com fontes orais como assim concebemos.
Essa multiplicidade de vozes e de significados se constitui de forma
conflitiva, elas se sobrepem, se contradizem e se confrontam; se
compem e se integram constituindo uma perspectiva a partir da
qual se parte para interpretar os processos histricos.
Em segundo lugar, enfrentamos o que podemos denominar o
problema do erro e da reconstruo parcial. Se somos capazes de
trabalhar com a histria oral dessa perspectiva, podemos, entretanto,
ver que eles no so obstculos, mas condies bsicas (pontos de
partida) a partir das quais se produz a histria com base no testemunho oral. Coincidimos com Adleson, Camarena e Iparraguirre
(2008, p. 47), todos, retomando Todorov e Labov, sustentam que a
histria no se conta quando se adere a uma cronologia objetiva,
mas quando se separa dela para incorporar sentidos e conceitos ou
juzos subjetivos. No fim, concordando novamente com Necoechea
(2006), o testemunho oral um ponto de vista possvel entre outros.
Tal qual se trabalhssemos com qualquer outro tipo de fonte, o
importante dos testemunhos no a veracidade dos mesmos, mas
240 sim a possibilidade de rastrear sentimentos atravs do tempo, acres-

centa Pozzi (2008, p. 5).


Para concluir, deixaremos colocadas algumas experincias concretas a partir das quais pudemos formular, ao menos parcialmente,
os elementos que expusemos neste trabalho.
Como dissemos, nos aproximarmos das organizaes sociais de
base territorial e comunitria a partir da histria oral nos permitiu
indagar sobre os processos de construo de subjetividades, nas formas de produo material e simblica dos sujeitos. Ao mesmo
tempo, possibilitou-nos identificar alguns dos traos que caracterizam as organizaes sociais na atualidade e que mencionamos de
forma incipiente: politizao do cotidiano, territorializao, construo de vnculos comunitrios, o que podemos denominar poltica
do corpo presente (vinculada tanto s formas de ao e democracia
direta como ao envolvimento da totalidade do corpo na prtica poltica e social vital dos sujeitos), entre outros.
Particularizando alguns elementos prprios de nossos casos, o
trabalho com as fontes orais tornou possvel que recolocssemos, a
partir de alguns pressupostos tericos, at mesmo aspectos da metodologia de nosso trabalho. Mencionaremos apenas alguns dos fatores que identificamos.
Em primeiro lugar, permitiu-nos estabelecer a relao que existia
entre a origem do MTD de Solando em 1997 e o processo de ocupao de terras e construo de assentamentos de 1981. Isso modificou
a forma pela qual encaramos o estudo do MTD e nos levou a investigar os processos de ocupao e assentamento do incio dos anos
1980.
Em segundo lugar, possibilitou que indagssemos sobre as configuraes subjetivas dos ocupantes e assentados dos anos 1980, em
particular no que se refere sua concepo acerca dos prprios direitos e legalidade da ao que estavam empreendendo. Isso mudou
nossa opinio em relao a essas questes e nos levou a discutir a
maioria dos estudos, concebidos at o incio de nossa investigao,
241
sobre esses processos.

Por outro lado, nos aproximamos de outra dimenso das


configuraes subjetivas dos sujeitos com os quais trabalhamos.
Nesse caso, referindo-se sua concepo acerca da terra e da moradia. Tambm discutimos aqui a maioria dos textos produzidos sobre
essas questes. As entrevistas puseram em relevo que a terra um
lugar para viver.110 Todavia, a terra se ocupa, j a moradia um
projeto de vida.111 Dessa maneira, a terra aparece como uma conquista a se conseguir de forma coletiva e mediante a ao direta de
ocupao, enquanto a moradia se apresenta como um processo de
mais longo prazo e com uma incumbncia mais pessoal ou familiar.
Em quarto lugar, o trabalho com a histria oral abriu-nos a
porta para os processos de constituio de redes de relaes sociais
de organizao. Essa trama relacional, surgida a partir do territrio, difcil de ser vista e compreendida fora da prpria experincia
de organizao social. Essas redes capilares tm a capacidade de ser
difusas e concentradas. Ou melhor, so invisveis (parece que no
est, nos dizia I. em uma entrevista112) em muitos momentos, e se
fazem visveis e concentradas quando a situao o requer (a necessidade de terras, certa composio ou situao local e o acontecimento
das ocupaes, por exemplo). Essa caracterstica se faz de um ponto
inacessvel, inapreensvel, tanto para o poder externo (governamental, por exemplo) como para aqueles a quem estamos indagando
no presente. Contudo, como dissemos, os testemunhos permitiram
aproximarmo-nos deles e entrever sua dinmica e atualidade.
Isso se vincula ao ltimo ponto que assinalamos neste artigo: a
continuidade ou persistncia da organizao social no tempo. Isso
no quer dizer que no havamos identificado rupturas, mudanas
e elementos dissimulveis; contudo, as entrevistas nos permitiram

242

110 Entrevista realizada com M. (mulher, 69 anos, protagonista de ocupaes e assentamentos), em Solano, em 2005, por Pablo Vommaro.
111 Entrevista realizada com I. (mulher, 50 anos, membro das CEBs e colaboradora da Igreja
de N. S. de Itati, durante as ocupaes de 1981, habitante do bairro velho de La Paz), em
Solano, em 2006, por Pablo Vommaro.
112 Entrevista com I. Ver nota 112.

dar conta tambm da vigncia das relaes sociais de solidariedade


e organizao que permanecem, difusas, reatualizadas a partir da
dinmica territorial e com a capacidade de se reativar quando a situao o requer.
Para concluir, assinalamos que a retroalimentao que derivamos do intercmbio e dilogo com os sujeitos sociais que protagonizam os processos estudados nos coloca permanentemente novos
desafios, novos problemas e novas formas de olhar e desenvolver
nosso trabalho. Se quisermos ser fiis a esses problemas e construir
conhecimento histrico significativo e transformador, temos que ser
capazes de assumir esses caminhos tanto quanto esses compromissos
em toda sua profundidade.
Referncias
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VIRNO, P. Gramtica de la multitud. Trad. Eduardo Sadier. Buenos Aires: 2002.
Mimeografado.

243

TE

PAR

PARTE V
MIGRAO, MEMRIA E IDENTIDADE

1. Migrao, memria e identidade: relatos


de histria oral no contexto
de histrias familiares e nacionais
Alexander Freund
Traduo: Adriano Steffler
Reviso da traduo: Mri Frotscher
No prefcio de sua traduo do estudo de Maurice Halbwachs
sobre a memria coletiva, Lewis A. Coser relata uma experincia
pessoal: quando emigrou para os EUA, em 1941, tinha aproximadamente 30 anos. Rapidamente ele travou amizade com americanos
que tinham a mesma idade que ele. Entretanto, apesar de todos os
interesses comuns que partilhavam, algo bloqueava a comunicao
entre eles. Ele percebia que havia uma barreira intransponvel entre
ele e seus amigos e conhecidos americanos. Ento Coser se lembrou
dos trabalhos de Halbwachs, que lera na Sorbonne, em 1933, depois
de ter se mudado de Berlim para Paris. Os estudos de Halbwachs
sobre a memria coletiva ajudaram-no a explicar a sua prpria leve
alienao, como ele a chamava, com relao aos americanos: os seus
amigos e ele no partilhavam de memrias coletivas o suficiente. Seja
a deificao dos jogadores de beisebol ou o primeiro beijo na high
school, Coser no conseguia associar nenhuma experincia, imagem
ou sentimento prprio com essas experincias culturais especficas.
E apesar de ele considerar os americanos, em geral, desinteressados
pela histria, muitas vezes ele no conseguia acompanhar as suas
aluses histricas. Tudo o que ele vivenciara nas trs primeiras dcadas de sua vida fazia pouco sentido para os seus amigos americanos. 247

O inverso tambm ocorria, pois ele via pouco sentido nas experincias da infncia e da juventude dos americanos (COSER, 1992, p.
21-22). Ele estava excludo da memria coletiva dos americanos, e
eles, da memria coletiva de Coser.
Desde os estudos fundamentais de Halbwachs, o conceito de
memria coletiva foi tornado preciso, especialmente por meio de
trabalhos de psicologia cognitiva e social (Bruner, Assmann e Welzer), bem como por meio das novas neurocincias (Schacter). Alm
disso, h vrios estudos empricos relacionados a determinadas
memrias coletivas, na maioria dos casos, memrias coletivas nacionais, como, por exemplo, a memria alem com relao ao Terceiro
Reich (Rosenthal, Welzer, dentre outros) ou a memria canadense
com relao I Guerra Mundial (Vance). No obstante, o fenmeno
fundamental descrito por Coser em sua obra foi muito pouco investigado at o momento: quando pessoas migram, elas no perdem
apenas a sua integrao memria coletiva de seu pas de origem; ao
mesmo tempo, elas adentram um ambiente cuja memria coletiva
lhes estranha. Essa dupla alienao e desorientao, muitas vezes,
descrita por migrantes atravs de uma imagem que expressa o fato
de se sentirem perdidos entre dois mundos ou at mesmo dilacerados. Isso ocorre comumente quando os imigrantes no tm a possibilidade de manter por anos e dcadas um contato com a sua antiga
ptria, de modo que eles logo ficam excludos da memria coletiva
de seu pas de origem. Muitos dos alemes por mim entrevistados,
os quais emigraram para os Estados Unidos da Amrica aps a II
Guerra Mundial, em sua maior parte, voltaram Alemanha pela primeira vez apenas 15, 20 ou 30 anos depois de sua emigrao. A maioria viu isso, na verdade, como uma bela experincia, porm, quase
todos tambm disseram que a Alemanha havia se tornado estranha
para eles, que ela no era mais a sua ptria, que eles no mais poderiam ou quereriam viver l (HARZIG, 1998; ANTOR; BROWN;
CONSIDINE, 2003, p. 3).
248

Diferentemente da lngua e das formas de convivncia e de comportamento externas, os imigrantes no conseguem apreender a
memria coletiva de sua nova ptria. De vez em quando, eles tero
uma ideia dessa memria coletiva, mas para eles, na maioria dos
casos, ela ser acessvel apenas num plano intelectual, mas no num
plano emocional. Em geral, a maioria dos imigrantes se integra econmica e socialmente de uma forma relativamente rpida e bem-sucedida, mesmo que muitas vezes isso exija grandes sacrifcios,
sobretudo nos anos iniciais. Mas, at agora, ainda no foi extensamente explorado at que ponto e de que maneira ocorre uma integrao s memrias coletivas do pas anfitrio.
Eu advogo a insero estratgica do conceito de memria coletiva na pesquisa sobre experincias de migrao. O conceito de
memria coletiva pode dar respostas a dois conjuntos de questes.
Investigar migrao e memria oferece, em primeiro lugar, respostas
a questes sobre identidade e, em segundo lugar, respostas a questes a respeito de poder social. Vamos primeiramente questo da
identidade. Com relao a esse assunto, no devemos nos restringir
identidade do indivduo, tampouco identidade de um grupo ou
subgrupo tnico (por exemplo, de um grupo poltico que se constitui
enquanto pertena tnica). Ao menos no Canad, essas focalizaes
da identidade individual e da identidade de grupos tnicos parecem
ser predominantes. A maioria dos estudos histricos trata de grupos
tnicos isolados, ao passo que a maioria dos estudos sociolgicos distingue grupos tnicos, dentre outros motivos, pelo fato de o governo
federal canadense orientar as estatsticas federais com base nesses
estudos. Em estudos menores, muitas vezes tambm se pesquisa a
histria de uma organizao tnica, seja ela a histria de uma igreja,
de um banco cooperativo ou de uma sociedade de canto. Todas essas
pesquisas certamente s teriam a ganhar se utilizassem as entrevistas
de histria oral no somente como meros conjuntos de fatos, mas
tambm inquirindo como a memria constituda e como cons249
truda de forma narrativa, em conjunto com o entrevistador.

Em pesquisas sobre identidade de grupos, no devemos negligenciar principalmente a identidade da famlia. Desse modo, podemos
desenvolver estudos fascinantes, que so dependentes da composio
da famlia (por exemplo, com relao sua origem tnica). Vejamos
dois breves exemplos no estudo sobre a Vergangenheitsbewltigung113
em famlias alems, em que se abrem duas grandes lacunas. Em primeiro lugar, at agora foram entrevistadas famlias alems apenas na
Alemanha, mas no no exterior. Em segundo lugar, na Alemanha so
indagadas apenas famlias alems; por outro lado, famlias com um
histrico de migrao so sistematicamente (inconscientemente?)
excludas (por exemplo, WELZER, 2002). Uma exceo o trabalho
de Viola Georgi, que inquiriu jovens alemes com um histrico de
migrao sobre a forma como so confrontados e como lidam com
o passado alemo nazista no que diz respeito s aulas e s excurses
de turma. Dessa forma, percebe-se que para esses jovens, provindos
de famlias de imigrantes, ocupar-se com o passado desempenha um
papel central no julgamento da identidade e da pertena na sociedade alem com origem na imigrao (GEORGI, 2003, p. 11). Por
outro lado, com relao a imigrantes alemes no Canad, percebe-se que a ocupao com o passado nazista desempenha um papel
igualmente importante e que ela influencia bastante decisivamente a
identidade canadense j h vrias geraes (FREUND, 2006; 2009).
O segundo grupo importante, que no pode ser negligenciado
no que se refere aos migrantes, a nao. No caso dos migrantes, isso
, evidentemente, no mnimo duplamente complicado, visto que se
tem pelo menos duas naes nas quais os migrantes desenvolvem a
sua identidade. Essas identidades esto intrinsecamente vinculadas
e em comunicao constante, por vezes, inconscientemente. Na tentativa de se situar e de se posicionar na memria coletiva da famlia
e da nao, ou seja, de modo a construir a sua identidade, os indivduos no so, todavia, autrquicos. Eles se referem a esboos coleti250

113 N. E.: Vergangenheitsbewltigung: as diversas formas pelas quais a sociedade alem lidou
politicamente com o passado nacional-socialista depois da II Guerra Mundial.

vos de identidade e deles so dependentes. Isso nos leva segunda


questo, que trata do poder social.
Essa segunda questo , em minha opinio, to importante
quanto a primeira: trata-se do problema sobre a ordem e o poder
social, que so instaurados pela memria coletiva. Tomemos, como
exemplo, a nao. Ela se constitui, em parte, por meio da memria coletiva, que no monoltica ou homognea, mas dominante,
hegemnica e direcionada a contramemrias marginalizadas. Talvez isso seja mais fcil de se compreender se, em lugar da memria coletiva, falarmos em discursos, pois geralmente esse o caso. O
Estado nacional organizado por narrativas mestras, que no so
apenas ensinadas em escolas, mas tambm impostas pela mdia e
pela economia. Das narrativas mestras tambm faz parte a narrativa sobre a formao histrica da nao.
Como exemplo, cito o Canad. Nesse pas h um grande consenso, em primeiro lugar, de que a nao teve origem nos campos de
batalha das guerras mundiais e, em segundo lugar, de que o Canad
tradicionalmente uma sociedade de imigrantes tolerante. O resultado a transfigurao de soldados e colonizadores em heris nacionais. O fato de os povos nativos terem sido quase exterminados pelo
imperialismo colonial e o de que os generais da classe alta incitaram
aos campos de batalha os filhos oriundos da classe proletria so,
entretanto, histrias que os estudantes canadenses, na maior parte
das vezes, aprendem apenas na universidade.
Em que medida essas histrias (ou mitos) organizam a sociedade?
Para proletrios, cujos filhos so estilizados como heris nacionais,
mais difcil protestar contra a ordem vigente ou se ver como vtima
de interesses ideolgicos e econmicos no caso do Canad, de interesses imperialistas e capitalistas. Imigrantes que so tornados heris
tm dificuldade para exigir os seus direitos, para criar uma empatia
com os povos nativos ou para se engajar na defesa dos direitos deles.
Evidentemente, essa afirmao est bastante reduzida e simplificada;
assim, a classe proletria manifestamente protestou durante e depois 251

das guerras, e sempre houve imigrantes que defenderam veementemente os direitos de outros. Mas, em princpio, esses mitos histricos
nacionais, que constituem parte da memria coletiva, socialmente
apresentam um efeito de organizao.
Os imigrantes precisam, afinal, se integrar a essas grandes narrativas. Isso um processo simples se eles acreditam nos ideais dessas
narrativas mestras, como, por exemplo, no princpio norteador do
liberalismo, de que toda pessoa responsvel pela prpria felicidade,
e tambm na liberdade democrtica, que muitos imigrantes no
conheciam ou conheciam apenas de forma restrita em seus pases
de origem. Conforme podemos ver, os imigrantes alemes do ps-guerra que vieram para o Canad tm dificuldades para se integrar
ao mito histrico dominante, segundo o qual a nao canadense foi
constituda nos campos de batalha das guerras mundiais. De forma
semelhante, difcil para alguns ex-cidados da Repblica Democrtica Alem acreditar que eles teriam simplesmente desperdiado
quarenta anos de suas vidas em uma ditadura de injustia, que eles
s iriam provar dos frutos da democracia e do capitalismo na velhice
e que eles ainda teriam que ter demonstrado gratido incondicional por isso. Ainda em 2009, ano em que foram comemorados os
vinte anos de queda do muro e os sessenta anos de Repblica Federal
da Alemanha, e no qual quarenta anos de Repblica Democrtica
Alem foram simplesmente silenciados, esses migrantes involuntrios, que, ao amanhecer, acordaram em um novo Estado, sem ter
dado um passo e sem ter atravessado nenhuma fronteira, tm dificuldade para se adaptar nova memria coletiva. Coser (1992, p.
22) observou uma alienao semelhante entre colegas soviticos no
comeo dos anos 1990, eles se sentiam coagidos a esfolar as suas
memrias coletivas como uma pele e a reconstruir um conjunto
completamente diferente de memrias coletivas.
Todavia, ns no devemos ver essas experincias de migrao
somente como uma histria da perda e da alienao. Trata-se tam252 bm de uma convergncia de diferentes memrias coletivas, que

pode levar a um profcuo intercmbio transcultural. Novamente, o


Canad um bom exemplo: a narrativa mestra que descreve o pas
como uma sociedade multicultural tolerante se imps apenas a partir dos anos 1970 e, na verdade, devido forte influncia de grupos
de imigrantes, que at os anos 1950 e 1960 ainda eram discriminados. Alm disso, nesse caso no devemos entender as experincias
de migrao como experincias extraordinrias. Numa sociedade,
o alienamento e o intercmbio de diferentes memrias coletivas
podem ocorrer tambm entre diferentes geraes e entre grupos
sociais distintos.
Espero que, com esses poucos pargrafos, eu tenha conseguido
elucidar brevemente que o conceito de memria coletiva significativo para que se possa compreender melhor experincias de migrao e outras experincias de estranhamento e de alienao.
O que tudo isso tem a ver com a histria oral, ou melhor, como,
nesse caso, a histria oral vem a propsito? At onde eu saiba, a
pesquisa emprica de memrias coletivas especficas se baseia, at
o momento, predominantemente em discursos de formadores de
opinio polticos, jornalistas, intelectuais, acadmicos e representantes de outras elites. Dessa forma, evidentemente e com frequncia, escamoteia-se o fato de que a memria coletiva pesquisada , na
verdade, a memria coletiva dominante, mas no a nica memria
coletiva. Alm disso, admite-se tacitamente que toda a sociedade
concorda com os discursos elitistas. Pode-se ver isso nitidamente nos
estudos sobre a superao do passado nacional-socialista alemo: a
respeito da assim chamada Vergangenheitsbewltigung h inmeros
livros sobre debates parlamentares, discusses publicadas a respeito
do monumento em memria ao Holocausto, a exposio acerca das
foras armadas alems durante a II Guerra, o Historikerstreit,114 o
debate em torno do livro de Daniel Goldhagen115 e outros eventos
encenados publicamente que envolveram debates sobre a memria.
114 N. E.: Historikerstreit: como ficou conhecido na historiografia alem o debate ocorrido
entre 1986 e 1967 acerca da historicizao do Holocausto.
115 Ttulo da edio em lngua portuguesa: Os carrascos voluntrios de Hitler.

