Mostrar mensagens com a etiqueta Colonialismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Colonialismo. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Angola, 1961, começou a defesa do Império: Documentação e análise de um rigor dificilmente atingível por um só investigador.




O historiador Valentim Alexandre dá-nos conta neste seu trabalho de arromba o propósito da obra: “Sendo totalmente autónomo, este livro inscreve-se num projeto mais vasto, que visa fazer o estudo da última fase do colonialismo português. Noutro volume, intitulado Contra o Vento, seguimos a evolução do Império, após a Segunda Guerra Mundial, até 1960 – um período caracterizado pelo movimento de descolonização que, com incidência primeiro na Ásia e depois em África, levou à desagregação dos sistemas coloniais europeus. A exceção foi Portugal, que tomou nesta fase um rumo divergente, resistindo aos ‘ventos de mudança’. O livro depois publicado – Os Desastres da Guerra – Portugal e as Revoltas em Angola (1961 – janeiro a abril) – tem como centro a análise das três convulsões que, em começos de 1961, em zonas geográficas diferentes, abalaram o domínio colonial em Angola – a revolta da Baixa de Cassange, de janeiro a março; o assalto às prisões de Luanda, em fevereiro; e a insurreição no norte do território, a partir de 15 de março – assim como das suas repercussões em Angola e na metrópole. O presente volume retoma o fio dessa meada em que, a 13 de abril, o Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, vencido o golpe de Estado conhecido por Abrilada, assumiu a pasta da Defesa, fazendo-se desde então a mobilização do contingente geral do Exército para combater a insurreição angolana.”

Nesse dia 13 de abril, Salazar dera início à remodelação governamental, num breve discurso anuncia que se irá avançar para Angola, rapidamente e em força. A opinião pública ignora que houve uma tentativa de golpe de Estado, quem promovia alterar o curso dos acontecimentos era um movimento encabeçado pelo próprio ministro da Defesa, Botelho Moniz, escrevera-se a Salazar uma carta, falava-se em situação angustiosa e em breve insustentável das Forças Armadas, havia que restituir ao país as liberdades essenciais, entre outros argumentos. O ditador não desconhece que há sinais de ebulição nas colónias africanas, a Guiné está cercada de países independentes, o Congo deixou de ser belga, há crise na Federação das Rodésias e da Niassalândia, os efetivos militares portugueses são mínimos, mas outras colónias conhecem surtos nacionalistas e há pressões para a sua anexação no Estado da Índia. Adriano Moreira é o novo ministro do Ultramar, é nesse período dramático que ele se dirige a Angola, percorre as zonas em turbilhão, discursa, anuncia reformas, publica diplomas, não são medidas de fundo, e o ministro sabe perfeitamente que não pode contar com grandes aberturas por parte de Salazar, a rutura virá no ano seguinte.

Reocupa-se em termos militares o norte de Angola, os primeiros batalhões e outros contingentes são deslocados para os locais onde houvera massacres, e onde os próprios angolanos tinham fugido face às atrocidades da UPA, que, demonstradamente, não trazia preparação para lutar em termos de guerrilha. A questão angolana é analisada na ONU, o regime de Salazar descobre que nem os Estados Unidos estão do seu lado e há velhos aliados que se abstêm nas votações, a favor só se manifestam a África do Sul e a Espanha. A propaganda portuguesa exibe os massacres e monta um discurso que ganhará perenidade: os terroristas vem de fora, são apoiados pelos comunistas, Portugal passou a estar na vanguarda da defesa do Ocidente. E, contudo, os velhos aliados continuam a fazer bons negócios e a dar ajudas a Portugal.

Valentim Alexandre disseca a essências das reformas, procura-se acabar com o trabalho forçado e com as monoculturas de entidades estrangeiras. Cedo se percebe que era necessário revogar o Estatuto do Indigenato, para ter um mínimo de credibilidade a nível internacional. Discute-se a integração económica do espaço português, o autor disseca o relacionamento da UPA com o MPLA (este ainda tinha um papel extremamente tímido na alvorada da luta armada e a UPA beneficiava de um melhor tratamento internacional, da Argélia aos Estados Unidos). É-nos também dado um mapeamento das forças partidárias envolvidas no conflito angolano e quais a suas linhas de clivagem. Regressamos Às fragilidades do Império português, no caso da Guiné, o PAIGC já está a preparar quadros, um movimento de manjacos ataca em S. Domingos, Susana e Varela e depois umas emboscadas (pratica atos de vandalismo e depois sai do teatro de guerra.

Tudo se adensa na cena internacional, o regime tem cada vez mais dificuldade de argumentação tanto junto da NATO como em Nova Iorque. Na cena interna, como observa o autor, “O PCP era a única força de oposição que tinha uma perspetiva anticolonial definida desde 1955, na sequência da crise de Goa. Nos anos seguintes, o PCP seguiu com grande atenção a questão colonial, a que dava um largo espaço no jornal Avante!, onde se denunciava a repressão exercida nas colónias. O PCP manteve a mesma linha, no essencial, em começos de 1961, após as rebeliões em Angola.” Anteriormente o autor dera-nos conta como o conceito imperial vincara o republicanismo e a oposição liberal ao Estado Novo aparecia ou a calar ou a consentir a defesa do Ultramar português, como se vira no ato eleitoral que ocorrera em 1961.

A síntese da obra neste volume de mais de quinhentas páginas dá-nos uma grande angular da natureza da resposta do regime, do tal quadro que condicionava a política colonial portuguesa e a dos anos de 1870, naquilo que mais tarde se irá chamar o Terceiro Império, a saga africana, um lastro histórico que Valentim Alexandre aprecia numa escrita luminosa, abrindo caminho para o que se segue, a questão da reforma do regime colonial português, o ditador é fortemente centralizador e há os defensores da gradual autonomia, isto é, as relações políticas entre as diversas parcelas do Império. “Adiada em 1961, pela premência que a insurreição no norte de Angola criava, a questão eclodirá no ano seguinte, num debate tumultuoso, que culminará em outubro numa célebre reunião plenária do Conselho Ultramarino. No campo das relações económicas deu-se um passo importante na via de criação do ‘espaço económico português’ tendente a estabelecer a livre circulação de mercadorias de origem nacional entre os vários territórios.”

É impressionante o trabalho deste historiador que lançou mãos a algo que só é imaginável nas mãos de uma farta equipa – parece que estamos a acompanhar mês a mês, com o pano de fundo da maré anticolonial (1945-1960), as vicissitudes do fim do Império, com uma ordem de trabalhos e um rigor inatacáveis.

De leitura obrigatória.


                                                                                               Mário Beja Santos




quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial.

 ´




 

 

Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: janeiro a abril) por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo. Recorde-se que ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe. Vamos esperar ansiosamente que o historiador leve a bom porto o ciclópico trabalho.

Que ele nos oferece sobre estes primeiros meses de 1961, graças a uma escrita incisiva, poderosamente didática, uma excelente tintura de ambientes, uma rigorosa sequência cronológica, não é só o início da Guerra Colonial, dá-nos em traços largos os prenúncios, a tímida preparação e reajustamento das Forças Armadas para eventuais conflitos que desobedeciam inteiramente a uma guerra convencional, sentimos a evolução africana e as primeiras independências, seguimos para o Norte de Angola, somos apresentados aos protagonistas, e entramos de supetão na rebelião da Baixa do Cassange, as Forças Armadas irão ser confrontadas com as brutezas do trabalho forçado e da exploração do indígenas na cultura do algodão, a resposta será brutal, envolverá bombardeamentos aéreos; o Regime pretextará que se trata de ameaça externa, incompatível com a sociedade multirracial que apregoava. Mas o historiador explora outros objetivos associados aos acontecimentos da Baixa do Cassange, da linha das crendices e feitiçaria.

