Noumenon e Fenomeno
Noumenon e Fenomeno
Noumenon e Fenomeno
Revista de Filosofia
RESUMO Neste trabalho procura-se reconstruir os fundamentos da teoria do conhecimento de Kant. Tais fundamentos possibilitam falar legitimamente sobre o conceito de noumenon. Sustenta-se a tese de que o noumenon um conceito que surge naturalmente dos pontos de partida assumidos pela losoa transcendental (distino entre as faculdades de conhecimento, da sensibilidade e do entendimento) e no um elemento agregado ao sistema. Alm disso, procura-se, por um lado, esclarecer as diversas caracterizaes apresentadas na Analtica transcendental a respeito da distino entre noumenon e fenmeno a partir da distino entre o campo e domnio das categorias e, por outro, defende-se que no se trata de uma distino ontolgica entre dois tipos de objetos, mas de duas perspectivas de se pensar a relao do objeto com nossa faculdade de conhecimento. Palavras-chave: Noumenon; Fenmeno; Campo; Domnio; Experincia possvel. ABSTRACT This work search for rebuilding of Kants knowledge theory foundations that make possible to talk legitimately about the noumenon concept. It is sustained that the noumenon is a concept that arise naturally from the starting points assumed by the transcendental philosophy (distinction of the knowledge faculty, the sensibility and the understanding) and not an element joined to the system. Besides, it is sought, on one side, to explain several characterizations presented in the transcendental analytic about the distinction between noumenon and phenomenon starting from the distinction between the eld and domain of the categories and, for other, it is defended that it is not related to a ontological distinction between two types of objects, but of two perspectives of thinking the object relationship with our knowledge faculty. Key words: Noumenon; Phenomenon; Field; Domain; Possible experience.
* Doutorando em Filosoa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC / Capes). ARgUMENTOs, Ano 2, N. 3 - 2010
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na medida em que so objetos dos nossos sentidos. De acordo com a segunda possibili dade, a correspondncia seria entendida caso a representao fosse ativa em relao ao objeto, ou seja, se atravs dela o objeto fosse criado. Esse seria o caso de um intellectus archetypi, que supostamente atribumos a Deus. Entretanto, segundo Kant, nenhuma dessas duas possibilidades podem ser adotadas para a explicao de como certos conceitos pretendem referir-se s coisas de modo totalmente a priori. Na Crtica da razo pura (KrV), de forma semelhante, Kant arma que o verdadeiro problema da razo pura est contido na pergunta: como so possveis juzos sintticos a priori? (KrV, B19).1 Essa questo deixa de lado a discusso de como so possveis juzos analticos, pois no est em jogo o modo como ocorre o desmembramento de conceitos que j temos de objetos (KrV, B9). Com efeito, o objetivo investigar como possvel ligar a priori duas representaes (a do sujeito e a do predicado) num juzo, sem que se utilize apenas o princpio de contradio. Em outras palavras, se e como possvel formular proposies com necessidade e universalidade irrestrita em relao a objetos (e no somente conceitos). Para isso, precisamos ter como fundamento representaes que, por um lado, sejam absolutamente independentes da experincia, pois devem se referir a priori a objetos. Por outro, deve-se respeitar o fato de que no possumos um intelecto intuitivo que crie as coisas fora de ns. Na Esttica Transcendental, Kant apresenta argumentos para sustentar a tese de que a sensibilidade2 fonte de duas representaes
As citaes dos textos de Kant so sempre feitas a partir da Edio da Academia Gesammelte Schriften. Berlin: Walter de Gruyter, 1900 (AA). As referncias procedem do seguinte modo: sigla do texto (indicado respectivamente na bibliograa e em conformidade com o que foi estabelecido pela Academia), AA nmero do volume: nmero da pgina. Exclusivamente para a Crtica da razo pura, as citaes seguem a indicao alfanumrica tradicional: B indicando a segunda edio, sucedendo o nmero da pgina. A sensibilidade caracterizada como sendo uma faculdade passiva de nossa mente por meio da qual recebemos representaes na medida em que somos afetados de algum modo. A sensibilidade se constitui no nico modo por meio do qual uma multiplicidade pode nos ser dada. De modo sucinto, Kant dene a sensibilidade como sendo uma receptividade para ser afetada, de certo modo (KrV, B522; tambm em: B61 e B74 - B75). As representaes oriundas da sensibilidade so denominadas de intuies, enquanto as representaes do entendimento, conceitos. A intuio uma representao sempre singular (refere-se a um nico objeto) e imediata (vincula-se diretamente ao objeto fenomnico). O entendimento tido como a faculdade ativa de nossa mente por meio da qual produzimos representaes. Por ser ativo o entendimento visto como a espontaneidade da nossa faculdade de conhecimento. O conceito uma representao sempre geral (refere-se por notas comuns a vrios objetos) e mediata (refere-se a objetos atravs de intuies), j as intuies so sempre sensveis e conceitos sempre intelectuais, isto , o entendimento nada pode intuir, pois essencialmente discursivo, e a sensibilidade nada pensar, pois essencialmente passividade. Esses pontos de partida implicam em duas conseqncias importantes que afastam Kant de lsofos como Leibniz e Wolff. A primeira conseqncia armar que a representao intuitiva de natureza tal que no pode ser reduzida por anlise a nenhuma representao conceitual. A diferena entre ambas as representaes no se sustenta sobre uma gradao de clareza, pois no uma diferena lgica, mas sim transcendental, visto que ela diz respeito origem e ao contedo. (Cf. KrV, B61-62 e B326-327). Assim, h um abismo intransponvel entre as representaes da sensibilidade e
