10.26512/anuarioantropologico.v42i2.2017/7400
Atas do espírito: a Organização Mundial da Saúde e
suas formas de instituir a espiritualidade1
Rodrigo Toniol
Unicamp
Em maio de 1984, acadêmicos, técnicos e políticos se reuniram na sede da
Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, Suíça, por ocasião da 37ª
assembleia geral da instituição. Entre tantas outras resoluções aprovadas naquela
ocasião, com as quais eu tomava contato a partir da consulta direta aos arquivos
da agência, uma em particular reteve minha atenção. Tratava-se da decisão
WHA37.13, cujo conteúdo pode ser sintetizado nos seguintes termos:
tendo considerado o relatório da direção geral [da OMS] sobre a dimensão
espiritual para o “Programa saúde para todos no ano 2000” e também
acompanhando as indicações do Comitê executivo sobre a resolução EB73.
R3, a assembleia: […] Reconhece que a dimensão espiritual tem um papel
importante na motivação das pessoas em todos os aspectos de sua vida. Afirma
que essa dimensão não somente estimula atitudes saudáveis, mas também deve
ser considerada como um fator que define o que seja saúde. Convida todos
seus Estados-membros a incluírem essa dimensão em suas políticas nacionais
de saúde, definindo-a conforme os padrões culturais e sociais locais (grifos
originais).2
Minha surpresa diante da contundência daquela resolução que inscrevia a
“dimensão espiritual” como um fator intrínseco à saúde humana só não foi maior
que as descobertas acerca da amplitude histórica da presença e, portanto, dos
debates sobre essa categoria naquela instituição. Espiritualidade, como descobriria
nos meses seguintes de pesquisa na biblioteca e nos arquivos da OMS, é uma
noção presente nos documentos oficiais da Organização desde 1948, ano em que
foi fundada.
Neste texto me ocuparei da análise das formas de presença da categoria
espiritualidade no âmbito da OMS. Para tanto, recorro a atas, memorandos,
transcrições de discursos, resoluções oficiais e relatórios que me permitem
explicitar como a ideia de espiritualidade foi acionada ao longo do tempo na
instituição e, principalmente, como ela foi articulada com outras noções, como
as de cultura, religião, direitos e bem-estar. Assim, embora por vezes adote uma
orientação cronológica para analisar de que modo o termo se estabeleceu nos
debates da Organização, não pretendo descrever as modalidades de relação entre
espiritualidade e saúde em uma linha histórica contínua e progressiva. Como
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demonstrarei, as formas de instituir essa categoria variam ao longo do tempo sem
que isso signifique, no entanto, que diferentes formulações não possam coexistir.
Noutras palavras, mesmo em um intervalo de tempo determinado, distintas
versões da espiritualidade podem ser observadas nos documentos da OMS.
Partirei de um movimento de atenção dupla: por um lado, descrevo e analiso
as formas instituídas da espiritualidade na OMS, ancorando minhas reflexões na
versão final dos documentos já promulgados; por outro, me atenho aos processos
anteriores às oficializações, privilegiando não as formas acabadas das resoluções,
mas os debates que as antecederam e as configurações históricas e políticas que
as viabilizaram.3
Este texto está dividido em duas partes principais. Na primeira, mais curta,
explicito algumas das questões que envolvem a análise do tema da “espiritualidade”
nas ciências sociais da religião e justifico as razões pelas quais uma investigação
como esta pode contribuir para tal debate. Na segunda, detenho-me nos
documentos analisados, apresentando-os a partir de dois eixos de variação: a
espiritualidade dos Outros e a espiritualidade de Todos. Explicitarei como esses
dois eixos não somente diferem, mas principalmente se articulam. Encerro o texto
delineando um conjunto de consequências empíricas associadas à “oficialização
da espiritualidade” na OMS, assim como elaborando algumas lições teóricometodológicas que podemos derivar das análises apresentadas.
Espiritualidade institucionalizada e política da espiritualidade
Noutros textos (Toniol, 2015a, 2015b), argumentei que a relação entre
espiritualidade e saúde tem se consolidado como um tópico cada vez mais
frequente e, em alguma medida, legítimo no campo das ciências médicas. Aqui
não poderei recuperar cada argumento apresentado, tampouco poderei contemplar
as dimensões controversas desse processo. Sendo assim, limito-me a sublinhar que
o reconhecimento da espiritualidade como uma dimensão relativa à saúde é um
fenômeno que pode ser observado nas diferentes instâncias do trinômio médico
– ensino, pesquisa e clínica – e que tal abrangência também tem despertado a
atenção de outros pesquisadores.4
Ao mesmo tempo, por mais que os objetivos deste artigo não estejam
diretamente dirigidos a nenhum aspecto imediato da atuação médica, mas sim
às formas de produção do par espiritualidade/saúde no contexto de uma agência
global de gestão da saúde, reconheço que há vínculos e ressonâncias significativas
entre as ações da OMS e a dimensão da prática médica. Afinal, como Nitsan
Chorev (2012) demonstrou em The World Health Organization between North and
South, a produção discursiva sobre saúde e doença realizada no âmbito da OMS
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não é inócua, adquirindo frequentemente concretude local. Para reconhecer tal
influência, afirma Chorev, basta observar o papel determinante da agência na
definição de políticas nacionais de saúde, na estandardização de procedimentos
médicos, ou ainda na formulação de agendas de pesquisa. Essas considerações
ajudam a dimensionar como as afirmações da OMS sobre espiritualidade e saúde
também podem ter efeitos que ultrapassam o campo da política internacional e
afetam, de forma mais direta, o cotidiano de hospitais e ambulatórios.
Tão relevantes quanto a amplitude empírica do fenômeno observado são as
consequências teórico-metodológicas que dele podemos desdobrar. Isso porque,
como venho argumentando (Toniol, 2016), o caso da legitimação da espiritualidade
como uma dimensão da saúde oferece um oportuno contraponto ao modo
como os cientistas sociais da religião usualmente empregaram essa categoria
e descreveram os fenômenos a ela associados. Entre tantos outros exemplos
possíveis, a definição de espiritualidade sugerida por Paul Heelas et al. sintetiza
aspectos estruturantes do entendimento do termo para sociólogos e antropólogos
dedicados ao assunto: “espiritualidade é uma forma subjetiva de existência do
sagrado, que enfatiza fontes internas de significado e de autoridade, assim como
o cultivo ou sacralização da vida subjetiva” (2005:6). Definição semelhante a
essa foi proposta por Renée de la Torre, que emprega o termo para “aludir
a práticas menos dogmáticas, distanciadas das normas e cânones das religiões,
[…] [caracterizando-se por serem] individuais, subjetivas, intuitivas e emocionais”
(2016:10). Trata-se, prossegue a autora valendo-se do diálogo com Charles Taylor
(2007) e Maria Julia Carozzi (1999), de um termo que descreve a “autonomização
do sujeito na busca por uma relação pessoal com o sagrado e com o transcendente,
adensada pelo rechaço ao controle institucional e ao autoritarismo das instituições
religiosas” (2016:10). Em qualquer dessas duas versões, a espiritualidade indica
uma modalidade de relação com o sagrado estabelecida a partir de contornos
desinstitucionalizados e subjetivos.
É certo que essa chave analítica tem sido sido fundamental para o avanço na
compreensão de fenômenos como a Nova Era e também do universo dos sujeitos
autodeclarados sem religião. No entanto, igualmente pertinente é reconhecer que
o caráter apriorístico dessas definições de espiritualidade inibiu a atenção dos
pesquisadores para outros modos de existência e de usos dessa categoria. Entre
esses outros modos de existência da categoria, destaco justamente seu emprego
como um dispositivo potente, acionado no âmbito de instituições seculares, que
a inscreve em políticas públicas, relatórios de governo, debates jurídicos, textos
médicos e, como demonstrarei neste artigo, em resoluções, programas oficiais e
instruções dirigidas à saúde promulgadas pelas OMS.
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A análise a seguir está amparada por um princípio metodológico mais geral
que parte do reconhecimento de que espiritualidade é um conceito historicamente
situado, marcado pelas configurações de poder características da modernidade
ocidental.5 A semelhança entre essa afirmação e o que diz Talal Asad (1993:29)
sobre a categoria religião não é despropositada. Talvez a ordem desse paralelo
fique mais clara na paráfrase de outra sentença de Asad (2001:220): definir
“espiritualidade” é antes de tudo um ato. Isso significa que a espiritualidade,
enquanto categoria, é constantemente definida dentro de contextos sociais e
históricos, e que as pessoas possuem razões específicas para instituí-la de um
modo ou de outro. Esse é o ponto de partida que permite o desenvolvimento
de análises menos interessadas em definir ou em assumir definições apriorísticas
de espiritualidade e mais preocupadas em acompanhar como essa categoria é
produzida, sendo mobilizada e mobilizando, em cada uma de suas “versões”,
diferentes atores e instituições. É nesse sentido que o caráter vago e plural de
espiritualidade, frequentemente tratado como um elemento complicador nas
análises de cientistas sociais da religião, é convertido no próprio objeto de interesse
deste texto. Afinal, o que a multiplicidade de definições do termo sugere é que,
primeiro, apesar da variação de sentidos, a recorrência com que ele é acionado
não deixa dúvidas: seu emprego não é aleatório. E que, segundo, mais interessante
do que definir espiritualidade é “observar como o termo é usado e como as suas
diferenciações de outras categorias tornam algumas práticas e engajamentos mais
ou menos possíveis” (Bender, 2010:5). Trata-se, portanto, de uma categoria que
se estabelece a partir de um equilíbrio precário, entre a pulverização do que pode
significar, a insistência de sua relevância e os esforços, por parte de diferentes
atores, em defini-la.
