Antropologia - Das - Emoções Livro PDF
Antropologia - Das - Emoções Livro PDF
Antropologia - Das - Emoções Livro PDF
Mossoró, RN
Dezembro de 2011
Copyright © 2010 Claudia Barcellos Rezende
1ª edição - 2010
Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
aprovado pelo decreto Legislativo nº 54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo
Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-225-0795-5
CDD - 301.2
EDITORA FGV
Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 I Rio de Janeiro, RJ I Brasil Tels.: 0800-
021-7777 I 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 [email protected] I [email protected]
www.fov.hr/editora
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Aos nossos alunos
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Sum ário
Introdução 9
Capítulo 1 19
Capítulo 2 43
Capítulo 3 75
Capítulo 4 97
Conclusão 123
3
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Introdução
tragédias,
experiênciaa muito
antropóloga norte-americana
particular: Laura
contar a história Bohannan
de Hamlet paranarra
uma etribo
comenta uma
africana. Sua
convicção inicial, discutida em Oxford com um amigo inglês, é de que as grandes
tragédias falam da condição humana, podendo, portanto, ser universalmente
compreendidas da mesma maneira.
A situação surge de forma inesperada. Durante uma estação chuvosa, Laura vê-
se isolada na habitação de uma família, encarapitada no alto de uma colina, à qual
poucos têm acesso. Impossibilitados de realizar seus afazeres cotidianos, os membros
da família dedicam-se todos os dias, meses a fio, a beber cerveja e contar histórias. Um
dia, Laura é instada a explicar o que faz ao contemplar incessantemente seus "papéis";
neste momento, pedem-lhe que conte uma história da sua terra. Recordando a
conversa com seu amigo inglês, Laura vê aí uma chance ímpar de "testar" a
universalidade da compreensão de Hamlet. E decide contar ao grupo a tragédia de
Shakespeare.
Ao longo da narrativa, uma profusão de mal-entendidos e interrupções se
sucedem. A primeira delas é a incredulidade dos africanos diante da natureza da
aparição do fantasma do pai a Hamlet: o que é um "fantasma"? Afinal, pessoas mortas
não falam, não têm materialidade. À ideia de "fantasma", os nativos contrapõem a
possibilidade de um "agouro", enviado por um feiticeiro, ou de um "zumbi". E
ridicularizam Hamlet por acreditar estar diante de seu pai.
Outras dificuldades surgem para o entendimento da história: por que o
sucessor do chefe é seu filho, e não seu irmão? Por que o chefe morto tinha uma
única esposa - quem iria alimentar seus convidados? Por que Polônio não permitia que
Hamlet cortejasse sua filha - ele não percebia que um chefe o compensaria por isso?
Por que Polônio não se identificara atrás da cortina ao ser ameaçado por Hamlet -
qualquer criança se apresentaria para não ser morta! Por que Hamlet não recorrera
aos anciãos para vingar-se de Cláudio - todos sabem que não se pode erguer a mão
contra os mais velhos! E que dizer da exiguidade da família de Ofélia - como assim seus
únicos parentes masculinos eram o pai e o irmão? Deveria haver muito mais!
Um leitor minimamente familiarizado com questões canônicas da antropologia
reconhece, por trás desses mal-entendidos, problemas tradicionais das teorias do
parentesco e da dádiva - construção de descendência, dádiva e poder, concepções de
família (extensa versus nuclear) etc. Essas questões entrelaçam-se com a emergência
dos afetos, também eles suscetíveis de variações provocadas pelo ambiente
sociocultural em que se encontram. A experiência de Laura Bohannan traz um
momento
e emoções.de fertilidade ímpar para a apresentação da relação entre cultura, sociedade
O núcleo da tragédia de Hamlet é a traição que seu pai sofre da parte de sua
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esposa, Gertrudes, com seu irmão Cláudio. É este o responsável por seu a
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envenenamento, com a anuência de Gertrudes. Pouco após a morte do rei, Gertrudes g
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e Cláudio se casam e este assume o trono. A tragédia tem início com a aparição do
fantasma do rei a seu filho, denunciando a traição. Elemento nodal da tragédia é a
revolta de Hamlet quanto à decisão de sua mãe em casar-se novamente,
desrespeitando o período ritual de dois anos de luto.
Por essa revolta, Hamlet é unanimemente considerado um bobo pelos
africanos: que besteira é essa de esperar dois anos - quem iria cuidar da fazenda de
seu
sabeirmão,
que ésedever
a viúvadoesperasse tantonovo
irmão mais assimcasar-se
para casar-se
com anovamente? E então
viúva de seu ele Quem
irmão? não
cuidaria melhor de seus filhos e de seus bens?
A regra do levirato é um evidente obstáculo à "compreensão universal" da
tragédia de Hamlet. A prescrição matrimonial que define como preferencial o
casamento com a viúva de seu irmão impede a compreensão da vivência desse
casamento como uma traição, e torna absurdo o ciúme de Hamlet. Afinal, por que ter
ciúme, se sua mãe fizera exatamente o que mandava o costume, agindo no melhor de
seu interesse e de seu filho? E por que ter raiva do irmão do pai, se este apenas
cumprira seu papel?
Essa pequena fábula antropológica tem uma "moral": os sentimentos são
tributários das relações sociais e do contexto cultural em que emergem. O ciúme de
Hamlet faz sentido à luz das teorias do parentesco ocidental, mas é absurdo se
levarmos em conta outros sistemas de parentesco, com suas prescrições e interdições
próprias. O ciúme não é, assim, um sentimento universal, decorrência espontânea de
exigências de exclusividade sobre aqueles a quem amamos; ao contrário, sua eclosão é
pautada por "regras de relacionamento", que o tornam legítimo e esperado em
relações governadas por expectativas prescritas de reciprocidade e exclusividade, mas
que o condenam em outros modelos de relacionamento nos quais a "regra" é o
compartilhar do outro, a exemplo dos modelos poligâmicos.
A convicção de que os sentimentos têm uma natureza universal faz parte do
senso comum ocidental, que os considera um aspecto da natureza humana marcado
pelas ideias de "essência" - no sentido de uma universalidade invariável- e de
"singularidade" - como algo que provém espontaneamente do íntimo de cada um.
Fazer uma "antropologia das emoções" é colocar em xeque essas convicções,
tratando-as como "representações" de uma dada sociedade; construir as emoções
como um objeto das ciências sociais é inseri-Ias no rol daquelas dimensões da
experiência humana as quais, apesar de concebidas pelo senso comum como
"naturais" e "individuais" - a exemplo da sexualidade, do corpo, da saúde e da doença
etc. -, estão muito longe de serem refratárias à ação da sociedade e da cultura.
O processo de construção das emoções como objeto das ciências sociais é
longo, podendo remontar aos esforços pioneiros de fundação das ciências sociais
como campo de saber autônomo. Embora o tema das emoções figure nos trabalhos de
muitos antropólogos e outros cientistas sociais, sua aparição se dá com frequência de
forma secundária. A presença dos afetos foi sempre notada como parte da dinâmica
da vida social, sem que contudo a eles se dedicasse atenção como objeto autônomo de
investigação. Por trás disso estava o status dúbio das emoções: embora se tornassem
elementos da interação social, eram vistas como fatos "naturais", realidades
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psicobiológicas que já eram dadas a priori e modificadas até certo ponto pela a
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socialização em uma cultura específica. Mais ainda, eram consideradas também g
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fenômenos subjetivos, individuais e particulares, mesmo que as sociedades
regulassem sua expressão. Mantinham-se, portanto, assunto prioritariamente da
psicologia.
Sociólogos clássicos como Émile Durkheim e Georg Simmel fizeram
contribuições significativas no sentido de mudar essa perspectiva. Embora em seus
textos programáticos ambos tratem as emoções como estados subjetivos e não sociais,
por caminhos
socialmente distintos,
- nas relaçõeseles mostram
sociais como
- e que há sentimentos
têm efeitos que
significativos são
para as produzidos
interações
e a coletividade de modo amplo. Seus estudos são, portanto, elaborações importantes
na direção de tomar as emoções como elementos sociais.
Contudo, a ambivalência em torno do estatuto das emoções perdurou por
muito tempo no desenvolvimento das diversas escolas antropológicas. Esse quadro de
atribuição aos sentimentos de um espaço menor na teoria social, por conta de sua
representação como elementos de natureza psicobiológica (cuja marca social residiria
apenas na regulação de sua expressão por regras sociais) persiste por várias décadas.
Alguns pensadores das escolas britânica, americana e francesa de antropologia, como
A. R. Radcliffe-Brown, Ruth Benedict e Marcel Mauss, respectivamente, detiveram-se
nas regras e formas coletivas de expressão dos sentimentos, ora explorando seu papel
ou função social, ora comparando padronizações culturais distintas das emoções.
Ainda percebemos nesses autores, com exceção de Mauss, uma visão ambígua da
emoção, que ora é pensada como um estado interno, subjetivo e não social, ora
resultaria de situações sociais, sendo assim de ordem social.
O estudo das emoções ganhou força na antropologia com o desenvolvimento
da abordagem interpretativa na década de 1970 nos Estados Unidos. Nessa
perspectiva, a noção de cultura como padrões de comportamento habituais e
tradicionais foi repensada e redefinida em termos de teias de significados, transmitidas
por símbolos e interpretadas de maneira específica de sociedade para sociedade. Essa
mudança produziu muitos estudos em torno da construção cultural dos significados
nas mais variadas esferas da vida social, em particular os conceitos de pessoa e self,
bem como das emoções. Esses trabalhos também enfatizavam a articulação entre
emoção e concepções de pessoa com as esferas da moralidade, da estrutura social e
das relações de poder.
Nos Estados Unidos, a tônica dos estudos antropológicos em torno das
emoções na década de 1980 partia de uma perspectiva relativista que tratava os
sentimentos como conceitos culturais que mediam e produzem a experiência afetiva.
Assim, a separação antes feita entre estados subjetivos e sentimentos sociais foi
problematizada, uma vez que as próprias ideias de pessoa e de subjetividade passam a
ser vistas como construções culturais. Além disso, como propõe Catherine Lutz (1988),
uma das expoentes deste campo, os conceitos de emoção implicam negociações s obre
a definição da situação e sobre vários aspectos da vida social, devendo ser vistos como
elementos de práticas ideológicas locais. Com isso, as emoções passam a ser tomadas
como
(Lutz eum idioma
White, queResulta
1986). define edessa
negocia as relações
orientação umasociais entre
série de uma pessoa
etnografias e as
(entre outras
outras,
Abu-Lughod, 1986; Lutz, 1988; Rosaldo, 1980), que formam o chamado campo da
antropologia das emoções (Lutz e White, 1986). 6
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Recentemente, o estudo antropológico das emoções passou a enfatizar o
elemento do contexto em que se manifestam os conceitos emotivos, buscando iralém
das relativizações para analisar sob um ponto de vista pragmático as situações sociais
específicas em que eles são expressos (Abu-Lughod e Lutz: 1990). A preocupação dessa
abordagem contextualista aqui e dupla: mostrar como o próprio significado das
emoções varia dentro de um mesmo grupo social dependendo das circunstâncias em
que se manifestam, e atentar para as consequências da expressão dos sentimentos
nas relações sociais e de poder.
Assim, o campo da antropologia das emoções estruturou-se não apenas com
uma variedade de estudos etnográficos, mas também com um conjunto de questões
teórico-metodológicas que buscavam fornecer instrumentos para a comparação. Das
relativizações iniciais passou-se para um esforço maior em mostrar a dimensão
micropolítica das emoções, revelando como são mobilizadas em contextos sempre
marcados por relações e negociações de poder em vários níveis.
Como em outros lugares, no Brasil as emoções também aparecem
ocasionalmente em estudos das ciências sociais há muito tempo. Como mostra Koury
(2005a), é uma temática que ocupou pensadores da década de 1930, como Gilberto
Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, que discutiram as emoções em suas
preocupações relacionadas à constituição de uma identidade nacional brasileira.
Já na década de 1980, encontramos uma maior atenção a esses fenômenos,
ainda que o foco das análises estivesse nas variações do conceito de pessoa e nas
emoções em contextos e segmentos sociais distintos. Roberto DaMatta (1997) analisa
como as formas de expressão das emoções, entre outros comportamentos, se ajustam
às diferenças entre espaços públicos e privados. Velho (1981 e1986), Dauster (1986) e
Salem (2007), entre outros, examinam como a emoção e sua expressão vêm a ser um
componente central na construção de projetos de pessoas das camadas médias
urbanas, marcados pela tensão entre a individualização e o pertencimento. Duarte
(1986), por sua vez, busca compreender a centralidade da categoria emotiva "nervoso"
nas concepções específicas de pessoa entre classes trabalhadoras urbanas, mais
holistas em sua orientação.
Como foco de estudos que forma um campo próprio, o interesse nas emoções
vem gradualmente ganhando espaço entre as ciências sociais brasileiras desde a
década de 1990. Há não apenas movimentos em direção a uma institucionalização do
campo, mas também uma diversidade de temáticas estudadas. Entre as iniciativas
institucionais pioneiras, podemos destacar a criação, em 2002, da Revista Brasileira de
Sociologia das Emoções, revista virtual editada por Mauro Koury ( Universidade Federal
da Paraíba - UFPB). Outras formas de institucionalização são a realização de grupos de
trabalho nas principais reuniões científicas, entre elas a Reunião de Antropologia do
Mercosul (RAM) e a Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em
Ciências Sociais (Anpocs), e a criação de núcleos de pesquisa como o Grupo de Estudo
e Pesquisa sobre Emoção (Grem) da UFPB, e o Núcleo de Antropologia das Emoções
1
Esses projetos de pesquisa desenvolvidos pelas autoras constituíram os campos de investigação que
formam a base da concepção deste livro. Todos os projetos, a partir de outubro de 1997, foram
8
desenvolvi dos no âmbito Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística (Prociência ) da a
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i
Sub-reitoria de Pós -graduação e Pesquisa da Uerj. g
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Capítulo 1
Emoções: biológicas ou culturais?
anteriores à menstruação,
tensão pré-menstrual o que,
(TPM). ComoJunto a aspectos
mostra Juer físicos,
(2007) configuraria a síndrome
em sua análise da
da visão
biomédica dos hormônios, o desejo de ter filhos é às vezes explicado pela forte
presença do estrogênio após a menarca. A gravidez é considerada também um período
no qual a mulher teria uma instabilidade emocional, além da forte presença do medo e
da ansiedade, em muito associada às alterações hormonais na gestação. A menopausa
é outro momento na vida das mulheres no qual a diminuição do estrogênio e da
progesterona afetaria as emoções.