O acontecimento seguinte, e estamos em fevereiro de 1961, são os assaltos às prisões de Luanda, mais tarde, sobretudo o MPLA tentará tirar dividendos da sua intervenção, o que não está comprovado. As autoridades andam atarantadas, os tumultos de Luanda são contemporâneos da Revolta de Cassange, acresce que estão presentes em Luanda repórteres internacionais, tudo por causa do assalto ao paquete de Santa Maria, era suposto que se encaminhava para Luanda. A reação da população branca aos assaltos às prisões também foi brutal. O autor releva as peças documentais que evidenciam as vulnerabilidades do poder colonial português. E é neste quadro que se dá a insurreição armada no Norte, aí sob a égide da UPA. E mais uma vez somos convocados para perceber as raízes da revolta, o Regime procura desenvolver a ideia que havia uma conspiração internacional que atentava contra a perfilhada ideia de coesão racial. Havia a exploração, sobretudo na cultura do café, a documentação é exibida, mais uma vez a irrefutável exploração. E assim chegamos a um caos sangrento, a uma matança bárbara, mais uma vez as Forças Armadas ficaram confusas e as milícias civis envolveram-se também numa brutal resposta. Sobretudo as confissões protestantes foram apresentadas como bodes expiatórios, marcou todo o processo de repressão da rebelião. Tudo se vai agravar no Norte, a resposta do envolvimento de contingentes militares metropolitanos chegara em abril, as revoltas de Angola passarão a ter uma metódica resposta da contraguerrilha.

Valentim Alexandre dá-nos as movimentações políticas em Angola, as organizações dos brancos, a resposta dos meios económicos através das suas associações e temos também o quadro das organizações políticas africanas, uma síntese esclarecedora onde cabe o trabalho dos independentistas do enclave de Cabinda.

Postos no terreno os elementos primordiais destes três principais tumultos angolanos, o autor orienta-se para repercussões que eles tiveram em Portugal. De novo somos levados para a arena internacional, os novos países marcam presença na ONU e a nova administração Kennedy é manifestamente anticolonialista, o regime de Salazar procura afanosamente aliados e apoios, eles virão, mas serão modestos, abre-se é a janela para a compra de armamento e equipamento, todo o apoio que vem da África Austral é recebido com cuidados, o Estado Novo não quer aparecer nos meios diplomáticos como um aliado de políticas racistas. É altamente esclarecedor este capítulo sobre a ação de Portugal no quadro africano para ficarmos a perceber o isolamento da argumentação sobre o Portugal multirracial. E assim chegamos a uma fascinante descrição dos acontecimentos conducentes da Abrilada, um golpe palaciano que tinha o General Botelho Moniz como figura de proa, prontamente sufocado, é a partir daí que Salazar, em perfeita consonância com a cúspide das Forças Armadas se lança na resposta para repor, ou tentar repor, a paz no Norte de Angola, é uma narrativa só possível a um investigador que tem os dados rigorosos na mão e os expõe com uma fluência de uma quase reportagem de aventura e ação. Não menos importante são as conclusões que o autor apresenta neste seu primeiro livro no arranque da Guerra Colonial. Logo o parágrafo de abertura: “Em começo de 1961, as revoltas em Angola puseram fim ao mito da pax lusitana, segundo o qual o colonialismo português, pela sua capaz de assimilação e de integração, mantinha uma convivência fácil com os povos ‘indígenas’, sem problemas nem atritos de maior. Na realidade, o mito só tivera um aparento fundamento durante um curto período de quatro décadas, desde o fim das campanhas de ‘pacificação’, por volta de 1920. As sociedades colonizadas por Portugal, nomeadamente as do continente africano, atravessaram então uma fase de segmentação e atomização, que lhes diminuíram drasticamente a capacidade de resistência”. Recapitulam-se os dados essenciais dos três autos insurrecionais, dá-se conta da posição das organizações políticas de Angola, não se descura o projeto imperial que vinha antes do regime de Salazar, mas que este endeusou, tornou-o a construção vertebral a que assentava a Nação, sem Império ficaríamos reduzidos a nada. O autor lembra os movimentos subversivos por toda a África, a alteração radical que se dera no ambiente internacional quanto à questão colonial e que a prazo irá selar o destino do domínio colonial português.

Uma obra historiográfica incontornável, uma leitura imperdível. 


Mário Beja Santos






 


terça-feira, 26 de outubro de 2021

ALCORA, a aliança “ímpia” entre o Portugal “multirracial” e o Apartheid.



 

 

Nos últimos anos a bibliografia sobre o Exercício ALCORA tem-se vindo a ampliar graças às investigações nos arquivos que conservam documentação sobre a guerra colonial. Avulta dentre a bibliografia o trabalho de Vicente de Paiva Brandão, ALCORA, a derradeira tentativa de manter o Ultramar Português, Casa das Letras, 2020. Tudo terá começado com a tese de doutoramento do autor a que se deu um alindamento posterior. Reconheça-se que há singularidades na pesquisa de Paiva Brandão, percorreu arquivos nacionais e estrangeiros, procedeu a História Oral e recolheu opiniões de intervenientes que acompanharam o desenvolvimento deste protocolo.

Dá-nos em primeiro lugar uma síntese da História da África do Sul, que nos poderá ajudar a compreender a essência do poder branco e a perceção que o país do Apartheid possuía sobre a importância crucial de ter o respaldo do Império Português. O autor dá-nos neste ponto uma evolução do pensamento sul-africano ao longo do período que se iniciou com a descolonização do continente africano e das iniciativas tomadas para a aproximação com o Estado Novo, impunha-se, na lógia de Pretória, uma defesa mútua dos valores da civilização ocidental.

A política de Salazar era, por um lado, recetiva à cooperação mas, por outro lado, reticente quanto às ambições hegemónicas da África do Sul e ao risco de aparecer na comunidade internacional como parceiro de uma política racista, como o autor observa: “No caso português, duas ordens de razões justificavam que se procurasse discrição: primeiro, tal colaboração existia e era uma mais-valia para as forças lusas que não convinha publicitar; por outro lado, a Lisboa não interessava a colagem a Pretória, pois esta revia-se no sistema do Apartheid, doutrina que colidia com o multirracialismo veiculado por Portugal. Também no que dizia respeito à Rodésia, o executivo luso pautava-se pela prudência, devido às desavenças entre Ian Smith e o governo de Londres, agravadas após a Declaração Unilateral de Independência daquele território em relação ao Reino Unido. Este hábil jogo diplomático prolongou-se durante o consulado de Salazar, mas com Marcello Caetano, com a agudização das incursões da Frelimo, sobretudo na província sul-africana de Tete, e a crescente atividade da SWAPO no Sudoeste Africano, em associação com movimentos de libertação angolanos, levou ao estabelecimento, em outubro de 1970, de um convénio ultrassecreto cujo título nos dossiês é de Exercício ALCORA. Vai-se formalizar o compromisso das autoridades dos três países em definirem estratégias e planos concertados para combater inimigos mortais”.

Em 1964, a Rodésia do Norte tornou-se na República da Zâmbia, avolumaram-se as críticas ao domínio branco, a Rodésia do Sul, em novembro de 1965, declara unilateralmente a independência face à Grã-Bretanha, surge um novo aliado para combater a subversão dos independentistas, haverá bloqueio por parte da Grã-Bretanha, graças ao porto da Beira, Salazar facilitará os abastecimentos essenciais do governo do domínio branco de Ian Smith.

Como se disse acima, Marcello Caetano foi convencido a uma nova abordagem militar, 1970 é o ano da Operação Mar Verde, dirigida contra a Guiné-Conacri e a Operação Nó Górdio no Norte de Moçambique, com a primeira agravou-se o isolamento diplomático de Portugal, com a segunda a FRELIMO que deixara as suas bases às moscas foi avançando para o Tete.

