HISTRIA DA MSICA - GRCIA ANTIGA AO BARROCO

Profa. Dra. Jlia Tygel

A HERANA GREGA
O termo Grcia Antiga alude cultura da civilizao que se formou na atual regio da
Grcia e em regies prximas, como o Egito, sul da Itlia e costa do mar Egeu, compreendendo
aproximadamente o perodo do sculo XI a. C. at o sculo II a. C., quando foi gradativamente
sendo apropriada e reinterpretada pelo que viria a se tornar a cultura romana ou, por essa
associao, greco-romana (o Imprio Romano perduraria at o sculo V, e sua queda marca o
incio da Idade Mdia). Os ltimos sculos da Grcia Antiga podem ser dividido entre perodos
Clssico (sculos V-IV a.C.) e Helenstico (sculos IV-I a.C.), muito embora os termos sejam
frequentemente usados como sinnimos para se referir ao perodo do apogeu dessa civilizao.
As referncias mais antigas que temos sobre a msica grega so dessa poca, e aludem, muito
provavelmente, a prticas j em uso em sculos anteriores.

Na Grcia antiga, o estudo de msica estava associado formao integral do cidado1 . A

msica estava intimamente relacionada aos estudos da matemtica e das outras artes,
especialmente a poesia. Acreditava-se que ela tinha origem divina, sendo seus inventores e
intrpretes os deuses e semideuses, e que ela exercia poderes mgicos sobre os seres humanos.

Os poucos fragmentos musicais que chegaram nossa

poca so notados com letras que correspondem s notas
musicais, evidenciando sesses cantadas e sesses
instrumentais. Como a notao rudimentar, as interpretaes
modernas desses fragmentos so tentativas, certamente
incompletas, de reproduzir como teriam soado essas msicas
no passado. Um exemplo o coro de Orestes2, de
Coro de Orestes em papiro.
Eurpedes (338-344)3, em papiro de 200 a.C. Fonte: https://www.wdl.org/en/item/4309/

1 Devemos lembrar que cidados gregos eram os cidados livres, ou seja, excluam-se aqui os escravos.
2A imagem no vdeo mostra um detalhe do quadro O remorso de Orestes (1862), de William Adolphe
Bouguereau, que retrata Orestes sendo castigado pelas Frias, ou as deusas associadas punio de criminosos (na
mitologia grega, Orestes matou a me e o padrasto a mando do deus Apolo).
3Eurpedes foi um importante expoente da tragdia grega clssica. Nessas peas, havia comumentemente um grupo
que comentava cantando em coro as aes das personagens.

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 A msica grega era essencialmente homofnica (com uma voz4 apenas), podendo ser
heterofnica (formada por vrios sons) quando havia mais de um instrumento tocando, mas no

era jamais polifnica (com vrias vozes simultneas). Era majoritariamente improvisada
segundo padres pr-estabelecidos da poca, e estava intimamente ligada poesia e

muito frequentemente tambm dana muitas vezes s duas ao mesmo tempo, em

performances integradas. O ritmo era geralmente

determinado pela mtrica dos poemas e a

melodia muitas vezes seguia a entonao
natural das palavras (prosdia). O Primeiro

Hino Dlfico a Apolo5, de 138 a. C., e que consiste em uma

das primeiras referncias musicais notadas (de forma mais
precisa) da histria da msica ocidental. Primeiro Hino Dlfico a Apolo em mrmore

Teoria musical: os tetracordes e os modos gregos

Comeamos nosso estudo terico a partir do matemtico Pitgoras (ca.570 a.C - ca.497
a.C) que, dividindo a nica corda do instrumento monocrdio em diferentes fraes, chegou s
relaes matemticas dos intervalos justos: oitava 2:1 (dividindo-se a corda ao meio obtm-se a
oitava), quinta 3:2 (dividindo-se a corda em trs partes iguais e reduzindo-a a dois teros obtm-
se a quinta justa), quarta 4:3 (dividindo-se a corda em quatro partes iguais e reduzindo-a a trs
quartos obtm-se a quarta justa), e assim por diante6. Este vdeo compara intervalos em afinao
justa (tambm chamada de natural ou pitagrica) com os mesmos intervalos na nossa afinao
contempornea, que temperada (ajustada, isto , no mais natural). A afinao justa est de
acordo com os sons naturais da srie harmnica, e assim nesse sistema as notas que
consideramos hoje enarmnicas no tm a mesma afinao: por exemplo, na afinao justa um
Sol# ligeiramente mais agudo que um Lb. Nosso sistema de afinao atual, temperado,

4 Quando falamos de voz, referimo-nos a uma linha meldica, no necessariamente entoada pela voz humana.
5 Hinos eram composies associadas a textos literrios. Delfos uma cidade grega prxima a Atenas, onde esto as
runas de um importante Templo de Apolo.

