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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Carta de Bruxelas - 23.




                                                                        O talentoso capital simbólico



O proselitismo da seita Bourdieu foi de tal forma eficaz que o conceito entrou na koine universitária. À trouvaille conceptual nada faltava para cair no goto de intelectuais de esquerda bem integrados. Não tinha nem os pés mascarrados de carvão nem as mãos sujas de óleo do velho proletariado da velha luta de classes – tudo isso fica para os filmes neo-realistas, que o tempo se encarregou de integrar, em grande parte, no património do kitsch de esquerda.  Daquela luta conservava o termo capital como conceito polémico, com os arrebiques modernos do simbólico. Trata-se, bem entendido, da última versão de um reducionismo velho e relho. A expressão retoma o que a sociologia tradicional designava por necessidades de prestígio (Raymond Aron, por exemplo, mas não por acaso), o que, por sua vez, não passa da declinação sociológica do conceito de sociabilidade insociável cunhado por Kant. Na sociabilidade insociável sublinhava-se a impossibilidade de pensar uma sociedade una, sem divisões, nem a montante, nem a jusante. Mostrava também a unilateralização abstracta inerente tanto ao optimismo antropológico como ao seu gémeo mau, o pessimismo antropológico. Por outras palavras, a natureza humana ficava definida como a coexistência permanente de duas condições; uma não sucede à outra na história: nem progressismo, nem decadência.

Fazendo jus às suas origens, o capital simbólico inscreve-se no optimismo antropológico. O capital como categoria económica reificadora desfigura a sociedade como ela deveria ser. Todas as distinções simbólicas constituem uma distorção da verdadeira natureza das coisas. Merecem, pois, denúncia; por exemplo, por intelectuais que, dos seus lugares de prestígio, asseguram às massas que não há prestígio; bem providos de capital simbólico nos jornais e nas televisões provam a ilegitimidade desse capital; de méritos reconhecidos, e que fazem reconhecer nos títulos académicos, decretam a ilusão do mérito. Talvez se imaginem a si mesmos como um igual aos outros. Todo o intrujão precisa dos seus intrujados. Nos casos agudos de capital-simbolicidade, a questão é saber quem é quem.         

 

                                                                João Tiago Proença


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Carta de Bruxelas - 22.




 

                                                                                            Qualquer coisa de egípcio

 

Em 1977, o filósofo Hans-Georg Gadamer, publicou a sua autobiografia intitulada Os anos de aprendizagem filosófica [Philosophische Lehrjahre, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann]. Como bom hermeneuta, passa em revista a sua vida e carreira com base na trama do diálogo. Entre os nomes próprios dos seus interlocutores de referência, o último é o de Karl Löwith, a quem o ligou uma amizade de mais de 50 anos. Löwith foi inclusive padrinho da sua filha Jutta. Apesar de isso, para caracterizar Löwith, Gadamer invoca nada mais nada menos do que a distância. Linhas depois, percebe-se o que queria dizer com essa palavra. Nele farejava-se sempre, conta Gadamer, qualquer coisa sem tempo, qualquer coisa de egípcio.

À primeira vista, a política invoca o oposto. Em vez da ausência de tempo, a correria imposta pelos acontecimentos, pelos humores caprichosos das vontades, pela irrupção da fortuna nos assuntos humanos, cuja roda esmaga previsões, frustra expectativas e desactualiza os pressupostos mais entranhados. Daí ser natural que a análise política tenha os seus especialistas da canelada, peritos na rasteira, e mais recentemente, no comentário televisivo, decifradores do significado oculto da coçadela na orelha ou das revelações esotéricas dos movimentos das sobrancelhas. E que tenha também os seus cientistas políticos, tantas vezes ansiosos por passarem para aquele nível primário. Crer que o torvelinho da vida não se compadece com a fixidez do conceito não esclarece, ofusca.

É, por isso, um consolo e uma alegria a publicação de um livro que pensa e pensa os conceitos fundamentais da filosofia política moderna. «Soberania popular – estudos sobre a ideia de um poder absoluto e intemporal» (Edições Húmus, 2024), de Diogo Pires Aurélio, recomenda-se por isso. Para lá do calor dos antagonismos, da febre da vitória ou da esperteza do curto prazo, a análise do conceito de soberania e das suas aporias mostra bem o que ainda hoje (espíritos subtis talvez dissessem «sobretudo hoje») faz o nosso mundo político. Com a distância necessária para uma visão límpida, perpassa nas suas páginas o abençoado vento frio do conceito – há nele qualquer coisa de egípcio. 


                                                                    João Tiago Proença

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terça-feira, 7 de maio de 2024

Carta de Bruxelas - 12.

 

Para assinalar sete meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023.

 



No seu romance de 1793, A loja Invisível, Jean Paul deixou escrito que a recordação é o único Paraíso de que não podemos ser expulsos. A transfiguração que o tempo impõe tanto aos bons como aos maus momentos é sempre indício de uma reconciliação com a vida. E, no entanto, quando os judeus, expulsos, se punham a caminho, em cada passo, em cada mala, em cada olhar para trás, a recordação suscitada não tinha imagem, não se demorava em algo concreto. Havia o pressentimento de uma repetição, a repetição de algo já feito por antepassados desconhecidos, sujeitos ao mesmo destino abstracto e absurdo: não um Paraíso mas um martirológio irracional que se acrescenta com o tempo. O fardo da recordação haveria de ser alijado. Desde 14 de Maio de 1948, os passos dados nesta Terra já não evocam as expulsões nem as fugas de antanho. Mas, a partir do dia 7 de Outubro de 2023, os contornos do passado esbateram-se. Ressurgiu, em parte, a atmosfera amaldiçoada das recordações antigas. Agora há para onde ir. Por enquanto. 