O autor dá-nos conta do que foi a política de aproximação da África do Sul a certos países africanos, tudo se agudizou em termos de política externa: falência no diálogo com os estados africanos, incluindo Madagáscar; esfriamento das relações com o Botswana; afastamento e hostilidade do Lesoto; manteve-se alguma cooperação com o Malawi, Maurícias e Suazilândia e algum relacionamento com a Zâmbia. É de utilidade o enunciado sobre a diplomacia bilateral, se bem que esta matéria apareça estranhamente repetida noutros pontos do livro. O entendimento entre a África do Sul e o Estado Novo fez parte da estratégia militar sul-africana logo na década de 1950 e o autor dá um bom quadro destas diligências; entretanto todo o cenário da subversão se alterara com os três teatros de guerra nas colónias portuguesas e assim chegamos a outubro de 1970 em que o Exercício ALCORA reuniu Portugal, a África do Sul e a Rodésia, todos os convites endereçados pela África do Sul às antigas potências coloniais não obtiveram resposta. Portugal tinha recursos limitados e aceitou apoio externo dentro da combinação trilateral, o apoio em meios aéreos foi muito bem-vindo.

E dá-se uma descrição do suporte, logo no Sudeste de Angola com os helicópteros Alouette III e a colocação de combustível no Sudeste angolano. O autor observa que esta cooperação iniciara-se já em 1968, agora intensificava-se, o protocolo tinha um objetivo muito elástico: “Investigar os processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, a República da África do Sul e a Rodésia, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral”. Dava-se ênfase ao aspeto militar, estabeleceram-se modos organizacionais envolvendo também a contrainformação, telecomunicações, unidades de reserva e até reconhecimento e fotografia aérea. Este último aspeto era muito importante para Portugal que não dispunha de grandes meios ao nível fotográfico. Em 1971, reuniu-se a subcomissão ALCORA de defesa aérea, aí se constatou que os caças da Força Aérea Portuguesa F-84 e G-91 eram inferiores a uma hipotética ameaça de aparelhos Mig-19 e 21. E concluiu-se ser imperioso a criação de uma força de ataque com Mirage M-5 e F-1; a ajuda suplementar em helicópteros foi também considerada.

Os políticos sul-africanos estavam atentos à evolução da FRELIMO em direção ao distrito de Tete, podia pôr em perigo a construção da barragem de Cahora Bassa, que seria vantajosa tanto para a África do Sul como para a Rodésia. Os sul-africanos tinham ficado igualmente dececionados com as iniciativas espalhafatosas de Kaúlza de Arriaga. Quando, em setembro de 1971, Ken Flower, chefe dos Serviços Secretos rodesianos, se encontrou com Marcello Caetano, deu a saber ao político português que a guerra poderia estar comprometida em Moçambique, caso não se alterasse a respetiva orientação, havia infiltrações da FRELIMO provenientes da Zâmbia e dirigidas a Tete. Ian Smith irá nos próximos anos revelar a inquietação que lhe provoca a situação em Moçambique. Intensificou-se o apoio militar a Portugal.

O autor dá-nos seguidamente a apreciação do histórico da cooperação militar bilateral, desvela os múltiplos contatos entre os parceiros do protocolo trilateral, a África do Sul esteve sempre atenta à evolução dos acontecimentos em Angola e Moçambique, temia que ambas as colónias caíssem na esfera da influência colonista, e depois dos graves acontecimentos na Guiné de 1973 abriram os cordões à bolsa para que Portugal comprasse armamento e equipamento à altura dos novos desafios. Para o autor, a intervenção da África no Sul nas guerras que Portugal travou em África não terá sido decisiva. É da maior conveniência ler esta obra no contexto das diferentes investigações efetuadas desde a década de 2010.


                                                                                                       Mário Beja Santos




segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Quando um navio abandonado nos faz viajar pelos fantasmas do império.

 

 

O que há de mais eletrizante no romance Angoche, Os fantasmas do Império, de Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2021, é o aproveitamento de um enigma aparentemente irresolúvel para viajarmos aos derradeiros anos da vida imperial portuguesa. Um navio mercante partiu de Nacala em 23 de abril de 1971, com destino a Porto Amélia (hoje, Pemba). Ia com 24 almas e um importante carregamento de material de guerra. No dia seguinte, um petroleiro encontra o Angoche à deriva, incendiado e sem ninguém a bordo, parecia mais uma dessas histórias de navios-fantasmas. Abre-se inquérito, especula-se quanto ao facto de ter havido duas explosões, atribuiu-se tudo ao terrorismo. Depois do 25 de Abril, os relatórios da PIDE/DGS. O romance do autor da obra-prima Nó Cego questiona a moralidade e o egoísmo, mas o que ficará desta digressão e inquirição, onde se aparenta um trabalho de escrita de crime e mistério, muita conversa do autor com o tio de Dionísio na Ericeira, é irmos às entranhas da guerra em Moçambique, forjam-se amizades entre os homens da Marinha, o capitão-tenente Dionísio era então oficial de informações e as nótulas históricas que o autor introduz como de primordial importância, não exatamente para apurar o desempenho de temíveis serviços secretos sul-africanos que se teriam servido do Angoche para mandar um sério aviso – Moçambique não poderia ser independente. Dentro do círculo em que se move Dionísio há uma ou outra figura que recebe destaque, Saúl, sabia muito de missa sobre o Angoche, entram no terreno literário os homens do BOSS, os Serviços de Informação e Segurança da África do Sul. Era logo evidente na primeira fase de inquérito a contradição das mensagens, houvera manipulação ou distorção para que a mentira falasse mais forte.

É neste contexto que Carlos Vale Ferraz nos desvela uma panorâmica do que foi efetivamente a luta pela independência de Moçambique, dá-nos quadros de intensa vibração entre o que era o norte e o sul, o papel das potências racistas que subordinaram a política portuguesa a um quadro de maior vigilância de terrorismo através do Exercício Alcora, movem-se figuras exuberantes, por vezes completamente dissonantes, como Kaúlza de Arriaga e Jorge Jardim, é magistral o retrato do chefe de brigada da PIDE, Casimiro, há as mulheres de relações fáceis, algumas delas profundamente amadas, aparece um agente da secreta francesa, Dominique de Roux, que andará por Lisboa à volta o 25 de Abril. Tudo isto nos vai aparecendo em encontros entre o autor e o seu tio Dionísio, ele vai soltando a língua com muito vagar, o mistério em espiral deve permanecer até ao fim, Saúl aparece e reaparece, é um cafajeste, ainda por cima ligado a Margarida Palma Vidigal, detentora de muita informação, e há Van den Bergh, o chefe da BOSS, tratado como um porco ou um amoral. E o autor, inopinadamente, dá-nos frescos do melhor recorte literário:

“Os marinheiros de todo o mundo conhecem a Costa dos Esqueletos, no deserto do Namibe. Um local árido, no Atlântico Sul, onde a corrente fria de Benguela choca com o ar escaldante do continente, provocando temporais que atiram os navios contra os baixios de rochas cortantes. Pouco ou nada cresce nas areias do Namibe, e raros animais conseguem adaptar-se a um meio ambiente tão inóspito (…) As instalações discretas, de casernas pré-fabricadas, quase invisíveis nas areias da Costa dos Esqueletos, escondiam a prática de ações fora de qualquer limite e à margem de regras elementares de humanidade por parte dos dirigentes de Pretória, em particular dos polícias sul-africanos. Os barracões, semelhantes aos dos campos de concentração nazis, esconderam laboratórios para a realização de tenebrosas experiências de guerra química e biológica, desenvolvidas pelos Serviços Secretos Sul-Africanos”. Também o que se passa em Moçambique é alvo do impiedoso olhar clínico do autor: “No desconjuntado triângulo do poder em Moçambique, os vértices lutavam uns com os outros para ocuparem o topo. O governador-geral e o comandante-chefe apenas se relacionavam para indispensáveis assuntos de serviço, mas Kaúlza, como Dionísio tivera oportunidade de verificar, também se entendia mal com Jardim, um espinho permanentemente cravado na vaidade do cabo de guerra, através do domínio que o engenheiro exercia sobre as milícias de negros, a DGS, a comunicação social, o seu jornal e a sua rádio, a influência nos países vizinhos, as amizades e cumplicidades entre ele e os políticos e militares da África do Sul, da Rodésia, os dirigentes do Malawi e até da Zâmbia. Jardim ignorava o governador-geral, que por sua vez não lhe reconhecia outro estatuto do que um fura-vidas agente de negócios, e intrigava contra o jornal, espalhando a ideia da sua incapacidade política e militar”.