Este texto é uma tentativa de avançar no entendimento dos enunciados da
OMS sobre a categoria espiritualidade. Ao mesmo tempo, reflete o esforço analítico
de dar visibilidade ao termo na sua condição de dispositivo político de gestão de
populações — e, portanto, não como um descritor de uma modalidade individual
de experiência do sagrado. Refiro-me à gestão de populações porque, afinal, o que
está sempre em jogo nessas resoluções da OMS é estabelecer normatizações sobre
os vínculos entre espiritualidade e saúde e, simultaneamente, instituir princípios
para que seus Estados-membros possam transformá-las em práticas.
Ao deter-me em um contexto no qual a categoria espiritualidade é estabelecida
institucionalmente, insisto e estabeleço um contraste latente (nem por isso
discordante) com análises dedicadas à espiritualidade em sua versão subjetiva,
desinstitucionalizada e oficiosa, tal como aquela implicada na definição de Heelas
et al. (2005). O que chamo de espiritualidade institucionalizada remete aos usos
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oficiais, burocráticos ou propriamente institucionais dessa categoria. O contraste
é latente porque as formas institucionais de estabelecimento da espiritualidade,
mesmo quando o termo é forjado como uma variável de políticas de populações,
não necessariamente desfazem o vínculo entre a categoria e a experiência individual
e subjetiva. Trata-se, contudo, de um tipo de formulação que reconhece o caráter
possivelmente individual da espiritualidade, transformando-o em uma questão
que transcende as individualidades.
É preciso sublinhar que a noção de espiritualidade institucionalizada é
próxima da que o antropólogo Peter van der Veer denominou de política da
espiritualidade. Em seu livro Modern spirit of Asia (2013), Veer também estava
interessado em apontar para o caráter normativo que o termo pode assumir.
Em seu caso, no entanto, a atenção estava dirigida ao emprego da categoria em
expedientes de exercício do poder colonial na Índia e na China. Ainda assim,
apesar das evidentes diferenças entre os materiais empíricos analisados, tanto nas
pesquisas de Peter van der Veer quanto na investigação que originou este texto,
declarar o interesse pelas formas institucionais de produção da espiritualidade
significa colocar no centro das reflexões os efeitos, as configurações históricas
e os interesses implicados em cada ato de definição dessa categoria. Diante dos
documentos da OMS, portanto, o que interessa não é perguntar “afinal, o que é
espiritualidade?”, mas sim “quais são os atores envolvidos, os termos mobilizados
e os efeitos implicados cada vez que essa categoria é instituída?”
Ao dizer, portanto, que as reflexões que seguem estão às voltas com certa
política da espiritualidade, aponto para os processos que normatizam a categoria
espiritualidade e, ao mesmo tempo, transformam-na em uma dimensão
normatizadora de políticas de saúde. Nesse sentido, o uso que faço da noção de
política aproxima-se da literatura condensada em trabalhos como o de Cris Shore
e de Susan Wright (2003) sobre a antropologia da política, mas talvez esteja ainda
mais dirigido ao que Michael Herzfeld (2008) denominou de “poética do Estado”.
Em seu livro Intimidade cultural, Herzfeld (2008) opera substancialmente dois
conceitos: o de poética (social) e o de intimidade cultural. Como bem sintetizou
Marcio Goldman (1998), a “intimidade cultural” seria constituída por valores
que os indivíduos e grupos consideram como “seus” e que eles devem, ao mesmo
tempo, seguir e apresentar aos demais. Representam-se os valores no sentido
teatral do termo, mas isso só adquire sentido no quadro das interações concretas,
que, simultaneamente, produzem os contextos em que se processam (Goldman,
1998:150). É nessa apresentação criativa do eu individual que se situa a “poética do
social”. Ocorre, e é isso o que me interessa no texto de Herzfeld, que o Estado e, eu
acrescentaria, as agências de governança, como a OMS, também têm sua poética.
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E parte essencial dessa poética consiste justamente no “esforço para apagar todos
os rastros de sua própria criatividade, ao mesmo tempo em que busca impedir a
de todos os demais”. Afinal, como afirma Herzfeld (2008:40), “o Estado-nação
está comprometido ideologicamente com a sua perpetuação ontológica para toda
a eternidade. Embora possa tentar adotar a mudança tecnológica ou até social,
ele perpetua a ilusão semiótica da fixidez cultural”. E é por isso, continua o
autor noutro trecho, “que as ideologias oficiais costumam recusar a instabilidade
semântica: reconhecendo que a instabilidade levaria ao apercebimento de que os
próprios sentidos oficiais são instáveis” (Herzfeld, 2008:41).
As consequências dessa perspectiva para estabelecer a contribuição da
antropologia para os estudos do Estado e de outros organismos de gestão são
definitivas. A partir dela, o trabalho antropológico passa a ser o de reinserir “a
consciência do fundamento social, cultural e político mesmo do poder mais
formal e do conhecimento mais abstrato” (Herzfeld, 2008:46). O antropólogo que
encarar esse Estado-nação em seus planos de existência mais concretos – aqueles
das experiências vividas pelos indivíduos e grupos que nele habitam – perceberá
imediatamente, sugere Herzfeld, que o que se denomina com esse nome (Estado)
consiste, na verdade, em um conjunto aberto de agentes e operações, possuindo
como denominador comum o fato de estarem voltados para uma “despoetização”
da vida social, ou seja, para a essencialização, naturalização e literalização de
experiências sociais sempre múltiplas e polifônicas.6
Ao situar seu interesse na dimensão mais concreta desse conjunto aberto de
agentes e operações, Herzfeld reconhece, na reflexão sobre o cotidiano e sobre a
produção de documentos por burocratas e agentes estatais, uma via privilegiada
de acesso ao problema da poética do Estado. Afinal, esses sujeitos têm à disposição
uma variedade excepcionalmente rica dos próprios dispositivos de apresentação
do Estado, uma vez que são autores de leis, burocracias, políticas públicas etc.,
que emergem (quase) sem deixar rastros e terminam servindo para reificar essa
aparente imutabilidade estatal (Herzfeld, 2008:54).
A perspectiva de Herzfeld oferece um enquadramento analítico oportuno para
situar o movimento que faço neste artigo de analisar os debates e os documentos
que retratam decisões do trabalho burocrático da OMS. Sem perder de vista a
poética do Estado, afinal, também estou interessado na apresentação formal da
espiritualidade por parte da OMS, aposto aqui na análise de documentos que
me aproximam dessa espécie de ato de despoetização, que sinteticamente é uma
tentativa de escapar da imagem poderosa de que as decisões tomadas no âmbito
de uma agência como essa estão orientadas pela pura racionalidade técnica.
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Documentos instituídos, documentos instituintes
O material empírico que fundamenta este texto é sumariamente documental.
Tive acesso a ele explorando variações da palavra “espiritualidade” — “espírito”,
“espiritual” etc. — nas bases de dados dos arquivos físicos e digitais disponíveis
em acervos da OMS e da Organização das Nações Unidas (ONU).7 O resultado
inicial foi a seleção e análise de um conjunto de 1.497 documentos, datados entre
1948 e 2017, distribuídos entre memorandos, atas, relatórios, resoluções, livros
comemorativos etc. Diante desse volume de informações, não faltam possibilidades
classificatórias. Seria possível, por exemplo, produzir uma classificação baseada
nos materiais que instituem “espiritualidade” como a) uma dimensão da saúde
mental; b) um fator protetivo de saúde; e c) um vetor indicativo de qualidade de
vida. Ou, ainda, classificá-los a partir da diferenciação entre as proposições que
avançaram nas instâncias deliberativas da OMS e aquelas que fracassaram. Embora
factíveis e relevantes, essas formas de organização tornam-se limitadas quando
lhes impomos uma linha temporal mais ampliada. Isso porque algumas dessas
formas de instituir espiritualidade refletem tendências de períodos específicos do
debate sobre o tema, inviabilizando, assim, a observação de transformações mais
gerais e temporalmente distribuídas.
Foi considerando aspectos como esse que optei por privilegiar dois eixos
narrativos e de organização desses documentos. Trata-se de eixos que me
permitem tanto contemplar as variações da espiritualidade na OMS ao longo
de uma série histórica ampliada como também sublinhar algumas características
dessas formulações, que são contínuas. Assim, primeiro descreverei as condições
da formulação e os documentos que instituem o que chamei de espiritualidade
dos Outros. E, na sequência, deter-me-ei na espiritualidade de Todos. Como
ficará explícito a seguir, tão importante quanto identificar diferenças entre essas
formas de instituir espiritualidade é reconhecer que há uma dinâmica de conexão
entre elas, evidenciando-se como a elaboração de uma foi imprescindível para o
estabelecimento de outra.