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a priori, as formas puras do espao e do tempo. Supondo o xito desse empreendimento, ento espao e tempo seriam as formas nas quais todas as nossas percepes representaes acompanhadas de sensao (KrV, B147) se encontrariam. Na medida em que espao e tempo pertencem a uma faculdade passiva do sujeito, ambas so apenas condies subjetivas de nosso modo de intuio, o que signica dizer que fora do sujeito no so nada. Essa , sucintamente, a tese da idealidade transcendental. Entretanto, isso no signica armar que espao e tempo so meras iluses, pois eles possuem realidade objetiva em relao aos objetos que nos aparecem na sensibilidade. Essa tese chamada por Kant de realidade emprica das formas puras do espao e do tempo em relao aos fenmenos. A conseqncia direta dessas teses o fato de que todos os objetos dos sentidos possuem uma referncia indubitvel s formas puras do espao e do tempo, sob pena deles no serem objetos sensveis para ns.3 At o momento, permanece em suspenso a questo de se os conceitos puros do entendimento tambm possuem uma referncia objetiva em relao aos fenmenos e se podemos ou no conhecer objetos inteligveis (que no estejam submetidos s formas da sensibilidade, do espao e do tempo). A Analtica transcendental, por sua vez, tem como funo investigar se o entendimento fonte de representaes a priori e em que medida elas se referem a objetos. Isso signica que Kant, para discutir essas questes, precisa instaurar um tribunal crtico. (Cf. KrV, AXII ), no qual, em analogia com um processo jurdico, distingue entre a argumentao que se refere a questo que de direito (quid iuris) da que concerne aos fatos (quid facti). (KrV, B 116). A questo de fato refere-se explicao da posse
de certas representaes, pois diz respeito ao fato pelo qual a posse surgiu. (KrV, B 117). Segundo Kant, uma possvel resposta para esta questo foi a derivao siolgica realizada por Locke. Contudo, essa tentativa vlida apenas para legitimar conceitos empricos, por isso pode ser chamada tambm de deduo emprica. Assim, no caso especco de conceitos empricos, a resposta para a questo de fato parece ser tambm uma resposta satisfatria para a questo de direito de tais conceitos. J no caso dos conceitos puros, essa derivao siolgica no uma tentativa legtima (adequada), pois no [concebe] a natureza inteiramente peculiar desses conhecimentos. (KrV, B119), a saber, o fato de se referirem aos seus objetos sem terem tomado nada emprestado da experincia para a sua representao. (KrV, B 118). A questo de direito diz respeito s provas pelas quais deve-se demonstrar a faculdade e tambm o direito. (KrV, B 116). Quando se est s voltas com conceitos puros do entendimento, ento exige-se uma deduo transcendental. Kant entende por deduo transcendental dos conceitos puros a explicao da maneira como estes podem referir-se a priori a objetos. (KrV, B 117). Kant, no incio da Analtica dos conceitos arma que por deduo entende a
[...] ainda pouco tentada decomposio da prpria faculdade do entendimento, para investigar a possibilidade dos conceitos a priori mediante a sua procura unicamente no entendimento, como lugar de seu nascimento, e a anlise do uso puro do entendimento em geral. Esta , com efeito a tarefa especca de uma losoa transcendental. (KrV, B 90-91)
Ora, investigar como so possveis conceitos a priori? algo que se refere a uma questo de fato, pois se indaga pela origem (pela gnese). Enquanto que investigar sobre o uso de con-
as do entendimento e mesmo que elas brotem de uma raiz comum. (Cf. KrV, B29), isso nos permanece inteiramente desconhecido. A segunda conseqncia o fato de no se admitir aos seres humanos nenhuma outra espcie de intuio que no a sensvel. A intuio oposta a nossa seria intelectual e pertenceria ao ser originrio. Ela seria produto de um intelecto intuitivo. Nesse caso, pensar um objeto implicaria imediatamente em dar existncia a ele (Cf. KrV, B72). Assim, o ser humano pode distinguir entre a possibilidade e a efetividade das coisas pelo fato das faculdades de conhecimento, sensibilidade e entendimento, serem heterogneas. Sobre isso: se o nosso entendimento fosse intuinte, no possuiria qualquer objeto que no fosse o efetivo (das Wirkliche). Tanto os conceitos (que dizem respeito simplesmente possibilidade de um objeto) como as intuies sensveis (que nos do algo, sem todavia nos darem a conhecer isso como objeto) desapareceriam em conjunto. KU, AA 05: p. 401-402. Tambm sobre isso: Carta a Marcus Herz de 21 de fevereiro de 1772 (BriefwecHsel, AA 10: p. 129-135).
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Cf. Com efeito, que objetos da intuio sensvel tm que estar conforme s condies formais da sensibilidade situadas a priori na mente resulta claro do fato de que do contrrio no seriam objetos para ns [...]. (KrV, B122-123). ARgUMENTOs, Ano 2, N. 3 - 2010
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ceitos parece dizer respeito a uma questo de direito. Kant, para deixar claro a funo desses dois grupos de argumentos envolvidos na deduo das categorias, arma que
[na] deduo metafsica [] posta em evidncia a origem das categorias a priori em geral mediante o seu pleno acordo com as funes lgicas universais do pensamento, mas na deduo transcendental [apresenta-se] a sua possibilidade como conhecimentos a priori de objetos de uma intuio em geral. (KrV, B159).