253

No entanto, a forma como isso tudo acolhido pelo povo, para


ser franco, praticamente desconhecida. A respeito disso faltam as
fontes ou ento elas no esto arquivadas, e, por esse motivo, so
de difcil acesso. Somente alguns estudos, baseados em entrevistas, oferecem informaes sobre o assunto. Trata-se, na maioria das
vezes, do trabalho de psiclogos sociais, que de fato fazem entrevistas, mas as tornam annimas e no as arquivam. Um grande projeto de histria oral da Alemanha Ocidental, desenvolvido no incio
dos anos 1980 na regio do Ruhr, , at o presente momento, o mais
importante projeto de histria oral relacionado a essa questo (Niethammer; Plato, 1983).
Na pesquisa de memrias coletivas, a histria oral desempenha,
portanto, antes de mais nada, o comprovado papel de construo das
fontes. J que no h dirios, redaes, cartas ou tambm fontes confiveis na internet, sensato fazer entrevistas de histria oral. Com
base nelas, os historiadores podem responder s seguintes questes:
Em primeiro lugar, at que ponto as diferentes pessoas e grupos
sociais esto integrados a memrias coletivas?
Em segundo lugar, em que medida indivduos e grupos participam, ativa ou passivamente, da construo de memrias coletivas?
Em terceiro lugar, como eles utilizam essas memrias coletivas
em suas prprias vidas?
A fim de responder a essas questes, realiza-se uma entrevista
biogrfica, como comum, por exemplo, na prtica da histria
oral alem (Plato, 2009; Leh, 2009). Na prtica da histria oral
canadense, entretanto, entrevistas biogrficas so pouco comuns e
amplamente desconhecidas, por esse motivo eu explico isso brevemente aqui (vide tambm FREUND, 2009). Em uma primeira fase
da entrevista biogrfica, simplesmente pede-se ao entrevistado que
conte a sua histria de vida. Ele pode levar tanto tempo quanto desejar, pode comear onde quiser e arranjar a histria do jeito que preferir. Mediante pedido, tambm so feitas perguntas, do contrrio, o
254 entrevistador permanece em silncio. Como essa maneira de proce-

der pode fazer com que o entrevistado fique inseguro ou se aborrea,


importante esclarecer esse mtodo antes do incio da entrevista.
Dessa forma, queremos oferecer aos entrevistados a possibilidade de
contar a sua histria de vida do modo mais livre possvel, sem que
eles sejam influenciados pelas perguntas do historiador. A maioria
das histrias de vida contada em uma ou duas horas, mas, evidentemente, h tambm os relatos de cinco minutos e as narrativas de 15 horas. Em uma segunda e breve fase, so feitas perguntas
esclarecedoras.
Em uma terceira e minuciosa fase, so abordados os temas que,
por um lado, foram pouco mencionados na histria de vida e, por
outro, interessam de forma especial aos historiadores. Se h realmente um interesse pela memria coletiva, deve-se questionar como
ela foi vivida e experienciada de forma inteiramente concreta. Para
isso, primeiramente, como preparao para a entrevista, deve-se
analisar como se manifesta a memria coletiva de uma sociedade.
Na Alemanha, devido aos numerosos estudos sobre a Vergangenheitsbewltigung, isso uma tarefa fcil. De modo contrrio, no
Canad, esses estudos so quase inexistentes. Uma importante manifestao concreta no Canad o chamado Remembrance Day, em 11
de novembro. Nesse dia, so recordadas as vtimas de todas as guerras. Veteranos canadenses de todas as guerras marcham com seus
uniformes e com suas condecoraes em paradas, que so realizadas
em qualquer pequena cidade. A respeito disso, pode-se perguntar
concretamente a imigrantes alemes se e como eles participaram
desse evento. Desse modo, verifica-se que muito poucos imigrantes alemes participaram do Remembrance Day, pois eles se sentiam
excludos. Para eles, o Remembrance Day no era um dia de recordao de todas as vtimas de todas as guerras, pois no se lembram nem
dos soldados das foras armadas alems e nem dos muitos fugitivos e
expatriados alemes, que vieram do Leste Europeu para a Alemanha
durante e aps a II Guerra Mundial.
255

Uma manifestao concreta ainda mais importante da memria


coletiva canadense o ensino de Histria na escola. Muitos filhos de
imigrantes, que frequentaram escolas canadenses, j falam de experincias concretas em seus relatos biogrficos, sem que seja necessrio solicitar. No que se refere a isso, foi muito importante para os
filhos de imigrantes alemes dos anos 1950 e 1960 que, nas aulas
sobre a II Guerra Mundial, o professor ou a professora diferenciasse,
de forma inequvoca, alemes de nazistas.
Mas as entrevistas no podem tratar somente do modo como os
entrevistados lidaram com os debates publicados. Eles prprios ou
os seus familiares, na maioria dos casos, faziam parte da histria.
Por esse motivo, importante descobrir como eles lidaram com a
sua participao completamente pessoal e com a participao familiar na histria. No caso das famlias de imigrantes alemes do ps-guerra, os adultos, em sua maioria, vivenciaram o Terceiro Reich
quando eram adultos jovens, tendo participado como soldados das
foras armadas, como ajudantes no combate antiareo, como membro da juventude hitleriana, do Partido Nacional Socialista Alemo e
de outras organizaes nazistas. Como isso foi discutido na prpria
histria de vida e no interior da famlia? Isso foi encoberto, adulado
ou reconhecido como erro?
Uma entrevista de histria oral to detalhada poder nos auxiliar a responder s questes sobre a relao entre o entrevistado e as
memrias coletivas.
Voltemos primeira questo: em que medida diferentes pessoas
e grupos sociais esto integrados a memrias coletivas? Especialmente a histria de vida pode ser aproveitada em termos de contedo e de forma. At que ponto memrias coletivas, como, por
exemplo, a da nao, constituem pontos de referncia para a prpria
histria de vida? A interpretao da narrativa mestra aceita sem
crticas? Muito poucos alemes que imigraram para os Estados Unidos da Amrica depois da guerra, os quais vivenciaram a II Guerra
256 Mundial na Europa, aceitam, por exemplo, a interpretao norte-

-americana dessa histria. Apesar de eles terem passado cinquenta


anos de suas vidas nos EUA e de os seus filhos e netos terem conhecido os pontos de vista norte-americanos em escolas canadenses e
americanas, as narrativas da guerra e do ps-guerra contadas pelos
imigrantes alemes quase no se diferenciam das histrias que na
Alemanha contam os que l permaneceram. Concomitantemente,
eles se apresentam como imigrantes que, com sua disposio para
o trabalho, contriburam decisivamente para o desenvolvimento da
sociedade canadense e americana ps-guerra, e, com isso, eles se
situam na narrativa mestra da sociedade norte-americana composta
por imigrantes.
Tanto na histria de vida quanto por meio de perguntas concretas, ns podemos descobrir pormenores sobre a participao ativa
na construo de discursos sociais e sobre a utilizao dessas memrias coletivas na prpria vida.
As histrias de vida construdas em entrevistas de histria oral
no so meramente relatos das experincias de indivduos. Antes elas
so histrias de vivncias que se originaram no contexto de histrias
familiares e nacionais. Vivncias, experincias e recordaes tambm so sempre filtradas por histrias e enredos maiores, reconstrudas em mltiplas narrativas recontadas, de modo que, por fim,
elas se ajustam bem prpria histria de vida, histria da famlia e
histria da nao. Esse ajustamento da prpria histria a histrias
maiores tambm abrange completamente experincias de resistncia
e de carter marginalizado.
Assim, atravs de uma construo e interpretao mais complexa
de entrevistas de histria oral, podemos sobrepujar a constatao de
Lewis Coser de que os imigrantes esto excludos da memria coletiva da nova ptria. Constatar isso o primeiro e mais importante
passo. Mas, em seguida, devem ento ser feitas inmeras perguntas a
respeito de como esses imigrantes e seus descendentes se conformaram com essas memrias coletivas. Para responder a essas questes,
257
as entrevistas de histria oral so excelentes fontes.

Referncias
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258

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familiengedchtnis. Frankfurt: M. Fischer, 2002.

2. Imagens de si e do outro: interpretao


de fotografias e fontes orais em estudos migratrios
Mri Frotscher
Com a intensificao das migraes internacionais, no somente
trabalhadores, mercadorias, informaes e tecnologias, mas tambm
imagens de si e do outro, produzidas a partir do ponto de vista do
migrante, circulam cada vez mais e de forma mais gil entre as fronteiras nacionais. Fotografias tornaram-se h tempo parte das experincias migratrias. Com o avano da tecnologia, elas assumiram
novas funes e significados e, por conta disso, sua interpretao
constitui um desafio para a compreenso das trajetrias de migrantes na era global.
Neste artigo, discutiremos algumas possibilidades de interconexo de fotografias de migrantes e fontes orais. Algumas questes
norteiam nossa anlise: que relaes podem ser estabelecidas entre
fotografias em suporte digital ou no e migraes internacionais
contemporneas? Como fotografias podem ser usadas em entrevistas de histria oral? De que maneiras esses olhares constroem culturalmente o outro ou mesmo o produzem? O artigo no pretende
responder exaustivamente a todas as perguntas acima, mas, com
base nelas, apresentar algumas possibilidades de produo e anlise
de fontes orais e visuais em estudos migratrios.
As fotografias de migrantes so aqui entendidas enquanto artefatos culturais que pertencem ao mundo compartilhado dos indivduos e dos grupos sociais (GEERTZ, 1973). Assim, as fotografias
podem ser tomadas como tradues visuais de realidades distintas, 259

como suportes de memrias e representaes sobre a alteridade. H


muito tempo a noo de realidade enquanto reflexo do real implodiu
nas cincias humanas e sociais. A prpria fotografia, antes considerada (mais) capaz de reproduzir uma realidade, tratada enquanto
uma possvel representao da realidade.
Este artigo baseado em dois estudos de caso sobre a emigrao
temporria de jovens trabalhadores do Oeste do Paran, Sul do Brasil, para a ustria e a Sua, desde os anos 1970 (FROTSCHER, 2007;
2008b). As entrevistas foram realizadas aps o retorno deles ao Brasil
e tiveram durao, em geral, de uma hora e meia, quando tambm
foram mostradas e comentadas fotografias tiradas naqueles pases.
As migraes a trabalho para a ustria e para a Sua, objeto
desta investigao, muito embora temporrias, apresentam algumas
especificidades e diferenas entre si. Os que migraram para a Sua,
a maioria filhos de pequenos agricultores, trabalharam legalmente
em propriedades rurais familiares atravs de contrato de 18 meses
estabelecido com a Agroimpuls, uma entidade ligada Schweizerischer Bauernverband (Liga Sua de Agricultores). Oficialmente so
reconhecidos como estagirios (Praktikanten), atravs do que se
justifica a estadia e a jornada de trabalho, superior exercida normalmente pelos trabalhadores suos. Para os empregadores, essa
mo de obra mais barata que a sua, mas para os estagirios essa
uma forma de ganhar mais dinheiro do que no Brasil e de adquirir
novas experincias de vida. A referida entidade arregimenta mo de
obra no Brasil h mais ou menos quarenta anos. Os pr-requisitos
para participar do programa so idade de 18 a 30 anos, conhecimento da lngua alem, francesa ou inglesa e experincia na agropecuria (FROTSCHER, 2009). Brasileiros so selecionados em reas
de produo agropecuria com maior concentrao de descendentes
de alemes, sobretudo no Oeste dos estados do Rio Grande do Sul e
Paran. Durante a pesquisa no Oeste do Paran, pudemos perceber
uma migrao em corrente numa vila, Dez de Maio, onde realizamos
260 a maior parte da pesquisa de campo.
Os que migraram para a ustria em geral trabalharam ilegal-

mente, exercendo atividades que no exigiam qualificao profissional, principalmente em indstrias, restaurantes e construo civil.
A maioria tinha documentos de identidade falsos de algum pas da
Unio Europeia (com ou sem o nome verdadeiro), outros permaneceram no pas como turista. A minoria dos entrevistados possua a
cidadania austraca. No caso da ustria, houve um fluxo migratrio
de brasileiros do Oeste do Paran a partir do incio dos anos 2000,
por causa da atuao de mediadores dessa regio que providenciavam papis falsos e indicavam empregos (sobre esse fluxo migratrio, a disputa entre brasileiros no mercado de trabalho na ustria
e suas experincias de fronteira, sejam jurdicas, socioeconmicas,
culturais, ver Frotscher (2008a)).
Nesses dois casos de migrao temporria, pudemos observar
que alguns entrevistados, depois da primeira estadia naqueles pases,
iniciaram uma migrao pendular. A diferena entre os dois fluxos
migratrios se deve menos ao pas de destino e mais ao tipo de estadia, legal ou ilegal, e de ocupao laboral.
As narrativas orais e visuais desses entrevistados configuram
olhares sobre a alteridade, os quais fixam fronteiras entre o l e o
aqui. So olhares de emigrantes provindos de um pas emergente e
que se dirigiram a pases europeus por conta das diferenas socioeconmicas e do desejo de acmulo rpido de capital para melhor viver
financeiramente no Brasil aps o retorno. Eles migram, retornam e
migram novamente dependendo das situaes e possibilidades nos
pases de origem e de destino. Trata-se de correntes migratrias causadas no somente pelas desigualdades socioeconmicas vividas no
capitalismo globalizado contemporneo, motivaes pessoais tambm constituem um push factor relevante.
Discutiremos o tema das migraes internacionais a partir da
perspectiva dos estudos culturais dedicados questo da identidade e da diferena. As fotografias e os relatos orais e escritos de
migrantes podem configurar imagens da alteridade e, assim, concomitantemente, expressar uma autorrepresentao de si e da cultura 261

e sociedade de origem, uma vez que as identidades so fabricadas


por meio da marcao da diferena (WOODWARD, 2000, p. 39).
Na discusso sobre migraes e diferena, tambm nos parecem frutferas as ideias formuladas por Homi Bhabha, terico dos estudos
ps-coloniais. Esse autor discute o processo de articulao de diferenas culturais, as quais fornecem o terreno para elaborao de
estratgias de subjetivao singular ou coletiva que do incio
a novos signos de identidade e postos inovadores de colaborao e
contestao, no ato de definir a prpria ideia de sociedade (BHABHA, 2003, p. 20). De acordo com Stuart Hall (2003), diante da globalizao e da disperso das pessoas pelo mundo, no cabe polarizar,
de um lado, a cultura nacional e, de outro, as minorias, ou contrapor
dominantes e dominados. Cabe analisar, segundo o autor, como se
constituem sujeitos atravs dos atos de enunciao. A globalizao
tem reproduzido diferenas dos mais variados tipos e resultado em
diversos processos relacionados construo, negociao e dissoluo de identidades. Novas identidades nacionais surgem, outras so
abandonadas, negociadas, contestadas. No lugar de uma identidade
una, surgiu a noo de identidades plurais, mltiplas e fragmentadas
nas cincias humanas e sociais, cada vez mais dedicadas relao
entre o global e o local e constituio de identidades transnacionais. Levando isso em conta, podemos analisar os diferentes elementos constituidores de identidades entre os sujeitos de migraes
internacionais no sculo XXI. Olhares de migrantes sobre a cultura
e sociedade de destino e suas relaes com as autorrepresentaes
sero discutidos a seguir.
Olhares de migrantes
Instigados a separar fotografias que marcaram suas estadias no
exterior, muitos entrevistados escolheram imagens que retratavam
diferenas geogrficas, como paisagens espetaculares. No so essas
as imagens que nos interessam aqui, mas as que expressam diferen262
as sociais, materiais e culturais.

A fotografia abaixo, por exemplo, foi escolhida por Pedro Bernard116 para compor seu lbum de fotografias disponvel no Orkut, a
rede de relacionamentos da internet mais popular no Brasil na poca
da entrevista.

Figura 2 Sonho de consumo (Bezau, ustria)


Fonte: acervo pessoal do entrevistado

O gesto de Pedro chama a ateno para o Mercedes modelo


esportivo. A foto expressa a impossibilidade de comprar aquele carro
luxuoso, mas tambm o seu sucesso como jovem empreendedor no
Brasil. Essa ltima ideia aparece num detalhe na estampa da camiseta de futebol, uma propaganda da pequena empresa de sua famlia
no Brasil, financiada atravs da emigrao. Alm do progresso financeiro, a camiseta expressa sua paixo pelo futebol e o sonho inicial
de poder morar na ustria como jogador profissional. A carreira
116 Entrevista realizada com Pedro Bernard (nome fictcio), em Marechal Cndido Rondon,
em 2007, por Mri Frotscher.

