O Outro Lado Da Valorização Docente Fundf

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Municipalização do ensino

e proximidade local: o outro lado


da valorização docente no FUNDEF
Municipal educational organization and local proximity:
the other side of teacher valorization in the FUNDEF
Municipalización de la enseñanza y proximidad local:
el otro lado de la valorización del profesor en el FUNDEF

GÉSSICA P. RAMOS

Resumo: O texto discute a avaliação de professores de um município de São Paulo


na dimensão dos efeitos da associação entre valorização docente e municipalização do
ensino, no contexto da implementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
do Ensino Fundamental e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEF).
Os resultados evidenciam a problemática local da implementação do Fundo na di-
mensão da valorização docente, que envolve, entre outros fatores, a não-isonomia de
salários, diferentes vínculos de trabalho e reconcentração do poder local.
Palavras-chave: municipalização do ensino; valorização docente; FUNDEF; pro-
ximidade local.

Abstract: The article discusses teacher evaluation in the São Paulo municipal district,
considering the effects of the association between teacher valorization and municipal
educational organization in the context of the implementation of the Fund for the
Maintenance and Development of Primary Schooling and the Valorization of Education
Professionals (FUNDEF). The results reveal local problems in the implementation of
this Fund in light of teacher evaluation, which involves, among other factors, salary
differences, different work entailments, and re-concentration of local power.
Keywords: municipal educational organization; teacher valorization; FUNDEF;
local proximity.

Resumen: El artículo discute la evaluación del profesor en un municipio de São Paulo


a la luz de los efectos de la asociación entre valorización del profesor y municipaliza-
ción de la enseñanza, en el contexto de la implementación del Fondo de Manutención
y Desarrollo de la Enseñanza Primaria y de Valorización de los Profesionales de la
Educación (FUNDEF). Los resultados destacan el problema local de la implementación
del Fondo en la dimensión de la valorización del profesor, lo cual incluye diferencias
de sueldo, desiguales vínculos de trabajo y reconcentración del poder local.
Palabras clave: municipalización de la enseñanza; valorización del profesor;
FUNDEF; proximidad local.

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Durante as últimas décadas, o pressuposto de que existiria uma relação muito
estreita entre educação escolar e desenvolvimento econômico-social e entre valoriza-
ção docente e qualidade do ensino tornou-se manifesto nos discursos das agências
multilaterais e dos governos nacionais. Isso possibilitou que estes, ora perante a um
magistério mobilizado, ora frente a um magistério desmotivado, abrissem espaços
em suas agendas para que o problema da desvalorização docente fosse discutido
fundamentalmente do ponto de vista de projetos político-econômicos.
No Brasil, uma das iniciativas mais marcantes da década de 1990 nesse sentido
foi a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério (FUNDEF) pelo governo federal. Esse fundo foi sanciona-
do em 1996, pela emenda constitucional n. 14, e regulamentado pela lei n. 9.424/96,
tendo natureza contábil e composição de recursos extraídos de fontes de verbas
estaduais (e do Distrito Federal) e municipais, com complementação de recursos
pela União nos locais que não alcançassem o mínimo obrigatório de investimentos
por aluno. Ele efetivou-se pela redistribuição de recursos entre os estados e seus
municípios, conforme o número de alunos efetivamente matriculados anualmente
nas escolas cadastradas das redes de ensino. Na prática, de acordo com Callegari e
Callegari (1997), esse mecanismo redistributivo impulsionou que vários municípios
do país, na tentativa de reaverem o máximo possível, ou até mais das verbas que
destinaram ao Fundo, acabassem assumindo alunos estaduais, ou criassem escolas
municipais, aderindo à política de municipalização do ensino. Foi dessa forma que a
implementação de uma política de valorização do magistério acabou associando-se
a uma política de municipalização do ensino para vários professores do país.
Entretanto, ao que tudo indica, os efeitos que essa associação trouxe à vida
cotidiana de centenas de docentes no quesito valorização não foram suficiente-
mente discutidos nos meios políticos e acadêmicos, de modo que, apesar da atual
criação de um novo fundo, em substituição ao FUNDEF (o FUNDEB), e de sua
extensão a toda a educação básica, muitas páginas da história do FUNDEF ainda
não foram escritas.
Tendo em conta essa realidade, o objetivo deste artigo é trazer algumas
contribuições iniciais para esse debate, discutindo o tema da “valorização” docente
no FUNDEF, a partir da tríade “docência – municipalização do ensino – proximi-
dade local”. O assunto é abordado aqui por meio de um estudo de caso efetivado
no município paulista de Américo Brasiliense, durante os anos de 2001 e 2002, por
meio de análise documental e bibliográfica e de entrevistas semi-estruturadas com
professores da localidade (RAMOS, 2003). Essas entrevistas tiveram como etapas
centrais: a elaboração e teste da entrevista-piloto; a revisão do instrumento testado
e confecção do roteiro final; a aplicação do roteiro final com os professores sele-
cionados. Para essa seleção, foi considerado aquilo que se mostrava uma das prin-
cipais oposições de análise dentro da temática escolhida – a relação “professores
estaduais-professores municipais” – no intuito de analisar os impactos, na valorização

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docente, da não-isonomia salarial e do diferencial de contrato de trabalho gerados
pela municipalização do ensino na localidade. Para uma melhor abordagem do tema,
foram considerados como potenciais integrantes do grupo “professores estaduais”
apenas aqueles que se encontravam cedidos pelo estado à prefeitura, via convênio,
para atuarem nas escolas municipalizadas. Com base nesses critérios gerais, a seleção
final dos integrantes municipais e estaduais da pesquisa foi aleatória, amparando-se
na disponibilidade apresentada pelos professores para participarem da entrevista.
Dentre os 14 professores entrevistados, quatro faziam parte do grupo “pro-
fessores estaduais”, representando 16,64% do grupo estadual – cedido por meio de
convênio – e 10 integravam o grupo “professores municipais”, significando 9,62%
do grupo municipal na localidade.
Assim, o debate que ora se apresenta fundamenta-se na avaliação desses
profissionais sobre a associação valorização docente e municipalização do ensino,
no contexto do FUNDEF, para a valorização do professor.

