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Entretanto, o papado conseguiu atingir esse objetivo somente sob o reina-

do de Carlos Magno (768-814), que, tornando-se imperador do Ocidente, impõe


o canto romano a todo o reino. Michels (2003) comenta que essa imposição
de Carlos Magno afetou primeiramente a administração e o direito canônico e,
posteriormente, a liturgia e o canto propriamente ditos. É nessa época que o
canto romano (cantochão) se vincula lendariamente à figura do Papa Gregório
Magno, sendo designado “canto gregoriano”.

Cantochão – notação musical e modos

Cantochão ou canto plano é a designação do canto monofônico, entoado


em uníssono, inicialmente sem acompanhamento instrumental, empregado nas
liturgias cristãs do Ocidente.

No início, quando não havia notação musical, os cantos eram transmitidos


oralmente, o que favorecia às inúmeras interpretações e modificações melódicas.

Entre os séculos IV e V houve a tentativa de representar os sons por letras,


mas apesar deste sistema facilitar o trabalho dos teóricos, era muito abstrato e
complicado para gerar uma escrita musical que pudesse ser reconhecida por to-
dos. No início do século VII, escrever música ainda era algo inconcebível, como
afirmou Isidoro de Sevilha (Etimologias, III, 15,2).

No tempo de Gregório Magno eram empregados alguns símbolos gráficos


sobre os textos litúrgicos para se poder conservar e transmitir as melodias aos
cantores. Por meio desse sistema, as novas melodias eram aprendidas facil-
mente e as antigas se tornavam praticamente indissociáveis dos textos.

O sistema de notação, portanto, se desenvolveu juntamente com o concei-


to de obra. Quando o uso dos tropos11 favoreceu o surgimento de novas melo-
dias, exatamente no momento em que a preocupação maior era a unificação da
liturgia, surgiu a ideia de se colocar acima do texto litúrgico sinais que sugeriam
o movimento da melodia, ajudando a memória dos cantores: os neumas.

Nos manuscritos originais que podem ser estudados ainda hoje, os pri-
meiros neumas identificáveis aparecem em textos datados da segunda metade
do século IX, mas provavelmente, foram utilizados desde o final do século VIII.
Esses neumas eram derivados dos sinais de acentuação da linguagem como:
acento agudo (movimento ascendente da voz), acento grave (movimento des-
cendente da voz) e acento circunflexo e anticircunflexo (dupla inflexão) e sua
invenção é atribuída a Aristófanes de Bizâncio (? - c.180 a.C.).

11 Complemento do cantochão. Há três formas de tropos: quando se aplica um texto novo


aos melismas já existentes no cantochão; quando se aplica um texto novo a uma nova
melodia, com base no cantochão original; e quando há um acréscimo melódico (melis-
ma) com fins ornamentais. 79
É importante lembrar que cada sílaba corresponde a um neuma de uma
ou mais notas, e esses neumas não designam a altura dos sons, mas somen-
te sua direção. Desse modo, no início, o sistema de notação de neumas era
somente um lembrete para os cantores que tinham o conhecimento prévio da
melodia sugerida por esses sinais.

Michels (2003) designa vários tipos de neumas, divididos em dois grupos:


neumas de acento (para os cantos) e neumas de apóstrofo (para nasalação
ou ornamentação melódica). Na lista a seguir a descrição dos oito neumas de
acento fundamentais para a entonação do cantochão:

Candé (1994, p. 209) traz a representação da grafia neumática no século


IX, depois como foi representada no século XIII (notação quadrática12) e sua
equivalência com a notação atual. Veja:

12 O emprego da pena de ganso de bico largo para a grafia dos neumas (final do século
XII), favoreceu a unificação e a simplificação da escrita neumática o que a deixou com
um aspecto “quadrado”: os pontos se tornaram losangos ou quadrados e os grupos de
80 notas, grossos traços cheios.
Figura 28: Notação Neumática.

Entre os séculos IX e X inúmeras tentativas foram realizadas para a cria-


ção de um método definitivo e aceitável de notação dos sons. Lovelock (1987)
comenta que por volta do ano 1000, um escritor anônimo traçou sobre os textos
litúrgicos uma linha vermelha representando a nota fá, e os neumas passaram a
ser dispostos sobre e sob essa linha. Essa provavelmente foi a origem do atual
pentagrama e um grande avanço para a época, pois indicava categoricamente
uma nota definida: fá.

Figura 29: Registro moderno de um fragmento de notação neumática (século XIII).


Acima do tetragrama, a antiga notação neumática (século IX).

[...] A solução completa foi finalmente conseguida em dois novos está-


gios. Uma linha amarela, representando o dó, foi adicionada acima da
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linha vermelha para o fá, proporcionando ainda maior exatidão; e, por fim,
duas linhas pretas foram acrescentadas, uma de cada lado da linha de fá.
Isso produziu uma pauta completa de quatro linhas, a qual era suficiente
para a notação de uma quantidade muito grande de melodias tradicionais.
(LOVELOCK, 1987, p.20).