O funcionamento do cérebro, em particular as reações químicas que lá
acontecem, é apontado como outra fonte responsável por algumas manifestações
emotivas. Os jornais já escreveram sobre o amor como resultado de certas reações
químicas do cérebro, e como mulheres e homens apresentariam características
cerebrais distintas teriam também experiências diferentes do sentimento. Nessa
perspectiva, também a ansiedade e os estados emotivos que conformam a depressão
resultariam principalmente de reações químicas desequilibradas, sendo muitas vezes
tratadas por meio da química de ansiolíticos e antidepressivos.
Considera-se também que os sentimentos produzam reações corporais. Assim,
a tristeza vem muitas vezes acompanhada de lágrimas e soluços, reações que também
podem vir da alegria e da felicidade. O medo provocaria arrepios, palpitações e até
mesmo enfartes cardíacos, dando sentido literal à expressão popular "morrer de
medo". A ansiedade e a angústia podem ter variadas manifestações, como falta de ar,
insônia, sensação de aperto no estômago. Há inclusive no senso comum e na medicina
a visão de que mulheres muito ansiosas têm dificuldade de engravidar.
Encontramos
presença tambémemotivos.
de alguns estados a atribuição
Em umdo estudo
surgimento de algumas
clássico, doenças
Sontag (1984) à
analisa
como, no século XIX, a tuberculose era considerada uma doença da paixão, que 0
acometeria pessoas melancólicas e apaixonadas, enquanto: no século XX, o câncer 1
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seria mais comum entre pessoas contidas, tensas e estressadas. i
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Nessa etnopsicologia. as emoções teriam vários atributos em comum com os
fenômenos corporais. Por exemplo, apresentariam muitas vezes o mesmo caráter
involuntário e espontâneo que muitas reações corporais. Explicações como aquelas
que veem hormônios e reações neurológicas como produtores de emoções reforçam a
ideia de que eles aconteceriam de maneira independente da vontade do sujeito. Diz-se
também que a paixão e o amor são sentimentos que não escolhem seu objeto. Em
outros momentos acredita-se que a raiva sentida surja de maneira incontrolável.
sendo também difícil de ser manifestada de modo contido. As lágrimas de tristeza
exemplificariam uma reação emotiva e ao mesmo tempo corporal vista como
involuntária, a tal ponto que chorar em cena seria um aprendizado difícil para atores.
Outra qualidade compartilhada é a ideia de que, assim como existe uma
unidade biológica entre os seres humanos, há também uma unidade psíquica entre
eles. Entretanto, se a razão seria uma capacidade cujo desenvolvimento depende de
vários fatores externos à pessoa, sendo, portanto, variável entre grupos e sociedades,
as emoções, como fenômenos mais próximos ao corpo, estariam menos sujeitas
também ao controle externo, sendo assim menos variáveis e mais constantes através
das culturas. Por esse motivo, as emoções são consideradas qualidades essenciais dos
seres humanos, no sentido de caracterizar um núcleo essencial do indivíduo que se
manteria
encontramosrelativamente
uma tensãointacto
entre apesar
a visão da
da intervenção
emoção comoda emanando
sociedade. de
Neste
umasentido,
natureza
interior e não social do indivíduo e a concepção que a toma como qualidade universal
de todos os seres humanos. Passaríamos assim do plano da singularidade individual
para o universal sem qualquer mediação da sociedade ou cultura.
Por outro lado, embora nessa etnopsicologia as emoções tenham uma
dimensão psicobiológica, admite-se que a sociedade influencie o modo de expressar os
sentimentos. Assim, reconhece-se a existência de regras de expressão que afetam a
manifestação dos sentimentos não apenas de acordo com os contextos sociais, como
também entre sociedades diferentes. Há, por exemplo, normas para a expressão das
emoções em uma situação de luto, que independem do indivíduo sentir tristeza ou
pesar pela morte de uma pessoa. O luto, por sua vez, varia de sociedade para
sociedade, de modo que em certos lugares pode-se chorar copiosamente enquanto,
em outros, pede-se expressões mais contidas de pesar e tristeza. Nessa ótica, faz-se
uma distinção entre o sentimento, entendido como individual e não cultural, e sua
expressão, vista como regra da por prescrições sociais.
Outra característica vista como social é a linguagem verbal e corporal para
expressar as emoções. A manifestação de afeto por uma pessoa pode ou não envolver
gestos, como beijos e abraços, que implicam o toque no corpo do outro. O vocabulário
emotivo de uma sociedade é reconhecido como distinto do de outra, dificultando, por
exemplo, o exercício de tradução de categorias emotivas de uma língua para outra. No
entanto, as palavras nem sempre são vistas como expressando "de fato" o que o
sujeito sente, reforçando novamente a distinção entre uma forma de expressão de
ordem social e o sentimento de natureza individual. Nessa perspectiva, abre-se a
possibilidade para que as pessoas sintam uma emoção mesmo que em sua sociedade
não exista um termo de linguagem para expressá-Ia, como por exemplo sentir 1
"saudade" em culturas que não possuem essa categoria. 1
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Assim, as emoções são consideradas fenômenos que acontecem no corpo,
tanto em função de sua srcem quanto também de suas manifestações. Como já
afirmamos, essa estreita relação entre emoção e corpo estaria em contraste com a
associação entre razão e mente. Essa oposição mostra como estas noções estão
vinculadas e como recebem valores distintos, questão que Lutz (1988) analisa com
atenção. Em muitos contextos, considera-se a mente superior ao corpo, e do mesmo
modo a razão em relação à emoção. A razão como característica da mente permitiria o
conhecimento, o planejamento, o progresso, o domínio sobre o mundo natural, do
qual o corpo, e também as emoções, fariam parte. O corpo e a emoção podem ser
controlados pela mente e pela razão, mas seriam a priori mais imprevisíveis, mais
involuntários e mais incontroláveis. Enquanto a razão e a mente colocariam o ser
humano em um plano distinto e acima hierarquicamente de outras espécies animais,
as emoções e as necessidades corporais o igualariam a elas. Assim, o caráter mais
incontrolável das emoções daria à pessoa mais emotiva uma vulnerabilidade e ao
mesmo tempo uma aura perigosa que a pessoa mais racional não teria.
Por outro lado, nem sempre a emoção é menos valorizada que a razão. Em
alguns contextos os termos se invertem e a emoção torna-se uma força positiva,
criadora, natural e autêntica. Constituiria também a dimensão mais verdadeira da
as emoções
medicina. é problemática
Como em função
Juer (2007) discute, das mudanças
a noção nocomo
de hormônio próprio conhecimento
substância da
secretada
em certas partes do corpo só surge ao longo do século XX. A forma de pensar a
distinção entre corpos femininos e masculinos que estaria por trás de parte da
discussão sobre hormônios já variou ao longo da história, como demonstra Laqueur
(1990). Na Grécia antiga, o corpo feminino era pensado como a imagem invertida do
corpo masculino, de tal maneira que a diferença entre eles era de graus e não de
substância, como vem a ser a partir do século XIX. Assim, atribuir tal ou qual
característica emotiva as mulheres em função dos hormônios mais presentes em seus
corpos é uma visão que não existia nas sociedades ocidentais um século atrás.
Pode-se argumentar que essas visões não são novas leituras e sim
"descobertas" de "fatos científicos" até então desconhecidos. Mas, como Foucault
(1977), Bourdieu (1983) e muitos outros já demonstraram, a ciência não é um campo
neutro, pois os cientistas são, antes de tudo, pessoas que vivem em sociedades e
momentos históricos específicos. O conhecimento produzido pela ciência é
atravessado por relações de poder que disputam o que é legítimo, verdadeiro ou não.
Neste sentido, o corpo, na análise de Foucault (1977), torna-se, a partir do século XVIII,
objeto de escrutínio, tanto em termos de sua utilização quanto de sua explicação, e
algo de novas formas de poder que o disciplinam sob todos os aspectos. Os cuidados
do corpo, através de dietas, exercícios, medicamentos preventivos etc., revelam não
apenas as preocupações tem torno dele, mas também um controle estrito e detalhado
de tudo o que acontece com ele. Foucault discute como em torno do corpo
desenvolvem-se saberes – médicos, psicológicos, jurídicos, demográficos – que
atravessam vários campos de poder, pensando-o não apenas como controle e
repressão, mas também como produtor de práticas e interesses. A medicina em
particular implica um campo de conhecimento que segmenta o corpo em partes como
forma de construção de saber para então articulá-lo e regulá-lo, para torná-lo cada vez
mais produtor e eficiente. Assim, a medicalização do corpo implica não apenas um tipo
de conhecimento que reflete as relações de poder de sua sociedade e sua época, mas
também uma forma de cuidar dele marcada por um extenso detalhamento que
objetiva discipliná-Ia.
Como exemplo da relativização do discurso médico, Martin (1997), em sua
análise de manuais de medicina, observa que a linguagem descritiva da concepção
humana espelha noções culturais encontradas nas sociedades ocidentais modernas
sobre homens e mulheres. Assim, na reprodução, o óvulo foi durante muito tempo
pensado como um elemento passivo a ser penetrado pelo espermatozoide, a parte
ativa no processo, reproduzindo assim ideias sobre os papéis das mulheres como
passivas e os homens como ativos nos encontros amorosos. Mesmo quando na década 3
de 1980 surgiu uma visão mais interativa e o óvulo passou a ser visto também como 1
a
participante ativo da concepção, os termos usados para descrever essa participação tal n
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como o óvulo "prende" o espermatozoide refletem uma visão da mulher como P
ameaçadora e perigosa e mantêm ainda o gameta masculino no papel principal da
fertilização.
A questão principal aqui é que o modo como entendemos e vivenciamos o
corpo é sempre mediado pelas formas de pensar cultural e historicamente construída:.
Assim, torna-se difícil separar o que seria um fato biológico de um fato cultural.
Embora seja inegável que na espécie humana o corpo possui uma mesma estrutura
orgânica: a percepção
exemplo cláss da morfologia
ico na antropologia, emesua
da fisiologia corporal
análise sobre varia
as ilhas muito. Para
Trobriand, citar um
Malinowski
(1986) mostrou como os trobriandeses pensavam a concepção e a gravidez excluindo a
participação biológica dos homens. Sua percepção da fisiologia humana atribuía aos
rins a produção de fluido seminal enquanto os testículos eram vistos como adornos
para tornar o pênis apresentável. Para eles, o fluido seminal masculino não contribuía
para a concepção, que ficava ao encargo dos espíritos dos antepassados da mulher. Na
argumentação d.e Malinowski, essa representação era congruente com a organização
social dos trobriandeses, baseada na matrilinearidade, um sistema de parentesco no
qual a descendência é traçada do irmão ou outros parentes masculinos da mãe para
seu filho. Assim, tanto a transmissão de direitos e deveres quanto o reconhecimento
de descendência entre gerações excluíam a figura do pai, explicando portanto sua
ausência
social paranos processos
a unidade de concepção
doméstica, e gravidez.
devendo Mas da
cuidar tanto este mantinha
mulher suadaImportância
quanto criança.
Uma vez que as ideias sobre como o corpo funciona são diversas, assim serão
também as formas de relacioná-Io às emoções. Dessa maneira, o modo como
explicamos as emoções tendo origem em certos p rocessos corporais torna-se parte de
uma visão culturalmente específica sobre o corpo, mas não é uma associação
universalmente feita. Faz parte da nossa etnopsicologia, mas não de outras. Isso
implica problematizar a qualidade de universalidade das emoções em função de uma
unidade biológica e psíquica dos seres humanos. Novamente, se esse apa rato biológico
e psíquico é uniforme, as percepções sobre ele não o são, o que conduz também a
experiências corporais e psicológicas muito variadas, posto que são sempre mediadas
pela linguagem que é um elemento da cultura.
Isso não quer dizer, entretanto, que não podemos propor uma visão teórica
sobre a relação entre o corpo e as emoções. Alguns autores (Abu-Lughod e Lutz, 1990;
Fajans, 2006) argumentam que as emoções são fenômenos incorporados, situados no
corpo, sem que isso signifique afirmar que sejam "naturais". Fajans (2006) defende
que, embora as emoções possam surgir inicialmente em um bebê como reações
biológicas a estímulos externos, elas são lembradas desde cedo como parte de um
contexto de interação social, e não são pensadas de forma isolada. As emoções
tornam-se então parte de esquemas ou padrões de ação aprendidos em interação com
o ambiente social e cultural, que são internalizados no início da infância e acionados de
acordo com cada contexto. Assim, como ressaltam Abu-Lughod e Lutz, o aprendizado
de como, quando e por quem certo sentimento deve ser manifestado inclui a aquisição
também de um conjunto de técnicas corporais que Incluem expressões faciais, gestos
e posturas (1990:12).
Essa visão da relação entre corpo e emoção problematiza várias ideias já 4
discutidas. Primeiro, temos a noção de que, embora seja possível reconhecer a 1
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variedade cultural de formas de expressar as emoções, o sentimento em si seria da
ordem de uma essência humana e, portanto, mais invariável.
