Mostrar mensagens com a etiqueta Ética. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ética. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O Príncipe Maquiavélico?


 




“Todos vêem o que tu aparentas ser, poucos sabem realmente aquilo que tu és;

e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos.”

Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Capítulo XVIII, 1532

 

No 40.º aniversário do noivado de Carlos de Inglaterra

e Diana Spencer, a 24 de Fevereiro de 1981.

 



Numa recente visita virtual à KPMG para assinalar os 150 anos da empresa, a Rainha Isabel II falou através de uma plataforma electrónica com sócios e funcionários. Entre eles estava John McCalla-Leacy, ex-atleta olímpico, sócio da KPMG e o primeiro negro a chegar ao Conselho de Administração da empresa.

 

Nascido em Londres, filho de pais jamaicanos, cresceu num típico bairro operário com um ambiente duro. Durante a conversa, John McCalla-Leacy pediu à Rainha para transmitir o seu agradecimento ao Príncipe de Gales pela oportunidade que, através da sua fundação The Prince’s Trust, recebeu enquanto jovem e que lhe permitiu encontrar novos horizontes e chegar onde chegou.

 



 

Isabel II realçou o orgulho que o Príncipe de Gales tem na The Prince’s Trust, uma organização que ao longo da sua história de quase 45 anos ajudou centenas de milhares de jovens de ambientes desfavorecidos a encontrar a sua oportunidade de mobilidade social, de fazer com que o elevador social funcione.

 

Já há dois anos, a longeva Rainha, sublinhando o privilégio de qualquer mãe fazer um brinde nos 70 anos do filho, lhe fez o rasgado elogio de o considerar capaz de ombrear com qualquer herdeiro do trono da história, “um campeão da conservação das artes, um grande líder da caridade (...), entusiasta e criativo”.

 

Contudo, poucas pessoas associarão o Príncipe de Gales com estas características ou com estes elogios ou, sobretudo, com o extraordinário serviço que vem prestando ao longo dos anos, tal é a força mediática que consistentemente o oblitera, em detrimento dos revezes da sua vida matrimonial ou das roupas usadas pela sua mulher ou pelas suas noras.

 

O Príncipe de Gales será uma vítima precoce da ‘cancel culture’, destinado a ver vilipendiado nos média e nas redes sociais, diga o que diga – ainda que diga o que está certo.

 

* * *

 

Quando Nicolau Maquiavel escreveu O Príncipe, a obra que perpetuou o seu nome enquanto autor mas sobretudo enquanto adjectivo para qualificar a perfídia e a falta de princípios, já Henrique VIII reinava em Inglaterra com Catarina de Aragão, a primeira das suas seis mulheres, a seu lado.

 

Notável pela brutalidade da sua análise e pela forma crua como subjuga princípios morais à concretização dos objectivos de poder, O Príncipe parece falhar na previsão da importância da vida matrimonial dos príncipes na manutenção desse poder. Tivesse Maquiavel vivido mais vinte anos e faria certamente uma adenda às edições subsequentes.

 

De facto, de Henrique VIII e memória colectiva retém pouco mais que a mnemónica “divorced, beheaded, died, divorced, beheaded, survived” para memorizar a sequência prodigiosa de mulheres com que tentou, sem sucesso a longo prazo, perpetuar nos seus descendentes a linhagem dos Tudor.

 

Pouco importam os seus grandes feitos políticos e as suas notáveis vitórias diplomáticas. Foi, para memória futura, o rei obeso que, para se divorciar, originou uma cisão na Igreja que dura até aos nossos dias e que tratou cruelmente seis rainhas, sempre em busca de um herdeiro.

 

O actual Príncipe de Gales parece estar há mais de 30 anos enredado em problema semelhante: tudo o que faz de bem parece evaporar-se da memória colectiva. A menção do seu nome desperta nas pessoas apenas a reacção às suas desventuras matrimoniais. A quarta temporada da série The Crown, da Netflix, abusa dessa imagem, inventando e distorcendo factos sem pudor, nem piedade. De tão bem feita que está, os espectadores facilmente esquecem que estão a ver uma ficção, ainda por cima muito parcial.