O processo de municipalização na localidade

Conforme destacado anteriormente, o caso estudado refere-se ao município


de Américo Brasiliense. Américo, como é usualmente chamado, pertence à região
central do estado de São Paulo e conta com uma área territorial de 127 km2 e mais
de 30 mil habitantes. Até o início de 1997, ele possuía uma rede de ensino estadual
formada por seis escolas. Foi nesse ano que a política de municipalização começou
a ser efetivada no ensino fundamental da cidade por meio do “Programa de Ação de
Parceria Educacional Estado-Município”, tendo em vista sua adesão ao FUNDEF. A
função desse programa seria permitir a transferência de alunos, recursos humanos,
materiais e encargos financeiros entre as referidas instâncias, por intermédio de con-
vênio, possibilitando-lhes a devida transferência dos recursos do fundo proporcional
ao número de matrículas assumidas.
No caso de Américo, vale frisar que, dentre outros acertos, ficou acordado
pelo convênio que a secretaria estadual da educação deveria prestar assistência técnica
e apoio financeiro ao município, bem como colocar à sua disposição pessoal docente,
técnico e administrativo (por tempo determinado e sem prejuízo dos vencimentos
e vantagens, co-reponsabilizando-se por sua capacitação) e acompanhar e avaliar a
execução do acordo. Para o município ficaram definidas como funções centrais a
realização de um concurso público para composição de quadros próprios de profis-
sionais do magistério, pessoal técnico e administrativo; a elaboração de um plano de
carreira para o magistério municipal; o pagamento dos profissionais do magistério
municipal, num valor nunca inferior àquele pago pelo estado; o ressarcimento ao
estado dos valores salariais pagos aos professores estaduais cedidos ao município; a
prestação de contas mensais à secretaria da educação, sobre a aplicação dos recursos
financeiros transferidos pelo estado à localidade.

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Sustentado por esse convênio, com prazo de vigência de cinco anos, o pro-
cesso de municipalização na localidade ocorreu entre os anos de 1997 e 2000, de
forma gradativa, contando com a municipalização de suas escolas estaduais de 1ª a
4ª série, a construção de duas escolas municipais e a ampliação de algumas escolas
já existentes.
Antes do processo de municipalização, a rede tinha docentes efetivos do
estado e professores “admitidos em caráter temporário (ACTs)”. No final de 1998,
após a realização de concurso público municipal para professores do ensino funda-
mental de 1ª a 4ª série, foram mantidos apenas os professores ACTs aprovados no
mesmo. Já os professores efetivos, em razão da municipalização, passaram a prestar
serviço ao município. Esses profissionais continuaram com vínculo estadual, rece-
bendo pela secretaria de educação paulista – embora, como destacado, o município
ressarcisse esse gasto ao estado.
Em 2001, o município possuía 128 professores em sua rede de ensino funda-
mental de 1ª a 4ª série. Desse montante, 96 eram professores municipais (contratados
por concurso público), 8 eram professores substitutos (aprovados em concurso
público e contratados temporariamente a cada ano letivo) e 24 eram professores
estaduais cedidos pelo estado à prefeitura.
Os professores municipais recebiam um salário de R$ 665,00 por uma jornada
de 32 horas semanais. Esses docentes foram contratados pelo regime da CLT, tendo
em vista que o Plano de Carreira e Remuneração do Magistério Municipal só seria
aprovado no final do ano de 2002. Já os professores estaduais cedidos atuavam em
um regime de 30 horas semanais, com salário base mensal de R$ 597,00, variando esse
valor conforme o tempo de serviço e a progressão na carreira, segundo os critérios
do Plano de Carreira e Remuneração do Magistério Estadual.
Todos os profissionais do magistério que atuavam na rede municipal de
Américo Brasiliense dividiam, no final de ano e de acordo com a proporção de horas
trabalhadas e do cargo/função, os resíduos das verbas que sobravam do FUNDEF,
sendo esse evento conhecido na localidade como “rateio”.
Até 2002, aproximadamente 70% dos docentes municipais de Américo
Brasiliense tinham formação em nível superior. Dos professores estaduais cedidos,
100% já possuíam formação em nível superior.
Com essa base, no ano de 2000 o ensino fundamental de 1ª a 4ª série de
Américo Brasiliense apresentava as seguintes taxas de rendimento escolar: 96,1% de
aprovação, 3,1% de reprovação e 0,8% de abandono (BRASIL, 2002a).