6 Houve durante os sculos da cultura grega diferentes variaes do tamanho dos intervalos, com propostas
diferentes de afinao, mas a afinao justa foi a que prevaleceu, ao menos nos tratados tericos.

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aproximou essas alturas, chegando a um meio-termo que no mais nem o Sol# e nem o Lb
naturais, mas uma nota entre as duas esse sistema s foi inventado no sculo XVII, como
veremos. Como podemos ouvir no vdeo do exemplo, os intervalos de oitava, quinta e quarta
justos na afinao justa soam muito mais consonantes que na afinao temperada: na afinao
justa ouve-se um som lmpido, enquanto na afinao temperada ouvem-se vrios batimentos
nesses intervalos. No de se estranhar que, com essa afinao, os gregos consideravam
como consonantes apenas a oitava justa, a quinta justa e a quarta justa,
que so os intervalos que possuem significativamente menos batimentos na afinao justa. Por
influncia dos gregos e pela continuidade desse sistema de afinao, a definio de consonncia
permaneceu associada a esses trs intervalos durante a maior parte da Idade Mdia. Apenas no
Renascimento outros sistemas de afinao comearam a surgir, acompanhando tendncias
musicais que passavam a considerar como consoantes a tera ao invs da quarta, como veremos
adiante.

A partir da menor consonncia existente nesse sistema, a quarta justa, os gregos

formavam uma pequena escala de quatro notas, os tetracordes, que so subdivises da quarta
justa em quatro notas. Os tetracordes podiam ser diatnicos, cromticos ou enarmnicos,

dependendo de como era feita a diviso interna da quarta justa. Os gregos pensavam as escalas
diferentemente de ns, entoando-as do agudo para o grave (ns pensamos sempre do grave para o
agudo); na diviso do tetracorde, o maior intervalo era sempre o superior, o do meio igual ou um
pouco menor, e o ltimo era o menor de todos, como se fosse uma sensvel superior para a nota
mais grave de chegada. Assim, do agudo para o grave, o tetracorde diatnico tinha a sequncia de
tom-tom-semitom; o cromtico tinha a sequncia de tera menor-semitom-semitom; e o
enarmnico, tera maior-quarto de tom-quarto de tom, como mostra o exemplo abaixo, adaptado
de Reinach (2011:41-42):

Tetracordes gregos

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 As combinaes de dois tetracordes, unidos por uma nota em comum ou
por grau conjunto, formavam os modos gregos7, como mostra o exemplo abaixo,
extrado de Reinach (2011:54) cada modo tem sua variao diatnica, cromtica e enarmnica,
com adaptaes das localizaes dos intervalos maiores e menores em alguns tetracordes:

Modos gregos em suas variaes diatnica, cromtica e enarmnica

Embora muitos modos gregos tenham os mesmos nomes dos modos

gregorianos medievais, que so os modos que usamos at hoje, eles no so
correspondentes! A confuso aconteceu por dois motivos: o primeiro deles porque os
gregos pensavam as escalas de forma descendente (do agudo para o grave), e os tericos
medievais as concebiam de forma ascendente (do grave para o agudo) - isso inverteu a ordem de
tons e semitons associados a cada modo. O segundo motivo porque a lira, instrumento
comumente utilizado para acompanhar a msica vocal, era afinada conforme o modo de cada
msica a ser executada, partindo da mesma fundamental; s notas que deveriam ser alteradas
para a afinao em determinado modo dava-se o nome do prprio modo: os tericos medievais

7 Os modos eram formados tanto pela unio quanto pela rotao dos tetracordes (rotao significa que a nota ou as
notas que originalmente estariam no grave vo para o extremo agudo da escala, dessa forma modificam-se as
relaes intervalares entre as notas da escala).