263

de jogadores de futebol brasileiros na Europa lhe provava que esse


sonho poderia ser possvel. No Brasil, Pedro havia chegado a participar de campeonatos de futebol suo na categoria infantojuvenil em
nvel estadual.
Nesta anlise, cabe refletir sobre as motivaes de fotografias de
migrantes no exterior. No caso acima, mais do que um souvenir para
si prprio, a foto foi produzida para ser mostrada a outrem. Essa funo reforada pela legenda que a acompanha: fas (sic) o qu???.117
Ela sugere alguns elementos para uma melhor aproximao aos sentidos da fotografia. As duas possibilidades de interpretao no se
excluem: o sonho impossvel de ser conquistado e a simulao da
posse daquele produto de luxo. A fotografia expressa, portanto, de
um lado, os sonhos de consumo do migrante e, de outro, a conscincia do seu lugar ocupado na hierarquia socioeconmica na ustria.
As entrevistas com Pedro e com outros migrantes confirmam esses
sonhos e tambm a existncia dessa conscincia.
No cabe considerar essa fotografia como expresso de uma
realidade do pas de destino do migrante. A performance junto ao
Mercedes pode ser associada s expectativas de um tpico trabalhador brasileiro no exterior. A foto expressa no apenas o Eu estive
aqui, mas tambm o sonho que move muitos migrantes brasileiros
na Europa. A visualizao da paisagem ao fundo da fotografia prova
ao espectador o primeiro passo do seu sucesso fora do Brasil: viver
num pas onde carros luxuosos so comuns. Nesse sentido, a fotografia expressa uma teatralizao das diferenas socioeconmicas
entre os pases de origem e de destino. Ela pe duas sociedades em
dilogo. Atravs dos gestos e do olhar para a cmera, Pedro anima
a cena fotografada e, assim, dialoga com o espectador.
A fotografia plausvel e compreendida pelo espectador brasileiro, pois a composio, os gestos e os smbolos nela presentes
dialogam com diferenas e carncias vividas no Brasil e com precon264

117 Alm de usar linguagem coloquial, comum nos e-mails, chats e redes de relacionamento
na internet, Pedro troca a letra z pela s na conjugao do verbo fazer, o que revela seu
grau de escolarizao.

cepes existentes sobre a Europa. Isso porque a imagem, segundo


Luciana Bittencourt (1998, p. 205), aponta no s para uma
memria que lhe intrnseca, mas tambm evoca, especialmente,
uma memria que lhe externa, a memria do espectador. Ainda
segundo a autora, as imagens fotogrficas funcionam como molduras referenciais em que a realidade social e o contexto cultural so
compartilhados (BITTENCOURT, 1998, p. 209).
Essa fotografia digital, disposta na internet, demanda tambm
analisar seus usos e sua circulao. Cmeras digitais facilitam o processo de escolha da imagem que melhor cabe ao fotgrafo, o qual,
nesse processo, elimina rapidamente as que no lhe agradam. No caso
da fotografia acima, ela foi escolhida e tambm includa numa rede de
relacionamentos na internet, na qual todos podem visualiz-la. Tecnologias modernas, associadas a redes de relacionamento na internet,
facilitam a composio e a circulao de autoimagens como a acima.
Tais imagens nos parecem apropriadas tambm para discutir os
usos e funes sociais da fotografia digital em contextos migratrios.
Atravs de fotos digitais, os migrantes hoje podem mostrar suas
experincias no exterior a um pblico mais abrangente. Frequentemente fotos so enviadas via e-mail ou fazem parte de blogs ou perfis
de redes de relacionamento. Ao contrrio de geraes anteriores, as
quais mantinham contato com parentes e amigos de forma mais cara
e lenta, atravs de cartas, as novas geraes tm a chance, atravs da
internet, de manter contato com um pblico mais abrangente e at
mesmo desconhecido. interessante lembrar que o contato com o
lugar de origem muito importante para os migrantes temporrios
e as fotografias so um dos meios utilizados para esse fim. Para os
destinatrios brasileiros, tais fotos so um suporte para imaginar o
pas de destino do migrante e, muitas vezes, permitem amadurecer a
ideia de seguir o mesmo caminho.
Atualmente praticamente o mundo inteiro est conectado
internet. Por meio dela, os migrantes podem compartilhar mais
facilmente e rapidamente suas novas experincias no novo local 265

de moradia. Alm dos contatos existentes, a internet tem tambm


facilitado ao usurio achar pessoas com as quais h muito tempo
no tinha mais contato e at ajuda mesmo na prtica do flerte. Um
desempenho atraente atravs de fotografias postadas em redes de
relacionamento uma boa base para isso.
Se considerarmos a facilidade de disponibilizao de autoimagens atravs da internet, podemos tambm refletir melhor sobre o
papel da fotografia na construo e expresso de subjetividades e no
estabelecimento de novas relaes intersubjetivas na era da revoluo digital. As fotografias so um meio para a afirmao de identidades, atravs de performances e, muitas vezes, de exibicionismos.
As imagens podem ser objeto do voyeurismo contemporneo que
rompe os limites entre a esfera pblica e privada. Isso no apenas
aceito, mas muitas vezes desejado por vrios usurios. Embora nosso
objetivo no seja discutir as razes e consequncias do uso de redes
de sociabilidade na internet, acentuamos que tais redes acompanhadas de fotografias e chat rooms apresentam novas problemticas tambm para os estudos migratrios.
Sabemos que as imagens so sempre abertas interpretao. No
caso da fotografia acima, nos interessa captar os sentidos dados a
ela pelo prprio entrevistado. Nosso primeiro contato com Pedro
ocorreu quando visitava a famlia e a namorada nas frias no Brasil,
momento em que o entrevistamos. Na ocasio tomamos conhecimento daquela e de outras fotos postadas em seu perfil na internet.
Por que e como tais fotografias podem ser conectadas a fontes orais
ser discutido mais adiante.
No Brasil, antes da migrao, Pedro havia concludo o ensino
secundrio e trabalhava como garom. Como no pretendia cursar
ensino superior ou ensino profissionalizante, o encontro com um tio
que h dois anos trabalhava na ustria lhe pareceu uma possibilidade
de abandonar o emprego que no lhe oferecia perspectivas de futuro.
Aps encaminhar documentao para obter a cidadania austraca,
266 com base nos seus ascendentes, partiu sozinho para uma pequena

cidade do estado de Vorarlberg, ustria. Logo abandonou seu projeto de ser jogador de futebol profissional e conseguiu, com a ajuda
do tio, um emprego como ajudante numa fbrica, com o propsito
mais realista de economizar dinheiro. No momento da entrevista,
ainda trabalhava naquela fbrica. Dois anos mais tarde, voltou ao
Brasil, onde atualmente ajuda a administrar o comrcio da famlia.
O propsito de acumular bens acentuado na entrevista atravs
da repetio insistente da palavra objetivo para expressar sua permanncia naquele pas. Tal fato coincide com a associao sugerida
pela fotografia:
Mas que nem eu falo, as pessoas que to l, to com um
objetivo, normalmente to com um objetivo. Tambm tem
brasileiros que gostam e ficam por l mesmo. Isso difcil,
mas tambm tem. Mas normalmente vai com um objetivo. Se
tu tem um objetivo, se tu quer, tu consegue. assim mesmo,
se tu pe um objetivo na tua vida... seno a vida no teria
graa, n. uma experincia mpar, voc t saindo fora do
pas, ento tu coloca um objetivo, se tu no coloca um objetivo, a tua vida tambm no vai ter graa assim, n. O pessoal t trabalhando e tal, mas voc no vai vai ter lazer e tal,
n. Mas tu tem que colocar um objetivo, se tu no coloca um
objetivo, ento da tu fica... que nem eu falo, se tu no colocar
um objetivo: ah, vamos economizar e tal pra investir l.118

A estadia naquele pas, embora temporria, interpretada como


um projeto pessoal necessrio e uma experincia-chave para sua vida.
Nesse e noutros momentos da entrevista, ele procurou destacar o
papel da migrao no seu amadurecimento pessoal. Outros migrantes com experincias migratrias similares durante a juventude tambm representaram a migrao como um divisor de guas,119 uma
prova de maturidade.
Assim como a anlise de fotografias baseada no somente nos
118 Entrevista com Pedro Bernard (nome fictcio). Ver nota 118.
119 Expresso utilizada pelo entrevistado Gilson Maier (nome fictcio). A entrevista foi realizada em Toledo, Paran, em 2009, por Mri Frotscher e Din Schmidt.

267

elementos visveis, tambm a prtica da histria oral exige a leitura


subliminar. A estrutura da entrevista e os elementos da narrativa
denotam como o entrevistado interpreta seu passado. Ao repetir a
palavra objetivo, por exemplo, Pedro no apenas expressa a razo de
sua migrao, mas tambm seus esforos em permanecer na ustria.
As horas extras, a consequente falta de tempo para turismo e lazer, a
saudade dos amigos e da namorada aparecem na entrevista recompensadas pelo capital economizado, com o qual disse comprar terrenos e investir na empresa da famlia. Seu posicionamento em relao
ao trabalho e vida no exterior explica comportamentos considerados imprescindveis a quem deseja se tornar um empreendedor.
O orgulho em relao s conquistas expresso tambm atravs da
camiseta que aparece na fotografia, como visto. A fotografia e a fonte
oral mostram a autoimagem de um jovem independente e ambicioso
que acredita nas possibilidades do capitalismo. Importante destacar
que a entrevista foi feita enquanto Pedro ainda trabalhava na ustria,
o que ajuda a explicar a coincidncia dos sentimentos expressos na
imagem e na fonte oral.
Fotografias como a analisada demonstram a especificidade da
linguagem visual na expresso de expectativas e representaes
de emigrantes brasileiros. Entretanto, sem a entrevista de histria de vida seria impossvel captar os sentidos da fotografia para o
migrante. O exemplo nos mostra, portanto, como fotografias e fontes
orais podem complementar umas s outras. Mas isso no quer dizer
que as fontes orais devam ser consideradas meros complementos
para a anlise de fotografias ou vice-versa. A interconexo de ambas
nos possibilita muito mais, como buscaremos explicitar nas pginas
que seguem.
O exemplo dado, baseado especificamente em fotografia digital,
pode ser confrontado com exemplos de pocas anteriores, quando os
meios e ritmos de veiculao de imagens e informaes eram outros.
O exemplo a seguir nos instiga a pensar sobre as implicaes do
268 avano tecnolgico para as experincias dos migrantes.
Em Dez de Maio, distrito da rea rural de Toledo-PR, percebe-

mos, durante o trabalho de campo, em algumas famlias, o fenmeno


da migrao em corrente para a Sua desde os anos 1970. O distrito
foi fundado nos anos 1950 por agricultores oriundos principalmente
do estado do Rio Grande do Sul. Geraldo, um ex-estagirio da
Agroimpuls, filho de uma famlia de pioneiros do distrito, interpreta sua experincia naquele pas acentuando a diferena tecnolgica entre aquela poca e a atual:
[...] naquela poca o Brasil tambm era diferente, ns no
tinha telefone, eu no liguei nenhuma vez pra casa, pra mim
telefone era coisa nova [...] a distncia tecnolgica era diferente, no tinha ordenha, ordenhadeira, no tinha tanque
de puxar esterco, aqui na regio no tinha trator, tavam
comeando os tratores. [...] a comunicao com casa era s
carta. Eu taria curioso se hoje esses que vo pra l ainda
escrevem carta. Nem manda, manda muito pouco, carto,
eu acho. Hoje, quando a gurizada volta da Sua, no tem
novidade pra contar. Mostram [j antes] l as fotos com a
internet, mostram tudo, da no tem novidade pra contar
quando volta. Ningum sabia certo [quando eu fui], s sabia
que eu tinha embarcado l, eu ainda fui de navio naquela
poca. 120

Naqueles bons tempos, tnica de sua narrativa, fotografias da


estadia no exterior eram enviadas pelo correio tradicional ou eram
trazidas ao Brasil somente aps o retorno. Atravs da expresso dessas diferenas tecnolgicas, Geraldo procura ressaltar as dificuldades
que teve de enfrentar e, assim, sobressair diante da nova gerao.121
Naquela poca, os estagirios permaneciam o dobro do tempo na
120 Entrevista realizada com Geraldo Vogel (nome fictcio) e Rafael Huber (nome fictcio),
em Toledo, Paran, em 2008, por Daiane Silva. Na ocasio, estavam presentes R. Huber, um
ex-estagirio mais novo, e dois filhos de Geraldo, um que havia sido estagirio e outro que
se preparava para s-lo, provavelmente tal fato fez Geraldo comparar sua experincia com
as situaes e experincias mais recentes.
121 Isso fica claro tambm atravs do emprego da palavra gurizada, derivada da palavra
guri (rapaz), comum no Sul do Brasil, utilizada para se referir ao grupo de jovens. O
sufixo utilizado homogeneza os membros do grupo e, em certa medida, tem um significado
pejorativo.

269

Sua e tinham a possibilidade de se formar num curso profissionalizante. Esses fatos so representados como uma grande vantagem em
relao ao programa atual.
Mrcio, outro entrevistado do mesmo distrito e que viveu a
primeira experincia na Sua nos anos 1980, escolheu, para nossa
pesquisa, uma fotografia muito singular, que retrata uma declarao
de amor esposa escrita na neve num dia de inverno: [nome da
esposa], eu amo voc. Como a fotografia de Pedro, com a paisagem
dos Alpes ao fundo, a de Mrcio sugere a presena do migrante no
exterior em razo da neve. Mas, diferente daquela foto, esta foi batida
com uma cmera analgica e foi meticulosamente planejada. Depois
de escrever na neve, em grandes letras, sua declarao de amor, Mrcio subiu num silo da propriedade onde trabalhava e tirou a fotografia. muito simblica a escolha da neve, algo espetacular para um
brasileiro, ainda mais para expressar a saudade da esposa deixada no
Brasil.
Nesse caso, a fotografia a materializao dos sentimentos mais
ntimos do migrante. No apenas o objeto fotografado, mas a prpria produo da fotografia e seu envio pelo correio expressa a saudade da esposa e tambm do filho recm-nascido. O complexo ato
fotogrfico foi um meio de lidar com essa situao difcil. Esse um
exemplo de como as fotografias podem ser mais do que suportes da
memria social. Podem tambm ser um meio utilizado para manter relacionamentos durante a estadia no exterior e, assim, procurar
ligar o presente ao futuro.
As fotografias podem ser tambm utilizadas para afirmar identidades grupais. Durante o trabalho de campo, pudemos adentrar
no espao domstico de algumas famlias de estagirios e assim
captar outras funes sociais de fotografias de migrantes. Algumas
famlias guardam e mostram fotografias dos parentes no exterior a
outras pessoas, incluindo a entrevistadora, como forma de mostrar
o sucesso do migrante e, assim, da prpria famlia. Frequentemente
270 so dispostas em porta-retratos na sala de estar. Dessa forma, pre-

sentifica-se o parente ausente em seu cotidiano. Esse foi o caso de um


casal entrevistado, cujo filho, no momento da entrevista, estava pela
segunda vez na Dinamarca trabalhando numa propriedade rural.
Antes disso, ele havia sido estagirio atravs do programa suo.
Seus pais fizeram questo de mostrar tambm, com grande orgulho,
lbuns de fotografias do filho naqueles pases ao final da entrevista.122
As famlias dos jovens entrevistados, em geral, so constitudas
por pequenos proprietrios descendentes de imigrantes europeus
que chegaram ao Brasil ao longo do sculo XIX e incio do XX. Seus
descendentes vivenciaram diversas experincias migratrias no interior do pas. No incio dos anos 1950, migraram para o Oeste do
Paran em busca de terras frteis para cultivo, com o objetivo de
reproduzir sua condio de pequeno produtor. Durante algumas
entrevistas, essas migraes dos antepassados e seus descendentes
so referenciadas ao justificarem o fato de terem conhecimento da
lngua alem, embora, na maioria dos casos, ele seja muito limitado.
Essas referncias tambm denotam o desenvolvimento, nas famlias de alguns entrevistados, de identidades migratrias transgeracionais, fenmeno abordado por Rina Benmayor e Andor Skotnes
(apud THOMSON, 2002, p. 347). A disposio de fotografia area da
propriedade rural numa das paredes da casa dos entrevistados acima
citados, prtica comum entre famlias de agricultores da regio desde
que empresas passaram a oferecer tais servios, permite apreender a
importncia dada conquista da terra. Esse fato e a emigrao dos
filhos para a Europa poderiam ser vistos como um paradoxo. Mas,
em relao ao casal entrevistado, a estadia do filho no exterior vista
como a confirmao de uma tica do trabalho associada ao colono
descendente de imigrantes. Entre agricultores descendentes de imigrantes europeus no Sul do Brasil, esse termo regido por caractersticas e valores especficos, como a dedicao ao trabalho, a produo
baseada na pequena propriedade familiar e o passado comum de
122 Entrevista realizada com Valrio e Marta Lenfers (nomes fictcios), em Toledo, Paran, em
2009, por Mri Frotscher.

271

colonizadores (SEYFERTH, 1992, p. 80).


No incio do trabalho de campo, muitos entrevistados mostravam suas fotografias por iniciativa prpria. lbuns eram retirados
de gavetas ou j haviam sido disponibilizados anteriormente para
aquele momento. No bastava, portanto, falar sobre as experincias no exterior, queriam tambm mostr-las e, assim, prov-las
atravs de imagens. Para esses entrevistados, falar sobre a migrao
implicava tambm visualizar momentos, objetos, lugares, pessoas.123
importante ressaltar que esse comportamento certamente tem a
ver com o fato de que as entrevistas foram feitas no Brasil e de que
mostravam as fotografias entrevistadora, tambm brasileira.
Percebemos ento que incluir essas fotos no trabalho de campo
poderia abrir novas perspectivas e questes, mas deveramos refletir sobre uma metodologia apropriada. A possibilidade mais convencional, a de colet-las e conversar sobre elas aps a gravao da
entrevista, nos parecia pouco frutfera, pois alguns entrevistados
costumavam falar sobre suas experincias e impresses baseados nas
fotografias. Percebemos que elas poderiam tambm ser utilizadas
como detonadoras da memria (SIMSON, 1998).
Essa ao de mostrar fotografias durante a conversa denota a
perspectiva da maioria dos entrevistados conferindo a elas um carter de evidncia, ou seja, de prova da realidade. Atravs delas se
procura socializar a realidade do pas e, assim, tambm justificar a
emigrao. Essa perspectiva expressa de forma exemplar atravs da
fotografia e da entrevista analisadas a seguir.
Sandro filho de agricultores brasileiros que, assim como muitos, emigraram para o Paraguai nos anos 1970, onde compraram terras com o objetivo de melhorar de vida. Muitos deles se desiludiram
e retornaram ao Brasil, sendo chamados, ento, de brasiguaios.124

272

123 Fotografias tambm so usadas por entrevistados para expressar visualmente um sentimento de pertencimento nacional, como pudemos constatar em investigao em andamento sobre imigrantes alemes no Brasil.
124 Grande parte dos emigrantes brasileiros provinha do estado do Paran. O alagamento
causado pela construo da usina hidreltrica de Itaipu, a mecanizao da produo de

Sandro retornou sozinho para o Brasil, rea de fronteira com Paraguai e Argentina, em 2002, iniciando logo a seguir uma histria de
migraes pendulares para a ustria.
Entre as fotos mais significativas de sua experincia neste ltimo
pas, destacamos, abaixo, uma foto em particular.

Figura 3 Chegada do servio mdico de emergncia


(St. Gerold, ustria)
Fonte: acervo pessoal do entrevistado

A fotografia mostra uma cena referente ao sistema de sade austraco que impressionou o entrevistado: a chegada de um helicptero
para atender a um paciente que havia acabado de sofrer um infarto.
A cena ocorreu na pousada situada na propriedade na qual o entrevistado/fotgrafo trabalhava.
A imagem faz mais do que documentar uma cena espetacular.
Ela estabelece um dilogo com a falta de assistncia mdica cotidiana sentida e relatada pelo entrevistado durante os anos vividos no
Paraguai. Os significados daquele evento para quem decidiu abandosoja e a consequente concentrao de terras fizeram com que muitos pequenos agricultores
procurassem terras mais baratas no Paraguai.

