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Do direito à literatura

2021, Educação em Revista

Os direitos humanos fundamentais são garantidos por lei para os homens e mulheres da sociedade contemporânea democrática. Dentre os direitos humanos fundamentais, nos detemos no direito à educação e, consequentemente, as suas contribuições à humanização dos sujeitos, por meio do desenvolvimento de capacidades superiores, dentre elas destacamos a capacidade de ler textos literários e discutimos fundamentado pela teoria histórico-cultural e autores da literatura. Neste contexto, apresentamos o poeta contemporâneo brasileiro Thiago de Mello e suas obras com destaque para “Os Estatutos do Homem”. O critério de escolha advém da própria notoriedade estético-literário da peça que se materializa em um texto de originalidade no grande tema presente em seu enredo, garantindo qualidade literária à escolha. Após reflexões sobre os enunciados de Thiago de Mello apoiado em conceitos bakhtinianos, sugerimos uma proposta prática de leitura com crianças dos anos finais do Ensino Fundamental. Trata-s...

Do direito à literatura Artigos/Articles DO DIREITO À LITERATURA: VIVÊNCIA LEITORA A PARTIR DO POEMA OS ESTATUTOS DO HOMEM DE THIAGO DE MELLO FROM THE RIGHT TO THE LITERATURE: READING EXPERIENCE FROM THE POEM OS ESTATUTOS DO HOMEM DE THIAGO DE MELLO Daniele Aparecida RUSSO1 Cyntia Graziella Guizelim Simões GIROTTO2 Andreia dos Santos OLIVEIRA3 Gisele de Assis Carvalho CABRAL4 Sandra Aparecida Pires FRANCO5 Resumo: Os direitos humanos fundamentais são garantidos por lei para os homens e mulheres da sociedade contemporânea democrática. Dentre os direitos humanos fundamentais, nos detemos no direito à educação e, consequentemente, as suas contribuições à humanização dos sujeitos, por meio do desenvolvimento de capacidades superiores, dentre elas destacamos a capacidade de ler textos literários e discutimos fundamentado pela teoria histórico-cultural e autores da literatura. Neste contexto, apresentamos o poeta contemporâneo brasileiro Thiago de Mello e suas obras com destaque para “Os Estatutos do Homem”. O critério de escolha advém da própria notoriedade estético-literário da peça que se materializa em um texto de originalidade no grande tema presente em seu enredo, garantindo qualidade literária à escolha. Após reflexões sobre os enunciados de Thiago de Mello apoiado em conceitos bakhtinianos, sugerimos uma proposta prática de leitura com crianças dos anos finais do Ensino Fundamental. Trata-se de atividades com as estratégias de leitura (Souza e Girotto, 2011) a partir do poema sobre direitos humanos, “Os Estatutos do homem”, escrito pelo poeta contemporâneo amazonense. Palavras-chave: Educação. Literatura. Vivência leitora e Direitos Humanos. DIREITOS HUMANOS E LITERATURA Na sociedade contemporânea democrática, todos os indivíduos possuem direitos fundamentais garantidos em leis que regem o país. No Brasil isso não é 1 Doutoranda em Educação (UNESP/Marília). E-mail: [email protected] 0001-8154-6192. https://orcid.org/0000- 2 Livre docente em Leitura e Literatura Infantil (UPF). Professora na UNESP/Marília. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0003-0620-4613. 3 Doutoranda em Educação (UNESP/Marília). Professora do Instituto Federal de Rondônia. E-mail: andreia. [email protected] https://orcid.org/0000-0003-4623-9757. 4 Mestranda em Educação (UNESP/Marília). Professora na Rede Municipal de Ensino Fundamental de Marília https://orcid.org/0000-0002-4885-6874. (SP). E-mail: [email protected] 5 Pós-doutorado em Educação (UNESP/Marília). Professora na UEL/Londrina (PR). E-mail: sandrafranco26@ hotmail.com. http://orcid.org/0000-0002-7205-744X. https://doi.org/10.36311/2236-5192.2020.v22esp.11.p157 Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. 157 RUSSO, D. A.; GIROTTO, C. G. G. S.; OLIVEIRA, A. S.; CABRAL, G. A. C.; FRANCO, S. A. P. diferente. A Constituição Federal de 1988 em seu artigo sexto destaca direitos sociais fundamentais a todo cidadão brasileiro. São eles: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988, p. 18). Dentre todos esses direitos fundamentais, gostaríamos de deter-nos no direito à educação e as suas contribuições à humanização dos sujeitos, por meio do desenvolvimento de capacidades superiores, dentre elas destacamos a capacidade de ler textos literários. Essa mesma Constituição em seu artigo 245 garante: Art. 205.A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988, p. 123). Sem dúvida este artigo foi um importante avanço ao Brasil, tendo em vista a concepção de que a educação é fundamental ao desenvolvimento humano, se considerarmos, por