Assim, a deduo metafsica responsvel por discutir uma questo de fato, a saber, o entendimento como sendo uma fonte de conceitos puros. J a Deduo transcendental pretende discutir a questo do direito desses conceitos, isto , qual a sua legitimidade em relao aos fenmenos. Na deduo metafsica das categorias, Kant procura um princpio que possibilite encontrar todas as funes do entendimento para, a partir disso, tambm determinar todos os conceitos que tem sua origem a priori no entendimento, garantindo, assim, unidade e completude tbua das categorias. A estratgia, na Seo primeira, do o condutor transcendental denir o entendimento como sendo uma faculdade que se restringe a julgar, o que possibilita reduzir todas as funes do entendimento s funes que se manifestam nas formas dos juzos. Assim, ao se ter acesso completude das formas dos juzos (logo, acesso a totalidade das funes do entendimento), tm-se um o condutor para a descoberta de todos os conceitos puros. Dessa forma, surgem tantos conceitos puros do entendimento quanto eram as funes lgicas expressas nas formas do juzo. Um ponto de difcil compreenso como Kant pensa o surgimento (a gnese) dos conceitos puros a partir das funes do entendimento. Segundo ele, os conceitos puros so originrios da sntese que o entendimento contm em si a priori. (KrV, B106). Essa sntese pura, repre-
sentada de modo universal, d o conceito puro do entendimento. Por sntese pura entendo a que repousa sobre um fundamento da unidade sinttica a priori[...]. (KrV, B104). Alguns pargrafos antes dessas formulaes, o processo de sntese havia sido denido como sendo a ao de acrescentar diversas representaes umas s outras e de conceber a sua multiplicidade num conhecimento. (KrV, B103). Uma sntese seria pura se o mltiplo a ser sintetizado fosse dado a priori. A partir disso, a questo que queremos colocar a seguinte: como devemos compreender o surgimento de conceitos a partir de uma sntese a priori? Ora, para um entendimento discursivo, como o nosso caso, o mltiplo somente pode ser dado por outra faculdade (a sensibilidade), e mesmo que ela fornecesse um mltiplo a priori, ainda assim as categorias teriam em seu surgimento uma ligao necessria com a sensibilidade. Isso poderia nos levar a pensar que o entendimento no uma fonte totalmente independente de representaes (o que contradiz o ponto de partida sistemtico). Uma possibilidade para esta questo seria pensar que o mltiplo puro da sensibilidade apenas a ocasio pela qual os conceitos puros do entendimento, enquanto regras da sntese, se revelam enquanto conceitos (unidades analticas, que possuem notas caractersticas).4 Kant expressa essa possibilidade na seguinte passagem:
Seguiremos, portanto, os conceitos puros at seus primeiros germes e disposies no entendimento humano em que se encontram prontos, at que sejam desenvolvidos por ocasio da experincia e que, liberados das condies empricas inerentes a eles, sejam apresentados em sua pureza pelo mesmo entendimento. (KrV, B 91, negritos acrescentados)
Nesse caso, precisaramos distinguir entre: um estado inicial (antes do desenvolvimento), que abrangeria o uso pr-reexivo das categorias (elas possibilitando a experincia); e, um estado no qual h um uso reexivo das
Sob a perspectiva da lgica geral, as funes do entendimento se expressam nas aes lgicas (comparao, reexo e abstrao) pelas quais se constituem os conceitos enquanto unidades analticas [ KrV, B102 : a lgica geral abstrai de todo o contedo do conhecimento e espera que em outra parte qualquer lhe sejam dadas representaes a m de primeiramente as transformar em conceitos, isto ocorrendo analiticamente.]. Nesse caso, as funes do entendimento seriam os vrios modos de operar pelos quais diversas representaes so subsumidas a unidades comuns. Sob a perspectiva da lgica transcendental, deve-se explicar como um mltiplo da sensibilidade chega a constituir uma unidade. Nesse caso, as funes, expressadas pelas categorias, seriam regras de sntese. ARgUMENTOs, Ano 2, N. 3 - 2010
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categorias, j em um mbito judicativo.5 Mas, isso levanta a questo de saber qual o signicado de se dizer que temos categorias antes da sntese do mltiplo da sensibilidade, isto , o que signica dizer que os conceitos puros se encontram prontos. Na KrV, Kant no esgota esse pro blema (nem essa parece ser sua inteno), mas avana em sua discusso at o ponto em que consegue atribuir completude tbua dos conceitos puros do entendimento e identificar o seu carter (a propriedade que lhes garante ser regras de sntese). importante ressaltar que a discusso sobre a questo de fato (a gnese das categorias) vincula-se de um modo intrinsecamente necessrio com a questo de direito (o uso legtimo das categorias), visto que no se pode falar em conceitos vlidos a priori que possuam, mesmo assim, sua gnese a partir da experincia. Dessa forma, pode-se dizer que argumentar sobre a questo de fato tambm responder parcialmente sobre o problema da legitimidade. Isso pode ser percebido pelo fato de Kant ter chamado de deduo metafsica a primeira parte da Analtica transcendental. Mas, deve car claro que, no caso dos conceitos puros do entendimento, a resposta para a questo de fato no equivale totalmente questo de direito, tal como acontece com os conceitos empricos. Por isso, armar que, ao se responder sobre a questo de fato das categorias, tambm se responde sobre a sua legitimidade, no signica dizer que no h distino entre a questo de fato e a discusso sobre a questo de direito, isto , sobre a legitimidade do uso das categorias. Contudo, na KrV, no necessrio que se explique totalmente como as formas puras do nosso conhecimento surgem em nossa mente, pois o objetivo geral no exige isso. Para responder questo de se possvel conhecimentos necessrios e universais sobre o mundo (sensvel e inteligvel), deve-se investigar sobre a questo de fato (quid facti) at o ponto de descobrir se possumos representaes que tm a pretenso de valerem universalmente e denir quais so.