 

Ao longo dos episódios é-nos mostrado um príncipe que apenas se incomoda com a sua mulher, sem que se lhe veja qualquer acção positiva – num contraste com o Carlos da temporada anterior, preocupado em sublinhar a sua identidade e em vincar diferenças com uma instituição que é mostrada com algum do seu arcaísmo. Sobretudo, num contraste absurdo com a realidade.

 

É inequívoco que as questões matrimoniais foram, ao longo dos séculos, fundamentais para a realeza – e para as nações. O Padre António Vieira sintetizou-o de forma crua ao dizer que “reino sem sucessor é despojo”, no sermão que pregou pelo nascimento da Infanta D. Isabel Luísa Josefa, futura Princesa da Beira, filha de D. Pedro II, então Príncipe Regente, e da sua primeira mulher.  

 

A escolha de uma futura rainha (ou de um sogro poderoso) foi uma arma política importantíssima desde os alvores das monarquias como as conhecemos. Até meados do século XX, a escolha de uma consorte foi condicionada por factores políticos ou dinásticos, e eram, nas dinastias reinantes, verdadeiras decisões de Estado.

 

Muito embora tenha perdido a importância para a sobrevivência das nações a que o Pe. António Vieira aludia no seu sermão, a vida matrimonial do príncipe, do rei, terá sempre relevância constitucional e dinástica, seja pela posição que  tributo  de Inglaterra  assiste nas rr, preocupado em sublinhar a sua identidader a sua oportunidade de fazerr o à consorte estará destinada, seja pelo objectivo habitualmente subjacente ao casamento de um herdeiro, que é o de garantir a sucessão e a continuidade da Casa.

 

Não deixa de ser uma ironia que, quando perdeu boa parte a relevância para a sobrevivência do Estado, seja uma questão matrimonial a pairar de forma tão persistente como avassaladora sobre um reinado por começar.

 

Manifestamente prejudicado pela preponderância que a percepção da sua vida pessoal assumiu na opinião pública, o desempenho de Carlos enquanto herdeiro do trono – uma posição difícil, de esperar, pacientemente e certamente sem nunca o desejar, que a mãe morra, para se cumprir o destino que lhe estava reservado quando veio ao mundo – é totalmente ignorado. E, no entanto, destaca-se pelo acerto das causas que abraçou.

 

* * *

 

Mobilidade Social, Ambiente e Arquitectura serão os temas mais marcantes da acção desenvolvida pelo Príncipe de Gales desde que, tendo completado a sua educação universitária e militar, se estabeleceu como herdeiro do trono a tempo inteiro, há bem mais de 40 anos.

 

Com cerca de 7.400 libras esterlinas da indemnização que recebeu ao sair da Marinha, fundou a The Prince’s Trust, ou Fundação do Príncipe, porventura a sua mais notável criação. Através de uma rede de micro projectos e de ligações a empresas, constituiu uma rede para apoiar a formação e a empregabilidade de jovens oriundos de ambientes desfavorecidos.

 

Quase um milhão de jovens terão sido ajudados ao longo de quatro décadas, com um impacto económico enorme mas sobretudo com uma relevância social incalculável, através de apoio financeiro de talentos e de start-ups, de formação, de estágios.

 

São muitos os testemunhos de pessoas que, ao longo destes 40 anos, foram ajudados pela Fundação do Príncipe. De actores a músicos, passando por empresários que começaram com um apoio de 1000 libras da Fundação e acabaram a facturar 30 milhões anuais e a chegar à direcção de design da Coca-Cola.

 



Consciente do impacto da pandemia nos mais jovens, nos mais desfavorecidos e também nas instituições que vivem da angariação de fundos para os ajudarem, o Príncipe de Gales tem-se empenhado em encontrar novas formas de angariar fundos para o que o trabalho notável da sua organização não seja travado pelo Covid-19 e “a crise não defina as oportunidades de uma geração”.

 

Num vídeo publicado em Junho de 2020 refere o desafio de vencer em tempos do caos e da desordem económica, mas que “foi por isso que a minha Fundação foi fundada, para ajudar pessoas para um futuro melhor”. Mais do que boas intenções, a Fundação tem resultados concretos para apresentar.

