Doutrina Dos Afetos

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 5

www.salgado.weebly.

com

Doutrina dos Afetos

A Doutrina dos Afetos – em alemão Affektenlehre – tem um papel


notável na música barroca. O Dicionário Grove de Música a descreve
como “termo utilizado para descrever um conceito teórico da era
barroca, derivado das idéias clássicas de retórica, sustentando que a
música influenciava os ‘afetos’ (ou emoções) do ouvinte, segundo um
conjunto de regras que relacionavam determinados recursos musicais
(ritmos, motivos, intervalos, etc.) a estados emocionais específicos.”
Para melhor definir tal conceito teórico, é importante que se vá às
origens, ou seja, a Grécia. Os gregos deram muita importância à
música, no entanto, pouco se conhece dessa arte na Antiguidade. Sabe-
se que a música tinha um cunho religioso, ritualístico. Acreditava-se que
se teria originado divinamente e que seus primeiros intérpretes teriam
sido os deuses e semi deuses como Apolo, Anfião e Orfeu. Além disso, a
música tinha um caráter místico. Os gregos cultivavam a crença que a
música era capaz de curar doenças, purificar o corpo e o espírito e
operar milagres. Com um sentido mais lato do que hoje lhe é atribuido,
a palavra música era nada menos que a forma adjetivada de musa –
que eram nove deusas irmãs que regiam as artes e as ciências.
Utilizava-se da música como algo comum a todas as atividades que
diziam respeito à busca do Belo e da Verdade. O Belo para os gregos era
um conceito objetivo. Só poderia ser Belo o que fosse dotado de Ordem,
Forma e Proporção. Já a Verdade estava intimamente ligada a uma
trindade que surgiu pela filosofia grega: o Belo, o Bom e o Justo. Nada é
Belo se não for Bom e Justo. Os três elementos caminham juntos.
Como já foi dito, a música era ensinada juntamente com outros
conteúdos. Pitágoras não a dissociava da aritmética, uma vez que os
números eram considerados a chave do universo espiritual e físico.
Ptolomeu relacionou música e astronomia, associando alguns intervalos
ou notas musicais a alguns planetas. Talvez o maior exemplo de relação
entre música e astronomia tenha sido dado por Platão, no mito da
“música das esferas”. Segundo esse mito, os planetas produzem uma
música, inaudível aos homens. Vários autores voltaram a citar esse
mito, como por exemplo Shakespeare e Milton.
Além da relação com a matemática e com a astronomia, temos
uma relação que é tão ou mais importante: música e poesia. Para os
gregos, os termos eram praticamente sinônimos. A poesia lírica, por
exemplo, surge da poesia cantada ao som da lira. Muitos termos que
designavam gêneros de poesia eram também termos musicais, como
ode e hino. As formas de poesia desprovidas de música também eram
desprovidas de nome. Essa ligação ressurgiu diversas vezes durante a
História da música, como na invenção do recitativo, por volta de 1600 e
com as teorias de Wagner a respeito do teatro musical no século XIX.
www.salgado.weebly.com

E, se há um elemento grego da música que muito afetou a nossa


música, foi a teoria. A teoria grega dividia-se em duas partes:

1. Doutrinas sobre a natureza da música, o seu lugar no


cosmo, seus efeitos e a forma que melhor convinha usá-la
na sociedade;
2. Descrições sistemáticas dos modelos e materiais da
composição musical