Contudo, se a lembrança das reações emotivas está sempre associada ao
contexto de interação que as produziu, já temos o fato de que o sentimento não é
sentido de forma abstrata nem independente de interações sociais específicas. Além
disso, desde muito cedo o aprendizado da linguagem passa a mediar a experiência, de
modo
que estaqueaconteça
se torna apenas
difícil separar
para oopróprio
sentimento de suaAssim,
indivíduo. percepção e expressão,
a distinção mesmo
entre sentir e
expressar tem relevância teórica nessa etnopsicologia ocidental moderna, que parte
de uma visão específica de sujeito cujos sentimentos localizam-se em uma
interioridade que nem sempre é manifestada publicamente. Integra, portanto, uma
visão de mundo particular. Torna-se, entretanto, teoricamente problemático para
estudos comparativos feitos em outras sociedades.
Outra ideia questionada pelas ciências sociais é a que atribui às emoções um
caráter impulsivo, de reações que, como os fenômenos corporais, até certo ponto
fogem ao controle da pessoa. Porém, se levarmos em conta que desde cedo na
infância se aprende como, quando e com quem expressar os sentimentos, torna-se
difícil encontrar um estado inicial no qual as emoções seriam vivenciadas em estado
puro, de forma espontânea e sem controle algum. O que vemos é um aprendizado
emocional que, por ser internalizado muito cedo, deixa de ser percebido como uma
forma controlada de viver os sentimentos. Isso não anula o fato de que as pessoas em
certas situações percebem regras explícitas de como expressar suas emoções,
sentindo-se assim obrigadas a se manifestar de uma dada maneira, enquanto, em
outros momentos, nos quais as normas não são evidentes, acreditam na
espontaneidade de suas expressões, conforme veremos no próximo capítulo.
Há, portanto, entre as sociedades formas distintas de lidar com o controle
emotivo, com conjuntos variados de regras que também apresentam graus diversos de
explicitação. Como veremos com mais profundidade no capítulo 4, o estudo clássico de
Elias (1993) mostra as várias formas de controle emotivo ao longo do processo
civilizador nas sociedades ocidentais. Se, nos últimos séculos, surgiu a necessidade de
autocontrole sobre o corpo e as emoções a ser mantido pelo sujeito em todas as
situações, antes, o controle era exercido em alguns contextos, mas não em todos, e
era monitorado de fora para dentro, ou seja, pelos outros principalmente. A questão é
que atualmente, em muitas situações, esse autocontrole é percebido como a forma
natural de o sujeito se expressar, embora esse modo também tenha sido aprendido e
regrado.
Este último ponto vai problematizar também a oposição feita entre emoção e
razão, fonte de outras associações e valorações, como explicamos na seção anterior. O
aprendizado das emoções na infância tem necessariamente uma dimensão cognitiva,
qualidade geralmente pensada como racional. Além disso, se as emoções são desde
sempre regradas, a ideia de uma pulsão que existe à parte de um controle exercido
O medo
O medo é um sentimento que ocupa lugar de destaque em alentadas análises
das transformações por que passou a sociedade ocidental moderna, como é o caso das
obras de Norbert Elias e Jean Delumeau. Suas perspectivas compartilham um traço
fundamental: a afirmação da universalidade da experiência do medo, entendida como
inerente à espécie humana, em combinação com uma perspectiva historicista que
atenta para as várias configurações que este potencial humano pode receber.
Em seu estudo sobre a natureza do processo civilizador, Elias (1993) atribui ao
estudo do medo um lugar estratégico na compreensão das formas do controle social.
Para Elias, o medo é um canal de transmissão das estruturas sociais à estrutura
psicológica individual. Incutir medo seja através de punições ou ameaças explícitas ou
de mecanismos velados de negação da aprovação social está entre as estratégias de
socialização pelas quais valores e normas são transmitidos de geração para geração,
passando apoderão
atingidos, ser "adotados" pelo indivíduo
gerar sentimentos como objetivos
de fracasso, perda de "seus", os quais,
autoestima etc. Osemedo
não
está assim entre os sentimentos com os quais o indivíduo exerce o autocontrole, em
um aprendizado que, conforme veremos mais adiante, está para Elias no cerne do
processo civiliza dor.
O potencial de sentir medo, em sua visão, faz parte da natureza humana.
Entretanto, as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa capacidade são fruto de
circunstâncias históricas e culturais. É neste sentido que Elias inventaria, entre os
medos modernos, o temor de perder o emprego ou de cair na miséria, entre os grupos
sociais de menor poder aquisitivo; ou, entre as camadas médias e altas, o receio da
degradação social ou da perda de prestígio.
Os medos mudam ainda em função de outras variáveis, tais como o "medo de
sobrar" identificado por Novaes (2006) entre jovens brasileiros quando falam de suas
expectativas em relação ao mercado de trabalho; ou o "medo de mostrar medo",
6
analisado por Gay (1995) em seu estudo sobre os duelos travados por jovens 1
a
universitários alemães. n
i
g
á
P
Essa perspectiva, em que o medo é visto como um potencial universal que se
realiza de formas particulares a cada contexto histórico e social, é adotada também
por Delumeau (1989). Nessa obra, ele propõe fazer uma história social do medo na
sociedade ocidental entre os séculos XIV e XIX. Seu argumento é que a necessidade de
segurança desempenhou um papel significativo na história das sociedades humanas,
que entretanto foi pouco compreendido em função da vergonha de admitir o medo.
Com a valorização nos séculos XIV e XVI da coragem, principalmente entre os nobres e
os cavaleiros, o medo figurava pouco nas crônicas da época, aparecendo basicamente
como característica do povo, da massa, e portanto razão de sua sujeição. Com a
Revolução Francesa, houve um discurso semelhante mas invertido, no qual o medo era
também camuflado para "exaltar o heroísmo dos humildes" (1989:15). Aos poucos,
durante o século XIX, a literatura passou a se preocupar abertamente com o medo.
O autor apresenta uma visão do medo que, embora remeta a qualidades
essencialistas, adquire configurações sociais distintas ao longo da história. Para ele, o
medo decorre de uma necessidade de segurança que "está na base da afetividade e da
moral humanas" (1989: 19). Entretanto, a própria afetividade está mergulhada na
"natureza social do homem", de forma que tanto indivíduos quanto coletividades
constroem sua segurança e seus temores em função de laços sociais significativos com
aelemãe, no caso um
argumenta, das grupo
crianças, ou com que
dominante o grupo dominante,
recusa a relação no
comcaso de minorias.
dominados Assim,
engendra
neles medo e ódio. Exemplificando, relata como os vagabundos do Antigo Regime, na
França, provocaram em 1789 o "Grande Medo" dos proprietários e a ruma dos
privilégios jurídicos sobre os quais a monarquia se assentava.
Ele distingue entre tipos de medos espontâneos e refletidos, cíclicos e
permanentes que ora afligiam amplos segmentos da população, ora alguns setores
específicos. Os medos espontâneos podiam ser permanentes, associados a certo nível
técnico (por exemplo, medo do mar ou de fantasmas), ou cíclicos, como medo das
pestes ou dos aumentos dos Impostos. Como exemplo dos medos refletidos,
Delumeau analisa o papel da Igreja em construir adversários para os homens como
turcos, judeus, heréticos e as mulheres (especialmente as feiticeiras).
Em ambos os estudos, vemos que o sentimento do medo surge associado a
noções de perigo e risco que ameaçam o indivíduo– seja sua integridade física, sua
autoimagem ou sua posição social – ou um determinado grupo social. E importante
frisar que essas noções são construídas histórica e socialmente, como mostram
Delumeau e Elias, e o medo torna-se também uma resposta socialmente regra da a
situações percebidas como ameaçadoras. Assim, a universalidade da experiência do
medo, que eles atribuem a uma essência inerente aos seres humanos, pode ser
relacionada ao fato de que todas as sociedades e os indivíduos que as compõem lidam
com ameaças a uma estrutura física e social que é construída, não sendo portanto
garantida nem certa.
A raiva
Essa mesma perspectiva um potencial universal realizado sob formas histórica
e culturalmente variáveis pode ser encontrada na análise do ódio feita por Gay (1995) 7
com base na experiência, já mencionada, dos duelos universitários entre jovens 1
a
n
i
alemães. g
á
P
O Mensur é um duelo de sabres popular entre jovens pertencentes às
fraternidades que povoavam o mundo universitário alemão no século XIX. Seu objetivo
principal era infligir e, paradoxalmente, obter cicatrizes, preferencialmente no rosto. A
sutura dos ferimentos, realizada pelos estudantes de medicina, era muitas vezes feita
de maneira propositadamente tosca, com o objetivo de produzir uma cicatriz nítida
insígnia corporal da coragem. Expor-se em um combate capaz de produzir, diante de
uma plateia entusiasmada, ferimentos deste tipo era motivo de grande ansiedade
entre os jovens estudantes, produzindo, entre outras manifestações subjetivas, aquele
medo comentado acima o medo de demonstrar medo. Inúmeras podiam ser as razões
para duelar, muito embora o duelo fosse com frequência um fim em si duelava-se para
prçvar aos outros, e portanto a si mesmo, que se podia fazê-lo, e com isso afirmar sua
própria honra. Assim, muitas vezes não era uma ofensa que provocava o duelo, mas o
contrário: buscava-se uma ofensa capaz de justificar um duelo. Como exemplo
extremo dessa motivação, podemos citar o caso narrado por Gay em que a clássica
associação entre honra masculina e duelos aparece quase invertida: a história do
estudante que, apesar de apavorado, lutou até ser golpeado no rosto de forma a
deixar uma cicatriz, afirmando fazê-Io "por amor", mas não porque outro homem
tivesse assediado sua noiva – ao contrário, ela mesma assim lhe pedira que fizesse,
para obter "uma bela cicatriz" ...
A que necessidade atende, então, o Mensur? Para Gay, a agressividade é um
impulso inato do ser humano, e a explicação para fenômenos como esse tipo de duelo
está no duplo sentido do termo "cultivo". Ao forjarem razões para se agredir, os
rapazes estariam ao mesmo tempo dando vazão a um impulso primário e moldando-o
segundo normas sociais, incentivando-o e controlando-o. O Mensur seria assim um
exercício em que se combinariam dois aspectos fundamentais da natureza humana: o
impulso para agredir ("ódio" ou "raiva") e a necessidade, exigência da convivência com
o outro, de conter esse impulso. Fazer correr por canais socialmente aprovados o fluxo
da agressividade é assim simultaneamente uma maneira de cultivá-Ia, fazendo-a
florescer, e de cultiváIa, domesticando-a.
Sob outra perspectiva, que prioriza sua dimensão sociocultural, o sentimento
da raiva recebeu também bastante atenção no campo da antropologia das emoções
por ser uma emoção que põe em questão as relações sociais em jogo. Escolhemos
mostrar como o sentimento é experimentado em sociedades distintas, contrastando a
análise de Katz (1988) sobre raiva nos Estados Unidos com a etnografia de Lutz (1988)
sobre os Ifaluk, na Micronésia.
Katz (1988), em seu estudo sobre as seduções do crise, detém-se nas
motivações de pessoas que matam por questões que consideram legítimas. Ele abre
sua análise com o caso de um pai que espanca seu bebê de cinco semanas até a morte,
porque a criança não parava de chorar. O autor aponta. que, nesse assassinato
"justificável" (righteous slaughter), a interpretação da cena não difere muito de
eventos cotidianos em que pais demandam respeito e reagem a desafios e
provocações com castigos físicos. A questão em jogo naquele episódio específico teria
sido uma interpretação do choro da criança como desafiador e desrespeitoso, e o uso
da violência como forma de restabelecer a autoridade paterna. 8
Com uma abordagem interacionista e comparando dados de diversos processos 1
a
n
judiciais, o autor destaca que esse tipo de interpretação é comum em várias cenas de i
g
á
P
interação anteriores a essa modalidade de crime que produzem um processo emotivo
específico, exigindo assim uma organização de comportamento particular. Katz
destaca então três aspectos que marcam a experiência do assassino: o ato de matar
torna-se uma forma de defender valores coletivos: o ataque é conduzido sem
premeditação, à base da raiva e da ira; e a vítima é marcada por meio de xingamentos
de modo que o assassino possa restituir o bem. A vítima é interpretada como alguém
que desafia o assassino moralmente, de maneira que o assassinato torna-se então a
última instância de defesa da respeitabilidade.
Nessa análise, Katz dedica-se aos sentimentos de humilhação e de raiva como
parte da engrenagem da ação. Embora a análise da humilhação seja aprofundada no
capítulo 3, queremos mostrar aqui como essa emoção transforma-se na raiva. O
sentimento de humilhação surge quando o indivíduo experimenta ser um objeto
pressionado por forças fora de seu controle. Neste caso, o sujeito acredita na intenção
dos outros de degradarem a sua pessoa. A humilhação pode se transformar em raiva e
ódio quando, segundo Katz, a pessoa acredita que o único modo de resolver esse
sentimento é inverter a estrutura que o srcinou o movimento de inferiorização ou
degradação percebido no outro. Nessas situações, quando a imagem pública da pessoa
é manchada, como nos casos de infidelidade conjugal que muitas vezes levam aos
assassinatos "justificáveis"
produz-se a ira. que Katz
Assim, a raiva e o examina,
ódio são perde-se o domínio
tingidos de sobredaa humilhação,
consciência identidade e
havendo uma percepção de dominação moral que toma conta fisicamente da pessoa.
Neste sentido, a raiva do outro é sempre uma confirmação da humilhação, cuja
superação e transcendência passam por ações movidas pela ira.
É importante destacar alguns pontos na análise de Katz sobre a raiva e o ódio. A
articulação da raiva com a humilhação põe em relevo a identidade da pessoa que é
afetada pelo evento que produz esses sentimentos. Como o respeito pela imagem
pública de uma pessoa é um valor importante nessa sociedade, há portanto um forte
componente moral na raiva, para além de um sentimento que o indivíduo sinta
privadamente. Está em questão assim não apenas a pessoa que sente a raiva mas
também o conjunto de relações sociais ao seu redor como os outros irão vê-lo e se
relacionar com ele.