 

                                                                João Tiago Proença






quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Cartas de Bruxelas (3).

 






                                                                             Cruor et sanguis




Tell her everything’s all right. And there aren’t any more guns is the valley. As palavras de Shane perto do final do filme homónimo de 1953, realizado por George Stevens, deixam um gosto de boca utópico. A violência de Shane preludia uma ordem pacífica, doméstica e civilizada. O pistoleiro impõe o rule of law contra o poder o pessoal e arbitrário de um barão do gado; os homesteaders avançam, e o Estado avança com eles. A marca de água do sedentarismo e da lei são os ranchos e a agricultura. No fim dos combates, o último acto de violência suprime-se a si mesmo; à imagem e semelhança de Moisés, Shane não entrará na Terra da Promissão. Quem se tornou culpado de matar, o homicida com as mãos sujas de sangue – cruor era a designação que os romanos davam ao sangue derramado – não pode transpor o limes sagrado da vida. O mal não deixa de ser mal por estar ao serviço do bem; não há lugar para nenhuma transfiguração compensatória. A morte pertence à morte, o sítio onde não vive ninguém. Um vento esgarrão que sopra do inferno afasta Shane da felicidade humana. A promessa cumpre-se apenas para o outro, Joe Starrett, marido e pai, que, corajoso, alicerça a casa na solidão dos espaços vazios e selvagens. Quando o medo se apodera dos restantes homesteaders, dispostos a abandonar o vale, Starrett decide ficar por saber que tem por si o direito. É um homem da vida –– não teme a morte. O princípio que vivifica, que dá alento e alma ao seu corpo e à sua actividade – os romanos chamavam a um tal princípio sanguis – é o seu direito. Mas precisamente por isso está em desvantagem diante dos profissionais da morte – os pistoleiros. Shane será a virtude defensiva sob uma forma autonomizada, virtude essa que só se exerce na prática de um mal. Mas no sacrifício voluntariamente aceite confirma-se e supera-se a lógica do bode expiatório. É Shane que enuncia a fórmula mágica que reduz a nada o sacrifício: A man has to be what he is, Joey. Can't break the mould. I tried it and it didn't work for me. Exigido por outra instância, o sacrifício de si seria a forma suprema da heteronomia, ao brotar da consciência inaugura a história pelo advento da irreversibilidade do tempo em oposição à imanência mítica da repetição: a história, porém, que será a história dos outros. Prevalece assim a lógica sacrificial, violenta, fascinada, no seu optimismo desesperado e desvairado, pelo acto final, pelo equilíbrio adquirido à custa da reificação do bem e do mal, da segregação eterna entre os eleitos e os réprobos.

John Ford anula esta perspectiva em O Homem que matou Liberty Valance, de 1962, cujo guião consiste na adaptação de um texto de Dorothy M. Johnson escrito, paradoxalmente, em 1953. Contrariamente a Shane, no filme de John Ford há, desde o início, um olhar desencantado. O progresso não se liga apenas à lei, vem pelo meio técnico dos caminhos de ferro: Hallie – Churches, high school, shops. Link Appelyard – Well, the railroad done that, desert still the same. O deserto resiste à casa do homem violento, o homem que matou Liberty Valance, que, como Shane, fica excluído da cidade; na sua casa ardida e inacabada crescem cactos, ainda que floresçam. Este é o elemento que o distingue de Liberty Valance. O mal alastra-se até aparecer como a verdade das coisas, lançando o seu manto sobre o mundo. Liberty Valance despedaça o livro da lei, espanca o advogado, Ransom Stoddard, e exerce a violência como se esta fosse a lei: I will teach you law, western law; a tal ponto o faz, que são os cúmplices que travam a sua violência. Stoddard, o instaurador do direito, renuncia à violência I’am staying and I’am not buying a gun either e fala em nome do que lhe é anterior, a statehood. No final, já senador, o olhar para trás de Stoddard parece reencontrar o mal, o excluído, no deserto, Tom Doniphon, o homem que realmente matou Liberty Valance no confronto com Stoddard, permitindo que o homem das leis guardasse desse modo as mãos limpas de sangue – ainda que não aos olhos dos outros. Essa é a razão que origina a ambiguidade que encerra o filme. It was once a wilderness, now it's a garden. Aren't you proud?pergunta Hallie. Talvez a a história tivesse acabado se a wilderness tivesse sido eliminada. Mas a derradeira fala do filme, sintomaticamente do funcionário dos caminhos de ferro, Nothing's too good for the man who shot Liberty Valance, pode suscitar a interpretação que vê na afirmação da mentira um desmentido da vida de Stoddard. Mas pode ser também a ratificação de que o gesto homicida que defende a ordem civilizada continua nela como uma memória querida, com a possibilidade de irromper de novo – ao contrário do que sucede em Shane, o mal está no meio de nós. Na melancolia de Stoddard há, porém, uma consolação. O direito serve para cruor não se transformar em sanguis.