A primeira parte é onde se localiza o que chamamos de Doutrina


do Etos, que será uma das bases para a Doutrina dos Afetos.
A doutrina do Etos trabalhava o efeito moral que a música poderia
provocar no Homem. Integrava-se, dessa forma, na concepção
pitagórica da música como microcosmo, regida pelas mesmas leis
matemáticas do macrocosmo. Nessa concepção, a música de forma
alguma é apenas uma imagem passiva – é capaz de afetar o Universo.
Mais tarde os gregos passam a estudar a música e seus efeitos no
caráter e na conduta do Ser humano com uma abordagem mais
científica. Aristóteles procurou explicar esses efeitos no que chamou de
Doutrina da Imitação. Segundo essa doutrina, a música imita, ou seja,
representa, as paixões ou estados da alma, seja brandura, ira, coragem,
temperança, etc. Ao ouvirmos um trecho que representa determinado
sentimento, ficamos da mesma forma. Dessa forma, a música é capaz
de manipular o homem. Aristóteles ainda afirma que, se ouvirmos
música boa ficaremos bons e vice-versa. Portanto, para Aristóteles, a
música forma o homem.
Platão também exprime sua opinião acerca da música e afirma,
juntamente com Aristóteles, que a educação deve consistir na música –
para trabalhar o espírito – e na ginástica – para trabalhar o físico. No
entanto, para Platão deveria haver o equilíbrio entre ambas as
atividades. Se um homem ouve musica demais, tende a tornar-se
efeminado ou neurótico. Se faz exercícios físicos demais, torna-se
incivilizado, violento e ignorante.
Apesar de ambos os filósofos retratarem a importância da música
na educação, nem toda música é aconselhável. Melodias que exprimem
brandura e indolência deveriam ser evitadas na educação dos indivíduos
que fossem preparados para governarem. Dessa forma, os modos
Dórico e Frígio eram ideais para os futuros governantes, por exprimirem
coragem e temperança, respectivamente.
Há ainda algumas diferenças entre ambos os filósofos. Aristóteles
dizia que a música também poderia ser ouvida por prazer, enquanto
para Platão só tinha função na educação.
www.salgado.weebly.com

Para se ter uma idéia do papel que a música tomava na educação,


é interessante lembrar que nas primeiras constituições de Atenas e
Esparta haviam leis específicas sobre a música.
Portanto, a Doutrina do Etos baseava-se em dois princípios:

1. A música afeta o caráter;


2. Diferentes tipos de música afetarão o Homem de formas
diferentes.

Nestas condições, poderíamos dividir as músicas em dois grupos


maiores:

1. Música que provoca a calma e a elevação espiritual


2. Música que provoca a excitação e o entusiasmo

A primeira categoria está associada ao culto de Apolo, deus da


métrica, da medida, da proporção. As formas poéticas relacionadas a
esse deus eram a ode e a epopeia. Tinha como instrumento a lira ou
kítharis, chamado testudo em latim. A lira clássica, instrumento de
cordas dos diletantes, cuja importância foi considerável na Antiguidade.
Inicialmente com quatro cordas, teve em seguida sete (séc. VIII a.C.) e
onze (séc. V a.C.). A afinação da lira era provavelmente, da mais aguda
para a mais grave: la-sol-mi-re-si-la-sol-mi-re-si-la.
A segunda categoria, por sua vez, está relaciona ao culto do deus
Dionísio, também conhecido como Baco, deus do vinho. Tinha como
formas poéticas o ditirambo e o teatro, e como instrumento o aulo, tibia
em latim. Trata-se de um instrumento de palheta dupla (como nosso
oboé), cilíndrico ou levemente cônico, construído de cana, madeira ou
marfim. Sua origem é asiática e remotíssima. Havia vários modelos de
texturas diferentes e eram utilizados em geral aos pares. Cada
instrumento tinha furos que podiam ser tapados com os dedos ou com
anéis metálicos. Sobre a maneira pela qual se tocava o aulo duplo,
estamos reduzidos a hipóteses.
Séculos depois, na renascença, surge o que chamaremos de
musica reservata. Segundo Samuel Quickelberg, erudito e médico
holandês residente na corte de Munique, a musica reservata consiste em
“Adequar a música ao sentido das palavras, exprimir a força de cada
emoção diferente, tornar as coisas do texto tão vivas que julgamos tê-
las deveras diante dos olhos” e prossegue “a este tipo de música
chama-se musica reservata”. Introduz-se na música cromatismos,
variedades modais, ornamentos e contraste de ritmos, buscando sempre
dar vida ao texto. Um grande exemplo de musica reservata” é o Moteto
Absalon fili mi, de Josquin des Prez, baseado no lamento de David em 2
Samuel, 18,33.
www.salgado.weebly.com

No Barroco então, surge o que chamamos de Doutrina dos Afetos.


