Conheci-a apenas com alguns dias de vida, quando veio para casa da maternidade. Diziam que era igualzinha a mim, em bebé, e mostravam-me fotografias a comprovar. Era verdade, parecia um clone: loira, olhos azuis, muito branca, sempre a rir (eu, entretanto, mudei muito; ela não). Vi-a crescer, aprender a andar, aprender a falar, sobreviver ao divórcio dos pais e a tantas outras dificuldades que a marcaram para sempre e lhe foram roubando o sorriso, pouco a pouco. Excepto quando estava comigo ou com os meus pais. Passava dias inteiros na minha companhia, era praticamente a minha irmã mais nova, eu que nunca tive irmãos. De tal forma que me lembro de, certo dia na fase em que começava a falar, a mãe vir com ela pela mão perguntar-me o que ela queria porque não a entendia. Tratou-me (trata-me) sempre por Prima, nunca pelo meu nome próprio. Tem mais primos, naturalmente, mas esta forma de tratamento está reservada para mim. Ninguém tem dúvidas de quem ela fala quando fala da prima.
Naturalmente, com a idade afastou-se um pouco mais, depois a minha vida deu uma volta radical e deixámos de estar juntas tantas vezes. Na verdade, quase nem falamos durante o ano todo. Mas quando nos vemos... Aquele sorriso é sincero, não deixa margem para dúvidas, e as lágrimas que lhe/me surgem nos olhos também não. Há uns anos, surpreendemo-la no dia de aniversário e aparecemos na festa sem que ela soubesse. Chorou mais do que se lhe tivesse morrido alguém. Aparentemente, tem um ar duro, frio e infeliz. Mas na verdade é um coração mole que chora por tudo e por nada (talvez até nisto seja parecida comigo...).
Já aqui disse que trabalhei como jornalista. Pois bem, a certa altura precisávamos de mais colaboradores para a publicação e colocámos anúncio nesse sentido. Entre os vários candidatos que se apresentaram, recordo um que destacava no Curriculum Vitae um curso de criação de avestruzes. Suponho que enquanto as aves enfiavam a cabeça na areia ele tinha tempo para praticar a arte da escrita...
Em tempos trabalhei no atendimento telefónico de uma operadora de telemóveis. Não via o público e o público não me via. Mas tínhamos de obedecer a um dress code. A regra básica era não usar calças de ganga, excepto à sexta-feira (sempre perguntei se à sexta não se trabalhava como nos outros dias, nunca me souberam responder). Os homens não eram obrigados a usar fato, mas eram encorajados a isso. Diziam que era por causa da imagem da empresa. Repito: não víamos ninguém, ninguém nos via (especialmente se tivermos em conta que trabalhávamos por turnos e muitas vezes entrávamos e saíamos das instalações durante a noite ou ao fim-de-semana).
Lembro-me de um colega, jovem e de cabelo comprido, que começou por apanhar o cabelo num rabo-de-cavalo até que acabou por cortá-lo, tal não era a pressão. Continuou a fazer o mesmo trabalho, da mesma forma que até aí. Mas provavelmente com a cabeça mais leve, sem o peso do cabelo...
A Vera perguntou, a Malena também, depois foi o João e, finalmente, a Malena voltou à carga com o mesmo assunto: Saudade. O cheiro, o sabor, o som, o toque da saudade. Fui deixando comentários a uns e a outros, por ser um tema que me afecta de forma especial, talvez por estar longe, acredito que sim, mas não só: por ser portuguesa, e basta. E por saber que há por aí mais gente a quem as saudades batem, e forte, em alguns momentos, e que talvez não leiam a Vera, a Malena ou o João (fazem mal!), e também por querer guardar aqui, no meu canto, o que deixei nos cantos deles, aqui fica o que por lá disse, mas não só.
Olfacto
A saudade cheira bem, cheira a Lisboa...
Cheira a Tejo; a mar; ao escape dos carros no Rossio; às bifanas afogadas em molho com mais de um mês na tasca; ao metropolitano (especialmente em hora de ponta); a castanhas assadas no carvão; a imperiais e caracóis; ao after-shave do meu pai; à naftalina do baú da minha avó; ao sabonete da minha mãe; aos perfumes dos amigos; ao bolo no forno; a pão quente; a pão com chouriço; a pastéis de Belém e travesseiros de Sintra. Cheira a sardinha assada e vinho tinto e às marchas populares na avenida, no Santo António.