                                                                                                João Tiago Proença






domingo, 21 de maio de 2023

Carta de Bruxelas.

 





                                                                    O regresso das palavras

 


O texto com que Charlotte Delbo abre o livro, A Medida dos Nossos Dias, incluído em Auschwitz e Depois (CFB Editores, 2018, pp. 315-321), intitula-se significativamente «O regresso». Não se trata de tornar a uma Ítaca abandonada a contragosto e tomar posse do mundo que nunca se perdeu: os rostos familiares, os objectos ordenados como lhes compete, as ocupações próprias de uma condição social e os deuses que zelam pela harmonia do todo. Através dos perigos arrostados, Ítaca permanece o Norte magnético: corrige os desvios, anula os erros e, sobretudo, é a memória que vivifica, que tanto mais estende as suas asas acolhedoras e fiéis quanto mais demorado e acidentado é o regresso. Quanto mais longe dela, mais brilha a origem. À memória que guia Ulisses como a varinha do vedor indica a água, fonte da vida, responde a memória que guia Penélope nas suas astúcias, de olhos postos no que há-de vir. O reencontro será feliz e rico: uma realidade confirmada e potenciada pelo tempo vivido.

A experiência concentracionária do regresso é de outra ordem.  A viagem de regresso, conforme descrita por Delbo, desrealiza gradualmente as sobreviventes, como se o mundo normal arrebatasse a vida dos regressadas.  Em primeiro lugar e, num aparente paradoxo, depois da fome concentracionária, no próprio corpo, «[v]ia-as [as companheiras] a transformarem-se sob os meus olhos, tornarem-se transparentes, tornarem-se vagas, tornarem-se espectros.» Uma tal desaparição física, corpórea, não é um dado, um facto bruto. Pelo contrário, deriva da experiência mais originária da perda de sentido. É a linguagem que dá a medida da realidade. Por isso, Delbo acrescenta de imediato «[a]inda as ouvia, mas começava a não perceber o que diziam.» A libertação, o ansiado regresso, não é o reencontro com um mundo abandonado, o reconhecimento em comunhão com o que lá ficara, paciente, esperando. À chegada, o mundo desapareceu, os outros desapareceram, o próprio eu solta as amarras; erra, desliza, flutua, são os verbos que Delbo usa repetidamente. Fora do mundo, «[n]ão sentia nada, não me sentia existir, não existia.»  Para se reapossar do mundo é necessário – precisamente o oposto de Ulisses e Penélope – um esforço de memória, «mas porque dizer: um esforço de memória se já não tinha memória?» A cabeça esquecida é a cabeça vazia, incapaz de reflectir, «como reflectir, quando já não se possui uma única palavra, quando se esqueceram as palavras todas?» E, no entanto, esse momento de suspensão da continuidade do eu é necessário como uma reacção química que aparentemente isola os elementos de um composto. É nele que se funda a passagem entre duas condições de vida incomensuráveis. Uma passagem entre uma linguagem concentracionária que Primo Levi por momentos julgou possível, como se pudesse existir uma experiência verdadeira do Lager, verdadeira precisamente no sentido de ser dada numa linguagem própria, sem um denominador comum com a linguagem normal. Uma linguagem que não fosse uma linguagem do mundo da vida, da experiência humana, mas da morte, da morte em vida. O tempo da incompreensão a que se refere Delbo não deixa de poder ser compreendido. Significa isso que também nesse meio tempo houve linguagem, por mais tacteante que tenha sido. Com ironia, e sempre com espanto, interroga-se: «Quanto tempo fiquei assim, em suspensão de existência? (Como vêem, depois voltei a encontrar as palavras).» A resposta à pergunta está dada entre parêntesis: o tempo durante o qual não encontrou as palavras. Esse é o tempo em que o seu corpo não tinha peso, a sua cabeça não tinha peso, chegando ao extremo do que começara com a desrealização das companheiras, também elas sem peso, também elas sem palavras compreensíveis. Um exemplo claro que evidencia a ligação umbilical aos outros e ao mundo, por esta ordem e pela linguagem.

O regresso às palavras, ou talvez melhor, o regresso das palavras faz-se pela recusa da possibilidade de uma linguagem do Lager. A linguagem dos homens normais retoma o seu lugar quando se nega o privilégio da verdade ao Lager, como se aquilo fosse a verdade do homem perante o qual a vida normal fosse falsa. Delbo dá conta da sensação de estranheza, de inautenticidade, no encontro com os outros e, ratificando o modelo hermenêutico do texto como um tu, com os livros. «Tal como baixava os olhos para não ver as caras porque as caras se despiam sob os meus olhos, porque, a partir do momento em que as fixava, via tudo das pessoas através das caras delas, e isso incomodava-me ao ponto de ser obrigada a baixar os olhos, e também me afastava dos livros porque via através das palavras. Via a banalidade, a convenção, o vazio. [...] Tudo, caras e livros, era falso, tudo me mostrava a própria falsidade [...].» A falsidade geral só pode ser medida pela linguagem pseudo-verdadeira do Lager, que é a linguagem adâmica satanicamente invertida. Em vez da identidade plena e feliz entre coisa e palavra, é uma identidade degradada, já não a identidade da vida mas sim a da morte em vida, como se o acto de desumanização fosse a verdade. Por isso, a descrição de Delbo do regresso das palavras não acompanha um processo de reconstrução da linguagem a partir de elementos quimicamente isolados. A palavra vem como palavras, num sistema impreciso, indefinível, enigmático: «Como é que tudo se passou? Não sei. Um dia, peguei num livro e lio-o.» Ou seja, deixou de «viver num mundo sem mistério». Não lhe é possível calcular esse momento em que passa a haver sentido; não por acaso, o logos grego foi traduzido por ratio mas também por verbum.