Espiritualidade dos Outros
A OMS foi criada em 1948 como uma agência da ONU, investida da
autoridade e da responsabilidade de coordenar ações internacionais de atenção à
saúde. Tal como outras instituições criadas em meados do século XX, logo após
a experiência de duas grandes guerras, a OMS foi estabelecida com o desígnio de
“instituir normas e padrões de atendimento, articular políticas de gestão da saúde,
prover suporte técnico e monitorar as ações locais de seus Estados-membros”.8
Seu principal objetivo, descrito em sua constituição inaugural, é tão vago quanto
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ambicioso: “a conquista do mais alto nível de saúde possível para todos os
povos”.9 Diante dele, a função da OMS estaria concentrada em dois movimentos
fundamentais: de um lado, garantir universalidade do acesso a serviços de saúde
de qualidade para as populações menos favorecidas; de outro, criar mecanismos de
controle e ação sobre epidemias globais que, por suas características, ultrapassam
limites fronteiriços e, portanto, cujo combate depende de ações internacionais
coordenadas.
Embora os objetivos e a agenda atual da OMS permaneçam em consonância
com aqueles estabelecidos quando da sua fundação, os meios empregados para
atingi-los, assim como o tipo de ação internacional realizada pela agência,
transformaram-se radicalmente durante a década de 1960. Nesse período, os
processos de independência de antigas colônias, seguidos do reconhecimento
dessas novas nações pelas instituições de governança global, alteraram as
dinâmicas de negociação, os debates e as deliberações em todo o sistema das
Nações Unidas.
No início dos anos de 1970 as condições político-econômicas globais que
informaram as políticas da Organização Mundial de Saúde durante suas
primeiras décadas de existência já estavam radicalmente transformadas. Os
novos Estados independentes, com o fim do período colonial, uniram-se ao
bloco dos então chamados países de terceiro mundo, e juntos eles passaram
a constituir o grupo majoritário no sistema das Nações Unidas e em suas
agências especializadas [como a OMS]. Isso transformou a dinâmica das forças
políticas internacionais. A emergência de uma agenda de cooperação entre
países latino-americanos, asiáticos e africanos também resultou na unificação
de críticas sobre os países desenvolvidos que, segundo esse bloco emergente,
atuavam para comprometer a efetivação de todo o potencial econômico de suas
regiões. Em 1974, tais acusações foram formalizadas na Assembleia Geral das
Nações Unidas, que terminou conclamando a emergência de uma Nova Ordem
Econômica Internacional (NOEI). A NOEI estava baseada em um conjunto de
princípios fundamentais que incluíam equidade, justiça e soberania econômica
dos países (Chorev, 2012:42).
Essa nova configuração política e econômica também afetou as ações da
OMS. As antigas colônias, a partir de então países independentes, passaram
a demandar mais autonomia na gestão de suas políticas de saúde e também
a adaptação dos programas da agência global às singularidades locais. Situar
essa conjuntura é fundamental para compreendermos as razões e justificativas
que viabilizaram a consolidação de uma das formulações mais recorrentes da
espiritualidade nos documentos da OMS: aquela que a institui, associando-a à
cultura e à medicina tradicional. Para dar conta desse processo, no entanto, é
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necessário recuperar as ações de outra agência que atuava globalmente na gestão
da saúde – uma agência não de base secular, como a da ONU, mas sim religiosa.
Três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, a reboque da criação de
uma série de instituições globais que tinham como objetivo fortalecer e ampliar a
visibilidade política de iniciativas até então não articuladas, foi criado o Conselho
Mundial de Igrejas (CMI). Desde sua fundação, o CMI foi estruturado a partir
de frentes de trabalho orientadas por objetivos próprios e com autonomia de
agendas, mas convergentes com os princípios mais gerais da organização, tais
como o ecumenismo e a promoção e participação em projetos de desenvolvimento
regional. Entre essas frentes de trabalho está a chamada Comissão de Médicos
Cristãos (CMC), criada em 1968, estabelecida em Genebra e especialmente
voltada para a gestão de uma rede de hospitais e ambulatórios construídos com o
apoio do CMI. Essa comissão também foi criada com a incumbência de assumir
a coordenação das ações de saúde que o Conselho realizava nos países em que
suas missões médicas atuavam, principalmente na África, Ásia e América Latina.
A antropóloga Pamela Klassen, em sua pesquisa sobre liberalismo e medicina
entre grupos protestantes no século XX, identificou a fundação da Comissão de
Médicos Cristãos, na década de 1960, e os trabalhos por ela desenvolvidos como um
ponto de ruptura em relação às missões médicas evangélicas anteriores. Até aquele
momento, afirma Klassen, a atuação dos médicos-missionários estava baseada em
um modelo centralizador, que privilegiava a construção de grandes hospitais nos
centros urbanos, apoiados pelos governos coloniais daqueles territórios — modelo
semelhante àquele também adotado pela OMS. A mudança política da condição
colonial, no entanto, tornou esse modelo insustentável e, aliado a isso, as mudanças
no próprio trabalho de missão do CMI, cada vez mais aderente ao discurso do
diálogo inter-religioso, configuraram um quadro que impeliu as novas “missões
médicas” noutra direção. A CMC estabeleceu, formalmente, uma agenda baseada
numa perspectiva pós-colonial, orientada por um ideal holístico e concebida para
aproximar agentes de saúdes da realidade dos enfermos (Klassen, 2011). Essas são
as palavras-chave do modelo denominado pela CMC como “atenção primária à
saúde” — termo que posteriormente adquiriria amplas repercussões em políticas
de saúde, em grande medida pelos desdobramentos do contexto que descreverei
a seguir. Entre outros aspectos significativos do deslocamento promovido pela
CMC, que particularmente interessa aos propósitos desse texto, está o status
atribuído aos “curandeiros tradicionais”. Anteriormente desprezados por médicos
missionários, no novo modelo, esses agentes foram integrados à estrutura de
saúde e, principalmente, capacitados para atuar em uma rede de cuidado mais
capilarizada no interior dos países.
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É nesse ponto que a estratégia de atuação adotada pela CMC para responder
à nova situação política dos países coloniais encontra ressonâncias com o próprio
perfil de ação missionária orientado pelo CMI. Como também observou
Klassen (2011), os profissionais que atuavam na CMC forjaram o modelo de
atenção primária à saúde a partir de uma linguagem e de formas que já vinham
progressivamente sendo adotadas em missões médico-religiosas. Acompanhando
a retórica do amor ecumênico e da universalidade humana, o protestantismo
liberal passou da ênfase na assistência médica evangelizadora para aproximações
que enfatizavam o trabalho colaborativo com a comunidade local, a valorização
de suas formas de conhecimento e a conceitualização da noção de “saúde” como
um princípio “holístico”.
A importância desse último aspecto não deve ser subestimada. Christoph
Benn e Erlinda Senturias, médicos que atuaram naquele período na Comissão,
por exemplo, reconhecem que a abertura para as técnicas tradicionais de cura foi
possível somente na medida em que os “missionários adotaram um modelo de
atenção que já não privilegiava a caridade ou que tivesse qualquer ideal proselitista,
mas que, pelo contrário, apostava nos benefícios do cuidado holístico” com o qual
os curadores locais também poderiam contribuir (2001:12). Esses novos aliados, os
curadores locais, afirmam Benn e Senturias (2001), tornaram-se peças-chaves, já
que apenas eles poderiam realizar práticas de cuidado culturalmente compatíveis
com a noção de corpo e, principalmente, de espírito de seu grupo.
O modelo de trabalho adotado pela CMC estabeleceu uma associação entre
práticas de medicina tradicional e, em seus próprios termos, atenção à dimensão
espiritual. Dois aspectos precisam ser retidos neste ponto. Primeiro, por conta da
transformação no modo de ação missionária, conforme as orientações do CMI,
o contato com populações “nativas” estava orientado por ideais ecumênicos e,
portanto, não concorrenciais, já que não tinha como objetivo primeiro a conversão.
Isso permitiu que a CMC reconhecesse a legitimidade das “práticas de atenção
e de cuidado com o espírito” realizadas pelas populações por ela atendidas. A
segunda dimensão a ser sublinhada nesse contexto é que essas formas de cuidado
com o espírito foram descritas, pelo CMC, como práticas de saúde. Esse processo
não é trivial, já que se refere à transformação de sujeitos que, pouco tempo antes,
eram considerados pela mesma instituição como “sacerdotes de religiões pagãs”
em “agentes legítimos de cura”.10
Aqui, no entanto, não são as ações da CMC o que interessa propriamente,
mas sim reconhecer como essas ações impactaram o posicionamento da OMS
sobre o tema da espiritualidade. De antemão, sublinho que o modelo instituído
pela CMC, que articula medicina tradicional e cuidado com o que passaria a ser
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denominado de “espiritualidade”, foi precursor de um processo que também seria
empregado na OMS, inaugurando uma série de formulações que associa a ideia
de espiritualidade com práticas de saúde não ocidentais. É, ao fim e ao cabo, a
espiritualidade dos Outros que passa a ganhar forma.