Os docentes e o outro lado da valorização no FUNDEF

Os docentes estaduais cedidos compreenderam como aspecto positivo do


convênio estado-município a possibilidade de continuar trabalhando em Américo
Brasiliense. Do contrário, a maior parte desses profissionais teria que retornar às suas

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sedes localizadas em cidades mais distantes, o que geraria gastos com transportes
e deslocamentos. Além disso, mesmo na hipótese de eles serem dispensados pelo
município, esses professores continuariam vinculados ao estado e, portanto, manter-
se-iam empregados.
Os professores municipais, diferentemente de parte dos professores esta-
duais, tinham ingressado na rede de ensino municipal de Américo Brasiliense por
intermédio de concurso público, realizado no final do ano de 1998 e, a partir daquele
momento, passariam por três anos de experiência em serviço. De acordo com os
entrevistados desse grupo, esse prazo de experiência havia sido associado, no mu-
nicípio, ao reforço constante da idéia de instabilidade profissional, contribuindo, na
época, para um contínuo sentimento de medo da perda do emprego entre eles. Tal
não era a situação dos professores estaduais, que não se percebiam afetados pela
instabilidade profissional, em razão da consciência de seus vínculos empregatícios
com o estado. Sobre esse assunto, é bom lembrar que o convênio estado-município
estipulou que “a suspensão ou a cessação do afastamento do pessoal docente” de-
penderia da “solicitação expressa do Chefe do Poder Executivo do município”, que
seria “responsável pela sua reposição, a fim de garantir a execução das ações do Plano de
Trabalho que integra” o convênio (SÃO PAULO, 2002, grifos meus). Isso, na prática,
implicaria que o município assumisse mais funcionários no quadro municipal, num
contexto de incertezas quanto às condições financeiras após término do FUNDEF,
previsto para ocorrer em 31 de dezembro de 2006.
Nesse contexto, as condições distintas de ingresso no município que se
colocaram para os dois grupos (estadual e municipal) durante seus ingressos no
município possibilitaram que cada qual vivenciasse diferentemente a municipalização
e a “valorização” possibilitada pelo FUNDEF.
Segundo os professores de vínculo estadual, os docentes municipais haviam
ficado vulneráveis à proximidade com o poder local com a municipalização do ensino.
Em suas palavras:

Professor do município eles são inseguros porque eles são muito vigiados. Então
eles têm medo (!), até de se colocar, você entendeu (?), com clareza. Às vezes, eles
se omitem por medo de perder o emprego (...) (Entrevistada 14).

Esse pensamento foi confirmado na fala dos docentes municipais que, de


fato, sentiam-se expostos à proximidade com o poder local. Eles destacaram vários
aspectos negativos desta proximidade para a implementação de uma política de
valorização como, por exemplo, o fato de facilitar a interferência do poder educa-
cional local na prática pedagógica (teórica e metodológica) do professor. Acoplada
a essa percepção do controle pedagógico gerado pela proximidade com os órgãos
administrativos centrais, os professores municipais destacaram ainda o fator punição.
Nesse sentido, alguns profissionais citaram várias situações em que a proximidade

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local era percebida negativamente para a valorização docente, por fazer a organização
do trabalho do professor mover-se, muitas vezes, com base na tentativa de evitar
punições do tipo baixa classificação na atribuição de aulas, baixa nota na avaliação
de desempenho, etc (RAMOS, 2003).
Os dois grupos coincidiram em apontar o problema da avaliação de desem-
penho como único fator negativo da proximidade com o poder local e vivenciado por
ambos. Embora a avaliação de desempenho realizada anualmente no município não
fosse utilizada para contagem de pontos na carreira do professor do estado, servia
para a somatória dos pontos da classificação para a atribuição de classe. Além disso,
esses professores diziam que a avaliação dava mais ênfase à participação nos cursos
oferecidos pelo município e às faltas abonadas utilizadas pelos professores estaduais
do que ao desempenho global docente.
Além de compartilharem dessas reclamações relativas ao tipo de utilização
da avaliação de desempenho no município, os entrevistados municipais destacaram
outras implicações negativas da proximidade local para a valorização docente como,
por exemplo, a pessoalidade nas relações. De acordo com uma professora: “tem
muito isso lá, né (?): ou vai com a cara ou você não vai com a cara” (Entrevistada 8).
Por isso, segundo os entrevistados, eles temiam que questões de ordem profissional
tomassem dimensão pessoal no município, ocasionando perseguições ou predile-
ções. Aqui vale salientar que há muito tempo a literatura sobre municipalização do
ensino (BORDIGNON e OLIVEIRA, 1989; DINON, 1987; FONSECA, 1995;
NASCIMENTO, 1989) já afirmava que essa pessoalidade nas relações seria um dos
aspectos negativos da municipalização, que poderia tornar as relações de proximidade
reféns da falta de profissionalismo. Historicamente, esse era um dos motivos pelos
quais as entidades do magistério paulista colocavam-se contra essa política.
Outro aspecto negativo salientado pelos professores municipais sobre a proxi-
midade com o poder local foi o da supervisão do trabalho docente. Vários desses pro-
fessores destacaram que a valorização foi prejudicada em sua implementação em razão
da proximidade local ter facilitado o aumento da supervisão do trabalho docente, sob
uma vertente controladora, invasiva e manipuladora. Conforme uma entrevistada:

(...) quando você está muito próximo, como você está numa cidade pequena (!), todo
mundo se julga seu patrão! Todo mundo tem autoridade! É uma coordenadora, é
a Secretária, é vereador (Entrevistada 10).

Os entrevistados vinculados ao estado, por outro lado, não fizeram referências


a esse tipo de vivência, apenas destacaram que, pela experiência que estavam tendo
na cidade, havia sido frustrada a expectativa de a proximidade local gerar maior
possibilidade de diálogo entre os membros da administração educacional (agora
instalada no município, na figura do departamento de educação) e os professores.
De acordo com uma das entrevistadas, embora a relação fosse de proximidade, ela