Num texto breve (Voltar do campo voltar ao normal, pp. 371-373), Delbo vê o regresso à vida como a saída da história. Que história? Não a história com maiúscula, a epopeia cumulativa da Humanidade, nem, em declinações famosas, a história que lê o passado à luz de uma ideologia. Trata-se antes da história que diz o que cada qual é, que o esbulha da sua interioridade; a história que transforma o homem numa superfície, sem mistério, sem perigo e, por isso, sem banalidade, sem inautenticidade e sem falsidade. Já não é história, é mitologia, que rouba o tempo e dele faz espaço exterior. É a palavra – fatum – que vem do exterior, avassaladora, cega como uma aluvião que soterra as casas e as vidas. Sair da história para entrar na vida não é um momento de criação que seja acessível aos não concentracionários. Dá testemunho do nascimento da linguagem e da vida antes da história. A vida regressada tem de excluir o horror absoluto como factor capaz de alterar todas as contas. O que não acontece por inércia, por esquecimento; mas por uma decisão. «Inspirar piedade, não, não queria, mas para admitir que Auschwitz não entra na balança do deve e do haver, precisamos de nos endurecer brutalmente.» (p. 412).  Se a luta de Jacob o deixou marcado por um poder superior a quem pede a benção, aos concentracionários a luta com o mal legou-lhes uma maldição: endurece-te brutalmente. Talvez Primo Levi ou Jean Améry tenham sucumbido a uma tal maldição, o que amplia a lista dos agravos. Charlotte Delbo não. Viu o mal e lutou. Talvez se tenha endurecido brutalmente, a forma de coxear que Auschwitz lhe impôs, mas venceu o mal regressando à vida, à vida toda, à vida até ao fim.

 

                                                                                                            João Tiago Proença

     






quinta-feira, 23 de março de 2023

Cartas de Bruxelas.

 




Forma dat esse


Num texto sobre as últimas palavras ("E então vós julgais" in Nenhum de nós há-de voltar), Charlotte Delbo, uma «concentracionária», refere-se às palavras dos moribundos como palavras solenes. O tema pode não ser novidade, mas o contexto – o Lager – é. Segundo os linguistas, solemnis compõe-se de sollus annus. É solene o que ocorre todos os anos. O termo tem, pois, origem na esfera mítica; diz o regresso do mesmo. Esperado, o sagrado renova-se no mundo e renova o mundo, desse modo tudo se passa como se o ciclo imanente do eterno retorno acarretasse uma solenidade objectiva. Na morte, porém, a imanência quebra-se. O que acontece, acontece uma única vez. A eternidade está diante dos olhos na despedida absoluta. O «nunca mais» tem necessariamente uma solenidade diferente. Longe de regressar, o solene da morte apõe o selo da ausência definitiva. Nessa medida, confere à morte o seu carácter humano, histórico. Nas últimas palavras ditas vem à luz do dia a mais evanescente das formas humanas, que, no entanto, é a sua forma por excelência : o viver em comum com os outros, que faz do homem o animal político. As derradeiras palavras, banais ou não pouco importa, assinalam a comunhão entre os homens no exacto acto de se perder. Ao passar algo a outrem, passa-se o próprio. O poder ter uma morte funda a traditio, a continuidade dos homens.  A solenidade dos moribundos assenta precisamente nessa forma de esperança.

Mas no Lager tudo é roubado aos homens. As coisas são-no para roubar a vida, a vida é-o para roubar a morte.  O homem sem morte reduz-se a coisa, e as coisas não morrem: reduzem-se a matéria-prima que se transforma como elemento do mundo físico. Quando não há esperança, desaparece a necessidade de solenidade. Conta Delbos:

 

 «'Desta vez vou bater a bota.'

Estavam nuas em cima de tábuas nuas.

Estavam sujas e as tábuas sujas de diarreia e de pus. [...]

Mas não era permitido serem fracas para consigo mesmas.

Então disseram: 'Vou bater a bota» para não tirar a coragem às outras e contavam tão pouco que alguma sobrevivesse que não confiaram nada que pudesse ser uma mensagem.»

 

A des-solenização, o disfemismo, é a vingança do humano, que assim se diz de forma invertida – sem esperança. Como se nessas palavras a comunicação entrasse em curto-circuito, perdesse a história que lhe é inerente e regressasse em ricochete para o presente estreito: ad immunda per angusta. O efeito é especular. Quem as escuta devolve a quem as diz o que todos sabem, o que todos aguardam: a morte à porta fechada, fora do mundo humano. Nenhuma mensagem – sans phrase : aqui viveu um ser humano – será transmitida. A morte humana que denuncia a imanência do mesmo acaba assim por se reabsorver nele. Delbos sabe-o e cumpriu-o: o que pode restar da luz de uns olhos que se extinguiu noutros olhos converte-se no dever moral de dar testemunho. Uma última forma. 


João Tiago Proença 





sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A morte como serviço público de interesse geral: uma proposta modesta.