Em novembro de 1970, a CMC publicou o primeiro volume de um periódico
criado com o objetivo de divulgar crônicas e relatos dos trabalhos que estavam
sendo realizados pelos médicos cristãos. Significativamente intitulada Contact,
a publicação, que descrevia projetos e ações da CMC, chamou a atenção de
delegados e funcionários da OMS que enfrentavam problemas semelhantes
àqueles ali apresentados. Essa é a justificativa explicitada pelo diretor geral
da OMS, Tom Lambo, ao enviar uma correspondência a James McGilvray,
então diretor da CMC, em novembro de 1973, propondo “uma reunião entre
os diretores da Comissão de Médicos Cristãos e um grupo de delegados da
Organização, com o objetivo de explorar possibilidades efetivas de trabalho
conjunto” (Klassen, 2011:54).
Conforme os registros, o encontro ocorreu apenas em março de 1974 e contou
com a presença de 10 delegados seniores da OMS, além de membros da CMC.
Entre os delegados da OMS estava Kenneth Newell, cujo pai havia trabalhado
no CMI entre o fim da década de 1940 e o início de 1950. Segundo relatos, a
reunião teve como principal resultado a criação de um pequeno grupo de trabalho,
coordenado por Newell e por um diretor da CMC, incumbido de preparar um
relatório que indicasse a viabilidade de parcerias de longo prazo entre as duas
agências e também apresentar propostas mais imediatas, a ser levadas à assembleia
geral da OMS daquele mesmo ano (Litsios, 2004).
Apenas três meses depois da reunião e da criação do grupo de trabalho, em
julho de 1974, durante a 27ª Assembleia Mundial de Saúde, a OMS aprovou uma
resolução que recomendava “assistir os governos de seus Estados membros na
condução de suas políticas de saúde em direção aos seus próprios objetivos, tendo
como prioridade o rápido e efetivo desenvolvimento de seus sistemas de saúde”.11
Como sugere Socrates Litsios (2004), delegado da OMS à época, esse texto
iniciou a abertura da instituição ao modelo de atenção primária à saúde, o que
era explicitamente um resultado da parceria com a CMC. Ainda mais explícita
quanto a adesão da OMS aos projetos originários das novas missões médicoreligiosas foi a criação, naquela mesma Assembleia, do Programa de Atenção à
Saúde Primária, cuja coordenação foi atribuída a Newell, também coordenador
do comitê de parceria entre OMS e a CMC.
Em 1978, esse programa organizou, em Alma-Ata, então território da União
Soviética, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde,
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evento que se tornou uma referência constante nas políticas de saúde elaboradas
posteriormente. Entre outros marcos, foi nesse evento que a noção de “medicina
tradicional” foi propriamente estabelecida e instituída na OMS. Em texto
oficial, o termo é definido como “a soma total de conhecimentos, habilidades e
práticas baseadas em teorias, crenças e experiências nativas de diferentes culturas,
explicáveis ou não, usadas na manutenção da saúde, bem como na prevenção, nos
diagnósticos e no tratamento de adoecimento físicos e mentais”.12 Ou ainda, em
um documento mais recente:
ao longo da história, os asiáticos, africanos, árabes, as populações nativas
americanas, da Oceania, centro-americanas, sul-americanas, e de outras
culturas, têm desenvolvido uma grande variedade de sistemas tradicionais
nativos. […] A medicina tradicional pode se codificar, regular, ser ensinada e
praticada aberta e sistematicamente, além de se beneficiar de milhares de anos
de experiência.13
Fica explícito, na definição estabelecida pela OMS, que as experiências e
práticas da categoria “medicina tradicional” têm como características: a presunção
de vínculo com sistemas culturais, a origem não ocidental e a distância da
linguagem biomédica. Fundada na cultura, situada historicamente num passado
distante e geograficamente afastada do Ocidente, a legitimação da medicina
tradicional acompanha, em termos muito semelhantes, a legitimação que os
médicos-missionários também já haviam estabelecido em seus projetos.
Esse fato interessa a este texto porque foi a partir da legitimação da medicina
tradicional que “espiritualidade” passou ser uma categoria mais frequente nos
documentos da OMS. Isso porque, no entendimento da Organização, por mais
variadas que sejam, as medicinas tradicionais operam a partir de técnicas que
incluem “tratamento espiritual” e dirigem-se a populações que concebem a saúde
como uma totalidade que integra “corpo, mente e espírito”.14 Em síntese, medicina
tradicional é a medicina dos Outros, que, por suas condições culturais específicas,
conceberiam a dimensão espiritual como uma face incontornável de seu processo
de cura. Nessa formulação, tamanho é o vínculo pressuposto entre o mundo não
ocidental com a dimensão espiritual que, para a OMS, disso o Ocidente inclusive
poderia receber uma lição:
medicina tradicional não deve ser desenvolvida para o seu próprio bem, mas sim
porque todas as forças devem ser mobilizadas para que alcancemos saúde para
todos nos anos 2000. Isso [medicina tradicional] pode também nos enriquecer,
expandir nossos conhecimentos médicos e científicos, e ainda ampliar a riqueza
espiritual da humanidade.15
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A cadeia de conexões apresentada até aqui é extensa: em 1968, a CMC
é fundada e restabelece o modelo de atuação dos projetos de saúde do CMI;
esses projetos, que fundam a noção de atenção primária à saúde, baseiam-se
na valorização dos conhecimentos tradicionais e na ideia de que a saúde dessas
populações demanda atenção holística; nesse contexto, a CMC institui a passagem
que transforma os antigos “sacerdotes de práticas nativas” em “agentes de saúde”,
com os quais passa a buscar estabelecer relações; em 1974, a OMS oficializa uma
parceria institucional com a Comissão e incorpora o modelo de atenção primária
à saúde; quatro anos depois, a medicina tradicional é oficializada na OMS e,
assim, introduz um novo enquadramento possível para a presença da ideia de
espiritualidade nos documentos da Organização: uma fórmula que culturaliza a
categoria e a atrela às necessidade de atenção à saúde dos povos não ocidentais.
É nesse contexto que podemos situar um número significativo de documentos
da OMS que vinculam a ideia de espiritualidade ao processo de legitimação
das chamadas medicinas tradicionais. Nesse modelo, insisto, a espiritualidade
reconhecida pela OMS é aquela que se corresponde com formas de tratamento e
cura muito particulares, características de apenas uma parcela do globo: os Outros
do Ocidente moderno (e biomédico).
Estabelecida inicialmente na década de 1970, a associação entre formas
culturais específicas de compreensão do processo de saúde-doença, as práticas de
medicina tradicional e a noção de espiritualidade continuaram sendo descritas
nos documentos da OMS. Por exemplo, um documento de 2006 do Comitê
Regional das Américas para Saúde afirma:
populações indígenas têm uma visão holística do mundo. A abordagem
holística pressupõe que o todo é maior do que a soma das partes. Ao incorporar
paradigmas nativos passa-se a se conceber saúde por suas relações dinâmicas
e pelo equilíbrio que pressupõe entre as dimensões inseparáveis do indivíduo
(físico, mental, emocional e espiritual).16
Até aqui argumentei e demonstrei como a noção de espiritualidade na
OMS foi instituída como parte da legitimação de medicinas tradicionais.
Essa formulação condiciona sua legitimidade, como fator de saúde, a grupos
culturalmente específicos. No entanto, se, por um lado, nos documentos da OMS
dirigidos aos contextos da África e América as práticas de medicina tradicional são
usualmente descritas de forma genérica, enfatizando-se a necessidade de atenção
diferencial às populações nativas dessas regiões, por outro lado, as resoluções
endereçadas ao Oriente, majoritariamente, não descrevem as características
culturais dos grupos, mas sim a qualidade terapêutica de suas práticas. Trata-se
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de uma inversão fundamental, que dá centralidade às características das práticas
e não às necessidades dos grupos que as praticam. Fundamental, repito, porque
essa inversão desassocia a noção de espiritualidade das necessidades de grupos
específicos e a vincula, alternativamente, às práticas desses grupos. Assim, abre-se
a possibilidade de formular a espiritualidade em termos de prática e não de cultura.
Isso indica uma mudança do enquadramento da noção de espiritualidade, que,
portanto, deixa de estar constrita ao campo das medicinas dos Outros e passa a
ganhar espaço nas políticas e recomendações globais, culturalmente indistintas.
