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sábado, 7 de setembro de 2024

Carta de Bruxelas - 24.

 




                                 Para assinalar 11 meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023

 

Na sequência dos distúrbios e dos tumultos de 1848, em algumas regiões do Kraichgau, a reacção contra a emancipação dos judeus produziu um resultado paradoxal. Forçaram os judeus a assinarem um documento em que renunciavam à sua quota-parte de direitos iguais na comunidade. Considerava-se, dessa forma, que a sua palavra era igual apenas e na medida em que desmentia a igualdade. Uma contradição que, por ser institucional, não põe menos a nu o inverosímil. Trata-se da versão salonfähig das arruaças, como o pogrom em que testemunhas juraram que um judeu defenestrado continuava sentado ao piano e a tocar – enquanto ia pelos ares. Houve até uma testemunha que pretendeu reconhecer a música tocada.  O delírio vence a realidade. Essa é a sementeira. Advinha-se a colheita.

 

                                                            João Tiago Proença


quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Carta de Bruxelas.



 

             Para assinalar 10 meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023



Em 22 de Março de 1938, Franklin Roosevelt lança da sua casa em Warm Springs, Geórgia, o projecto de uma Conferência Internacional para os Refugiados.  Ao mesmo tempo, instrui Cordell Hull, ministro dos Negócios Estrangeiros, para comunicar aos embaixadores americanos que as quotas de imigração para os EUA não serão aumentadas. Estava dado o mote. Tratava-se apenas de uma cortina de fumo para salvar as aparências. Num momento em que se pretendia salvar 650 000 judeus do Reich, da Áustria e dos Sudetas, os ingleses fazem saber ao embaixador americano, Joseph Kennedy, que as palavras «judeu» e «Palestina» não deverão nunca ser usadas nas sessões da conferência. A Suíça recusa que a conferência se realize no seu território. A França propõe então Évian-les-Bains, do outro lado do lago Léman. As actas mostram toda a má fé das nações e o abandono a que são votados os judeus. Em Berlim, ninguém se engana sobre o resultado, a imprensa titula: «Judeus à venda – mesmo a preços baixos ninguém os quer». Ninguém os quis. Particularmente instrutiva é uma observação do representante da Austrália : «O meu país não conhece nenhuma situação de racismo, não queremos que isso comece.»  Como ontem, hoje: sem judeus o mundo não conheceria o mal. 


                                                            João Tiago Proença





domingo, 4 de agosto de 2024

Israel e Palestina, as hecatombes em Gaza e Israel, não confundir a árvore com a floresta.

 



“A hecatombe de Gaza insere-se na longa série de hecatombes que devastaram as regiões do Norte de África e do Médio Oriente, suscitando uma compaixão universal de geometria variável – desde o massacre dos arménios da Turquia, em 1915, os curdos gazeados em Halabja, no Iraque, por Saddam Hussein, em 1988, as matanças interconfessionais durante a guerra civil libanesa, entre 1975 e 1990, as carnificinas da década negra da jihad na Argélia durante a década de 1990 e os banhos de sangue no Iémen a partir do verão de 2014, às devastações étnicas no Sudão. A qualificação de genocídio, que na utilização que lhe é dada no Ocidente parecia reservada ao extermínio dos judeus pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial, constitui na atualidade uma questão política considerável.

Aplicada a hecatombe de Gaza, tem como objetivo categorizar a matança causada por Israel como sendo cometida por um intruso ocidental no Médio Oriente e, assim, é especificamente culpável porque se inscreve na linhagem dos crimes da colonização e do imperialismo.”

Holocaustos, por Gilles Kepel, página 116.

 

Gil Kepel é porventura o politólogo arabista francófono mais conceituado, atenda-se ao seu acervo bibliográfico, traduzido em cerca de vinte línguas. Holocaustos, Israel, Gaza e a guerra contra o Ocidente, Publicações Dom Quixote, 2024, tem como ponto de partida os atos sanguinários de 7 de outubro de 2023, em território israelita, praticados pelos Hamas, e a resposta israelita. O seu ensaio não se escuda dos eventos do ataque do Hamas e da resposta israelita, a sua leitura é da longa duração, a linha do conflito, tem blocos de um lado e do outro, houve outrora a Guerra Fria e no espaço em que a geopolítica e geoestratégia mundiais se alteraram, configurando-se um Norte identificado com o mundo ocidental, e um Sul global, onde se amalgamam a China e a Rússia e outros países que fazem parte dos BRICS, caso do Brasil, Índia, Arábia Saudita e Etiópia, qualquer coisa como 46% da população mundial. O ensaio tem “o objetivo de colocar em perspetiva de longa duração as efemérides de Israel e de Gaza, e os locais da memória do conflito na geografia regional e na geografia universal. Em quatro capítulos, analisam-se sucessivamente as lógicas do pogrom do Hamas, as contradições de Israel ao invadir e bombardear Gaza, as tensões extremadas do contexto regional em torno do ‘eixo de resistência’ conduzido a partir de Teerão, e a nova guerra mundial contra o Ocidente combatida na frente dos valores morais e na demografia política por alguns, que se exprimem em nome de um Sul global que é mais heterogéneo e conflituoso do que desejariam.”