A etnografia de Lutz (1988) sobre os Ifaluk oferece um contraste interessante e
revelador sobre o sentimento da raiva. A categoria song, que ela traduz como "raiva
justificada", é um dos principais conceitos usados para expressar julgamentos morais
nessa sociedade. Ao contrário da noção americana de raiva, que fala de eventos que
frustram desejos individuais, a raiva justificável dos Ifaluk manifesta-se para condenar
socialmente certos acontecimentos e assim conduzir aos comportamentos valorizados
coletivamente.
Ela explica que os Ifaluk reconhecem vários tipos de raiva, como a irritação que
vem com uma doença ou a raiva frustrada com infortúnios ou eventos que fogem ao
controle da pessoa. Mas todas essas formas distinguem-se do sentimento da raiva
justificável
sensibilidadee moral
são alvo
quede crítica
toda e reprovação.
pessoa deve ter e é Aporemoção song é tratada como a
isso aceita como legítima.
O cenário de interação que produz o sentimento da raiva é aquele em que há 9
1
uma violação de regras ou valores que é apontada por uma pessoa que abertamente a
n
i
condena o ato. O responsável pelo ato então reage com medo dessa raiva, temendo g
á
P
que a pessoa zangada se torne violenta, e corrige assim seu comportamento. Lutz
apresenta alguns contextos mais comuns nos quais a emoçãosong é expressa. Quando
jovens rapazes que haviam bebido voltaram à noite para a aldeia, agindo
ruidosamente e contrariando assim o estilo calmo e pacífico dos Ifaluk, muitas pessoas
temeram a raiva justificável dos chefes, os líderes morais considerados os responsáveis
pelo bem-estar da ilha e seu povo. Outro contexto comum em que se manifestava o
sentimento era quando uma pessoa deixava de cumprir com a obrigação de dividir
com os outros. Compartilhar tudo desde comida, trabalho e até as crianças era um dos
principais valores dessa sociedade e em torno dele surgiam conflitos cotidianos. Assim,
quando alguém achava que o outro não estava dividindo como esperado, declarava
sua raiva justificável como forma de afirmar uma determinada interpretação dos
acontecimentos, o que às vezes era contestado pela pessoa acusada. Com frequência,
a possibilidade de que alguém viesse a expressar esse sentimento tornava-se uma
razão explícita para dividir com o outro. Na educação das crianças também recorria -se
muitas vezes à emoção song para sinalizar que algum valor não estava sendo
observado e que a criança estava apresentando um mau comportamento.
Há também um componente ideológico no acionamento dessa categoria
emotiva, que contribuía para a manutenção das relações de poder. Como explica Lutz,
1
2
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Capítulo 2
Emoções: individuais ou sociais?
As ciências sociais têm no par indivíduo-sociedade uma oposição fundadora.
Entre os clássicos, Émile Durkheim e Georg Simmel a elegeram como eixo em torno do
qual formularam seus projetos teóricos para a recém-criada disciplina. Naquele
momento, esses esforços iniciais de fundação da sociologia eram voltados para a
demarcação de um campo próprio de atuação intelectual, em larga medida tomando a
ciência da psicologia como" outro" diante do qual delimitar uma abordagem particu lar
do ser humano.
Deriva daí uma dificuldade histórica para a possibilidade de construção da
emoção como um objeto das ciências sociais. Associada, como vimos no capítulo
anterior, na etnopsicologia ocidental ao domínio da psicologia individual, a emoção é
entendida, no senso comum das sociedades modernas complexas ocidentais, como
algo que diz respeito à singularidade psicológica do sujeito, o que a tornaria portanto
refratária a condicionamentos de natureza sociocultural. A emoção "autêntica" seria
aquela que emana do íntimo de cada um, tendo raízes nas histórias de vida
fenômeno
de "união" psicológico. AO
e "discórdia". pergunta
autor é "sociológica", contudo,
enfático ao afirmar que seria dirigida
os dados às categorias
da sociologia são
processos psicológicos, os quais contudo estariam fora do escopo analítico da
sociologia, sendo preciso deles abstrair a "realidade objetiva da sociação".
Contudo, essa nitidez com que ele separa o psicológico do sociológico em um
texto de natureza programática fica esmaecida quando volta sua atenção para a
análise de sentimentos. Um exemplo seria o texto "Fidelidade e gratidão", em que
discute sua contribuição essencial para a estabilidade e coesão da vida social. A
fidelidade é descrita como um sentimento" sociologicamente orientado", ou seja, em
vez de gerar novas relações, ela decorreria da antiguidade de uma relação. Já a
gratidão seria o sentimento que motivaria a reciprocidade, mesmo na ausência de
coerções externas. O ponto fundamental aqui é a atenção que Simmel dá, ao examinar
o problema da coesão social, à dimensão afetiva da estabilidade das formas sociais,
permitindo-nos assim entrever uma concepção da relação forma-motivação mais
nuançada do que aquela esboçada em seu texto programático.
outras,
social dedoum
fato social:
fato. Paraé Durkheim,
uma espécie deser
é ao "prova dos
capaz denove"
coagirpara estabelecer
a vontade a natureza
individual que um
fenômeno estabelece sua condição de "social", uma vez que atesta assim a 3
externalidade, em relação à consciência individual, de sua existência. Essa coerção 2
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P
pode ser exerci da de diversas formas, como por exemplo constituições, códigos
penais, condenação pela opinião pública ou costumes.
Essa importância atribuída à existência externa ao indivíduo como "atestado"
da natureza social de um fato é expressão do esforço feito pelo autor para encontrar
um lugar em meio às ciências que, no cenário intelectual em que atuava, estudavam o
homem: a filosofia, a biologia e a psicologia. Elas tinham, cada qual, sua dimensão
própria do humano
Ele sugere para perscrutar:
a existência sua transcendência.
de uma quarta sua fisiologia,
dimensão a social -, cuja seu psiquismo. e
especificidade
independência em relação às demais se empenha em demarcar como forma de criação
de um espaço de atuação intelectual que legitime falar em uma "nova disciplina".
Reencontramos assim um movimento intelectual que compartilha com o
programa de Simmel ao menos esse traço fundamental: a eleição da psicologia como
"outro disciplinar", com a exclusão de tudo aquilo que é associado ao psicológico do
escopo da sociologia. Entretanto, também na sociologia durkheimiana a oposição
indivíduo-sociedade (ou psicológico-sociológico) se complexifica em outros momentos.
Um bom exemplo é a noção de "efervescência", discutida por Durkheim ao analisar
ritos e crenças religiosas. A "efervescência" é um estado alterado da atividade psíquica
individual, que somente se produz quando o sujeito está imerso em meio a uma
coletividade, cuja marca é a intensidade. A participação em uma coletividade desse
tipo pode ainda, segundo ele, provocar a posteriori uma impressão de não
reconhecimento de si.
Essa possibilidade a existência de fenômenos coletivos capazes de alterar o
estado de consciência individual-, se, por um lado, atesta a natureza coercitiva do fato
social, por outro introduz ao mesmo tempo um matiz nessa concepção da relação
indivíduo-sociedade como uma oposição, sugerindo que o social pode estar também
dentro do indivíduo, nuançando assim a formulação programática do fato social como
aquilo que existe "fora da consciência individual".
tolde
social aepossibilidade
culturalmentede configurado.
reconhecermos a experiência
Esta tensão é oemocional
eixo que como algo
orienta histórica,
a análise dos
sentimentos que examinaremos a seguir.
individualismo, proposta
concepção de amor por na
presente Dumont
história(1992), comoe Julieta.
de Romeu eixo principal
A partirpara a análise
de um exame dada
lógica que orienta o sistema de castas na Índia, Dumont formula sua clássica oposição
entre holismo e individualismo: duas ideologias distintas acerca da posição do
indivíduo em relação à sociedade. No holismo, o indivíduo é concebido como parte de
um todo, com seu lugar no mundo sendo definido a partir de seu "lugar" de
nascimento, ou seja, sua identidade é conferida a partir de seu pertencimento a um
grupo familiar e do lugar deste no todo social. O nascimento em um dado grupo define
assim, entre outras possibilidades, direitos e deveres políticos, profissões ou parceiros
possíveis para casamento. O individualismo, por sua vez, é uma ideologia que entende
o indivíduo como valor supremo ao qual a sociedade estaria subordinada, sendo esta
concebida como uma "associação" de indivíduos cuja existência lhe seria anterior e
que
comoseumaagrupariam por de
construção vontade
dentroprópria. Nessaouideologia,
para fora, a identidade individual,
seja, a singularidade é entendida
combinada aos princípios da igualdade e liberdade no mundo público, seria a fonte da
construção do lugar do indivíduo na sociedade.
O holismo seria uma ideologia típica das sociedades tribais e de algumas outras
formas complexas de organização social, como a sociedade de castas da Índia; o
individualismo, por sua vez, seria a ideologia predominante no Ocidente moderno.
Entretanto, o Ocidente nem sempre teria sido individualista, tendo conhecido um
período holista na Idade Média, com a transição de uma ideologia para outra se
dando, na interpretação de Dumont, durante o Renascimento.
Ora, é exatamente nesse momento que se dá a consagração da história de
Romeu e Julieta sob a forma de tragédia por Shakespeare. É bom lembrar que a
história, em suas linhas gerais, não é uma criação srcinal de Shakespeare, já
circulando em poemas e outras formas narrativas anteriores a sua versão teatral. O
que sua retomada durante o Renascimento e seu "sucesso" estrondoso expresso na
perenidade de seu tema nos dizem sobre a representação moderna do sentimento
amoroso?
Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro realizam uma análise estrutural da
tragédia, identificando três pares de opostos que estruturam a narrativa: amor/família,
corpo/nome, alma-coração/corpo. A primeira delas é dada pelo próprio cerne da
trama: o amor que une Romeu e Julieta encontra em suas famílias de srcem um
ferrenho opositor, contra o qual o casal se insurge ao casar-se em segredo.
A segunda oposição corpo/nome surge na famosa cena do balcão, em um
diálogo citado pelos autores, em que Julieta apela a Romeu para que renegue seu
nome, alegando ser o nome irrelevante em sua identidade, algo que "não faz parte
dele": 6
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Julieta – Romeu, Romeu! Por que razão tu és Romeu? Renega teu pai e abandona esse g
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nome! Ou se não queres jura então que me amarás, e eu deixarei de ser Julieta
Capuleto!
Em ti, só o teu nome é que é meu inimigo! Tu não és Montecchio, mas tu mesmo!
Afinal, o que é um Montecchio? Não é um pé, nem a mão, nem um braço, nem um
rosto. Nada do que compõe um corpo humano. Toma outro nome! Um nome! Mas,
que é um nome? Se outro nome tivesse a rosa, em vez de rosa, deixaria por isso de se r
perfumosa?
esses mesmosAssim também,
encantos, tão Romeu,
queridossepor
nãomim!
fosses Romeu,
Romeu, terias,
deixa essecom outro
nome, nome,
e, em troca
dele, que não faz parte de ti, toma-me a mim, que já sou toda tua!
Romeu Farei o teu desejo de bom grado! Por ti, trocarei seja o que for! Por ti, serei d e
novo batizado! Não me chames Romeu ... mas sim o Amor!
Não, minha bela, nem Montecchio nem Romeu! Já que meu nome não te agrada, eu
não sou eu!
plenamente
pertencimentoreconhecidos quede estariam
a suas famílias srcem. Ou em suas
ainda, identidades
poderiam até se dadas pelo
amar, mas
certamente não veriam nisso um motivo para casar-se, uma vez que o amor como 7
motivação para o casamento é invenção recente. Tragédia desfeita, uma vez que a 2
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P
mola propulsora da tragédia – o casamento em segredo, à revelia das famílias – não
ocorreria.
Por outro lado, em uma ordem individualista, Romeu e Julieta poderiam (ao
menos no plano ideal) amar a quem quisessem, e escolher seu cônjuge por questões
de foro íntimo, sem preocupações com o estabelecimento de relações de aliança
(motivação para o casamento típica das sociedades tradicionais e holistas). Suas
famílias poderiam
casal moderno, não aprovar
se tomado suas tão
de paixão escolhas, poderiam
avassaladora. se se opor, mas
submeteria dificilmente
a esses um
ditames.
Tragédia desfeita, uma vez que a mola propulsora da tragédia - o casamento em
segredo, à revelia das famílias - não ocorreria.
É portanto essa convivência entre códigos contraditórios, o holismo e o
individualismo, típica das fases de transição, que engendra a tragédia de Romeu e
Julieta. Tomada como mito, ela nos mostra a emergência de uma noção de amor em
que um sentimento proveniente do íntimo do sujeito o faz voltar-se contra o social, a
ele impondo sua vontade - é um sentimento embebido pela ideologia individualista.
Esse sujeito determinado de dentro, contudo, e livre em relação à sociedade,
está amarrado a ditames de outra ordem. Esse amor todo-poderoso, que o faz
enfrentar qualquer obstáculo, não é escolha sua: é de natureza cósmica, estando ele
destinado a amar aquela pessoa. Romeu e Julieta se apaixonam em um baile de
máscaras, sem que um tenha noção de quem é o outro. A determinação cósmica desse
sentimento surge aí com toda a nitidez: livre para agir em nome do amor, o indivíduo
moderno não é, contudo, livre para não amar, ou mesmo para escolher a quem amar.
O amor é assim concebido como algo que se abate sobre o indivíduo: ou será que
alguém acharia que, tendo em vista o desenlace, Romeu e Julieta escolheriam se
apaixonar um pelo outro, caso lhes fosse dada essa chance?
Vemos assim o surgimento de uma concepção de amor em que o indivíduo é
tomado por um sentimento de srcem sobredeterminada, em nome do qual insurge-se
contra qual- quer determinação de ordem social que se oponha à vivência plena desse
sentimento. Mas esta é uma maneira de amar que, embora tendo em Romeu e Julieta
seu mito de srcem, o transcende em muito, podendo esta narrativa ser tomada como
uma "matriz" para inúmeras outras produções discursivas contemporâneas, que lotam
o universo da comunicação de massa. São filmes, poemas, romances, letras de música,
peças de teatro, todas elas tematizando o "amor impossível", aquele que arrebata o
sujeito e em nome do qual ele move montanhas, encontrando sem tantas versões o
mesmo destino trágico de Romeu e Julieta. Os obstáculos enfrentados, contudo,
variam, ampliando o leque dos "antagonistas", que já não se restringem à família:
podendo ser guerras, morte, tempo ou mesmo a natureza. E assim em Love story ou
Ghost (a morte); em Doutor Jivago, Casablanca ou E o vento levou (guerras e
revoluções); em Em algum lugar do passado (o tempo); e em Splash ou Xanadu (a
natureza).