O caso da yoga é emblemático da indicação dessa passagem dos documentos
que inscrevem a espiritualidade como uma dimensão da outridade e aqueles que a
situam como um princípio de saúde pertinente para a saúde de todos. A justaposição
de dois documentos da OMS é ilustrativa. No primeiro, intitulado Medicina
tradicional na Ásia, publicado em 2002, a yoga é descrita como uma “jornada
espiritual […], uma prática de desenvolvimento para a evolução espiritual, mas
que pode ser facilmente empregada para o alívio de doenças”.17 Já no segundo
documento, voltado para o tema do bem-estar mental, a prática continua sendo
descrita em termos de sua potência para o incremento da dimensão espiritual,
mas esse benefício não é territorializado no âmbito das medicinas tradicionais,
e sim no campo da ciência, a partir do qual a prática se desculturaliza e torna-se
recomendável como técnica de prevenção, cuidado e bem-estar.
Atualmente, há evidências “cientificamente validadas” em vários níveis, desde
estudos de caso até ensaios randomizados duplo-cegos controlados por placebo,
que atestam a eficácia de algumas técnicas psicoespirituais. O maior conjunto
de evidências tem sido sobre a meditação e a Yoga. Vários desses estudos
sugerem que a Yoga é benéfica para o controle de fatores de risco de doenças
coronárias, como também é eficaz contra hipertensão, obesidade, dislipidemia,
estresse mental e diabetes mellitus. De acordo com estudos científicos, a yoga
pode atrasar a progressão da doença cardiovascular aterosclerótica ou mesmo
fazê-la regredir. Yoga não tem efeitos colaterais e tem baixo custo. Portanto,
recomenda-se difundi-la [entre os países membros da OMS] como uma técnica
saudável e holística de promoção do bem-estar físico e mental e eficaz para a
prevenção de doenças cardíacas e outras doenças relacionadas ao estilo de vida.18
É nesses termos que, nos documentos da OMS, o caráter antes restrito de
necessidade de atenção à dimensão espiritual adquire contornos prescritivos
e, assim, torna-se uma recomendação generalizante. Essas observações são
fundamentais porque elas nos dão pistas sobre uma questão pouco enfrentada
nas pesquisas sobre espiritualidade e saúde no âmbito da medicina oficial, qual
seja: por que algumas práticas terapêuticas são associadas aos cuidados com o
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espírito e outras não? Ou, de modo mais preciso, sendo ambas reconhecidas como
medicina tradicional, porque a Yoga popularizou-se como uma prática possível
e viável em instituições médicas e, por exemplo, a fitoterapia dos curandeiros de
Gana permaneceu restrita ao interior daquele país?
Certamente há muitas mediações implicadas na produção dessa diferença
de popularidade e legitimidade de práticas orientais (yoga, medicina tradicional
chinesa, tai chi chuan, acupuntura, etc) e medicinas tradicionais de outros
territórios. Entre essas mediações, as mais evidentes talvez sejam a do empenho
de pesquisas científicas, no Ocidente, dirigidas às práticas orientais, e também o
próprio fascínio e construção da imaginação que vincula o oriente à espiritualidade
— ambos tópicos tratarei noutros capítulos. Ainda assim, a partir da análise dos
documentos da OMS também podemos observar a consolidação dessa retórica
naquela agência. Em síntese, práticas como a Yoga foram inscritas de outra
maneira na chave da medicina tradicional da OMS por meio de dois recursos
principais: 1) porque sempre foi descrita como uma prática terapêutica e não
como um fenômeno cultural de um grupo específico, sendo, portanto, descrita
como uma prática e não como uma manifestação da alteridade; 2) porque a partir
do processo anterior essa prática foi rapidamente desterritorializada e tornada
um recurso médico, uma técnica que, nos termos da OMS e repetindo a citação
anterior, “é saudável e holística [ uma forma de] promoção do bem-estar físico e
mental, eficaz para prevenção de doenças cardíacas e outras doenças relacionadas
ao estilo de vida”.
A seguir investirei nessa outra forma discursiva de presença da noção de
espiritualidade na OMS, demonstrando como ela se prolifera em discursos sobre
práticas terapêuticas, mas também se compatibiliza com outras noções como a de
direto à saúde e de bem estar.
Espiritualidade de Todos
Considerando o conjunto de documentos da OMS que podem ser agrupados
porque oficializam a espiritualidade numa chave generalizante — isto é, não
particular, como nos casos que descrevi da espiritualidade dos Outros —, destaco
três formas recorrentes, sobre as quais me detenho a seguir.
Espiritualidade e práticas terapêuticas
Nos anos seguintes ao evento de 1978 da OMS, quando a medicina tradicional
foi reconhecida, outro conjunto de práticas terapêuticas igualmente de base não
biomédica foi oficializado pela Organização: as chamadas medicinas alternativas
e complementares (MAC).19 Em comum a ambos os conjuntos está a projetada
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afinidade com a dimensão espiritual; e, em contraste, o fato de que as MACs,
desde sua criação, não são descritas em função das populações que as praticam,
mas sim de suas qualidades terapêuticas.
A MAC é uma categoria afim à Medicina Tradicional (MT). Ao menos
nos documentos oficiais da OMS, esses termos são assim constituídos, sendo
apresentados, inclusive, pela sigla MT/MAC. No entanto, eles têm trajetórias
distintas na instituição, a exemplo de sua pressuposta localização: enquanto a
MT corresponde a práticas do Sul global, MACs são práticas características do
Norte, como fica explícito no relatório da OMS sobre a presença dessas práticas
no mundo: “o uso de medicina tradicional segue sendo muito extenso em países
em desenvolvimento – Índia (70%), Ruanda (70%) e Etiópia (90%). E em países
desenvolvidos – como Estados Unidos, Austrália, Canadá e Reino Unido –, o uso
de medicina alternativa e complementar tem aumentado muito rapidamente”.20
Há uma diferença evidente nas formas de vínculo territorial de cada um
desses conjuntos de práticas. Enquanto o território e a cultura são condicionantes
da MT — isto é, na concepção da OMS, cada população mantém sua própria
prática de MT, que por sua vez perde sentido fora desse contexto —, as práticas
de MAC operam fora de qualquer condicionamento territorial ou cultural. Nem
por isso o endereçamento das MACs aos países do Ocidente moderno é menos
significativo. Isso porque, ao fazê-lo, a OMS inicia um processo de legitimação
de práticas não biomédicas, alegadamente forjadas numa perspectiva holística e
atentas à dimensão espiritual, em um contexto onde anteriormente não havia
espaço para considerações sobre a pertinência da atenção à espiritualidade.
Operando novamente como um princípio-chave, o holismo é um termo
síntese da própria definição de MAC, bem como indicador da amplitude do tipo
de atenção que tais práticas buscam prover. Entre os documentos oficiais que
sintetizam essa característica das MACs estão os textos das Políticas de Práticas
Integrativas e Complementares (PICs), que, no Brasil, oficializaram a oferta de
terapias como a homeopatia, a fitoterapia, a acupuntura e o reiki no Sistema
Único de Saúde. Em um desses documentos oficiais, por exemplo, esse conjunto
de terapêuticas é descrito como “práticas para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, que pressupõe o usuário/paciente na sua integralidade física, mental,
emocional, social, ambiental e espiritual”.21
A conexão entre espiritualidade e MAC é estabelecida pela OMS por uma
espécie de duplo princípio. Primeiro, essas práticas são definidas e justificadas
em razão do entendimento de que a natureza da pessoa é uma totalidade que
abrange corpo, mente e espírito — em contraste com o caso da MT, aqui o
cuidado holístico não é baseado no sistema cultural de um grupo, mas justificado
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em termos da própria natureza humana. Segundo, como já afirmei, a atenção à
dimensão espiritual é descrita como uma qualidade terapêutica da qual algumas
práticas estão imbuídas. Insisto nesses dois princípios porque eles são chave no
processo histórico de ampliação da pertinência do par espiritualidade/saúde,
antes restrito aos Outros do Ocidente e, em seguida, “autonomizado da cultura” e
reconhecido como necessário para saúde de Todos.
Acompanhando os documentos da OMS, especialmente aqueles publicados
após os anos 2000, é possível observar como a progressiva legitimação da atenção
à espiritualidade também tem impactado os protocolos alinhados com a própria
biomedicina. Por exemplo, em um dos principais documentos da OMS sobre
tratamento de pessoas com câncer constam afirmações como “[…] pacientes [com
câncer] devem ser questionados sobre os aspectos espirituais de sua vida e isso
deve ser considerado na condução de seu tratamento”;22 ou, ainda, “[em casos de
pacientes com câncer,] a avaliação clínica é essencial e não deve ter como base
apenas aspectos físicos, mas também sociais, psicológicos e espirituais”.23
Diante disso, insisto na não aleatoriedade do emprego dessa categoria,
argumentando que, longe de ser contingencial, esse processo de legitimação e
oficialização da qualidade clínica da espiritualidade está relacionado com uma
longa trajetória de debate e disputa sobre a pertinência do termo na OMS. Para
compreender e situar essas disputas e formas ainda mais ampliadas do uso da
categoria, no entanto, é necessário extrapolar os casos em que espiritualidade é
descrita a partir de sua dimensão terapêutica.
