Columbano Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão, por Columbano, 1921. Sala dos Passos perdidos do Parlamento. Imagem: Wikipédia |
O partido liberal, ou para melhor, o partido radical portuguez, conhecido durante a emigração por saldanhista, subindo ao poder com a revolução de setembro, ficou dahi em diante sendo conhecido por "partido setembrista" e os seus membros por setembristas.
Os seus inimigos davam-Ihes o nome de "mijados", por ser esta a alcunha do pae dos Passos. Antes da revolução de setembro os contrarios davam-lhes o nome de "irracionaes".
O partido conservador, conhecido também por "amigos de D. Pedro", tomou depois da revolução de setembro o nome de partido cartista.
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A denominação de cartista, escreve Alexandre Herculano, que esse partido [refere-se aos que não acompanhando o governo eram contrários à nova ordem de cousas] adoptou, não correspondia rigorosamente ás causas da sua existência, nem aos seus intuitos ou á sua índole. Mas representava até certo ponto isso tudo, ao mesmo tempo que era conciso e facilmente comprehensivel para o vulgo.
Alexandre Herculano. Imagem: Falling into Infinity |
O cartista não reputava todas as instituições, todos os preceitos da Carta como a mais alta manifestação da sabedoria humana. N'esta parte os liberaes eram em geral eccecticos.
Tanto o partido da revolução como o anti-revolucionario nenhum tinha em si unidade completa de princípios: nem entre um e outro havia senão antinomias parciaes quanto ás doutrinas de direito politico."
No primeiro, que tomava por base das ulteriores reformas uma consliluição democrática, exagerada até o despotismo das turbas, havia individuos para quem, como o tempo mostrou, as theorias da democracia ainda mais moderada eram altamente odiosas, ao passo que outros forcejavam por chegar, se não á republica, pelo menos a instituições repubhcanas.
No partido cartista dava-se o mesmo phenomeno. Todas as modificações do governo representativo tinham ahi fautores; tinham-nos, talvez, até as doutrinas do absolutismo illustrado.
A meu ver a distincção profunda e precisa entre o cartismo e o setembrismo consistia em negar o primeiro o principio da revolução, dentro das instituições representativas livre e solemnemente adoptadas ou acceites pelo paiz, e em affirmal-o o segundo. Tudo o mais em ambos os campos era fluctuante e vago [Opúsculos, tomo I, pag. 17].
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Aos cartistas chamavam "chamorros" os "setembristas", como antes, emquanto elles tiveram o poder, davam-lhes o nome de "devoristas". O nome de chamorros já o tinham durante a emigração; era assim que os saldanhistas appellidavam os palmellistas.
Pedro de Sousa Holstein, 1° Duque de Palmela, por Domingos Sequeira. Imagem: Wikipédia |
Tal epitheto não era novo. O sr. visconde de Seabra, n'uma nota á traduccão das Sattyras e epistolas de Quinto Horácio Flaco, baseado no testemunho de Duarte Nunes, diz que os castelhanos davam o epitheto de chamorros aos portuguezes que seguiam o partido do mestre de Aviz.
Em 1826, escreve o mesmo escriptor, tendo-se os portuguezes dividido em partidários da liberdade e do absolutismo, fez-se reviver a palavra chamorro como um titulo de desprezo para aquelles.
O Raio (n.° 26, de 23 de julho de 1836), jornal que se publicou em Lisboa em 1835-1836, e do que era um dos redactores Rodrigo da Fonseca Magalhães, diz que chamorros eram chamados os portuguezes que se bandearam com Castella quando teve logar a revolução de 1640, por não usarem barba nem cabellos crescidos, imitando assim os hespanhoes, quando é certo que os nossos usavam uma e outra cousa.
Depois da contra-revolução o ministerio ficou reduzido a três ministros, de onde veiu o nome que se lhe deu de triumvirato [v. A revolução de 9 de Setembro de 1836: a lógica dos acontecimentos].