 



A morte como serviço público de interesse geral, ou uma proposta modesta para a resolução do impasse legislativo relativo à despenalização da morte medicamente assistida

 

A inclinação algo fatídica, ou simplesmente mórbida, deste escrito tem uma explicação que convém avançar logo de início: a incapacidade crónica do nosso legislador em resolver o problema da eutanásia e do suicídio assistido, tendo o correspondente diploma sido já duas vezes rejeitado pelo Tribunal Constitucional, para além de objeto de veto político pelo Senhor Presidente da República.

É que, convenhamos, nos encontramos perante um problema da maior relevância para os destinos da nação, estando nas mãos do legislador contribuir de forma decisiva e expedita para a sua resolução. Trata-se de um problema que não se coaduna com a aparente impreparação, ou incapacidade de outra ordem, dos nossos legisladores para disponibilizarem ao conjunto dos cidadãos e demais residentes, especialmente os idosos, a possibilidade de contribuírem voluntariamente de forma significativa, através da própria morte, para o grande desígnio da inversão da tendência aparentemente inexorável para o envelhecimento da população nacional e a consequente situação insustentável que se vive no serviço nacional de saúde.

É certo que nem tudo se perdeu ao longo das sucessivas propostas desenvolvidas pelo legislador. Assim, nos primeiros projetos falava-se ainda, em termos injustificadamente restritivos, da antecipação da morte medicamente assistida em «situações de sofrimento extremo» ou «intolerável», com «lesão definitiva de gravidade extrema, ou doença incurável e fatal». Agora, de modo muito mais razoável e socialmente ajustado, com a desejável abrangência, fala-se de «situação de sofrimento de grande intensidade – definida por referência ao «sofrimento físico, psicológico e espiritual» –, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável».

São passos no caminho certo, que nos leva a encarar sem rodeios a morte como uma opção livre de qualquer utente do serviço nacional de saúde, seja qual for a índole do problema de saúde, real ou sentido como tal, que o afete. Todavia, mesmo a atual proposta legislativa mostra bem a necessidade de libertar a prática da morte medicamente assistida de um sistema de intrincada distinções concetuais e definições legais que fazem certamente as delícias de juristas e comissões de ética, mas nada acrescentam em termos de proteção do único valor a respeitar na matéria: a livre decisão do indivíduo, ainda que esclarecida pelos profissionais especializados e respaldada pelo impecável funcionamento burocrático das estruturas do serviço nacional de saúde.

Por outro lado, não nos importa, reconheçamo-lo desde logo, a situação do suicídio assistido, isto é, daqueles que estão, apesar de tudo, em condições de pôr fim às suas vidas, ainda que com assistência de terceiro. Procurar resolver um problema da magnitude daquele que nos ocupa unicamente na perspetiva do respeito da capacidade de atuação do indivíduo autónomo é, convenhamos, uma atitude claramente desadequada em face da gravidade dos interesses sociais em presença e até de pendor acentuadamente elitista. É por outras palavras, colocar acima da vontade a capacidade individual de a executar. O que nos motiva é, pelo contrário, a inegável, e premente, dimensão social e económica da questão.

Torna-se, pois, necessário encarar e formular o problema partindo de novas bases.

A solução que propomos é, julgamos, simples e expedita, envolvendo apenas leves alterações a um diploma já em vigor, relativo à proteção do utente dos serviços públicos essenciais. Do que se trata é simplesmente de acrescentar a morte assistida aos serviços públicos essenciais já previstos na lei, a saber: o serviço de fornecimento de água, o serviço de fornecimento de energia elétrica, de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados, o serviço de comunicações eletrónicas, os serviços postais, o serviço de recolha e tratamento de águas residuais, os serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos e o serviço de transporte de passageiros.

Parece ser evidente a proximidade entre a disponibilização generalizada da morte assistida e os demais serviços públicos essenciais que o Estado moderno coloca ao alcance de todos os cidadãos e residentes. Com efeito, a aglomeração das populações nos espaços reduzidos das grandes cidades, provocada pelo desenvolvimento industrial a partir dos séculos dezanove e vinte, deu azo a novas condições e exigências para a condução individual da existência. Ora, a concentração espacial da população desencadeada pela industrialização levou a que o espaço de vida controlado pelo indivíduo tenha diminuído cada vez mais (da casa, quintal e oficina para o apartamento e o local de trabalho), enquanto a tecnologia expandiu muito esse mesmo espaço de vida. Deste modo, a perda da proteção que uma certa independência dava à existência individual foi compensada pela instituição de serviços que, graças ao extraordinário desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, atendem às necessidades do indivíduo e lhe tornam possível levar uma vida sem um espaço controlado por ele: gás, água, energia elétrica, saneamento básico e, finalmente, morte. Esta transformação vale para todos, independentemente do seu nível riqueza, pois corresponde ao facto de que, no modo de vida dos povos altamente industrializados, desapareceram as formas de existência autónomas e autossuficientes.

Há, nesta conformidade, um traço em especial do regime a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais tendo em vista a proteção do utente que nos parece especialmente promissor na resolução do impasse legislativo a que chegámos.