Paladar
A saudade sabe a refresco de groselha e capilé; a arroz de grelos e iscas (duas coisas que odeio, mas o sabor é inesquecível); a bolachas comidas na cama ao domingo de manhã enquanto lia um livro; às caipirinhas e à sangria do jantar com os amigos; ao chocolate que a dona da mercearia me dava quando eu lá ia e me perguntava por que é que eu gostava dela (resposta pronta: porque me dás chocolates); aos gelados na praia; a feijoada e ao creme das bolas de Berlim; a pastilhas Gorila e a Flocos de Neve; ao leite com chocolate Ucal; a caramelos Peña comprados em Badajoz; ao teu beijo.
Audição
Soa aos discos do Marco Paulo com que a vizinha de cima fazia o favor de me acordar; aos gritos da mesma vizinha para acordar os filhos (como se calcula, odiava-a!); à voz da vizinha das traseiras a chamar pelo cão logo de manhã (Pilooooooto!); aos ruídos do rádio que não apanhava bem "aquela" estação da moda que eu queria ouvir; ao Quando o Telefone Toca; aos Parodiantes de Lisboa à hora do almoço; ao Pólo Norte, Pólo Sul e Polilon e às Meias CD ("com CD quem ganha é você"); ao Bacalhau da Maria que ouvi o dia inteiro na praxe da faculdade; à MTV o dia todo no bar da faculdade; às músicas dos concertos a que assisti; aos concertos da semana académica; à música insuportável durante a bênção das fitas no único ano em que tiveram a triste ideia de a fazer em Fátima (Viiiiiinde e louvai-o, viiiiiiinde e louvai-o, viiiiiiiiinde e louvai o Senhooooooor); ao pregão do vendedor de nougat na praia da Costa de Caparica ("É quatro ceeeeeem, quatro ceeeeeem!"); à campainha do carrinho dos gelados no Verão; às músicas no rádio enquanto estudava; à voz dos meus pais ao telefone; às vozes dos amigos que estão longe; ao zurrir do burro na casa onde passava férias em Monsanto (que não sendo a minha terra verdadeira, é o que tenho de mais parecido); à música do Indiana Jones; e, para não destoar, ao barulho dos motores do avião.
Tacto
Tem o toque do teu corpo no meu; do abraço apertado; da mão na testa quando estou doente; das mãos dadas e dos dedos entrelaçados; dos beijos no rosto; dos carinhos dos meus pais; da pele macia; o calor da lareira; a cadeira de palha desconfortável mas tão minha que ninguém se sentava ali quando eu estava; do vento nos cabelos; das picadas de mosquitos; da pedra da calçada; do pêlo do burro (sempre em Monsanto).
Visão
É a última curva do avião ao chegar a Lisboa, em direcção ao Cristo Rei, por cima da ponte 25 de Abril, o Tejo lá em baixo, a mata de Monsanto (esta em Lisboa, não a aldeia da Beira Baixa) do lado esquerdo (tento sempre ter lugar do lado esquerdo do avião só por estes últimos minutos de viagem), a ponte Vasco da Gama lá ao fundo, Sintra e Cascais à direita, e depois sobrevoar a cidade inteira e procurar reconhecer todos aqueles sítios lá do alto. E é o aeroporto e o avião do Zaire que lá está parado há anos a acumular pó. São os sorrisos sinceros nos rostos dos amigos, são as letras no ecrã quando conversamos. São os cabelos brancos da minha avó. São os pedregulhos da aldeia de Monsanto, a paisagem árida. É a praia e o campo, é o Gerês e o Algarve, é Portugal inteiro. É principalmente, e acima de tudo, Lisboa, o rosto dos meus pais e os dos amigos. É para isso que tenho uma estante cheia de álbuns de fotografias.
Sexto sentido
Saudade é a luz e o calor do sol, a cor e o cheiro do mar, a gargalhada da minha prima, o sabor a sal das lágrimas e o rosto dos que já não são.
Tive uma colega que aquecia as luvas no microondas de manhã, antes de sair de casa. E um dia lembrou-se de pôr um hambúrguer congelado na torradeira, para ser mais rápido. Correu mal…
Em criança, o que eu mais queria era uma bicicleta. Mas os meus pais, porque vivíamos na cidade, tinham medo que eu fosse atropelada por algum camião desgovernado, e portanto nunca me compraram uma. De vez em quando, os outros miúdos lá da rua deixavam-me andar nas deles, mas já se sabe que era sempre por grande favor, porque os putos são, de facto, muito mauzinhos uns para os outros. De modos que, em pequenina, andava a pé e era se queria. Mais tarde, os meus pais até um carro me ofereceram, mas a bela da bicla - nada! E que é que eu fiz? Com o primeiro ordenado que ganhei quando comecei a trabalhar, fui a correr comprar uma. Vermelhusca, linda. Usei-a umas quantas vezes, depois enfiei-a na arrecadação onde está até hoje. Mas tenho uma bicicleta. Se isto não é ser criança…