Há mortes estranhas, como a de Margarida, fez-se constar que se suicidara. Chega o fim da comissão de Dionísio em Moçambique, nestas consecutivas conversas entre o autor e o seu tio Dionísio, apura-se que o Angoche o manchara na sua dignidade e o obrigara a envolver-se nos acontecimentos do 25 de Abril, entramos num universo patético, Jorge Jardim ameaça com uma solução de independência. Há um encontro em Madrid entre dois homens de informação, Dionísio e Peter W, oficial inglês. Este revela a Dionísio que a má sorte do Angoche e dos seus tripulantes caiu no meio do jogo em que as fações do governo da África do Sul travavam dentro da estratégia total. Destas conversas entram e saem dos bastidores outros oficiais da Marinha como Saúl e Cândido, fala-se das ligações de Saúl a Calvão, este ligado ao negócio de armas. Saúl confessou a Dionísio a operação dos Serviços Secretos sul-africanos sobre o Angoche. Calvão merece destaque, ele que ganhara nome na Operação Mar Verde, o assalto a Conacri, aparece ligado a várias insurreições, mas o império desmorona-se.

E nesse mundo em cinzas, o autor socorre-se de outra alegoria, a casa do tio Dionísio desaparece num incêndio criminoso. “As câmaras de vigilância e os sensores contra estranhos, que protegiam a vivenda, haviam sido desligados, os fios cortados. A central de controlo da empresa de segurança não recebera qualquer sinal de intrusão. O corpo do meu tio nunca foi encontrado, nem descoberta a causa do incêndio, nem os autores”. Novo silêncio, como no atentado ao Angoche, os grandes criminosos hão de sair impunes. E os mortos não falam.

De leitura obrigatória. 


Mário Beja Santos



 


terça-feira, 13 de julho de 2021

Expiação e catarse: há desastres da guerra que não se apagam.




 


Rui de Azevedo Teixeira foi oficial de comando em Angola, doutorou-se em Língua Portuguesa e possui bibliografia ligada à investigação sobre a literatura da guerra colonial, ficção e ensaio. O seu O Elogio da Dureza, Gradiva, 2021, conta-nos a história de Paulo de Trava Lobo Ferreira, alguém com sérios problemas de identidade familiar, dado desde a juventude à leitura, passou meteoricamente pela Universidade de Coimbra, onde se aborreceu de morte e ofereceu-se como voluntário para a tropa, seguiu para o curso de Oficiais Milicianos. Como tinha poucos recursos, ficava por lá aos fins-de-semana. A palavra “Comando” galvanizou-o. Entretanto começou a escrever um diário a que apodou de diário incerto, com muitos comentários literários e apreciações do meio regional de onde provinha. Nisto, damos um salto, Paulo já voltou da guerra em Angola, regressou a Vila Velha do Mar. “A guerra, como uma forma de iniciação, tinha-o metamorfoseado. Dera-lhe dureza, um código de silêncio e um sentimento de superioridade em relação aos não-iniciados”. Refugia-se no diário incerto, anda à deriva, não tinha verdadeiramente regressado. “Vivia entre dois tempos e dois espaços, entre o recentíssimo passado angolano e o presente português. Pensou até em voltar lá como mercenário, numa empresa de um almirante comunista, para lutar pelo MPLA. Um mercenário marxista-leninista?! Baralhado, largou a ideia, substituindo-a por outra de uma vida também dedicada à violência – o assalto a bancos e a propriedades dos ‘patriotas dos interesses’ que tinham fugido para o Brasil”. Procurava acompanhar o processo revolucionário, os pais tinham filiações ideológicas opostas, dispersão que chegava aos irmãos. Através do Regimento dos Comandos recebe a incumbência de vigilância dos Comunas do concelho. E recuamos, desta feita para um cenário de inferno, a preparação do Comando, em plena Angola, no Centro de Instrução, em Belo Horizonte, nos arredores da capital. Começa o vendaval da dureza: na formatura, todos hirtos, a apanhar o sol abrasador das duas da tarde; a loucura da sede, os primeiros instruendos a serem eliminados; os crosses, uma conjugação de mochila, G3, carregadores, granadas, cantil e botas e muito pó das picadas, linguagem de caserna não falta, Paulo vai-se temperando, descobre a sua resistência, a sua força psicológica. “Queria conhecer o seu limite último e ver quem aguentava mais. Competir em dureza consigo e com os outros”. Mais instruendos iluminados, começa a despontar a garra guerreira. “Começaram então a treinar a enérgica e individualizada continência à comando. Execravam a continência mole da ‘tropa macaca’. Já quanto a marchar, se a energia se mantinha, o individualismo era tabu. Queixo levantado, peito para fora, joelhos à altura da cintura e autênticas patadas no chão. Reacende-se a brutalidade na instrução. E dá-se um fim-de-semana, Paulo fica muito confuso com um episódio que viveu: “Paulo descia e o homem preto subia. Ambos pelo mesmo passeio estreito. O preto tinha cerca de 50 anos, cabelo grisalho, fato coçado. Um ar sério, digno, de pequeno funcionário. Três ou quatro metros antes de se cruzarem, o homem olhou para Paulo, baixou os olhos, encurvou as costas e, automaticamente, desceu do passeio para Paulo poder passar à vontade. Baralhou-se a cabeça ao cadete. Caiu-lhe muito mal que um homem preto de meia-idade se tivesse curvado, diminuindo-se, perante um jovem branco. Nenhum dos textos que tinha lido sobre o colonialismo teve em Paulo o mesmo impacto que esta cena muda numa rua de Luanda, em princípios de 1973. Tinha visto, sentido e percebido uma das faces do poliedro do Mal. Foi com este episódio que a grande nobreza militar do Código Comando, lido todas as manhãs na primeira formatura, começou a embaciar os seus olhos”. Dá-nos um belo recorte do repouso dos guerreiros nas esplanadas de Luanda, com todo o seu jargão de caserna. E formados e ajuramentados os Comandos, inicia-se a vida operacional e uma galeria de horrores que o autor não escusará ao detalhe mais infernal.

Como a arquitetura romanesca é a da montanha russa, voltamos ao processo revolucionário e depois um avião aterra no aeroporto do Luso, chegou a hora da primeira operação, temos um intermezzo com a Luxa, uma água-forte de erotismo à africana. E saltamos para a Operação Empurra Tudo, temos escalpes, facas na barriga a girar como o corno de um touro numa colhida, gente degolada, um pequeno massacre. Paulo extasia-se com a Natureza esplendente, sente-a como o princípio do mundo, mais guerra, mais tiros, Paulo acasalou com a Luxa e com a empregada desta. Saberemos muito mais sobre a vida operacional que leva na Zona Militar Leste. Há interrogatórios violentíssimos, mais orelhas cortadas, sucedem-se as operações e as notas íntimas no diário incerto, pois certezas já há muito poucas, crescem as dúvidas do que por ali anda a fazer:

“Na noite de despedida daquelas terras do calor e dos pretos, Paulo sentiu como nunca o Império a começar a desfazer-se e a morrer dentro de si. A ironia partia-o por dentro – a cada operação feita, tornava-se, cada vez mais, melhor operacional e, cada vez menos, crente na guerra que fazia. A violência já era bem feita, desinteressada e só a estritamente necessária. E ocorria-lhe cada vez mais a imagem do digno homem preto que, encolhido, desceu do passeio, em Luanda, para ele poder passar à larga”.