 

Será porventura no Ambiente que a intervenção de Carlos de Inglaterra é mais constante ao longo do tempo. As primeiras intervenções sobre o assunto remontam ao início dos anos 70, quando o plástico ainda parecia a última maravilha e ninguém conseguiria convencer o mundo ‘moderno e promissor’ dos riscos que a poluição representava.

 

Ainda recentemente, falando com evidente paixão e conhecimento de causa, o Príncipe de Gales lançou mais uma iniciativa para sensibilizar o mundo para necessidade de para a destruição da natureza com efeitos permanentes, pondo em causa o futuro dos nossos filhos e netos. Mais do que alertar, a iniciativa pretende, sector a sector, analisar de forma concreta a forma como se pode descarbonizar a indústria e torná-la mais sustentável e amiga do ambiente.

 


 

Durante a polémica visita do polémico Presidente Trump a Londres em 2019, confrontou-o com o seu negacionismo das alterações climáticas, apelando à mudança de posição, mesmo sabendo de antemão a parede que tinha diante dele. Já este ano, representou o Reino Unido na cimeira virtual pelo ambiente que o Presidente Macron organizou e quase todos os meses incentiva os ingleses a fazerem algo positivo a pensar no Mundo em que vivemos.

 

A intervenção de Carlos de Inglaterra nos diferentes domínios e não apenas nos enumerados, mereceria uma análise mais exaustiva, que desiludiria porventura os que procuram o brilho de diamantes e de lantejoulas, mas que elucidaria sobre a utilidade, no século XXI, da Monarquia britânica.

 

* * *

 

Maquiavel sublimou a imoralidade ao subjugar os princípios para privilegiar os fins, que tudo justificavam. O autor de O Príncipe defende a dissimulação, a mentira, a aparência, até evitar as boas obras – tudo como forma de manter o poder. Carlos de Inglaterra parece ter feito o contrário.

 

Escolheu admitir os seus erros privados em público. Quando podia ter esperado numa quietude cómoda, decidiu intervir. Fê-lo em nome dos princípios que considera relevantes para a sociedade – mesmo quando (ou sobretudo quando) a maioria, a opinião pública e a opinião publicada, vão em sentido contrário. O que é meio caminho andado para a impopularidade e para se tornar alvo do que se veio a designar a ‘cancel culture’.

 

Passou por defensor lunático do ambiente, quando ninguém via o ambiente em perigo. E, no entanto, há registos do Príncipe, há 50 anos!, a alertar para o perigo que os plásticos representavam para os oceanos.

 

Passou por retrógrado quando ainda nos anos 70 se insurgiu contra a destruição da construção tradicional e a devastação do campo britânico para construir bairros descaracterizados, sem alma e insustentáveis. E, no entanto, a realidade tem vindo a dar-lhe razão, com o abandono sistemático de prédios e bairros construídos nessa época ou com a constatação de que se transformaram em locais nada aconselháveis.

 

Escreveu a ministros e a Primeiros-Ministros, procurando usar a sua influência para mudar decisões que considerava erradas. Sucessivos governantes, especialmente trabalhistas, queixaram-se desse método de agir na margem (ou no vazio) da constitucionalidade – chegando a questionar no Parlamento o direito de o Príncipe fazer essa ‘pressão’.

 

O The Guardian, sempre muito pouco monárquico, procurou ter acesso aos memorandos que acabaram conhecidos por “Black Spider memos” e que, na opinião de alguns, mostravam um Príncipe a ultrapassar as barreiras constitucionais de intervenção nos assuntos de governação.

 

Os documentos acabaram por ser divulgados por ordem judicial e mostravam uma enorme latitude de intervenção política, mas sobretudo o entusiasmo que Carlos de Inglaterra colocava na defesa dos assuntos que abordava. A questão tornou-se de tal forma relevante que há dois anos o Príncipe teve de esclarecer que, enquanto rei, não actuaria da mesma forma.