exemplo, esse desenvolvimento por meio da Teoria HistóricoCultural formulada por Vigotski e seus seguidores. Segundo essa teoria não nascemos prontos, mas dotados de funções elementares apenas e para nos humanizarmos necessitamos desenvolver as funções psíquicas superiores (VYGOTSKI, 2001). Assim, a educação tem papel preponderante nesse processo, como defende Saviani em texto cedido à professora Ligia Martins: Se a existência humana não é uma dádiva natural, mas tem que ser produzida pelos próprios homens, sendo, pois, um produto do trabalho, isto significa que o homem não nasce homem. Ele se forma homem. Ele não nasce sabendo produzirse como homem. Ele necessita aprender a ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência. Portanto, a produção do homem é, ao mesmo tempo, a formação do homem, isto é, um processo educativo (SAVIANI, 2014, p. 7 apud MARTINS, 2015, p. 48). Não ‘somos frutos a esperar o amadurecimento’ por meio do tempo; pelo contrário, necessitamos das relações sociais, sempre mediadas por signos, para desenvolvermos as funções psíquicas superiores capazes de garantir a nossa humanidade e diferenciar-nos dos demais animais. Para elaborar tais afirmações pautamo-nos em Leontiev (2004, p. 268): Com efeito, por outro lado, os fatos indicam que as aptidões e as funções que se desenvolvem no decurso da história social da humanidade não se fixam no cérebro do homem e não se transmite segundo as leis da hereditariedade. 158 Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. Do direito à literatura Artigos/Articles A humanidade não nos foi dada, mas conquistada por meio das apropriações de tudo que os homens conquistaram ao longo do processo histórico e cultural. Por isso somos considerados seres sociais e culturais. Para a Teoria Histórico-Cultural, constituímo-nos nas relações com a sociedade e com aquisição da cultura. Esse aprendizado ocorre desde o nascimento por meio das interações com a família e pessoas próximas. A apropriação das formas mais elaboradas de cultura ocorre dentro de uma educação formal, se esta for de qualidade. Ao entrar na escola, um dos principais objetivos do ensino é o aprendizado da leitura. Tornar-se leitor na sociedade contemporânea é um direito fundamental do cidadão, tendo em vista a necessidade de dominar os signos linguísticos escritos para exercer a cidadania. Não nascemos leitores e nem portadores dos modos de ler. Este é um processo de aprendizado. A criança para tornar-se leitora necessita compreender os modos de operar o objeto cultural denominado livro, desde a forma de manuseá-lo até a forma de atribuir sentidos àquilo que lê. Para isso, necessita de um sujeito mais experiente para mediar esse aprendizado, pois como asseverou Vigotski (2001), todo aprendizado ocorre ao menos duas vezes: primeiro no social, após no individual, em um processo de interiorização. Apenas após sucessivos processos desta natureza, o aprendizado vai tornando-se em função psíquica superior no indivíduo. Portanto, as escolas precisam de práticas pedagógicas eficientes para o ensino do ato cultural da leitura. Defendemos neste trabalho que ler é um direito de todos os cidadãos: ler todos os dias e os mais diversos gêneros discursivos, de acordo com as preferências e necessidades. Dentre esses, destacamos os textos literários e defendemos que os ler é fundamental ao ser humano. Inicialmente gostaríamos de apontar o que consideramos a marca do literário e para isso apoiamo-nos na definição apresentada por Cândido (2004, p. 174) em seu texto intitulado Direito à literatura. Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Com essa definição percebemos a amplitude da literatura e as suas distintas formas de manifestações. De alguma forma o homem precisa se expressar e a literatura é propícia a isso. De caráter ficcional, mas sempre atuante como refração da realidade de determinado espaço e tempo, a palavra literária, vai se contrapondo, por vezes complementando, reiterando e renovando as palavras da vida cotidiana. Compreendemos com Bakhtin (2011, p. XXXIV) que “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade”. Assim como muitas pessoas têm a necessidade de expressar-se por meio do literário, Candido (2004, p. 174) defende que nenhum ser social pode viver sem o contato com a literatura. Para ele: “Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. 