Artigo Cemitério Dos Pretos Novos Até 1830 PDF
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E SEPULTAMENTO
DE PRETOS NOVOS
NO RIO DE JANEIRO
DO SÉCULO XIX*
ARTIGO
JÚLIO CÉSAR DE MEDEIROS**
Pelo lado do fundo está tudo aberto, dividido do quintal de uma propriedade vizinha por
uma cerca de esteiras, e pelos outros dois lados com mui baixo muro de tijolos, e no meio
uma pequena cruz de paus toscos mui velhos, e a terra do campo revolvida, e juncada de
ossos mal queimados (FREIREYSS, 1984).
Tabela 1: Sexo e faixa etária dos escravos novos sepultados no Cemitério dos Pretos
Novos, 1824-25
Sexo e Faixa etária de escravos novos # %
Escravos novos 815 72.38
Escravas novas 104 9.23
Moleques novos 57 5.06
Molecas novas 33 2.93
Crias 35 3.12
Outros 6
82 7.28
Total 1.126 100%
Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de óbitos de escravos da freguesia de Santa Rita,
1824-1830. 176
De 13 de dezembro de 1824 a 27 de dezembro de 1825 foram sepultados
1.126 escravos, a grande maioria de escravos adultos do sexo masculino, 73%. Em se-
gundo lugar figuram as escravas adultas, com uma taxa de 9,23% do total. Quanto às
crianças, pode-se dizer que novamente o número de escravos do sexo masculino sobres-
sai (cerca de 5,06% de meninos contra 2,93% de meninas). Pela taxa de mortalidade,
somos tentados a achar que os homens morriam mais que as mulheres. Porém, essa
ideia não pode ser sustentada frente a outros números, como o de entrada de escravos,
que indicam que o número de homens era sempre maior que o de mulheres, fato este
que gerava um problema na demografia escrava.
Outros dados interessantes também foram retirados desse livro de Óbitos.
Procuramos quantificar o último ano do cemitério a fim de verificarmos se a taxa de
mortalidade se mantinha estável ou não. No caso de confirmação, poderíamos concluir
que medidas para evitar a morte dos escravos não haviam sido tomadas. Se não con-
firmada nossa expectativa, restava apenas verificar quais foram as circunstâncias que
trouxeram esta variação, conforme a tabela abaixo:
Tabela 2: Sexo e faixa etária dos escravos novos Sepultados no Cemitério dos Pretos
Novos, 1829-1830
Sexo e Faixa etária de escravos novos # %
Escravos novos 621 91.59
Escravas novas 40 5.92
Moleques novos 02 0.29
Molecas novas 03 0.44
Crias 03 0.44
Outros 7
09 1.32
Total 678 100%
Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de óbitos de escravos da freguesia de Santa Rita,
1824-1830.
Como se pode observar, o número total de escravos enterrados caíra para 621,
menor mesmo que o número de escravos homens no ano de 1825, que foi de 815. En-
tretanto, fica aqui um registro importante: a taxa de mortalidade estava caindo drasti-
camente, o que pode apontar para a hipótese de que o tráfico negreiro tenha diminuído
às vésperas do cumprimento do acordo entre o Brasil e Inglaterra para o fim do Tráfico
Transatlântico de escravos. O final do tráfico previamente anunciado elevava o preço
do escravo por conta do risco, mas diminuía a entrada de negros novos pelo porto do
Rio de Janeiro, consequentemente, o número de sepultamentos também diminuía. Isto
prova que o cemitério dos Pretos Novos era exclusivamente destinado ao sepultamento
de escravos recém-chegados.
O livro de óbitos do cemitério ainda nos indicou outro dado importante: a
origem de cada escravo sepultado. Verificamos que quase 70% deles eram provenientes
da África Central Atlântica, ou seja, do tronco linguístico banto e que tinham uma for-
ma diferenciada de entender e de se comportar diante da morte8. Na cosmologia banto,
o mundo encontrava-se dividido em duas partes que se completavam, ou seja, duas
177 dimensões: a do mundo “perceptível” que seria esta na qual vivemos, e a do mundo
das “causas invisíveis” onde qualquer acontecimento excepcional, fosse bom ou ruim,
era fruto de obras realizadas em outro mundo, por outro lado, os bantos praticavam o
culto aos ancestrais, no qual a figura dos antepassados era de suma importância para
cada linhagem bem como para o sucesso nas colheitas, na pesca, e para a manutenção
da própria vida. Nesse sentido, morrer longe dos seus, ou não ser sepultado significava
um corte drástico na manutenção da vida em comunidade. Morrer desta maneira sig-
nificava ficar sem linhagem e sem uma perspectiva de vida futura (SILVA, 2002). Além
disto, o mar era visto como o um local da travessia para o mundo do além, ou, como
na língua banto, a “Kallunga”, que fazia divisa com o lugar onde os mortos habitavam,
que neste caso estava repleto de brancos9.