 

* * *

 

A longuíssima era isabelina que a Inglaterra vive desde 1952 é inédita por muitos motivos. Não é apenas o reinado mais longo de sempre, assistindo sob o peso de uma mesma coroa à passagem solene de primeiros-ministros, papas e presidentes. É também aquele que é sujeito a um escrutínio mais exigente, não apenas da soberana, mas de toda a sua família, de cada gesto privado e público.

 

Se é verdade que o poder de Isabel I de Inglaterra (r. 1558-1603) era bastante maior do que o da sua homónima, não é menos verdade que as mudanças sociais, políticas, religiosas e tecnológicas nunca foram tão profundas como no actual reinado. O reinado que se segue começará num mundo radicalmente diferente daquele, ainda reverencial, que viu uma jovem de 26 anos tornar-se Rainha de Inglaterra.

 

Em  1992, para comemorar os seus 40 anos de reinado e num momento de enorme fragilidade pessoal, Isabel II pronunciou aquele que é certamente um dos mais relevantes discursos da sua vida. Para a história ficou conhecido como o discurso do “annus horribilis”, mas é na reflexão da Rainha sobre a importância do decurso do tempo e da retrospectiva no julgamento dos acontecimentos, que está a parte fundamental.

 

Usando palavras que pareciam ecoar as de Cristo – «Quem de vós estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra!» (Jo 8, 7) – Isabel II pediu compaixão, tolerância e gentileza, ainda que reconhecendo a necessidade de mudança e de adaptação de todas as instituições, incluindo o Monarca.

 

É inequívoco que a Monarquia tem procurado adaptar-se às novas circunstâncias – para permanecer relevante e útil a uma sociedade em que muitos procuram mostrá-la como desajustada.

 

O Príncipe de Gales tem sido o líder desse objectivo de modernização e de adaptação à nova realidade, como qualquer análise séria e descomprometida permitirá verificar. Tem-no feito, contudo, sem evitar os temas difíceis.

 

A utilidade que procurou dar ao lugar que ocupa foi a resposta a um certo vazio funcional da sua posição. Sem fazer sombra à Soberana, procurar servir o povo britânico e cumprir a divisa que acompanha o seu título: Ich dien (Eu sirvo). Maquiavel ficaria desiludido.

 

Ademar Vala Marques







sábado, 28 de novembro de 2020

Pornhub.



 

https://sol.sapo.pt/artigo/716544/escritorio-de-arnaut-lidera-processo-de-despedimento-coletivo-na-ana






quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Liberdade de Amar e Direito de Morrer (Ensaio Criminalista), por L. Jiménez de Asúa.





Repilo imediatamente, com repugnância e tristeza, a organização, com todo o aparato de legalidade, do extermínio das pessoas atacadas de males incuráveis ou de demência irremediável. Essas comissões encarregadas de se pronunciarem sobre o aniquilamento dos doentes sem salvação e esses estabelecimentos em que se praticaria dificilmente a eutanásia, reclamados por Binet-Sanglé, Binding e Hoche, levantariam furacões de protesto na sentimentalidade do povo, que faria um paralelo entre tais medidas e as que se executam nas grandes cidades contra os cães vagabundos.





segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Amor mundi.

 
 
 
 
 
Ontem falei do livro Losing Earth¸ e é importante percebermos como chegámos aqui, o que poderia ter sido evitado e não foi. Para sabermos como devemos agir no presente, evitando erros pretéritos. Um debate interessante tem a ver com os comportamentos individuais de cada qual, e Bárbara Reis publicou há duas um belo texto sobre isso. Numa crónica da semana passada no Guardian, Oliver Burkeman citava um texto famoso de 2005, da autoria do filósofo Walter Sinnott-Armstrong. Vale a pena lê-lo, chama-se «It’s Not My Fault: Global Warming and Individual Moral Obligations». Sinnott-Armstrong não nega a existência de alterações climáticas, ao contrário de muitos idiotas e criminosos. Nega, isso sim, que cada um de nós tenha a obrigação individual, de um ponto de vista ético, de contribuir para o combate contra as alterações climáticas. A resposta de Burkeman é sintética, mas acertada: a questão não é tanto a de saber se o esforço individual de cada um faz, de facto, alguma diferença (quanto a mim, faz, quer pelo contributo que sempre dá, quer como expressão de preocupação e empatia com os outros e com o mundo envolvente). A questão, diz Burkeman e bem, não é racional, é acima de tudo emocional, tem a ver com o amor, o nosso amor à Terra. Mesmo que racionalmente não haja motivos para ter um comportamento amigo do ambiente, o amor mundi de que falava Hannah Arendt parece-me um bom argumento para mudar de vida. Antes que a vida acabe, de uma vez por todas.
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 30 de março de 2019

Sobreviventes de guerra.