Kant quer manter-se distanciado tanto da tradio empirista quanto da racionalista. Por um lado, as categorias no so abstradas da experincia, pois nesse caso elas possuiriam somente generalidade, isto , no seriam representaes a priori (necessrias e universais). Mesmo assim,
[...] segundo o tempo [...] nenhum conhecimento em ns precede a experincia, e todo o conhecimento comea com ela. Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experincia, nem por isso todo ele se origina da experincia. (KrV, B1).
Com efeito, nega-se s categorias a possibilidade de uma derivao siolgica como a de Locke. Por outro lado, Kant tambm nega que as categorias sejam inatas. Nesse caso, elas seriam conceitos gerais dos quais conceitos particulares seriam derivados atravs de procedimentos lgicos (princpio de contradio). Esses conceitos inatos devem ser implantados ou inseridos em nossa mente por uma instncia superior (um Deus, por exemplo), pois [as] nossas representaes precisam nos ser dadas antes de toda a anlise delas. ( KrV, B103). Contudo, para Kant, segundo o con tedo [as notas do conceito] nenhum conceito pode surgir analiticamente,
[...] pois a sntese que coleta propriamente os elementos em conhecimentos e os rene num certo contedo, sendo, portanto, o primeiro a que devemos prestar ateno se quisermos julgar sobre a origem primeira do nosso conhecimento. (KrV, B103).
Com efeito, onde o entendimento nada ligou antes no pode decompor nada. (KrV, B130). Por isso, as categorias, em um uso prreexivo, foram denidas apenas como regras de sntese e no como unidades analticas (conceitos lgicos). Querendo evitar mal entendidos, Kant volta a discutir essa questo de fato em um escrito posterior de 1790, a saber, na Resposta a Eberhard. Segundo ele, as categorias e as
Tambm sobre isso: Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento de experincia seja um composto daquilo que recebemos por impresses e daquilo que a nossa prpria faculdade de conhecimento (apenas provocada por impresses sensveis) fornece de si mesma, cujo aditamento no distinguimos daquela matria-prima antes que um longo exerccio nos tenha chamado a ateno para ele e nos tenha tornado aptos a abstra-lo. (KrV, B 1-2) ARgUMENTOs, Ano 2, N. 3 - 2010
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formas puras da sensibilidade surgem em nossa mente a partir de uma aquisio originria,6 por conseguinte, uma aquisio daquilo que antes no existia em modo algum, e que, por tanto, no pertencia nenhuma coisa, antes dessa ao. (E, AA 08, p. 221).
Mas deve haver, contudo, um fundamento para isso no sujeito, [fundamento] que faz possvel que as mencionadas representaes se originem assim, e no de outro modo e que, alm disso, podem se referir a objetos que no tm sido dados; e este fundamento, ao menos, inato. (E, AA 08, p. 221-122).
Esse fundamento inato no sujeito , no caso da sensibilidade, a receptividade. No caso do entendimento, a espontaneidade do pensamento (de acordo com a unidade da apercepo). Esse conceito de aquisio originria no pode ser compreendido descontextualizado da oposio existente entre as propostas empiristas e racionalistas.7 As questes levantadas acima so relevantes para compreender a tese que expressa no con texto da deduo transcendental, segundo a qual
[...]os conceitos puros falam de objetos no mediante predicados da intuio e da sensibilidade, mas do pensamento puro a priori, referem-se universalmente a objetos sem quaisquer condies da sensibilidade. (KrV, B120).
tos sensveis as nossas formas puras da intuio. Pode-se muito bem pensar que o conhecimento que temos da natureza de modo algum necessrio, mas, como sugeriu Hume, um mero produto contingente do hbito.8 A estratgia de Kant para comprovar que as categorias valem para o campo dos objetos fenomnicos vai ser o de mostrar que se elas no se aplicam a priori intuio dos fenmenos (mltiplo dado na sensibilidade), ento no se tem intuio alguma. No se pretende discutir aqui o procedimento de Kant na deduo transcendental, muito menos os seus argumentos, mas apenas apresentar os resultados gerais extrados da sua argumentao. Um dos pontos de partida de Kant foi assumir que o nosso entendimento uma faculdade discursiva, isto , uma faculdade que opera por meio de snteses (ligaes de um mltiplo em geral). Em outras palavras,
[...] a espontaneidade do nosso pensamento exige que [o] mltiplo seja primeiro e de certo modo perpassado, acolhido e ligado para que se faa disso um conhecimento. (KrV, B102).