Os acontecimentos de 7 de outubro de 2023 atingiram proporções mais do que dramáticas, foi o mais importante massacre de israelitas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Na visão dos fundamentalistas islâmicos, foi um ataque bendito, prende-se com a usurpação sacrilíaca da Palestina por Israel, é uma longa história que Kepel descreve de forma exímia e rigorosa até à atualidade. Por detrás do Hamas está o líder Yahya Sinwar, o palestino que enganou Benjamin Netanyahu, julgava este líder fanático que graças ao apoio do Catar a Faixa de Gaza se manteria calma, apesar daquele caldeirão de mais de 2 milhões de habitantes num espaço tão exíguo. O Hamas não é uma entidade solúvel, recebe diferentes apoios desde o Irão ao Iémen. Kepel explica-nos quem é Sinwar, como é líder incontestado, e observa que para reconstituir o processo complexo que conduziu ao 7 de outubro, é preciso colocar em perspetiva a história do movimento islamita-palestiniano, apanhado, em primeiro lugar, entre o nacionalismo árabe e o Estado sionista, mais tarde entre o sunismo conservador da península arábica e o xiismo revolucionário iraniano, e, por fim, com a aproximação decisiva a este último realizada pelo seu ramo estabelecido em Gaza, que ele disseca com clareza, documentado como está; passa igualmente em revista o que se alterou com as Primaveras árabes.

As gerações de políticos que governam Israel pouco ou nada têm a ver com as que fundaram o Estado hebraico; o fundamentalismo sionista campeia, não quer reconhecer a Palestina, quer ocupar todos os espaços com colonatos, os supremacistas judeus reivindicam que Israel se torne num Estado teocrático, regido em exclusivo pela lei bíblica e pela anexação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Netanyahu resiste a todas as pressões para abandonar o poder, sabe que o processo que lhe é movido o levará à cadeia; tal como aconteceu com o antigo Presidente da República e o antigo primeiro-ministro. O Hamas também aproveitou habilidosamente as dissensões internas e mostrou que a capacidade de Israel em proteger os judeus de forma estrutural era um mito. Kepel expõe um argumento pouco versado à análise do conflito israelo-palestiniano: a demografia dos partidos religiosos, explica claramente quem são estes fundamentalistas sionistas que enformam o racismo em Israel: “A geração de sionistas religiosos que atualmente está junto do topo do poder nasceu na década de 1980 e vive com a obsessão de uma radicalização mais forte do que a dos seus antepassados. Bezalel Smotrich, um advogado de 43 anos, filho de um rabino e colono da Cisjordânia, onde mora numa casa construída ilegalmente, pensa, nem mais nem menos, que os palestinianos devem ir-se embora, serem mortos, ou servir os judeus se permanecerem na Terra Prometida. O seu colega Itamar Ben-Gvir, de 46 anos, morador na colónia ultrarradical de Kiryat Arba, perto de Hebron, militou desde os 14 anos no partido racista e violento Kach, do rabino Kahane, o que lhe valeu ser rejeitado pelo Exército. Deixou-se fotografar a tentar forçar a entrada na mesquita de Al-Aqsa enquanto membro do Knesset, de pistola em punho.” Para compor o puzzle, Kepel dá-nos a visão do judaísmo norte-americano e articula esta visão com a hostilidade à posição israelita depois do 7 de outubro como se viveu no mundo universitário norte-americano que lançou uma crise inédita na mais destacada das universidades norte-americanas, Harvard. “O conflito entre Israel e o Hamas, ao dividir a universidade mais prestigiosa do mundo, tinha por fim revelado as contradições existentes entre os Estados Unidos, o Estado judaico e o Médio Oriente.”

Neste mundo em que já não há Guerra Fria, há blocos constituídos. Numa tentativa de marginalizar, Trump, os chamados Acordos de Abraão procurou criar uma vasta zona comercial sob a égide dos Estados Unidos, usando como testa de ponte os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein, Marrocos e o Sudão, não funcionou, os parceiros como a Arábia Saudita e a Turquia exigem sempre que essa maré de progresso exige logo à partida a salvaguarda dos direitos do povo palestiniano.