 
 






 

Só agora vi o trabalho de Isa Leshko, devido à notícia da publicação do seu livro Allowed to Grow Old. Nem reparei que o PÚBLICO já tinha falado desta fotógrafa que capta imagens de animais velhinhos, de cãs brancas, que conseguiram chegar as idades provectas porque não os mataram entretanto – ao contrário do que sucede a milhões como eles. Pior ainda, mortos em condições bárbaras, depois de terem tudo vidas (curtas) em condições não menos bárbaras. Os animais que Isa Leshko fotografa são sobreviventes de uma guerra suja. Uns felizardos, portanto. Podemos comer carne, mas devemos saber que carne comemos, e como viveram e morreram os que nos dão a sua carne e o seu sangue. A partir do momento em que comemos animais, o bem-estar animal é uma preocupação também nossa, da nossa saúde de carnívoros, coisa que muitos teimam em não perceber. Aqui não há ideologia nem esquerda ou direita; há saúde pública, nossa e dos animais que comemos.
 

 
 
 
 
 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Olhando o sofrimento dos outros.

 
 
 

«Todas as fotos do funeral», «Mulher e filhos do cavaleiro devastados no último adeus». Nem dá para acreditar. Olhando o sofrimento dos outros, título famoso de Susan Sontag, agora levado ao cúmulo do mais abjecto voyeurismo por parte da revista VIP. Quem pode extrair algum prazer ou ter o mórbido interesse em ver fotografias da dor alheia, imagens de um funeral? Uma vez mais, o mundo é um lugar estranho. Mas, por favor, não o tornem ainda mais estranho.


quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Será legítimo?

 
 
Christopher Anderson


Hesitei muito se devia publicar aqui esta fotografia, mas acho que sim. Devia-se a hesitação ao facto de ter muitas, muitas dúvidas sobre se é ético fotografar um filho assim, e publicar essas fotografias num livro, como fez o fotógrafo da Magnum Christopher Anderson (aqui). Sim, a nudez não é crime e pode ser bonita e exposta. Mas isso é quanto à nossa nudez, nós decidimos o que fazer com ela. A de um filho, como é? No passado isso era normal, bebés nus, fofinhos e anafados. Agora, com maior atenção à autonomia dos menores, e aqui, numa fotografia «íntima», é algo diferente, parece-me. Não sei, fica a dúvida... Mesmo que a pretexto do «amor», é legítimo um pai utilizar o filho como modelo, sobretudo através da exposição e comercialização da sua nudez? O que dirá a criança quando crescer? Gostará, não gostará? Mas não lhe caberia a ela decidir, se se queria ou não ver assim exibida ao mundo?



 

 
 

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Agora falando sério.

  


Não conheço pessoalmente o  advogado dr. Magalhães e Silva mas tenho todas as razões para supor que é um homem de bem.

 
         Não duvido, por isso, que irá pedir desculpas pelo texto que publicou no Correio da Manhã do passado domingo.

 
         Nesse texto, intitulado «Outra vez a Luísa?», o dr. Magalhães e Silva fala da doença que vitimou Luísa Guterres.

 
Depois, fala da doença oncológica de que padece Laura Passos Coelho.

 
A abrir, convém dizê-lo: antes de serem casadas com primeiros-ministros ou líderes políticos, Luísa e Laura são mulheres, pessoas com dignidade própria, seres humanos que lutaram e lutam contra uma doença fatal.      