Contudo, deve-se perceber que falar dos objetos por meio de conceitos no resolve ainda o problema das categorias valerem para esses objetos. Se na deduo metafsica, Kant discute uma questo de fato, na deduo transcendental discute o problema do uso legtimo das categorias enquanto fontes de um conhecimento a priori dos objetos. Pois a adequao dos objetos sensveis (fenmenos) aos nossos conceitos puros no algo to evidente quanto a adequao dos obje6
Alm disso, inicialmente tambm assumiu-se que entendimento e sensibilidade so faculdades distintas e irredutveis. Essa independncia permite a considerao do entendimento em separado de nossa sensibilidade (considerada nas formas espao-temporais). Mas, por outro lado, para se considerar o funcionamento do entendimento (enquanto faculdade discur siva), deve-se pressupor que um mltiplo seja dado. Por isso, Kant trabalha nos primeiros pargrafos da deduo transcendental com o conceito de uma intuio sensvel em geral (intuio sensvel representa que o mltiplo precisa ser dado alhures para ser sintetizado pelo entendimento; em geral na medida em que nosso entendimento independente de nossa sensibilidade). A partir disso, as categorias, consideradas sob um ponto de vista transcendental, seriam
O conceito de aquisio originria no foi empregado na KrV. Mas tambm no h nenhum indicativo de haja uma modicao das posies assumidas anteriormente. 7 Para possibilitar uma melhor compreenso dessa questo, Kant faz uma analogia com o jusnaturalismo. Mas, penso que essa analogia estabelecida somente at o ponto de termos de pensar a aquisio como algo que no existia antes do ato. No acredito que tenha-se um motivo para levar mais adiante essa relao pelo fato de que no mbito jurdico est-se as voltas com questes de fato, nas quais h a interferncia da vontade. Por mais que as categorias sejam um produto do sujeito, elas so produtos gerados de um modo totalmente independente da faculdade da vontade, isto , elas surgem e funcionam independentemente do indivduo quer-las.
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Pode-se dizer que o que entra em jogo na deduo transcendental das categorias o antigo problema da verdade como adequao entre o ser e o pensar. A soluo de Kant vai se dar sob a perspectiva do seu novo paradigma, isto , o problema da adequao entre o ser enquanto fenmeno e o pensar. ARgUMENTOs, Ano 2, N. 3 - 2010
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as regras de sntese de um entendimento (cuja inteira faculdade consiste em pensar e no em intuir) que necessita de um mltiplo que lhe seja dado alhures por uma intuio sensvel qualquer. J sob um ponto de vista meramente l gico, essas mesmas categorias so conceitos de um objeto em geral, isto , relacionam-se com objetos sem nenhuma restrio s condies da nossa sensibilidade. Em outras palavras, os conceitos puros do entendimento se relacionam com objetos de uma intuio em geral, cando indeterminado se se trata de nossa intuio ou de outra qualquer, desde que seja sensvel. Ora, disso segue-se a seguinte situao:
[...] [enquanto] condies da possibilidade como objetos podem nos ser dados, espao e tempo no valem mais que para objetos dos sentidos, por conseguinte da experincia. Alm desses limites, espao e tempo no representam absolutamente nada, pois esto apenas nos sentidos e fora destes no possuem realidade alguma. Os conceitos puros do entendimento esto livres dessa limitao e se estendem a objetos da intuio em geral, seja esta semelhante a nossa ou no. Contanto apenas que seja sensvel e no intelectual. (KrV, B148).
um mltiplo para sintetizar. Porm, a nica maneira pela qual podemos receber um mltiplo atravs da sensibilidade. Isso faz com que as categorias somente adquiram realidade no campo da nossa sensibilidade espao-temporal. Assim, Kant continua o texto acima citado:
[...] [esta] ulterior extenso dos conceitos para alm da nossa intuio sensvel no nos serve a nada. Com efeito, trata-se ento de conceitos vazios de objetos dos quais no podemos de modo algum julgar, mediante tais conceitos, se so alguma vez possveis ou no; trata-se da simples forma de pensamento sem realidade objetiva, pois no dispomos de nenhuma intuio qual pudesse ser aplicada a unidade sinttica da apercepo que unicamente aqueles conceitos contm, de modo que lhes fosse possvel determinar um objeto. Somente nossa intuio sensvel e emprica pode proporcionar-lhes sentido e signicado. (KrV, B148).