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ainda era de estranhamento. Nas palavras dela: “Embora perto, muito distante!”
(Entrevistada 13).
Assim, ao que tudo indica, os professores estaduais vivenciaram a munici-
palização e as adversidades trazidas por ela como uma nova condição do professor
do estado, mas com a ciência de seu vínculo estadual. A municipalização pareceu ter
sido vista por eles como uma continuidade da realidade do estado, já que o “diálogo”
entre professores e administradores, apesar da proximidade, continuou distanciado,
quase como se fosse uma extensão da vivência das relações entre esses professores
e o estado. Embora frustrada a expectativa de aumento do diálogo, para esse grupo
efetivou-se apenas a proximidade voltada para a participação das regras locais, mas
sem grande poder coercitivo sobre eles.
Já para o professor do município, o tipo de vivência da proximidade local
abriu espaço para que a “pessoa” do docente municipal, individualmente, experi-
mentasse a municipalização de forma mais frágil e desprotegida de sua condição
profissional. Conforme a interpretação hipotética de uma professora do Estado, essa
situação sinalizaria tão somente a pressão maior a que ficou submetido o professor de
contrato municipal no contexto da municipalização do ensino. Em suas palavras:

Eu acho que a [professora] do estado, a administração olha assim como que... Você
não dá grande importância: “ah..., do estado...”. E as do município não. As do
município elas olham assim “esse aqui é meu!”. Você entendeu? “Esse aqui é meu!
Esse aqui eu posso fazer isso (!), eu posso fazer aquilo!” (Entrevistada 14).

Não obstante as várias percepções pessimistas sobre o contexto da muni-


cipalização do ensino para a valorização docente no âmbito do FUNDEF, todos
os entrevistados acreditavam que na cidade havia um movimento da administra-
ção educacional local para implementação dos itens da valorização do magistério
trazidos pelo fundo. Segundo eles, no tocante à remuneração, era investida parte
das verbas do FUNDEF para o pagamento do magistério; sobre o Conselho de
Acompanhamento e Controle Social do FUNDEF, ele já estava em funcionamento;
em termos de capacitação-formação do professor, eram oferecidos freqüentemente
cursos para o grupo; sobre o Plano de Carreira e Remuneração do Magistério, ele já
estava em processo de elaboração. Todavia, uma diferença muito marcante apareceu
nas entrevistas em relação à “valorização” trazida para os professores por intermédio
da implementação local desses itens, por conta dos contrastantes efeitos que ela teve
entre os docentes de distintos vínculos de trabalho (estadual e municipal).
Um dos principais destaques no item da remuneração docente foi o da
isonomia salarial. Conforme dito anteriormente, a não-isonomia era resultado
do fato de que o salário do professor estadual (cedido à prefeitura) continuava
sendo realizado segundo as determinações do estado, variando de acordo com as
orientações do plano de carreira estadual. Já o salário do professor municipal era

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estabelecido pelo município, não sofrendo variações (salvo pelas horas-extras),
uma vez que a localidade ainda não possuía um plano de carreira para o magis-
tério. Ambos os grupos de professores discordavam dessa diferenciação salarial,
pois ela ocorria entre profissionais de igual função, atividade e local de trabalho.
Isso ocasionou que cada grupo percebesse o outro como financeiramente mais
valorizado: o grupo do estado apontava que o salário-base do professor municipal
era mais alto do que o deles; o grupo do município pautava-se na constatação de
que o salário-base do professor estadual acrescia-se dos benefícios da evolução na
carreira presentes em seu plano.
Outro destaque importante quanto à remuneração foi o da prática do “ra-
teio” de final de ano das sobras das verbas do FUNDEF. Essa prática foi ressaltada
como um fator negativo para a valorização dos profissionais municipais, visto que,
de acordo com esses professores, ela descaracterizava o salário regular, bem como
contribuía para que o piso salarial ficasse estacionado. Diferentemente disso, para a
maioria dos professores estaduais entrevistados, a distribuição das sobras das verbas
do fundo via rateio acabou sendo positiva, já que ela teria sido o único meio pelo qual
eles se beneficiaram da política de remuneração possibilitada pelo FUNDEF.
Não obstante essas diferentes avaliações entre os grupos, todos os entre-
vistados ressaltaram que a falta de isonomia salarial (associada à prática do “rateio”)
contribuiu para o estabelecimento de discórdias entre os grupos, afetando inclusive
suas relações pessoais e profissionais (até em termos de trocas de experiências pe-
dagógicas), incidindo negativamente na valorização dos professores.
No tocante ao Conselho do FUNDEF, o aspecto mais relevante foi o da visão
crítica dos docentes municipais sobre o funcionamento desse órgão colegiado na cidade.
Para eles, esse Conselho era, muitas vezes, omisso perante as decisões da prefeitura e do
departamento de educação do município e compunha-se de professores desinformados
(e sem poder de voto) ou temerosos de possíveis problemas de ordem pessoal gerados
pela atuação. Os entrevistados estaduais, por outro lado, não fizeram esses destaques
sobre o Conselho. Entretanto, assim como os professores municipais, acreditavam que
seus membros deveriam ter poder deliberativo para que, efetivamente, fosse valorizada
a participação do professor por esse mecanismo de controle social do FUNDEF.
No que diz respeito à formação-capacitação docente, um dos principais
destaques também foi referente ao alto grau de crítica expresso pelos entrevistados
municipais em sua avaliação. Foi destacada por eles a negatividade do caráter im-
positivo da participação nessas atividades, da cobrança da utilização prática de seus
conteúdos, da não participação do professor na escolha dos temas e da tendência
dos cursos seguirem modismos educacionais. Segundo os entrevistados, isso fazia
com que essas atividades gerassem resistência por parte do professor e perdessem
o sentido de aprimoramento profissional e de valorização.
Ainda nesse item, um aspecto interessante comum aos dois grupos foi
a avaliação negativa quanto aos horários em que os cursos eram oferecidos. Os

