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quarta-feira, 11 de junho de 2014

Pelos cabelos

   
Pelos cabelos
                                                       Ninfa Parreiras
Ah!, as histórias que escutamos e observamos nas crianças... Recebemos pistas dos nossos filhos. Coisas pequenas. Com que brincam e o que fazem para se divertir? Será que a gente se importa com isso?
Lembro-me da minha filha com cinco anos, ela apreciava brincar com produtos de beleza. De certa feita, em um sábado de manhã que me alonguei no sono, ela se fartou com um spa para bonecos. O amplo banheiro com a banheira colada à parede abrigava sonhos de menina. Era um dos locais preferidos para as brincadeiras. Onde morava a alquimia da água, dos óleos e aromas.
Quando me levantei, ela havia deitado meus perfumes (uma coleção de dezenas de miniaturas francesas) e mais outros, usados em ocasiões especiais. Isso mesclado com cremes hidratantes, águas de colônias e outras coisas tais. Aquela mistura dentro de uma bacia era aplicada com cuidado em cada uma das bonecas de plástico, de pano, de borracha. Encostadas na parede, de braços abertos, as meninas sorriam com a limpeza corporal e facial. Gente de todas as cores e tamanhos! Uma festa!
Foi uma tristeza para mim, ao perceber que havia perdido a coleção de perfumes! E mais os outros produtos. As crianças precisam brincar, ora bolas, tocar as coisas, experimentar. Não se contentam com vitrines nem com conservas. E as conversas, para que servem, diante da possibilidade de brincar?
De outra feita, com um pouco mais de idade, ela resolveu cortar os próprios cabelos. Inventou um corte arrojado, desses em que o tamanho ficava irregular e radical. Tomei outro susto!
 
Também me lembro de uma tosa geral nos cabelos das bonecas, em que algumas ficaram carecas e ganharam um colorido pintado na cabeça, ora laranja, ora roxo, ora verde... Já pensou quanta mudança? Quanta coisa experimentada, descoberta...
Depois disso, já perto dos treze anos, ela foi me entregando as bonecas (aos poucos) para oferecermos a outras crianças. Como se também tivessem crescido: não traziam mais os cabelos originais, nem a pele limpa. Estavam tatuadas, cortes e pinturas das madeixas. Dedos com unhas pintadas. Orelhas furadas.
Minha menina cresceu, hoje é uma mulher. Bem recentemente, apareceu com os cabelos cortados acima dos ombros. Eram longos e inteiros. Perguntei o que aconteceu, ao que me respondeu que resolveu mudar e os cabelos cortados seriam doados para uma instituição de crianças portadoras de câncer em tratamento. Fariam perucas para as crianças. Como assim?
Os filhos nos surpreendem (e muito!). Pequenas pistas aparecem nas brincadeiras, nos sonhos. Ficamos ligados nas repreensões, nem sempre valorizamos as ideias criativas. Soluções chegam para a vida deles. Fazem mudanças e lidam com as perdas e cortes sem tantos sofrimentos. Estão muito além da gente! Têm vida própria e nos ensinam a não ter tanto apego às coisas, muito menos ao que pode crescer de novo, como os cabelos.
Afinal de contas, ela está de partida para o mundo dos gregos e dos latinos. Vai lá conferir no mármore e em outras pedras como a beleza pode ficar imortalizada.

Fotos: arquivo pessoal, primavera 2014, Itália

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Algumas palavras, alguns livros 23

Meu encontro com O Gato
                                            Ninfa Parreiras
Li O Gato pela primeira vez em 2011. Manhã de poucos ruídos. Estava organizando a coletânea Contos e poemas para ler na escola, para a editora Objetiva, a pedido do meu saudoso amigo Bartolomeu.
Ele abriu o computador e O Gato chegou miúdo, miava baixinho: história para ser publicada sozinha em livro, nas suas palavras. Lembro-me que era um texto metafórico, de muitas imagens e poucas palavras. Uma linha, muitas vidas. Um enamoramento de gato e lua. A vida a escorrer pelos fios da noite. A solidão a visitar rotineiramente aquele que compõe literatura.
Com a sua partida em janeiro de 2012, escaparam-me lembranças de seus textos inéditos. Quem parte, leva parte de nós. Mutilados, ficamos órfãos de palavras, inundados em silêncio indizível. Assim tem sido comigo.
Em contato com a família, procuramos no computador dele se havia textos inéditos que pudessem compor a obra Contos e poemas para ler na escola, ainda não acabada. Abrir aquele computador sem a presença do seu escritor doeu fundo.
Algo tão sagrado esperar que texto ia ser aberto, lido. Ou guardado em gavetas de dormir. Havia um ritual de lermos, conversarmos, silenciarmos. Um dia trazia às vezes um texto pequeno. Outras vezes, páginas e páginas em versos. E houve dias que ficávamos na prosa solta: comidas, temperos, viagens. Num tempo capturado em cumplicidade e olhares.
Com a ajuda da Juliana, tomamos coragem e descobrimos O Gato logo ali na área de trabalho, se oferecendo, miando para ser redescoberto. Reli o conto e percebia que havia ganhado algumas palavras e mantinha a polifonia escutada no primeiro encontro. Uma beleza de texto! Era uma despedida e eu só pude perceber isso depois que meu amigo partiu. Como nos cegamos ao dourado do outono, ao calor do verão... A cegueira pode ser boa companhia quando nos despedimos com dor de quem admiramos!
Maria Alexandre, das Paulinas, havia comentado comigo que o poeta a prometera um texto a ser publicado. Para fazer companhia ao A árvore. Seria O Gato? Muitas perguntas e longa ausência.
O texto foi para lá, aos cuidados da Goretti, publicado em  belas ilustrações de Anelise Zimmermann, projeto gráfico esmerado dela e do André Neves. Não sei se Bartolomeu virou uma estrela, não sei se nos lê de onde está. Não sei por onde anda. Sei que fiquei satisfeita em ver O Gato miando alto para os leitores e reforçando o lirismo e a delicadeza de uma obra imortal.


Capa: O Gato, Bartolomeu Campos de Queirós, ilustrações Anelise Zimmermann, editora Paulinas