Sendo hoje Israel o Estado mais odiado no mundo, ninguém no Ocidente, tirando os EUA, lhes dão beneplácito político (a despeito de se manterem os bons negócios, com armas e tudo), o Sul global, que pretende constituir-se como uma ampla frente para disputar a supremacia aos EUA é, paradoxalmente constituído por regimes iliberais, onde pontifica a ditadura pura.

Um ensaio magistral para um conflito que continua sem fim à vista.

 

                                                                        Mário Beja Santos

 

domingo, 7 de julho de 2024

Para assinalar nove meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023.

 


Os pogroms de 1819 foram o primeiro caso de violência anti-semita em larga escala na Alemanha e na Europa, depois da emancipação, preparada pelas Luzes e executada, em larga medida, por acção napoleónica. Data precisamente desse ano o grito hep-hep, acompanhado frequentemente de «espanquem os judeus até à morte» [schlagt die Juden tot]. A origem do grito está envolta em obscuridade e levou a que se aventassem hipóteses fantasiosas. Tendo aparecido no primeiro pogrom e difundindo-se a partir dele, concitou grande atenção, chegando a ser interpretado como uma espécie de santo-e-senha dos perseguidores cuja decifração permitiria compreender os acontecimentos. A solução mais acreditada consistia em ver no grito o acrónimo de Hierosolyma est perdita, um putativo canto ou grito de guerra dos cruzados no cerco de Jerusalém, ou até das legiões romanas no cerco da cidade mais de 1000 anos antes.  Uma tal teoria não tinha nenhuma sustentação – aliás, em estampas da época, a expressão aparece grafada Hepp, o que invalida desde logo uma tal conjectura. A hipótese mais verosímil atribui-lhe a origem num chamamento para reunir o gado, que terá sido adoptado nas arruaças anti-semitas. O grito generalizou-se a partir dos primeiros motins, que, durante esse ano, se alastraram a toda Alemanha, com especial virulência em Frankfurt, Hamburgo, Heidelberg, Leipzig, Dresden e Darmstadt, repercutindo-se inclusive na Dinamarca e na Polónia. A expressão manteve-se ao longo do século XIX e gravou-se na memória das comunidades perseguidas. Depois de 1945, não consta que tenha sido novamente ouvida.

Tudo leva a crer, no entanto, que já há um candidato para desempenhar o mesmo papel: you can’t hide. E não são só palavras


                                                    João Tiago Proença


segunda-feira, 13 de maio de 2024

Carta de Bruxelas - 13.

 


 

 

                                                                              Chapéus há muitos

 


Já eram bastantes. Havia o idiota desinformado, que aprecia lenços, cerveja, convívio e um protestozinho contra qualquer coisa que imagina vagamente ser o sistema. Julga-se de esquerda. Havia o engagé, que milita e milita e continuará a militar. Por isso já foi militante, hoje é activista. Sempre de esquerda, sempre de boa consciência moral, sempre atrás do progresso. E lá vai ele pela arreata da História. Na versão sonsa, emite uns sim, mas; por um lado, por outro lado; compreende as duas partes, mas dá razão sempre à mesma. Uma espécie de quod erat demonstrandum, envergonhadito -- na melhor das hipóteses. Havia o repugnante, costuma ser comunista, que toma partido assolapadamente, justifica todas as violências contra Israel e os israelitas com grande fausto de palavras e indignação -- depois janta bem e ceia melhor. Para compor o ramalhete anti-semita, faltava o maluquinho, de obediência neo-fascistóide. Agora já não falta.

 

                                                                        João Tiago Proença





domingo, 7 de abril de 2024

Carta de Bruxelas.




 


Para assinalar seis meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023

 

Jacques Maritain, o filósofo francês que inspirou o personalismo cristão e que tanta influência exerceu no catolicismo social, viveu alguns anos exilado nos Estados Unidos da América durante a guerra. Entre 1941 e 1944 proferiu várias alocuções radiofónicas dirigidas à França ocupada. Em 1945, passadas a escrito, essas palavras de esperança e de solidariedade foram editadas com o título Messages 1941-1944. Uma delas, com o número XXV e difundida a 5 de Janeiro de 1944, tinha como título A Paixão de Israel. Nela lê-se: «Hoje uma testemunha dos Massacres de Kharkoff em 1941 contou que no campo onde os alemães haviam reunido os judeus antes de os enviarem para a morte, uma mulher judia entrou em trabalho de parto na noite de Natal; e suplicou a Deus: faz que eu dê à luz um bebé morto, para que não seja morto pelos homens.»

Já foi assim.