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compreenderam erroneamente que os nomes das notas correspondiam ao modo que se iniciava
naquela nota (como ns pensamos hoje, a partir das notas brancas do piano, que o modo drico
tem incio na nota R, por exemplo). Alm disso, a Idade Mdia apenas aproveitou dos

modos gregos a sua verso diatnica, caindo as verses cromtica e enarmnica em

desuso. O exemplo abaixo (Reinach, 2011:74) mostra correlaes de nomenclatura entre modos
diatnicos gregos e os modos gregorianos:

Correlaes de nomenclatura entre modos gregos diatnicos (antiques) e modos gregorianos ou

eclesisticos (eccls).

Instrumentos e deuses

Dois deuses so especialmente importantes na msica grega, e a eles esto associados os

principais instrumentos musicais gregos (provavelmente trazidos da sia Menor), que eram
usados tanto para acompanhar a voz quanto como instrumentos solistas:

Deus Apolo instrumento lira: a lira (e sua variante menor, a ctara) tinha geralmente
sete cordas, que eram afinadas nos diferentes modos gregos conforme a msica que

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 seria executada, e era usada para acompanhar o canto ou a recitao de poemas picos.
Apolo o deus ligado razo e contemplao, e sua msica tinha como efeitos a
calma e a elevao espiritual. A lira era tocada por mulheres.

Deus Dionsio instrumento aulo: o aulo era um instrumento de sopro de palheta

simples ou dupla, que podia ter um tubo ou dois (aulo duplo como em nosso exemplo -
obs: no exemplo o msico executa duas melodias simultneas, algo que no ocorria na
msica grega e s passou a existir comprovadamente em meados da Idade Mdia. O
exemplo apenas ilustrativo em relao ao instrumento). O culto a Dionsio, e portanto
tambm o aulo, estavam ligados s tragdias gregas e a um tipo especfico de poesia
chamado ditirambo. Sua msica tinha como efeito suscitar a excitao e o entusiasmo.

Doutrina do ethos

Os gregos acreditavam que a msica era capaz de influenciar o

carter dos seres humanos: o ethos da msica era esse poder transformador. Cada modo

tinha a ele associado um estilo de composio caracterstico, e acreditava-se que cada

combinao de modo e estilo composicional afetava as pessoas de
uma forma especfica, como mostra o exemplo abaixo, extrado de Reinach (2011:64), e

que corresponde aos nomes dos modos gregos originais (ver tabela acima).

Ethos correspondentes aos modos gregos 6

 A crena na influncia da msica na formao do carter sustentava-se e implicava as
seguintes idias:

Segundo Pitgoras (sc. V a.C), a msica feita de relaes matemticas, sendo

por isso regida pelas mesmas propores que regem toda a natureza, podendo
assim influenci-la; teria por isso poder curativo.

Plato, no livro A Repblica (380 a.C.), refere-se ao poder da msica de

transformar o carter das pessoas, e explica como cada modo incitaria
caractersticas especficas do carter. O Estado, por isso, deveria controlar que
tipo de msica seria produzida, para assim edificar a populao 8.

Aristteles, em Poltica (330 a.C.), afirma que a msica imita (representa) as

paixes ou estados da alma: brandura, ira, coragem, temperana, etc. A msica
incitaria assim nos ouvintes as mesmas qualidades que ela representa.

O terico Quintiliano uniu essas idias em um tratado chamado Em Msica (ca. 200 d.C),
que iria depois influenciar significativamente o pensamento musical no incio da Idade Mdia.

Referncias bibliogrficas:

GROUT, Donald J. & PALISCA, Claude V. Histria da Msica Ocidental. Lisboa: Gradiva,
1988.

CAND, Roland de. Histria Universal da Msica. So Paulo: Martins Fontes, 2001.

MERRIAM, Alan P. The Anthropology of music. Evanston: Northwestern University Press, 1964

REINACH, Thodore. A msica grega. So Paulo: Perspectiva, 2011.

WISNIK, Jos Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra Histria das Msicas. So Paulo:
Companhia das Letras, 1999.

8 Essa idia foi retomada h no muito tempo pelos estados totalitrios do sculo XX em todo o mundo, como por
exemplo a era Vargas no Brasil: o projeto de musicalizar as pessoas com um repertrio de qualidade, poca
associado msica erudita, estava intimamente ligado idia de formao de cidados de bem; de modo anlogo o
samba era considerado corruptor do carter.