Trata-se da regra que proíbe a imposição de consumos mínimos de serviços de interesse geral. Com as necessárias adaptações, tal como não é possível impor consumos mínimos ao utente dos demais serviços públicos essenciais, também não deverá ser possível impor à pessoa que almeja a própria morte quaisquer restrições à decisão tomada com esse fim decorrentes da sua situação de saúde. Pelo contrário, é somente o respeito da vontade, real ou presumida, de cada utente que urge acautelar, sendo certo que as estruturas do serviço nacional de saúde saberão filtrar esse respeito em termos socialmente adequados.

Encontrada, pois, a solução para o impasse normativo que o legislador não quer, ou não se encontra em condições de ultrapassar, importa afrontar a objeção da “rampa escorregadia” que muitos suscitam, ainda presos num modo de pensar a questão tributário de atavismos resultantes de séculos de imposição de uma moral social castradora da liberdade individual e avessa ao funcionamento imperturbado das estruturas administrativas que são o seu principal garante nos tempos atuais.

Tal como as considerações anteriores evidenciam, a morte não é, já, no momento histórico presente, um acontecimento que ocorre num espaço controlado pelo indivíduo, à semelhança do que sucede com os demais serviços públicos de interesse geral. O reconhecimento desta dependência dá também a resposta à principal objeção que nos poderia ser oposta: se o serviço nacional de saúde tem como principal missão assegurar a vida, como justificar que o mesmo assuma a tarefa de administrar a morte? Pois é precisamente esta a questão essencial: se ao Estado cabe assegurar a vida, reconheça-se-lhe também a capacidade, certamente menos pesada do ponto de vista económico, de administrar a morte! De resto se, para se assegurar a vida nem sempre se respeita a vontade individual, não temos razões para não acreditar que, ao menos na morte, prevalecerá um respeito escrupuloso dessa vontade.

Rejeitamos, por último, que a implementação da proposta agora formulada possa conduzir a uma compreensão das instalações hospitalares como manifestações daquilo que alguns designam com o novo paradigma biopolítico da modernidade, centrado no campo de extermínio. Estas, e outras visões apocalípticas semelhantes, devem ser afastadas convictamente com base na simples observação de que nunca, como nos tempos atuais, se deram tantas condições à vontade individual para prevalecer sobre quaisquer outras considerações, sejam de que índole forem. Resta-nos, a cada um de nós, aguardar o momento em que nos caiba exercer essa vontade, sempre sob a tutela esclarecida de profissionais bem preparados.

 

Miguel Nogueira de Brito 







quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Cartas de Bruxelas (1)

 

                                                                                                            https://www.toli.us/art-projects/



                                                                                                        

                                                                                               O céu da boca

 

 

As descrições do universo concentracionário são unânimes quanto à fome que grassava nos campos e, sobretudo, quanto aos efeitos da fome, da fome que reduz os homens a um tubo digestivo, nas palavras de Léon-E. Halkin (À L’Ombre de la Mort), que é inacreditável em sentido próprio. Para crer nessa fome, ainda segundo Halkin, «é preciso ter conhecido a fome lenta, os reflexos de voracidade, de avareza e de cleptomania, a obsessão com o alimento, a obsessão com o que se come, com tudo o que se relaciona com tudo o que se come, para admitir o complexo da fome, para compreender a miséria sórdida e as suas tentações inconfessáveis.» E como tantos outros, também Halkin sonha com lautas refeições. Em todos os textos da literatura sobre os Lager se encontram testemunhos das intermináveis conversas sobre a confecção de refeições, a descrição minuciosa da preparação dos pratos ou a referência aos comensais e ao respectivo número.

Esclarecem as gramáticas que a catacrese é uma maneira de suprir a falta de um termo específico. Nelas dá-se uma estranha forma de comércio. Não raro, o corpo empresta ao mundo as suas designações e o mundo empresta ao corpo o nome das suas coisas. O braço da cadeira, as bocas da faca, o dente de alho ou a maçã do rosto. Por vezes, a relação é indirecta: o garfo da bicicleta, ou faz-se por intermédio do corpo de um animal: a asa da chávena, a mesa pé de galo. Macrocosmo e microcosmos são unidos apenas por aquele que pode ser todas as coisas: o homem. Lemo-lo com clareza absoluta em Primo Levi (Se Isto é um Homem):

«Mas como se poderia pensar em não ter fome? O Lager é fome, nós próprios somos fome, fome viva.

Do outro lado da rua trabalha uma draga. As tenazes, suspensas pelos cabos, abrem os maxilares dentados, libertam-se por um instante como se hesitassem na escolha, depois atiram-se para a terra argilosa e fofa, e ferram vorazmente, enquanto da cabine de comando sai um sopro satisfeito de fumo branco e denso. Depois voltam a levantar-se, dão meia volta, vomitam para trás o peso com que estão carregadas, e recomeçam. Apoiados às nossas pás, ficamos a olhar fascinados. A cada dentada das tenazes, as bocas entreabrem-se, as maçãs-de-adão dançam para cima e para baixo, miseravelmente visíveis por debaixo da pele mole. Não conseguimos desvincular-nos do espetáculo do repasto da draga.»