 

                                                                    João Tiago Proença


quinta-feira, 7 de março de 2024

Carta de Bruxelas.


 




                           Para assinalar cinco meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023

 

Mala Ziemetbaum, nascida em Brzesko, Polónia, foi detida pelos ocupantes nazis em 22 de Julho de 1942, na Bélgica, para onde fugira. É deportada no comboio n.º 10, em 15 de Setembro de 1942, com Auschwitz como destino. O seu carácter destemido e as suas actividades no campo não suscitam dúvidas. Numa posição administrativa privilegiada, passa mensagens, arranja medicamentos e rações suplementares, distribui as mais fracas pelas tarefas menos exigentes. No final de 1943 conhece Edek (Edward Galinski) prisioneiro político. Juntos e apaixonados fogem em 24 de Junho de 1944. São capturados 12 dias depois. E condenados à forca.

Há diversas versões sobre a execução de Mala. Louise Alcan explica em Le temps écartelé, versão aumentada do seu primeiro testemunho Sans armes et sans bagage, 1947, que «Em 22 de Agosto, depois da chamada da tarde, todas judias de Birkenau tiveram de ficar lá fora. Capturada há várias semanas, Mala vai ser enforcada diante de todas as suas companheiras. É da praxe para os evadidos que fracassam. Em certos enforcados pendura-se-lhes ao pescoço um cartaz com a inscrição:

Hurra, wir sind wieder da

 

                                                                             João Tiago Proença

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

O conflito Israelo-palestiniano explicado sem fanatismos nem mentiras.

 

 


  

Não conheço livro mais rigoroso sobre o conflito israelo-palestiniano que este. Se bem que anterior ao drama que atualmente se vive na faixa de Gaza, que está a incendiar a opinião pública mundial, este guia de Daniel Sokatch, da Bertrand Editora, é uma obra esclarecedora, não só sobre a génese do conflito, como vai comentando o que se passou a partir do Mandato Britânico na Palestina, como se deu a desarrumação do território que era maioritariamente dos palestinianos, as sucessivas guerras, as Intifadas, os acordos esperançosos, a avalanche de colonatos em território palestiniano, a chegada ao poder de uma direita radical associada a ultraortodoxos, o papel desempenhado pelos EUA, e também as janelas de oportunidade que se põem a um futuro de tolerância, se acaso se ultrapassar esta vaga imperialista israelita e se gere um quadro de harmonia entre todos os palestinianos, interessados em reerguer o seu Estado, hoje uma aspiração quase universal: “Israel, Um Guia Sobre o Conflito Israelo-Palestiniano para os curiosos, confusos e  indecisos”, ilustrado por Christopher Noxon.

O autor é dirigente de uma organização dedicada à igualdade e à democracia para todos os israelitas, o New Israel Fund, tem largo currículo como publicista e formador de opinião pública, tendo sido diretor-executivo da Federação da Comunidade Judaica de São Francisco. “Esta é a história do porquê de Israel transformar alguns judeus liberais clássicos em ultraconservadores numa única questão. É a história do porquê de Israel inspirar tantas lealdades e alianças ferozes a certos cristãos evangélicos que nunca conheceram um judeu verdadeiro ou para quem os judeus verdadeiros são basicamente almas que devem ser salvas ou despertadas para o Apocalipse. Neste livro, tentarei explicar a história e os contornos básicos de um dos mais complicados conflitos do mundo.” Estão em confronto dois povos, ambos com ligações e pretensões legitimas à terra, importa saber como chegarão a um justo termo em que tanto israelitas como palestinianos devem ter direitos iguais e a sua segurança garantida, e Jerusalém se manterá como espaço religioso das três religiões monoteístas.

Inicia-se esta digressão por contar o que se passou neste território ao longo de milénios, como a partir do ano 70 d.C. e até meados do século XIX os judeus viveram em diáspora, se espalharam sobretudo pela Europa, um pouco por África e foram atraídos pelos Estados Unidos. Conheceram perseguições e massacres por razões religiosas, por preconceitos nacionalistas e raciais. Surgiu depois a ideia sionista, isto é, a ideia de que o povo judeu tinha direito à autodeterminação na sua antiga pátria de Israel; como o tal fenómeno imperialista que hoje preside em Israel tem a sua génese em duas visões do sionismo, os trabalhistas e os revisionistas e os religiosos, são estas duas últimas visões que hoje governam Israel, pretendendo expulsar os palestinianos, sugar todos os recursos naturais e, em caso algum, dar direitos iguais aos árabes que vivem desde sempre no Estado de Israel.