A figura do frade beneditino Guido d’Arezzo (c.990-1050) é associada à


adição da linha amarela e preta à linha vermelha inicial, porém, é mais provável
que Guido d’Arezzo tenha somente popularizado esse sistema. Seu maior méri-
to, entretanto, está na simplificação da notação neumática e no desenvolvimen-
to da solmização ou “mão guidoniana” – técnica de canto de leitura, à primeira
vista, baseada no uso de sílabas associadas à altura das notas como recurso
mnemônico para a indicação dos intervalos melódicos.

Figura 30: Mão guidoniana.

Para a solmização, Guido valeu-se de um hino a São João Batista em


que as frases musicais iniciavam sucessivamente com as notas dó, ré, mi, fá,
sol e lá. A partir das sílabas iniciais de cada verso do hino, Guido formulou seu
sistema mnemônico – ut-re-mi-fa-sol-la. O si, formado com as iniciais de Sancte
Ioannes do último verso, foi acrescentado mais tarde e o ut transformou-se em
dó pela facilidade de entonação, principalmente na Itália.

***

As melodias do cantochão são diatônicas e caminham em escalas modais.


No século IX os modos do cantochão foram estabelecidos, na Igreja do Ocidente,
por Aureliano de Réomé (c.850 d.C.).
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Os 8 modos eclesiásticos têm como referencial o modelo de tetracordes
grego, porém, não têm relação com o sistema modal da Grécia antiga, apesar
de muitos estudiosos da época acreditarem nessa relação.

Réomé, portanto, sistematizou os 8 modos eclesiásticos, estabelecendo


algumas características:

• nota final (finalis): som conclusivo e de repouso, espécie de tônica.

• tenor (tuba, repercussio): “tom de recitação”, nota melódica principal,


espécie de dominante.

• âmbito (ambitus): oitava característica do modo na qual se desenvolve


a melodia.

• fórmulas melódicas: espécie de modelo, com intervalos e desenhos me-


lódicos específicos.

Na teoria musical medieval, distinguem-se 4 notas finais: ré, mi, fá e sol,


dando origem aos 4 modos autênticos, ou principais, e que têm o tenor escrito
sobre a 5ª modal. A esses modos principais somam-se os 4 modos plagais, ou
secundários, que possuem as mesmas notas finais dos modos autênticos, mas
com o âmbito deslocado uma 4ª abaixo.

Segundo Candé (1994), além da denominação latinizada, deu-se aos mo-


dos eclesiásticos os nomes dos armoniai gregos e, por uma confusão de no-
menclaturas, os novos modos foram designados erroneamente, por isso, o “pri-
meiro tom” eclesiástico (ré-ré) foi rebatizado de dórico, o “terceiro tom” (mi-mi)
de frígio, o “quinto tom” (fá-fá) de lídio e o “sétimo tom” (sol-sol) de mixolídio.

Figura 31: Modos Eclesiásticos – Autênticos e Plagais. 83


Tanto Candé (1994) como Lovelock (1987) concordam ser uma lenda o
fato de que Santo. Ambrósio teria inventado os modos eclesiásticos autênticos
e São Gregório Magno os modos eclesiásticos plagais.

Outro aspecto que diferenciou a prática musical medieval da tradição grega


foi que os teóricos da Idade Média não se preocupavam com a altura absoluta
dos sons, por isso, a notação do cantochão não empregava alterações. Somen-
te o bemol era utilizado na nota si, permitindo passar de uma forma autêntica à
forma plagal de um tom, sem mudar de âmbito.

Entretanto, nos sécs. XIII e XIV notas cromáticas aparecem no sistema


até então diatônico. Michels (2003) explica que essa música ficta (música falsa,
notas fictícias), ou seja, o cromatismo aparente empregado nos hexacordes13
medievais, não desempenhou nenhuma modificação no repertório do canto-
chão, mas foi extremamente importante para as novas composições, tanto sa-
cras como profanas, do final da Idade Média.

3.3.3 Ars Antiqua, Ars Nova e as formas musicais

Ars Antiqua. Foi o período que se relaciona ao início do desenvolvimento


da polifonia no norte da França, estendendo-se de 1240 até o ano de 1320,
aproximadamente.

O termo Ars Antiqua (arte antiga) foi uma expressão empregada por escri-
tores franceses do início do século XIV, principalmente Jacobus de Liège, para
distinguir a polifonia corrente no século XIII da polifonia da recém criada Ars
Nova (arte nova).

O período da Ars Antiqua se confunde com a própria Escola de Notre


Dame, já que os compositores dessa época, ligados ou não à Notre Dame, cul-
tivavam os mesmo gêneros musicais.

Escola de Notre Dame. Desde o ano de 1163, quando se iniciou a constru-


ção da catedral de Notre Dame, Paris tornou-se um importante centro musical.

Nesta época, a prática polifônica deu um salto, especialmente com a músi-


ca desenvolvida por compositores que atuavam junto à Catedral de Notre Dame.
Os compositores dispunham de uma notação musical refinada, em que não só
as notas eram grafadas, mas também os ritmos. É o início da notação mensural,
inexistente até o momento.

13 Escala de 6 notas com distância fixa entre elas: tom-tom-semitom-tom-tom. Durante


o século X, os hexacordes poderiam ser construídos somente sobre as notas de dó
(hexachordum naturale), sol (hexachordum durum, com si bequadro) e fá (hexachordum
84 molle, com si bemol).

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