273

nar esse pas exatamente por conta dos problemas sociais e econmicos so assim expressos na entrevista, ao interpretar a fotografia: se
tivesse uma ambulncia no local, sabe, com UTI, uma coisa para ser
transportado, [mas] no tem nada. uma vila [...].125
Outros trechos oferecem mais elementos para compreender os
motivos da fotografia, os significados atribudos a ela e o porqu
de t-la escolhido para mostrar entrevistadora. Alm de ser uma
prova das melhores condies de vida na ustria, serviu para justificar a si mesmo e entrevistadora a sua sada do Paraguai e suas
constantes migraes a trabalho para aquele pas, mesmo aps seu
casamento no Brasil e o nascimento de seu filho. Para ele, o trabalho
no exterior uma forma mais rpida de acumular dinheiro para a
famlia.
Interessante salientar que meses depois da entrevista, quando
Sandro afirmou no querer mais retornar Europa em razo da
famlia e da constituio de uma pequena empresa, tornou a emigrar,
dessa vez para a Sua. Isso mostra o carter voltil da permanncia
num lugar, prprio das migraes pendulares, vividas por sujeitos
que negociam cotidianamente as possibilidades de vida e de trabalho, conforme as situaes socioeconmicas do pas de origem e de
destino.
A fotografia e o relato oral anteriormente analisados nos lembram que todos os discursos so localizados, como acentua Stuart
Hall (1996, p. 68). Segundo o mesmo autor: Todos ns escrevemos e
falamos desde um lugar e um tempo particulares, desde uma histria
e uma cultura que nos so especficas. O que dizemos est sempre
em contexto, posicionado (HALL, 1996, p. 68). A produo de um
discurso da diferena, nesse caso expresso visualmente e oralmente,
processa-se em dilogo com as experincias vividas no Paraguai e no
Brasil, marcadas pela falta e/ou precariedade de assistncia mdica
e hospitalar e dificuldades de transporte. Aquela imagem, por274

125 Entrevista com Sandro Baier (nome fictcio), em Marechal Cndido Rondon, em 2008,
por Mri Frotscher.

tanto, nos permite refletir sobre a capacidade da linguagem visual


em expressar o estranhamento/maravilhamento sobre o outro e,
ao mesmo tempo, revelar aspectos do universo do qual provm o
migrante. A fonte oral nos permite ver o no visvel na fotografia
e, assim, perceber com maior profundidade os significados da cena.
A fotografia analisada no foi produzida a partir do mero ato de
ver, mas do ato de olhar, o qual configura outro campo de significao, segundo Srgio Cardoso. Para o autor, o ato de olhar perscruta
e investiga, indaga a partir e para alm do visto (CARDOSO, 1988,
p. 348). A descrio da fotografia feita por Sandro nos mostra que ela
pode ser entendida como uma reflexo sobre suas condies de vida
no passado, suas circunstncias de vida no momento da produo da
fotografia e suas perspectivas para o futuro. Ela menos uma tentativa de representao do outro e mais uma forma de reflexo sobre
a condio do seu autor. Em outras palavras, pode-se dizer que as
fontes orais e visuais dos trabalhadores brasileiros entrevistados nos
falam muito mais sobre como se posicionam diante das experincias
vividas do que sobre as realidades dos pases de destino.
A escolha do tema a ser fotografado no exterior varia conforme
uma srie de razes. A interconexo entre fontes orais e fotografias
j durante o trabalho de campo pode ajudar a melhor capturar esses
fatores. Podemos perceber a influncia dos universos socioeconmicos e culturais dos quais provm os migrantes, assim como suas
prprias expectativas com a migrao.
Como sugerido por Luciana Bittencourt (1998), nos parece plausvel combinar dois modos de interpretao de fotografias: o modo
documentrio e o modo reflexivo. O primeiro considera a informao que pode ser apreendida por meio da anlise de contedo da
imagem, servindo como uma fonte de dados sobre outros universos
culturais e sobre o contexto histrico no qual a fotografia foi criada
(BITTENCOURT, 1998, p. 200). O segundo, considera a fotografia
como um meio para elucidar as representaes criadas pelo sujeito
cognoscvel no trabalho de campo e as estratgias discursivas usa- 275

das na construo de um conhecimento sobre o outro (BITTENCOURT, 1998, p. 200-201). A anlise do processo de elaborao da
fotografia nos permite entender o olhar, a viso de mundo e o universo cultural do seu autor. Ela permite captar no apenas a mensagem literal, mas tambm a mensagem cultural da fotografia.
O relato oral pode nos auxiliar a captar a mensagem cultural da
fotografia. Nesse sentido, a perspectiva da histria oral, preocupada
com a construo e a atribuio de significados aos fatos (PORTELLI, 1996), se aproxima da pesquisa baseada em imagens, preocupada no unicamente com o seu carter documentrio, mas tambm
com o processo imagtico e a atribuio de significados produzidos
pelos atores sociais.
O helicptero que aparece na fotografia anterior um smbolo
das carncias vividas pelo migrante no Paraguai. A foto demonstra
seu descontentamento em relao sua vida nesse pas e tambm no
Brasil. Suas experincias nos trs pases o fazem comparar os modos
de trabalho e de vida e apontar suas diferenas em diversos momentos da entrevista. A escolha da fotografia demonstra como esses pensamentos o acompanhavam h muito tempo e como o abandono da
vida no Paraguai ainda o comovia. As diferenas socioeconmicas
tambm entre Brasil e ustria constituem a razo de suas migraes
pendulares e a fotografia, assim, seria a prova de que as condies
materiais de vida seriam melhores l do que aqui.
A estadia no exterior resulta na produo de artefatos visuais que
tm, para a maioria dos migrantes, estatuto de realidade fotografada,
mesmo que a imagem fotogrfica produza uma sntese entre o evento
representado e as interpretaes construdas sobre ele (BITTENCOURT, 1998, p. 199). Por conta disso, as fotografias nos parecem
fontes significativas para investigaes preocupadas em discutir as
representaes sociais do outro e de si em movimentos migratrios.
Mesmo que a maioria dos entrevistados que trabalharam na
agropecuria na Europa provenha de uma regio onde predominam
276 atividades do mesmo ramo, todos mencionaram diferenas entre

as formas de viver, habitar e trabalhar. Pareceu-nos curioso o fato


de Mrcio, citado anteriormente, e Atades, ambos do mesmo distrito e ex-estagirios na mesma propriedade sua, mas em pocas
distintas, terem feito fotografias do mesmo motivo para expressar a
mesma ideia.

Figura 4 Passagem da Tour de France (Amriswil, Sua)


Fonte: acervo pessoal do entrevistado

Tiradas do mesmo lugar, as fotografias captam a imagem vista da


janela do quarto de dormir. Uma delas, a acima, captura o momento
em que ciclistas da Tour de France acabavam de passar em frente
casa dos ex-patres. Na outra fotografia, no se veem os ciclistas,
277
mas a perspectiva a mesma. Ambas, enviadas a parentes, explici-

tam o desejo de socializar imagens do novo local de moradia. Elas


demonstram tambm que, mesmo naquela propriedade de produo agropecuria, a rua asfaltada e sinalizada, algo muito diferente
da realidade no local de origem no Brasil, onde tais elementos de
infraestrutura so pouco comuns. A passagem da Tour de France
deixa isso ainda mais evidente. Assim, ambas as fotografias expressam duas ideias de inferioridade: a do Brasil como inferior Sua e
a de rea rural como inferior rea urbana.
Todos esses exemplos indicam que fotografias de migrantes
podem ter as mais diversas funes. Como visto, elas podem ser
suporte da memria individual e veculo de expresso de expectativas, sentimentos, posicionamentos e conquistas pessoais. Elas
podem servir para a manuteno de laos familiares e sociais. Elas
tambm so capazes de reproduzir a migrao atravs da marcao
de diferenas socioeconmicas e tcnicas, como ser visto a seguir.
Especialmente os entrevistados que participaram do programa
na Sua e que migraram h mais tempo destacaram as diferenas
tecnolgicas em relao ao Brasil ao fotografar cenas e ambientes de
trabalho. o caso de Atades, que em uma de suas primeiras estadias
na Sua, nos anos 1990, fotografou o computador usado para programar a preparao da rao animal. Outro entrevistado, Edilmo,
que esteve naquele pas nos anos 1980, acentuou tambm na entrevista as diferenas tcnicas nas formas de trabalhar percebidas na
poca em que migrou e, sobretudo, o aproveitamento dos recursos
naturais: Eles [...] adubam bastante a terra, eles no perdem uma
grama de esterco, eles no jogam nada fora, eles [...] aproveitam
tudo.126
Outros retornados como Edilmo continuam destacando a Sua
como um pas de alta tecnologia na agricultura, contribuindo para
a reproduo da migrao em sua comunidade. Ns o conhecemos
durante o processo de seleo em 2007, quando acompanhou um
278

126 Entrevista realizada com Edilmo Bahr (nome fictcio), em Marechal Cndido Rondon, em
2007, por Mri Frotscher.

sobrinho candidato ao programa.


Mesmo os entrevistados mais novos, j acostumados com o
trabalho mecanizado no Brasil,127 buscaram destacar mquinas ou
procedimentos mais avanados em suas entrevistas e fotografias.
Candidatos brasileiros se apropriam dessa imagem, tambm usada
pela Agroimpuls em seu material de divulgao, para reivindicar
uma vaga do programa. Em curtas entrevistas realizadas simultaneamente ao processo de seleo, os candidatos nos salientaram querer
aprender novas tecnologias, mas os principais motivos so economizar dinheiro e adquirir experincias de vida.
Fotografias de migrantes so um meio utilizado para aproximar espaos geogrficos distintos. Elas fazem parte tambm de um
processo de descoberta do novo local de moradia. Atravs delas o
migrante procura se apropriar do novo espao e, dessa forma, transform-lo em lugar, no sentido antropolgico do termo. Entretanto,
para muitos migrantes temporrios, o tempo e o tipo de estadia
(legal ou ilegal) e de ocupao profissional, assim como outros fatores, no lhes permitem fazer do local de destino um lugar isento de
estranhamentos. Para evitar a extradio, entrevistados afirmaram
ter evitado se expor demasiadamente em pblico e demonstraram
ter tido dificuldades de estabelecer, livremente e sem receios, contato
com autctones.
A fotografia abaixo, escolhida por Valdir, o qual trabalhou ilegalmente na ustria, foi tirada com o objetivo de demonstrar as diferenas culturais percebidas pelo seu autor.

127 A produo agrcola no Oeste do Paran foi mecanizada a partir dos anos 1970 e, desde
ento, a regio absorve novas tecnologias e uma das maiores produtoras de soja e milho
do pas.

279

Figura 5 Ceia de Natal (Au, Vorarlberg, ustria, 2005)


Fonte: acervo pessoal do entrevistado

Na foto, vemos uma mesa arrumada para um jantar no dia do


Natal. A comida, o vinho, os talheres, a Bblia, assim como os Lebkuchen (broa de mel com especiarias, especialidade da poca do Natal)
na parede, foram dispostos pelo patro, dono de uma padaria, como
uma pequena surpresa ao empregado que naquela noite passaria o
Natal longe da esposa e das duas filhas. Naquele dia to especial para
muitas famlias crists, Valdir estaria acompanhado apenas de um
colega brasileiro, em situao similar. Na entrevista, ele esclarece por
que tirou a fotografia. O gesto inesperado do patro e a mesa arranjada lhe chamaram a ateno. Segundo ele, sua famlia no tinha
o hbito de comer numa mesa especialmente arrumada na noite
de Natal. A imagem destaca, na sua viso, uma diferena nacional
muito particular.
A partir da perspectiva limitada de um imigrante temporrio
ilegal, Valdir relata essa diferena e assim constri uma ideia gene280 ralizante dos austracos. Tais generalizaes, presentes tambm em
outras entrevistas, so construdas atravs da referncia ao pronome

eles. Diferenas econmicas, de classe e de educao, entre outras,


muitas vezes no so levadas em conta. Frequentemente situaes
so interpretadas de forma simplificada como diferenas nacionais.
A importncia dada fotografia no momento da entrevista tambm tem a ver com o remorso sentido em relao ao ex-patro, o
qual, segundo o entrevistado, no sabia de sua documentao falsa.
Oito meses depois de sua entrada na ustria, inesperadamente, Valdir foi extraditado, momento em que seu patro finalmente teria
tomado conhecimento de sua situao ilegal no pas. Assim ele
explica na entrevista:
Foi l na casa do patro que eles me pegaram. Eu estava
dentro do quarto. Olha, eles [o patro e sua famlia] levavam a gente aqui [na mo Valdir gesticula]. Chegou um
ponto que ele comeou a chorar, desandou a chorar, de pena
que eu ia embora, sabe? Porque a gente era tudo [pra ele],
trabalhador. Porque a gente vai l pra ganhar dinheiro, no
? Ento tem que... pra mim no importava quantos servios eu iria ter, as horas que eu iria ficar l, eu queria ganhar
dinheiro.128

Esse trecho demonstra como a situao de ilegalidade lhe causou dilemas morais. Todos os migrantes entrevistados sofreram ao
viver longe da famlia, mas os que estavam em situao legal tinham
a possibilidade de se integrar sem receios sociedade de destino.
Sobretudo no caso dos estagirios, o programa visa estimular sua
integrao famlia dos empregadores.129
No caso de muitos imigrantes ilegais entrevistados, entretanto,
essa compensao permanece bloqueada ou dificultada. Para Valdir,
128 Entrevista realizada com Valdir Alberto Becker (nome fictcio), em Marechal Cndido
Rondon, em 2007, por Mri Frotscher.
129 No programa da Agroimpuls, por exemplo, os estagirios devem morar com as famlias
dos proprietrios, o que os ajuda de certa maneira a estabelecer contatos mais intensivos ou
mesmo amizades. Alguns dos ex-patres chegaram a visit-los depois no Brasil. Um dos
ex-estagirios casou com uma sua e Mrcio, entrevistado citado anteriormente, convidou
um amigo suo para ser padrinho de seu filho.

281

por exemplo, um contato mais prximo e aberto com seu patro lhe
parecia impossvel por causa dos papis forjados. Era complicado,
para ele, lidar com esse conflito moral insolvel, o que tornou sua
estadia difcil, ainda mais aps ter constatado a reao do patro ao
ser descoberto pela polcia. Na retrospectiva, durante a entrevista,
o constrangimento em no poder revelar sua situao lhe comove
emocionalmente mais do que o relato de sua extradio.130
Na prtica da histria oral, assumimos que o passado sempre
reinterpretado no momento da entrevista. Durante o processo de
rememorao, a reconstruo dos fatos combina passado, memria e interpretao, os quais sempre se encontram entrelaados.
Constatao similar pode ser considerada na interpretao de relatos baseados em fotografias.
Momentos marcantes no passado muitas vezes so fixados
atravs de fotografias. Elas podem confirmar ou mesmo construir
memrias individuais e coletivas. Fotografias podem constituir a
base para determinadas interpretaes do passado, o que no quer
dizer que elas no possam ser ressignificadas mais tarde. No caso
acima, deve-se distinguir dois diferentes momentos. O primeiro est
no passado, quando a fotografia foi tirada. Naquela ocasio, o motivo
da fotografia foi associado a uma suposta diferena cultural e nacional. O segundo o momento da entrevista, quando Valdir explica e
reinterpreta a situao fotografada. Nessa oportunidade, ele justifica
no ter revelado sua situao ilegal ao patro em razo de seu firme
propsito de ganhar dinheiro a qualquer custo, um objetivo que ele
relativiza durante o resto da entrevista. Na poca da entrevista, a distncia temporal e geogrfica o faz observar a situao a partir de

282

130 O principal objetivo dos imigrantes ilegais entrevistados era acumular dinheiro para
investir no Brasil. Valdir, por exemplo, vendeu um terreno para poder pagar os papis falsos, cerca de R$ 3.800,00, e os custos da viagem. Trabalhadores ilegais so mais frequentemente e facilmente passveis de explorao. So em geral mal pagos e no tm chance de se
defender perante o empregador. Muitas vezes no fcil reobter o dinheiro investido. Uma
extradio muito cara e para aqueles que no trabalharam o suficiente para pagar os custos
do voo e dos papis, a runa financeira. Alm disso, a extradio pode causar problemas
legais, os quais bloqueiam o retorno por um determinado perodo.

uma nova perspectiva, a ponto de representar seu projeto de vida


no passado como uma loucura. A amizade com o seu ex-patro
e o constrangimento em relao situao so a tnica de um dos
momentos mais comoventes, quando ele se refere fotografia e no
s diferenas entre ambos os pases.
A migrao ilegal pode levar a outros problemas emocionais
com resultados mais drsticos. Alguns entrevistados relataram que
o medo permanente de serem pegos pelas autoridades os levou a
problemas emocionais. Em entrevistas, alguns caram em lgrimas,
outros tambm falaram da vontade de se submeter a tratamento
psicolgico.
Os problemas ligados a uma estadia ilegal obviamente influenciam a percepo do outro. Atravs da pesquisa, percebemos que a
migrao temporria ilegal pode levar a uma nfase maior das diferenas ou a uma viso mais superficial ou mesmo distorcida da sociedade de destino. Tais perspectivas podem ser compreendidas, pelo
menos em parte, se levadas em conta as dificuldades de integrao.
O sentimento de insegurana, consequncia da estadia ilegal, pode
restringir os contatos sociais com nativos. Em razo das condies
da estadia, diversos entrevistados afirmaram procurar se aproximar
de outros brasileiros em igual situao. Com os seus conterrneos,
afirmaram sentir-se mais seguros e confortveis. Mas restringindo
seus contatos aos conterrneos permanecem outsiders e dificilmente
conseguem olhar por dentro da sociedade de destino.
O tipo e a recorrncia de fotos do outro depende, tanto para
os migrantes legais como para os ilegais, da durao da estadia. As
primeiras normalmente focalizam mais as diferenas e revelam mais
os estranhamentos e surpresas. Com o tempo esse tipo de foto de
turista rareia, medida que o migrante vai se acostumando com o
novo meio.
No caso da maioria dos entrevistados, as condies e a longa jornada de trabalho limitam seu tempo para lazer e turismo. Em geral
suas fotografias focalizam cenas do trabalho, da casa e da paisagem 283

da regio onde moram. Sobretudo os estagirios mostraram ter


tirado muitas fotos do ambiente de trabalho, uma especificidade
desse tipo de migrante mais especializado e interessado no aperfeioamento profissional. Entre eles tambm a recorrncia de fotografias feitas durante viagens com fins tursticos foi relativamente maior
que entre os migrantes ilegais entrevistados. Estes ltimos afirmaram limitar seu raio de deslocamento por causa da advertncia dos
mediadores em no atravessar fronteiras nacionais ou no se expor a
outras situaes que pudessem facilitar a descoberta de sua condio
de ilegal no pas. Uma simples blitz pode lhes custar a extradio.
Muitos relataram evitar situaes em que teriam que mostrar seus
papis ou mesmo contatos que poderiam lhes obrigar a revelar sua
verdadeira identidade. Esse permanente medo assim expresso por
Valdir: Ah, [eu me sentia] sempre com o p atrs. [...] que nem o
cara fugir da cadeia. Os riscos foram confirmados em 2006, quando
muitos brasileiros do Oeste do Paran foram descobertos pela polcia e extraditados da ustria.131
Apesar de no podermos detalhar essas consideraes neste
artigo, acreditamos que comparar elementos da migrao legal e da
ilegal bem como observar a influncia da durao da estadia podem
demonstrar outros aspectos interessantes sobre a construo de imagens do outro.
Consideraes finais
Neste artigo, procuramos mostrar algumas possibilidades metodolgicas utilizadas na interconexo entre fotografia e histria oral
no trabalho de campo. Usar ambas as fontes conjuntamente pode
levar a uma compreenso mais complexa e aprofundada das experincias, sentimentos e expectativas de migrantes. Como visto, alguns
entrevistados associaram intuitivamente fotografias aos seus relatos
de histria de vida, ao dispor previamente fotografias para a entre284

131 As deportaes foram noticiadas em uma srie de reportagens de um jornal local (O PRESENTE, 2006).

vista, como forma de mostrar suas experincias no exterior. A


interconexo entre fontes orais e fotografias possibilita acompanhar
o complexo processo de construo de autorrepresentaes e imagens do outro.
A interconexo de fotografia e histria oral resulta em algo mais
do que uma soma de possibilidades, abre novas problemticas e
perspectivas. Entendemos que esses aportes metodolgicos so vlidos no apenas para estudos migratrios, mas tambm para outras
pesquisas dedicadas histria oral e fotografia.
Este estudo de caso procurou levantar aspectos relevantes sobre
fotografia e seus significados para os migrantes. Analisar migraes
internacionais contemporneas com base em fotografias seria impossvel sem levarmos em conta o progresso tecnolgico, a revoluo
digital e a globalizao. Fotos enviadas por e-mail e disponveis em
redes de relacionamento sociais, salas de discusso e outras possibilidades de comunicao da internet criaram novas formas de sociabilidades e constituem ainda um desafio para a pesquisa cientfica. Mas
elas apontam para alguns problemas em relao ao seu uso. O perigo
de invaso da esfera privada e a possibilidade de manipulao nos
lembram dos cuidados e limites de seu uso. Outro problema se refere
enorme massa de fotografias e sua disponibilizao por tempo
no determinado. Em que pese isso, o tema deve ser considerado, e
no apenas pelos estudos migratrios, uma vez que tais imagens tm
feito cada vez mais parte de nossa vida cotidiana.
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p. 7-72.