O autor não esconde que no Mandato Britânico os judeus formaram um grupo terrorista que pôs bombas, matou e torturou britânicos. Estes, pretendiam restringir a emigração judaica para a Palestina, impunha-se fazer uma divisão equitativa do território. Tudo se agravou com o Holocausto que acelerou o ritmo da imigração de judeus para a Palestina. Os judeus declararam a independência já em guerra civil entre judeus e árabes, estes atacavam as comunidades judaicas, os judeus responderam com um massacre na cidade de Deir Yassin, na periferia de Jerusalém, acontecimento que horrorizou os árabes palestinianos, os árabes põem-se em fuga, nasce o Estado de Israel, Estado judaico, sucedem-se as transferências de população, constrói-se um Estado com ajuda da comunidade judaica internacional e fundamentalmente com o dinheiro norte-americano, o que a América dá a Israel supera o que dá em termos de cooperação à escala universal, não só por razões estratégicas no Médio Oriente mas para satisfazer uma parcela de eleitores judaicos e evangélicos.

Temos a descrição das guerras, a ocupação de terras, desde as que pertenciam à Jordânia, outras à Síria e o Sinai, que pertence ao Egito. Foi Ben-Gurion quem alertou os israelitas para o perigo da miraculosa vitória de 1967 e os territórios conquistados; o fundador de Israel declarou que tinham de devolver os territórios acabados de conquistar, caso contrário perdia-se qualquer hipótese de haver paz com os vizinhos, e se não se devolvesse o território Israel não podia continuar a ser um Estado democrático e judeu. Vieram as resoluções da ONU, outras se irão seguir, Israel não as acata. Temos a sequência dos acontecimentos: os massacres do Setembro Negro na Jordânia, a guerra do Yom Kippur, depois as negociações de Camp David, depois a desintegração do Líbano, o nascimento da OLP, as Intifadas, o imperialismo sobre a máscara de que se trata de defesa, os planos de Yitzhak Rabin para chegar à paz com os palestinianos, assim se chegou aos acordos de Oslo, Rabin é assassinado por um fanático judeu, surge uma nova onda imperialista, uma nova guerra no Líbano. Obviamente que, ao longo de todas estas décadas, grupos radicais palestinianos praticaram também terrorismo, desde raptos e sequestros, morte de atletas olímpicos israelitas, bombas-suicidas, e muito mais.

Estamos chegados ao século XXI, e o autor designa este tempo como da recessão democrática, o líder todo-poderoso é Netanyahu, vitorioso em mais de cinco eleições israelitas, no meio de um crescente conjunto de escândalos pessoais e políticos, com três acusações criminais e uma despudorada tentativa antidemocrática para controlar o poder judicial. Israel dá sinais de autocracia, a direita radical tem minado todas as soluções para a convivência entre dois Estados, Netanyahu deu-se lindamente com Trump, este tudo fez para deitar abaixo a doutrina norte-americana dos dois Estados. O espezinhamento dos direitos palestinianos está em alta, como observa o autor: “Muitas comunidades israelitas modernas estão construídas sobre as ruínas de vilas e cidades árabes que foram abandonadas, esvaziadas ou arrasadas durante a Guerra da Independência de Israel. E essas comunidades árabes tinham sido construídas sobre povoações judaicas nas eras medieval e bíblica, pelo que tanto judeus como árabes têm profundo sentimento de posso e de ligação à terra – um sentimento que cada um dos lados tenta argumentar como sendo mais justificado que o do outro.” E as autoridades de Israel também aceitam o despudor que os arqueólogos dirijam um enorme complexo destinado a reforçar as reivindicações israelitas sobre toda a cidade de Jerusalém.

O autor disseca a situação dos cidadãos árabes de Israel que vivem segregados, despojados de direitos; explica como a maioria dos judeus americanos não pactuam com o fanatismo verdadeiramente racial dos atuais dirigentes, estes, por pura hipocrisia e conveniência, recebem de braços abertos os cristãos evangélicos, uma turba apocalítica que sonha com o Armagedão que separa os puros dos impuros.

De leitura obrigatória, dada a honestidade e a humanidade que atravessa este portentoso ensaio.

 

                                                                            Mário Beja Santos





domingo, 5 de novembro de 2023

Exercícios de memória.

