De Kelsen A Hart - As Transformações Do Positivismo Jurídico

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DE KELSEN A HART: AS TRANSFORMAÇÕES DO

POSITIVISMO JURÍDICO

Katya Kozicki1

Logo no início do Teoria Pura do Direito, Kelsen já manifestava sua


preocupação metodológica, ao dizer: “A TPD é uma teoria do Direito positivo
– do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica específica...Como
teoria, quer única e exclusivamente conhecer seu objeto...Quando a si
própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se
propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste
conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se
possa, rigorosamente, determinar como Direito”. Essa preocupação com o
método determinou que se caracterizasse uma das dimensões do positivismo
como positivismo metodológico, assumindo o pressuposto de que seria
possível identificar e descrever o direito tal como ele é. Fiel à tradição do
neopositivismo lógico, Kelsen explicita seu compromisso de apresentar o
direito como um objeto de investigação que se localiza no “âmbito” do ser, e
não do “dever ser” ideal.
Segundo Ronaldo Porto Macedo, em Kelsen temos que “o objeto
jurídico tem uma dupla dimensão: uma parte de sua constituição é produzida
por um fato bruto, um fato natural. Por outro lado, o seu significado jurídico é
produzido por uma norma que serve como um esquema de interpretação
desse mesmo evento natural. Os atos jurídicos carregam, dessa forma, uma
peculiaridade na medida em que informam como eles podem ser
interpretados. Eles carregam a sua própria autoexplicação normativa.

1
Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1986) e
graduação em Ciências Econômicas pela Faculdade Católica de Administração e Economia
(1988). Mestrado em Filosofia e Teoria do Direito (1993) e doutorado em Direito, Política e
Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000). Visiting researcher
associate no Centre for the Study of Democracy, University of Westminster, Londres, 1998-
1999. Visiting research scholar, Benjamin N. Cardozo School of Law, Nova York, 2012/2013.
Atualmente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e professora
associada da Universidade Federal do Paraná, programas de graduação e pós-graduação
em Direito. Pesquisadora (bolsista de produtividade em pesquisa) do CNPq.
Sem dúvida uma das preocupações centrais de Kelsen referia-se ao
problema da validade do Direito. Para ele, a validade da norma refere-se ao
resultado da interpretação de um ato de vontade segundo outra norma válida.
A validade desta última dependeria da validade de um outro ato de vontade,
cuja validade dependerá de uma terceira norma que lhe serve de esquema
de interpretação e assim sucessivamente, dentro da ideia do Direito como um
sistema escalonado de normas. E é justamente para evitar o chamado
regresso ad infinitum que Kelsen vai desenvolver a sua teoria da norma
hipotética fundamental, a qual seria o fundamento de validade do sistema
jurídico. Esta seria não o sentido objetivo de um ato de vontade, mas antes o
conteúdo de um ato de pensamento.
É justamente o problema da validade jurídica em Kelsen que eu
pretendo trabalhar nessa fala, explicitando algumas das semelhanças e
diferenças entre a norma hipotética fundamental kelseniana e a regra de
reconhecimento em Hart. Ao final, sumarizo o que entendo ser alguns dos
limites do pensamento kelseniano e também do pensamento de Hart.
É bastante comum a identificação, errônea, entre a regra de

reconhecimento de HART e a norma fundamental de KELSEN.2 Isto porque,


também para KELSEN - e aí há coincidência entre ambos - é a norma
fundamental a fonte comum de validade de todo sistema normativo: “ A
norma fundamental é a fonte comum de validade de todas as normas
pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de

validade comum. “3 Neste ponto, não podemos deixar de mencionar as três


designações da norma fundamental na Teoria Pura do Direito: “a) como
primeira constituição histórica; b) como fundamento de validade do sistema
normativo e c) como pressuposição lógico transcendental. “ E, conforme
acentua ROCHA: “A norma fundamental como fundamento de validade é a
norma onde as demais normas da pirâmide jurídica vão encontrar seu