Baseia-se, de uma certa forma na Doutrina do Etos e também pode ser
encarada como uma extensão da musica reservata renascentista. A
Doutrina dos Afetos é uma característica comum a quase todos os
compositores barrocos, quer na música vocal, quer na música
instrumental. Os efeitos musicais são intensificados usando-se
contrastes violentos. A música não é composta para exprimir os
sentimentos do compositor, mas representa os afetos de uma forma
genérica e busca transmitir aquele sentimento ao ouvinte.
A partir do século XVII alguns teóricos tentam classificar e
sistematizar esses recursos, mas essa tarefa foi realizada principalmente
a posteriori e os alemães tiveram uma participação relevante nessa
tarefa.
Através dessa doutrina, o processo de criação musical já era
concebido dentro das regras. Pensava-se na composição em três
passos:

1. Invento: “descoberta” de um determinado tema ou idéia


musical de base
2. Despositio: planificação ou exposição das divisões da
obra
3. Elaboratio: elaboração do material

Como já foi dito, a Doutrina dos Afetos foi utilizada por


praticamente todos os compositores barrocos. Bach tinha uma
apreciação exagerada pela numerologia. Usava, por exemplo, a
tonalidade de Eb, já que na armadura de clave teriam três bemóis
representando a Santíssima Trindade. Vivaldi, no concerto Primavera (E
maior) utiliza-se muito da Doutrina dos Afetos. O primeiro movimento
começa com um tema comemorando a chegada da primavera. Em
seguida ouve-se o “canto dos pássaros”. Volta ao tema e logo após
percebe-se a “doce brisa e murmúrio das águas”. O tema é exposto
mais uma vez, seguido pela “Tempestade”, “o canto dos pássaros” outra
vez e, por fim encerra-se no tema. No segundo movimento percebe-se
os latidos de cães feitos pela viola em molto fort. Finalmente, no
terceiro movimento se dá a “dança pastoral”, onde uma ninfa e um
pastor saúdam a chegada da Primavera.
Percebe-se, dessa forma, que a música de Vivaldi está tão
impregnada de significados quanto se possa imaginar. Isso não seria
possível se o compositor não tivesse associado elementos musicais aos
pássaros, cães, etc.
Quando falamos de Doutrina do Etos e dos Afetos, parece que nos
transportamos a um passado deveras distante. Essa impressão que
temos, no entanto, é falsa. Essas doutrinas nos acompanham no nosso
dia-a-dia até hoje. Não fosse assim, as ditaduras fascistas e comunistas
www.salgado.weebly.com

do século XX não teriam procurado controlar as músicas que poderiam


ser tocadas. Uma das intenções – e talvez a maior delas – era evitar que
o povo se rebelasse contra tais ditaduras, sentimento que pode ser
provocado no homem associando-se elementos musicais e letra da
música. Também as igrejas não escolheriam as músicas apropriadas
para tocar em suas celebrações. Imagine uma missa ou culto onde só se
toca funk! Da mesma maneira, é cada vez mais crescente a
preocupação dos educadores com o tipo de música que as crianças e
jovens ouvem e como essa música os afeta.
Mais que um fato histórico que foi importante algum dia, a
Doutrina dos Afetos, bem como suas bases (Doutrina do Etos e Musica
Reservata) é algo cada vez mais presente em nossas vidas e no nosso
cotidiano. Outra grande possibilidade que temos com a Doutrina dos
Afetos são os crescentes estudos na área de musicoterapia, uma vez
que já provado que a música tem um efeito moral que pode tanto fazer
bem quanto mal ao paciente.
Ao compositor, a Doutrina dos Afetos permite um verdadeiro
diálogo com o futuro ouvinte de sua obra. Ao ouvinte, leva à catarse,
remete imagens e provoca sensações físicas e psicológicas, deixa de ser
passivo e passa a ser ativo na obra de arte. Pode-se concluir que
espírito humano só tem a ganhar ao trabalhar com a Doutrina dos
Afetos.

Você também pode gostar