TE

PAR

VI

PARTE VI
HISTRIA ORAL, ENSINO E DIFERENA

1.Entre o que era e o que poderia ter sido:


a histria oral e os desafios para pensar o passado
Geni Rosa Duarte

Que relaes podemos estabelecer entre histria oral e ensino de


histria? Ao colocar em questo essas relaes, interessa-nos, mais
do que discutir as possibilidades do uso da metodologia da histria
oral nos cursos de histria, refletir sobre as relaes entre o prprio
conhecimento histrico e seu ensino e, nessa perspectiva, avaliar o
papel que a histria oral pode exercer na discusso sobre o que mais
recentemente se convencionou chamar de didtica da histria.
Nesse sentido, queremos focalizar especificamente a questo
do direito ao conhecimento do passado, a partir da posio de
antemo assumida de que esse direito muitas vezes negado pela
imposio de um conhecimento histrico que pouco tem a ver
com a vida das pessoas a quem ele se dirige. Centrado apenas e to
somente no plano da escola, esse conhecimento meramente escolar ainda carrega o peso dos procedimentos cientificistas gestados
no decorrer do sculo XIX no processo de constituio da histria
enquanto disciplina. Muitas reformas curriculares, nesse sentido,
no passaram de mudanas na enumerao de itens de contedo, a
partir dos critrios no momento valorizados. Reconheceu-se sempre no ensino de histria uma funo formativa, mas reduziu-se
o sujeito histrico, muitas vezes, condio de objeto, necessariamente ativo no ato de absorver informaes, mas passivo no ato de
produzi-las.
289
Mais do que a discusso sobre procedimentos e mtodos para

transmisso dos conhecimentos histricos, a didtica da histria,


nos termos propostos por Bergmann e Rsen, coloca dentro do
seu campo de preocupaes a questo da conscincia histrica. Para
Rsen (2001, p. 57), especificamente,

se entende por conscincia histrica a soma das operaes


mentais com as quais os homens interpretam sua experincia
da evoluo temporal de seu mundo e de si mesmos de forma
tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prtica no
tempo.

Para Bergmann, a formao de uma conscincia histrica se d


num contexto social e histrico e conduzida por terceiros, intencionalmente ou no por isso, exatamente, ela passa a ser preocupao
da didtica da histria (BERGMANN, 1989/1990, p. 30). Essa concepo, segundo Lus Fernando Cerri (2002), ultrapassa a questo
conscincia/no conscincia nos termos propostos por Gadamer, ou
a concepo etapista e evolucionista propiciada por uma dada leitura
de Heller, tangenciando muito mais a multiplicidade de focos (histria oficial, contra-histria, etc.) de Marc Ferro.
Num artigo em que discute essas relaes pensando-as a partir do ensino de histria na Alemanha, Jrn Rsen salienta que a
nfase no cientificismo do sculo XIX, presente na autodefinio da
disciplina, fez com que se perdesse um importante princpio, o de
que a histria enraizada nas necessidades sociais para orientar a
vida dentro da estrutura tempo (RSEN, 2006, p. 7). Com isso, as
questes da disciplina passaram a se autorreferir prpria comunidade de historiadores, o que fez com que as questes ligadas ao
ensino passassem a ter um papel secundrio, voltadas discusso
das melhores tcnicas para sua correta transmisso.
Rsen identifica na Alemanha, at os anos 1960, um posicionamento ligado ao historicismo, em que a histria enquanto disciplina
se encontrava legitimada pela sua mera existncia, ou seja, quando a
290 histria formal no se dirigia essncia do saber histrico escolar.
Percebia-se o conhecimento histrico como sendo gestado exclusi-

vamente atravs do discurso interno dos historiadores profissionais,


cabendo a outros, no historiadores, portanto desvinculados da pesquisa histrica, transmitir esse saber sem participar da sua gerao
(RSEN, 2006, p. 10).
Nos anos 1970, segundo o autor, algumas mudanas muito expressivas se produziram na reflexo sobre o conhecimento histrico e
sua relao com a didtica da histria, a partir de um movimento
de autorreflexo e de autoentendimento histrico, aproximando esse
conhecimento tambm da vida prtica e da educao em particular.
Se, por um lado, esse movimento aproximou muitos historiadores
de uma vertente especificamente pedaggica, preocupada em grande
parte com a reformulao curricular, subestimando as caractersticas peculiares da histria como campo de aprendizado, por outro
lado, propiciou a outros a reflexo sobre os processos e funes da
conscincia histrica em geral, na escola, mas tambm alm dela.
Nos termos colocados pelo autor:
A didtica da histria agora analisa todas as formas e funes do raciocnio e conhecimento histrico na vida cotidiana, prtica. Isso inclui o papel da histria na opinio
pblica e as representaes nos meios de comunicao de
massa; ela considera as possibilidades e limites das representaes histricas visuais em museus e explora diversos
campos onde os historiadores equipados com essa viso
podem trabalhar. (RSEN, 2006, p. 12).

Em suma, h o reconhecimento de que o conhecimento escolar


tem um papel ativo tambm fora da escola, no se podendo reduzir
o espao escolar a mero espao de recebimento de influncias externas. Embora no se possa considerar o aluno tbula rasa sobre a qual
se vai imprimindo conhecimentos, tambm se reconhece que o saber
escolar tem um papel social ativo, para alm desse espao.
No Brasil, a discusso dessas questes relativamente recente.
Vivamos at cerca de quarenta anos um modelo de escola secund291
ria elitista, no interior da qual a discusso das melhores formas de

transmisso impunha um currculo de histria que trazia de fato a


ideia de uma nica civilizao branca e europeia como destino
final dos povos. Isso resultava num contedo organizado segundo
um modelo evolucionista, com nfase na histria nacional como realizao desse destino. Por outro lado, as reformas propostas e levadas
a efeito pelos governos militares ditatoriais relegaram a histria escolar a um papel extremamente secundrio, ligado a uma concepo
cvica, atrelando seu conhecimento aos limites impostos pela chamada Doutrina da Segurana Nacional. A imposio da escola de
oito anos trazida pela Lei 5.692/71, formada pela mera sobreposio
do ensino primrio e ginasial e a nfase numa educao mais tecnolgica, ligada a uma pulverizao dos chamados estudos humansticos (desqualificando tudo aquilo que no estivesse ligado s
determinaes impostas pelos critrios denominados tcnicos),
tinha como alvo o afastamento completo do ensino da comunidade
de historiadores. Nesse processo, a questo das licenciaturas curtas,
sobrepondo-se aos profissionais formados nos cursos de histria e
geografia, sinaliza e refora essa concluso.
Nos anos 1980, vrios fatores contriburam para centrar o foco
das discusses no ensino e na pesquisa histrica. A luta das associaes de classe de professores pela reinstituio nos currculos
escolares das disciplinas histria e geografia abriu possibilidades de
debates de vrias propostas e de experimentaes pelos vrios sistemas de ensino. Ao mesmo tempo, a emergncia de movimentos
sociais a partir de 1970, que apareciam no cenrio pblico fragmentados, mas se reproduzindo e se expressando de forma singular,
mantendo-se como formas autnomas de expresso de diferentes
coletividades, segundo Eder Sader (1988, p. 198), fez surgir necessidades e campos de possibilidades. A memria se apresentou como
um campo de luta em suas mltiplas dimenses, descerrando campos de produo de conhecimento que no o acadmico, mostrando
que as diferentes comunidades e movimentos tambm apresentavam
292 necessidades de pensar historiograficamente suas experincias. Um

dos resultados mais evidentes foi quebrar a lgica reprodutivista


do conhecimento histrico escolar, o que foi muito bem colocado
numa exposio feita a um conjunto de professores, certa vez, por
um antigo operrio, envolvido no processo de preservao do espao
da Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus na periferia de
So Paulo, palco de uma longa greve, fundamental, segundo ele, para
a memria do prprio movimento operrio: Quando eu era estudante eu odiava histria, matria decorativa e sem sentido para mim;
agora, eu s fao histria.
Nessa mesma direo, algumas propostas curriculares de histria, das muitas apresentadas nesse perodo, problematizaram o
papel dos seus professores, do ento primeiro e segundo graus, nesse
ensino, enfatizando a necessidade de considerar a historicidade deles
tambm como sujeitos dessa relao de aprendizagem. Nessa direo, abriram-se possibilidades para que tambm sua voz se fizesse
presente no debate, seja na articulao de propostas curriculares
caso da Proposta Curricular da Coordenadoria de Estudos e Normas
Pedaggicas (CENP) da Secretaria de Estado da Educao de So
Paulo, apresentada em sua verso final em 1989, embora no implementada , ou atravs das publicaes da ANPUH por exemplo,
no volume Repensando a histria, organizado por Marcos A. da Silva
(1984) , ou ainda nos Encontros Nacionais Perspectivas do Ensino
de Histria a partir de 1988, para citar apenas alguns exemplos.
Vale a pena destacar alguns pontos dessa proposta elaborada
em So Paulo, citada acima. Tentando articular o conhecimento do
passado a partir das questes vivenciadas por diferentes grupos no
presente, inclusive minorias, como mulheres, negros, ndios, propunha-se ao professor conviver e trabalhar com o indeterminado, o
indefinido, o diferenciado, dentro de uma perspectiva de que a Histria uma prtica social e o vir a ser construdo pelo ser social
em suas vrias dimenses do presente132 (SO PAULO, 1989, p. 9).
132 Embora a proposta no tivesse sido implementada, ela gerou muita discusso, tendo sido
assunto de inmeros trabalhos acadmicos, dissertaes e teses, e embasando outras propostas curriculares.

293

No por acaso, portanto, que as discusses caminharam nesse


sentido nas propostas curriculares, ao mesmo tempo que se colocava
no debate o direito memria por parte de populaes muitas vezes
excludas dessas prerrogativas. Exemplificando: em 1991, realizou-se em So Paulo o Congresso Internacional Patrimnio Histrico
e Cidadania, em que Maria Clia Paoli destacou a necessidade de
fazer emergir um outro horizonte historiogrfico, apoiado na possibilidade de recriar a memria dos que perderam no s o poder,
mas tambm a visibilidade de suas aes, resistncias e projetos
mesmo que essas memrias tenham um fraco nexo com a histria
instituda (PAOLI, 1992, p. 27).
no interior desse imenso campo de possibilidades, portanto,
que queremos situar a relao histria oral/ensino de histria. Na
medida em que o currculo deixa de se constituir numa relao de
contedos organizados a partir de uma lgica externa relao de
sujeitos, isto , professores e alunos, abre-se o campo para a incorporao da memria, no como primo pobre da histria, ou como
ponto de partida para a interpretao dos dados, mas como algo que
porta a marca da experincia, no dizer de Raphael Samuel. Vale a
pena citar o que esse autor salienta nessa questo:
[...] a memria, longe de ser meramente um receptculo
passivo ou um sistema de armazenagem, um banco de imagens do passado, , isto sim, uma fora ativa, que molda; que
dinmica o que ela planeja esquecer to importante
quanto o que ela lembra e que dialeticamente relacionada ao pensamento histrico, ao invs de ser apenas uma
espcie de seu negativo. (SAMUEL, 1977, p. 44).

E exatamente como um campo historiogrfico, a memria,


situada na relao de ensino, transcende a mera enumerao ou
organizao dos contedos. Ela alicera toda a relao educativa,
possibilitando que esta v alm do mero inculcar de conhecimentos
294 prontos e acabados de uma gerao a outra. Ou seja, numa relao
que fundamentalmente de trocas, permite o compartilhamento de

experincias, de diferenas geracionais, tnicas, de gnero e outras


que possibilitam a emergncia de todos, alunos e professores,
como sujeitos, e no como meros objetos de uma relao pensada e
planejada alhures.
Mais ainda, centrando-me nas questes levantadas por Bergmann referente didtica da histria nas suas relaes com o saber
histrico, indissocivel do processo de pesquisa histrica, tenho por
objetivo problematizar algumas questes a partir de situaes vivenciadas no interior de um projeto de investigao e ao mesmo tempo
de interferncia num conjunto de escolas paranaenses. So questes
e formulaes ainda provisrias, mas que procuram situar o lugar
que a histria oral poderia ter e tem no processo de ensino da histria enquanto disciplina e enquanto dimenso vivida.
Vou me referir, especificamente, a questes levantadas a partir
de uma pesquisa (DUARTE, KOLING, DEITOS, 2007) desenvolvida
em algumas pequenas cidades do estado do Paran, especificamente
em ncleos rurais133 dos municpios de Ibema, Guaraniau, Campo
Bonito e Catanduvas. Nossa porta de entrada nessas pequenas
comunidades foi a escola local, que nos possibilitou uma primeira
problematizao de questes e nos direcionou para os primeiros
depoimentos.
Desde os primeiros contatos, foi visvel que essas cidades e
principalmente esses pequenos ncleos populacionais rurais vm
sofrendo um processo de encolhimento, a partir do desaparecimento ou inviabilizao de pequenas propriedades. Embora a regio,
em dcadas passadas, no tenha sido atingida pelos investimentos na
agricultura de gros e na pecuria, devido ao seu relevo acentuado
e ocorrncia de terras melhores para essa atividade mais a oeste
do estado, atualmente isso vem acontecendo, principalmente com a
formao de grandes fazendas de gado. Ao mesmo tempo, a regio
vivenciou, nas ltimas cinco dcadas (como, alis, todo o estado do
133 Refiro-me a pequenas comunidades, vilas ou distritos e assentamentos, concentrando
moradores que vivem ou viveram da explorao de pequenas propriedades, normalmente
contendo uma pequena escola, igreja e dispondo de alguns servios.

295

Paran), um processo acentuado de formao de ncleos urbanos,


ou seja, de emancipao de pequenos distritos, que se transformaram em pequenas cidades (as quais vivem, basicamente, ainda hoje,
de atividades rurais).
Deparamo-nos com situaes em que a escola desenvolvia projetos ligados a depoimentos orais, normalmente com pioneiros ou
moradores mais antigos. Com isso, os alunos entravam em contato
to somente com aquilo que tinha sido, ou seja, com narrativas que
enfatizavam, de forma muitas vezes heroica, a chegada dos migrantes a essas terras, a derrubada da mata, o estabelecimento de atividades produtivas e a esperana de que aquele ncleo, um dia, pudesse
virar cidade.
Todavia, a situao presente era outra. As escolas viam, ano a
ano, diminuir o nmero de alunos. As atividades produtivas transformavam-se mais em atividades de subsistncia, fazendo com que
a migrao de pessoas mais jovens fosse quase uma necessidade. As
grandes fazendas traziam uma populao flutuante, ou seja, empregados que se deslocavam de uma a outra, na dependncia do grande
proprietrio. Muitas vezes as equipes escolares conheciam muito
bem os antigos moradores, mas quase nada sabiam dessa populao
nova, que era vista como se no fizesse parte do lugar.
Para poder apreender as dinmicas dessa situao, considerando
que ela no se explicava meramente por questes econmicas, nosso
objetivo era dialogar com as experincias nos termos propostos por
Thompson, ou seja, pensar os depoentes como sujeitos que experimentam suas situaes e relaes produtivas determinadas como
necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida tratam essa experincia em sua conscincia e sua cultura [...] das mais
complexas maneiras [...] e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, atravs das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez,
sobre sua situao determinada (THOMPSON, 1981, p. 182). Dessa
forma, voltvamos para o presente vivido para, a partir dos conflitos
296 e acomodaes, procurar apreender outras realidades, no tempo e

no espao, narradas enquanto experincias individuais ou coletivas.


A ocupao dessa regio, de fato, se deu por migraes tanto do
Sul do Brasil (Santa Catarina e Rio Grande do Sul) como de outros
estados (Minas Gerais e estados nordestinos). A narrativa de um
passado de desbravamento da terra, por um lado, contrastava com
as muitas formas de acesso a ela: por compra de ttulo, por compra
de direitos de antigos posseiros ou mesmo atravs da ocupao ou
da posse. Muitas vezes os posseiros eram chamados, pelos migrantes
sulistas recm-chegados, de paranaenses, sendo destacado que estes
tinham condies de se deslocar facilmente, diante da disponibilidade de terras a serem ocupadas, mas muitos sulistas tambm se
fixaram na regio como posseiros. Ainda nos anos 1950, ocorreram
deslocamentos a partir das fazendas cafeicultoras de So Paulo e do
Norte do estado do Paran.
Segundo Schreiner (2002), essa populao j fixada na regio
provavelmente provinha das antigas fazendas de gado dos campos
de Palmas e Guarapuava, onde viviam como agregados, responsveis
pelas culturas de subsistncia at finais do sculo XIX, sobrevivendo
de atividades de coleta de madeira e erva-mate, bem como da criao solta de porcos tambm exercidas por muitos dos migrantes
mais recentes. Todavia, esse processo de fixao dos migrantes mais
recentes no lugar aconteceu a partir de deslocamentos causados por
situaes as mais diversas. A ocorrncia de pequenas propriedades
se deu ao lado da estruturao de latifndios, seja para especulao pura e simples, seja para a explorao de atividades econmicas
(hortel, fumo, oliveiras, etc.), o que muitas vezes ocasionou alguns
conflitos.
Os depoimentos colhidos nos pequenos distritos e zonas rurais
tematizam a questo da migrao a partir das vivncias, dos conflitos, das adaptaes e da permanncia nesses locais, mesmo aps
as mudanas que se deram com muita intensidade nos ltimos cinquenta anos. Essas transformaes atingiram no apenas o meio
ambiente, que sofreu um violento processo de desmatamento e des- 297

truio da cobertura vegetal, como tambm as formas de apropriao da terra, o trabalho e a produo.
D. Ivone, 84 anos na poca da entrevista, moradora do distrito do Borman, em Guaraniau, relatou as vrias migraes que
viveu. Primeiro veio de Santa Catarina para o Paran com o marido
e dois filhos, obtiveram uma posse, venderam, compraram outras
terras, ocuparam reas na regio, em diversos municpios. Foram
para Rondnia, voltaram. Hoje, viva e aposentada, ela vive num
pequeno pedao de cho, agora escriturado (segundo ela, comprado
do governo). Pelo seu relato, o que a atraiu, e ao marido, foi justamente a facilidade para adquirir terra boa e abundante. Assim D.
Ivone relata essa atrao:
A onda da febre do ouro, todo mundo vinha pro serto pra fazer
fortuna, l a terra era muito picada, ns tava na colnia e, da, pra
c diz que no precisava nem limpar a roa, plantava um milho e
botava os porco, no precisava nem colher nem limpar a roa, nada,
ento deu uma febre do ouro, que eu digo, ns viemos, todo mundo
pra c e ns viemos junto.134
bastante significativa a construo da imagem a febre do
ouro, lembrando a conquista do oeste dos filmes norte-americanos.
Decorre disso a sua autorrepresentao como pioneiro, desbravador,
civilizador, dentro da qual no faltavam as referncias aos ndios,
como se ver adiante. A facilidade de criar porcos no sistema de safra
(criao solta) organizava as relaes das pessoas do lugar. E era
fcil, ento, abrir uma posse:
Ah, entre os povo do lugar, o povo indicava, , l tem um
lugar muito bom, e ia l e tomava posse por conta, no
tinha no ningum morando, e tinha ndio, muito ndio, a
gente tem muito medo dos ndio, eles roubavam criana e
da meu marido cuidava da safra e eu comecei dar aula, ai,
todo mundo era analfabeto, ningum sabia nada, e da eu

298

134 Entrevista realizada com D. Ivone, no Distrito de Borman, Guaraniau, Paran, em 2008,
por Geni Rosa Duarte, Paulo Jos Koling e Nilceu J. Deitos.

comecei a dar aula e ficava sozinha e ele ia pra safra e da eu


sofria com as criana, buscando lenha de longe, buscando
gua de longe.135

A narrativa vem carregada da descrio de dificuldades, dos


sofrimentos, do desafio de ocupar uma terra coberta pela floresta
alis, com a destruio completa de quase toda a madeira ento
existente. Mas o que fica tambm a afirmao de que era possvel
conseguir terra, estabelecer-se e depois viver como pequeno proprietrio, criada uma estrutura para tal mesmo sentindo que os tempos haviam mudado bastante. A valorizao da solidariedade, to
necessria nas condies extremas de vida, era essencial, a ponto de
negar-se a existncia de conflitos pela terra: No, naquele tempo
no dava nada, era tudo companheiro, e era muito companheirismo,
tinha muito companheirismo, e um ajudava o outro, assegura D.
Ivone, muito embora o estranhamento em relao populao indgena estivesse sempre presente. Configurava-se, nesse sentido, a
construo de uma memria que estruturava uma identidade, um
sentimento de pertencimento. Ou seja, moldava um sentimento
de continuidade e de coerncia na reconstruo que um grupo ou
pessoa faz de si mesmo, nesse processo definindo tambm o Outro
(POLLAK,1992).
Nesse sentido, a migrao e a fixao no novo lugar representavam a recriao de formas de vida comunitria, na qual os elementos dos locais de provenincia se perpetuavam: a vida se constitua a
partir da igreja, da escola, de outros locais de convivncia, do armazm, etc. A concentrao de pequenos proprietrios tornava possvel a existncia de uma estrutura de escoamento da produo, que,
por sua vez, favorecia o crescimento e expanso do local, mas de
forma mais extensiva. Desse modo, o estabelecimento de armazns e
de cerealistas possibilitava a comercializao do que era produzido.
D. Ivone relata tambm a existncia de inmeras serrarias, mas o
processo de desmatamento foi alm do uso da madeira, pois muitas
135 Entrevista com D. Ivone. Ver nota 136.