 

 
Também eu quero crer que o dr. Magalhães e Silva não mediu bem as suas palavras ao insinuar a ignóbil possibilidade de terem sido os próprios António Guterres e a sua mulher a propalarem a notícia de que esta padecia de uma doença terminal.

 
Para que fins e com que objectivos o teriam feito, é algo que só o dr. Magalhães e Silva poderá esclarecer.   

 
         Depois, sobre a doença de Laura Passos Coelho, escreve o dr. Magalhães e Silva:

 

        

          Ou seja, o dr. Magalhães e Silva antecipa a morte de um ser humano que luta pela vida.

 

Apresenta Pedro Passos Coelho como viúvo, «um coitado», quando a sua mulher está viva – e a combater um cancro.     

 
         Não contente, o dr. Magalhães e Silva ousa dar conselhos a um ser humano sobre o «respeito» e o modo como este deve tratar a doença oncológica da sua mulher:

 


         Também nós esperamos isso, sem dúvida.

 
Mas, agora, neste preciso momento, o que esperamos mesmo é um pedido de desculpas do dr. Magalhães e Silva.

 
Ou melhor, dois pedidos de desculpas:  

− a António Guterres e aos seus filhos, e à memória da sua mulher;  

− a Pedro Passos Coelho, à sua mulher e aos seus filhos.



Já agora, também esperamos um pedido de desculpas aos leitores do Correio da Manhã, onde certamente se incluem muitas empregadas de centros comerciais de todo o país.    


        Feito isto, continuarei a considerar o dr. Magalhães e Silva uma pessoa de bem, um homem íntegro que respeita o sofrimento alheio.  

 
Se nada fizer, passarei a encará-lo como aquilo que certamente não é: um vulgar canalha.

 

António Araújo
 
 

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Morte de cão.

 
 
 
 





Os Roberts tinham um cão de que gostavam muito, o Duke. Os veterinários detectaram um cancro nos ossos de Duke e os Roberts decidiram-se pela eutanásia, o que não se contesta. Mais questionável parece ser o seguinte: decidiram conceder a Duke um último dia de vida maravilhoso, com tudo o que o cão gostava de fazer. Até aqui, tudo bem. Mas decidiram mais. Decidiram contratar um fotógrafo profissional que registou, um a um, todos os momentos do derradeiro dia de vida – ou de morte – de Duke. Depois, colocaram legendas nas fotografias, como se fosse Duke a falar. E publicaram tudo, numa reportagem que virou viral.  Há problemas mais graves no mundo, bem sei, mas esta apropriação da vida alheia, mesmo canina, parece-me algo abusiva. Até pornográfica. Mas talvez esteja enganado, ficando à consideração de quem quiser ver a série fotográfica, que está aqui.
 
 
 
 

terça-feira, 22 de julho de 2014

Embuste.


 
 
 
 
 
         Malomil adora recriações, manipulações e outras piratagens. Nada tem a ver com política ou o que quer que seja, mas com a verdade verdadinha. Há muito tempo que não abordávamos o tema e também há muito tempo que não apanhávamos uma tão boa. Uma imagem de uma criança síria, supostamente sepultada entre as campas dos seus pais, explodiu no Twiter e no Facebook. Por exemplo, aqui. Não tardou muito que se soube: (a) que os túmulos não eram túmulos, mas montes de pedras; (b) que a criança não era órfã e que o autor da fotografia era o seu tio; (c) que a fotografia nem sequer era da Síria, mas da Arábia Saudita. Explicações aqui. Para que não restem dúvidas, a imagem sorridente:


 
 
 
 

sábado, 19 de julho de 2014

Não escrevam no Facebook dos mortos.