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professores interpretaram que os horários dos cursos promovidos pelo município
geralmente não respeitavam os horários de folga do docente, intensificando o seu
trabalho. Os entrevistados municipais demonstraram também insatisfação quanto ao
fato de o município só considerar os cursos promovidos pela Prefeitura na contagem
de pontos para atribuição de aulas. Já os professores estaduais disseram sentir-se
prejudicados pelo convênio estado-município, em razão de que os cursos oferecidos
pelo município não serviam para evolução na carreira do estado, uma vez que não
somavam pontos aos seus prontuários.
Em relação à formação inicial, em nível superior, os professores estaduais
afirmaram que essa havia sido uma cobrança do estado, em 2001, que ofereceu
gratuitamente aos seus docentes o “PEC-Formação Universitária”. No caso dos
professores municipais, foi avaliado que o município demorou muito tempo para
tocar no assunto e que, naquele momento, apenas estava realizando um convênio com
uma faculdade privada, sem que fossem consideradas as possibilidades financeiras
do professor e a qualidade dos cursos.
O tema do Plano de Carreira e Remuneração do Magistério foi um dos itens
mais contrastantes nas análises dos diferentes grupos, isso porque os professores
estaduais colocaram-se completamente à margem do processo de elaboração do pla-
no de carreira municipal, já que possuíam um plano de carreira em âmbito estadual.
Os professores municipais, ao contrário, mostraram-se altamente preocupados com
esse tema. Destacaram sentir no município um movimento contrário à valorização
docente, pelos indícios do próprio processo de elaboração. De acordo com eles, os
professores haviam sido inicialmente excluídos da participação no processo de sua
elaboração; posteriormente, foram incluídos na discussão, mas sem sucesso quanto
ao objetivo de garantir suas aspirações no documento. Tudo isso, para eles, contribuía
para que esse item não significasse uma efetiva valorização do magistério.
Assim, do que foi dito até aqui, é possível claramente perceber que a muni-
cipalização do ensino acabou influenciando até mesmo a forma de vivenciar a imple-
mentação dos itens de valorização do magistério previstos nas regras do FUNDEF
pelos diferentes grupos de professores. Com isso, para além da efetivação de um
sentimento de valorização entre os profissionais, reforçou-se a sensação de mal-estar
generalizado, para e entre eles.

Algumas questões teóricas emergentes

A despeito de a municipalização do ensino ter sido induzida pelo governo


federal como mecanismo para a implementação de uma política de valorização do
magistério, foi notável, em várias entrevistas, uma percepção negativa quanto a essa
associação. Várias vezes a valorização docente (em especial, a do professor munici-
pal) foi percebida como prejudicada por conta de problemas advindos da própria
proximidade com o poder local (a supervisão, o controle, a manipulação, a punição e

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a pessoalidade nas relações) gerada pela municipalização. Para se pensar esse assunto,
duas análises são emergentes.
A primeira. Usualmente a municipalização é interpretada como uma política
de descentralização e a descentralização como uma política democratizante. Todavia,
a descentralização do ensino não está necessariamente ligada à democratização,
conforme mostra a literatura (ARRETCHE, 1996; BOVO, 1999).
Arretche (1996) diz que essa associação natural, comumente feita entre demo-
cracia e descentralização, tem sua origem na contraposição desses processos à relação
existente entre centralismo e autoritarismo, historicamente construída no processo de
formação dos distintos estados nacionais, das estruturas administrativas do governo
central e das elites locais e ou regionais. Entretanto, de acordo com a autora, a expecta-
tiva de que a descentralização seria uma condição necessária para a democratização do
veículo decisório constitui-se num mito, pois o caráter democrático do caminho decisó-
rio depende menos do âmbito no qual são tomadas as decisões e mais da natureza das
instituições delas encarregadas. Assim, para Arretche, os comportamentos fortemente
arraigados na cultura política da sociedade podem constituir-se num grande fator limi-
tador da concretização dos comportamentos e princípios democráticos perseguidos.
Essas considerações alertam para o fato de que, fundamentalmente no caso
brasileiro, toda política que se proponha democrática deve ser muito cautelosa no
estabelecimento de mecanismos legais que auxiliem sua efetivação, uma vez que,
como diz Faoro (1976), temos no país uma longa história política autoritária e patri-
monialista, ilustrada pela cultura coronelista e de favores, que tende a contribuir para
a perpetuação do poder de uma minoria, incapacitando a organização da população.
Por essa razão, segundo Rosar (2001), a descentralização, muitas vezes, acaba não
implicando no aumento da participação dos indivíduos em geral, mas no aumento da
participação de apenas alguns indivíduos, grupos, instituições, instâncias governamen-
tais. Ou seja, com a descentralização o que ocorre é o risco de eliminar a dominação
dos recursos e poderes do centro e deslocá-la para o interior de um subsistema.
Todas as considerações expostas mostram que a descentralização do ensino
constitui-se num processo contraditório e que não é, desse modo, naturalmente
democrática tal como sugere a Lei de Diretrizes e Bases – lei n. 9.394/96 – no ar-
tigo 3º, VIII (LDB/96). Bovo (1999) explica que a contradição inerente à ação de
descentralização é decorrente do privilégio que é dado ao legal, em detrimento das
articulações políticas que envolvem os processos decisórios no tocante às políticas
públicas. O autor chega, assim, à conclusão de que muitas vezes há a ilusão de que
as normas legais sobrepõem-se às questões práticas e processuais, de modo a inferir
que o caminho possa ser conhecido antes mesmo de ser percorrido.
A segunda dimensão de análise dentro dessa temática é a da fragilidade do
conceito “municipalização”. Apesar de comumente ser classificada como um processo
de descentralização, a municipalização ora é tratada com os pressupostos teóricos de um
processo de desconcentração, ora da própria descentralização, ora de reconcentração, ora