A fome viva, o tubo digestivo vivo não tem mais nada como objecto, identifica-se totalmente com o mundo. No paroxismo da fome, a analogia faz-se carne. Não espanta, pois, que a carne ganhe olhos, adquira visão. Outro concentracionário testemunha-o. «O cego levantou-se, e foi para a beira da sua enxerga. Tacteou a caixa onde guarda o pão. Abriu-a e retirou o pedaço que restava. Em seguida sentou-se e tirou a faca do bolso. Eu observava-o. Os seus gestos eram lentos, precisos, tão exactos como se visse o que fazia, como eu próprio via. Dir-se-ia que estava a fazer uma dissecação.» Com a última frase, Robert Antelme (A Espécie Humana) leva a cabo uma torção radical dos conceitos: faz do pão um cadáver. O que dá a vida, na sua ausência total, é já um morto. Talvez por isso o cego possa ver: disseca-se a si mesmo como morto futuro – morto de fome. «Nada. De nenhuma outra coisa a falta chama tanto esta palavra: nada.» Na vida dos homens normais, aqueles que não sabem que tudo é possível, no dizer de David Rousset, outro concentracionário, o pão não se liga ao nada precisamente porque não é tudo. Daí que seja impossível imaginar a situação concentracionária.

No recentemente traduzido, Simone Veil – A Madrugada em Birkenau, Veil, em diálogo com Paul Schaffer, insurge-se:

«SIMONE: […] Hoje, quando as pessoas vão a Birkenau ou Auschwitz, vêem uma série de barracões, observam um certo número de coisas, mas fica-se longe da transmissão de uma experiência. Quando os jovens dizem que «imaginam», não imaginam coisa nenhuma.

É inimaginável.

PAUL: A meu ver, ainda bem que eles não podem imaginar, porque indivíduos que fossem capazes de imaginar tal realidade seriam indivíduos perigosos.»

A incapacidade de imaginar liga-se por um cordão umbilical à linguagem. Movido pela esperança de poder dizer, Primo Levi põe a hipótese de uma linguagem nova, a linguagem do Lager: «Como esta nossa fome não é a sensação de quem saltou uma refeição, o nosso modo de ter frio exigiria assim um nome particular. Nós dizemos «fome», dizemos «cansaço», «medo» e «dor», dizemos «Inverno», mas são coisas diferentes. São palavras livres, criadas e utilizadas por homens livres que viviam, gozando e sofrendo, em suas casas. Se os Lager tivessem durado mais tempo, uma nova, dura, linguagem teria nascido […].» Cedo percebeu que nunca nasceria uma linguagem adequada nem ao Lager nem para falar sobre ele. A ideia de uma tal linguagem evidencia antes a sua impossibilidade. Ocorre quando já não é necessária. Quando o Lager está morto. Como Levi viu tão bem:

«Depois de arranjar a janela partida e depois de o aquecedor começar a difundir calor, pareceu que em cada um a tensão afrouxara, e foi então que Towaroski (um franco-polaco de vinte e três anos, doente de tifo) propôs aos outros doentes que oferecessem cada um uma fatia de pão a nós os três que tivemos o trabalho, e a proposta foi aceite.

Um dia antes, tal acontecimento não teria sido concebível. A lei do Lager dizia: «come o teu pão e, se puderes, o do teu vizinho», e não deixava lugar à gratidão. Isto significava claramente que o Lager estava morto.

Foi este o primeiro gesto humano que aconteceu entre nós. Julgo que se poderia fixar naquele momento o início do processo pelo qual, nós morremos, de Häftling voltámos lentamente a ser homens.»

Voltar a ser humano significa voltar à linguagem dos homens normais, à linguagem que já não é uma simples reacção de um tubo digestivo entre outros: partes extra partes. Na linguagem, evadidos da necessidade natural antinatural, os homens comungam. Por isso, a fome absoluta não é apenas a fome natural, é também a fome de justiça. Antelme disse-o talvez melhor que ninguém. A natureza recomposta não apaga o sucedido, precisamente porque o sucedido não foi um acontecimento causado pelas leis cegas da natureza.

A experiência concentracionária foi considerada pelos concentracionários que sobre ela escreveram um alargamento da perspectiva sobre o mundo, um acréscimo de lucidez.

Talvez possa contribuir para dar uma resposta à pergunta: quem é o teu Próximo? Aquele que tem fome do pão, e do pão da justiça.

O céu da boca.

 

                                                                                          João Tiago Proença







segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A Celebração da Vida pela Elevação da Morte.





A Celebração da Vida pela Elevação da Morte


          Por Pedro Strecht, Médico Pedopsiquiatra



 

          Pela primeira vez, desde sempre na história conhecida das nações, muitos de nós não vamos poder estar junto dos que nos são mais queridos e já partiram. Por razões preventivas de saúde física, sacrificando novamente as de ordem psíquica e social (contidas na definição da OMS), a circulação entre concelhos será proibida nas datas em que anualmente muitos se organizam nos necessários rituais do luto necessário em volta da perda e da morte, para que justamente a vida possa continuar a ter o seu sentido mais profundo: que há para além de mim? Que existe depois desta existência?


          Por isso, relembro nesta ocasião pequenos pontos-chave que parecem cada vez mais omissos numa sociedade que há muito se afastou da noção da doença, lida mal com a presença da morte e faz da vida uma corrida de contínua corrida e falsa infalibilidade. Todos somos mortais. Todos precisamos de, ao longo da vida, ir organizando suficientemente bem esse conceito, na relação connosco próprios e com a noção de presença ou ausência física e emocional dos outros.