Voltamos ao processo revolucionário, Paulo voltou aos estudos, foi ganhando a pulso os seus títulos universitários, mas neste formato de montanha-russa voltamos a Angola, Paulo agora anda no Mayombe, fala-nos nos estouros metálicos dos trovões, na espessa massa vegetal, de cheiro intenso e meio adocicado, nos temíveis campos de minas, estamos há vários dias na Operação Pantufada. “Cinco metros à frente de Paulo, a minha rebentou levando com ela as pernas do furriel Tavares. O sangue esguichava das femorais. Tinha lido algures que o coração bombeia com tanta força que pode atirar o sangue com dez metros de distância (…) A consciência do furriel Tavares dissolvia-se. Em menos de meia hora, ficou enrugado como um velho. O olhar apagou-se. Morreu docemente, nem sequer teve um estremeção final”. Apanhou-se muito armamento nesta operação. Enquanto eles progrediam no Mayombe, o Estado Novo caíra em 25 de abril.

Já bacharel, visita em Vila Figueira Luís Pereira de Sá e Souza, descendente da mais antiga nobreza de espada, isto passa-se na região do Pinhal Interior, Paulo prepara-se para voos mais altos enquanto ensina; e novo voo memorial até Angola, onde se entrou na guerra civil. Deu aulas na ilha da Madeira, aqui se vai apaixonar. Volta a casa dos pais, sentiu motivos de sobra para nunca mais voltar a falar deles. E há uma bala furada, acompanha Paulo como uma graça do destino. Talvez este elogio da dureza seja uma catarse depois de tantos horrores da guerra ter encontrado o fundo da sua inutilidade.

Um testemunho símbolo para as novas gerações, para saberem o que viveu a de Paulo e todos os outros que experimentaram o mal e foram tentados por instintos sanguinários.

 

Mário Beja Santos 





quarta-feira, 7 de julho de 2021

Pele escura, de Graça Castanheira.

 




O breve documentário de Graça Castanheira conta a história da visita de um pequeno grupo de pele escura que mora na Trafaria, ao Centro Cultural de Belém. Ironicamente e como se se tratasse de um espelho, a visita tinha por fim fazer com que o grupo assistisse ao próprio documentário acerca dessa mesma visita. Esta narrativa coloca um problema principal: o de saber como é que um grupo com origens africanas – que vive na periferia de uma cidade, sofre o estigma da discriminação racial e social e ao qual se pretende dar voz – se relaciona com o centro, sobretudo com as suas instituições culturais.

Trata-se de uma relação ou de um conjunto de relações que se encaixam, em parte, numa ideia bastante essencializada do contacto de culturas. Resta saber qual a margem que o próprio documentário cria para conceber relações que escapem ao previsível, sobretudo, a representações geradoras de tantos estereótipos.

Ao grupo periférico são atribuídas várias características externas, em parte baseadas, em atributos corporais: a pele escura como consta do título, uma linguagem própria, uma forma de andar e de dançar que funcionam também como um estereótipo identitário, o vibrar com a música cuja letra contém em si uma alusão ao giro africano, os inevitáveis cabelos afro, vestuário e calçado de marca e o recurso ao telemóvel e aos phones, enquanto apropriação dos atributos do centro, por parte de um grupo considerado periférico.

Aos marcadores corporais acabados de enunciar somam-se três diferentes tipo de denúncias. A primeira diz respeito à queixa acerca dos meios de transporte. São os horários dos barcos e dos comboios ou a própria precariedade do automóvel que parecem impor-se como uma barreira, difícil de transpor, entre o centro e a periferia, explicando também os atrasos com os quais o próprio grupo brinca no final do documentário. Uma barreira, claro está, que não afecta apenas o grupo de pele escura, mas todos aqueles que vivem na outra banda (o que constitui um modo de atenuar uma perspectiva essencialista, abrindo para outros posicionamentos sociais). As barreiras são tais que melhor seria, como é dito por José a um dos mais jovens actores, bastava vir a nado e atravessar em linha recta o Tejo.

A segunda das denúncias, que divide os protagonistas, diz respeito à necessidade de o grupo periférico ter de se deslocar a Lisboa, para assistir a um espectáculo cultural. Isto é, à projecção de um filme. Não teria sido melhor, pergunta Amara, que tudo se passasse ali, na Trafaria, no centro cultural ou no espaço da biblioteca? Pergunta a que ela própria responde, considerando que os outros – os “pulas”, ou “tugas” – não conseguiriam sequer lá chegar.

Uma terceira denúncia envolve uma queixa mais funda em relação ao modo como os outros, os “tugas”, se continuam a fazer representar pelo chamado Padrão dos Descobrimentos e continuam a ter uma visão celebrativa ou comemorativa do Império. Pior: se foram capazes, como afirma Amara, de mudar o nome da Ponte de Salazar para Sobre o Tejo, por que razão têm tanta dificuldade em apagar os nomes dos locais de celebração imperial? Ou, como sugere o Tio Joaquim, o cota, por que não passar a chamar, ao Padrão dos Descobrimentos, Museu da Kizomba? Nas palavras de uma das protagonistas, este é um “problema que estamos com ele” e, segundo o “cota”, está para durar e não se resolverá tão cedo.

Até aqui, os principais aspectos tendem a alinhar-se em termos de uma série de dicotomias, opondo nós – os periféricos de pele escura, da periferia – aos tugas que estão no centro, com os seus monumentos, memórias celebrativas do império e espectáculos, em centros com vocação para monopolizar as iniciativas culturais. Em face desta oposição entre duas culturas, a qual revela uma clara opressão e exclusão, porque não se revoltam os periféricos e de pele escura? A questão é retórica, porque é evidente não existirem, em nenhum momento do documentário, indícios de comportamentos de ruptura emancipadora. Nem sequer se coloca essa mesma questão.

Pelo contrário, o documentário parece conter em si uma série de propostas pedagógicas, mais conformistas, que quebram qualquer tipo de apelo à violência, procurando fazer valer uma visão mais eufemística do contacto entre culturas. Sem seguir a sequência da sua aparição no documentário, será possível argumentar que a obrigação da pequena actriz cumprir com os seus deveres escolares, antes de participar na visita, surge como um apelo directo à educação e à escola, enquanto instrumentos principais na criação de melhores condições de vida.

Depois, qual o significado da bandeira portuguesa, na casa de uma das mulheres que surge inicialmente com um vistoso cabelo afro? Mera cortina ou símbolo de uma luta pela inclusão com direitos plenos à cidadania portuguesa? Imagino que a sua utilização seja intencional, logo, o que está em causa é essa luta pelos direitos de cidadania, da qual fazem, constitucionalmente, parte os direitos à educação, saúde, justiça, salário digno, habitação, representação política plena, etc.

Há também que reflectir sobre o significado da primeira cena. Nela, um pescador branco, vindo de barco, entrega a dois jovens de origem africana um saco de peixe fresco. O pescador representa o valor do trabalho, mas também o gesto solidário com os jovens impecavelmente vestidos. Depois, todos os outros protagonistas de pele escura alinham as suas vozes, em relação à visita, com manifestações de lazer e iniciativas culturais, excluindo da sua representação as lutas quotidianas e as práticas laborais. Qual a intenção que se encontra por detrás desta exclusão tão marcada? A pretexto de querer intencionalmente dar voz ao grupo periférico de pele escura, fazendo com que todos se façam ouvir na chamada área da cultura, a sua representação acaba por ser amputada de uma ligação ao quotidiano e ao trabalho. Trata-se, reconheço, de uma crítica fácil, mas não significará esta mesma operação de exclusão um convite a uma visão estetizada de um grupo que é, à partida, considerado subalterno?