Com efeito, o campo das categorias muito mais abrangente do que o campo das formas puras da sensibilidade. Por campo compreende-se a relao entre um conceito e os seus objetos, sendo desconsiderada a questo de saber se ou no possvel um conhecimento desses objetos ou mesmo se eles existem. (KU AA 05, p. 174 ). Por campo pode ser entendido a extenso lgica de um conceito, no sentido das representaes que caem sob ele. Fica indeterminado se a estas representaes pode ser atribuda realidade objetiva. Assim, as nossas formas puras da sensibilidade referem-se a objetos espao-temporais, j as categorias, a objetos sensveis em geral. Contudo, pelo fato das categorias se estenderem de certa maneira mais alm da nossa intuio sensvel, no signica que elas determinam com isso uma esfera maior de objetos, isto , que elas tenham um uso prprio. No sentido meramente lgico de campo, as categorias so apenas as formas de um pensamento de objetos em geral. Formas vazias pelas quais nenhum objeto determinado conhecido, pois, para isso, necessrio que nosso entendimento receba
Na medida em que nossa intuio sensvel oferece um mltiplo ao entendimento, ela possibilita que as categorias exeram a sua funo de regras de sntese, isto , a de determinar o mltiplo da nossa intuio sensvel no tocante a uma das funes lgicas dos juzos (Cf. KrV, B128). Somente no campo da nossa sensibilidade as categorias encontram um uso prprio. Assim, a parte do campo das categorias no qual elas exercem seu domnio de mesma amplitude que o campo e o domnio das formas puras do espao e do tempo. Por domnio das categorias entende-se a extenso de objetos nos quais elas ditam suas leis, isto , valem. De forma semelhante, as categorias, tomadas enquanto conceitos lgicos, s adquirem sentido e signicado no campo da experincia possvel. Mas, em o utras passagens da KrV armase que as categorias possuem uma signicao mais ampla que as nossas formas puras da sensibilidade. Para esclarecer esse ponto necessrio considerar algumas distines realizadas no decorrer do texto. Segundo Kant, deve-se distinguir entre signicado lgico e signicado real de uma categoria (KrV, B185-187). Por signicado lgico compreende-se o contedo (as notas) que as categorias possuem levando-se em conta uma sensibilidade em geral. Nesse caso, elas no determinam objeto algum, mas somente representam as formas do pensamento e do objeto em geral. Um exemplo disso o signicado
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puramente lgico da categoria de substncia no qual ela apenas o conceito de algo que pode existir como sujeito, mas jamais como simples predicado. (KrV, B149). Porm, a partir disso jamais podemos compreender que espcie de coisa propriamente entendida por tais conceitos. s vezes, chama-se tambm o signicado lgico de signicado transcendental (KrV, B305). Por outro lado, as categorias possuem um signicado real quando se referem a nossa sensibilidade (pois somente ela pode nos oferecer um mltiplo a ser sintetizado), por conseguinte, experincia (seja ela real ou possvel). Nesse caso, as categorias assumem um signicado real pelo fato de se referirem a objetos que podem ser determinados, ou seja, a fenmenos. Um exemplo disso o signicado (uma nota) que a categoria da substncia adquire (alm do signicado lgico) quando se vincula com as formas puras da nossa sensibilidade, a saber, o conceito de permanncia (conceito de algo que permanece no t empo). Sobre essa distino pode-se sobrepor outra de mesma extenso, a saber, as categorias, de um lado, como formas do pensamento, de outro, como formas do conhecimento de objetos (Cf. KrV, B146). Isso equivale distino entre o campo do pensamento (no qual as categorias relacionam-se com seus objeto) e o campo do conhecimento (no qual as categorias legislam sobre objetos, isto , estabelecem um domnio), sendo o segundo um subconjunto do primeiro. Nesse sentido, pensar um objeto possuir um conceito ao qual no pode ser dado objeto algum, isto , um conceito ao qual no se pode referir a nenhuma intuio (logo, encontrando-se fora do campo da experincia possvel, isto , fora do domnio das categorias). Conseqentemente, no propriamente um pensamento de algo determinado, mas somente pensamento segundo a forma, isto , pensamento de um objeto em geral. Nesse mbito as categorias possuem apenas signicado lgico. De outro lado, conhecer um objeto signica vincular a categoria a uma intuio correspondente. Nesse mbito podese dizer, em sentido prprio, que h pensamento de objetos (determinados). Nessa perspectiva Kant dene pensamento como a ao de referir uma intuio dada a um objeto (KrV B 304). No mbito do conhecimento (efetivo e possvel) as categorias possuem um signicado real. Mas, h ainda uma distino mais fundamental, pois sobre ela sustentam-se as duas anteriores (signicado lgico signicado real;
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campo do pensamento campo do conhecimento). Segundo Kant, de um ponto de vista lgico, pode-se distinguir entre um uso transcendental e um uso emprico das categorias. Um uso transcendental das categorias seria aquele em que as categorias seriam usadas para determinar objetos independentemente da nossa intuio sensvel, isto , para determinar objetos em geral. Conseqentemente, seriam conceitos de objetos tais como eles so em si mesmos e no como eles nos aparecem. O uso emprico das categorias aquele em que as categorias so referidas experincia, isto aos fenmenos. Esse uso nos permite apenas representar os objetos tal como eles so para ns (pois esses objetos nada mais so do que o mltiplo dado pela sensibilidade subsumido, por meio das categorias, a unidade da apercepo) e no como so em si mesmos. Quanto questo da legitimidade de tais usos Kant claramente arma que
[...] espera-se que ningum esteja em dvida quanto a se decidir sobre a questo se tais conceitos puros do entendimento so de uso meramente emprico ou tambm transcendental, isto , se enquanto condies de uma experincia possvel simplesmente se referem a priori a fenmenos ou se enquanto condies da possibilidade das coisas em geral podem ser estendidos a objetos em si mesmos (sem nenhuma restrio nossa sensibilidade). Com efeito, em tal deduo [deduo transcendental] vimos que os conceitos so inteiramente impossveis e no podem ter nenhuma signicao onde no for dado um objeto a eles mesmos ou pelo menos aos elementos dos quais consistem, no podendo portanto dizer respeito a coisas em si (sem considerar se e como possam nos ser dadas); que alm disso a modicao de nossa sensibilidade o nico modo pelo qual objetos nos so dados. (KrV, B178).