Direito à espiritualidade
A primeira menção ao termo “espiritualidade” nos documentos oficiais da
OMS ocorreu ainda em 1948, apenas seis meses após a criação da instituição.
Naquele momento, o tópico não fora abordado por uma demanda dos delegados
da agência, mas teve que ser deliberado por conta da solicitação, encaminhada
pela Organização das Nações Unidas (ONU), do posicionamento da OMS
sobre a nova versão da Declaração dos Direitos das Crianças, documento que
originalmente havia sido proclamado em 1924, ainda sob os auspícios da Liga das
Nações. Quase um quarto de século depois, a ONU se encarregou de preparar
uma atualização do texto da Declaração. Apesar da relevância política do primeiro
acordo internacional que reconheceu a existência de direitos específicos para as
crianças, o texto da década de 1920 era sucinto. Estruturava-se a partir do seguinte
preâmbulo e continuava com a descrição de cinco compromissos: “por meio desse
acordo, homens e mulheres de todas as nações reconhecem que a humanidade tem
o compromisso de oferecer o melhor às crianças, além e sobre qualquer consideração
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de raça, nacionalidade ou credo”.24 Na sequência, o primeiro compromisso do texto
afirmava: “as crianças devem ter assegurados todos os requisitos para seu normal
desenvolvimento, tanto material quanto espiritual”.25
A defesa do direito ao desenvolvimento espiritual descrito naquela declaração
prenuncia uma forma de inscrição do termo que também ganharia espaço nos
documentos da OMS, quando a espiritualidade seria descrita como uma dimensão
dos direitos das pessoas. Naquele momento, contudo, esse foi justamente um
dos poucos pontos em que os delegados da OMS sugeriram modificações. No
entendimento deliberado na OMS, o trecho do preâmbulo da Declaração de
1924 deveria suprimir a ênfase na garantia ao “desenvolvimento material e
espiritual” das crianças, para estabelecer que “as crianças devem ter assegurados
todos os requisitos para seu normal desenvolvimento físico, mental e social, por
meio da provisão de cuidados e adequadas condições de moradia, nutrição e
educação […]”.26
A proposição estava em franco diálogo com as dimensões que a OMS havia
descrito, no texto de fundação da própria organização, como definidoras da saúde
humana. A sugestão encaminhada era parte de uma estratégia institucional para
amplificar as repercussões dos princípios orientadores daquela agência. A proposta,
no entanto, não foi acatada pela ONU e, quanto a menção à espiritualidade, a
Declaração dos Direitos das Crianças promulgada em 1948 manteve o formato
original. Aliás, onze anos depois, em 1959, a ONU promulgou uma nova versão do
documento, dessa vez retirando a referência aos “aspectos materiais”, incorporando
algumas sugestões encaminhadas pela OMS, mas mantendo a centralidade da
categoria espiritualidade. Em 1989, a Declaração foi novamente atualizada e,
nessa versão, a brevidade das anteriores deu lugar a um texto extenso, com 54
artigos e outros tantos incisos. Nela, o emprego do termo “espiritualidade” não
apenas foi mantido, tal como no original de 1924, como se tornou ainda mais
recorrente, constando em cinco novos trechos do texto.
Apesar de a posição dos delegados da OMS em 1948 ter sido pela supressão do
termo “espiritualidade”, nos anos seguintes, acompanhando o que também fica
explícito ao seguirmos a trajetória de atualizações da Declaração dos Direitos das
Crianças, a espiritualidade não apenas se tornou uma categoria constante, como
também seu uso passou a ser crescente nos textos da própria OMS.
Em 1984, na resolução já citada anteriormente, uma das reuniões da assembleia
mundial de saúde recomendou que a “espiritualidade” fosse incorporada como
uma das dimensões da saúde humana, sugerindo, assim, a definição: “saúde é um
estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não
meramente a ausência de doença ou enfermidade”. A proposta teve consequências
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extensas, tendo se tornado chave para que a espiritualidade, uma vez considerada
uma dimensão da saúde humana, fosse instituída como um direito noutros
documentos da OMS e também em políticas nacionais de saúde. Para compreendêla, no entanto, é preciso retroceder alguns anos.
A intensidade das menções ao termo “espiritualidade” nos documentos
analisados deu um salto a partir do final da década de 1970. Entre 1978 e 1982,
ampliaram-se as ocasiões em que delegados e diretores da OMS mencionaram
a pertinência e a necessidade de atenção à espiritualidade. Naquele período, ao
fazê-lo, usualmente chamavam a atenção para a ausência do debate. Em 1978,
por exemplo, o delegado da Líbia avaliou uma resolução da Organização sobre
saúde de adolescentes, ponderando que “o relatório não fez referência aos valores
espirituais e ao seu impacto no desenvolvimento […] e na manutenção de hábitos
saudáveis”.27 Na mesma ocasião, o delegado da Índia foi ainda mais explícito e
prenunciou o que de fato ocorreria alguns anos depois: “[…] a dimensão espiritual
deve ser adicionada aos já contemplados aspectos físicos, mentais e sociais da
saúde”.28 Posição semelhante foi assinalada no ano seguinte pelo delegado das
Ilhas Fiji: “é lamentável que a ênfase no aspecto espiritual não seja articulada com
o desenvolvimento e equilíbrio das faculdades físicas e mentais. […] [A] OMS
deveria estudar o impacto da dimensão espiritual na saúde”.29
Em 1983, durante a 36ª Assembleia Geral da OMS, o debate sobre
espiritualidade adquiriu outros contornos, deixando de estar disperso em menções
que assinalam sua ausência na Organização para se tornar pauta oficial na agenda
do principal encontro da instituição. Acompanhando retrospectivamente a
transcrição das reuniões e dos debates das atividades realizadas naquele período,
é possível identificar um posicionamento particular como desencadeador
dos eventos que se sucederam. Trata-se de uma manifestação do delegado da
Suazilândia, o médico Samuel Hynt, que conclamou:
o programa [Saúde para Todos no Ano 2000] pode ter todos os ingredientes
para ser bom e bem-sucedido, mas falta a ele contemplar a dimensão espiritual.
Posso ser acusado de introduzir algum conceito religioso na OMS, mas gostaria
de ver a saúde definida em nossa Constituição desta forma: “a saúde é um estado
de completo bem-estar físico, mental e espiritual”. Antes que os especialistas
legais me desestimulem, vejo que o caminho para alcançar isso é fazer com que
o Diretor-Geral acolha uma emenda sobre o tema, que deve ser proposta por
nós pelo menos seis meses antes da Assembleia Geral de Saúde. Aqueles que
desejam se juntar a mim na proposição deste conceito, me avisem. Se fizermos
isso agora, teremos 12 meses para fazer o lobby, os arranjos e preparar o debate
sobre o tema antes da 38ª Assembleia Mundial da Saúde em 1984.30
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A proposta manifesta por Hynt não era elementar: alterar o conceito-chave da
Constituição da OMS, reinstituindo, assim, a própria definição de saúde e, por
conseguinte, inscrevendo a “dimensão espiritual” como parte da responsabilidade
dos Estados-nação no cuidado com a saúde de suas populações. Se o que descrevi na
seção anterior aponta para a autonomização cultural da noção de espiritualidade,
cada vez mais aproximada das práticas terapêuticas, a proposta de Hynt era ainda
mais ampla, concebendo a espiritualidade como uma necessidade universal da
saúde humana.
Essa proposição, que uma década antes seria improvável de ocorrer e mais
ainda de repercutir, tinha naquele momento um terreno fértil para ser continuada.
Primeiro porque as resoluções sobre MT e, na sequência, MAC rotinizaram a
aproximação entre cuidado holístico, atenção primária e atenção à dimensão
espiritual da saúde. Sobre esse ponto, também é preciso sublinhar que, embora
não fosse discursivamente hegemônica, a noção de MT implicava diretamente
um número significativo de países, já que abrangia a maior parte dos territórios
da África, Ásia e América Latina. E isso se relaciona com a segunda razão da força
que a convocação de Hynt teve naquele momento: com as mudanças políticas
ocorridas durante a década de 1960, o modo de votação dos projetos na OMS
foi equalizado na proporção de um voto por país, o que significava que a soma
dos votos dos países com MT, hipoteticamente mais dispostos a esse diálogo,
era maior do que o bloco formado por Europa Ocidental e Estados Unidos.
Igualmente relevante é o fato de que Hynt, embora representasse um pequeno
país africano, independente há menos de uma década naquele momento, estava
articulado e tinha o apoio da CMC, que continuava ativa em suas parcerias com
a OMS.
Hynt foi um médico missionário escocês que viveu na Suzilândia desde seus
seis meses de vida, quando seus pais, também médicos, transferiram-se para a
região com o propósito de expandir as missões médicas da Igreja do Nazareno,
fundada no Reino Unido por seu avô, também médico, George Sharpe. Os pais de
Hynt foram bem-sucedidos em seu propósito: fundaram a igreja no país e criaram
um hospital missionário, uma rede de ensino e, pelo menos, uma universidade.