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de prefeiturização, não havendo um consenso sobre seu significado e aplicação prática.
Em se tratando de um mecanismo altamente controverso em seus pressupostos e ações,
a literatura (DINON, 1987; BORDIGNON e OLIVEIRA, 1989; FONSECA, 1995;
NASCIMENTO, 1989) ressalta que a municipalização pode tanto ser implementada
sob uma vertente democrática quanto pode ser concebida de maneira autoritária, em
razão de contaminar as relações políticas com relações de amizade, tornando pessoais
as relações profissionais, pouco objetivas e distanciadas do interesse público. A literatura
indica outros riscos da municipalização: deixar o município à mercê de recursos humanos
mal qualificados ou sem potencial gerencial; concentrar o poder nas mãos de autori-
dades locais; fazer com que a participação nos processos decisórios varie conforme as
peculiaridades de natureza organizativa, dos arranjos institucionais, da cultura cívica e do
interesse em foco etc. (BORDIGNON, OLIVEIRA, 1989; BORGHI, 2000; DINON,
1987; FONSECA, 1995; KERBAUY, 2001; MAIA, 1989; NASCIMENTO, 1989).
Talvez por isso, apesar de a municipalização ter sido possibilitada pelo gover-
no federal como um dos veículos para a operacionalização da política de valorização
do magistério com o FUNDEF, ela nunca havia sido apoiada pelos movimentos das
entidades docentes paulistas como um dos caminhos possíveis para esse fim.

Lacunas legais para a valorização do professor

Do caso estudado, várias lacunas legais podem ser apontadas como impedi-
tivos para o alcance do objetivo explícito do FUNDEF de valorização dos docentes,
especialmente por intermédio de uma política de municipalização do ensino tal como
efetivada na localidade.
Um dos aspectos destacados pelos entrevistados dizia respeito ao relaciona-
mento tumultuado entre os professores estaduais (cedidos) e os professores munici-
pais ocasionado pela falta de isonomia salarial e de regulamentação da lei 9.424/96
sobre essa situação. Como constatado anteriormente, vários professores comentaram
a desunião que a falta de isonomia gerou entre esses grupos, especialmente por conta
da divisão das verbas no “rateio” de final de ano.
Pela lei 9.424/96, em seu artigo 3°, inciso IX, os estados e os seus respectivos
municípios poderiam “celebrar convênios para transferências de alunos, recursos humanos,
materiais e encargos financeiros” para os quais estaria prevista “a transferência imediata de
recursos do Fundo correspondentes ao número de matrículas que o Município” assumisse,
ou seja, a transferência de recursos não contempla o número de profissionais assumidos.
Embora os 60% das verbas do fundo municipal parecessem legalmente servir apenas para
remuneração dos profissionais municipais e para o ressarcimento do salário do docente
estadual, em Américo Brasiliense, o seu rateio no final do ano abriu espaço para que os
professores estaduais cedidos se beneficiassem da divisão, de modo que esses valores não
fossem utilizados para aumentar o salário-base local. Pelo que parece, essa situação não
havia sido legalmente prevista em suas conseqüências. Apenas havia sido estabelecido

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pelo convênio, conforme visto, que seria responsabilidade municipal comprometer-se
a não pagar menos do que o estado para os profissionais do magistério do município,
“garantindo o princípio de eqüidade para todos” (SÃO PAULO, 2002).
A própria diferença de vínculo de trabalho (estadual e municipal) entre eles
foi criticada, ao permitir que o mesmo tipo de profissional passasse a trabalhar em
um mesmo ambiente, sob diferentes garantias e direitos profissionais. No caso dos
professores do estado, eles já possuíam os direitos profissionais fixados em seu plano
de carreira e no estatuto do magistério estadual, enquanto os professores municipais
ainda estavam vivendo um processo de luta para garantir certos direitos dentro do
Plano de Carreira e Remuneração do Magistério Municipal.
Os professores estaduais também avaliaram que a municipalização acabou tra-
zendo várias situações negativas para seu grupo como, por exemplo, a perda de contato
com as normas de seu empregador, o estado. Eles ressaltaram ainda alguns problemas
de ordem funcional ocasionados por essa política, como o fato de as regras do muni-
cípio, às vezes, acabarem sobrepondo-se a certos direitos dos professores estaduais.
Nesse sentido, foram destacados: o rebaixamento na nota da avaliação de desempenho
no município por usufruírem faltas abonadas e licenças garantidas pelo estado; o im-
pedimento de utilizar o afastamento concedido pelo estado para conclusão do “PEC-
Formação Universitária”, por decisão da administração educacional local. Entretanto,
vale lembrar que, segundo o convênio estado-município, seria parte das atribuições da
secretaria estadual da educação, no que dizia respeito aos recursos humanos:

Afastar junto ao Município, por ato da autoridade competente, sem prejuízo


de vencimentos ou salários e das demais vantagens, pessoal docente, técnico e
administrativo, observada a legislação específica, mediante expressa solicitação do
Chefe do Poder Executivo do Município (SÃO PAULO, 2002).

Os professores estaduais ressaltaram ainda a incerteza quanto ao futuro.


