ALUCINAÇÕES
O apagão não engana
Qual é o critério para, nos
Panama Papers, divulgar de pronto os nomes dos alegados políticos envolvidos e,
mais de quatro anos depois, continuar a não se saber os nomes dos jornalistas
avençados pelo saco azul do GES/BES?
Num Estado de direito democrático, a lei
deveria ser o essencial do critério de ação e a sua aplicação ser uma operação
linear, mas não. O que se constata, sob o ponto de vista dos cidadãos, é que o
exercício de deveres acaba por ser simples e linear, mas a sustentação dos
direitos enfrenta múltiplas dificuldades, sendo tudo menos objetiva e
previsível.
Basta ver o que acontece com o pagamento
de impostos ao Estado e o que se passa na órbita da administração da justiça –
a linearidade da tributação e o labirinto de arbítrio, de imprevisibilidade e
de inconsistência da justiça.
Simbolicamente, a justiça pode
apresentar-se cega, mas há muito que está dotada de GPS e de calendários que
lhe tolhem o normal funcionamento, levando-a para caminhos e soluções divergentes
com o perfil de um Estado de direito democrático.
Em demasiadas ocasiões, ninguém percebe o
critério aplicado para a investigação, o rationale
das decisões e o sentido comunitário de alegadamente se querer aplicar uma
visão da lei e de o não fazer a outros.
A insegurança em relação a um dos pilares
maiores da vivência comunitária instalou-se e é alimentada diariamente por
contradições, promiscuidades entre o sistema de justiça e os media e incompreensões.
É, no fundo, o resultado de uma degradação
geral da administração da justiça, no conteúdo, no tempo e no sentido, em que o
Presidente da República e os políticos bem podem elogiar os resultados, mas não
iludem a miserável realidade concreta.
Os políticos geraram um sistema de
privilégio e de ausência de escrutínio da administração da justiça que deu
margem para a criação de um modelo em que o arbítrio, os interesses e a falta
de senso imperam. E de pouco valerá quererem fazer da Operação Lex um exemplo,
quando o sistema está cheio de distorções graves e com as quais os políticos e
os participantes na administração da justiça convivem, sem qualquer esboço de
indignação ou contestação.
O facto de haver juízes suspeitos na
Operação Lex aparenta ser mais um exercício de foguetório para que o resto fique
na mesma, num momento em que se assiste, por exemplo, ao branqueamento pelo
sistema de investigação judicial do pirata informático Rui Pinto, só porque, à
margem da lei, fez o que alguma justiça gostaria de poder fazer: conseguir, na
órbita digital, ter uma intervenção sem critério, à margem da lei, que lhe
permita atingir determinados fins sem olhar a meios.
Ter o diretor nacional da PJ a abonar um
criminoso digital é isso. É a consagração da intenção de prosseguir uma justiça
no plano digital sem critério, sem olhar a meios e com um foco preguiçoso da
obtenção de provas – provas para alimentar os preconceitos, as narrativas e o
arbítrio, não para dar expressão a exercícios de um verdadeiro Estado de
direito democrático.
Mas qual é o critério?
Para, nos Panama Papers, divulgar de
pronto os nomes dos alegados políticos envolvidos e, mais de quatro anos
depois, continuar a não divulgar os nomes dos jornalistas avençados pelo saco
azul do GES/BES, alguns presumivelmente a comentar a atualidade noticiosa com
alta pose de autoridade moral?
Para, no caso BES, ver ficar de fora da
acusação personalidades que gravitaram na órbita de Ricardo Salgado, que terão
tido tanto conhecimento e participação na sua gestão e nos desmandos, uma delas
só porque é companhia do Presidente da República, ele próprio participante e
usufrutuário de benesses da personagem central do enredo?
Para, no caso Lex, Álvaro Sobrinho,
ex-presidente do BES Angola, acionista do grupo Impresa e do Sporting Clube de
Portugal, ter ficado de fora da órbita das acusações depois de ter sido
profusamente enunciado pelos media
como sendo suspeito de corromper o juiz Rui Rangel?
Este monumental apagão do Ministério
Público acontece por que razão?
Com que sentido?
Poderiam ser mais, mas são apenas três
exemplos que ninguém compreende. Quem conheça um pouco do funcionamento da
justiça e da sociedade portuguesa não pode deixar de se indignar com a ausência
de critério na ação da justiça, que investiga uns e se conluia com outros,
acusa uns e apaga outros, condena na praça pública e iliba outros nas omissões,
num bailado de efetiva inconsistência, promiscuidade e impunidade que constitui
um dos maiores atentados ao Estado de direito democrático.
Neste contexto, com os apagões e os
branqueamentos em curso, a acusação a Luís Filipe Vieira no âmbito do processo
Lex pretende ser apenas uma cortina de fumo para a gravidade de tudo o resto,
da administração da justiça ao apagão de Álvaro Sobrinho da acusação.
Ou será normal que o fisco se aproprie de
1 milhão de euros de alguém e só ao fim de oito anos é que esse alguém consegue
que um tribunal reconheça que o Estado não agiu bem e lhe devolva o dinheiro
que era seu?
É que oito anos são 10% de uma vida.
Coisa pouca.
Infelizmente, este como outros apagões
não enganam. Vivemos num contexto de incertezas em que as intermitências do
Estado de direito democrático dão espaço a uma perigosa incerteza que nada tem
a ver com o cumprimento da lei, basta que o arbítrio de alguém do sistema
queira e o cidadão torna-se o alvo. Mesmo que faça o que outros fazem, mesmo
que tenha direitos, mesmo que tudo, basta sair na rifa.