D'estes triumviros faz o sr. Francisco Gomes de Amorim este retrato:
Costumados á vida da emigração, estes illustres liberaes conservaram no seu regresso a Portugal a simplicidade dos costumes a que os obrigara a necessidade. Passos não tivera, como milliares de outros, privações de dinheiro; mas singelo e chão do seu natural, como não conservaria os hábitos adquiridos no exilio? Vieira de Castro mostrou-se sempre ainda mais modesto, por profissão e por Índole. Sá da Bandeira parecia spartano.
E esses homens, apesar dos trabalhos, perigos e misérias do longo e forçado peregrinar, tinham fé, crenças ardentes, e tamanha força de vida, que muitas vezes no calor das discussões se serviam de imagens excessivamente pittorescas, para exprimir as suas idéas innovadoras.
Passos Manuel exclamou um dia em cortes:
"Eu gosto tanto das leis novas como de moças novas!" [Garrett, Memorias biographicas. tomo II, pag. 261].
O ministério continuou a dictadura que havia assumido no dia seguinte áquelle em que primeiro subira ao poder, dictadura fecunchssima e brilhante, e que é um dos apanágios da gloria de Manuel Passos como estadista.
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A revolução de setembro, escreve o sr. D. António da Costa, como todas as revoluções que vingam, encarnou-se u'um homem que possuía as condições para ser uma revolução viva.
Dizer 'revolução de setembro' é dizer Passos Manuel.
Estamos ainda vendo aquelle caracter franco, aquelle espirito voador, aquella intelligencia que pretendia abarcar tudo, aquella voz sonora precipitando-se em pérolas de eloquência, aquelle gesto incisivo, aquelle filho da liberdade que não reconhecia por soberano senão o espirito da communidade, e que seria capaz de lhe sacrificar, não diremos a própria vida, que elle tinha em nada, mas a vida de sua filha, pela qual não trocara o mundo.
Parecia-se com o seu apostolo a revolução de setembro. Era crente, franca e precipitada. Teve as virtudes e os defeitos das instituições populares. Poz a venda nos olhos creando nos interesses que destrnia inimigos cpie a venderiam de- pois, mas acoíiipanliava-a um inslincto do bem, que a encaminhava por entre as trevas da própria illusão.
Como a revolução de 1820, ganhou na intensidade das reformas o que não pôde ganhar na curta vida que lhe deixaram, mas na historia ha de ficar brilhante a sua pagina pelas reformas importantes com que brindou a nação.
Restringindo-nos ao movimento dos espíritos, foi da revolução de setembro que saiu a reforma da universidade [decreto de 5 de dezembro, approvando o novo plano de estudos elaborados pelo vice-reitor dr. José Alexandre de Campos],
a organisação das escolas medico-cirurgicas [decreto de 29 de dezembro de 1836],
a escola polytechnica de Lisboa [decreto de 11 de janeiro de 1837, a escola polytechnica veiu substituir a antiga academia real de marinha, foi installada no edifício do antigo collegio dos nobres, cujas rendas ficaram constituindo dotação sua]
Escola Polytechnica de Lisboa (ex Collegio dos Nobres, antigo noviçado dos Jesuitas no sítio da Cotovia). Imagem: Hemeroteca Digital |
tendente a preparar para as carreiras militares, marítimas e de engenheria civil, a academia polytechnica do Porto [decreto de 13 de janeiro, que substituiu por esta a antiga academia de marinha e commercio] com intentos industriaes,
a escola do exercito [foi creada por decreto de 12 de janeiro em substituição da academia de fortificação e desenho militar. Por este mesmo decreto foi reformado também o collegio militar]
os dois conservatórios de artes e officios [decretos de 18 de novembro de 1836 e de 5 de janeiro de 1837]
a reorganisação da bibliotheca de Lisboa [decreto de 7 de dezembro de 1836].
Academia de Bellas Artes de Lisboa e Biblioteca Pública, J. Novaes Jr., c 1900. Imagem: Internet Archive |
Na instrucção especial, o conservatório da arte dramática [decreto de 10 de novembro de 1835].
Por portaria de 28 de setembro foi Garrett incumbido de propor um plano para a fundação e organisação de um theatro nacional.
Em virtude d'ella, Garrett, em 12 de novembro, apresentava o projecto para a creação da inspecção geral dos theatros e espectáculos nacionaes, feitura do theatro de D. Maria ria II e creação do conservatório geral da arle dramática.