Nessa lista de produções cinematográficas há um pouco de tudo, entre dramas
e comédias, filmes clássicos e produções mais recentes de orientação marcadamente
comercial. Entre os clássicos, contudo, há uma constante: os protagonistas terminam
separados. Mas não será exatamente por isso que são clássicos, no sentido de se 8
2
eternizarem na memória do público? Se o amor está entre os temas centrais da a
n
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indústria cultural e se o happy end, conforme afirmou Morin (1984), é um g
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compromisso desse tipo de produção cultural, não faria sentido então aventar a
hipótese de que o lugar tão central desses filmes no imaginário romântico popular do
Ocidente contemporâneo es taria justamente ligado a esses finais, que, justamente por
não serem "felizes", não seriam propriamente "finais"? Será que, por não permitirem a
seus protagonistas viverem seu amor, esses filmes permaneceriam inacabados na
imaginação de seu público, à maneira de um "gancho" de telenovela? Ou quem, entre
os aficcionados por esses filmes, nunca sonhou com a volta de Rhett para Scarlett, ou
nunca refez a cena final de Dr. Jivago, fazendo com que Lara se voltasse e o visse
agonizando na calçada?
Os temas de Romeu e Julieta, assim, ecoam até hoje em um sem-fim de
produções discursivas contemporâneas, atuando como uma "matriz" para esse
imaginário do amor romântico. Em muitas dessas narrativas, reconhecemos
essencialmente seu núcleo temático do amor impossível; em outras, um conjunto
maior dos traços apontados por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro em sua
exposição sobre as características da noção moderna de amor. É o caso de Exagerado,
composição de autoria de Cazuza, que tomamos aqui para ilustrar este lugar
"matricíal" do amor de Romeu e Julieta. Diz a letra:
Amor da minha vida Daqui até a eternidade
Nossos
( ... ) destinos foram traçados Na maternidade
Eu nunca mais vou respirar Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome Se você não me amar
E por você eu largo tudo Vou mendigar, roubar, matar Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais
( ... ) 2
heroico do
diante emdestino:
sua determinação
sua vida de viveréseu
inteira amor, este sujeito
determinada por uma apaixonado
instância écósmica,
submissoda
maternidade até a eternidade.
Em uma letra da música pop brasileira dos anos 1980, vemos assim
reproduzida, em pinceladas gerais, a concepção do amor moderno identificada por
Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro na tragédia renascentista "Romeu e Julieta",
sugerindo assim a acuidade de sua interpretação deste texto como um "mito de
srcem" deste amor. Esta análise, ao sugerir a relação entre este sentimento e a
ideologia individualista, é um excelente exemplo da perspectiva que entende as
emoções como construções históricas, a exemplo desta maneira de amar típica da
modernidade ocidental.
9
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2 i
Letra obtida j unto ao site http://catuza.musi cas.mus.br/letras /43861(. Acesso em: 29 s elo 2 008. g
á
P
Uma outra maneira de amar: o fã e a experiência do fascínio
O amor moderno tem, entre suas características centrais, o poder de
singularizar, ou seja, de fazer o indivíduo sentir-se especial. O sujeito enamorado vive
sua paixão como algo único, que nunca alguém sentiu igual; ora, se este traço é
recorrente nas experiências da paixão, então ao menos isso todos os apaixonados têm
em comum: a convicção de que nunca alguém sentiu algo parecido antes.
Este paradoxo – igualar-se na percepção de ser diferente – é típico da
experiência moderna, consistindo em uma configuração historicamente particular
daquela tensão que Simmel (2006) já apontava como constitutiva da condição
humana: a tensão entre compartilhar, saber-se igual, e diferenciar-se, saber-se
singular. Este dilema acentua-se, evidentemente, na sociedade de massas, com seu
apelo indiferenciado à singularização. Nesta seção, queremos acompanhar o modo
como este drama é vivenciado em uma experiência indissociável da sociedade de
massas: a condição de Ia e as emoções a ela associadas, a saber, o amor e a fascinação.
Em trabalho voltado para a compreensão da experiência da fama, Coelho
(1999) analisou um conjunto de cartas endereçadas por Ias a seus ídolos televisivos,
um ator e uma atriz de grande projeção no meio televisivo brasileiro, sendo ambos
protagonistas de novelas no horário nobre da Rede Globo de Televisão. Lidas em
conjunto, estas cartas chamam a atenção por trazerem um esforço recorrente da parte
dos Ias em diferenciar-se perante seus ídolos, justificando a expectativa de uma
resposta. Este esforço é baseado em uma certeza, mais ou m:nos explícita, mais ou
menos nuançada, da própria singularidade, de ser único em meio a muitos, certeza
essa que surge sob duas formas principais: o recurso frequente à expressão "Ia
número 1", utilizada por muitos para reivindicar do ídolo o reconhecimento da
natureza diferenciada da admiração que lhe dedicam, e a utilização recorrente do
discurso amoroso para expressar a natureza de seus sentimentos.
O conjunto de cartas analisado é composto por cerca de 280 cartas, sendo 80
para o ator e as demais para a atriz. O t0rr:. e sempre afetuoso, com manifestações de
apreço e admiração, independentemente das variações de gênero tanto do Ia quanto
do ídolo.declarações
quentes O escopo deste afeto é amplo, podendo ir de elogios respeitosos até elo
de amor.
Morin (1980), discutindo o universo das estrelas de cinema hollywoodianas,
afirma que nas cartas de Ias "a linguagem do amor ( ... ) se mistura com a da adoração"
(p. 58). É para a análise desta "mistura" que Coelho volta sua atenção, sugerindo uma
interpretação para o porquê do recurso, pelos Ias, ao discurso amoroso para expressar
seus sentimentos.
Sua interpretação baseia-se em uma estranheza inicial: se o modelo da relação
amorosa ideal é diádico e baseado na reciprocidade e na exclusividade, por que os Ias
a ele recorrem para falar do que sentem por seus ídolos? Não seria flagrante a
distância entre a relação amorosa ideal e uma relação entre líder carismático-seguidor
(típica das relações de idolatria)? Não é esta, ao contrário, definida por um modelo
"centrípeto" muitos devotando seu afeto a um único, o qual, por definição, não o
retribui em natureza ou intensidade, além de reparti-lo por um grupo, não sendo 0
jamais exclusivo? 3
a
A autora recorre à comparação realizada por Lindholm (1993) entre as n
i
g
á
experiências do amor e do carisma para sugerir uma interpretação para o porquê do P
recurso ao discurso amoroso pelos Ias. Com base na noção freudiana de
"identificação", Lindholm discute as formas possíveis de satisfação do desejo humano
de "escapar aos limites do eu", elencando, ao lado da terapia, do consumo e da adesão
a ideais de nação, o pertencimento a grupos carismáticos e o amor romântico.
Estas experiências compartilhariam a capacidade de propiciar ao sujeito a
vivência de um "estado fusional", um perder-se no outro que compensaria as
incertezas doem
teriam ass im eu,comum
permitindo a eclosão
a capacidade de de uma sensação
provocar de êxtase.
no indivíduo Amor e carisma
enamorado/fascinado
uma sensação de conforto gerada pela "fusão" com o outro. Por esta mesma razão,
seriam mutuamente excludentes, ou seja, impossíveis de serem vivencia dos
simultaneamente, mas nem tanto porque o sujeito não possa; é mais porque não
precisa, uma vez que o desejo fusional pode ser atendido tanto por um quanto pelo
outro, sendo uma impossibilidade de sua natureza uma vivência parcial, que
permitisse ou exigisse "complementações" de qualquer espécie.
Entretanto, ainda segundo Lindholm, haveria uma diferença fundamental entre
o amor e o carisma: sua valoração social. Para ele, o amor romântico seria uma
experiência socialmente valorizada na modernidade ocidental; basta lembrarmos, em
favor de seu argumento, a profusão de discursos ficcionais que giram em torno da
experiência do enamoramento, (quase que) invariavelmente descrita como desejável.
Não é o sujeito apaixonado um dos principais protagonistas dos enredos matriciais da
comunicação de massa?
O carisma, por sua vez, seria objeto de uma desvalorização social, com a
adoração carismática sendo alvo de sentimentos de hostilidade e menosprezo nesta
mesma modernidade ocidental, e com frequência associada a formas várias de
patologia mental. A comunicação de massa novamente é uma boa fonte de
argumentos a favor da postulação de Lindholm; conforme demonstra Coelho neste
mesmo trabalho, os filmes que tematizam a relação Ia-ídolo invariavelmente
descrevem o primeiro como um sujeito adoecido, solitário e descontrolado, a quem as
narrativas reservam sempre um "unhappy end": o abandono ou a morte, jamais a
relação desejada com o ídolo.
Temos assim duas experiências emocionais capazes de produzir no sujeito um
mesmo efeito: a satisfação de um desejo de fusão com o outro. Estas duas
experiências, contudo, são objeto de valorações sociais distintas, sendo o amor
recomendável e o carisma execrável. Se, contudo, a experiência do Ia pertence tão
evidentemente ao elenco dos eventos carismáticos, por que o Ia fala de amor? Por que
não fala de adoração ou fascínio?
Coelho recorre à combinação de duas ideias para propor uma interpretação
para esta estratégia típica das cartas de Ias: a noção de Morin (1984) de que a
indústria cultural s eria uma "escola de interpretação da experiência" e a concepção de
Mauss (1981), discutida acima, de que a expressão dos sentimentos seria uma
"linguagem". Para Morin, a indústria cultural ofereceria um conjunto de modelos para
a conduta privada, seria um espaço de produção de mitos e discursos que os
indivíduos tomariam como guias para a compreensão e condução de suas vidas
privadas, a vivência afetiva ai Incluída. Em sendo assim, os consumidores das 1
3
narrativas midiáticas aprenderiam a valorizar a experiência do amor, ao mesmo tempo a
n
i
g
á
P
em que se veriam diante de uma produção discursiva que maciçamente condena o
sentimento do fascínio como algo patológico e desqualificante.
Ou seja: ser fã é algo a ser evitado. Dizer-se fascinado e um risco para a
autoimagem. O fã vê-se assim diante de um dilema, imprensa do pela necessidade de
expressar o que sente e a percepção, mais ou menos clara, mais ou menos difusa, da
natureza socialmente desvalorizada deste afeto.
vivência,
criar umasensações
percepçãoe emoções.
distorcidaO eencapsulamento
exagerada da no próprio
própria mundo interno
"srcinalidade", pode
trazendo
consigo um sentimento de incompreensão pelo outro. Este sentimento é uma forma
possível da solidão – mas não a única.
Simmel (1964b), ao discutir o isolamento individual, já assinalava que mesmo aí
há um traço da sociedade, uma vez que não se trata exatamente da ausência do social,
mas de uma existência imaginada e em seguida rejeitada da sociedade. Esta visão da
sociedade como algo presente na experiência do isolamento abre a porta para
realizarmos com a solidão mais um exercício de questionamento do senso comum, que
nela enxerga um sentimento que diz respeito somente ao íntimo. Este é o ponto
abordado por Wood (1986), que descreve a solidão como marca da pelo paradoxo de
ser experimentada pelo sujeito como um sentimento de separação do outro, ao
mesmo tempo em que é possível encontrar "gramáticas" sociais para a emergência
deste tipo de sentimento. Em outras palavras: há "regras" socialmente definidas para
2
que o sujeito possa sentir-se só. 3
a
Sábados à noite, por exemplo, nos grandes centros urbanos são ocasiões de n
i
g
sociabilidade prescrita; estar sozinho, sem companhia para alguma forma de lazer, á
P
suscita comumente um forte sentimento de solidão, conhecido e "validado" pelo
grupo social como uma reação emocional legítima diante da situação concreta. Esta
"regra", contudo, não apenas "valida" este sentimento nestas circunstâncias; ela
praticamente o prescreve como uma reação e mocional que atesta a "normalidade" do
indivíduo. Alguém que se sinta bem estando sozinho em um sábado à noite seria, em
muitos grupos urbanos, visto como "esquisito" e "antissocial". Por outro lado, sentirse
sozinho em uma segunda-feira pela manhã também não é lá muito "normal": é que
esta "gramática" da solidão é regida por uma temporalidade marcada pelas oposições
noite/dia, lazer/trabalho, O tempo da solidão, neste exemplo, pode ser caracterizado
como noturno e de lazer, ou seja, momentos para os quais há uma sociabilidade
prescrita/desejada que não se concretiza.
Esta "gramática", contudo, além de evidentemente não ser universal, não é
também de aplicação homogênea em meio a um mesmo grupo social. Sua força é
muito mais acentuada entre os jovens, para quem a experiência de estar só em um
sábado à noite pode ser muito penosa; por outro lado, a sociabilidade de pessoas
idosas ocorre com frequência mais cedo, muitas vezes em dias úteis, não havendo
nada de "antissocial" em sentir-se bem sozinho em casa às oito da noite de um sábado,
após uma sessão vespertina de cinema, por exemplo.
algo passado.
Entretanto, não é somente com o passado que os sentimentos estabelecem
formas de relação. As conexões entre experiências afetivas e temporalidade abarcam 4
3
também o futuro e o presente. É assim que poderíamos, por exemplo, pensar na a
n
i
ansiedade e na esperança como formas de relação com o futuro, a primeira falando de g
á
P
uma "ânsia" pelo porvir, a segunda remetendo a uma sensação – pertencente, ela
mesma, ao momento presente de quem sente– de otimismo. Também como parte de
seu esforço por compreender a natureza do vínculo com o passado estabelecido pela
saudade, Lourenço contrasta-o com as temporalidades de outros sentimentos ligados
ao presente, tais como a angústia e o tédio. Para ele, na angústia não há futuro,
havendo somente um presente sem dimensões"; já no tédio, o tempo "roda em torno
de si mesmo", com o indivíduo sendo esmagado por um excesso de realidade.