Assim, a condio para o uso objetivo dos conceitos puros do entendimento, logo, para expresso de um signicado real e constituio de conhecimento de objetos, justamente o modo da nossa intuio sensvel (espao-temporal) pelo qual o mltiplo nos dado. Ora, a partir disso, pode-se dizer que a investigao em separado das faculdades de conhecimento na KrV, a sensibilidade na Esttica e o entendimento na Analtica, tem apenas a funo de exposio e
identicao das representaes que surgem de uma maneira independente em cada uma delas. Entretanto, essa separao no legtima para ns da legitimao do uso dessas faculdades para o conhecimento.
de um pressupe a admisso do outro. Mas, esse par conceitual ocorre somente pelo fato de possuirmos faculdades distintas responsveis pela intuio e pelo pensamento. Um intelecto intuitivo no faria distino entre fenmeno e noumenon. O conceito de noumenon pode ser to mado ainda em duas signicaes ou acepes, uma positiva e outra negativa. Essa distino pode ser estabelecida de acordo com a espcie de intuio pressuposta. Quando se fala de noumenon em sentido negativo, pensa-se uma coisa tal como ela seria independentemente das condies da nossa sensibilidade, isto , pensa-se uma coisa abstraindo-se do nosso modo de intu-la. Mas, ainda assim, precisa-se pressupor que essa coisa tenha que ser dada de algum modo (por uma faculdade distinta da qual ela pensada), o que faz com que ela possua uma referncia a uma sensibilidade sensvel em geral. Quando se fala de noumenon em sentido positivo pensa-se uma coisa tal como ela seria se fosse intuda por uma intuio de espcie distinta da nossa, uma intuio no-sensvel, ou seja, intelectual.9 Pelo fato das categorias serem regras que surgem no entendimento de um modo independente da nossa sensibilidade, foi possvel (no contexto da deduo transcendental) estender o campo das categorias aos objetos de uma sensibilidade sensvel em geral. A partir disso, podese dizer que o noumenon, em sentido negativo, isto , o conceito de um objeto de uma sensibilidade sensvel em geral, pode ser pensado por meio dos conceitos puros do entendimento. Porm, como foi visto anteriormente, na falta de um mltiplo dado por uma sensibilidade, no h propriamente nenhum uso das categorias e, por conseguinte, nenhuma signicao real. Permanece somente o signicado lgico, isto , a funo lgica do conceito que no possui por si mesma nenhuma realidade objetiva.10
Essas denies no so algo sempre constante. Ao menos uma vez, em KrV, B 342, essas denies se encontram totalmente invertidas (tal como esto apresentadas em KrV, B 307-308), isto , o noumenon em sentido negativo apresentado como o objeto de uma intuio de espcie distinta da nossa. Tambm nos Prolegmenos 32, quando Kant fala dos noumena se refere objetos de uma intuio no sensvel. Porm, apesar dessas diferenas, sempre preservou-se a concepo de que os noumena so objetos problemticos, isto , logicamente possveis, mas nem por isso pressupostos como existentes. Sobre isso: [...] o objeto de um conceito para o qual no se pode obter absolutamente nenhuma intuio correspondente = nada, isto , um conceito sem objeto, como os noumena, que no podem ser contados entre as possibilidades, embora nem por isso tenha que fazer-se passar por impossveis (ens rationis) [...]. (KrV, B 347). 10 Cf. Esta ulterior extenso dos conceitos para alm de nossa intuio sensvel no nos serve de nada. Com efeito, trata-se ento de conceitos vazios de objetos dos quais no podemos de modo algum julgar, mediante tais conceitos (...); trata-se de simples formas de pensamento sem realidade objetiva [...] ( KrV, B148) ARgUMENTOs, Ano 2, N. 3 - 2010
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J o conceito de noumenon em sentido positivo representa os objetos de uma sensibilidade de espcie distinta da nossa, isto , que fosse ativa em relao ao objeto. Isso nos leva a pensar em um entendimento intuitivo.
Com efeito, se eu quisesse pensar um entendimento que intusse ele mesmo (como, por exemplo, um entendimento divino, que no se representasse objetos dados, mas mediante cuja representao os prprios objetos fossem ao mesmo tempo dados ou produzidos), ento as categorias no teriam signicao alguma no tocante a um tal conhecimento. (KrV, B145).
Em outras palavras, em relao aos objetos de um entendimento intuitivo, as nossas categorias, enquanto regras de um entendimento discursivo, no possuem nenhum signicado, nem mesmo lgico.11 Para ns, tal intelecto seria mesmo um problema, visto que no podemos nem mesmo entrever a sua possibilidade.12 Por isso, na teoria kantiana do conhecimento, somente o conceito do noumenon em sua acepo negativa pode ser admitida. Alm do conceito negativo de noumenon decorrer naturalmente dos pontos de partida assumidos, esse conceito tambm possui uma funo terica indispensvel para a losoa transcendental.13 A sua funo evitar que a nossa sensibilidade seja estendida at as coisas em si mesmas, visto que ele mantm aberta a possibilidade da existncia de sensibilidades distintas da nossa. Uma vez que a nossa sensibilidade fosse tomada como a nica possvel, isso seria o mesmo que dizer que todo o campo das coisas em si mesmas equivale ao campo dos fenmenos, isto , que o campo do pensamento tem a mesma extenso que o campo das nossas intuies. Portanto, o conceito de noumenon no inventado arbitrariamente, mas liga-se diretamente com a restrio da nossa sensibilidade.