Para responder à última pergunta e perceber como pode uma representação pela imagem escapar ou não aos riscos de estetizar bairros pobres e grupos subalternos, vale a pena analisar toda uma série de diálogos que insinuam a ironia resignada, a alegria risonha e a solidariedade sentida na falta de dinheiro, e que não passa pela representação do modelo da família monoparental. Por outras palavras, o documentário reporta a uma economia moral dos subalternos, fundada no riso, na ironia e em sentimentos solidários de colaboração e entreajuda, bem como na representação de lindos corpos e caras. Onde fica, então, o sofrimento, a violência e a resistência em resposta às inúmeras formas de controlo e discriminação sofridas pelos subalternos?

Uma última palavra diz respeito ao tema da viagem, da periferia ou de fora para o centro. Trata-se de um velho tema da cultura ocidental. As Cartas Persas (1721) de Montesquieu são talvez uma das obras mais conhecidas deste tipo de procedimento da razão iluminista europeia. De facto, este documentário parece tributário desta linha crítica do pensamento ocidental que procura encontrar, na visão do outro, um espelho que nos permita ganhar distância e pormo-nos em causa a nós próprios?

Sem pôr em causa esta preocupação pelo espelho, sobretudo, quando este nos ajuda a ganhar distância e a conhecermo-nos melhor, não haverá outras formas – porventura mais eficazes e descentradas de nós próprios – de dar voz àqueles que não têm voz? Sem a pretensão de responder a uma questão que só quem domina a linguagem dos documentários poderá alcançar, não resisto – por saber que Graça Castanheira vem da Huíla – a citar aqui o testemunho exemplar de Pereira do Nascimento, um médico português de finais do século XIX, em Da Huilla às Terras do Humbe (Huíla, 1891). Eis o que pensavam os habitantes do Humbe acerca dos portugueses brancos, segundo o registo que publicou:

 Os brancos, na sua opinião, não passam de uns pobres diabos sem beira, nem eira, que não tendo gado nem plantações nas suas terras emigram para a África, onde passam vida errante (ova-kankala); vêm ao Humbe carregados de bugigangas, que lhes vendem a troco de gado, que enviam para as suas terras afim de sustentar os parentes, que não têm que comer, nem onde cair mortos. Dizem que nós temos habilidade para fazer coisas bonitas e boas, mas não sabemos criar gado nem plantar mantimentos, por isso que as nossas terras são áridas e secas, não têm pasto nem se prestam a ser cultivadas e para não morrermos à fome somos forçados a emigrar, onde, com o engodo nos artefactos que os seduzem, vamos vivendo à sua custa!

 

Diogo Ramada Curto 


(originalmente publicado aqui)

 





quarta-feira, 14 de abril de 2021

Ataque a Conakry, História de um golpe falhado.

 


 

Ataque a Conakry, História de um golpe falhado, por José Matos e Mário Matos e Lemos, Fronteira do Caos, 2020, é a mais recente investigação sobre o antes, durante e após a Operação Mar Verde. Os acontecimentos em si do que ocorreu na madrugada do dia 22 de novembro de 1970 é amplamente conhecido, nos seus traços essenciais: com o beneplácito de Marcello Caetano, foi desencadeada uma tentativa de sublevação a partir da capital da república da Guiné Conacri, seis navios de guerra portugueses transportaram uma força militar de tropas especiais portuguesas e opositores do regime de Sékou Touré. O objetivo da operação era múltiplo: incluía a tentativa de um golpe de Estado que derrubasse o ditador guineense, destruir os meios navais do PAIGC e da Guiné Conacri, capturar Amílcar Cabral, resgatar 20 e poucos militares portugueses encarcerados numa prisão às ordens do PAIGC e neutralizar, destruindo mesmo, o potencial aéreo guineense. O sonho de Spínola em ver instalado um regime em Conacri que expulsasse o PAIGC malogrou-se: nem o ditador guineense nem o líder do PAIGC foram encontrados; por desacerto na comunicação, não foi tomada a estação de radiodifusão, que seria essencial para os sublevados anunciarem o golpe de Estado, os aviões de origem soviética tinham mudado de aeroporto, os meios navais do PAIGC foram destruídos, os prisioneiros portugueses foram resgatados, a prazo os sublevados guineenses foram executados como executados foram o alferes Januário Lopes e cerca de duas dezenas de militares-comandos africanos que se rebelaram contra as intenções da Operação Mar Verde e se entregaram às autoridades guineenses. O malogro deste ataque a Conacri iria constituir o mais rude golpe diplomático, adensando o isolamento do Estado Novo.

Em que é que a obra de José Matos e Mário Matos e Lemos introduz inovações? A estrutura do estudo permite uma leitura cronológica e o conhecimento aprofundado de um punhado de peripécias que a investigação permitiu desvendar. Fica bem claro que a Operação Mar Verde foi uma ousadia, tinha planeamento mas enfermava de graves omissões: o efetivo de sublevados era irrisório, a clique política guineense-Conacri que aceitara participar na Operação vivia graves tensões internas e a sua motivação e programa eram uma nebulosa; a PIDE não dispunha de informações fiáveis sobre os objetivos, houve que recorrer a um antigo desertor, o soldado Alfaiate, que se prestou a explicar a topografia da cidade, manifestamente insuficiente o seu conhecimento; diferentes ministros de Caetano puseram seríssimas reticências à operação, temeram sempre o pior, as consequências internacionais, as informações que se dispunham nos dirigentes políticos da oposição levavam a supor que seria um golpe de Estado de pouca dura, haveria um volte-face em poucos meses, e o PAIGC reocuparia rapidamente esta poderosa retaguarda. Os autores consideram que os dois principais acontecimentos políticos congeminados por Spínola: um, para atrair guerrilheiros numa nova formação militar composta por guineenses apoiantes da soberania portuguesa e outros a favor da independência; dois, instalar em Conacri um regime hostil ao PAIGC, deram como falhanço e o governador e comandante-chefe da Guiné, a partir daí, quis sempre abrir a porta para a solução política, que Caetano energicamente recusou. É verdadeiramente de questionar se não houve mais aventureirismo que realismo, ao querer confiar naquela oposição a Sékou Touré, sabendo-se mesmo que a organização da unidade africana teria todos os predicados para intervir e abortar o golpe de Estado.

Depois de contextualizar a estratégia de Spínola na Guiné e de se ter chegado à solução radical da Operação Mar Verde, conta-se a história dos contatos estabelecidos entre esta oposição a Sékou Touré e as autoridades portuguesas. Pesquisada a documentação, as intenções desta frente de libertação da Guiné (FLNG) eram dadas como amadoras, mesmo sabendo-se que a França e o Senegal veriam com bons olhos o derrube do ditador de Conacri. Até 1970, a FLNG não tinha quaisquer intenções de organizar uma guerrilha, mas sim um golpe contra Sékou e a sua clique de apoio, dizia que o povo da Guiné Conacri os acolheria triunfalmente. No entanto iam pedindo dinheiro a Portugal, e repetidamente. OS autores dão-nos um quadro das cumplicidades, mostram com desenvoltura o planeamento da Operação e o seu desfecho; e chegamos ao rescaldo, a verificação por parte de Spínola de que não era viável uma solução militar. Segue-se a escalada da guerra, é certo e seguro que os meios de fogo do PAIGC passaram a ser superiores aos das forças portuguesas, Spínola pede a exoneração e planeia escrever Portugal e o Futuro, será publicado em 22 de fevereiro de 1974, que propõe era já inviável, mas criou condições para a arrancada do 25 de abril. Os autores recordam que Caetano defendia uma autonomia progressiva para as colónias e não aceitava uma negociação com o PAIGC, segundo ele, seria um precedente relativamente às outras colónias, ele pensava que Angola e Moçambique podiam acabar na independência desde que estivessem assegurados os direitos dos colonos. Havia também hipóteses do plano de Spínola que não tinham nem pés nem cabeça, como o de integrar Amílcar Cabral como Secretário-Geral do Governo Provincial. E os autores observam: “Cabral nunca mostrou qualquer interesse em negociar com Spínola. Para o líder do PAIGC, o diálogo teria que ser com o governo central em Lisboa e não com o governador provincial. Isto significa que Spínola tentou protagonizar na Guiné uma solução que estava condenada à partida, não só porque estava em rota de colisão com a política oficial do regime, como também não correspondia às aspirações do PAIGC”.