O universo da música pop brasileira novamente pode nos oferecer um exemplo
das vivências afetivas contemporâneas. Esta percepção do tédio como um sentimento
cuia característica central está em uma forma de relação com o tempo em que este é
subjetivamente vivenciado como imóvel, em um descompasso com seu ritmo externo,
pode ser encontrada em Tédio, da banda carioca Biquini Cavadão. Diz a letra:
Sabe esses dias em que horas dizem nada
E você nem troca o pijama, preferia estar na cama
O dia, a monotonia tomou conta de mim
É o tédio, cortando os meus programas, esperando o meu fim
torna-se mais um
uso frequente modelo de"pai
da expressão relação a inspirar
amigo", as relações
mãe amiga familiares,
. A confiança transmitida,
e a doação pelo
ao outro
são aspectos em geral presentes, mas a afinidade e a intimidade muitas vezes não 6
existem, o que é explicado pela falta de escolha sobre os parentes. No meio de 3
a
n
trabalho, é possível encontrar colegas que reúnam qualidades para transformá-Ios em i
g
á
P
amigos. O quesito mais difícil de assegurar nestas relações é a confiança no bem-
querer e na doação ao outro, pois a competição e outros interesses profissionais
podem falsear as intenções na aproximação de um amigo em potencial.
Ao falarem sobre as interações no espaço de trabalho e no público em geral,
era comum ouvir dos entrevistados a referência a muitas pessoas por quem se "tinha"
amizade relações estruturadas em outros critérios que continham, porém, o
sentimento de amizade.
abarcava relações entre Era uma percepção
pessoas de amizade
com características bastante
sociais, inclusiva
como srcense,.em geral,
de classe,
raça, orientação sexual e religião, mais distintas entre si. Nelas o afeto da amizade
parecia fornecer o solo comum de bem-querer e de "humanidade" que diminuía a
percepção da diferença que podia afastá-los. Por isso as pessoas estudadas repetiam
tanto que era possível fazer amizade com qualquer um atravessando as barreiras
sociais.
Ficava claro, entretanto, que estes amigos, às vezes referidos mais pelo termo
adjetivo ("uma pessoa amiga ”) do que pelo substantivo, eram diferentes dos amigos
próximos, em número tão reduzido que "se podia contar nos dedos . Estes vinham de
condições sociais bastante próximas e tinham. se conhecido no colégio, na faculdade
ou na vizinhança, meios sociais relativamente homogêneos. O tempo era um fator
Importante na relação, pois permitia que os amigos provassem sua confiabilidade e
sua doação ao outro, elementos Importantes nas amizades próximas.
Para os ingleses de camadas médias estudados por Rezende (2002) em
Londres, o tempo e a confiança também eram valorizados na amizade. No entanto, na
comparação feita com os cariocas, destaca-se que a noção de amizade como um
sentimento, que poderia até estar presente em outras formas de relação, não figurava
para estes londrinos. Ao contrário, as relações de amizade pertenciam unicamente à
esfera privada, junto com as relações de parentesco. No espaço de trabalho, era difícil
desenvolver amizade pois, mais do que a hierarquia e a competitividade, era preciso
ter um comportamento eficiente, produtivo e polido, contrário ao relaxamento que
marcava a relação entre amigos.
Os amigos eram vistos como pessoas com quem era possível se expor sem
reservas e ter seu verdadeiro eu aceito. Como eles diziam, o amigo é alguém com
quem "eu posso ser 'eu mesmo"'. No início da relação, a afinidade é importante
sobretudo nos interesses de lazer e no senso de humor. Com o tempo, desenvolve-se a
confiança necessária para se expor, processo este que deve ser recíproco e
sincronizado. Como cada um prezava sua privacidade e tempo para si, não gostando
de imposições indevidas, ter confiança em que o amigo aceitaria compartilhar
emoções era fundamental para a relação.
Por isso, era difícil estabelecer amizade no trabalho ou em outros espaços
marcados pela diversidade social. No trabalho, prevalecia a ênfase na contenção
emotiva em função da eficiência e produtividade, antitética à amizade. Com pessoas
de srcem de classe distintas, em particular as que vinham da classe trabalhadora,
havia a percepção de que as noções de privacidade eram distintas, de forma que se
tornava difícil sincronizar os processos de autorrevelação. Como as pessoas de classe
trabalhadora eram vistas como mais espontâneas e pouco polidas, a preservação do 7
3
espaço pessoal era ameaçada. a
n
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P
Deste modo, as relações de amizade se estabeleciam entre pessoas de srcens
sociais muito semelhantes, com trajetórias também similares. Contrastando com a
diversidade étnica e social de pessoas em Londres, os ingleses estudados formavam
redes muito homogêneas nas quais encontravam as qualidades de amizade desejada.
Como a polidez e sua contenção emotiva eram omodus operandi no espaço público,
era com os amigos que eles podiam relaxar e ser espontâneos. Se na família havia a
confiança do apoio quando necessário, faltava a eles a percepção de afinidade que
permitia o tipo de exposição de si que acontecia entre amigos. A amizade tornava-se
mesmo um ideal para as relações familiares.
Estes três exemplos mostram como a amizade é uma relação afetiva que
contém falgum grau de escolha individual, se dá dentro de um campo de
possibilidades. Embora vivida como uma opção subjetiva, a amizade é concebida e
praticada com significados, normas e valores culturalmente definidos. Estas definições
não valem apenas para unidades culturais mais amplas, como no contraste entre os
contextos grego, brasileiro e inglês, mas também para segmentações mais finas, como
nas diferenças de gênero em Mouria ou as de srcem de classe em Londres. Assim, a
amizade como uma relação afetiva exemplifica, como o amor, a admiração, a solidão e
a saudade, experiências emocionais que são a um só tempo subjetivas e sociais.
8
3
a
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P
Capítulo 3
A mi cropolítica das emoções
estudosOpsicológicos
essencialismo é descrito apoiados
e psicanalíticos, pelas autoras como de
na premissa o que
viésaspredominante
emoções teriamnos
um substrato universal e natural, sendo, em seu núcleo, as mesmas por toda parte. 9
Entre as perspectivas mencionadas como representativas dessa abordagem, as autoras 3
a
n
i
incluem a psicanálise freudiana, com sua concepção das energias pulsionais como algo g
á
P
a ser "modelado" ou "canalizado" pelas forças civilizatórias. Para Lutz e Abu-Lughod, o
problema maior dessa perspectiva seria uma espécie de "reificação" das emoções,
tidas como preexis- tentes ao social, que com elas deveria "lidar", "expressando- as"
ou "reprimindo-as" ou ainda "ritualizando-as".
O historicismo e o relativismo compartilhariam um ponto- chave que os oporia
ao essencialismo: a crença na "construção cultural das emoções", que seriam
fenômenos
estudos seriahistórica e socialmente
a comparação circunscritos.
entre contextos Uma estratégia
socioculturais distintos, central
capaz dedesses
colocar
em xeque a suposição dos essencialistas de que as emoções teriam substratos
universais. O eixo eleito para comparação diferenciaria essas vertentes: enquanto o
historicismo recorreria a um escrutínio temporal, o relativismo se valeria de
comparações entre culturas contemporâneas entre si.
Essas vertentes, contudo, nem sempre aparecem em "estado puro". Se por um
lado é possível identificarmos trabalhos de inspiração claramente historicista (como a
análise já comentada da concepção moderna de amor em Romeu e Julieta realizada
por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro, 1977; ou a "história das lágrimas" feita
por Vincent-Buffault, 1988) e textos marcadamente relativistas (como o exame da
"etnopsicologia" ocidental feito pela própria Catherine Lutz, 1988), por outro há
também estudos que mesclam traços essencialistas com matizes historicistas e/ou
relativistas, como por exemplo os estudos já mencionados de Peter Gay (1995) sobre o
ódio ou de Jean Delumeau (1989) sobre o medo.
A inovação do contextualismo está em sua inspiração na noção foucaultiana de
"discurso". Essa proposta teórica baseia-se na concepção de discurso como uma fala
que mantém com a realidade uma relação não de referência, mas sim de formação. Ou
seja, nela o real não preexiste ao que é dito sobre ele, mas, ao contrário, é formado
por aquilo que se diz sobre ele. Para as autoras, a emoção não seria apenas um
construto histórico-cultural; a emoção seria algo que existiria somente em contexto,
emergindo da relação entre os interlocutores e a ela sempre referida. É nesse sentido
que se pode falar de uma "micropolítica da emoção", ou seja, de sua capacidade para
dramatizar, reforçar ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações
interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual. E assim, então, que
as emoções surgem perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas ou
igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre os grupos
sociais, conforme veremos a seguir na análise de alguns se ntimentos específicos.
simpatia; as paixões"
sua natureza do corpo"porque
"incomunicável" seriam também
de difícilde difícil compartilhamento,
imaginação. devido à
Há ainda as paixões
"egoístas" - a dor e a alegria - e as paixões "sociáveis", entre as quais relaciona a 0
generosidade, a humanidade, a bondade, a amizade, a estima recíproca e a 4
a
n
i
compaixão. g
á
P
O ponto fundamental da obra de Smith é o desvendar de uma "lógica da
simpatia": em que situações estaria o ser humano mais propenso a identificar-se com
o sentimento alheio - na desgraça ou no sucesso?
Discutindo um conjunto de situações, entre as quais o sucesso repentino, o
autor aborda o problema da inveja, descrevendo-a como um sentimento capaz de
emergir diante do rompimento de uma igualdade srcinal. Dois temas entrelaçam-se
assim em suaentre
a articulação obra:aavivência
relação entre
vicáriasentimentos e posições
da experiência alheia e relativas entre da
a emergência os simpatia.
sujeitos e
Os sentimentos "morais" seriam assim aqueles que falam de uma relação
estabelecida no íntimo do sujeito com a alteridade: o que o sofrimento ou a alegria do
"outro" suscitam Qual a lógica que rege essa dinâmica emocional?
Diversos são os critérios envolvidos nessa regulagem dos sentimentos diante
do outro: o sofrimento alheio pode suscitar compaixão, indiferença ou até mesmo
regozijo, de- pendendo das macrorrelações a que uma dada interação se reporte. Em
meio a esses critérios, podemos destacar a fronteira nós-outros, ou seja, os
sentimentos morais fariam um trabalho de inclusão/exclusão social, sendo suscitados
por "mapas de navegação emocional" ao mesmo tempo em que reforçariam os seus
traçados. Compaixão, nojo, desprezo, gratidão, humilhação seriam assim, todos eles,
sentimentos capazes de realizar o trabalho micropolítico de dramatização, reforço e,
por que não, alteração das macrorrelações sociais.
etnografia.
seu redor éA evidentemente
suposição de que os amputados
tributária suscitariam ocidental
da etnopsicologia compaixãoqueno os
ambiente ao
considera
merecedores desse sentimento porque vítimas de um acidente de natureza
inteiramente aleatória, "algo que poderia acontecer com qualquer um". Nessa
concepção, o abandono de que são alvo é uma nova forma de vitimização, que
espantaria a um ocidental pela aparente "impiedade". A investigação etnográfica,
contudo, demonstra estar em ação outra "gramática emocional", a qual, através do
recurso a uma doutrina religiosa, insere a experiência da amputação em uma lógica de
"responsabilidade". A comparação entre essas duas for- mas de dar/receber
compaixão ilustra assim a dimensão micropolítica do sentimento, capaz de demarcar e
reforçar micro- hierarquias articuladas a contextos culturais e históricos mais amplos.
como intelectual,
deflagrado mas também
pelo desprezo emdevido
ocorre seu cotidiano como cidadão.
à contradição entre a O conflito
crença na emocional
igualdade
fundamental de to- dos os seres humanos e a emergência de um sentimento que é em 3
si mesmo um atestado de existência e/ou reivindicação de hierarquia. 4
a
n
i
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P
A reciprocidade desse sentimento, contudo, traz ainda novas nuances.
Tradicionalmente, o desprezo é um sentimento que emerge em relações hierárquicas,
sendo devotado por quem ocupa as posições superiores àqueles em situação
inferiorizada - a essa modalidade Miller refere-se como "desprezo para baixo". Nas
sociedades tradicionais, essa parece ser a única modalidade do desprezo, ou ao menos
a única que adentra a cena pública. As sociedades modernas democráticas criam a
possibilidade de outra modalidade de desprezo: o "desprezo para cima", devotado,
como no exemplo da história acima, por aqueles que ocupam posições socialmente
desvalorizadas (os trabalhadores manuais) àqueles detentores de status mais elevado
(os intelectuais). Surge assim outra função micropolítica do desprezo: a contestação da
hierarquia em sua versão "para cima", e não mais somente seu reforço/ demarcação,
como no desprezo "para baixo". É assim que Miller sugere, então, de forma um tanto
irônica, que esta parece ser uma conquista fundamental dos regimes democráticos: a
instauração da possibilidade dos desprezos mútuos, em uma espécie de
"socioeconomia" emocional da igualdade.