159 RUSSO, D. A.; GIROTTO, C. G. G. S.; OLIVEIRA, A. S.; CABRAL, G. A. C.; FRANCO, S. A. P. entrega ao universo fabulado”. Concordamos com esse crítico da literatura brasileira. Mesmo quando a leitura e a escrita ainda não eram dominadas pelos homens, os contos e as fábulas eram transmitidos oralmente dentro nas comunidades. Portanto, “[...] a literatura [...] parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (CANDIDO, 2004, p. 175, grifos nossos). Na atualidade, com o avanço da tecnologia podemos ter acesso ao ficcional de muitos modos. Por meio da televisão, cinema, celulares, entre outros. Mas não devemos nos esquecer da importância do objeto cultural livro literário. O literário “[...] desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 2004, p. 180). A literatura ajuda-nos a compreender melhor o outro. Tem com ele uma relação de alteridade. E mais uma vez aqui destacamos a importância da educação nesse processo. Pois se como afirmou Candido é impossível passar um dia sem a ficção, caso não seja disponibilizado bons livros literários às crianças, elas buscarão atender a essa necessidade de outras formas, como por exemplo por meio da televisão, da internet, das redes sociais. Não que seja inadequado o contato com o ficcional por meio das mídias eletrônicas, posto também serem objetos culturais produzidos pela humanidade. Mas sabemos da importância também do contato com o ficcional via literatura já que “ [...] talvez não haja equilíbrio social sem a literatura” (CANDIDO, 2004, p. 175). Assim sendo, defendemos que ela seja “[...] fator indispensável de humanização, e sendo assim, confirma o homem na sua humanidade[...]” (CANDIDO, 2004, p. 175). Contudo para que a literatura desempenhe todas essas funções, o homem deve ler. E a leitura da qual estamos falando não se trata de decodificar ou reconhecer sinais gráficos. Pois se assim for, que efeito o texto literário poderá causar no sujeito? Falamos aqui da leitura defendida pela filosofia da linguagem formulada por Bakhtin e seu círculo. Aquela em que ler o texto significa dialogar com ele, entrar em embate com as ideias ali expostas, concordar ou refutá-las e ao final emitir uma resposta compreensiva. Para usar as palavras de Bakhtin (2011, p. 271) é preciso ter atitude responsiva ativa diante do texto literário: Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc. Para isso, mais uma vez retomamos a Teoria Histórico-Cultural e defendemos a escola, na figura do professor neste processo. É ele quem pode mostrar às crianças os caminhos para a construção de sentidos do texto literário. E isso não pode ser feito de maneira tradicional, já tão criticada por Silva (2002) como os passos de ganso, de cágado e passos incertos. Ou seja, o professor pensa ensinar o ato de ler disponibilizando a seus alunos trechos descontextualizados, utilizando o texto como pretexto para o 160 Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. Do direito à literatura Artigos/Articles ensino da gramática normativa ou ainda como critica Silva (2002) solicitando que as crianças abram os livros, “leiam” os textos e deem as respostas exigidas no manual do professor. Mas será este o ato genuíno de ler? Se ler não é isso, questionamos: qual e como seria a leitura de direito das crianças: Que leitura garantiria o diálogo com texto literário? Para nós a resposta é a leitura dialógica e interrogativa. Como diz Jolibert (2006), ler é uma questão de perguntar ao texto - e isso nada tem a ver com responder questões formuladas pelo professor pois no processo de leitura as crianças elaboram seus próprios questionamentos (JOLIBERT, 2006). Ao invés de ensinarmos os alunos a serem decifradores, ensinemo-los a serem perguntadores. É preciso curiosidade no momento de ler. Ser leitor é uma espécie de detetive, por isso devemos ensinar as crianças a buscarem pistas nos textos. Neste sentido, vamos refletir e propor atividades com as estratégias de leitura a partir do poema “Os Estatutos do Homem” de Thiago de Mello. Para tanto, antes da discussão com as estratégias de leitura, faz-se importante conhecer o autor e o contexto histórico e social em que ele estava inserido quando escreveu a obra. Desde este ponto de vista, na sequência ao item subsequente, há a proposição de uma vivência leitora pautada na abordagem das estratégias de leitura, tão denotativa do direito à literatura, quanto da contribuição à aquisição do estatuto de leitor e do enriquecimento de repertório de possíveis interlocutores de Thiago de Mello. CONHECENDO THIAGO DE MELLO O critério de escolha advém da própria notoriedade estético-literário da obra “Os Estatutos do Homem” de Thiago de Mello, materializada em um texto de originalidade no grande tema presente em seu enredo, garantindo qualidade literária à obra. Em 2018 comemoramos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 50 anos da “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire e 30 anos da Constituição da