terça-feira, 29 de maio de 2012

DEIXO QUE A LUA SE INSTALE EM MINHA PELE



 
Imagem de Carol Knudsen


Surpreendida por um caminho sem tempo,
deixo que a lua se instale em minha pele,
lasciva e húmida. Habito uma ilha suspeita
de servir de abrigo a veleiros perdidos.
E digo: há um mar horizontal na solidão
de uma mulher, com as mãos cansadas
de sulcar distâncias em caminhos de espuma.



Graça Pires






Imagem Google

 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

TEMPESTADES




Ouço os pássaros daqui
de onde estou.
Sei lá se somos o que dizemos
ou apenas aquilo que restou de nós
depois da tempestade.

Cada um de nós traz uma tempestade
por dentro dos olhos,
colada no peito,
cada um de nós traz um fogo manso
a arder-nos nas mãos,
a transir-nos no leito.

Ouço os pássaros daqui
de onde estou,
ou serão os meus olhos
que vejo voar depois da tempestade?
Ou serão as minhas asas pardas
a arder-me no dorso,
num tempo sem idade,

na minha insanidade. 



Alexandra Malheiro








Imagens Google

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O CANTO




Nasce o sol, alto e quente como um riso,
e logo, logo
desde o eco dos instantes suspensos
na margem das flores,
nas cores do canto de maio,
os jardins vestem ecos de alegria
e deslumbramento.

Do alto
chega o canto branco da pureza.
E no entardecer dos gestos,
esquecidas as asas, sonho de luz acesa
enquanto um longo suspiro me esvazia.

A preencher o canto azul do mar,
há horas inventadas, horas de maresia.

E à minha espera, 
um oceano imenso não cessa de cantar.



Maripa






Imagens Google

terça-feira, 22 de maio de 2012

QUERO DAR-TE





Quero dar-te a coisa mais pequenina que houver
bago de arroz
grão de areia
semente de linho
suspiro de pássaro
pedra de sal
som de regato
a coisa mais pequena do mundo
a sombra do meu nome
o peso do meu coração na tua pele.


Rosa Lobato de Faria








Imagens: Carol Knudsen


domingo, 20 de maio de 2012

A TAÇA DAS TUAS MÃOS





A taça das tuas mãos

traz-me numa taça 
a água fresca do dia,
quando o vento se liquefaz
sob o meu olhar atento,
e o meu corpo é menos carne do que vento
porque minha alma lá dentro não cabia,
excessiva, enorme.

Vá, toca-me ao de leve com tuas mãos
para que a tarde sobre mim se entorne.


António Simões






Imagens Google

sexta-feira, 18 de maio de 2012

DANÇA





Porque teus passos festejam
a graça de serem rios
onde o teu corpo liberta
os corpos que vai lembrando
de neles pousar o tempo,
de neles romper o sol
da tua carne cantando;

e há mil crianças possíveis
sob as tuas mãos pensadas
pelos anjos da ternura;
porque vais perto da fonte
que desce não sei que prados
entre o silêncio e o olhar,

te cercam todos os mundos
tudo o que vive e procura
um centro para cantar!





Vítor Matos e Sá

















Imagens Google


 

quarta-feira, 16 de maio de 2012

DE LUAR EM LUAR







De luar em luar
a brisa salgada estremece no colo do vento.

Eu estremeço
e o pensamento voa ferido de melancolia.
Como um pássaro, poisa aqui, ali, além,
sem se deter
sem dar descanso aos sons, às cores,
às vozes [de paladar diferente] dispersas em mim.

Estremeço com as sombras que se insinuam,
se misturam e dançam coreografias perturbantes,
na sua nudez quase transparente,
quando procuro a minha paz.

Quando procuro a minha paz
anseio a insustentável leveza da onda a morrer na praia
e o eco da minha saudade.

Saudade, umas vezes, andorinha, outras, gaivota.




Maripa



 





Imagens Google

segunda-feira, 14 de maio de 2012

AS MÃOS PRESSENTEM







As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar




Al Berto









Imagens Google 

quinta-feira, 10 de maio de 2012

CERTIDÃO DE NASCIMENTO





Deixe as nuvens nos cantos
dos olhos e as mãos vazias.
Guarde as teias de aranha
nas caixas atrás da cama.
Esqueça tudo que já foi dito
por quem desconhece
as tuas chamas.

Acenda as flores,
apague as linhas tortas
que ainda te prendem.
Vire a mesa com delicadeza.
Algo te espera
dentro de alguém.
Algo é apenas luz e sofreguidão.

Exerça os músculos 
dos teus braços e do teu coração
sem pressa,
sem fome.

Teu nome é estrela
a partir de agora. 




Karla Bardanza

Imagens: Google






 

terça-feira, 8 de maio de 2012

NAS MÃOS, APENAS O PERFUME...




Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?


Mia Couto

Imagem: Google


segunda-feira, 7 de maio de 2012

CREPÚSCULO





 Arranco as pétalas dos malmequeres
num desespero infantil 
de bem me quereres.

Relembro os dias de vento
em que um guarda chuva 
nos protegia aos dois.

E a cidade indiferente
ao nosso passo apressado.

E o lusco-fusco
numa imensidão de céu
um café
e o silêncio
das conversas inacabadas.

Depois,
a distância que inventei
num comboio sem regresso.

E o sorriso triste
que me deixaste
sinto-o
em cada gota de chuva
sem chapéu.




AnaMar (pseudónimo)

Imagens: Marjo&Beau e Dreamstime





domingo, 6 de maio de 2012

POEMA À MÃE




No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou 
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo,
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como amo ainda as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.



Eugénio de Andrade




quarta-feira, 2 de maio de 2012

DÁ-ME DE BEBER...

Imagem: Kein Weissblum



Dá-me de beber em tuas mãos
uma nesga do céu
sem coares as nuvens... que passam.
Morde (se quiseres)
a romã entre a rosa e o amanhã.
Prisioneira de um mito
liberta-me (se quiseres)
na próxima primavera:
puxa-me as verdes tranças
arrebata-me do trono e de seu rei obscuro.
Leva-me (se quiseres) em teus braços
para onde fores e seremos primavera.
As primícias serão tuas:
as mais belas campânulas
tilintando ouro ao sol
prata sob a lua.
O que dizer do que seremos
se mudamos a cada gesto?
Dança pura.
Dá-me de beber em tuas mãos
uma nesga do céus
em coares as nuvens que passam.



Dora Ferreira da Silva




Imagem: Susan Gary