No relatório que acompanhou o projecto ha esta honrosissima referencia a Manuel Passos:
"O desejo, por mim, de coadjuvar com o meu pouco, o ministro mais sinceramente patriota que vossa magestade ainda se dignou chamar a seus conselhos, e o primeiro que de coração e puro zelo se tem dado a melhorar radicalmente a sorte da nossa desgraçada terra."
Theatro D Maria II, Nogueira da Silva (desenho), Coelho Junior João Pedrozo (gravura), 1863. Imagem: Archivo Pittoresco, Hemeroteca Digital |
restauração do theatro portuguez [decreto de 25 de outubro de 1836]
e as academias de bellas artes de Lisboa e Porto [decreto de 17 de dezembro de 1836].
Ruínas do Convento de S. Francisco (futura Academia de Bellas Artes de Lisboa e Biblioteca Pública), James Holland, 1837. Imagem: Peppiatt Fine Art |
Na instrucção secundaria deveu-se-lhe a instituição dos lyceus, creação Indispensável no momento de se extinguir o ensino ministrado pelas ordens religiosas. O plano dos lyceus estreava também a instruccão profissional pelas applicações industriaes, artísticas e commerciaes.
Deveu-se-lhe, finalmente, a reforma da instruccão primaria.
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A reforma da instruccão primaria de 1836 estabeleceu estas bases, escreve o mesmo o sr. D. António da Costa, liberdade de ensino, nas capitaes dos districtos uma escola do sexo feminino e uma de ensino mutuo que servisse também de normal, a jubilacão, o processo judiciário para a demissão, um jury nos assumptos do ensino, as commissões locaes inspectoras, e o subsidio ao professor de 20$000 réis pela camará municipal.
A liberdade do ensino e a frequência obrigatória eram já preceitos conhecidos.
A creação de uma escola feminina por districto, em relação ao passado, representava uma conquista, mas em verdade não passava de mesquinhez. As escolas de ensino mutuo apenas com um professor nada tinham de normaes.
A jubilação e aposentação eram inferiores ás decretadas anteriormente. A organisação das escolas, ficando sob o regimen do estado, desprezava o principio da deseentralisação.
Os 20$000 réis da camará municipal deixavam o professorado quasi na mesma miséria. Comparada, pois, com a reforma de 1835, a reforma de 1836 ficava-lhe inferior. Morta, porém, como estava a de 1835, a de 1836 representava um progresso, e apesar de incompleta nos pontos fundamentaes, lançava traços de reconhecido alcance.
Se porventura não era uma lei essencialmente pratica no estado centralisador da nação, era de certo, no conjuncto dos princípios que estatuía, uma lei benemérita e liberal.
cf. Historia da instruccão popular em Portugal, pag. 166 e 167].
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Tudo isto se decretou quasi prodigiosamente em poucos mezes. Quando um reformador realisa tantas e tão boas obras no ramo importantíssimo da instrucção nacional, tem direito á gratidão do povo, e condemna ao mesmo tempo aquelles que desperdiçam annos, impedindo que outros emprehendam os mellioramentos indispensáveis.
Por portaria de 5 de outubro mandou-se formar uma bibliotheca especial junto do real archivo da Torre do Tombo, composta das chronicas e mais livros da historia, impressos no reino, bem como das obras referentes a diplomacia e paleographia;
por idêntico documento de 7 de outubro foi mandado pòr em execução o decreto e circular de 23 de agosto acerca da prompta arrecadação das livrarias e objectos de arte pertencentes aos extinctos conventos e creação de bibliothecas e gabinetes de pintura e raridades em todas as capitães do districto.
Pelo decreto de 31 de dezembro foi approvado o novo "código administrativo portuguez" elaborado por José da Silva Passos em conformidade da portaria de 11 de outubro [...]
O novo código conservava a divisão do reino em districtos; subdividindose os districtos em concelhos e estes em freguezias. Em cada districto haveria um magistrado com o titulo de administrador geral; em cada concelho um administrador do concelho; e em cada freguezia um regedor de parochia. Junto a cada magistrado, segundo a ordem da sua herarchia, haveria um corpo de cidadãos eleitos pelos povos. Junto ao administrador geral, a junta geral administrativa do districto. Junto ao administrador do concelho, a camará municipal [...]