Na análise de Miller, o nojo figura ao lado do desprezo como uma "emoção de
demarcação de status": Recorrendo a Adam Smith e sua discussão sobre empatia e
moralidade, Miller arrola o nojo entre os "sentimentos morais", capaz de demarcar,
entendermos
dessas dádivas.a "negociação" em que
O primeiro deles é se
queengajam
receberpatroas e empregadas
um presente materialpordemeio
sua
empregada, em particular se for caro, ofende a patroa, em vez de agradá-Ia; à luz de
sua expectativa de ser "paga" com gratidão, essa oferta pode ser entendida como uma
reivindicação de igualdade, ferindo a regra implícita de dramatização do vínculo
hierárquico que as une (aos olhos da patroa). O segundo é a recusa da empregada, por
sua vez, a receber um presente: a lata de biscoitos, ao desagradar por seu baixo valor,
é equiparada ao salário, como se fosse remuneração por um trabalho, e não uma
dádiva. O terceiro elemento é a reivindicação, da parte da acompanhante, de ser vista
como sujeito singular que tem gostos e idiossincrasias, em vez de ser encarada como
ocupante de um papel: a lata de biscoitos, ao desconsiderar sua preocupação com
dietas, seria um presente de uma patroa para uma empregada, ou seja, uma troca
9
4
a
n
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Capítulo 4
As emoções nas sociedades ocidentais modernas
Até o momento, falamos das emoções nas sociedades oci- dentais como uma
etnopsicologia que precisa ser relativizada quando pensamos as relações entre o
indivíduo e a sociedade ou entre a biologia e a cultura. Colocamos em questão nos
capítulos anteriores a necessidade de separar visões nativas dessas sociedades de um
instrumental teórico para estudar as emoções nas ciências sociais. Neste último
capítulo, restringimos o foco da discussão para tomar agora essa etnopsicologia não
mais como problema, mas como visão de mundo que orienta e organiza a experiência
emotiva das pessoas nas sociedades ocidentais modernas.
Quando pensamos a vida em uma sociedade ocidental moderna, é comum vir à
mente a imagem de massas de pessoas transitando pelas ruas de uma grande
metrópole, ao lado de muitas outras desconhecidas. Nesse quadro, há frequente-
mente certa pressa no ar bem como a sugestão de relativo isolamento entre as
pessoas, apesar da proximidade dos corpos na rua. Programas jornalísticos de
televisão recorrem sempre a imagens assim ao tratar sobre temas variados que dizem
res- peito à vida nas sociedades ocidentais modernas. No cinema, os muitos filmes de
Woody Allen rodados em Nova York tornaram-se exemplos clássicos com seu
tratamento constante das angústias e dificuldades na construção das relações pes-
soais, e das amorosas em particular, naquele contexto. O que gostaríamos de ressaltar
é que essas imagens e sentimentos são tão frequentemente apresentados na televisão
e em filmes porque mostram questões significativas da experiência subjetiva em uma
grande metrópole ocidental moderna.
Assim, pretendemos aqui analisar em maior profundidade alguns aspectos em
torno da vivência das emoções nessas sociedades, tomando como base a obra de
alguns autores. A partir de Sennett, examinaremos a tensão entre a expressão dos
sentimentos e sua autenticidade, uma vez que o ato de expressá-los é visto como
demandas
demandas da da natureza,
civilidade,satisfeitas
expressaspela
no comportamento
família. Apesar depúblico e cosmopolita,
conflitantes, e as
eram exigências
que podiam se equilibrar. Nessa perspectiva, era possível interagir com estranhos de
forma emocionalmente satisfatória, mantendo-se ao mesmo tempo indiferente a eles,
e esse era o modo como o ser humano se transformava em um ser social. A
capacidade para estar com a família e os amigos era vista como uma potencialidade
natural. Assim, relacionar- se com o mundo público era uma questão de cultivo social,
do aprendizado de regras de convívio, enquanto no mundo privado realizava-se o que
seria da natureza do indivíduo.
Sennett identifica três fatores principais que levaram a uma mudança nesses
significados em torno do público e do privado. Primeiramente, o desenvolvimento do
capitalismo industrial gerou uma pressão para uma maior privatização. que
transformou a família não apenas em um refúgio idealizado como também em um
padrão moral com o qual avaliar a esfera pública, que passou a ser vista como
moralmente inferior. A qualidade material da vida pública também foi afetada pela
produção em massa de roupas, de tal modo que os marca dores de classe social pela
vestimenta se tornaram a princípio confusos e a diversidade de pessoas foi adquirindo
uma aparência mais homogênea no mundo público. Com isso, os estranhos passaram a
ser mais misteriosos e a vida pública mais incerta, contrastando então com o
aconchego oferecido pela família.
Em segundo lugar, aponta para uma mudança na subjetividade em função de
uma nova forma de secularização. Todas as sensações experimentadas passaram a ter
estatuto de fato. Portanto, nada que provocasse sensações devia ser excluído da
esfera privada de uma pessoa, tendo assim uma qualidade importante a ser
descoberta. Tornou-se plausível considerar as emoções fatos em si, compreendendo-
as a partir das situações em que eram manifestadas. Essa mudança teve como efeito 1
sobre a vida pública o esmaecimento das fronteiras entre O que era tido como pessoal 5
a
e como impessoal, uma vez que todas as experiências contam igualmente. As n
i
g
á
P
aparências apresentadas na esfera pública deixaram de ter um significa- do próprio e
passaram a ser vistas como pistas de uma essência interior a ser descoberta.
Por último, o autor destaca a força da sobrevivência da vida pública nos moldes
do Antigo Regime, no qual aquele era o espaço de possíveis transgressões morais. Em
contraste com os ideais de comportamento esperados no mundo da família, em
público as pessoas experimentavam sensações distintas de outros contextos, havendo
tolerância à quebra
com o público das regras
era distinta paradehomens
respeitabilidade. Sennettque
e para mulheres, observa queum
corriam essarisco
relação
moral
mais significativo. Mesmo assim, a experiência de vida entre estranhos, que já era
fundamental para o exercício da civilidade e para a construção da ordem social,
continuou considerada importante, mas com um novo sentido. Agora, o foco era não
mais o coletivo e o público, mas sim o individual e o privado - a formação da
personalidade, que precisaria do contato com estranhos para se desenvolver.
Da atuação dessas três forças resultou, na visão de Sennett, uma sociedade
intimista que passou a subjugar a experiência da vida em público ao seu significado
subjetivo para o indivíduo. Assim, a expressão de si na vida pública tornou-se um
problema. Antes do século XIX e das mudanças discutidas acima, expressar-se em
público significava apresentar estados emotivos através de formas já estabelecidas e
padronizadas, independentemente de quem os estivesse apresentando. No presente,
espera-se que a expressão seja absolutamente pessoal e idiossincrática, como parte de
uma busca constante do eu. Ser1nett ressalta que não se trata de uma distinção entre
o expressivo e o inexpressivo, mas entre formas distintas de transação emocional.
Antes, os modos convencionais de expressar uma emoção permitiam que ela pudesse
ser manifestada várias vezes, por pessoas diversas. Agora, o foco da interação deixa de
ser o outro e passa a ser um trabalho incessante para descobrir o que cada um sen- te.
As formas ritualizadas e convencionais de se comportar tornam-se alvo de
desconfiança por não serem vistas como autênticas, além de cercearem o mergulho na
descoberta de razões e impulsos internos.
Por sua vez, as expressões autênticas dessa interioridade são valorizadas,
principalmente quando acontecem em público. Como a personalidade passa a ser vista
cada vez mais como algo que não é controlável, mas que tem existência e força
próprias, as emoções são vistas igualmente como reações nem sempre controláveis. As
expressões de sentimentos em público são consideradas então sinal de autenticidade,
principalmente entre figuras públicas como políticos e artistas, que estariam sempre
representando. Com isso, a separação entre comportamentos públicos e privados
deixa de ser vista como algo controlável pelo sujeito e a linha entre o sentimento
privado e sua apresentação pública torna-se fluida. Produz-se assim uma
supervalorização do mundo privado e a erosão do mundo público.
Essa crise na distinção entre os domínios da vida social gera, segundo Sennett,
desordens de "caráter" provocadas pela emergência do narcisis mo como configuração
subjetiva predominante. A autoabsorção que o narcisismo promove, longe de ser fonte
de
nãogratificação,
ter o outro fere
comoo foco
eu, pois nada
e sim umde novo o de
processo atinge. Como asdeinterações
descoberta si, surgempassam a
sensações
de falta de conexão e de vazio. As relações impessoais deixam de ter qualquer 2
significado, pois não são autênticas. Nesse quadro, a busca pelas motivações e 5
a
n
intenções do outro na interação conta mais do que suas ações. Cria-se então uma i
g
á
P
cultura pautada no sentimento de intimidade como medida de significado de
realidade.
A valorização da intenção sobre a ação pode ser bem ilustrada no filme norte-
americano Denise está chamando (1995), do diretor Hall Sawen. Trata-se de um grupo
de amigos que moram em Nova York que está constantemente em contato por
telefone (ainda é uma época sem as tecnologias de comunicação da internet], mas que
têm dificuldades
perguntando de àsefesta
se vão encontrar
de umaface
das apersonagens
face. O filme começa todos
e, embora com os amigos
digam que se
sim,
ninguém aparece no encontro. Todos justificam que quiseram ir, mas, no último
momento, não puderam compare- cer. O mesmo acontece com o enterro de uma das
amigas, que morre em um acidente de carro causado por estar dirigindo e falando ao
telefone ao mesmo tempo. Todos manifestam sua intenção de ir, mas não vão. Em
seguida, outra personagem inicia um relacionamento amoroso com um homem que se
dá apenas por telefone. Após algum tempo o namoro começa a esfriar porque um
passa a desconfiar dos verdadeiros senti- mentos do outro, em função da mudança do
tom da voz ao telefone. O filme termina com uma festa de ano-novo, organizada por
um dos personagens, para a qual todos se dirigem, mas acabam passando direto pela
porta do edifício, sem tocar a campainha. Quando Denise, que vai à festa para também
conhecer o pai do filho que ela concebeu por inseminação artificial, aperta o interfone,
não é atendida.
Embora o filme possa ser pensado sob vários aspectos, em particular o
paradoxo de relações que são alimentadas pelo fio do telefone, mas não pela presença
física diante do outro, o que vale a pena destacar aqui é a aceitação da intenção - e
não de sua concretização - de estar junto como força motora das relações. Todas as
ausências nos encontros são aceitas e não vemos no filme nenhuma reação de raiva ou
desaponta- mento em relação aos outros. Mais do que agir pelo e com o outro - ir à
festa que ele prepara, compartilhar a dor de sua perda com outros, e
significativamente conceber um filho com o outro - importa fundamentalmente a
intenção de estar com ele. A intenção é entendida como autêntica, como reveladora
dos verdadeiros sentimentos que uma pessoa tem, ilustrando assim a ênfase intimista
que Sennett identifica nas sociedades ocidentais modernas.
A crescente
interdependência entrediferenciação das consequência,
as pessoas. Como funções sociais gerou uma demaior
o comportamento cada
indivíduo passou a ser ajusta- do em relação ao dos outros, criando assim a
necessidade de um controle de si mais uniforme, mais estável e mais amplo. A
preocupação com a consequência de cada ato tornou-se elemento constante das
interações, reforçando, portanto, as exigências de manter o autocontrole. Embora o
processo de desenvolvimento desse controle afete diferentemente pessoas com
funções distintas, ele se dissemina por todos os setores da sociedade. Se, nos séculos
anteriores, a fonte de controle do comportamento vinha principalmente de fora, de
pessoas geralmente em situação social superior ou equivalente, que avalizavam ou
recriminavam as ações, gradualmente desenvolveu-se um autocontrole internalizado e
automatizado.
Por sua vez, o monopólio da força física pelo Estado, bem como a estabilidade
de suas instituições centrais, favoreceu também a contenção emocional como traço
psicológico significativo. Se nos séculos anteriores as disputas eram resolvidas de
forma mais individualizada, o uso da violência torna-se restrito aos aparatos de força
do Estado, criando a necessidade na pessoa de reprimir impulsos de agressão ao outro.
As ameaças físicas ao indivíduo foram gradativamente tornadas impessoais, de modo
que, segundo Elias, a vida tornou-se menos perigosa.
ansiedade
que devemeserumcontidos.
medo deSeque o indivíduo
antes perca
a fonte de o controle
repressão dos dos impulsos
impulsos e emoções
era externa -
pessoas e manuais de etiqueta -, agora é interna. Essa divisão da personalidade em
uma parte controladora e outra impulsiva produz uma tensão interna e é dela que
surge a vergonha, que se reporta menos à opinião social concreta do que à sua
internalização. É a possibilidade de uma crítica ou repreensão, e não seu
acontecimento de fato, que aciona a vergonha. Assim, é em função desse conflito
interno que o indivíduo se reconhece como inferior e indefeso diante dos gestos dos
outros.
Todos esses processos psíquicos e afetivos contribuem para a formação de uma
estrutura psicológica particular, na qual Elias identifica alguns problemas. A educação
das crianças no presente passou a ter que incutir desde cedo e em poucos anos um
controle sobre o corpo e sobre os afetos que os indivíduos desenvolveram em vários
séculos. O grau de tolerância aos "maus comportamentos", principalmente em relação
à etiqueta em torno do corpo, diminui muito, de forma que eles tendem a desaparecer
muito cedo. A criança que não atinge o nível de controle emocional esperado é vista
como "doente", "anormal", "impossível", marcando o tipo de vida que poderá ter.
Além disso, como o impulso de sentir prazer com certas funções corporais deve
desaparecer da consciência do adulto, o prazer torna-se mais secreto e privado. A
própria fruição de certas emoções é deslocada para o plano da fantasia e para o
consumo de livros e filmes (aspecto que será discutido mais adiante com o trabalho de
Colin Campbell). Esses conflitos internos em torno do controle dos impulsos e
sentimentos produzem, na opinião de Elias, uma dificuldade de vivência afetiva, que
por sua vez gera distúrbios de comportamento, compulsões e excentricidades. Se a
vida torna-se menos perigosa, torna-se também menos prazerosa e essa é uma das
cicatrizes deixadas pelo processo civilizatório na visão de Elias. 5
A vida em uma metrópole revelaria de forma ainda mais aguda algumas dessas 5
a
n
tensões na subjetividade do indivíduo. Em sua análise seminal, Simmel (1987) examina i
g
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P
os tra- ços mentais que compõem um morador de uma metrópole no início do século
xx, com aspectos que se aproximam da leitura de Elias sobre as sociedades ocidentais
modernas. Ele destaca que a base psicológica da individualidade metropolitana
assenta-se na intensificação da demanda colocada sobre a vida emotiva em função da
mudança contínua de estímulos externos. Como consequência, os indivíduos
desenvolvem mais as reações racionais, como uma forma de proteção interna à
diversidade e descontinuidade externas. Já nas cidades pequenas, o ritmo de vida é
mais lento e uniforme, permitindo relações mais pautadas na afetividade.