Hynt assumiu a diretoria do hospital (Raleigh Fitkin Memorial Hospital) em
meados do século XX, quando o modelo de ação proposto pelo CMC já estava
em vigor. Ao longo de sua vida, além de delegado do país na OMS, Hynt foi
ministro da saúde e médico da família real da Suazilândia. Agia, assim, naquela
Assembleia em 1983, como mais um ator e articulador em um espaço fronteiriço,
que implicava a OMS, médicos missionários e Estados nacionais emergentes do
Sul global.31
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Dez dias depois da convocação feita por Hynt, uma proposta de resolução
relativa à dimensão espiritual da saúde foi incluída na agenda de debates da
Assembleia. Embora extenso, reproduzo a seguir o texto da proposta e parte dos
debates a ela relativa, registrados numa sequência de três sessões plenárias. Vale
destacar que, no debate, há uma única manifestação feita por alguém que não era
delegado de algum país membro da OMS – justamente a primeira intervenção,
proferida por um representante do CMC.
[…] Considerando que a dimensão espiritual está implícita no conceito de saúde;
Tendo em mente a política adotada pela Organização de assegurar cuidados de
saúde primários para todos os povos do mundo, a fim de atingir o objetivo
social da saúde para todos até o ano 2000; Reconhecendo a contribuição que a
dimensão espiritual pode oferecer para provisão de melhores cuidados de saúde.
[A OMS]:
Afirma a importância da dimensão espiritual nos cuidados com a saúde.
2. Solicita ao Diretor-Geral que tome em consideração a dimensão espiritual
na preparação e desenvolvimento de programas de cuidados de saúde primários
voltados para a concretização do objetivo de ‘saúde para todos até o ano 2000’.
Dr. Ram (Comissão de Médicos Cristãos). Falo aqui graças ao convite do Diretor.
Lembro a todos que a CMC, vinculada ao Conselho Mundial de Igrejas, teve
uma frutuosa relação consultiva com a OMS na última década. […] Nos últimos
15 anos, a CMC gerenciou programas médicos de suas igrejas em todo o mundo.
Sempre procuramos ir além dos programas de medicina hospitalar, adotando
uma abordagem comunitária de cuidados primários em saúde. Com o sucesso
desses programas, a OMS considerou que era o momento de implementá-los em
larga escala, contando com a parceria e experiência dos médicos-missionários.
A CMC apoia plenamente os esforços de vários membros da OMS que
advogam pela afirmação da importância da dimensão espiritual na prestação de
cuidados de saúde. […] Desde 1977, a Comissão Médica Cristã participou de
10 encontros regionais [da OMS] realizados em diferentes lugares do mundo.
Observamos frequentemente menções sobre como todas as dimensões, inclusive
a espiritual, deve ser considerada nos cuidados de saúde […] Atender as outras
necessidades básicas de saúde é importante, mas está claro que o equilíbrio
entre esses aspectos e a dimensão espiritual também é um elemento essencial
para a conquista do objetivo da saúde para todos até o ano 2000.
Dr. Savel’Ev (URSS). Manifesto-me sobre o projeto de resolução da dimensão
espiritual nos programas de cuidados de saúde. Minha delegação tem todo o
respeito pelas opiniões religiosas dos delegados. Os aspectos religiosos certamente
desempenham um papel importante na organização dos serviços de saúde em
alguns países — embora enfatizo que esse não seja universalmente o caso. No
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entanto, um encaminhamento dessa natureza ao Diretor-Geral poderá colocálo em sérios problemas, uma vez que há uma grande diversidade de perspectivas
religiosas no mundo e seria extremamente difícil para ele levar todas elas em
consideração na preparação do texto dos programas sobre cuidados primários em
saúde. Uma solução melhor seria que cada Estado-Membro interessado tomasse
medidas próprias sobre isso quando planejarem seus programas nacionais de
atenção primária. Caso contrário, eu teria que apresentar inúmeras emendas
a essa resolução. Só depois dessas emendas esse projeto de resolução poderia
refletir a posição de minha delegação e de vários países de nossa região.32
Dr. Al-Saif (Kwait). Os delegados estão tentando implementar uma política
na OMS que pretende garantir saúde para todos até o ano 2000. Para isso é
preciso levar em conta o papel da dimensão espiritual no trabalho de cuidado
da saúde. Estou dizendo que os cuidados de saúde, incluindo a prevenção e
o tratamento, devem ter em conta os componentes mentais e espirituais da
natureza do homem. Seja qual for o progresso tecnológico feito, não pode
haver um progresso verdadeiro enquanto os corpos dos homens forem tratados
sozinhos, sem considerar sua alma. […]
Dr. Klivarová (Tchecoslováquia). Minha delegação também está em uma posição
bastante difícil, porque considera que a resolução não pode ser aceita por todos
os Estados membros da Organização, uma vez que se baseia em certas crenças
religiosas. Há diferentes crenças religiosas em diferentes países, bem como há
países com muitos ateus. Na Tchecoslováquia, por exemplo, ateus e crentes têm
os mesmos direitos. Portanto, minha delegação não pode aprovar o projeto de
resolução proposto.
Dr. Hamdan (Kwait). Eu achava que nem era preciso dizer quão importante é a
dimensão espiritual para o bem-estar do homem, especialmente considerando
os sentidos de pertencimento a uma comunidade que essa dimensão gera.
Sr. Weitzel (Alemanha Ocidental). Minha delegação está em uma posição
embaraçosa porque não sabemos mais o que está sendo discutido. O texto do
projeto de resolução menciona “dimensão espiritual”, mas as delegações estão
falando de uma “dimensão religiosa”. Talvez o que esteja sendo discutido até
seja uma “dimensão mental”. Por essa razão, apreciaríamos muito qualquer
esclarecimento sobre o que está sendo entendido como “dimensão espiritual”.
Dr. Houénassou-Houangbé (Togo). Fico um pouco surpreso com toda essa
discussão sobre um projeto de resolução que já deveria ter sido votado e
aprovado. Como médico e trabalhador de saúde não entendo o porquê da
idéia de dimensão espiritual ofender algumas pessoas ou por qual razão alguns
parecem acreditar que isso tem como objetivo criar uma religião dos cuidados
primários em saúde. Como acabamos de sugerir, a dimensão espiritual pode ser
qualquer coisa, desde o ateísmo mais puro até o mais puro fanatismo.
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Diretor-geral. Não sei bem qual é a melhor maneira de refletir sobre essa
questão. Examinei a definição de “espírito” no Oxford English Dictionary e a
primeira definição dada foi a “parte inteligente ou imaterial do homem, alma”;
sobre “espiritual” define-se: “de espírito, em oposição à matéria”. Ao mesmo
tempo, também é verdade que há muitas outras definições para esses termos no
dicionário, o que também cria uma grande quantidade de pontos de interrogação
para qualquer um. […] Para mim, pessoalmente, estou de acordo que há uma
dimensão espiritual no homem, no sentido expresso pelo Oxford Dictionary.
Se poderia haver uma dimensão espiritual nos programas de cuidados de saúde,
disso não tenho tanta certeza.
Dr. Hamdan (Emirados Árabes Unidos) Alguns anos atrás a medicina popular
ou a medicina tradicional eram inaceitáveis nos programas de saúde dessa
Organização. Essas práticas foram rejeitadas e consideradas fora das tendências
do desenvolvimento dos serviços de saúde no mundo. Atualmente essas práticas
são amplamente aceitas e agora começamos a discutir um assunto que pode
parecer difícil de encarar, mas é preciso olhar para o futuro. Eu conheço muitos
países onde a medicina espiritual desempenha um papel importante na saúde.
Por que a OMS deveria se recusar a incluir essa dimensão em sua Estratégia
Global? Por que não experimentamos?33
Dr. Al-Saif (Kwait) O que se entende por dimensão espiritual não é religião nem
doutrina. Qualquer pessoa que considere que esse projeto de resolução tenha
implicações religiosas ou dogmáticas está enganada. Essa dimensão não é nada
mais que o lado espiritual do homem, isso não está relacionado com as religiões
ou doutrinas que eles seguem.
Ao fim das discussões aprovou-se a proposta de resolução por 80 votos a favor, 33
contra e 12 abstenções.34
Na sequência dessa resolução, ao fim e ao cabo aprovada, outras propostas de
natureza semelhante foram apresentadas na OMS. Em comum, todas estabelecem
que: 1) a espiritualidade é uma dimensão inequívoca e universal da saúde — em
algumas resoluções, não é descrita como uma universalidade da saúde, mas sim
da pessoa; 2) sendo a espiritualidade uma dimensão da saúde (ou da pessoa), a
atenção espiritual é um aspecto fundamental do cuidado. Ambas as formulações
reforçam e sedimentam o eixo de enunciação, na OMS, da espiritualidade como
uma característica de todos — no final desta seção há um quadro que sintetiza as
principais datas e eventos mencionados anteriormente.