 

 

Quem não se lembra? Quem não se lembra das conversas um pouco enfastiadas em que havia quem garantisse que era desnecessário remexer no passado? Dizia-se que o mundo tinha andado para a frente e que águas passadas não movem moinhos e que já ninguém se interessava pelo assunto. Quem não se lembra? Gente culta citava Estaline, «Hitler passa, mas o povo alemão fica». O muro tinha caído há pouco tempo, e professoras de alemão mostravam-se genuinamente surpreendidas; sem acinte, perguntavam «para quê estudar coisas tão tristes?». Quem não se lembra? Quem não se lembra de que os povos tinham superado os traumas? Anos depois, os alemães já festejavam a vitória da selecção de futebol, tudo entrara nos eixos. Para arrumar o assunto, afirmavam alguns, ufanos, «até a Merkel vai ao balneário», era a época da Kabinenbesuch. Quem não se lembra? A normalização estava mais do que comprovada, tão comprovada que Israel já praticaria malfeitorias no Médio Oriente. Tornou-se mesmo um Estado entre outros, não há dúvida. E recebeu muito dinheiro, não se podem queixar. Para quê estar sempre a falar da mesma coisa? Perguntava-se com perplexidade, cheira a vingança e a vontade de sacar mais algum. Melhor fora que se deixassem disso. Estar sempre a falar de Auschwitz é maçador e contraproducente. Já chega, a vida continua. A vida continuou. Não foi maçador, nem contraproducente.

Foi inútil.

 

                                                                                 João Tiago Proença

 




segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Bruxelas, 22 de Outubro de 2023.













A palavra de ordem era "free, free Palestine; boycott Israel". Para esta gente, a última parte vem em primeiro lugar. O resto é fogo de vista.

 

                                                                                            João Tiago Proença





 



quinta-feira, 20 de maio de 2021

Cristo com carabina ao ombro.

 







Cristo com carabina ao ombro, por Ryszard Kapuściński

 

Mário Beja Santos

 

Reconhecido por vozes autorizadas como um dos grandes mestres do jornalismo moderno, repórter empolgante e dotado de um poder descritivo fractal que agarra o leitor do princípio ao fim, em Cristo com Carabina ao Ombro, Livros do Brasil, 2021, de Ryszard Kapuściński pode ser agora apreciado de um trabalho que teve a sua primeira edição polaca em 1975 e que nos leva a três cenários distintos, marcantes na época e que desgraçadamente continuam atuais: o conflito israelo-palestiniano, as ditaduras da América Latina e a luta de libertação em Moçambique.

O repórter viaja acompanhado por três feddayin (combatentes da liberdade), muitos jovens, trajam fardas de cotim e empunham metralhadoras, chegam a Rashidyia, esta cheira a laranjas e a sangue. “Um dos explosivos atingiu um camião que transportava laranjas; assim, líquidos dourados e aromáticos jorram pela rua principal. Perto, ao pé de um casebre, está sentado um velho árabe que parece petrificado no seu silêncio. Daquilo que ainda ontem era a sua casa, não restou mais do que o chão e um pedaço do muro. Da família não sobreviveu ninguém”. Rashidyia é um dos campos palestinos no Líbano. Percorrem-se ruínas e o jornalista interroga a luta destes palestinos, é um conflito com muita história, arredondando números, em 1930, escreve o autor, o governo britânico conclui que a Palestina era demasiado pequena e que, consequentemente, não podia acolher mais judeus porque não havia terras livres. Mas estamos a falar de 200 mil judeus, e nos anos 1970 eram quase 3 milhões. Há naturalmente um problema de espaço e as vitórias militares sobre os Árabes geraram a ambição de um grande império. A opinião pública mundial desconhece que a imigração judaica para a Palestina não se realizou só à custa dos Palestinos, mas também à custa dos judeus da Palestina. “Os judeus locais lembravam-se de que outrora a Palestina era uma terra próspera onde conviviam Árabes, judeus e cristãos e onde não passava pela cabeça de ninguém disparar nas costas do vizinho. Outrora, cada comunidade guardava os seus templos e havia espaço para todos os deuses. Um milhão de palestinos teve de abandonar a sua Pátria”. E descrevem-se os campos de refugiados e a vontade indómita do retorno à sua terra. Viaja-se pela História de um conflito, lembra-se o exército clandestino judaico, o Haganah e a sua organização terrorista Palmach e uma outra mais terrorista, a Irgun, geraram matanças na população árabe e não pouparam os britânicos, era necessário expulsar os Palestinos. E vem uma observação que tem premente atualidade: “Se o mundo não interferir, nenhuma das partes vai terminar esta guerra. Há demasiado ódio, demasiada morte, demasiada desgraça, e a memória está demasiado viva. Trata-se de um pequeno pedaço de terra, difícil de encontrar no mapa-mundo”. E viaja-se pela complexidade das alianças entre árabes, a Jordânia fora cruel com os Palestinos, sonharam incluir a Palestina dentro do seu reino. A reportagem continua por todo este calvário, fala-se da Batalha dos Montes Golã e questiona-se porque é que os árabes perderam a guerra em 1967, procura-se uma explicação: “Em Israel todos participam na guerra, nos países árabes é só o Exército. Em Israel, quando começar a guerra, todos vão para a frente de combate e a guerra civil para. Na Síria, ao contrário, muitos ficaram a saber da guerra de 1967 só quando acabou, ainda que a Síria tenha perdido uma zona tão estrategicamente importante como os Montes Golã. A Síria estava a perder os Montes Golã, e no mesmo dia, à mesma hora, a vinte quilómetros de distância, os cafés em Damasco estavam cheios de clientes, havendo gente a deambular, apenas preocupada em encontrar uma mesa livre”. Um repórter que nos faz compreender a germinação do imperialismo israelita que ninguém parece estar em condições de travar.