2
A este respeito ver: CRACOGNA, Dante. Regla de reconocimiento y norma basica
.in: H. L. A. HART y el Concepto de Derecho. Revista de Ciencias Sociales, n. 28.
Valparaíso, Ed. Universidad de Valparaíso, 1980.
3
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2a. ed. São Paulo, Martins Fontes, 1987. p.
207.
fundamento último” 4 . Disto não resulta, porém, terem a norma de
reconhecimento de HART e a norma fundamental o mesmo significado.
Provavelmente o maior ponto de contato entre a norma hipotética
fundamental em Kelsen, e a regra de reconhecimento, em Hart, está no fato
fato de ambas serem fonte de validade das outras regras dentro da ordem
normativa. Para evitar falsas equiparações, vou me ocupar agora de ressaltar
os traços gerais que as diferenciam, bem como estabelecer se existem ou
não pontos coincidentes entre as mesmas.
Inicialmente, temos o fato óbvio de que HART e KELSEN adotam uma
terminologia diferente para designá-las. HART emprega o termo regra de
reconhecimento (“rule of recognition“ no original), enquanto KELSEN utiliza
norma fundamental (no original, “Gründnorm”). Esta diferença terminológica
é proposital em HART, para quem: “Uma razão para usar a expressão ‘regra
de reconhecimento’ em vez de ’norma fundamental’ é para evitar qualquer
comprometimento com a visão de KELSEN do conflito entre o direito e a

moral. “ 5 Não somente neste aspecto, mas em vários outros, HART nega
identidade a ambas.
Quanto à possibilidade de enunciação, temos que a regra de
reconhecimento de HART raramente se expressa sob a forma de uma regra,

ainda que ele não coloque objeção para que isto ocorra.6 Na maior parte das
vezes, a regra de reconhecimento se manifesta na prática dos participantes
do sistema, ao identificarem o direito. Já para KELSEN, a norma fundamental
se expressa de várias maneiras, mas todas elas “ (....) en el sentido de otogar
competencia al legislador originário, es decir, a quien dictó las primeras

normas positivas del sistema.”7

4
ROCHA, Leonel Severo. O sentido político da Teoria Pura do Direito. in: Revista
Sequência, n. 9. Florianópolis: Editora da UFSC, jun/1984. p. 66-67.
5
HART, O conceito de direito, op. cit., p. 276.
6
Neste sentido: " Na vida quotidiana de um sistema jurídico, a sua regra de
reconhecimento só muito raramente é formulada de forma expressa como tal, ... " , em
HART, O conceito de direito, op. cit., p. 113.
7
NINO, Carlos S. Introducción al análisis del derecho. Buenos Aires, Astrea, 1980. p.
121: " (....) no sentido de outorgar competência ao legislador originário, quer dizer, a quem
ditou as primeiras normas positivas do sistema." Tradução livre.
Um ponto delicado, onde a semelhança destas duas normas se nos
apresenta como mais provável é no tocante à sua função. A regra de
reconhecimento tem como função permitir a identificação das normas
primárias de obrigação. Nesta função, ela estabelece os critérios de validade
que as regras devem respeitar para receberem o estatuto de direito. Ela
funciona como fundamento de validade à medida em que permite precisar
quais regras compõem o sistema. Também a norma fundamental de KELSEN
funciona como fundamento de validade do sistema, porém, conforme já
coloquei, realiza tal intento à medida “(....) em que assinala competência ao

constituinte originário.“8 No sistema concebido por KELSEN, as normas vão


buscar sucessivamente sua validade em normas superiores, todas
fundamentadas na primeira constituição. Esta tem sua validade afirmada na
pressuposição de competência dos constituintes, dentro da hipótese da
norma fundamental. Nisto reside a sutil distinção entre ambas, neste
particular: em HART, a regra de reconhecimento outorga validade ao
identificar, na prática, as regras do sistema; em KELSEN, a norma
fundamental é fonte de validade objetiva do sistema por ter outorgado
competência ao primeiro constituinte, cujo produto (a Constituição) vai validar

as demais normas.9
A distinção mais evidente entre a regra de reconhecimento e a norma
fundamental de KELSEN revela-se quanto à existência de cada uma delas.
HART afirma categoricamente que a existência da regra de reconhecimento é
uma questão de fato, uma vez que ela se revela na e enquanto prática do
sistema. Não se trata, então, de tê-la como pressuposta ou admiti-la como
hipótese. Ao contrário, a norma fundamental de KELSEN é hipotética, uma