 
 
 

Fotografia de Inge Morath
 
 
 
Não é andar em cima do túmulo, mas anda perto. Sei que as pessoas fazem aquilo numa pressa de confortar, num repente de fofura, num instinto de bondade, mas se deixassem o instinto e usassem a cabeça talvez chegassem à mesma conclusão que eu: há qualquer coisa de errado nessa mania de escrever no Facebook de quem acabou de morrer ou de quem já está morto há muito tempo. Não sei precisar qual é o pecado destes salteadores de murais, mas sinto que o acto é ofensivo. No mural de famosos ou de anónimo, é coisa que não se faz.
Se somos íntimos da pessoa, é patético usarmos o Facebook porque devemos dar as condolências à família no local apropriado. Se não somos íntimos, é patético fingirmos uma comoção íntima. Porventura, é isto que me irrita: a banalização das condolências, o comércio de pêsames. “Dar os sentimentos”, como diziam meus avós, é um acto pessoal e analógico que não deve entrar no circo virtual. Prestar a última homenagem só pode ser um contacto corporal e quase secreto. Sim, quase secreto, como a senha do computador. As condolências são apenas para o ouvido da mãe, mulher, filho ou irmão do falecido. Não se colocam assim num estendal para centenas ou milhares cuscarem na net. Dar os sentimentos requer silêncio, e não há silêncio na net. Mesmo com colunas desligadas.
Mas, se calhar, o pecado está na própria página do Facebook que continua a existir enquanto o seu proprietário já está na morgue. É como se o perfil de Facebook fosse um avatar com vida própria e sem respeito pelo fundador. Sim, há qualquer coisa de errado na perpetuação do Facebook de quem já morreu. Mais uma vez, percebo o instinto caridoso da malta que perpetua a página: querem transformar aquele Facebook numa espécie de mausoléu, querem ter um cemitério à mão de semear. Contudo, se não se importam, volto a dizer que a morte é um assunto demasiado sério (e analógico) para ficar tão exposto ao circo virtual. Se querem prestar homenagem ao falecido, desloquem-se até ao cemitério e coloquem umas flores (analógicas) no túmulo. Eu sei que este acto não é likável, mas é o único aceitável. Não facebookizem a morte.    
 
Henrique Raposo
 
Expresso – Diário, 30 de Junho.
 
 

sábado, 24 de maio de 2014

As cartas de Renato.


 
 
Foto: Correio da Manhã



Na sua edição de hoje, o Correio da Manhã revela-nos um princípio essencial da Física das partículas:  mesmo quando batemos no fundo, é possível descer ainda um pouco mais. Sobre este vómito moral, noticia-se que se procedeu a uma análise grafológica das cartas privadas – repete-se: privadas – que Renato Seabra enviou à jornalista Marta Dhanis. Um grafólogo, de seu nome Luís Philippe Jorge, concluiu agora que Renato Seabra é bipolar. «Caligrafia de Renato revela que é bipolar», informa, em título, o Correio da Manhã. «Análise a cartas do ex-modelo mostra jovem infantil, imaturo e incapaz de tomar decisões», escreve-se logo a seguir. Obrigado, Marta Dhanis, obrigado Correio da Manhã. Mas, por ora, basta. Este já foi suficientemente espezinhado. Agora queríamos, por favor, uma reportagem completa sobre a vida sexual do foragido de São João da Pesqueira, o nosso tão estimado «Palito».
 
 
 

terça-feira, 20 de maio de 2014

Um vómito moral.

 








Lê-se e não se acredita. O ano passado, a jornalista da TVI Marta Dhanis tomou a iniciativa de escrever a Renato Seabra, o homicida de Carlos Castro que se encontra a cumprir 25 anos de pena de prisão numa cadeia dos Estados Unidos. A primeira carta que recebeu de Seabra era lacónica e de poucas palavras, um pouco tímida até. Mas, aos poucos, a jornalista conseguiu ir conquistando a confiança e a intimidade do recluso. Poucos dias depois, em Junho de 2013, Renato Seabra enviava uma nova missiva, onde contava como se sentia ali, na prisão. O Correio da Manhã, com toda a tranquilidade e à largura de página inteira, reproduz uma carta de Renato Seabra para Marta Dhanis, escrita na prisão, na sua revista Domingo do passado dia 18. Na peça jornalística, assinada por Leonardo Ralha, chega-se a fazer humor com os erros de ortografia das cartas de Renato Seabra. Nessa revista do Correio da Manhã, aliás, transcrevem-se excertos e publicam-se fotografias doutras cartas de Seabra, com todo o desplante e a maior naturalidade do mundo. Sem o mínimo pudor ou escrúpulo. Cartas que foram escritas para um destinatário preciso, que não foram redigidas para saírem num jornal ou serem publicitadas. Cartas pessoais. Pior ainda: aproveitando este material tão íntimo, tão privado, escrito por um condenado a 25 anos de cadeia, Marta Dhanis publicou um livro. A € 11,70 a unidade, O Caso Renato Seabra: Por Detrás das Cortinas. Com a chancela da Chiado Editora, vai ser lançado já no próximo dia 22.
 