Já estamos na América Latina e o repórter justifica o título da sua obra: “Pouco depois da morte de Che Guevara, o pintor revolucionário argentino Carlos Alonso pintou um quadro que imediatamente se tornou famoso em toda a América Latina: a figura de um Cristo de carabina ao ombro. O quadro de Alonso converteu-se desde então num símbolo artístico do guerrilheiro, do homem que combate a violência e a arbitrariedade na sua luta por um mundo diferente, justo e bom para todos os seres humanos”. É uma reportagem que pode ser vista como uma parada de horrores, primeiro na Bolívia, com a sua instabilidade, prisões, execuções, golpes de Estado, os militares a derrubarem-se uns aos outros, uma degenerescência que lembra o fim do Império Romano. Passamos para outra atmosfera ditatorial, a ilha de S. Domingos, dois ditadores e dois monstros onde 90% da população vive na mais profunda miséria e ignorância. Depois El Salvador e a seguir os crimes abomináveis da Guatemala onde os EUA sempre tiveram o descaro de perseguir quem contraria o império bananeiro da United Fruit. Se ainda houvesse dúvidas sobre a abjeta interferência norte-americana nos assuntos internos da América Latina é só estudar o que se passa na Guatemala, ainda recentemente o romancista Vargas Llosa lhe dedicou um pungente romance ficcional Tempos Duros. Uma pequena água-forte do autor: “A Guatemala é um país governado por uma camarilha de coronéis, já que durante a revolução anularam o grau de general. No Exército, há um coronel por trinta soldados. A Embaixadas dos Estados Unidos ocupa o lugar supremo do poder, depois vem o Conselho de Coronéis, e o governo ocupa o terceiro lugar. Qualquer coronel gostava de ser presidente, devido ao prestígio e ao salário alto. O ordenado anual do Presidente da Guatemala é de um milhão e 94 mil dólares, sem contar com outras regalias, mais ou menos oficiais, e um enorme subsídio de representação (no mesmo país, os rendimentos de um camponês rondam entre os 50 e 80 dólares anuais”. E observa o que espera um jovem revolucionário neste canto do mundo: “Uma pessoa jovem, na América Latina, cresce rodeada de um mundo corrupto. É o mundo da política exercida pelo dinheiro e para o dinheiro, um mundo de demagogia desenfreada, um mundo de assassínios e de terror policial, um mundo da plutocracia prolixa e despiedada, de uma burguesia ávida de tudo, de exploradores cínicos, novos ricos depravados e vazios. Um jovem revolucionário rejeita tudo isto, pretende destruir esse mundo, mas antes de o conseguir quer contrapor-lhe um mundo diferente, limpo e honesto, e arrisca a sua própria vida”.

Estamos agora em Dar es Salaam, 1962, o repórter encontra-se com Joaquim Chissano e Eduardo Mondlane, fala-se da independência de Moçambique, das diferentes fações ligadas à libertação, faz-se o historial do início da guerra e das batalhas da FRELIMO. E assim se despede, Moçambique já é independente: “Revi as fotografias de Lourenço Marques. Numa delas, dois inimigos de ontem, um soldado português e um guerrilheiro da FRELIMO, patrulham juntos a cidade. Examino os dois rapazes e vejo que o soldado tem botas e o guerrilheiro também já usa botas. E, de repente, pensei que há no mundo coisas grandes, e que é magnífico que, depois de anos de se andar descalço, chega afinal o dia em que se já se pode calçar sapatos e caminhar pela terra sem medo de deixar rasto”.

De leitura obrigatória.

 

 





terça-feira, 10 de março de 2020

Auschwitz e depois.




Nos 75 anos da libertação de Auschwitz, uma conversa na Livraria Tigre de Papel, a partir do livro Auschwitz e Depois, de Charlotte Delbo. Aqui o podcast e, claro, um obrigado a todos, foi um enorme gosto.
 
