domingo, fevereiro 20, 2011

Momento de Poesia com Agostinho Fardilha

António Serrão De Castro (ou Crastro)

(1610 – 1685(?)
“Pertenceu à Academia dos Singulares. A sua poesia é essencialmente satírica, jocosa e burlesca.
O Santo Ofício, sempre de afiados dentes, rangedor, não levava a bem as brejeirices deste cristão – novo. Tanto o perseguiu que acabou por o reduzir à mendicidade e a metê-lo dez anos na cadeia.
A sua obra perdeu-se, restando, apenas, o poema Os Ratos Da Inquisição”.

Inspirando-nos no seu poema, vamos homenageá-lo com
A CASA DA INQUISIÇÃO

            I
Casa de má qualidade,
bem cheia de predadores
e de falsos pregadores.
Ali vive a falsidade,
também a rapacidade.
Os moradores são ratos:
uns, mentirosos beatos;
outros e mais numerosos,
bichinhos mui asquerosos,
fruto dos bárbaros tratos.

            II
Os primeiros, anafados,
de tanto os outros roubar,
de muito os espezinhar.
Os segundos, desgraçados,
constantemente espancados,
de tudo os espoliaram
e a alguns a vida tiraram.
Porém, que crime era o seu?
Ter em si sangue judeu?
Esta Pátria sujaram!

            III
Os “Grandes”, com seus pespontos,
são óptimos alfaiates,
sabem fazer bons remates,
tapar buracos com pontos
depois de roubar os contos
que eu tinha no meu bornal.
Ordenou o “ Principal”
o que os lacaios fizeram.
Minha vida não quiseram,
mas foi primeiro sinal.

            IV
Meu ser é velha farpela:
de dia remendos ponho,
de noite com eles sonho;
de repente uma “cadela”,
escapando-se da trela,
descose o trabalho meu:
rasgado, nem pareço eu.
Mas o que hei-de fazer
para com todos viver
debaixo do mesmo céu?

            V
Arrebatado – e sem norte –
pelas unhas dos ratões,
disse para os meus botões:
vou tentar a minha sorte
p’ra escapar à triste morte,
propondo-lhes que metade
da minha fertilidade
ficaria para eles.
foram mentirosos e reles.
Roubaram tudo à vontade.

            VI
Que bom seria a vingança
p’ra saldar o prejuízo
aos trapos, meu paraíso:
poria em abastança
os ratos de boa pança
numa canastra de gatos
com fome e nada pacatos.
Escondido ficaria
a ouvir a gritaria
dos tratantes clericatos.

            VII
Que fizeram os cristãos – novos
para terem esta sina?
P’ra fradalhada, a latrina;
escárnio de outros povos;
pitéu dos malvados “corvos”!
Meus escritos destruíram
o que os Céus construíram:
minha vida. Na prisão
estive e por galardão
co’a cegueira me feriram.

            VIII
Dez anos há quem espere
viver, fechado, sem luz,
o chão, querido Jesus,
com sujo aido confere?
Quem o viu também refere
haver água p’la cintura,
os dejectos com fartura,
a fome colando as tripas.
Arrancaram as farripas,
mas a mente ainda dura!

                        IX
Deus livrou-me do garrote
e da procissão até
à fogueira. Da ralé
o ruído brejeirote
fere – me como um chicote.
No mundo pouco vivi;
só aos pobres eu pedi.
Quando eu na rua passava,
o povo até me insultava:
Eh! judeu, fora daqui

                        X
Quem me dera que esta boda
p’ra eles tivesse fim
e que o castigo, enfim,
tivesse má sorte toda
através de dura roda.
Porém, os ratões à Morte
tomaram –na por consorte.
Tudo lhes corre à feição.
Usam a religião
p’ra dos roubos o suporte.

Vocabulário
ratos= supliciante e supliciado
grandes= dirigentes do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição)
pespontos= ponto de costura
Principal = dirigente – mor do Tribunal do Santo Ofício
Cadela = oficial da Inquisição
norte = rumo; desnorteado(sem rumo)
ratões = oficiais da Inquisição
fertilidade = riqueza
“Corvos” = apelido pejorativo de clérigo inquisitorial
confere = estar conforme
farripas = cabelo raro
roda = instrumento de suplício

Agostinho Alves Fardilha (o meu pai)
Coimbra

Foto: internet

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