299

espcies (nobres, inclusive) foram simplesmente descartadas.


No distrito de Guapor, tambm em Guaraniau, a forma de
posse da terra foi outra. A venda dos lotes por uma companhia
empreendedora, que conseguiu a posse de vastas extenses de terra
durante o governo Lupion, j era planejada para a formao de um
ncleo urbano que poderia vir a tornar-se cidade. Ao iniciar a venda,
j havia posseiros residindo no lugar, e eles se referem a alguns conflitos, porm no especificam, nos depoimentos, onde ocorreram.
O Sr. Agostinho, ainda hoje morador do ncleo de Guapor,
identifica um processo de povoamento da regio a partir do incentivo a pequenas propriedades, processo que hoje se reverteu. Assim
se refere ao tempo em que chegou regio:
No tempo em que ns chegamos aqui tinha bastante terra
que era do Estado, deveria de ser, porque a gente tambm
no entendia muito da... e tinha gente que tinha bastante
terreno e da foram dividindo em pedaos pequenos e foram
vendendo cinco alqueires pra um, dois, trs pra outro, dez,
mais ou menos assim, e da quando chegou umas horas
esses que tinham comprado essas pequenas propriedades
foram vendendo novamente pra fazendeiro, que hoje virou
em duas ou trs fazendas daqui at o Rio Piquiri, s daqui
pra cima que stios mais pequenos, mais da ... no ficou
os mais pequenos, s ficou os mais fortes.136


A sua chegada, entretanto, foi anterior prpria organizao
e loteamento do lugar. A memria junta os perodos antes da formao do ncleo urbano com os posteriores, e com o presente, no qual
figura com fora o processo de concentrao fundiria:
Plantava feijo, arroz, milho, lidava muito com safra que se
falava antigamente, hoje no se fala mais... roava o mato e
da soltava a porcada pra engordar, era a maior fonte de...

300

136 Entrevista realizada com Agostinho, no Distrito de Guapor, Guaraniau, em 2008, por
Paulo Jos Koling.

Da depois quando foi criado o patrimnio137 que foi loteado, da foi feito lotes pequenos e comeou a vir muita gente
do Norte e comearam a diversificar a plantao e comearam a plantar o algodo, que no conhecia at ento, da
bastante anos foi plantado o algodo, como eu posso falar...
Fazia azeite l... hortel, aqui foi cultivado o hortel tambm e da isso ficou at a dcada de [19]70, caf tambm,
at setenta e poucos e o povo comeou a vender as chcaras
pequenas, os fazendeiros foram entrando e comprando e
esse povo foi dispersando e hoje ns fiamos em bem pouca
gente.138

Depois, afirma que entrou na regio como posseiro, narrando


como se dava a legalizao das terras ocupadas, quando se dependia
inclusive dos relacionamentos polticos:
Voc entrava em um terreno, abria um pedao, na poca,
marcava um territrio e... chamava posseiro na poca, no
precisava comprar, aqueles que queriam escriturar, sempre tinha um cidado mais inteligente que ia em Curitiba,
pegava uma procurao daqueles posseiros, os documentos
e tal e ia l e escriturava em nome dos posseiros.139

No sem conflitos, decorrentes inclusive das lealdades polticas que iam se formando no processo de constituio dos diferentes ncleos urbanos na regio, desagregando o sistema de respeito
aos contratos de posse, muitas vezes feitos sem documento preliminar nenhum: um vendia, ia embora, o outro dizia que era dono
e pronto!. A disputa por terras possibilitava expulsar os posseiros:
uns coitadinhos!, segundo o Sr. Agostinho, inclusive valendo-se de
outros expedientes:
Vamos fazer uma comparao bem simples: eu tinha uma
posse, ele tinha outra e ela outra, da voc ia l no Estado e
documentava essa terra, pegava um ttulo a troca de arru137 Patrimnio era o pequeno ncleo urbano formado.
138 Entrevista com Agostinho. Ver nota 138.
139 Entrevista com Agostinho. Ver nota 138.

301

mar 100 votos ou 1.000 votos ou dinheiro mesmo l pros


cabeudo, a qu que ele fazia, ele vinha com o mapa ali
daquela terra ali, que ele queria te comprar o teu direito,
se voc no queria vender ou no vendia e emperrava, eles
davam um jeito de te arredar do lado, outro vendia a troco
de mais de nada, outro se assustava e saa e largava... ento
era mais ou menos assim que funcionava... dali a pouco teve
gente que ficou com bastante terreno, tambm pegava cinco,
seis, dez cidado que tinha o direito ali, como eles diziam de
no existir divisa respeitada por toco... e acontecia isso a! E
tinha algum que emperrava um pouquinho e saa de qualquer maneira, no tinha... e da eles ficavam assustando que
ia mandar polcia, o exrcito, aquela coisa toda... levavam
toda vida na base do susto! No teve caso assim que fizeram
massacre ou que mataram algum ou judiaram... mas, no,
no existiu! Na regio aqui, no!140

Com uma narrativa bem articulada, o Sr. Arthur, cartorrio do


distrito, relaciona a implantao do ncleo urbano venda de terras
pertencentes a um grupo (sem dizer como elas foram conseguidas),
justificando a tentativa (que no deu certo) de transformar em municpio o distrito. Ao contrrio dos posseiros e pequenos proprietrios
que se fixaram no local, seu referencial era o urbano, planejado e
estruturado para se tornar uma das sedes regionais:

302

Foi loteado ento esses oitocentos e tantos alqueires, foi


criado uma rea urbana e loteado o resto em chcaras maiores, mais distantes, e menores, mais prximas, que era uma
forma de prev j uma futura cidade: os pequenos proprietrios mais prximos, e os maiores mais longe um pouquinho, ento foi assim que comeou o Guapor. [...] Muito
bem, montada essa parte de estrutura de loteamento, foram
distribudo avisos para as firmas corretoras, especialmente
o do Norte do Paran, e um grupo de corretores de l comeou a trazer gente de l de Bahia, Minas, Sergipe, Alagoas,
Cear, de todos os lugares. Se fosse procurar h anos atrs
aqui no Guapor acho que encontrava um morador de cada
140 Entrevista com Agostinho. Ver nota 138.

estado. Ento veio um grupo muito grande do Nordeste,


uma parte de So Paulo, do Sudeste, Minas veio muita gente
e da, mais tarde, veio tambm um grupo do Rio Grande do
Sul, Santa Catarina e mesmo do Paran, e foi criado ento...
isso aqui encheu de gente.141

A narrativa que se repete sempre de um tempo passado de afluncia. Como veio para a regio quando esta se encontrava em uma
situao mais estruturada, a viso que ele apresenta do local de
uma totalidade a partir da constituio de uma amostra de todos os
estados brasileiros, estabelecida sem conflitos, numa perspectiva de
evoluo e progresso:
Plantavam milho, arroz, feijo. No incio ento, aqueles
nordestinos montavam ento aqueles barraquinho feito de
madeira rodeado de eucalipto, de palmito e com a cobertura com a folha de palmito tambm. Mais tarde j foram
fazendo uma casinha melhor, da veio a primeira serraria
do Guapor. Tinha muita madeira aqui, tinha muita peroba,
cedro, canela, tudo que tipo de madeira tinha aqui e muito
palmito... [...] Ento foi esse o comeo do Guapor, foi ento
a partir de [19]65, 66, 68, 70.142

Fica claro, portanto, que as formas de ocupao da regio mesclam no s diferentes migraes, mas estas ocorriam segundo um
processo heterogneo de apropriao da terra, em que convivem
diferentes formas de entender o seu significado. A privatizao da
terra, desse modo, conviveu de forma conflituosa ou no com
outras formas nas quais ela era entendida no como mercadoria,
mas amalgamada ao indivduo, como lugar de trabalho e vivncia.
Esse processo no se relacionava ao modo como se dava a posse da
terra, mas s formas de sua utilizao e nesse sentido a organizao comunitria dos pequenos proprietrios, no necessariamente
141 Entrevista realizada com Arthur, no Distrito de Guapor, Guaraniau, Paran, em 2008,
por Geni Rosa Duarte e Paulo Jos Koling.
142 Entrevista com Arthur. Ver nota 139.

303

no formato mais ou menos urbano, dispondo de alguns servios e


formas de deslocamento da produo, como destaca o Sr. Arthur
para Guapor, tornava-se essencial.
Nesse processo, outras relaes e outras formas de organizao
social se configuram. A memria fixada exclusivamente nos antigos moradores, naqueles que se estabeleceram antes, nega lugar aos
que vieram depois. Chamou-nos a ateno a dificuldade de localizar,
nos ncleos populacionais, os que vieram depois empregados das
fazendas, moradores mais recentes ou por menor tempo, cujos filhos
tambm frequentavam a escola. Eles eram como habitantes invisveis, que estavam e no estavam no lugar. Isso sem falar nos assentados, a partir do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ou
dos reassentados provenientes de regies inundadas pela construo
de usinas, que sofreram e ainda sofrem, segundo nos relataram, um
processo de rejeio bastante acentuado.
Nesse sentido, chama a ateno a fala de um sitiante, Sr. Delnio,
34 anos, tambm morador de Guapor, que havia nascido no lugar,
porm deixou a regio, trabalhou em indstria, retornou e, soubemos agora, partiu novamente. Bastante jovem, em relao aos demais
entrevistados, no enxergava possibilidades de viver no lugar, embora
mantivesse com ele laos de solidariedade decorrentes da sua prpria
histria familiar. Embora fosse algum do lugar, ele trazia bem clara
a noo de mudana decorrente do processo de concentrao fundiria que inviabilizava um determinado modo de vida.

304

Ah, eu lembro que tinha muito situante [sitiante]. No era


como hoje, virado s em fazenda. Todo o lado que a gente
vai s fazenda. Naquele tempo, l na nossa regio mesmo,
regio do Cabrito, ali era... no tinha fazenda, no existia! A
fazenda que existia ali era do [nome do fazendeiro]. Ento
ali onde que ns, a minha me, tem o terreno ali, hoje
virou tudo fazenda! s vez tem l... que nem tem a Discolndia ali hoje, que no existia, a fazenda que pertence
pra Discolndia, que naquele tempo no existia! Era oitenta
alqueire, mas era do outro lado do rio l, da a Discoln-

dia passou pro lado de c, eles foram comprando, a turma


foram vendendo... desanimando... uns foram embora pra
cidade, outros mudou pro outro estado... e foi indo... a rocinha que ns fazia era mais algodo, era o que dava mais...
pra nis que era pequeno... Ento a turma foi desanimando,
desanimando... a chegou um tempo que o preo caiu muito,
ficou muito difcil... da foi indo e todo mundo parou...143

Tendo voltado a viver em Guapor, dedicava-se, na ocasio da


entrevista, a pequenos servios, uma vez que a reduzida rea de terra
familiar era insuficiente para a produo (e a reproduo do modo
de vida campons). Nesse sentido, a sua compreenso do passado
tambm passa pela avaliao dos laos de sociabilidade ento existentes, essenciais para a articulao da sobrevivncia:
Era bem mais divertido Guapor naquele tempo. s vezes
o povo vinha aqui fazer baile, quando saa um baile aqui j
vinha tudo aquele povo de l. s vezes saa uma festa aqui,
dava uma imensa de uma festa aqui! Era festa de duas vaca
pra cima, n? Que matavam a... hoje se fizer uma festa a e
matar uma vaca capaz de no vender a metade [risos]!144

Para concluir depois, melancolicamente, ao se referir a uma situao que no parece ter volta:
E no vai voltar mais, por que? Porque o fazendeiro no vai
vender cinco alqueire pra ningum mais, n? [risos] No vai
mais dividir no! Ento vai ser daqui pra pior, quem pensa
num terreno que no segurar ou enjoar de ter, cai na mo do
fazendeiro da... cada vez fica pior, n?145

Ou seja, a concentrao fundiria um processo sem volta.


143 Entrevista realizada com Delnio, no Distrito de Guapor, Guaraniau, Paran, em 2008,
por Geni Rosa Duarte e Marcos V. Ribeiro.
144 Entrevista com Delnio. Ver nota 141.
145 Entrevista com Delnio. Ver nota 141.

305

Embora haja ainda regies onde a pequena propriedade ainda exista


ou ainda persista , ela depende da organizao externa para
sobreviver o caso de muitos moradores que se dedicam a atividades como o cultivo do fumo, do bicho-da-seda, etc. (na dependncia
de uma indstria ou de um nico comprador).
Em todo o estado do Paran, por outro lado, veiculam-se imagens, pela imprensa e pelos rgos pblicos, que valorizam a agricultura comercial, de gros, principalmente, a partir de imagens
como Estado-celeiro do Brasil. Isso tambm coloca, aos pequenos
proprietrios, demandas e questes: eu prometi que nunca plantaria soja, disse-nos um depoente, dona de uma propriedade mdia,
e hoje eu planto soja. A necessidade do uso de defensivos agrcolas, com todos os problemas da decorrentes, tambm se apresenta,
muito especialmente para aquelas propriedades que dependem do
trabalho familiar.
Essa situao se apresenta para as escolas da regio como um
dilema. Envolvidas exatamente nesse processo de mudana acelerada, em que a prpria permanncia do lugar se encontra ameaada
e so muitas as pequenas comunidades das quais ainda se veem as
runas , como se posicionar diante disso? Ou seja, como escapar de
uma rememorao do passado que, se, por um lado, d voz aos antigos moradores, por outro, ignora e no aceita novos personagens
que adentram a cena? Como se situar diante do presente que no o
que poderia ter sido?
H uma tendncia a veiculao de histrias oficiais dos lugares,
com base em uma perspectiva evolucionista que configura o processo de migrao, de fixao no lugar, e no d conta do processo de
mudana. a memria dos pioneiros, dos que vieram antes, dos que
deram a cor local e s. Mudanas posteriores so aquelas contadas independentemente dos sujeitos ou nas quais os sujeitos so a
modernizao agrcola, o plantio da soja, entre outros. Nesse presente
sem sujeitos, o conhecimento histrico sistematizado nega o prprio
306 cotidiano vivido, como se ele estivesse ausente da histria.
Consideremos, nos termos de Bergmann, que a conscincia his-

trica se d na interposio entre a experincia vivida todos os dias,


a que transmitida, cientificamente ou no, e as questes trazidas
pelo conhecimento histrico sistematizado, considerando que essas
questes se do, nas comunidades analisadas, no interior de um processo conflitivo, no qual imagens do progresso esperado, que no
se configurou no presente, se contrapem s de um passado muitas
vezes idealizado.
Nessa perspectiva, a histria oral ganha fora e expe seus riscos. Sua fora e seu limite se situam exatamente na pesquisa emprica, elemento essencial da prpria reflexo histrica, possibilitando
uma identificao do indivduo com a coletividade no decorrer
do tempo. Essa dimenso emprica abarca, portanto, at mesmo a
histria transmitida no processo de socializao, no filtrada por
nenhuma perspectiva j sistematizada como conhecimento. Mas
vai alm, inserindo-se naquilo que constitui um dos pontos mais
importantes da didtica da histria, nos termos propostos por Bergmann: embora ele no a cite, consideramos que a histria oral, na
perspectiva do ensino, rompe a sedimentao trazida pelo conhecimento racionalizado e sistematizado, contrapondo-se, portanto, a
todas as tentativas de imprimir aos alunos determinadas opinies e
identidades, de elaborar uma unicidade da imagem do passado e de
eliminar a categoria de modificabilidade da histria, fazendo com
que o presente aparea como ponto final de um processo histrico
unidimensional (BERGMANN, 1989/1990, p. 38).
Isso implica concluir que, para dar conta dos riscos e dos limites da histria oral em relao educao, ela deve mais e mais ser
inserida no ensino de histria. Ou seja, de uma forma preliminar,
a histria oral na escola deve extrapolar os seus limites, para que a
voz a ser ouvida e considerada no seja apenas a de alguns, dos mais
valorizados, dos primeiros ou dos pioneiros. A insero da histria oral no ensino vai alm: abrir-se para os riscos da histria oral
inserir nas relaes vividas na escola os conflitos e a heterogeneidade
vivenciados no social. Para que a histria ensinada no seja uma his- 307

tria nica, nem a histria dos que, um dia, venceram.


Referncias
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So Paulo, v. 9, n. 19, set. 89/fev. 90.
CERRI, Lus Fernando. Ensino de histria e nao na propaganda do Milagre Econmico. Revista Brasileira de Histria,So Paulo, v. 22, n. 43,2002.
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THOMPSON, Edward P. A misria da teoria ou um planetrio de erros. Rio de
Janeiro: Zahar, 1981.

308

2. Projeto aborgene para a integrao


ProAbi: a histria oral como ferramenta
de reflexo na ao
Bibiana Andrea Pivetta
Traduo: Geni Rosa Duarte
O Projeto Aborgine para a Integrao ProAbi: da investigao-ao interdisciplinar construo de materiais didticos interculturais vem sendo desenvolvido desde o ano de 2005 em etapas
sucessivas e complementares (ProAbi 1: 2005-2006; ProAbi 2: 2007;
ProAbi 3: 2008-2009), abarcando diferentes espaos curriculares em
escolas da provncia de Santa F Argentina.
O ponto inicial do projeto foi o reconhecimento das necessidades especficas dos docentes e alunos de escolas frequentadas por
crianas pertencentes aos Povos Originrios do nosso territrio. A
finalidade foi melhorar a situao da falta de capacitao e materiais relativos educao bilngue e intercultural necessrios a uma
melhor qualidade de vida das etnias Mocov, Tobas e Wichis, que
habitam principalmente o centro e o norte da provncia.
O projeto foi pensado para atender s necessidades especficas de
crianas e jovens dos Povos Originrios:
- consolidando os processos identitrios tnicos em sua interao com a sociedade em sua totalidade;
- facilitando a apropriao e interpretao de cdigos, normas
e saberes sociais;
- propiciando a permanncia e continuidade no sistema educativo formal;
- elaborando material didtico em conformidade proposta 309

(livros de leitura bilngues, dicionrios, cadernos temticos,


CDs interativos).
A proposta considera a capacitao docente semipresencial
a partir da teoria, e o lado prtico como um processo de
aprendizagem profissional na qual se acompanha o professor na construo de ferramentas a partir de suas prprias prticas, refletindo apoiado pela teoria e aplicando
as tcnicas aprendidas, acompanhados pelos capacitadores
naqueles problemas que surgirem, retroalimentando sua
prtica cotidiana e interagindo dentro de sua instituio
escolar. (PIVETTA, 2010, p. 24 ).