 
 
Olá Marta!
Por aqui há dias muito difíceis...
 
 
Acontece, porém, que o visado, ao que parece, não só não autorizou como não tem, ou não teve, conhecimento de que a sua correspondência iria ser publicada, em jornal e em livro. Paternalista e condescendente, permitindo-se falar em nome ou em lugar dos outros, Marta Dhanis adianta a opinião alheia: «Creio que não irá reagir de forma negativa [ao livro]. Acho que irá compreender» (declarações ao CM/Domingo, de 18.05.2014). Mas, então, por que motivo não lhe perguntou antes se Renato Seabra se importava, se «compreendia» que as cartas que escreveu fossem publicadas? Que um livro saísse? A família de Renato Seabra, pelos vistos, importou-se – e muito. O seu cunhado, porta-voz da família, já veio afirmar que Marta Dhanis se aproveitou da fragilidade do recluso para «ganhar dinheiro» à sua custa (aqui).

É aqui que bate o ponto. Não se trata de publicar correspondência de pessoas já falecidas, incapacitadas ou impossibilitadas de consentir na revelação da sua intimidade. Marta Dhanis teve a possibilidade de obter a autorização do visado  para a publicação destas cartas – ou, no mínimo, de lhe dar prévio conhecimento do livro que estava a preparar. Será que o fez? Parece que não. Mais: corresponde-se ao longo de meses com Renato Seabra, decide escrever um livro sobre ele e o seu caso e não lhe manda sequer uma carta a avisar?

O Diário de Notícias, «jornal de referência», também não teve pudor algum em publicar trechos das cartas de Seabra, dando notícia do livro que a colega-jornalista vai lançar dentro de dias. «Renato Seabra conta que chora na prisão», é o título pornográfico do centenário diário. Por todo o lado é notícia a saída do livro da colega d'ofício Marta, desde a Lux à Nova Gente, passando pelo Destak. O Correio da Manhã e, pasme-se, o Diário de Notícias alinham por este diapasão tabloide. A classe jornalística, tão lesta e impiedosa a julgar os outros, não se questiona, não se interroga sequer sobre a legitimidade ética deste procedimento?

Há quem diga aqui, claramente à defesa, que o livro não se baseia nas cartas de Renato Seabra, que a alusão às missivas ocupa apenas duas páginas da obra. Pior ainda. As cartas surgiram publicadas – e até fotografadas – na imprensa de grande circulação. Tinham uma destinatária, a autora do livro. É mais do que legítimo supor que foi ela que as forneceu aos colegas, no âmbito da operação comercial de lançamento do seu livro. E, pelos vistos, as cartas nem sequer interessam para a narrativa de Marta Dhanis. Só importam para quê, então? Para apimentar a promoção mercantil do livro? Sim, porque são publicadas agora, em vésperas de lançamento? Dê-se as voltas que se der, a verdade é só uma: Marta Dhanis tomou a iniciativa de escrever a Renato Seabra, este respondeu-lhe a ela, só a ela, e esta publica e publicita a correspondência recebida. Insiste-se: ao que tudo indica, sem pedir autorização, ou sequer dar conhecimento, a quem nela confiou os seus pensamentos mais íntimos, pessoais e intransmissíveis. E mesmo, por mera hipótese, que existisse ou exista autorização para publicitar as cartas da prisão, não deveria a autora do livro ter informado o biografado de que escreveu um livro sobre a morte de Carlos Castro?

Por mais mal que tenha feito, Renato Seabra, estamos em crer, ainda é um ser humano. Sem liberdade, mas com dignidade. Não, não merecia isto. Um vómito moral.
 
 
António Araújo