002 - História Da Música - A Herança Grega
002 - História Da Música - A Herança Grega
002 - História Da Música - A Herança Grega
Até o séc. X, a igreja foi o principal, e muitas vezes o único, laço unificador e canal de cultura da Europa.
Quando, após um século terrível de guerras e invasões, o último imperador do Ocidente foi, finalmente, deposto do
seu trono, em 476, os alicerces do poder papal estavam já tão firmemente estabelecidos que a Igreja se encontrava
em condições de assumir a missão civilizadora e unificadora de Roma.
A herança grega
A história da música ocidental começa com a música cristã. No entanto, ao longo da Idade Média, artistas e
intelectuais foram continuamente à Grécia e a Roma à procura de ensinamentos.
Na literatura e na escultura tinham como copiar os modelos. Os músicos da Idade Média não conheciam um
exemplo sequer de música grega ou romana. Embora não haja vestígios autênticos da música da antiga Roma,
sabemos, por relatos verbais, baixos-relevos, mosaicos, afrescos e esculturas, que a música desempenhava um papel
importante na vida militar, no teatro, na religião e nos rituais de Roma.
Houve uma razão importante para o desaparecimento das tradições da prática musical romana no início da
Idade Média: a maior parte desta música estava associada a práticas sociais que a igreja primitiva via com horror ou
a rituais pagãos que julgava deverem ser eliminados. Por conseguinte, foram feitos todos os esforços não apenas
para afastar da Igreja essa música, que traria tais abominações ao espírito dos fiéis, como, se possível, para apagar
por completo a memória dela.
Por outro lado, alguns elementos da prática musical antiga sobreviveram durante a Idade Média, até porque
seria impossível aboli-los sem abolir a própria música. As teorias musicais estiveram na base das teorias medievais e
foram integradas na maior parte dos sistemas filosóficos.
A mitologia grega atribuía à música origem divina e designava como seus inventores e primeiros intérpretes
deuses e semideuses, como Apolo, Anfião e Orfeu. Neste obscuro mundo pré-histórico a música tinha poderes
mágicos: as pessoas pensavam que era capaz de curar doenças, purificar o corpo e o espírito e operar milagres no
reino da Natureza.
Também no Antigo Testamento se atribuíam à música idênticos poderes: basta lembrar apenas o episódio
em que David cura a loucura de Saul tocando harpa (1 Samuel, 16, 14-23) ou o soar das trombetas e a vozearia que
derrubaram as muralhas de Jericó (Josué, 6, 12-20). Na época homérica os bardos cantavam poemas heroicos
durante os banquetes (Odisseia, 8, 62-82).
Desde os tempos mais remotos a música foi um elemento indissociável das cerimônias religiosas. No culto de
Apolo era a lira o instrumento característico, enquanto no de Dioniso era o aulo. Ambos os instrumentos foram,
provavelmente, trazidos para a Grécia da Ásia Menor. A lira e a sua variante de maiores dimensões, a cítara, eram
instrumentos de cinco e sete cordas (número que mais tarde chegou a elevar-se até onze); ambas eram tocadas,
quer a solo, quer acompanhando o canto ou a recitação de poemas épicos. O aulo, um instrumento de palheta
simples ou dupla (não era uma flauta), muitas vezes com dois tubos, tinha um timbre estridente, penetrante,
associava-se ao canto de um certo tipo de poema (o ditirambo) no culto de Dioniso, culto que se crê estar na origem
do teatro grego. Consequentemente, nas grandes tragédias da época clássica - obras de Ésquilo, Sófocles, Eurípides -
os coros e outras partes musicais eram acompanhados pelo som do aulo ou alternavam com ele.
https://www.youtube.com/watch?v=JU4QRxsZhjg
https://www.youtube.com/watch?v=xoW1M-9HWqU
https://www.youtube.com/watch?v=Ik8cS_60aSI
https://www.youtube.com/watch?v=eWwtNO168kI
https://www.youtube.com/watch?v=Bty066C2si4
Pelo menos desde o século VI a. C. tanto a lira como o aulo eram tocados como instrumentos
independentes, a solo. Os concursos de tocadores de cítara e aulo, bem como os festivais de música instrumental e
vocal, tornaram-se cada vez mais populares a partir do século V a. C. À medida que a música se tornava mais
independente, multiplicava-se o número de virtuosos; ao mesmo tempo, a música em si tornava-se cada vez mais
complexa em todos os aspectos. Alarmado com a proliferação da arte musical, Aristóteles, no século IV, manifestava-
se contra o excesso de treino profissional na educação musical do homem comum:
Alcançar-se-á a medida exata se os estudantes de música se abstiverem das artes que são praticadas
nos concursos para profissionais e não procurarem dominar esses fantásticos prodígios de execução
que estão agora em voga em tais concursos e que daí passaram para o ensino. Deixem que os jovens
pratiquem a música conforme prescrevemos, apenas até serem capazes de se deleitarem com
melodias e ritmos nobres e não meramente nessa parte comum da música que até a qualquer
escravo, ou criança, ou mesmo a alguns animais, consegue dar prazer 1.