É neste sentido que o conhecimento da cultura africana e o seu modo de en-
carar a morte nos serve como chave de entendimento do motivo pelo qual os escravos
buscaram se filiarem à irmandades, como no caso da irmandade do Rosário (SOARES,
2000, p. 175). Em primeiro lugar eles temiam que seus os corpos fossem inumados sem
nenhum tipo de ritual, lançados à terra sem nenhum paramento religioso, não porque
temessem as covas da indigência, mas porque para eles morrer assim significava, antes
de tudo, morrer longe dos seus ancestrais, e em segundo; ser sepultado no cemitério
dos Pretos Novos significaria um corte definitivo na linhagem dos antepassados e a
impossibilidade, no pensamento africano, de reviver junto aos seus do outro lado do
Atlântico, no continente africano.
O cemitério dos Pretos Novos estava cravado no Valongo desde 1769, quan-
do o Marquês do Lavradio, insatisfeito com modo precário pelo qual os escravos
eram expostos no mercado que funcionava próximo ao Paço Imperial, mandou que
o mesmo fosse transferido para o Valongo que, hoje compreende a atual zona por-
tuária, formada pelos bairros da Gamboa e Santo Cristo. Essa mudança do mercado
da Praça XV para o Valongo fez com que o cemitério dos Pretos Novos fosse trans-
portado do largo de Santa Rita para a rua que ficou conhecida como a antiga Rua do
Cemitério, depois Rua da Harmonia e hoje, Rua Pedro Ernesto pertencente ainda à
jurisdição da freguesia de Santa Rita. Foi nesse período que o cemitério vivenciou a
maior concentração de corpos.
No final do século XVIII, a concentração comercial no local trouxe um au-
mento populacional intenso (LAMARÃO, 1991), fazendo com que o cemitério fosse
cercado de casas. Ocorreu um “adensamento populacional na região do bairro Saúde,
Valongo e da Gamboa, onde morros, encostas e enseadas são paulatinamente ocupadas
por residências” (RODRIGUES,1997, p. 71). O entorno do cemitério foi tomado por
casas, geralmente por famílias pobres e que não tinham condição de se mudar da fre-
guesia de Santa Rita, quer fosse por conta das poucas obras de aterramento; quer fosse
por se tratar de pessoas pobres, sobretudo negros libertos que precisavam estar junto ao
porto e ao centro comercial da cidade para poder ganhar alguns réis para sua subsistên-
cia. Ou seja, os vivos, por forças das circunstâncias, se tornaram vizinhos dos mortos.
Seguir os vestígios do cemitério dos Pretos Novos é, também, seguir os ras-
tros deixados pelas reclamações e ofícios de queixas contra o mesmo. A partir de 1820,
pode-se encontrar vários protestos que descrevem o cemitério da pior forma possível,
geralmente versando sobre o mau cheiro ali exalado10 e acusando-o dos miasmas que
grassavam na cidade11.
Não tardou muito e, em 1821, os vizinhos do “indesejável” cemitério redi-
giram dois requerimentos endereçados ao príncipe regente, nos quais pediam que o 178
cemitério fosse transferido para um local “mais remoto”, “em razão dos grandes males”
produzidos à população local. O primeiro destes dizia que os moradores “sofriam” en-
fermidades, e o segundo destes requerimentos tinha um teor bem parecido:
Já não podem sofrer mais danos nas suas saúdes. Por causa do cemitério dos pretos novos,
que se acha sito entre eles, em razão de nunca serem bem enterrados os cadáveres; como
também por ser mito impróprio em semelhante lugar haver o referido cemitério, por ser hoje
ema das grandes povoações (CUNHA, 1822).
Não é fácil, porém achar-se terreno [...] as circunstâncias [...] para servir de cemitério; porque
perto não o há, e longe é um tanto incômodo para a condução dos cadáveres; e então pertencia
a outra freguesia, em prejuízo dos rendimentos e do atual vigário (CUNHA, 1822).
Que se ordene ao vigário da freguesia da Santa Rita, a cujo distrito pertence o cemitério,
que contrate o terreno que lhe fica coontíguo para aumentar o cemitério existente, que o
cerque todo de muro alto pelos quatro lados; que ponha pessoa capaz, que cuida em fazer
enterrar bem os corpos; e finalmente que olhe para a decência, e decoro do cemitério como
deve, e é de esperar do seu caráter, conhecimentos e probidade. (CUNHA, 1822).
Abstract: this paper examines to death and burial of new black slaves that occurred in
Rio de Janeiro, the eighteenth and nineteenth centuries, the Cemetery of New Blacks in
the region of Valongo, northwestern of the Court of Rio de Janeiro. Historical research
has shown that slaves buried without religious care or funeral. The deceased also buried
without any funeral rites, but the rediscovery of their bones can help us understand the
legacy left by them.
Notas
Referências
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