 










 

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A porta do Oriente (2).


 
 
A guerra civil libanesa iniciou-se em 1975 e durou até 1990. Fez 150 000 mortos.
O motivo próximo foi um ataque armado a um autocarro de palestinianos nos arredores de Beirute. De início enfrentaram-se os cristãos de um lado e muçulmanos, palestinianos e movimentos de esquerda do outro. E foram os cristãos que apelaram à intervenção de Hafez-el-Assad, o que acontece em 1976.
Em 1977, o chefe muçulmano druzo Kamel Joumblatt (adversário da intervenção síria) é assassinado. No mesmo ano Béchir Gemayel, chefe das milícias cristãs, alia-se a Israel e formas as Forças Libanesas.
Em 1982, Israel invade o Sul do Líbano e a Síria muda de aliança juntando-se aos muçulmanos e bombardeando Beirute. Israel chega a cercar Beirute obrigando Yasser Arafath a fugir por mar. Béchir Gemayel consegue finalmente ser eleito Presidente da República mas é assassinado antes de tomar posse. Nos dias seguintes assiste-se aos maiores massacres da guerra, nos campos de refugiados de Sabra e Chatila onde morrem mais de 1000 palestinianos.
Os acordos de Taëf (cidade da Arábia Saudita) em 1989 consagram o fim da guerra civil. Prevê-se a extinção de todas as milícias (o que nunca aconteceu) e a Síria fica encarregada de assegurar a paz. As primeiras eleições legislativas do pós-guerra têm lugar em 1992.
A paz voltou ao Líbano mas não deixa de ser pautada pelas intervenções de Israel sempre atento à influência do Irão e da Síria no país. Foi o que aconteceu com o ataque de dois drones em Agosto último.
Também a Síria não deixa de ter grande intervenção na vida do país.
Símbolo da guerra civil é o antigo Hotel Holiday Inn em Beirute, crivado de balas desde então. Mas há outros edifícios ainda com vestígios da guerra.
 
 
O Holyday Inn em Beirute

No centro de Beirute. Ao lado constrói-se um centro comercial da autoria da arquitecta iraquiana Zaha Hadid.
 

Fotografias de 12 de Junho de 2003 (uma anterior visita) e de 13 de Novembro de 2019.
José Liberato
 

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Dura Europo: a Bíblia em quadradinhos.

 
 
 













Como ontem falei do livro do Polífilo, e estamos portanto em domínios de novelas gráficas, lembrei-me de hoje mencionar, em passagem lesta, a sinagoga de Dura Europo, que foi uma cidade de origem greco-macedónica fundada no ano 300 a. C. sob restos de uma localidade semita.

 

Li um livrinho-maravilha sobre esta brincadeira antiga, Cercare la Bellezaz tra Oriente ed Occidente, de Gianni Morelli, o qual, além dos frescos da sinagoga de Dura Europo, ou Eurpos (actual Síria, como estarão as pinturas?), fala do Evangelho de Rossano e dos mosaicos de Ravena. Com calma e vagar, voltaremos a estes dois temas.

 

Quanto à sinagoga, é bué antiga. E foi descoberta por soldados do Império Britânico já no século XX (mais rigorosamente, pelo arqueólogo americano Clark Hopkins, corria 1932) e foi declarada Património da Humanidade em 1999, por iniciativa da França. Portanto, se há muito a criticar no colonialismo das potências europeias, também convém dizer, perante exemplos como este, que o Ocidente lá foi fazendo alguma coisinha pela descoberta e pela preservação do património alheio.

 

Coisas superinteressantes: um estudo arqueológico mostrou que os soldados romanos foram mortos com armas químicas por bandas de Dura Europo (aqui). Um ataque traiçoeiro dos sassânidas, com betume e cristais de enxofre mandados para o interior de uma galeria. Por conseguinte, quando virdes falar de armas químicas na actual Síria, é curioso pensar que se trata de arsenal já usado por ali há muito e muito século.


As pinturas da sinagoga estão actualmente em Damasco, rezando nós para que se conservem, e tratam de episódios bíblicos, que seria fastidioso enumerar: sacrifício de Isaac, Génesis, Moisés a receber as Tábiúas da Lei, o êxodo, visões de Ezequiel, tudo a coberto da Mão de Deus, amiúde representada, quer aqui, quer nos mosaicos de Ravena.

 

Há quem diga que os murais serviam de quadros instrutivos e pedagógicos para as aulas de direito e história religiosa, mas sobre a sinagoga de Dura Europo já se disse e escreveu tanta coisa que nesta manhã, com Agosto à porta e no advento da greve dos camionistas, é melhor ficarmo-nos por aqui.