O trabalho conjunto entre pesquisadores, mestres e professores


indgenas propiciou que os alunos guiados por seus professores
pudessem tomar a palavra, refletir sobre ela e fazer uso de instrumentos e valores culturais que lhes permitissem serem cidados da
cultura letrada a partir de uma real integrao que no implique
perder a cidadania em sua comunidade e cultura (letrada ou oral).
Nesse sentido, acreditamos que se possa alcanar o referido objetivo
a partir do compromisso e da construo conjunta de conhecimentos em torno dessa problemtica e, portanto, ele deve ser assumido
de forma institucional pela escola em seu conjunto.
Das 23 escolas de Santa F que cursaram a primeira etapa, foram
selecionadas sete146 para a segunda e, por fim, permanecem atualmente quatro escolas (trs primrias e um CEPA Centro de Estudos
para Adultos) na terceira. Nesta ltima etapa, termina a construo
da Coleo ProAbi, que consta de um livro terico-prtico e quatro
suplementos de materiais didticos elaborados pelas escolas. A ideia
foi a de que cada grupo de professores com os professores de lngua
originria e/ou pais de cada comunidade construsse materiais didticos bilngues e interculturais para suas escolas: dois grupos pre310

146 A seleo das escolas foi realizada pela Diretora Geral de Educao do Ministrio de Educao de Santa F e pela equipe de capacitadoras ProAbi em consenso com os diretores e
docentes dos estabelecimentos que intervieram no projeto.

pararam CDs interativos; um elaborou uma caixa didtica de jogos


bilngues interculturais; e o quarto, um livro de histria oral.
Para dar conta da tarefa realizada (com os alcances reais de cada
instituio e seus acordos institucionais sobre as caractersticas de
cada material), decidiu-se pensar o material final como uma coleo
ProAbi, na qual se respeite a autoria dos capacitadores (livro ProAbi
terico-prtico), e quatro suplementos, de cada uma das equipes de
trabalho de cada escola: CDs interativos, livro e caixa didtica de
jogos). Cada etapa da proposta abarca diferentes temticas curriculares com a ideia de que o material elaborado no somente seja intercultural bilngue, mas tambm interdisciplinar, segundo a escolha de
cada equipe.
Acreditamos haver conseguido atingir nossos objetivos, e, sobretudo, o trabalho se realizou cooperativamente: professores, professores indgenas, capacitadores e fundaes, sem a contribuio de cada
um no teria sido possvel. O importante que todos avanamos em
nosso profissionalismo.
A dinmica de oficina que se implanta neste projeto possibilita um autntico dilogo entre teoria-prtica e reflexo-ao, que resulta efetivo para a construo de saberes, o
enriquecimento mtuo e sobretudo abre espaos para construir novas prticas de ensino que recuperem a diversidade
cultural. (PETEAN, 2005. p. 2).

Histria oral e pesquisa educativa


Quando o ProAbi foi pensado, a ideia no era, de maneira
nenhuma, capacitar em reas curriculares (cincias sociais, educao fsica, formao tica e cidadania, lngua e cincias naturais),
mas se tomaram eixos temticos para trabalhar a partir de conceitos-chave indispensveis para compreender as concepes culturais
dos Povos Originrios. Essa caracterstica do projeto no seu incio
acarretou discusses e conflitos entre as capacitadoras convocadas, 311

uma vez que a ideia era tomar esses eixos selecionados, analis-los
terica e praticamente e o mais importante da proposta aplicar
no processo de ensino-aprendizagem o mtodo da pesquisa-ao
(eixo transversal do projeto) como uma indagao sistemtica e
autocrtica do agir docente na sala de aula (ver Fig. 6.).

Figura 6 Eixos de capacitao


Fonte: Pivetta (2010, p. 40)

Outro aspecto derivado do anteriormente exposto explicitar,


refletir e compreender que uma mesma ideia ou conceito aparece
reiteradamente em um contexto de sala de aula, mas sua forma
de apresentao e discusso costuma ser diferente, uma vez que o
grupo classe muda de ano a ano e o mesmo professor interage de
modo diferente perante o novo grupo. Portanto os conceitos trabalhados so elaborados progressivamente de acordo com o contexto
de sala de aula/institucional, redefinindo-se atravs desse mesmo
desenvolvimento.
Ainda que, em numerosas oportunidades, se acreditasse ter em
312
conta esses aspectos da prtica diria, nem sempre essa postura se

efetivou, j que, muitas vezes, as ideia/conceitos a serem ensinados


foram convertidos em esteretipos, repetidos sem que tivessem significado para os alunos, principalmente no caso daquelas crianas
que pertencem a culturas cujos conceitos e percepo do mundo
diferem em grande parte daqueles dos docentes pertencentes a culturas diferentes.
Dessa maneira, o ProAbi tem a inteno de se constituir em um
laboratrio de investigao ao educativa e de ser uma primeira
aproximao do que foi postulado por Lawrence Stenhouse (2007),
ou seja, colocar a investigao na ao, mas, no caso do projeto, em
contextos de fortes diferenas culturais, com Povos Originrios.
As avaliaes em relao aos resultados obtidos nas capacitaes especficas para os estabelecimentos com altas porcentagens de
crianas aborgines e sua aplicao posterior na sala de aula no produziam modificaes na ao docente nesses locais e, menos ainda,
na aprendizagem dos alunos:
Em geral, um ponto fraco na pesquisa educativa sua
desconexo com a realidade da sala de aula, sua falta de
comprovao na ao e, certamente, se se quer que qualquer investigao seja til aos professores, que repercuta
na melhoria da qualidade educativa, torna-se necessrio
avali-la na sala de aula. Por outro lado, quando falamos
de aplicar a pesquisa, de utiliz-la... Utilizamos uma terminologia inexata, que no se ajusta com preciso ao que
queremos expressar e que nos serve unicamente para compreender, para transmitir a exigncia de total unio, nesse
mbito, entre teoria e prtica, porque empregar na sala de
aula uma pesquisa pressupe sua realizao por parte do
professor. Do contrrio, o pesquisador puro faria uma proposta cuja validade no conheceria nunca, e o professor realizaria um trabalho sem saber o que fazia. Situao absurda
(que, de fato, se produz) e que urgente superar. (CASANOVA, 2007, p. 6).

313

Se se incentiva o docente a considerar que sua ao educativa


depende de sua prtica diria e a formular hipteses comprovando suas
ideias na sala de aula, se conseguiro profissionais no somente comprometidos com seu fazer dirio (ainda que parea contraditrio, achamos
que a maior parte dos docentes nesses contextos est muito comprometida com sua profisso, mas a questo que eles no conseguem superar por si mesmos a soma de problemas complexos que encontram no
seu fazer dirio), mas que tambm faam uso das ferramentas que vo
adquirindo ao longo de sua histria sem medo de equivocar-se, enriquecendo a tarefa educativa e levando em conta as particularidades
de seu contexto. Quem melhor que o prprio professor para saber do
que se necessita em sua escola para que as crianas aprendam? Quem
melhor que o professor para conhecer sua comunidade?
Claro que as circunstncias mudam e o docente deve saber
implementar o mtodo correto para adequar sua ao s problemticas com as quais lida cotidianamente, para isso deve saber trabalhar
hipteses baseadas em diagnsticos reais e precisos dos problemas a
resolver, delimit-los e prioriz-los, refletir institucionalmente sobre
as aes a empreender, lev-las a cabo no mbito de ao de cada um
(o diretor no nvel institucional, o professor na sala de aula, o professor indgena em tudo aquilo que implique relao com a comunidade, etc.), avaliar as aes e seu alcance (estar disposto a ser crtico
e autocrtico) e reformular novas problemticas a superar. Enfim,
trabalhar em equipe e colaborativamente, tarefa nada fcil, mas no
por isso impossvel.
As identidades mltiplas na sala de aula e a histria oral como
ferramenta didtica
Decidimos comear com o eixo da histria oral como ferramenta
de pesquisa e conhecimento cultural das comunidades dos alunos e
com os jogos tradicionais, aplicando-os no mbito da sala de aula
de maneira problematizadora. A partir das cincias sociais, o obje314
tivo do seu ensino que os alunos adquiram um conjunto de ferra-

mentas conceituais para conseguir compreender, explicar, repensar e


reconhecer-se como protagonistas da realidade social na qual vivem;
permitindo-lhes, no futuro, desempenhar com xito o papel de cidado comprometido com o seu entorno.
Admitimos desde j a difcil tarefa de explicar e compreender
a complexa trama social que constitui nosso entorno e tanto mais
trabalh-la a partir de contextos de sala de aula multiculturais.
Podemos enumerar alguns dos aspectos que dificultam
ainda mais nosso trabalho:
- geralmente a socializao secundria na qual a escola tem
um papel insubstituvel muitas vezes contraditria ou no
condiz com as pautas culturalmente aprendidas no seio da
famlia socializao primria dos alunos de outras culturas;
- na realidade social circundante com a qual temos que trabalhar na escola , as etnias e/ou grupos culturais de nossos
alunos ocupam um lugar negativo, de excluso social;
- o docente, ao desconhecer pautas culturais tradicionais do
grupo tnico de seus alunos, cai, em muitas oportunidades,
em posturas etnocentristas ou generalizaes discriminatrias
com relao s ideias, crenas, tradies ou costumes praticados pelos seus alunos e suas famlias.
por isso que indispensvel ter claro quais os conceitos que
vamos selecionar, como faremos para trabalh-los na sala de aula e
como poderemos articul-los com os anos anteriores e posteriores do
processo educativo, de maneira tal que, ao finalizar a aprendizagem
escolar, os alunos tenham aprendido conceituaes mais complexas
que lhes permitam desenvolver-se e interagir na sociedade. Temos
que tomar conhecimento, ainda, de quanta informao disponibilizamos sobre determinados conceitos (aprendizagem prvia) para
poder conseguir as inter-relaes necessrias que os alunos devero
realizar em seu processo de raciocnio.
Segundo a definio de conceito: so ferramentas intelectuais
que do sentido a uma imensa quantidade de dados sobre a vida 315

social e natural, outorgam significncias informao e permitem


superar a mera descrio de fatos e fenmenos (PIVETTA, 2010,
p. 35), o que torna complexa sua aprendizagem j que se necessita
adquirir ideias abstratas para aplic-las a contextos diferentes.
A anlise e reflexo sobre os conceitos sociais como tempo,
espao, organizao social ou explorao de recursos naturais, entre
outros, revelam-se difceis para os alunos, sendo indispensvel para
essa aprendizagem partir de seus conhecimentos prvios, a fim de
que depois eles possam estabelecer inter-relaes entre as ideias
novas e as anteriores para construir o conceito e aplic-lo no seu
entorno social. Dessa forma, o conceito aprendido ir se tornando
mais complexo na medida em que o aluno passe pelos ciclos escolares e possa inter-relacion-lo com diferentes exemplos que completem, o mais acabado possvel, um conceito geral que seja necessrio
mais adiante utilizar, aplicar, relacionar ou raciocinar.
Quando trabalhamos dentro da escola, no devemos esquecer
que os alunos vm com uma valiosa bagagem cultural, diferente da
nossa, mas nem por isso menos importante; o valor da sua utilizao
como ponto de partida para a aprendizagem dos contedos curriculares e seus efeitos entre os educandos, suas famlias e a escola
insubstituvel para fomentar o entusiasmo das crianas pela aprendizagem, assim como a aproximao dos membros da comunidade
(pais, avs, etc.) do mbito escolar. Convertendo-se este ltimo em
um lugar de relaes intertnicas, na medida em que se promove a
afirmao do educando em seu prprio universo social e conceitual
e enquanto se propugna a apropriao seletiva, crtica e reflexiva de
outros dentre os elementos culturais exteriores ao grupo tnico de
pertena, enriquecendo a prpria cultura e, portanto, melhorando
as condies de convivncia entre culturas diferentes. Se retomamos
o conceito de escola aberta de Sagastizbal e Pivetta (2006), temos
que compreender que a escola deve ser pensada em relao com um
sistema educativo conformador por sua vez de um sistema poltico e
316 social, o qual integra um sistema mundial que a inclui e a relaciona

sincronicamente na direo do passado e do futuro atravs de um


olhar histrico que indefectivelmente deve ser intercultural.
impossvel conhecer especialmente se consideramos que se
trata de conhecer conceitos das cincias sociais sem estabelecer
relaes com conhecimentos prvios que temos em nossa cabea,
o mesmo se passa com nossos alunos. Geralmente no conseguem
estabelecer relaes que lhes permitam elaborar ideias novas sobre
as diferentes problemticas com as quais se depararam os grupos
humanos no decorrer do tempo e a relao destes com os diferentes espaos geogrficos, conceitos estes que devem ser incorporados
na escola. Em numerosas ocasies, acredita-se que se soluciona o
problema aprendendo de memria sem reflexo alguma, portanto
pode-se menos ainda resolver situaes problemticas para entender explicaes mais complexas na medida em que o adolescente vai
amadurecendo dentro do sistema de escolarizao.
O paradigma para a educao do futuro em contextos de diversidade tnica constitui um desafio para a criatividade do docente,
partindo de saberes especficos dever ele aceitar a incerteza de
reestrutur-los em funo da cultura para conseguir o aprender a
aprender de seus alunos; e, ainda mais importante, no confundir
o fracasso do instrumento com o fracasso da criana (REQUEJO;
TABOADA, 2004, p. 58 ).
Se partimos da ideia de que o conhecimento construdo socialmente, por que no faz-lo dentro da sala de aula? Claro que isso
se torna mais complicado quando o conceito do qual se parte na
direo de outros mais complexos que so aqueles que nossos alunos
devem aprender pertence a uma cultura alheia nossa.
A partir do trabalho na escola com a bagagem cultural e social
com a qual os alunos chegam, os docentes conseguiro que os estudantes construam com suas prprias experincias e ritmos os
novos conhecimentos curriculares a serem incorporados. A rica
bagagem com a qual o aluno chega aula deve ser aproveitada pelo
professor que, partindo dos conceitos prvios da criana, pode ir 317

incorporando saberes cientficos, propor problemas que os incentivem a buscar explicaes mais complexas, intercambiar pontos de
vista; em sntese, atingir um pensamento crtico-reflexivo em relao
ao seu entorno sociocultural.
A importncia do conhecimento desse processo de aprendizagem por parte do docente no aborgene torna-se indispensvel
para compreender a contemporaneidade, explicar o passado e poder
reconhecer a diversidade cultural em relao aos diferentes espaos
intertnicos que so vivenciados dentro da escola.
Dificuldades e aes superadoras no ensino
das cincias sociais
Acreditamos que o ensino das cincias sociais na escola visa a
que os alunos, a partir de sua aprendizagem, consigam explicar a realidade social na qual vivem, mas para alcanar esse objetivo devem
conseguir construir o conceito de processo histrico totalidade
complexa e dinmica na qual se desenvolvem as aes passadas e
presentes dos homens , em que os fatos se sucedem devido passagem do tempo; isso requer o trabalho com a noo de temporalidade,
mudana social e multicausalidade dos acontecimentos histricos. A
partir desse ponto de vista, os fatos histricos so compreendidos e
so explicados como parte de um processo histrico que transcorre
atravs do tempo e durante o qual se organizam e se transformam as
sociedades.
O reconhecimento da diversidade cultural no mbito da escola
comporta o desafio de integr-la sociedade global. Em uma etapa
de nossa histria, negou-se o direito diferena e de fato as aes
polticas tenderam uniformidade; atualmente, o risco de reproduzir e acentuar a diferena sem a possibilidade de mtuo enriquecimento, o que geraria uma nao fragmentada.
Aceitar a diversidade cultural implica estar e relacionar-se com o
mundo a partir de diferentes ngulos, a partir de diferentes perspec318
tivas, e essas outras perspectivas ampliam e enriquecem a sua pr-

pria. O desafio construir uma sociedade pluricultural e, para essa


tarefa, confiamos, entre outras possveis ferramentas, na educao
intercultural bilngue, entendida esta como um sistema de educao
que deve tratar de atender a todas as necessidades culturais, afetivas e cognitivas, dos grupos tnicos e dos indivduos dentro de uma
sociedade. Essa educao busca promover a paridade de sucessos
educacionais entre grupos e entre indivduos, o respeito e a tolerncia mtuos entre diferentes etnias e culturas que coexistem dentro
do mbito escolar. Por sua vez, o impacto da sociedade de consumo
sobre as comunidades originrias cria uma srie de necessidades
falsas, quer dizer, pode gerar carncias sentidas pelos indivduos que
os impelem a formas de condutas que no favorecem a soluo de
seus problemas cotidianos e, pelo contrrio, muitas vezes os tornam
mais agudos.
Dessa maneira, o que se ensina dever partir do enfoque prprio
da cultura dos alunos na direo de conceitos universais. Assim, a
criana que aprende estar afirmando sua identidade tnica e estar
oferecendo a si mesma os elementos necessrios para a convivncia
com a sociedade toda. O referido conhecimento enriquece a experincia pessoal na medida em que permite a cada ser humano reconhecer sua condio de membro de uma cultura e de uma histria.
ctor Cator, diretor da escola 6.173, d conta das dificuldades
de compatibilizar ensinamentos tradicionais com a escola oficial:
Existem muitas crticas a respeito da escola como o nico
espao onde se ministram conhecimentos. Razo pela qual
os Povos Originrios formulam a educao autctone que
no est baseada numa racionalidade instrumental do
conhecimento; ao contrrio, os saberes brotam da prpria
vivncia. A vivncia implica numa relao de proximidade
emocional das pessoas com a natureza do seu entorno. Para
saber necessrio viver uma relao de sintonia e empatia
com os outros. Est relacionada com os projetos de vida e
gesto territorial dos povos nativos. Em diversas culturas
319
existem formas prprias de aprender e so interpretadas a

partir de categorias prprias, demarcadas numa relao de


produo com a natureza e as divindades. Portanto, a educao prpria a formao das pessoas em termos de sua
cultura e cosmoviso.
Nesse tipo de educao h um reconhecimento das mltiplas e diferentes formas de saberes e conhecimentos
construdos a partir da cosmoviso, as formas de organizar a vida, os valores, as prticas de vida, seus sentidos e
seus significados. A partir desse enforque, entenderemos
o conhecimento como um processo de construo social
que se gera atravs de experincias coletivas para entender,
explicar e aprender a realidade; portanto, no existe uma
forma somente de construo do conhecimento. Nas culturas originrias a sabedoria no passa pelos conhecimentos
estritamente racionais, mas pelos sentidos, ele (saber) pode
estar no olho, na mo ou no corao. O trabalho daquele
que ensina no se reduz somente ao trabalho da sala de aula,
mas se estende comunidade, onde facilita o dilogo entre
diferentes sistemas de conhecimentos e diferentes formas de
aprender.147

A importncia do trabalho de pesquisa sobre a transmisso de


saberes tradicionais de ancios a jovens das etnias originrias com a
metodologia da histria oral que proporciona informao sobre os
costumes dos alunos que, por pertencer a uma cultura diferente, no
possuem histria escrita, ou, se ela existe, est distorcida.
Ainda maior o valor da utilizao dessa metodologia de pesquisa se se consideram os efeitos conseguidos entre os educandos,
suas famlias e a escola, uma vez que fomenta o entusiasmo das
crianas pela aprendizagem, assim como a aproximao dos membros da comunidade no espao escolar.
No plano metodolgico, a histria oral formula inovaes
que superam os velhos procedimentos do trabalho histrico em
mltiplos aspectos. Um exemplo disso a delimitao dos perodos
temporais a investigar; na histria oral, utiliza-se como critrio a
320
147 CD Suplemento no 1, integra o trabalho de Pivetta et al (2010).

perspectiva daqueles que viveram os processos a partir da experincia concreta, enquanto os enfoques tradicionais distinguem lapsos
de tempo em funo de certos fatos convencionais, ideologicamente
determinados, que tm pouca relao com a vida cotidiana dos grupos sociais.
A histria oral deixou de constituir algo mais que um procedimento de aprovisionamento de informaes para transformar-se num mtodo amplamente utilizado pelos cientistas sociais. No
caso especfico dessa metodologia de investigao em contextos
de diversidade cultural, sua utilizao na aula duplamente enriquecedora, devido ao fato de que os documentos com que contamos para reconstruir a histria dos Povos Originrios no levam
em conta a cosmoviso dessas etnias e, ao trabalhar com relatos
que so contribuio de membros pertencentes comunidade
dos alunos, estaremos afirmando sua autoestima e sua identidade.