Trata-se de um estudo muito bem urdido e que introduz dados novos sobre a Operação Mar Verde. Como em toda a historiografia da guerra da Guiné, omite os dados relevantes da génese e desenvolvimento da luta armada. A historiografia privilegia Spínola e nunca se serve dos arquivos para estudar os acontecimentos ocorridos entre 1962 e 1968, parece sempre Louro de Sousa e Arnaldo Schulz andaram para ali sete anos a encanar a perna rã, nunca se fala nos meios postos à disposição destes dois comandantes-chefes e até do dinheiro que o regime de Salazar dificultou para o desenvolvimento socioeconómico da Guiné. É dentro da efabulação que a historiografia faz aparecer Spínola como o Atlas do combate feroz à guerrilha, da implementação da Guiné melhor e dos cheiros da autodeterminação. Isto só para sublinhar que continuamos a fazer historiografia numa sala de espelhos partidos. 


Mário Beja Santos

 

 




 

 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.

 





No âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, a Academia Portuguesa de História editou em 1948 o trabalho “Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra”, com notas históricas por Damião Peres. Este insigne historiador justifica a iniciativa: “Como a crónica henriquina de Azurara não abrange feitos da Guiné posteriores a 1447, as páginas de Cadamosto constituem uma fonte narrativa, embora de utilização cautelosa, pois nelas se encontram dados cronológicos errados, e até, segundo se pode crer, alguma jactância atentatória da verdade”. Esta edição da Academia Portuguesa de História reproduz o texto de 1812 com as traduções a partir do italiano os dois viajantes, da Academia Real das Ciências, veja-se o site: http://livrosevelharias.blogspot.pt/2012/10/viagens-de-luis-de-cadamosto-e-pedro-de.html#!/2012/10/viagens-de-luis-de-cadamosto-e-pedro-de.html.

Tome-se como ponto de partida a primeira viagem de Luís de Cadamosto. Ele vem fazer comércio à Costa dos Escravos ou Terra dos Negros, é um veneziano que espelha os conhecimentos da época, homem curioso, o seu relato começa no que é hoje o Senegal. Diz assim: “O país destes primeiros negros do reino de Senega (Senegal) é o primeiro reino dos negros da Baixa Etiópia. Os povos próximos deste rio chamam-se Gilofos (os Jalofos)”.

É atento e minucioso: o Cabo Verde é a terra mais alta que há em toda esta costa, para além do dito Cabo Verde toda a costa é praia rasa. Vem a terra e comenta: Não há no país nenhuma cidade nem lugar murado, se não aldeias e casas de palha (que eles não sabem fazer casas de paredes porque não têm cal e têm grande falta de pedras). O modo de vida deste rei é o seguinte: não tem rendimento certo, além daquele que lhes dão os senhores desse país todos os anos para estarem de bem com ele, os quais presentes são de cavalos que lá são muito apreciados, por deles haver falta. Este rei vive também com roubos que faz, e tem sempre muitos escravos negros que manda pilhar não só no país como nos outros países vizinhos. Quanto ao vestir desta gente, quase todos andam nus continuamente salvo que trazem um coiro de cabra posto em forma de calça com que cobrem as vergonhas; mas os senhores e aqueles que podem comprar alguma coisa vestem camisas de pano de algodão. Quanto à forma, as suas camisas são compridas até meia coxa e largas. As mulheres desta região são muito asseadas de corpo, pois se lavam completamente, quatro e cinco vezes por dia; e assim também os homens, mas no comer são porcalhões e sem nenhuma educação. São homens de muitas palavras e nunca acabam de falar; e são todos, sempre, mentirosos e enganadores, em extremo; por outro lado, são caritativos, porque dão de comer e beber a qualquer estrangeiro que, de passagem, chegue a sua casa por uma refeição ou por uma noite, sem qualquer remuneração.

Cadamosto tem um olhar de antropólogo na descrição das cerimónias, nas receções, na admiração ao destemor dos nadadores, descreve a vida de Budomel, o rei da região.

E procura dar um quadro da economia da terra: “Neste reino de Senega dos negros, nem daí por diante, em nenhuma Terra do País dos Negros se produz trigo, nem centeio, nem cevada, nem aveia, nem vinho. E visto que o país é bastante quente e não chove em nove meses do ano. A sua comida é de milho de diversas espécies, fava e feijões que nascem naquelas partes, os mais grados e mais belos que há no mundo. E procede a uma descrição da comida, bebida e substâncias oleaginosas. Fala então da fauna: nesta terra de Senega dos negros não se encontram outros animais úteis a não ser bois, vacas e cabras; ovelhas não se criam aí, nem poderiam viver por causa do grane calor. As vacas e bois daquele país são mais pequenos que os nossos. Animais bravo de presa há-os: leões, onças e leopardos, lobos e cabritos monteses; há í também elefantes selvagens. Estes elefantes andam aos bandos. Os seus dentes grandes nunca lhes caem, a não ser por morte. E aí animal que não ataca o homem se o homem não o atacar.

Cadamosto, com a curiosidade comerciante, vai ver como os outros mercadejam. E observa: Porque me acontece estar em terra muitos dias, determinei ir ver um seu mercado ou feira que se fazia numa pradaria, não muito longe do lugar onde eu estava hospedado; o qual se fazia à segunda e sexta-feira: fui lá duas ou três vezes. A este mercado vinham homens e mulheres das terras que estavam em volta até quatro ou cinco milhas, pois que os que estavam mais longe iam a outros mercados, porque também noutros lugares se costumam fazer. Nestes mercados compreendi muito bem que estes são gente muito pobre, pelas coisas que traziam ao mercado para vender. Primeiramente era o algodão (mas não fiado) em pouca quantidade; não muitos panos de algodão; legumes, milho, óleo; gamelas de pau, esteiras de palma e todas as outras coisas de que se servem para a sua vida. Nada se vende por dinheiro porque não há moeda nenhuma nem usam se não trocar coisa por coisa ou duas coisas por uma coisa, e todo o seu mercado se faz por troca. Estes negros, tanto machos como fêmeas, vinham ver-me como uma maravilha, e parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em tal lugar, nunca dantes visto: e não menos se espantavam do meu traje e da minha brancura; o qual traje era à espanhola, com um jibão de damasco preto, e com uma capinha de gris; reparavam para o pano de lã, que eles não têm, e reparavam para o jibão, e muitos pasmavam, alguns tocavam nas mãos e nos braços e com cuspo esfregavam-me para ver se a minha brancura era tinta ou carne; e vendo que era carne branca, ficavam-se em admiração. Vendo-se um cavalo arreado com os seus arreios por nove até catorze escravos, conforme a qualidade e beleza do cavalo. Admiravam-se, grandemente, de ver arder uma vela, de noite, num castiçal e isto porque na sua terra não sabem produzir nenhuma outra luz que não seja a da fogueira.

Prepara-se para partir do Senegal para a Gâmbia, e ainda mais abaixo. E explica: Tive ocasião de estar neste país do senhor Budomel alguns dias, para vender e comprar, e saber de muitas coisas: pelo que estando do dito senhor despachado, e tenho obtido uma certa quantidade de escravos, determinei ir para diante, e passar o Cabo Verde e ir descobrir países novos para experimentar a minha sorte. Não muito longe deste primeiro reino de Senega dos Negros, indo mais para diante, havia um outro reino ou país chamado Gambra (Gâmia) no qual se encontrava grande quantidade de ouro.