8
CRACOGNA, Dante. Regla de reconocimiento y norma basica. op. cit., p. 376.
9
Não podemos nos esquecer que KELSEN trabalha o conhecimento do direito a
partir de dois níveis linguísticos diferentes: um é o plano do direito, outro o da ciência
jurídica; nesta análise, a ciência jurídica é a metalinguagem que fala o seu objeto, o direito.
Segundo ROCHA, o nível linguístico da linguagem-objeto (o ordenamento jurídico) "possui
como condição fundamental de validade a última constituição histórica", na qual todas as
demais normas vão buscar a sua validade. E a ciência jurídica (a nível de metalinguagem)
possui como condição de significação a norma fundamental gnoseológica. Disto decorre ser
a norma fundamental condição de validade do ordenamento jurídico e da própria ciência do
direito. Neste sentido, a norma fundamental " (....) interliga, a nível do conhecimento -
fenomenologicamente - o 'sein' e o 'sollen'; o ser e o dever-ser. A este respeito ver
ROCHA, Leonel Severo. O sentido político da teoria pura do direito, op. cit., p. 67.
vez que não é colocada (posta) e sim pressuposta, por estabelecer a
validade de uma instância constituinte superior que não pode receber
validade de outra norma posta por ainda outra instância superior. No Teoria
Geral das Normas, Kelsen vai dizer também que a norma fundamental pode,
mas não necessita ser pressuposta e que não é necessário que a norma
fundamental seja postulada. Cito: “A norma fundamental pode, mas não
precisa ser pressuposta. O que a Ética e a Ciência do Direito dela enunciam,
é: somente se ela é pressuposta pode ser interpretado o sentido subjetivo
dos atos de vontade dirigidos a conduta de outrem, podem esses conteúdos
de sentido ser interpretados como normas jurídicas ou morais obrigatórias.
Visto que essa interpretação depende do pressuposto da norma fundamental,
precisa ser admitido que proposições normativas apenas nesse sentido
condicional podem ser interpretadas como normas do Direito ou da Moral
objetivamente válidas”. É claro que, ao se referir aqui às normas
fundamentais, Kelsen o faz na perspectiva de um critério de validade na
perspectiva estática, ou seja, quando as condutas dos indivíduos
determinada pelas normas do ordenamento jurídico é considerada como
devida, isto é, estabelecendo um dever ser, por força de seu conteúdo. Ao
contrário, na perspectiva dinâmica a norma fundamenta apenas tem por
conteúdo a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a
uma autoridade legislativa.

A norma fundamental é hipótese; a regra de reconhecimento é fato.10


Para Hart a regra de reconhecimento “manifesta-se na prática geral de
identificação das regras através de tais critérios”, ou seja, critérios que
definem o que deve ser identificado e compreendido como Direito. Ainda: “Na
vida quotidiana de um sistema jurídico, a sua regra de reconhecimento só
muito raramente é formulada de forma expressa como tal” e “Na maior parte
das vezes a regra de reconhecimento não é enunciada, mas a sua existência
manifesta-se no modo como as regras concretas são identificadas, tanto

10
Não obstante, CRACOGNA, op. cit., citando Ricardo GUIBOURG, considera
menor esta diferença, tendo em vista que também a norma fundamental é determinada por
fatos. Também é necessário frisar que em momentos posteriores (Teoria Geral das Normas)
Kelsen vai colocar a norma fundamental como ficção, porque emanada também de uma
vontade fictícia.
pelos tribunais ou outros funcionários, como pelos particulares ou seus
consultores.
Um notável ponto de semelhança entre ambas verifica-se no tocante a
terem elas um caráter de regra última. Tanto a regra de reconhecimento
como a norma fundamental proporcionam validade a todas os demais regras
do sistema e, assim fazendo, colocam um “fim” na tarefa de fundar dita
validade nas normas superiores evitando, com isso, um regresso ad infinitum.
Quero lembrar também os pontos em que o próprio HART assinala
como diferentes na regra de reconhecimento e na norma fundamental: a) os
critérios de validade colocados pela regra de reconhecimento são sempre
uma questão empírica, de fato, enquanto a norma fundamental coloca
pressupostos de validade; b) a validade da regra de reconhecimento não é
jamais questionada, enquanto a validade da norma fundamental é
pressuposta; c) a regra de reconhecimento tem conteúdos distintos, segundo
o ordenamento a que se refere, enquanto a norma fundamental teria