Os regedores de parochia eram electivos e por eleição directa. As camarás municipaes enviariam aos administradores do concelho respectivos tantas propostas em lista tríplice quantas fossem as parochias que n'elles houvesse, extrahidas das actas das eleições.
Sobre essa proposta eram nomeados os regedores e seus substitutos pelos administradores do concelho. Porém, nas freguezias que excedessem a quinhentos fogos, os regedores e substitutos precisavam de ser confirmados pelo administrador geral do districto.
Entre outras disposições liberaes d'este código havia a que creava o registo civil para os nascimentos, casamentos e óbitos.
Passos Manuel tratou também de providenciar com relação ao modo de facihtar aos devedores á fazenda o pagamento dos seus débitos, sem prejuízo do thesouro, e a respeito da exportação dos vinhos do Douro, da reducção das tenças e de pensões, da extincção do papel-moeda, etc.
Alguns dos relatórios que precedem estes decretos são verdadeiras obras primas.
Ha a juntar aos decretos dictatoriaes a que nos temos referido, mais dois, que não chegaram a ser publicados, mas que obtiveram a sancção da rainha, e que em nada eram desairosos para o gabinete.
As Festas da Liberdade no Porto — Veteranos da Liberdade que tomaram parte no préstito in O Occidente, 1883. Imagem: Hemeroteca Digital |
Têem a data de 12 de janeiro de 1837; um creava um asylo rural militar, destinado exclusivamente para recolher, alimentar e educar oitenta alumnos, filhos de praças de pret do exercito;
e o outro mandava admittir com preferencia no real asylo de Runa os membros da ordem da Torre Espada que se houvessem impossibilitado de serviço, e bem assim que fossem preferidos para admissão no collegio militar os filhos dos officiaes da mesma ordem.
Cabe do mesmo modo a este governo a gloria dos primeiros passos para a total extincção da escravatura nas colónias portuguezas de Africa ao sul do Equador, prohibindo a importação e exportação de escravos por decreto de 10 de dezembro.
Foi esta uma das medidas de mais rasgada iniciativa emprehendidas pelo ministério Passos.
Efígie de Manoel da Silva Passos na nota de 50 Escudos de 1920. Imagem: World Banknotes & Coins Pictures |
Como commentario áquelle decreto escreveu annos depois Sá da Bandeira:
"Para se poder bem avaliar o alcance d'este decreto, é preciso saber que das colónias de Angola e de Moçambique se exportavam em cada anno muitos milhares de negros para o Brazil, para as Antilhas e para outros mais togares, e que o imposto sobre esta exportação constituía o principal rendimento d'estas duas colónias.
Lisboa, Praça de D. Luiz e monumento ao Marquez de Sá da Bandeira, c. 1900. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
Este trafico era protegido por grandes interesses. Especuladores de todas as nacionalidades n'elle tomavam parte, uns comprando os escravos em Africa, outros transportando-os através do Atlântico, outros vendendo-os na America, e outros, finalmente, vendendo as fazendas com que se effectuavam as compras, e estas fazendas eram principalmente de origem ingleza. (1)
(1) Marques Gomes, Luctas caseiras: Portugal de 1834 a 1851, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894
Leitura relacionada:
José de Arriaga, História da Revolução de Setembro, Tomo I, Typ. da Companhia Nacional Ed.
José de Arriaga, História da Revolução de Setembro, Tomo II, Typ. da Companhia Nacional Ed.
José de Arriaga, História da Revolução de Setembro, Ttomo III, Typ. da Companhia Nacional Ed.
Marques Gomes, A verdade histórica e a História da Revolução de Setembro por José de Arriaga
Bulhão Pato, Memórias Vol. I, Scenas de infância e homens de lettras, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1894
Leitura adicional:
José de Arriaga, História da Revolução Portugueza de 1820, 2° volume, 1886
José de Arriaga, História da Revolução Portugueza de 1820, 4° volume, 1886