A predominância do racional na metrópole é também alimentada por duas
características sociais que Simmel considera marcantes da metrópole moderna: ser
sede da economia monetária e possuir uma alta divisão de trabalho. O primeiro fator
estimula um comportamento mais calculista, dominado pelo intelecto. Há também
necessidade de precisão e pontualidade nas interações, de maneira a permitir a boa
integração da diversidade de atividades decorrente da divisão do trabalho. Tal
precisão, por sua vez, exige a contenção dos impulsos irracionais. Além disso, o poder
nivelador do dinheiro valoriza o que é comum a todos, sendo, portanto, indiferente às
individualidades. Decorre então uma forma de interagir altamente impessoal que lida
com os outros de modo uniforme e distanciado.
contínuo da realidade,
desejos, que umaaovezserem
por sua vez, que os devaneios
consumi- dos,levam
serãosempre a no- decepcionantes
novamente vos objetos de
por distinguirem-se da imagem sonhada. O anseio como um desejo sem foco, que não 8
tem um objeto que possa realizá-lo, e a insatisfação tornam-se estados emocionais 5
a
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permanentes. i
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Por outro lado, são esses estados emotivos que motivam o consumo. Novos
produtos acenam com o prazer idealizado no devaneio, que não pode mais ser
esperado dos produtos já conhecidos e consumidos. A apresentação de um produto
como "novo" permite ao consumidor em potencial projetar nele um pouco do prazer
imaginado, oferecendo assim a possibilidade de que esse desejo se concretize. Por isso
Campbell (2001:132) afirma que o espírito do consumismo moderno não é
materialista, pois é calcado na ideia de que "a ilusão é sempre melhor do que a
realidade" .
Em função disso, o autor propõe, os produtos são menos importantes do que
sua representação. A capacidade de fantasiar se pauta mais no consumo de imagens
do que dos objetos em si. É por isso que a propaganda se torna tão imprescindível para
o consumo, já que é ela que se dirige ao devaneio associando o produto a certos
sonhos e assim despertando o desejo. Revistas, catálogos comerciais, anúncios e
cartazes são importantes, pois oferecem imagens que podem ser "desfrutadas", assim
como um romance ou um filme. Campbell argumenta inclusive que a satisfação
sensorial obtida com filmes, peças, programas de televisão e de rádio, discos e quadros
não é tão importante quanto o que eles podem oferecer em termos de imagens para a
elaboração dos devaneios.
alimento
pode ser em parasiauma
elaboração de devaneios,
experiência prazerosa. nos
Alémtermos
disso, de
os Campbell, como também
próprios produtos da mídia
também colaboram para a construção da noção de felicidade. Vários o fazem, como a
tradição de filmes com final feliz, já mencionada no capítulo 2. Gostaríamos aqui de
discutir outra produção discursiva de massa: a "imprensa conselheira" analisada por
Condé (2008).
A "imprensa conselheira" é constituída por uma diversidade de materiais
jornalís ticos que oferecem "conselhos", "receitas" e "dicas " para uma variedade de
questões práti- cas da vida. Condé argumenta que, nesse tipo de discurso, a felicidade
é, de um modo geral, um tema presente como a orientação dominante das prescrições
apresentadas. Mesmo que nem sempre de forma explícita, o foco na felicidade se
apresenta nas receitas para a satisfação de necessidades materiais, bem como para a
conquista de um estado subjetivo de bem-estar.
O ponto interessante dessa análise é que o meio de atingir a satisfação e o
prazer que levam à felicidade implica atitudes pautadas no valor do controle das
emoções. Recorrendo às reportagens de uma revista desse gênero de imprensa, Condé
apresenta como uma das formas de se alcançar a felicidade aí proposta o contato com
emoções consideradas "negativas" - medo, raiva, tédio -, aliado à sua compreensão
para que, uma vez conhecidas, possam ser controladas. Há também a ideia de que
para conquistar "realização pessoal" é preciso planejamento e moderação. O que
sobressai dessas matérias é uma concepção "pacificada" de felicidade, como Condé a
de- nomina, pautada no equilíbrio das emoções, na experiência comedida longe da
plenitude e do prazer intenso de momentos passageiros.
Outro caso que ilustra bem a combinação da busca do prazer e da intensidade
com alguma medida de controle é a vivência de risco presente nos esportes radicais.
Rocha (2008) discute o modo como a própria noção de risco é definida de modo
diferente por sociedades e épocas distintas. Correr risco é uma escolha individual
pautada por valores e significados culturais sobre o que é arriscado e provoca medo e
o que não é. O risco refere-se a uma norma específica que está posta em questão,
pondo em evidência valores centrais à constituição da sociedade. Assim, Bocha
argumenta que a mesma sociedade que produz a segurança como um bem coletivo
tende a conceber o risco como escolha puramente individual, quando de fato está
operando com significados culturais.
No caso dos praticantes da modalidade esportiva estudada por Rocha - obase
jump -, buscar o risco envolve uma opção por um estilo de vida pautado na "emoção".
como
forma tedioso, sem emoções,
de se afastar da morte sem vida. Praticar
simbólica, o base
ainda que jump seria, portanto, uma
se aproxime da mor- te natural.
Com a preparação técnica para o salto e a presença de coragem e audácia, há a
possibilidade de vivenciar o risco de maneira mais controlada em busca da excitação e
do pra- zer associados a uma visão romântica do sujeito e da vida.
Conclusão
A paciência é difícil, pois meu coração ainda está tão ferido ...
Imaginei, oh querida, que a distância
Seria a cura mas só fez piorar. ..
Esses poemas de amor foram recitados por um jovem beduíno, Fathalla, que
havia se apaixonado por sua prima e desejava se casar com ela. Os pais dos jovens
concordaram a princípio com o casamento, mas depois entraram em discussão, de
forma que o pai da moça se recusou a dar a mão da filha ao .rapaz. Como forma de
esquecê-Ia, Fathalla partiu para a Líbia, enquanto a jovem teve seu casamento
arranjado com outro rapaz. Quando Fathalla soube da notícia, compôs e gravou os
poemas e enviou a fita cassete para sua amada. Já casada, ela ouviu a fita e, quando
terminou, desmaiou e morreu.
À primeira vista, essa história contada por Abu-Lughod (1990) parece sugerir
que e amor é um sentimento universal, algo que todos podem sentir como seres
humanos. Ao mesmo tempo, parece ser também uma experiência absolutamente
individual e singular, distinta daquilo que outros sentem e com tamanha intensidade
que pode mesmo matar, como nesse caso do amor frustrado entre jovens beduínos e
também na tragédia de Romeu e Julieta que discutimos no capítulo 2.
Contudo, Abu-Lughod nos conduz a outras conclusões.
Sim, a poesia de Fathalla expressa o sentimento de amor, que curiosamente,
porém, não está presente nas conversas cotidianas sobre relações amorosas. Ao
contrário, a distância marca as relações entre homens e mulheres nessa sociedade e
casais demonstram pouco o cuidado ou a atenção um com o outro. No cotidiano, 3
6
predominam os sentimentos de modéstia e vergonha - visíveis na forma de vestir e na a
n
i
postura corporal que implicam uma negação da sexualidade - que uma pessoa correta g
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P
e boa deve sempre apresentar. A deferência aos outros que a modéstia expressa é um
valor moral funda- mental, alicerce das relações de poder entre homem e mulher e
entre os mais velhos e os jovens.
O amor como base da união entre um homem e uma mulher é claramente
preterido em função dos casamentos preferenciais entre primos, que reforçam os elos
de parentesco do grupo patrilinear que estrutura a sociedade beduína. É em função
dessa
nega oestratégia
interessedesexual
reprodução quea odeferência
e afirma sentimentoà de modéstia dos
autoridade é tãopatriarcas.
valorizado,Neste
pois
sentido, o sentimento de amor é considerado sem modéstia e desafiador, pois pode ir
contra os interesses e a ordem estabelecidos.
Como então entender a poesia de amor? Seria um senti- mento reprimido e
subversivo? Abu-Lughod diz que não. As poesias amorosas fazem parte de um gênero -
as ghinnawa - muito apreciado e recitado em ocasiões festivas e também em
conversas corriqueiras com pessoas proximas. São particularmente contadas e
cantadas por mulheres e jovens, mas ocasionalmente também por homens mais
velhos. Essas poesias falam de sentimentos que expressam um conjunto de valores
igualmente importante para um grupo tribal que já foi nômade, como os beduínos: a
autonomia e a liberdade, que, entretanto, existem em contradição com a deferência
dada à autoridade masculina tradicional. Neste sentido, Abu-Lughod argumenta que as
poesias amorosas tornam-se um discurso de desafio e resistência aos ideais da vida
social beduína, e são valorizadas como tal. Por isso a história de Fathalla emocionava,
pois mostrava o que o abuso de poder pode acarretar.
Assim, o amor na sociedade beduína é expresso segundo um tipo particular de
discurso: as poesias amorosas. Nesse contexto, a expressão do sentimento é valorizada
não apenas por falar do desejo de união entre duas pessoas, mas também por declarar
a importância da autonomia dos indivíduos. Com as mudanças econômicas no Egito
que, desde a década de 1980, vêm afetando o estilo nômade dos beduínos. os jovens
rapazes têm estado cada vez mais sob autoridade dos patriarcas, fazendo com que
recorram mais às poesias amorosas, agora gravadas em fitas cassetes, como forma de
protesto. Assim, muitas vezes a poesia era recitada por mulheres casa- das que tinham
sua liberdade tolhida, bem como por jovens que queriam reclamar do poder
econômico e político de seus pais e tios. Ou até mesmo pelo anfitrião da pesquisadora,
que tocou para ela a fita do poema ao levá-Ia ao aeroporto para se queixar do fato de
que ela os deixava ao retornar aos Estados Unidos. Em outros momentos, contudo,
manifestavam-se a modéstia e o recato, negando-se qualquer sentimento de interesse
ou atenção peio outro.
No final, descobrimos que a prima amada de Fathalla não morreu de amor e
vive casada com seu marido. O que Abu-Lughod sugere é que, mais do que tomar o
poema como uma expressão de um sentimento de amor não realizado, frustrado, sua
apresentação em um contexto particular revela as tensões relativas às pessoas e
relações específicas presentes naquela situação. Ou seja, mais do que expressar
estados internos
ma de amor é umque se mantêm
discurso indiferentemente
emotivo do contexto
que, ao ser colocado para de
uminteração,
grupo de opessoas,
poe-
pode dramatizar ou alterar o estado das relações em questão, demonstrando assim o 4
potencial micro- político das emoções que discutimos no capítulo 3. 6
a
n
i
g
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P
Nessa história podemos reencontrar os principais pontos abordados ao longo
do livro. A tensão entre a universalidade de sentimentos ditos "naturais" e sua
susceptibilidade aos contextos culturais pode ser reconhecida em uma espécie de
"dupla moral" desta história: mesmo que o amor seja encontrado em todos os lugares,
não se ama ou expressa esse sentimento sempre da mesma forma, e, principalmente,
não se dá a ele sempre o mesmo lugar na constituição dos vínculos sociais,
evidenciando a particularidade histórica e cultural dessa estreita associação que o
Ocidente moderno realizou entre amor e casamento.
A segunda tensão que apontamos como constitutiva do campo da antropologia
das emoções é evidente aqui também, mostrando como as experiências subjetivas
estão atreladas a gramáticas culturais. Desvendar esses códigos ilustra um problema
central de toda teoria social: como dar conta do hiato entre as percepções "nativas" e
a visão do observador. Esse dilema é expresso aqui sob a forma de um "drama" típico
engendrado pela ideologia individualista ocidental: a afirmação da singularidade das
experiências afetivas, contradita por sua evidente recorrência sob a forma de padrões
claramente identificáveis.
Em meio a esses padrões, a "codificação" das formas afetivas não se restringe
aos afetos sentidos, mas também à sua expressão. Se falar de amor parece ser hoje um
imperativo moral, com o apaixonar-se livremente sendo uma experiência idealizada
em inúmeras produções discursivas contemporâneas, dos livros de autoajuda às
narrativas cinematográficas, essa pequena fábula antropológica mostra a
particularidade histórica e cultural dessa" compulsão" em falar de amor. Entre os
beduínos, falar de amor sob outra forma que não as ghinnawa é imodéstia, falta moral
grave, e não sinal de saúde mental, de "liberação" dos afetos, como em tantos
discursos contemporâneos que equacionam o bem-estar psíquico à possibilidade de
expressão dos sentimentos.
Finalmente, a história de Fathalla serve também para mostrar a natureza
micropolítica dos sentimentos, com a atribuição de um caráter perigoso e subversivo
ao amor, por sua possibilidade de desafiar hierarquias vigentes que encontram nas
regras matrimoniais um campo fecundo de atuação. Serve ainda para mostrar o uso
que os discursos sobre as emoções podem ter em contextos específicos. Nessa
história, não interessa apenas o que Fathalla sentia por sua noiva ou o lugar dessa
história no imaginário beduíno, mas também o que aquele que a narra está dizendo
para seu interlocutor ao escolher contar-lhe a história. É também para essa dimensão
dos discursos sobre a emoção que aponta a perspectiva "contextualista" da
antropologia das emoções.
Nossa estranheza diante da história de amor de Fathalla encontra talvez
equivalente no espanto africano diante da história de ciúme de Hamlet. É que os
tributos pagos pelas experiências emocionais às teias socioculturais em que se
enredam tornam difícil, para um espectador de fora, entender essas motivações
afetivas, sua gênese, suas articulações.
raiva, abrindo
definidos comomais um leque
o oposto de objetos de
da racionalidade, reflexão.
podem Os sentimentos,
ser muito, muito bonstantas vezes
para pensar.
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