praticamente sempre o mesmo sentido. 11


Ainda que eu tenha apontado estas diferenças, mesmo assim é
necessário constatar que, apesar delas, tanto a regra de reconhecimento de
HART, quanto a norma fundamental de KELSEN, constituem a base do
sistema jurídico de cada em destes autores, servindo como regra última

destes sistemas.12
Segundo Wayne Morrisson, podem ser identificados 3 (três) sonhos

teóricos do positivismo jurídico13: a) o da distância, b) o da transparência, e


c) o do controle. Kelsen representaria perfeitamente bem estes ideais do
positivismo.
O positivismo parte da necessidade de se estabelecer uma unicidade
de propósito e um sentido único, capaz de estabilizar as relações sociais,
numa sociedade fragmentada em múltiplas possibilidades significativas. A
fragmentação do social e o conseqüente esvaziamento de uma concepção

11
HART, O conceito de direito, op. cit., p. 274-275.
12
CRACOGNA, Dante. Regla de reconocimiento y norma basica, op. cit., p. 387.
13
MORRISON, Jurisprudence, op. cit., p. 347.
abrangente de bem, característicos da modernidade, levam à necessidade de
estabilização de algumas expectativas, função desempenhada pelo
ordenamento jurídico. O positivismo separa, distancia o indivíduo/sujeito e o
ordenamento jurídico; questões de validade, legitimidade e obediência seriam
questões independentes. Assim, o sonho do distanciamento se configura:
“Legal positivism creates and celebrates the distancing of law, morality, social
purpose and legal subjectivity. One purpose is to enable the subject to be free
of ideology and orientate him/herself ‘rationally’ toward the law and its

demands.”14
No tocante ao sonho da transparência, este decorreria da concepção
moderna que vincula a emancipação ao conhecimento. Assim: “(…) o sujeito
moderno se torna livre quando ele/ela atinge um estado de auto-consciência
baseado no conhecimento da natureza do contexto de cada um e de como as

coisas funcionam. 15 A liberdade estaria conectada a um conhecimento


perfeito das estruturas necessárias da realidade e à sua conformação a
estas. O positivismo jurídico identifica o direito moderno com a vontade do
homem - o direito como uma estrutura que envolve coerção, violência, mas
como uma imposição que cria uma estrutura social cujo objetivo principal é a
sobrevivência, condição básica da vida em sociedade. Este sonho da
transparência se liga a um ideal de controle, controle da realidade
multifacetada através de um instrumento de coerção - o direito - identificado
com o Estado.
Se a teoria pura kelseniana surge da necessidade de uma resposta
formal e lógica à realidade indeterminada e contingente, significados da
modernidade, a mesma é insuficiente para a plena compreensão desta. A
realidade da modernidade é caracterizada por esta indeterminação de
sentidos que atingem a lei, o conhecimento e os faz carecer de fundações
últimas. O conhecimento é sempre fronteiriço ao não-conhecimento, e