Uma entrevistada estadual dizia que, embora naquele momento se sentisse estável
em termos empregatícios, não sabia qual seria o futuro da municipalização do ensino,
dos convênios realizados e do professor estadual, após as mudanças de governo e o
fim do FUNDEF. Vale lembrar que o convênio realizado entre estado e município
teria “a vigência de 5 (cinco) anos, a contar da data de sua assinatura”. Após esse
prazo, ficava pouco claro se haveria ou não a continuidade da municipalização em
todas as redes de ensino paulistas adeptas.
O grupo de professores municipais, por sua vez, salientou outras lacunas legais
para a valorização docente, via FUNDEF, como a falta do estabelecimento de critérios
objetivos para a ocupação de cargos administrativos e de coordenação no departamento
de educação municipal. Assim, os docentes avaliaram como seqüela da vivência negativa
da municipalização do ensino a falta de preparo dos membros do próprio departamento
de educação para assumirem os cargos. Em acordo com essa última colocação, vários

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autores (BORGHI, 2000; DINON, 1987; FONSECA, 1995; MAIA, 1989) confirmam
que um dos graves problemas da municipalização seria o da possibilidade de se ficar à
mercê de recursos humanos mal qualificados ou sem capacidade gerencial.
Como já observado, o convênio estado-município estabeleceu como respon-
sabilidade do município que concursos públicos fossem realizados para o ingresso em
quadros próprios de profissionais do magistério, pessoal técnico e administrativo muni-
cipal, em caso de expansão da rede ou reposição de pessoal. Contudo, não detalhou o
caso dos cargos já ocupados por profissionais do estado antes do ensino fundamental
ser municipalizado, abrindo espaço, na época, para permanência de profissionais não
concursados pelo município para atuação na maioria dos cargos administrativos, in-
cluindo o de diretor de escola. Sem saber o que isso implicaria na prática, tal situação
possibilitou a continuidade de um corpo técnico e administrativo quase todo estadual
frente a um corpo pedagógico quase todo municipal, num contexto de conflito.
No grupo de professores municipais também foi destacada como negativa a
proximidade dos profissionais com a administração educacional para a valorização do
docente. Como observado anteriormente, os professores municipais demonstraram
que a valorização docente ficou prejudicada por sua própria associação a uma política
de municipalização do ensino que, pelo fator “proximidade”, abriu espaço para a
supervisão, o controle, a manipulação, a punição e a pessoalidade nas relações entre
membros do departamento de educação e os professores.
Um dos entrevistados municipais acreditava que havia faltado para a imple-
mentação local do FUNDEF um ordenamento da municipalização do ensino, ou seja,
uma regulamentação federal específica sobre o poder local dentro da educação nos
municípios. Para ele, isso teria permitido que o município criasse simbolicamente uma
“lei própria” sobre o assunto, justificando, assim, todas as suas ações no setor, inclu-
sive as mais arbitrárias (Entrevistado 2). Isso demonstra que, apesar dos chamados
processos descentralizadores no Brasil, as instâncias federais das quais o poder tem
sido desconcentrado não têm aberto mão de seu dirigismo (MENDONÇA, 2000).
Essa recentralização do poder educacional ocasionou que a desconsideração
das pessoas envolvidas e da cultura local dentro de políticas associadas ao FUNDEF
(tendo em vista sua implementação municipal) fosse interpretada como uma de suas
maiores lacunas. Endossando essa afirmação, vale lembrar Bovo (1999), para quem,
de fato, não tem sido dada, no contexto nacional, a devida atenção às articulações
políticas que envolvem os processos decisórios no tocante às políticas públicas, o que
permitiria a ocorrência de situações como essas. Somando-se a esse problema, estaria
ainda o da falta de clareza (inclusive da LDB/96) quanto ao conceito de qualidade do
ensino em que se apoiava o FUNDEF. Isso, para os entrevistados, teria aberto espaço
para que as atitudes arbitrárias tomadas na instância municipal fossem justificadas
pela busca da qualidade do ensino, entrando na lógica de que os fins justificariam os
meios (independentemente de quais fossem eles), distanciando-se cada vez mais do
objetivo da valorização do professor.

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Confirmando a falta de clareza do significado legal da palavra “qualidade”,
a Emenda à Constituição 14/96 (art. 60, do ADCT, § 4º) e a lei 9.424 (art. 13) esta-
beleceram apenas que o padrão mínimo de qualidade do ensino seria definido na-
cionalmente. Já a LDB 9.394/96 (art. 3º, inciso IX) apesar de ter estabelecido como
sendo um dos princípios da educação nacional a “garantia de padrão de qualidade”,
definiu de forma pouco precisa que o padrão mínimo de qualidade de ensino seria “a
variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvol-
vimento do processo de ensino aprendizagem” (LDB 9.394/96, art. 4º, inciso IX).
Nessa mesma linha de indefinição sobre a qualidade, o convênio estado-município
estabeleceu como parte de seus objetivos:

Fortalecer a autonomia do Poder Local na busca de uma escola pública de qualidade


para todos; Colaborar com a capacitação das redes municipais de ensino, visando
à manutenção de um padrão de qualidade de ensino para todas as escolas (SÃO
PAULO, 2002).

Nesse sentido, de acordo com a maioria dos entrevistados, essa “qualidade” era o
que parecia estar sendo buscado pelo município. Mas a que custo para os professores?

A distância da lei
no tocante à concepção docente de valorização

Todos os professores entrevistados reconheceram a importância dos mecanis-


mos de valorização docente (remuneração, formação-capacitação, Plano de Carreira
e Conselho) inerentes ao FUNDEF. Porém, verificou-se que as concepções sobre
esses mecanismos diferenciaram-se entre os professores e a legislação.
Foi notável nas entrevistas o fato de que a valorização do magistério para os
professores teria como um de seus aspectos principais a questão salarial. Entretanto,
escrever na lei 9.424/96 que dos recursos do Fundo seriam “assegurados (...), pelo
menos, 60% para a remuneração dos profissionais do magistério, em efetivo exercício de
suas atividades no ensino fundamental público” (art. 7º, grifo meu), não se reverteu
na valorização salarial esperada pelo professor. Ao contrário. Por não ser especificada
a vinculação a salários no texto da lei, parte da remuneração efetivou-se no município
via “rateio”, descaracterizando-se para os docentes municipais seu significado de
salário e de valorização. Além disso, a expressão “condigna” (utilizado como critério
para a remuneração do magistério, segundo as leis 9.424/96 e 9.394/96) sequer foi
utilizada pelos professores. Eles utilizavam a palavra “digna”, porquanto a questão
salarial lhes apareceu atrelada à dignidade profissional e de justiça e merecimento da
profissão, não ao merecimento de cada professor.
No item capacitação-formação, enquanto a lei 9.424/96 dizia em seu pa-
rágrafo único que nos primeiros 5 anos seria “permitida a aplicação de 60% (...) na

