Pelos
cabelos
Ninfa ParreirasAh!, as histórias que escutamos e observamos nas crianças... Recebemos pistas dos nossos filhos. Coisas pequenas. Com que brincam e o que fazem para se divertir? Será que a gente se importa com isso?
Lembro-me da minha filha com cinco anos, ela apreciava brincar com produtos de beleza. De certa feita, em um sábado de manhã que me alonguei no sono, ela se fartou com um spa para bonecos. O amplo banheiro com a banheira colada à parede abrigava sonhos de menina. Era um dos locais preferidos para as brincadeiras. Onde morava a alquimia da água, dos óleos e aromas.
Quando me levantei, ela havia deitado meus perfumes (uma coleção de dezenas de miniaturas francesas) e mais outros, usados em ocasiões especiais. Isso mesclado com cremes hidratantes, águas de colônias e outras coisas tais. Aquela mistura dentro de uma bacia era aplicada com cuidado em cada uma das bonecas de plástico, de pano, de borracha. Encostadas na parede, de braços abertos, as meninas sorriam com a limpeza corporal e facial. Gente de todas as cores e tamanhos! Uma festa!
Foi uma tristeza para mim, ao perceber que havia perdido a coleção de perfumes! E mais os outros produtos. As crianças precisam brincar, ora bolas, tocar as coisas, experimentar. Não se contentam com vitrines nem com conservas. E as conversas, para que servem, diante da possibilidade de brincar?
De outra feita, com um pouco mais de idade, ela resolveu cortar os próprios cabelos. Inventou um corte arrojado, desses em que o tamanho ficava irregular e radical. Tomei outro susto!
Também me lembro de uma tosa geral nos cabelos das bonecas, em que algumas ficaram carecas e ganharam um colorido pintado na cabeça, ora laranja, ora roxo, ora verde... Já pensou quanta mudança? Quanta coisa experimentada, descoberta...
Depois disso, já perto dos treze anos, ela foi me entregando as bonecas (aos poucos) para oferecermos a outras crianças. Como se também tivessem crescido: não traziam mais os cabelos originais, nem a pele limpa. Estavam tatuadas, cortes e pinturas das madeixas. Dedos com unhas pintadas. Orelhas furadas.
Minha menina cresceu, hoje é uma mulher. Bem recentemente, apareceu com os cabelos cortados acima dos ombros. Eram longos e inteiros. Perguntei o que aconteceu, ao que me respondeu que resolveu mudar e os cabelos cortados seriam doados para uma instituição de crianças portadoras de câncer em tratamento. Fariam perucas para as crianças. Como assim?
Os filhos nos surpreendem (e muito!). Pequenas pistas aparecem nas brincadeiras, nos sonhos. Ficamos ligados nas repreensões, nem sempre valorizamos as ideias criativas. Soluções chegam para a vida deles. Fazem mudanças e lidam com as perdas e cortes sem tantos sofrimentos. Estão muito além da gente! Têm vida própria e nos ensinam a não ter tanto apego às coisas, muito menos ao que pode crescer de novo, como os cabelos.
Afinal de contas, ela está de partida para o mundo dos gregos e dos latinos. Vai lá conferir no mármore e em outras pedras como a beleza pode ficar imortalizada.
Fotos: arquivo pessoal, primavera 2014, Itália