14
“O positivismo jurídico cria e celebra a separação da lei, moralidade, propósitos
sociais e subjetividade jurídica. O propósito é habilitar o sujeito a libertar-se da ideologia e
orientar a si mesmo ‘racionalmente’ em direção à lei e suas demandas” (Id. ibid., p. 347).
15
“(....) the modern subject becomes free where he/she attains a state of lucid self-
consciousness based on the knowledge of the nature of one’s context and how things
function” (Id. ibid.).
determinado por uma série de narrativas. Empiricamente, a sociedade não
tem estruturas definidas, predeterminadas, não existe um ponto de vista
universal à sua compreensão. Percebendo o colapso dos pontos tradicionais
de certeza - Deus, a razão, o próprio Estado (o soberano, senhor da justiça),
Kelsen cria a sua teoria pura do direito, com o intuito de ser uma ciência que
realize os ideais de distanciamento, transparência e controle.
Ao separar a ciência jurídica do direito, e ao afirmar que o direito não
necessariamente deva ter qualquer conteúdo moral, Kelsen cria uma
distância segura entre a ciência jurídica e o seu objeto, possibilitando àquela
uma análise formal do conteúdo do direito, sem o questionamento da
multiplicidade de conteúdos morais, éticos e políticos contidos no mesmo.
Também seria a ciência jurídica, na ótica da TPD, transparente, no sentido de
que toda proposição jurídica - maneira da ciência jurídica manifestar seus
enunciados - não seria mais do que a explicitação do conteúdo normativo das
regras jurídicas, levando a uma compreensão unívoca do sentido do
ordenamento. Por fim, a indeterminação do conhecimento poderia, desta
forma, restar ‘controlada’, uma vez que se fecham as possibilidades de
sentido.
Entretanto, é impossível que tais sonhos possam tornar-se realidade.
A tentativa kelseniana de fechar as possibilidades de sentido, e compreender
o direito numa perspectiva formal, não permite compreender a multiplicidade
de facetas inerentes ao fenômeno jurídico. Ao igualar o direito ao Estado, e
ao reduzir a sua maior importância à noção de sanção, a análise deste autor
deixa de levar em consideração que o ordenamento jurídico, para além de
ser um instrumento de ordenação social, pode ser também um instrumento
de emancipação. Ao contrário do que alguns críticos apressados colocam,
Kelsen sempre foi um defensor da democracia. Porém, a sua maneira de
conceber o direito, e também a problemática da sua aplicação, não responde
adequadamente à pergunta de como o direito pode ser um instrumento que
efetivamente viabilize a concretização de uma sociedade democrática.
Sem dúvida Hart avança, em muito, a teoria jurídica a partir de Kelsen.
Ainda que um positivista, o tipo de positivismo desenvolvido por Hart é
radicalmente diferente do positivismo kelseniano, especialmente porque, fiel
aos pressupostos da chamada “virada linguística” da década de 50, Hart vai
enfatizar a importância da perspectiva hermenêutica, principalmente a partir
dos chamados pontos de vista interno e externo. Este autor se utiliza, em
muito, dos pressupostos trazidos pela Filosofia da Linguagem Ordinária, de L.
Wittgenstein. Sem dúvida, ao inserir o aspecto pragmático na análise dos
enunciados jurídicos e ao ressaltar a importância do intérprete/participante no
contexto onde o direito está inserido, este autor supera algumas das
limitações tradicionais da análise positivista. Porém, ainda que o paradigma
hermenêutico seja referencial na análise hartiana do direito, o mesmo não
supera algumas das limitações da teoria jurídica de matriz positivista, posto
que centra a análise do sistema jurídico na noção de regra e obrigação
jurídica e também por afirmar, repetidas vezes no curso de sua obra, que a
análise que pretende realizar é uma análise descritiva do direito, sem
nenhum conteúdo avaliador ou que pretenda justificar as normas jurídicas
positivadas em um determinado tempo/espaço.
A primeira pergunta que gostaria de levantar é a seguinte: como
conciliar uma abordagem do direito que toma como pressuposto a Filosofia
da Linguagem Ordinária e o ponto de vista interno - hermenêutico - com uma
análise descritiva do direito, pressuposto do positivismo jurídico? E objetivo
do livro O Conceito de Direito, como Hart coloca já no início do pós-escrito:
“O meu objetivo neste livro foi o de fornecer uma teoria geral sobre o que é o
direito, que seja, ao mesmo tempo, geral e descritiva.” E adiante: “O meu
relato é descritivo, na medida em que é moralmente neutro e não tem
propósitos de justificação.”
Para Hart, a partir do exame dos modos pelos quais alguns termos
jurídicos são utilizados (direitos, obrigações, normas e outros), seria possível
apreender melhor os significados dos mesmos. Seguindo a orientação
wittgensteiniana, as palavras possuem significado a partir do seu contexto de
utilização e o observador que não conhecesse nada do contexto em que
estas são utilizadas não poderia entender o significado das mesmas. O
significado da linguagem é um significado que só pode ser obtido a partir de
uma determinada realidade social; o indivíduo não detém, isoladamente, os
critérios pelos quais a linguagem pode ser apreendida. Da mesma forma que
a utilização da linguagem pressupõe um conhecimento, um “adestramento”
ou treinamento quanto à gramática do jogo de linguagem em questão,
também o direito pressupõe este conhecer, esta compreensão da gramática