República do Brasil6. E neste contexto, discutir literatura e direitos humanos a partir da militância e da obra de Thiago de Mello, tornou-se relevante. O autor escolhido para este trabalho é um dos mais respeitados poetas da atualidade e sua poesia está vinculada ao Terceiro Tempo Modernista. Thiago de Mello, nome literário de Amadeu Thiago de Mello, nasceu em Porantim do Bom Socorro, município de Barreirinha, no Estado do Amazonas, no dia 30 de março de 1926. Em 1931, ainda criança, mudou-se com a família para Manaus, onde iniciou seus estudos no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e depois, 6 Em comemoração, ministramos um minicurso intitulado Literatura e direitos humanos: Thiago de Mello, militância e obra que compôs as atividades do X Seminário Direitos Humanos no século XXI, promovido pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania de Marília e pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP, campus de Marília, tendo sido realizado entre os dias 26 e 29 de novembro de 2018. Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. 161 RUSSO, D. A.; GIROTTO, C. G. G. S.; OLIVEIRA, A. S.; CABRAL, G. A. C.; FRANCO, S. A. P. no Ginásio Pedro II. Em 1946, ingressou na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro, mas deixou a faculdade no quinto ano para dedicar-se à Literatura. Durante a ditadura militar (1964 a 1985), exilou-se no Chile, onde encontrouse com Pablo Neruda, amigo e colaborador incansável. No exílio, morou na Argentina, Chile, Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou à sua cidade natal, Barreirinha, onde vive até hoje. Durante a ditadura militar, o poeta escreveu sobre liberdade e esperança, cujas obras representam os anseios coletivos do povo brasileiro. No contexto mundial, após o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), na Literatura, o período foi marcado pela poesia e é conhecido por “Poesia do caos” (ou a da Geração dos 45). [...] é a poesia que marca o período do imediato pós-guerra. Tanto que, ao nos referirmos à Geração de 45, é nos poetas que pensamos. Naqueles que cantaram em meio ao caos. Esse é, pois, um período fragmentado, partido em ânsias e desesperanças. Esse período é de transformação do Modernismo, estilo que, na década de 1920, teve a fase da instalação e, na década de 1930, a da afirmação. Em virtude das peculiaridades da poesia que se começou a fazer nos anos 40, há quem afirme ter sido esse o momento da superação dos postulados modernistas e o ingresso na pós-modernidade. (ALEIXO, 2009, p. 7). Nesse contexto, estreava o poeta Thiago de Mello no auge dos seus vinte e seis anos publicando seu primeiro livro “Silêncio e palavra” (1951), no qual já denota o seu olhar com preocupações existenciais. Inserido neste momento histórico, escreveu vários livros que foram traduzidos para mais de trinta idiomas. Sendo uma das mais importantes, a obra “Faz escuro, mas eu canto” marcada por sua adesão definitiva à poesia social. Publicada em 1965 traz seu mais famoso poema intitulado “Os Estatutos do Homem” (escrito em 1964) que simboliza a luta do poeta em defesa dos direitos e dos valores mais básicos da humanidade - excluídos durante a ditadura militar - como anuncia Aleixo no prefácio do livro mencionado: Em Faz escuro, mas eu canto já constava o famoso poema “Os Estatutos do Homem”, que foi depois desmembrado e ganhou sucessivas edições em livros independentes. Em treze artigos, o poeta proclama a utopia com que sonha: “o lobo e o cordeiro pastarão juntos/ e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora” [...] (ALEIXO, 2009, p. 13). Desse modo, conclamamos a importância das obras de Thiago de Mello pelo poder da poesia e da literatura, pelo uso acessível das suas palavras forjadas a partir de suas vivências em defesa da dignidade da condição humana e da natureza, pois para ele a poesia tem o poder integrador, conscientizador e de amor. Sua poesia pode iluminar a vida das pessoas, uma vez que é carregada de conteúdo ideológico, vislumbra a esperança de dias melhores e de mudanças na vida do povo. Nessa perspectiva, Volóchinov (2017, p.181) afirma: 162 Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. Do direito à literatura Artigos/Articles Na realidade, nunca pronunciamos ou ouvimos palavras, mas ouvimos uma verdade ou mentira, algo bom ou mal, relevante ou irrelevante, agradável ou desagradável e assim por diante. A palavra está sempre repleta de conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana. É apenas essa palavra que compreendemos e respondemos, que nos atinge por meio da ideologia ou do cotidiano. Conhecer, apreciar, aprofundar, “ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito” (BAKHTIN, 