1.    A negação da morte é um imenso ataque à noção de vida.

2.    O que torna o homem consciente de si mesmo e do outro é a percepção da finitude: a omnipresente angústia de morte, incluindo as suas variações minor de separação e perda

3.    As pessoas e as sociedades organizam-se em volta de rituais. A sua abolição produzirá os dois efeitos extremos: a paralisia psíquica (o desinteresse, a apatia, o vazio depressivo) ou, no oposto, os movimentos de zanga e raiva indiscriminada.

4.    A presença emocional do outro (incluindo perante a sua ausência física como na morte) celebra-se na continuidade do tempo, na evocação das memórias mais marcantes (incluindo as sensitivas), das recordações significativas, em suma, de tudo quanto representa formas de inscrições psíquicas.

5.    A vida também se vive pela morte e seus equivalentes emocionais, mesmo em tempos em que estes conceitos parecem subitamente negados: a importância do vazio, a necessidade do silêncio, a procura de uma luz que quer acender (uma vela)

6.    A morte também precisa de vida, de festa e celebração em seu redor, para que não seja sentida de uma maneira tão dura e difícil: os ramos de flores, a cor e a harmonia que exibem

7.    Neste ano difícil, depois de Todos os Santos e Fiéis Defuntos, virá com certeza uma provável supressão do Natal? Esse, alguns o disseram há muito, também já é quando o homem quiser, tornando-se a celebração do consumo e do narcisismo.



Lisboa, 25 de Outubro de 2020


Pedro Strecht, mail: [email protected]











quarta-feira, 16 de setembro de 2020

A propósito de Hans Küng, um salto de 30 anos ao passado.

 



Há alguns anos que o padre Anselmo Borges, aposentado professor de Filosofia na Universidade de Coimbra, publica uma crónica na edição do Diário de Notícias de domingo. Desde que nos conhecemos pessoalmente num encontro de Filosofia, envia-mos de véspera. A desta semana é sobre Hans Küng, o famoso teólogo suíço, antigo professor na Universidade de Tübingen, na Alemanha, e que mexeu comigo nos meus anos de Teologia no Seminário de Angra (sobretudo com o seu Infalibilidade? – uma pergunta – traduzo, porque na altura não o li em português pois não havia ainda tradução portuguesa e li em espanhol) onde tínhamos a sua versão local na pessoa do Dr. Cunha de Oliveira, nosso professor de Sagrada Escritura. Sempre pensei nesse meu professor como parecido com Hans Küng. Não só no estilo emotivo, abrasivo e fulgurante, mas também na sua visão do mundo e até mesmo nos traços fisionómicos. Não que parecessem gémeos, mas o Dr. Cunha, tal como Küng, exibia no rosto os traços de mistura dos temperamentos sanguíneo e apaixonado (termos que hoje já ninguém usa, mas era o que se usava no nosso tempo - Fernando Pessoa, por exemplo, era fleumático).

Nunca me esqueci de um dia passado em Tübingen, em 1989, onde fiz questão de fazer uma paragem precisamente por causa da mítica figura de Küng. Explico-me:


Em 1987, eu tinha publicado um livrinho sobre Pessoa e Mensagem (Mensagem – uma tentativa de reinterpretação, 1987) com uma revisitação“fora da caixa”, e um grupo de lusófilos alemães convidou-me para fazer um circuito de intervenções em universidades no seu país, quase todas acerca desse tema. Fiz um périplo de palestras de Kiel e Hamburgo até Frankfurt. Porque uma das intervenções era em Marburg, onde leccionava o amabilísssimo Dieter Woll (1933-2012), resolvi adicionar uma paragem no percurso em Tübingen, que fica relativamente perto. Tinha uma grande curiosidade acerca do burgo pois estava encantado com as pequenas cidades universitárias alemãs que, juntamente com as britânicas, haviam servido de modelo para as congéneres norte-americanas nos séculos 17, 18 e 19.


Adorei a experiência. Fui mexericar os corredores do edifício onde Melanchthon, o lendário pensador da Reforma, e  mais tarde Hegel leccionaram. Aluguei um barquito a remos para me passear perdidamente abaixo e acima no estreito rio Neckar, deixando-me ficar (contemplativo – podem crer!) por um bom bocado à sombra dos belos chorões, mesmo junto à casa do poeta Hölderlin.


Ainda fui à lista telefónica procurar o número de telefone de Hans Küng e… encontrei-o. Faltou-me, porém, a coragem de o incomodar.


Porque ontem me pus a falar nisto a dois ou três amigos, hoje fui a um caixotão onde tenho milhares de fotos em envelopes (juro que não exagero) à espera de tempo para as colocar em álbuns e deparei com um envelope para cada uma das cidades alemãs visitadas nessa viagem de (agora sei exactamente) 1989. Infelizmente, na bela e fotogénica Heidelberg apanhei um dia enevoado e as fotos ficaram chaladas.


Do conjunto de Tübingen, retirei as que aqui vão.


Porque viajei sempre só, as fotos em que apareço a remar foram tiradas por alguém que estava na margem e a quem pedi o favor. Rarissimamente faço isso, contudo naquele encantador lugar não resisti. A casa de Hölderlin é o belo prédio amarelo. A última foto foi tirada de um dos edifícios da universidade, no alto da colina.


Agora, a 30 anos de distância, dá para ver a diferença entre o que era possível fazer-se com uma maquineta Pentax 1000 dessa altura e o que hoje um simples telemóvel consegue. Mas é o que há e o que resta para ajuda da memória.

 

Onésimo Teotónio de Almeida