do jogo de linguagem que é o direito.16 O direito, nesta ótica, pressupõe a


compreensão da sua “gramática” interna, ou seja, o modo pelo qual as regras
vinculam comportamentos, impõem obrigações ou permitem ações. É
precisamente esta apreensão de sentido que Hart denomina de ponto de
vista interno sobre as normas. O ponto de vista interno é a posição do
participante no sistema, daquele que efetivamente toma a regra como padrão
de conduta. Wittgenstein adota o que poderia ser chamado de um
pragmatismo epistemológico, sem a expectativa de uma justificação racional
para cada nível do conhecimento ou explicações absolutas acerca das
características básicas do processo de conhecer; este seria descritivo, sendo
esta também a intenção de Hart quanto ao conhecimento jurídico. Ou seja,
este autor adota a demarcação positivista entre o plano normativo e o plano
da ciência jurídica; esta não poderia servir à justificação daquele. Porém,
como bem destaca Neil MacCormick, a separação entre o ponto de vista
interno e externo não possui a extensão que Hart quer lhe dar, gerando a
possibilidade de conhecimento sem aceitação. MacCormick reconhece a
existência de uma terceira possibilidade naquela oposição interno/externo: a

de um observador externo não-extremado 17 . E este seria precisamente o


ponto de vista hermenêutico. Para configurar esta posição, seria necessário:
a) total apreensão do conteúdo das pautas jurídicas e b) total participação do
elemento volitivo (crítico), representando a preferência de conformar-se ou
não àquelas regras. Com este ponto de vista hermenêutico - que não
corresponde exatamente ao ponto de vista interno de Hart - seria possível um
conhecimento sem aceitação.