2011, p. 316). Dessa maneira, os enunciados de luta do poeta Thiago de Mello, refletem e refratam suas vivências e experiências de vida e ao dialogarmos com eles, compreendemos caminhos de resistir e combater os tempos difíceis marcados por mandos e desmandos de governos autoritários que renunciam os direitos do povo de ser livre e ter vida plena permeada e garantida por uma sociedade humana solidária. Todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva. É a posição ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do sentido. Por isso cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por certo conteúdo semântico-objetal. A escolha dos meios linguísticos e dos gêneros de discurso é determinada, primeiramente, pelas tarefas (pela ideia) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido. É o primeiro elemento que determina as suas peculiaridades estilísticocomposicionais. (BAKHTIN, 2016, pp. 46-47). Para escrever, vamos buscar nas fontes: o que fizemos, o que lemos, o que vivenciamos, o que experimentamos, o que escutamos.... As fontes têm que estar nos sujeitos e não fora deles. Isso vemos na obra de Thiago de Mello: a vida se manifestando por meio de seus enunciados. O enunciado é a manifestação verbal do homem a partir das relações com o outro. “Ora, a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua. ” (BAKHTIN, 2016, p.16-17). Os temas da vida, são os temas dos diferentes enunciados. A palavra que está na poesia, a palavra que está na literatura, na criação cultural toda, na ideologia, está presente na vida e ao contrário também: a vida está presente na poesia. O enunciado é a vida se manifestando. E em toda a obra do poeta brasileiro Thiago de Mello não é diferente. As obras que denunciam fazem refletir e ansiar pela vida mais igualitária e imersa de amor, podemos ver um sujeito militante e sonhador, percebemos uma criança, um jovem, um adulto e um senhor que pôde viver seus ideais mesmo em meio a dificuldades e limites de um período de ditadura militar, por exemplo. Mesmo sendo resultado das alternâncias de vozes, dos diálogos feitos, cada enunciado é um evento único, irrepetível. “Todo enunciado – oral e escrito, primário e secundário e também em qualquer campo da comunicação discursiva – é individual Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. 163 RUSSO, D. A.; GIROTTO, C. G. G. S.; OLIVEIRA, A. S.; CABRAL, G. A. C.; FRANCO, S. A. P. e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual. ” (BAKHTIN, 2016, p.17). Então todo estilo está ligado ao enunciado e as formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso. E o estilo individual desse poeta contemporâneo mostra-se a cada poesia que transborda vida no sentido de ser resultado dos muitos diálogos com o outro. Por meio da dialogia com as obras de Thiago de Mello, é possível perceber que seus enunciados são frutos das vivências e experiências na sua essência e não superficialidade, percorrida pelo autor em sua vida. Vemos a vida do autor em seus poemas e consideramos, portanto, a natureza dialógica da comunicação discursiva e o enunciado é compreendido como elemento da comunicação indissociável da vida. Por meio do diálogo com os enunciados de Thiago de Mello, sua marca de autoria está presente em suas obras assegurando o que Bakhtin e Volochinov afirmam: a palavra que está na poesia, na literatura e em toda a criação cultural, está na vida. O enunciado é a vida que se manifesta. Vejamos a vida manifestada nas palavras poéticas de Tiago de Mello por meio do poema “Estatutos do homem”. VIVÊNCIA LEITORA COM “ OS ESTATUTOS DO HOMEM” DE TIAGO DE MELLO Após reflexões sobre os enunciados de Thiago de Mello, vamos, neste momento, propor atividades de leitura com o poema “Os Estatutos do homem” _ uma vivência leitora Ser é uma questão de construir sentidos, como já explorado anteriormente, acreditamos que ensinar as estratégias de leitura seja importante no processo de formação de leitores. Souza e Girotto (2011) defendem a importância da mobilização das estratégias de leitura para a compreensão textual. Para elas, sete estratégias de compreensão leitora podem contribuir na formação do aprendiz de leitor: conhecimentos prévios, conexões, inferências, visualização, perguntas ao texto, sumarização e síntese. Vejamos o poema sobre direitos humanos escrito pelo amazonense Thiago de Mello a ser trabalhado por exemplo com/por turma do 5º ano do Ensino Fundamental I: 164 Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. Do direito à literatura Artigos/Articles OS ESTATUTOS DO HOMEM (Ato Institucional Permanente) A Carlos Heitor Cony Artigo I. Fica decretado que agora vale a verdade. que agora vale a vida, e que de mãos dadas, trabalharemos todos pela vida verdadeira. Artigo II. Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo. Artigo III. Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança. Artigo IV. Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. Parágrafo Único: O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino. Artigo V. Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa. Artigo VI. Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. Artigo VII. Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo. Artigo VIII. Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor. Artigo IX. Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura. Artigo X. Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer hora da vida, o uso do traje branco. Artigo XI. Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo. muito mais belo que a estrela da manhã. Artigo XII. Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor. Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. 165 RUSSO, D. A.; GIROTTO, C. G. G. S.; OLIVEIRA, A. S.; CABRAL, G. A. C.; FRANCO, S. A. P. Artigo XIII. Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou. Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade. a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem. Não podemos nos furtar de salientar que os conhecimentos prévios têm a ver com a massa aperceptiva das crianças. Para compreender é preciso ter o mínimo de conhecimento sobre o assunto, como diz Jakubinsky (2015, p. 93): Compreendemos e percebemos melhor ainda a fala de outrem em uma conversa quando nossa massa aperceptiva tem muito em comum com aquela de nosso interlocutor. É isso o que faz com que a fala de nosso interlocutor possa estar incompleta e muito alusiva; e inversamente quanto maior a diferença entre as massas aperceptivas dos interlocutores, maior a dificuldade de compreensão. O professor pode inicialmente informar as crianças o título do poema e o nome do autor. E questioná-las sobre o que sabem dele e o que podem inferir pelo título. Por exemplo pedir que elas expliquem o que entendem pela palavra estatuto. A partir das respostas podem perguntar se elas conhecem outros textos exemplos de regulamentos e deixar que as crianças externem seus conhecimentos. O professor pode pedir que as crianças falem sobre os conteúdos e estruturas desses estatutos ou regulamentos e ainda questioná-las sobre o que trará o texto de Thiago de Mello tendo em vista tratar-se de um texto poético abordando direitos humanos. Neste momento, à medida que externam seus conhecimentos prévios já fazem inferências sobre o assunto do texto e a forma de abordagem. Segundo Souza e Girotto (2011) e Souza (2016) a inferência é a ação de fazer previsões sobre algo tendo como base os conhecimentos já construídos. Após essa fase o professor propõe a ‘leitura individual e silenciosa” e, na sequência, pode declamar o poema para os alunos. Após a leitura silenciosa e declamação, pode haver a leitura compartilhada no formado de questionamento de texto como propõe Jolibert (1994 a) já propondo outra estratégia a ser mobilizada, a conexão. Souza (2016) a define como sendo a capacidade de relacionar o texto lido com fatos da própria vida (conexão texto-leitor), com fatos de outros textos (conexão texto- texto) e com fatos do mundo (conexão texto-mundo). É possível mobilizar os três tipos de conexões, mas deter-nos-emos na conexão texto-texto. Para isso o professor pode valer-se das respostas levantadas nos conhecimentos prévios e pedir às crianças que relacionem o assunto do poema de Thiago de Mello com outros textos cuja função seja a de garantir os direitos das pessoas. Caso as crianças se lembrem da Constituição Federal, o professor pode 166 Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. Do direito à literatura Artigos/Articles questionar sobre alguns direitos garantidos nesta Carta Magna do país. Essa discussão pode envolver os direitos que de fato são cumpridos ou não. Se muitas crianças não conhecerem a Constituição, o professor pode aproveitar o momento e apresentar a elas alguns trechos que considera fundamental. Após isso, fazer uma discussão sobre o que difere o estatuto de Thiago de Mello dos demais estatutos, haja vista que por se tratar de texto poético preocupa-se com direitos subjetivos. A estratégia denominada visualização também pode ser mobilizada. Para Souza (2016, p. 99): “Visualizar é formar imagens mentais que pertencem somente àquele leitor e a mais ninguém”. Os textos mais adequados para isso são aqueles ricos em descrições. Contudo, a terceira estrofe do