Passa junto a terra firme de nome Cabo Verde e revela que os primeiros que o acharam foram os portugueses talvez um ano antes de eu ir a essas partes, “o acharam inteiramente verde pelas grandes árvores que estão verdes todo o tempo do ano”. E rende-se à pujança da paisagem: “Nunca vi mais bela costa do que esta que se me ofereceu; a qual é banhada por muitas ribeiras e rios pequenos e sem importância. Esta costa é habitada por dois povos: Barbacins e Sereros, também negros, mas não sujeitos ao rei de Senega. São grandes idólatras, não têm nenhuma lei e são homens muito cruéis; empregam o arco e frechas, e atiram-nas com venenos. São homens muito pretos e bem encorpados. O seu país está cheio de mato, e é abundante em lagos e águas; e, por isso, se têm por muito seguros, porque lá não se pode entrar se não por passos estreitos e por isso não temem nenhum rei nem nenhum senhor das redondezas”. A viagem prossegue aprazível e ele regista: “Correndo, com vento largo, pela dita costa, seguindo a nossa viagem para o Sul, descobrimos a boca de um rio, com a largura, talvez, de um tiro de arco, o qual rio se chama o rio dos Barbacins. E navegando chegámos à boca de um rio o qual mostrava não ser inferior ao sobredito rio de Senega. Lançámos ferro e deliberámos mandar a terra um dos nossos turgimãos, porque todos os nossos navios tinham turgimãos pretos, trazidos de Portugal, os quais turgimãos são escravos negros vendidos por aquele senhor de Senega aos primeiros cristãos portugueses que vieram descobrir o país dos Negros”.

O turgimão negro vai a terra e é morto à machadada, não houve conversas. Prosseguiu a viagem e chegaram à boca do rio de Gambra, é uma viagem cheia de peripécias rio acima, apercebem-se da hostilidade de quem os acompanha por terra. E relata poeticamente: “Neste país, de manhã, ao romper do dia, não há nenhuma aurora com o nascer do Sol, assim que desaparece o negrume da noite, logo se vê o Sol. Por serem agentes do litoral tão rudes e selvagens, não pudemos vir à fala nem negociar coisa nenhuma. Não passámos mais para diante por que os nossos marinheiros não nos quiseram acompanhar. Pelo que, no ano seguinte armámos, mais uma vez, duas caravelas a fim de percorrer mais uma vez esse grande rio. Tendo ouvido dizer o senhor Infante D. Henrique sem licença do qual não podíamos ir, que tínhamos tomado esta deliberação, muito lhe aprouve; e armou uma caravela sua para que viesse a nossa companhia.

Depois da Canária viajam sempre para o Sul e chegam ao Cabo Branco e então topou-se com terra. Terão descoberto ilhas, não lhes deram nome nem estão identificadas. Matam e cozinham tartarugas: “Pareceram-me bom manjar, quase tanto como carne branca de vitela”.

Cadamosto pensa ter chegado ao arquipélago de Cabo Verde, como escreverá Damião Peres nos comentários à obra, o debate é interminável, as opiniões estão divididas mas não é de excluir que ele tenha aportado em algumas ilhas. Conseguem contactar com nativos no rio de Gambra, país de Gambra e o principal senhor da região que se chamava Farosangoli, que estava subordinado o imperador do Mali. Havia muitos senhores que viviam junto ao rio e em conversa com um negro este ofereceu-se para os levar a um desses senhores. Foi assim que chegaram ao lugar cujo nome era Bati Mansa. Descobriram que havia pouca quantidade de ouro. Cadamosto expende larga opinião sobre os idólatras e crentes de Maomé. Trouxeram uma pata e parte da tromba de um elefante ao Infante D. Henrique e assombraram-se com um bicho desconhecido a que puseram o nome de peixe-cavalo, não é mais do que o hipopótamo. Assim acabou a primeira viagem.



Mapa da Senegâmbia em 1707


 

É na segunda viagem que Cadamosto chega ao que é hoje a Guiné-Bissau. Avistaram o rio Casamansa, atingiram o Cabo Roxo e mais adiante chegaram ao rio de S. Domingos. Houve um completo desentendimento na comunicação: “Vendo nós que estávamos em país novo, e que não podíamos ser entendidos, concluímos que passar para diante era inevitável”. No entanto, conseguem comprar anéis de ouro, descobrir que há uma agricultura um tanto semelhante à que encontraram nos países acima, mas aqui há pouquíssimo ouro. Cadamosto sente-se surpreendido pelas marés, pelos terrenos subitamente alargados e escreve: “Há, naquela terra, maré montante e vagante, como acontece em Veneza, o ímpeto da corrente da dita maré, quando começa a encher, é quase incrível”.

Convém recordar que as duas viagens de Cadamosto decorreram poucos anos antes da morte do Infante D. Henrique. D. Afonso V, ciente da natureza do projeto henriquino e do ponto a que chegara o conhecimento do litoral africano, manda duas caravelas armadas e o capitão era Pedro de Sintra, escudeiro do rei. Cadamosto encontra Pedro de Sintra el Lagos, Pedro de Sintra conta ponto por ponto todas as terras que haviam descoberto e os nomes que lhes tinham posto. Pedro de Sintra chegara à Guiné. As coisas ter-se-ão processado da seguinte maneira. Passaram o Cabo da Verga, e navegaram ao longo da dita costa, pelo espaço de 80 milhas, aproximadamente; descobriram um outro cabo que é o mais alto cabo que até hoje fora avistado, e a meio desse cabo forma-se uma ponta aguda e alta, a modo de ponta de diamante e todo ele está cheio de altíssimas e verdes árvores.

Puseram nome a este cabo, o Cabo de Sagres, em memória de uma fortaleza que mandou construir o Infante D. Henrique, a qual é propriamente uma das pontas do Cabo de S. Vicente, à qual se pôs o nome de Sagres. E é chamada pelos portugueses Cabo de Sagres da Guiné. No relato nota-se de que se já está a falar de uma realidade comum à Senegâmbia, falam de pessoas idólatras porque adoram estátuas de madeira com forma de homens e os negros quando comem ou bebem oferecem de comida aos ídolos. E escreve-se: “São igualmente pretos, mas têm uns sinais feitos com ferro em brasa, tanto na cara como no corpo; são mais depressa pardos do que pretos. Não tem armas, por não haver ferro nas suas terras. Sustentam-se de arroz, milho e legumes, isto é, fava e feijões, de qualidade diferente dos nossos e muito maiores e mais belos. Têm carne de vaca e de cabra, mas não em muita quantidade. Tem esta gente as orelhas todas furadas, com buracos em toda a volta, nos quais buracos trazem vários aneizinhos de ouro, um em seguido ao outro; também têm o nariz furado por baixo, no meio, e aí trazem um anel de ouro, de pendurado, como trazem os nossos búfalos”.

Prossegue a viagem e do Cabo de Sagres da Guiné atingem a Serra Leoa.

Este o essencial dos relatos das duas viagens de Cadamosto e do que contou Pedro de Sintra. Insiste-se que o historiador Damião Peres contesta a descoberta de algumas das ilhas do arquipélago de Cabo Verde como Cadamosto menciona e exibe críticas altamente desfavoráveis ao relato do viajante, a começar por Duarte Leite e Fontoura da Costa. E após uma exposição de críticas e de muitos argumentos contra, Damião Peres observa: “A hipótese formulada por Crone, afirma não existir razão alguma que impeça ter-se realizado em 1456, na viagem em que participou Cadamosto, o encontro das ilhas cabo-verdianas, embora se admita que o melhor reconhecimento delas, preparador da sua colonização foi realizado em 1459 ou data próxima por Noli, talvez acompanhado por Diogo Gomes”. Dito de outro modo, e à luz dos conhecimentos em meados do século XX, não se exclui que Luís de Cadamosto tenha estado nalgumas das ilhas cabo-verdianas, mas só anos depois é que se considera a sua descoberta e colonização a partir da viagem de Noli e provavelmente acompanhado por Diogo Gomes.

Pedro de Sintra terá viajado desde a foz do rio Geba até uns quilómetros além do Cabo Mesurado, mas já teria anteriormente navegado por lá em vida do Infante D. Henrique.

 

                                                                                                       Mário Beja Santos