"Assim me foi contado:
Menino bonito, nascido no meio dos tempos de Biafra. Não houve queima de fogos no seu nascimento, nem se comemorou os seus 45 anos de existência. Nasceu na fome, mas era gorducho, educadinho, bem comportado. Até que cresceu.Quando pequeno, pesava que nem chumbo. Sua pobre irmã criou calombo nas costas por ter que carregá-lo, fazê-lo dormir, dar mamadeiras de 150 ml de água adicionados a 50ml de leite. Mas se salvou das tempestades do destino. Criou barba, músculos e foi enlevado pela burrice crônica. Impossível ser diferente. Era o seu tempo de escolher. E escolheu.
A maldade o selecionou por estes atributos: bonito, forte e burro. Ingredientes necessários para obedecer. E assim se foi para a Base Aérea de Belém, para o treinamento da tropa especial que, entre outras tarefas, fazia segurança à Presidência, então ocupada pelo nada saudoso Ernesto Geisel (arg!). As práticas eram humilhantes e ao mesmo tempo estimulantes para um menino dos tempos de Biafra.
As mangueiras de Belém sabem que sua irmã não mente e lhe servirão de testemunhas. Os ordenamentos da sargentalha diziam: atire em sua própria sombra.Menino-irmão bonito, educado e amoroso. Agora perdido, atirava nele mesmo, ou seja, em sua sombra. As madrugadas de Belém sabem explicar. Ora, se era possível matar a si próprio, por que não a outro? E a outro matou.
Menino gordo, burro e adestrado, saiu do tempo e dos templos da redentora outro menino: mais obeso, mais burro e mais alienado. Ainda tinha resquícios de ternura. Poucos, mais tinha. Sofria de pesadelos e manias de perseguições. Ainda pedia a benção.
– Bênção, mana?
– Deus lhe abençoe.
Um abençoar mal humorado, já que aquele não era o seu menino. Era o menino dos amaldiçoados.Não era o fofucho, alimentado com papa de polvilho doce, elástica e grudenta, enrolada no dedo, sem colher, sem nada, com muita graça levada diretamente em sua boca. Sempre lhe mordia e ria. Ria sem parar. Safado!Menino bonito, escute um desabafo:
"Coitado! Deus o puniu assim, na minha frente. Era o destino. Quando chegar no céu, vou lhe segurar novamente, mesmo que ainda seja forte como um touro. Mesmo que as minhas costas fiquem encalombadas. Vou lhe balançar na rede. Contar histórias da Dona Baratinha, dos Três Porquinhos, as fábulas de Esopo e do La Fontaine, as peraltices das fadas e as catrepagens das feiticeiras, as belezuras de João e Maria, e aumentarei o tamanho do Pé de Feijão. Por ele subiremos, certo?
A do Lobo Mau, essa eu não conto, tá bom? Vou estar disposta a encenar todinhas, usando lençóis para vestir os fantasminhas, engrossar ou afinar a voz nos arremedos, desenhar máscaras, entoar modinhas, enfim, montar o teatrinho de brinquedo, dizendo verdades de meu amor. Meu menino, você nunca foi feio. Foi tudo um pesadelo.
Deus lhe abençoe, viu?
Aproveite que estou de bom humor".
Putz!
Leila Jalul, procuradora aposentada da Universidade Federal do Acre. Autora de Suindara (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora LTDA, 2007) e Absinto Maior (2007)
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