poema denominada de artigo III pode cumprir bem essa função. Para isso, o professor pode solicitar a releitura deste trecho e a partir disso disponibilizar papel, lápis, tintas e pinceis para que as crianças façam as suas representações visuais. A estratégia de questionamento deve estar presente antes, durante e após a leitura do poema. Como o aprendizado ocorre primeiramente no social e após no individual é importante o professor questionar o texto no momento de leitura oral para que os alunos aprendam como isso deve ser feito. Após todas as discussões referentes ao poema, o professor consciente de que todo enunciado requer uma resposta como afirmou Bakhtin (2011) pode solicitar aos alunos a produção de seu próprio estatuto. Neles as crianças escreverão os direitos considerados por elas como fundamentais. As temáticas podem ser variadas: estatuto do aluno, estatuto do filho, estatuto do amigo, dentre outros. Ou a atividade pode encerrar-se com as discussões haja vista o ensinamento de Bakhtin (2011, p. 272): [...] a compreensão ativamente responsiva do ouvido [...] pode realizar-se imediatamente na ação [...] pode permanecer de quando em quando como compreensão responsiva silenciosa (alguns gêneros discursivos foram concebidos e aceitos apenas para tal compreensão, por exemplo, os gêneros líricos), mas isto, por assim dizer, é uma compreensão responsiva de efeito retardado. Não esperamos que essa proposta atue como um modelo, mas como uma dentre várias possibilidades de ampliação do trabalho com a leitura. Sendo a educação direito fundamental garantido na Constituição brasileira, é preciso que nós educadores cumpramos a nossa tarefa com ética e responsabilidade. Dentro do processo educacional destacamos a leitura, em especial a leitura dos textos literários também como direito fundamental do ser humano. Mas para que ela cumpra a sua função de contribuir com a formação do sujeito é preciso entendê-la como construção de sentidos e para isso as estratégias de leitura se mostram como importantes aliadas do professor. Enfim, posto que para ler literatura, é preciso saber ler, aprender a ler ‘literatizando-se’, vivenciar a narratividade da ficção permite ao sujeito aprendiz de leitor, conhecer-se a si mesmo pelo/com o outro, autuando de forma mais Educação em Revista, Marília, v.22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. 167 RUSSO, D. A.; GIROTTO, C. G. G. S.; OLIVEIRA, A. S.; CABRAL, G. A. C.; FRANCO, S. A. P. humanizante e humanizadora em seu entorno, contribuindo quiçá para a construção de um mundo mais humano. RUSSO, D. A.; GIROTTO, C. G. G. S.; OLIVEIRA, A. S.; CABRAL, G. A. C.; FRANCO, S. A. P. From the right to the literature: reading experience from the poem os estatutos do homem de Thiago de Mello. Educação em Revista, Marília, v. 22, p. 157-170, 2021, Edição Especial. Abstract: The fundamental human rights are guaranteed by law for the men and women of contemporary democratic society. Among the fundamental human rights, we focus on the right to education and, consequently, their contributions to the humanization of the subjects, through the development of superior capacities, among them we highlight the ability to read literary texts and discuss them based on historical-cultural theory and authors of literature. In this context, we present the contemporary Brazilian poet Thiago de Mello and his works, highlighting “Os Estatutos dos Homens”. The criterion of choice comes from the very aesthetic-literary notoriety of the work that materializes in a text of originality in the great theme present in the plot, guaranteeing literary quality the choice. After reflections on Thiago de Mello’s statements based on Bakhtinian concepts, we suggest a practical proposal of reading with children from the final years of Elementary School. These are activities with reading strategies (Souza and Girotto, 2011) from the poem about on human rights, “Os Estatutos dos Homens”, written by the contemporary poet amazonian Thiago de Mello. Keywords: Education. Literature. Reading experience and Human Rights. RERENFÊNCIAS ALEIXO, Marcos Frederico Krüger. Thiago de Mello: melhores poemas. São Paulo: Global, 2009. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016. BRASIL. Constituição da república federativa do brasil de 1988. Disponível em: < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 17 mai. 2019. CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Duas Cidades, 2004. JAKUBINSKIJ, Lev. Sobre a fala dialogal. Tradução Dóris de Arruda C. da Cunha e Suzana Leite Cortez. São Paulo: Parábola, 2015. JOLIBET, Josette et al. 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