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capacitação de professores leigos (...)”, para os entrevistados, a valorização não era
pensada em termos de capacitação, mas de formação inicial e continuada no exercício
do aprimoramento profissional. A formação docente era ainda interpretada como um
fator fundamental para a valorização, já que, por seu intermédio, os professores viam
assinaladas as possibilidades para criarem uma efetiva autonomia profissional, pelo
conhecimento teórico de sua prática, sabendo justificá-la, conhecendo seus direitos
profissionais, protegendo-se em ambos os casos das interferências de outros.
A formação docente também foi concebida como um direito profissional e,
por isso, segundo os entrevistados, não poderia acontecer atrelada à intensificação
do trabalho do professor e distanciada de suas reais necessidades. Ela deveria servir
para o seu aprimoramento profissional e não apenas para o cumprimento de um
dever municipal, distanciando-se de seu objetivo formativo.
Em relação ao plano de carreira, a lei 9.424/96 estabeleceu que deveria asse-
gurar: “remuneração condigna”, “estímulo ao trabalho em sala de aula” e “melhoria
da qualidade do ensino” (art. 9º), no contexto da valorização docente, o plano foi
interpretado, pelos professores entrevistados, como um documento que deveria dar
ao professor o estatuto de profissional, assegurando-lhe carreira, remuneração, direi-
tos, estabelecendo normatizações e objetividade à sua vida funcional. Nesse sentido,
para os entrevistados, o plano de carreira necessitaria não somente ser compreendido
como uma exigência federal, mas como um documento voltado efetivamente para a
valorização do magistério. Isso implicaria que fosse buscado entre os membros do
magistério o significado da palavra valorização, bem como exigiria que esses profis-
sionais fossem incorporados nos processos locais de elaboração.
Em relação ao Conselho do FUNDEF, enquanto a lei 9.424/96 havia proposto
que sua atuação possibilitasse “o acompanhamento e o controle sobre a repartição, a
transferência e a aplicação dos recursos do Fundo” (art. 4º), os professores interpretavam
que a valorização por esse item viria com a participação e a deliberação pelo professor.
Para eles, seria praticamente inócua para esse fim a abertura de um espaço de participação
cuja atuação docente ocorresse mais em termos simbólicos do que práticos.
Com essas contraposições, ficou elucidado que a própria concepção de remu-
neração, formação-capacitação, plano de carreira e colegiado entre os entrevistados
e a legislação do FUNDEF não foi coincidente, uma vez que ela mostrou-se muito
aquém do que os professores demonstraram necessitar para serem valorizados com
o referido fundo, no contexto da proximidade local.

Nota final

Em quase todos os debates sobre escola e melhoria da qualidade do ensino,


a “valorização” do professor sempre aparece com grande destaque, embora pouco
se saiba e se discuta sobre esse conceito. O próprio FUNDEF foi um exemplo claro
sobre isso. Apesar de ter sido inúmeras vezes chamado de “Fundo de valorização do

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professor”, até mesmo pelo então presidente Fernando Henrique (BRASIL, 2002b),
sua concepção de “valorização” mostrou-se bem menos alargada do que a presente
entre os docentes, tal como apontou o caso estudado.
Por isso, especialmente agora que o atual governo federal lança um novo fundo
que atinge todos os docentes da educação básica, questões como a proximidade local,
a gestão democrática, os diferentes vínculos de trabalho, a sobreposição de regras de
trabalho, a cultura e o poder local, a recentralização do ensino, o que diz a lei, o que
pensam e vivem os professores, etc, deveriam ser resgatadas da história do FUNDEF
e debatidas. Afirmar isso não implica que se retroceda na história, negando processos
como a municipalização e a descentralização do ensino, por exemplo. Ao contrário. O
que se propõe é que se evite incorrer nas mesmas mazelas observadas nas percepções
dos entrevistados do estudo de caso apresentado e que, em vários pontos, já foram
demonstradas por outros estudos de caso referentes àqueles processos.
No momento em que se reavaliam as políticas sociais do país, que têm na
educação pública um ponto estratégico, a valorização do magistério, tão reivindicada,
necessária e considerada indispensável para tal fim não pode ficar à mercê das formas
aqui expostas e examinadas neste texto. Assim, se muitos dos indícios aqui apontados
(que até podem ser comuns a inúmeros municípios, eventualmente assemelhados) não
forem devidamente examinados e discutidos nas diferentes instâncias da federação, a
valorização do magistério promovida pela municipalização do ensino financiada pelo
FUNDEF e por seus possíveis sucessores, como o FUNDEB, poderá não passar de
mais uma quimera na história da educação.

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damental. De 22 de dezembro de 2002.

Géssica Priscila Ramos é pedagoga, doutora em Educação pela


Universidade Federal de São Carlos e mestre em Educação Escolar pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho). Atua como professora
substituta do Departamento de Educação do Campus da UNESP de São José do Rio
Preto. Email: [email protected]; [email protected].

Recebido em maio de 2008


Aprovado em setembro de 2008

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