A oficina de histria oral d resposta a uma necessidade
de sistematizar e reelaborar os contedos curriculares trabalhados
pelos professores na sala de aula. A utilizao da histria oral atravs
do trabalho de campo e dos mtodos prprios dessa disciplina permitiu aos professores:
- aplicar a investigao histria na escola;
- elaborar material didtico para trabalhar nas aulas;
- adquirir conhecimento do outro diante da necessidade de
trabalhar conscientemente na diversidade;
- facilitar a busca de um cdigo comum entre docentes e alunos que partem dos saberes prprios, hipteses e conceitos
prvios para o desenvolvimento da aprendizagem;
- proporcionar um enfoque ativo e no passivo da histria ao
trabalhar com pessoas pertencentes comunidade, conhecidas dos alunos.

O trabalho no ProAbi apontou em primeiro lugar para o
resgate da histria oral das etnias de cada escola, sejam elas aborge321

nes, criollos ou gringos.148 Com a informao obtida, trabalhou-se na


elaborao de material didtico para desenvolver diferentes aspectos da histria regional dentro da aula, sendo utilizados relatos dos
informantes segundo os projetos de cada grupo docente: elaborao
de jogos, de contos, de projetos de artesanato, etc.
O professor trabalhou em sala de aula com mtodos prprios da
investigao histrica, chegando a construir documentos informativos
sobre as diferentes prticas culturais de seus alunos. Esses documentos
se transformaram em temas geradores para incorporar diferentes conceitos curriculares, e para isso o docente facilitou aos alunos bibliografia especfica para que elaborassem informes grupais.
Trabalhou-se de forma interdisciplinar, incorporando contedos
pertencentes formao tica e cidadania, cincias sociais, cincias
naturais, lngua e educao fsica; tambm se interagiu continuamente com membros da comunidade, foram convidados ancios,
pais e jovens para que os alunos elaborassem informes sobre as
mudanas sofridas pela comunidade quanto sua organizao com
o passar do tempo. Consequentemente as adequaes curriculares
constituem uma consequncia lgica dessa tarefa, obrigando os professores a refletir e realizar uma sistematizao de seu contedo.
Assim a implementao da tcnica prpria da histria oral como
ferramenta nos proporcionou:
- material indispensvel para levar adiante um currculo
intercultural;
- uma revalorizao dos ancios da comunidade como fonte de
sabedoria na escola;
- uma forma sistemtica de dar sentido histrico-social a entornos familiares que at aquele momento eram desconhecidos
pela comunidade educativa;
- uma melhor aprendizagem, uma vez que se partiu da bagagem
cultural com a qual a criana chega ao espao escolar.
322

148 Reproduzimos os termos utilizados nas instituies escolares para nomear os diferentes
grupos tnicos da regio.

Em sntese, o resultado do trabalho com a histria oral foi mais


alm do que uma mera histria local sobre os Povos Originrios,
uma vez que o material obtido e ser utilizado tanto no campo de
cincias sociais como, de forma interdisciplinar, nas diferentes reas
do currculo escolar de cada instituio.
Trabalhar a rea no significa sobrepor os contedos das diferentes disciplinas que a compem, mas integrar, interconectar e estruturar a informao abordada por elas. O importante ser superar a
viso tradicional das cincias sociais como espao curricular que
tem como eixos histria, geografia bem como formao tica e cidadania, deve-se incorporar, ainda, o aporte de outras disciplinas do
campo social. fundamental que os docentes proponham o trabalho
sobre trs eixos que a estruturam: espao geogrfico, tempo histrico e sujeitos sociais, uma vez que so eles que, em sua interao,
permitem explicar a dinmica social e facilitam a compreenso dos
processos sociais a partir da complexidade.
Quando trabalhamos com crianas de culturas diferentes daquela
do docente, para que a experincia pedaggica tenha xito, o prioritrio conhecer a cultura do aluno e depois disso partir dos seus
conceitos prvios. Para isso ser necessrio estar informado sobre
a histria, costumes, modo de vida e organizao da comunidade a
que esses alunos pertencem. Isso se constituir em uma ferramenta
importante, pois os estudantes tm, por exemplo, seus prprios conceitos sobre a famlia, as relaes sociais, a organizao poltica, as
autoridades, etc. Essa bagagem cultural algo que o professor deve
conhecer, investigando, escutando, compreendendo, de modo que
a partir desses conceitos trazidos pelos alunos se trabalhar para
incorporar de forma paulatina os contedos cientficos especficos
das disciplinas que integram a rea.
Ns, docentes, devemos nos deter a pensar como ensinamos
os contedos procedimentais. Por muito tempo, ensinamos a fazer
mapas, questionrios, quadros estatsticos, grficos de barra ou circulares, quer dizer, os alunos aprendiam a manejar as tcnicas, mas 323

o que no fazamos enquanto docentes era ensinar a conseguir que


os meninos determinassem quando utilizar essas ferramentas. E
a onde deve produzir-se a mudana, os alunos devem aprender a
forma de obter o conhecimento. No que se pretenda convert-los
em pesquisadores sociais, mas permitir que desenvolvam uma atitude cientfica. Isso ser conseguido se, desde o nvel inicial, desenvolverem-se atitudes que tenham como resultado criar essa postura.
Na oficina de histria oral, foram trabalhados como proposta
interdisciplinar de investigao os seguintes passos:
- Formular perguntas sobre a realidade: nesse ponto, deve-se tender a interrogar como e por que ocorrem os fatos a investigar.
- Formular hipteses: trata-se de conseguir, primeiramente, uma
aproximao da resposta possvel na colocao inicial, que
logo ser contrastada com a informao obtida nos passos
seguintes.
- Sintetizao da informao: formas para obter dados do
recorte da realidade que se est investigando. Os procedimentos sero: questionrios, entrevistas, anlise de documentos
histricos escritos, visuais (fotos) ou audiovisuais (documentrios, filmes), anlise de objetos histricos, etc.
- Processamento da informao recolhida: ordenar a informao
sintetizada, relacionar os dados, separar aquilo que importante do que secundrio.
- Anlise e interpretao da informao: nessa etapa, os procedimentos devem tender aplicao de conceitos para assim
poder explicar a realidade estudada. Tambm nesse momento,
aplica-se o princpio de multicausalidade e o de processo.
- Comunicao das concluses obtidas: nessa etapa, manifestam-se as diferentes formas pelas quais a informao recolhida,
processada e analisada pode ser dada a conhecer. Em princpio, podemos falar de formas orais e escritas, mas existe um
sem-nmero de possibilidades que vo desde a elaborao de
324
um informe at a confeco de uma exposio de objetos e

fotos ou a concretizao de um audiovisual (vdeo).


A proposta , ento, dar fora para que as cincias sociais tenham
como eixo o trabalho com orientao cientfica desde a mais tenra
idade, adequando a complexidade dos procedimentos s possibilidades dos alunos e do grupo. No existem receitas a respeito nem
garantias de que, ao colocar em prtica esses procedimentos, tenhamos xito imediato, mas como docentes reflexivos e crticos temos
uma obrigao profissional de produzir mudanas, e aqui devemos
nos valer da criatividade a que permanentemente nos voltamos para
realizar nossa tarefa. A mudana levar tempo, mas se vero os resultados positivos operados nos alunos e em suas famlias, o que em
definitivo se traduzir na viso que teremos em sala de aula com
meninos motivados que realizam aprendizagens significativas.
Os projetos trabalhados durante a capacitao so exemplos de
que a mudana possvel; as propostas colocadas em prtica pelos
docentes eram analisadas, corrigidas e reformuladas; s vezes, isso
causava aborrecimento entre eles, que pensavam que os projetos
estavam prontos; o debate e a avaliao os levaram a construir uma
aprendizagem significativa no nvel profissional tambm neles prprios. Os resultados foram timos e as propostas de trabalho colocadas em prtica demonstraram que a mudana de que falvamos
era possvel. As palavras dos docentes no encerramento do projeto
assim o demonstram: Conseguiu-se at o momento a participao
das famlias, permitindo-se incorporar saberes culturais como contedos de ensino (Miriam Patrcia Mendoza, Escola no 452 de Los
Laureles, Santa F, Argentina).
Ao realizar o projeto descobrimos que nossos alunos desconheciam sua origem tnica, pelo que, depois de sua implementao,
foram motivados a investigar o tema. Isso fizeram demonstrando
interesse e participao entusiasmada (Dana Malo e Anlia Muchiut,
Escola no 6.147 de Guadalupe Norte, Santa F, Argentina).
325

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326

Sobre os autores

Alexander Freund
Professor titular da ctedra German-Canadian Studies e professor associado de Histria da Universidade de Winnipeg. Vice-presidente da Associao de Histria Oral do Canad e vice-presidente
da Associao de Estudos tnicos do Canad. Membro da diretoria
da Associao Internacional de Histria Oral IOHA (2008-2010).
Autor do livro Aufbrche nach dem Zusammenbruch: Die deutsche
Nordamerikaauswanderung nach dem Zweiten Weltkrieg (Gttingen:
V&R unipress, 2004) e de diversos artigos e captulos de memrias
sobre o nacional-socialismo entre imigrantes alemes na Amrica do
Norte. Atualmente trabalha na preparao do livro Encounters: dealing with the past abroad. Germans, jews, and the nazi past in North
America, 1945-2005 e de uma coletnea sobre histria oral e fotografia, em conjunto com Alistair Thomson.
Antonio Torres Montenegro
Professor do Departamento de Histria e do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco.
Ps-doutor pela State University of New York Stony Brook (2000),
doutor em Histria pela Universidade Estadual de Campinas (1991).
Presidente da Associao Brasileira de Histria Oral ABHO (19961998). Membro da diretoria da Associao Internacional de Histria
Oral IOHA (2008-2010). Autor dos livros Histria, metodologia,
memria (So Paulo: Contexto, 2010) e Histria oral e memria: a
cultura popular revisitada (So Paulo: Contexto, 1992).
Benito Bisso Schmidt
Doutor em Histria Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas, professor do Departamento e do Programa de
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Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande

do Sul. Diretor do Memorial da Justia do Trabalho no Rio Grande


do Sul. Foi presidente da Seo Rio Grande do Sul da Associao
Nacional de Histria ANPUH-RS (2006-2008) e vice-presidente
da Associao Brasileira de Histria Oral ABHO (2010-2012).
Autor dos livros: Em busca da terra da promisso: a histria de dois
lderes socialistas (Porto Alegre: Palmarinca, 2004) e Um socialista
no Rio Grande do Sul: Antnio Guedes Coutinho (1868-1945) (Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2000). Organizador do livro O biogrfico:
perspectivas interdisciplinares (Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000)
e coorganizador de Memrias e narrativas (auto)biogrficas (Porto
Alegre: Editora da UFRGS; Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009).
Bibiana Andrea Pivetta
Licenciada em Histria pela Universidade Nacional de Rosrio,
Argentina, e professora de Ensino de Histria. Especialista em investigao educativa e em histria oral e didtica em cincias sociais
em contextos multiculturais. Capacitadora de professores em escolas urbano-marginais, rurais e de modalidade bilngue-intercultural
aborgene. Diretora de equipes de investigao sobre migrao, trabalho e histria oral na Universidade de Buenos Aires e no Instituto
Rosrio em Cincias da Investigao (IRICE-CONICET). Diretora do projeto Aborigen para la integracin 2005-2009 ProAbi,
apoiado pelo Ministrio da Educao de Santa F, pela Fundao
Ines Tomasetti (Argentina) e pela Fundao Santa Mara (Espanha).
Autora e coautora de livros sobre migrao, histria oral e diversidade cultural na escola.
Davi Flix Schreiner
Doutor em Histria pelo Programa de Histria Social da Universidade de So Paulo, professor adjunto do Curso de Histria e do
Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual
do Oeste do Paran, Campus de Marechal Cndido Rondon. Autor
328 do livro Cotidiano, trabalho e poder: a formao da cultura do traba-

lho no Extremo Oeste do Paran (Toledo: EdT, 1997). Coorganizador


dos livros Mundos dos trabalhadores: lutas e projetos (Cascavel: Edunioeste, 2009), Trabalho e movimentos sociais (Cascavel: Edunioeste,
2008) e Infncias brasileiras: experincias e discursos (Cascavel: Edunioeste, 2009).
Geni Rosa Duarte
Doutora em Histria Social, Pontifcia Universidade Catlica
de So Paulo (2000). Professora associada do curso de Histria e do
Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual
do Oeste do Paran, Campus de Marechal Cndido Rondon. Autora
de artigos sobre a relao entre histria e msica popular e sobre
ensino de Histria, entre outros. Junto com Robson Laverdi e Mri
Frotscher, foi coorganizadora dos livros: Prticas socioculturais como
fazer histrico: abordagens e desafios terico-metodolgicos (Cascavel:
Edunioeste, 2009) e Histria, prticas culturais e identidades: abordagens e perspectivas terico-metodolgicas (Cascavel: Edunioeste,
2008).
Luiz Felipe Falco
Doutor em Histria Social pela Universidade de So Paulo e
professor do Curso de Graduao em Histria e do Programa de
Ps-Graduao em Histria da Universidade do Estado de Santa
Catarina. Autor do livro Entre ontem e amanh: diferena cultural,
tenses sociais e separatismo em Santa Catarina no sculo XX (Itaja:
Ed. UNIVALI, 2000) e coorganizador de Michel Foucault: perspectivas (Rio de Janeiro: Achiam, 2005).

Marcos Alvito
Doutor em Cincia Social (Antropologia Social) pela Universidade de So Paulo (1998). Professor associado da Universidade
Federal Fluminense. Autor do livro As cores de Acari (Rio de Janeiro: 329

FGV, 2001) e coorganizador de Futebol por todo o mundo: dilogos


com o cinema (Rio de Janeiro: FGV, 2006), Um sculo de favela (Rio
de Janeiro: FGV, 1998) e Cidadania e Violncia (Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ FGV, 1996).
Marcos Fbio Freire Montysuma
Professor adjunto do Curso de Histria e do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Santa Catarina.
Vice-presidente da Associao Brasileira de Histria Oral (20102012) e diretor regional sul da Associao Brasileira de Histria Oral
(2006-2008). Doutor em Histria pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2003). Coorganizador do livro Memria e histria
oral (Indaial: UNIASSELVI, 2010).
Mri Frotscher
Ps-doutoranda na Universidade Livre de Berlim. Doutora em
Histria Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora adjunta do Curso de Histria e do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual do Oeste do Paran,
Campus de Marechal Cndido Rondon. Autora do livro Identidades mveis: prticas e discursos das elites de Blumenau, 1929-1950
(Blumenau: Edifurb; Cascavel: Edunioeste, 2007), coorganizadora
dos livros Prticas socioculturais como fazer histrico: abordagens e
desafios terico-metodolgicos (Cascavel: Edunioeste, 2009), Histria, prticas culturais e identidades: abordagens e perspectivas terico-metodolgicas (Cascavel: Edunioeste, 2008) e Vises do Vale:
perspectivas historiogrficas recentes (Blumenau: Nova Letra, 2000).
Mnica Gatica
Licenciada em Histria pela Universidade Nacional da Patagnia San Juan Bosco. Atualmente doutoranda em Histria na Universidade Nacional de La Plata. Professora associada da Faculdade
330 de Humanidades e Cincias Sociais na Universidade Nacional da

Patagnia San Juan Bosco. Projetos desenvolvidos: El Sindicato de


Trabajadores Viales del Chubut: de su creacin a su burocratizacin
(1972-1976); Formacin, burocratizacin y proyeccin de un gremio, el caso SITRAVICH 1972-1984; Industrializacin, proletarizacin y subproletarizacin. Una nueva identidad para la mujer en
Trelew?; Una aproximacin a los diseos polticos para Patagonia.
De la integracin al ajuste neoliberal. El caso de Chubut; e Patagonia:
la construccin hegemnica del desierto. Su resignificacin desde
estrategias contrahegemnicas.
Pablo Alejandro Pozzi
Diretor do Programa de Histria Oral da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, Argentina. PhD em
Histria pela State University of New York Stony Brook (1989) e
professor titular da ctedra de Histria dos Estados Unidos da Amrica no Departamento de Histria da Universidade de Buenos Aires.
Entre suas obras se destacam: Luchas sociales y crisis en Estados Unidos, 1845-1993 (Buenos Aires: El Bloque Editorial, 1993), Huellas
Imperiales: Estados Unidos de la crisis de acumulacin a la globalizacin capitalista (Buenos Aires: Imago Mundi, 2003) e Trabajadores y conciencia de clase en Estados Unidos (Buenos Aires: Editorial
Cntaro, 1990).
Pablo Ariel Vommaro
Professor de Histria da Universidade de Buenos Aires e doutorando em Cincias Sociais na Universidade de Buenos Aires. Investigador do Programa de Histria Oral da Faculdade de Filosofia e
Letras da Universidade de Buenos Ares. Cocoordenador do Grupo de
Trabalho Juventud y nuevas prcticas polticas en Amrica Latina
do Conselho Latino-Americano de Cincias Sociais (CLACSO).
Publicou diversos trabalhos acerca das organizaes sociais urbanas
de base territorial e comunitria e das prticas polticas de jovens.
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Regina Beatriz Guimares Neto


Professora do Departamento de Histria e do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco.
Professora colaboradora do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Mato Grosso. Doutora em Histria pela Universidade Estadual de Campinas (1996), com estgio
ps-doutoral na Universidade de So Paulo (2003). Presidente da
Associao Brasileira de Histria Oral ABHO (2008-2010). Autora
dos livros Cidades da minerao: memria e prticas culturais: Mato
Grosso na primeira metade do sculo XX (Cuiab: EDUFMT, 2006) e
A lenda do ouro verde: poltica de colonizao no Brasil contemporneo (Cuiab: UNICEN, 2002).
Robson Laverdi
Ps-doutor em Histria pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2010). Doutor em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense (2003). Professor adjunto do Curso de Histria e do
Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual
do Oeste do Paran, Campus de Marechal Cndido Rondon. Diretor
regional sul da Associao Brasileira de Histria Oral (2008-2010).
Autor do livro Tempos diversos, vidas entrelaadas: trajetrias itinerantes de trabalhadores no Oeste do Paran (Curitiba: Aos Quatro
Ventos, 2005). Coorganizador dos livros Histria, prticas culturais e
identidades: abordagens e perspectivas terico-metodolgicas (Cascavel: Edunioeste, 2008) e Prticas socioculturais como fazer histrico:
abordagens e desafios terico-metodolgicos (Cascavel: Edunioeste,
2009).
Roseli Boschilia
Professora adjunta do Curso de Graduao e do Programa de
Ps-Graduao em Histria na Universidade Federal do Paran.
Vice-coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Histria
332 (2009-2011). Diretora regional sul da Associao Brasileira de His-

tria Oral (2002-2004). Ps-doutora pela Universidade do Porto


(2012) e doutora em Histria pela Universidade Federal do Paran.
Autora dos livros Entre fitas, bolachas e caixas de fsforos: a mulher
no espao fabril curitibano 1940-1960 (Curitiba: Artes&Textos,
2010) e Reconstruindo memrias: os poloneses do Santo Incio (Curitiba: Univ. Tuiuti, 2004).

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HISTRIA ORAL, DESIGUALDADES E DIFERENAS

Formato
15,5 x 22 cm
Tipografia
Leftist Mono Sans
Minion Pro
Papel
Capa em Triplex 250g/m2
Miolo em Offset 75g/m2

Montado e impresso na oficina grfica da

Rua Acadmico Hlio Ramos, 20 | Vrzea, Recife - PE CEP: 50.740-530


Fones: (0xx81) 2126.8397 | 2126.8930 | Fax: (0xx81) 2126.8395
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