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Nesse sentido, pode-se dizer que o conceito de noumenon um conceito limite, pois sua funo restringir, isto , limitar a extenso da nossa sensibilidade e, por conseguinte, o campo dos fenmenos. Deve-se notar que o noumenon, enquanto conceito limite, no pode estar alm do limite, isto , enquanto conceito que representa o nosso conhecimento dos limites do nosso conhecimento, ele ainda deve poder ser conhecido. Por isso, pode-se dizer que o conceito de noumenon no apenas um conceito limite, mas um conceito no limite (HAMM, 2002). Porm, o conhecimento desse conceito, que se encontra no limite, se restringe ao noumenon na acepo negativa, pois em seu signicado positivo, no podemos compreender sua possibilidade (visto que no temos outra intuio alm da sensvel). Assim, o conceito de noumenon no se refere propriamente objetos, pois ele representa justamente o conceito problemtico de um objeto. Esse conceito foi necessariamente admitido pela filosofia transcendental, mas somente enquanto limitao de uma regra que no admite exceo, a saber, que o campo do nosso conhecimento possvel est limitado ao campo dos fenmenos (que nada mais so que os objetos da nossa sensibilidade). Isso signica apenas que o conceito de noumenon um conceito no contraditrio, visto que no se pode armar que a nossa sensibilidade seja o nico modo de intuio possvel.
Ora, a possibili dade de uma coisa no pode jamais ser provada a partir da nocontradio de um conceito, mas somente e enquanto este documentado mediante uma intuio que lhe corresponda.14
Em virtude desse conceito no poder ser referido a nenhuma intuio, todas as nossas ca-
Cf. [Noumenon] no ele um peculiar objeto inteligvel para o nosso entendimento; mas um entendimento que o possusse como tal seria mesmo um problema, ou seja, um poder de conhecer no discursivamente mediante categorias, mas intuitivamente em uma intuio no sensvel o seu objeto, de cuja possibilidade, contudo, no poderamos formar-nos a mnima representao. (KrV, B312). 12 Cf. Se, todavia, entendemos por ele um objeto de uma intuio no sensvel, ento admitimos um modo peculiar de intuio, a saber, a intelectual, que, porm, no a nossa e da qual tampouco podemos entrever a possibilidade. Este seria o noumenon em signicao positiva. (KrV, B307). 13 Mais do que isso, pode-se dizer que o conceito de noumenon propriamente uma vantagem da losoa transcendental em relao ao empirismo, pois ele fruto de uma investigao que delimita o campo total do conhecimento possvel. H [...] uma vantagem [...] de tal investigao transcendental, a saber, que o entendimento que se ocupa unicamente com o seu uso emprico e no reete sobre as fontes do seu prprio conhecimento pode muito bem progredir, mas uma coisa no pode absolutamente realizar, ou seja, determinar para si mesmo os limites do seu uso e saber o que pode situar-se dentro ou fora de sua esfera total. (KrV, B297) 14 Tambm sobre isso: Com efeito, a iluso de tomar a possibilidade lgica do conceito (j que ele no se contradiz a si mesmo) pela possibilidade transcendental das coisas (j que ao conceito corresponde um objeto), pode enganar somente pessoas inexperientes. (KrV, B302).
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tegorias no possuem em relao a ele nenhuma signicao real. Por isso Kant arma que
[...] o conceito de noumenon problemtico, isto , a representao de uma coisa com respeito qual no podemos dizer nem que seja possvel nem que seja impossvel.15
dos fenmenos. Alm disso, justamente essa ampliao negativa do entendimento para o campo noumnico que possibilitar a losoa transcendental garantir a pensabilidade da liberdade transcendental e, por conseguinte, resolver a terceira antinomia, por exemplo.
Portanto, o conceito de noumenon em sentido negativo representa apenas um conceito totalmente indeterminado de um objeto em geral, que no pode ser confundido com um conceito determinado de uma coisa que poderamos conhecer unicamente por meio do entendimento. Com efeito, no nos permitido realizar uma classicao ontolgica dos objetos em phaenoumena e noumena.16 Para que isso fosse possvel, deveramos ter condies de atribuir um signicado ontolgico ao conceito de noumenon. Ora, isso somente poderia ser realizado caso se garantisse realidade objetiva a esse conceito, isto , se ele fosse referido a uma intuio correspondente, justamente o que foi demonstrado ser impossvel pela losoa cr tica. Mas, por outro lado, como foi visto acima, tambm no podemos negar de modo absoluto a existncia do noumenon, pois, para isso, deveramos pressupor que a nossa sensibilidade seja a nica possvel, algo que no estamos em condies de sustentar. Como concluso, pode-se dizer que o conceito de noumenon no representa uma esfera de objetos que possamos determinar por meio das categorias. Para que isso fosse possvel deveramos possuir outro modo de intuio alm do sensvel. Mas isso no nos autorizado de maneira alguma. Assim, o conceito de noumenon representa apenas uma ampliao negativa ou problemtica do nosso entendimento, pois uma ampliao para uma esfera vazia de objetos, na qual tem-se apenas as puras formas do pensamento (que nada mais so que as categorias em seu signicado lgico). Por outro lado, esta ampliao necessria, pois garante que a nossa sensibilidade no se estenda ilegitimamente para alm do campo
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Referncias Bibliogrcas
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Denomina-se problemtico um conceito que no contenha nenhuma contradio e que alm disso como uma limitao de conceitos dados ligue-se a outros conhecimentos, cuja realidade objetiva, porm, no possa de modo algum ser conhecida. (KrV, B310) Em outras palavras, o conceito de noumenon representa para ns somente um objeto indeterminado (que expressa apenas as funes lgicas de um objeto em geral, isto , mantm apenas o signicado lgico das categorias), mas que, alm disso, deve ser considerado problemtico pelo fato de no podermos excluir a possibilidade dele ser um objeto para uma outra espcie de aparato cognitivo. Essa tese tambm defendida por Allison (1983). ARgUMENTOs, Ano 2, N. 3 - 2010
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