16
Nas palavras de L. Wittgenstein: “É aquilo a que chamamos ‘seguir uma regra’
algo que apenas um homem, uma vez na vida, pudesse fazer? - E isto é naturalmente uma
nota acerca da gramática da expressão ‘seguir a regra’. Não pode ser que uma regra tenha
sido seguida uma única vez por um único homem. Não pode ser que uma comunicação
tenha sido feita, que uma ordem tenha sido dada ou compreendida apenas uma vez. Seguir
uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez, são
costumes (usos, instituições).Compreender uma proposição significa compreender uma
linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica”. (WITTGENSTEIN,
Investigações filosóficas, op. cit., p. 320, proposição 199).
17
MacCORMICK, Neil. Reglas sociales. H.L.A. Hart y el concepto de derecho.
Revista de Ciencias Sociales, Valparaíso, n. 28, p. 297-319, 1986. O autor faz menção ao
observador externo não-extremado nas páginas 310-311.
Hart procura precisar a origem das normas e o fundamento de
obediência às mesmas; ao fazê-lo, coloca a origem das normas e a questão
da obediência como diretamente conectadas à realidade já existente na
sociedade, ou seja, às práticas sociais existentes. Esta postura não deixa
espaço para uma avaliação moral quanto às regras jurídicas ou quanto ao
fundamento moral de obediência das mesmas, não oferecendo qualquer
critério quanto à legitimidade do direito. Na realidade, a análise auto-intitulada
descritiva do direito, objetivo de Hart, apresenta a passagem do mundo pré-
jurídico (onde existiriam apenas regras primárias de obrigação) para o mundo
jurídico (o qual contaria também com normas secundárias) como uma
evolução natural e funcional do sistema jurídico, capaz de acomodar a
crescente complexidade social, sem se preocupar em analisar propriamente
o conteúdo das regras primárias de obrigação e também sem colocar em
questão os critérios de validade impostos pela regra (ou regras) de
reconhecimento. Também não é questionada a validade da própria regra de
reconhecimento, uma vez que a sua existência seria uma questão “de fato”
(ao contrário da norma fundamental em Kelsen, cuja validade é pressuposta,
a validade da regra de reconhecimento é uma questão fática).
Na realidade, Hart adota uma postura um tanto quanto paradoxal em
sua obra. O conhecimento do direito, ou seja, a correta apreensão do seu
sentido, só pode ser produzido a partir de um ponto de vista hermenêutico, o
ponto de vista do participante. Paralelamente, ao afirmar que pretende fazer
uma análise descritiva do direito, Hart coloca ser possível um saber
descomprometido em relação ao ordenamento jurídico, ou seja, o do
observador externo que percebe a regularidade de condutas e a
conformidade destas em relação às normas, sem sentir-se vinculado a estas.
Mas, por si só, a distinção entre ponto de vista interno e externo não é
suficiente para possibilitar tal postura. Ao mesmo tempo, a análise de Hart
também se pretende descritiva por não se prender a considerações morais
quanto ao conteúdo do ordenamento. Assim, não fica claro, no conjunto da
obra deste autor, até que ponto a análise que realiza do direito é somente
descritiva deste ou, ao contrário, até que ponto o direito só pode ser
realmente compreendido a partir de um ponto de vista hermenêutico. Em
suma, estas duas perspectivas parecem mutuamente excluir-se: ou a análise
é descritiva, viabilizada pela possibilidade de um saber descomprometido do
direito, ou a análise é hermenêutica, fundada na perspectiva do participante
ou intérprete.
A insuficiência de uma análise mais aprofundada quanto aos princípios
subjacentes ao ordenamento jurídico e à comunidade política como um todo,
aliada ao reconhecimento da textura aberta que perpassa a linguagem
jurídica - bem como da infinidade de jogos de linguagem e da abertura de
sentido que isto possibilita, determinam que Hart pense a aplicação do direito
creditando aos tribunais um poder discricionário, visando a eliminar as
incertezas e lacunas do ordenamento jurídico.
Embora Hart afirme que o poder discricionário sofre limitações e que o
mesmo só é exercitado de forma intersticial, ou seja, nas lacunas do
ordenamento jurídico, o grau de liberdade concedido aos tribunais no
julgamento dos casos concretos pode tornar-se incompatível com o grau de
certeza requerido do ordenamento jurídico e da aplicação do direito pelos
tribunais nas sociedades democráticas. A insuficiência da análise hartiana no
tocante aos princípios subjacentes ao ordenamento jurídico impede uma
melhor apreciação dos limites do poder discricionário. Duas críticas podem
ser levantadas, de imediato, à discricionariedade judicial: a primeira é que ela
seria antidemocrática e a segunda é que ela implicaria na criação de um
direito ex post facto. Tal postura seria antidemocrática no sentido de que os
juízes não recebem delegação popular para a criação do direito; somente os
representantes que o povo elege especificamente para tal função poderiam
criar o direito. Em segundo lugar, admitir que os tribunais criem direito no
momento da solução do caso concreto elimina o grau de certeza e
previsibilidade que deve revestir o ordenamento jurídico e as próprias
decisões judiciais. Significa a violação do princípio da anterioridade da
norma, uma vez que se cria uma nova regra para a aplicação a uma situação
pretérita.
Um dos críticos mais veementes da teoria hartiana é Ronald Dworkin.
Este critica Hart pela sua concepção positivista da ciência jurídica, e se opõe
radicalmente ao poder de criação do direito por parte dos tribunais. A partir
da explicitação da teoria de Dworkin, objeto do próximo item, é possível
aprofundar a crítica ao poder discricionário dos tribunais, bem como entender
como uma postura verdadeiramente hermenêutica realiza a análise do direito
e responde ao problema da aplicação do mesmo pelos tribunais.

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