Algum tempo após a época clássica (entre 450 e 325 a. C., aproximadamente) deu-se uma reação contra o
excesso de complexidade técnica, e no início da era cristã a teoria musical grega, e provavelmente também a prática,
estava muito simplificada. A maior parte dos exemplos de música grega que chegaram até nós provêm de períodos
relativamente tardios. Os mais importantes de entre eles são um fragmento de um coro do Orestes de Eurípides (vv.
338-344), de um papiro datado de cerca do ano 200 a. C., sendo a música, possivelmente, do próprio Eurípides um
fragmento da Ifigénia em Áulide de Eurípides (vv. 783-793), dois hinos délficos a Apolo, praticamente completos,
datando o segundo de 128-127 a. C., um escólio, ou canção de bebida, que serve de epitáfio a uma sepultura,
também do século 1, ou pouco posterior, e Hino a Némesis, Hino ao Sol e Hino à Musa Calíope de Mesomedes de
Creta, do século II.
https://www.youtube.com/watch?v=Gn7jvHI2kU4&list=PLLxlrdvdY1jd7FdHjGJVAv3vxMGb8zCoK&index=2
https://www.youtube.com/watch?v=mGfOHoun0OQ&list=PLLxlrdvdY1jd7FdHjGJVAv3vxMGb8zCoK
Dizer que a música da igreja primitiva tinha em comum com a grega o facto de ser monofónica, improvisada
e inseparável de um texto não é postular uma continuidade histórica entre ambas. Foi a teoria, e não a prática, dos
Gregos que afetou a música da Europa ocidental na Idade Média. Temos muito mais informação acerca das teorias
musicais gregas do que acerca da música em si. Essas teorias eram de dois tipos: (1) doutrinas sobre a natureza da
música, o seu lugar no cosmos, os seus efeitos e a forma conveniente de a usar na sociedade humana, e (2)
descrições sistemáticas dos modelos e materiais da composição musical. Tanto na filosofia como na ciência da
música os Gregos tiveram intuições e formularam princípios que em muitos casos ainda hoje não estão
1
Aristóteles, Política, 8.6.1341a; cf. também Platão, Leis, 2.669E, 670A.
ultrapassados. É evidente que o pensamento grego no domínio da música não permaneceu estático de Pitágoras
(cerca de 500 a. C.), o seu célebre fundador, a Aristides Quintiliano (século IV a. C.), último autor grego de relevo
neste campo.
A palavra música tinha para os Gregos um sentido mais lato do que aquele que hoje lhe damos. Era uma
forma adjetivada de musa - na mitologia clássica, qualquer das nove deusas irmãs que presidiam a determinadas
artes e ciências. A relação verbal sugere que entre os Gregos a música era concebida como algo comum a todas as
atividades que diziam respeito à busca da beleza e da verdade. Nos ensinamentos de Pitágoras e dos seus seguidores
a música e a aritmética não eram disciplinas separadas; os números eram considerados a chave de todo o universo
espiritual e físico; assim, o sistema dos sons e ritmos musicais, sendo regido pelo número, exemplificava a harmonia
do cosmos e correspondia a essa harmonia.
https://www.youtube.com/watch?v=ETPzsN-vgE8
A doutrina do etos, das qualidades e efeitos morais da música, integrava-se na concepção pitagórica da
música como microcosmos, um sistema de tons e ritmos regido pelas mesmas leis matemáticas que operam no
conjunto da criação visível e invisível. A música, nesta concepção, não era apenas uma imagem passiva do sistema
ordenado do universo; era também uma força capaz de afetar o universo — daí a atribuição dos milagres aos
músicos lendários da mitologia. Numa fase posterior, mais científica, passaram a sublinhar-se os efeitos da música
sobre a vontade e, consequentemente, sobre o carácter e a conduta dos seres humanos.
A doutrina grega do etos, por conseguinte, baseava-se na convicção de que a música afeta o carácter e de
que os diferentes tipos de música o afetam de forma diferente. Nestas distinções efetuadas entre os muitos tipos de
música podemos detectar uma divisão genérica em duas categorias: a música que tinha como efeitos a calma e a
elevação espiritual, por um lado, e, por outro, a música que tendia a suscitar a excitação e o entusiasmo. A primeira
categoria era associada ao culto de Apolo, sendo o seu instrumento a lira e as formas poéticas correlativas a ode e a
epopeia. A segunda categoria, associada ao culto de Dioniso, utilizava o aulo e tinha como formas poéticas afins o
ditirambo e o teatro.
Referência:
GROUT, Donald J; Palisca, Claude. História da música ocidental. Lisboa: Gradiva, 1994.