O debate em torno dessa formulação também pode ser descrito como uma
tensão entre os delegados que, favoráveis à proposta, afirmaram a universalidade
da ideia de espiritualidade e aqueles contrários ao encaminhamento, que
rejeitavam a resolução argumentando que espiritualidade é um objeto de crença,
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equivalente a religião e, portanto, individual. A antropóloga Winnifred Sullivan
tratou de questões que mantêm algum paralelo com a situação aqui descrita.
Em seu livro A ministry of presence, a autora trata das transformações recentes
do serviço de capelania nos hospitais militares e civis do Estados Unidos. Para
Sullivan, a progressiva legitimação do par espiritualidade/saúde foi uma das
principais justificativas para que o status dos “capelães” em contextos de saúde
fosse alterado de “especialistas limitados a assistência religiosa” para “profissionais
treinados para compor equipes de saúde” ou “experts no tratamento da dimensão
espiritual da saúde”. Esses profissionais, afirma Sullivan, “deixaram de falar em
nome de alguma confissão ou identidade religiosa particular e passaram a tratar da
espiritualidade como um aspecto natural e universal de todos os seres humanos”
(2014:3). Tal como também poderíamos afirmar sobre a OMS, Sullivan conclui,
comentando os casos que analisou: “ao menos nos Estados Unidos, embora a
lei se apresente como secular, todos os cidadãos são crescentemente entendidos
como universal e naturalmente religiosos – necessitando de cuidado espiritual”
(2014:160).
Para a autora, esse fato é suficiente para afirmar que a categoria “espiritualidade
consiste em um novo modo de estabelecimento da religião ou, no limite, um
modo de dissimular a religião em espaços seculares” (2014:200). Nesse ponto,
assumo minha divergência com Sullivan. Reconheço que espiritualidade possa ser
o novo avatar da religião em espaços públicos ou em instituições como a OMS.
Isso não significa, no entanto, que essa categoria seja redutível a um “disfarce
da religião” ou que ela não possa ser instituída, de fato, noutros termos. Com
relação à conclusão de Sullivan, trata-se de uma dupla divergência: empírica,
porque a análise dos documentos da OMS explicita o vigor com que essa categoria
pode ser articulada com outras noções; e também metodológica, já que partir
da presunção de que “espiritualidade é religião” invisibiliza outras formas de
existência e formulação dessa categoria.
Nas situações apresentadas nesta seção, por exemplo, é inegável que a CMC
tenha novamente tido um papel importante para instituir a noção de espiritualidade
na OMS. Isso não significa, no entanto, que esse processo possa ser reduzido à
atuação dos médicos missionários e tampouco que seus desdobramentos estejam
restritos aos interesses desse grupo. É o que fica explícito quando identificamos
outra forma de instituir a espiritualidade de Todos, dessa vez, não argumentando
que ela é um direito, mas estabelecendo-a como fator relevante para a produção de
uma métrica do bem-estar. Valho-me desse último conjunto apresentado também
para tecer os comentários conclusivos deste texto.
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Rodrigo Toniol
Quadro 1
Quadro sintético de datas relevantes mencionadas
1948. Criação da Organização Mundial da Saúde (OMS)
1948. Recomendação, pelos delegados da OMS, de retirar a categoria espiritualidade da
Declaração dos Direitos das Crianças
1948. Criação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI)
1968. Criação da Comissão de Médicos Cristãos (CMC), vinculada ao CMI
1968-1969. Estabelecimento do modelo de atenção primária desenvolvido pela CMC
1970. Publicação da revista Contact para divulgar as experiências da CMC
Março de 1974. Primeira reunião de colaboração entre CMC e OMS e criação de um grupo de
trabalho para aproximação das instituições
Julho de 1974. Primeira menção ao termo “saúde primária” na OMS, durante a 27ª Assembleia
Mundial de Saúde. Resultado direto da atuação do grupo de trabalho criado meses antes.
1978. Realização da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde organizada
pela OMS. Aprovação da noção de MT em termos semelhantes aos estabelecidos pela CMC. Com
essa noção, a OMS reconhece o que chamei de “espiritualidade dos Outros”
1979. Início da demanda pelo reconhecimento da “espiritualidade de Todos”
1983. Ampliação dos discursos sobre a necessidade do amplo reconhecimento da espiritualidade
como fator de saúde na OMS
1984. Aprovação, em assembleia da OMS, da resolução que reconhece a espiritualidade como
dimensão da saúde e que recomenda a atenção a ela em políticas nacionais
Comentários finais — a espiritualidade de todos testada
Iniciei este texto assinalando a necessidade de atenção à espiritualidade
institucionalizada, isto é, de atenção às formas de instituir essa categoria como um
dispositivo político, com impactos concretos na vida das populações. Argumentei
que, para tanto, dois movimentos analíticos eram necessários. Primeiro, recusar
definições apriorísticas dessa categoria optando, em contrapartida, por acompanhar
as variadas formas como ela é instituída, mobilizando e sendo mobilizada por atores
diversos. E, segundo, seguir os processos de institucionalização da espiritualidade
reconhecendo que isso também implica entrar em tensão com a perspectiva analítica
dominante nas ciências sociais, que emprega essa categoria para tratar de formas
individuais, subjetivas e desisntitucionalizadas de relação com o sagrado. Esses
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movimentos, como espero ter explicitado nas páginas anteriores, produzem um
enquadramento analítico para o tema da “espiritualidade” que não está ancorado
em suas presumidas vinculações com religião, mas, pelo contrário, que aposta nos
benefícios de acompanhar as variações nas formas de definir essa categoria. É isso,
inclusive, o que me permitiu tratar das aproximações entre religião e espiritualidade
na OMS a partir de um quadro mais denso e complexo do que aquele que poderia
produzir caso analisasse a segunda em função da primeira. É também nesses
termos, reconhecendo a autonomia discursiva que a categoria espiritualidade vem
adquirindo no campo da saúde, que se pode identificar como a espiritualidade
também tem sido instituída como parte de indicadores de bem estar. Trata-se, em
certo sentido, de um novo movimento na direção do que chamei de espiritualidade
de todos, dessa vez, tanto se ampliando com relação aos “sujeitos espiritualizados”
como também diversificando a fonte de legitimação dessa noção de espiritualidade,
que agora inclui, mais intensamente, marcadores científicos.
É possível traçar um paralelo temporal entre a expansão do interesse pela
espiritualidade na OMS e o emprego do termo em pesquisas médico-científicas.
Embora esses processos estejam marcados por atores distintos e por dinâmicas
próprias, também não é forçoso assumir que entre eles opere uma relação
de legitimação mútua – algumas vezes explícita, do lado da OMS, por meio de
resoluções que aprovam o apoio e o financiamento de pesquisas sobre o tema,
outras vezes expressa, no campo da ciência, em justificativas de pesquisas clínicas
que fazem referência às resoluções da OMS sobre o tema. É a partir dos anos
de 1990, no entanto, que a imbricação desses dois campos gera um produto
concreto, endereçado ao tema da espiritualidade: o instrumento de avaliação de
espiritualidade, religiosidade e crenças pessoais para qualidade de vida da OMS.
Com a primeira versão publicada em 1998, esse instrumento é resultado da
participação direta de pesquisadores de mais de 30 instituições, que contribuíram
para elaborá-lo e para validar estatisticamente sua aplicação em diferentes regiões
do mundo.
Naquele período, precisamente em 1998, o tema da espiritualidade havia
voltado a ser debatido pelo comitê principal da OMS. Em reunião executiva da
direção da OMS, a demanda pela inclusão da “dimensão espiritual” na definição
de saúde da instituição havia sido aprovada, e os comitês regionais já começavam
a repercutir tal decisão amplificando o uso da categoria em suas políticas locais.
A repercussão do termo no recém-criado instrumento de avaliação de qualidade de
vida não foi diferente. Em sua versão final, legitimada por parâmetros estatísticos
e instituída pela OMS como protocolo para que seus Estados membros atingissem
os índices desejados de saúde, o instrumento abordava seis domínios, considerados
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fundamentais para o aferimento da qualidade de vida das populações: saúde
física, saúde psicológica, nível de independência, relações sociais, ambiente e
espiritualidade, religião e crenças pessoais.35
Noutro texto, descrevi pormenorizadamente como ao longo das décadas de
1960 e 1970 as noções de holismo, bem-estar e qualidade de vida operaram no
campo dos saberes psi e fomentaram a realização de pesquisas sobre espiritualidade
(Toniol, 2015b). Também indiquei que questionários muito semelhantes aos
que seriam posteriormente empregados pela OMS foram os instrumentos de
investigação privilegiados dessas pesquisas. Ao contrário daquela análise, na qual
estive interessado nas variações desses questionários, detendo-me nas mudanças
no entendimento da espiritualidade a partir de transformações metodológicas
dessas pesquisas, desta vez o que interessa é o fato, em si, da institucionalização,
pela OMS, da espiritualidade como um domínio fundamental da qualidade de
vida. Desse fato, retenho dois aspectos que me parecem centrais para a conclusão
deste texto.
Primeiro, diferentemente das formulações anteriores, nesse caso, a
espiritualidade não é uma manifestação cultural particular, tampouco descreve
uma qualidade terapêutica de certas práticas ou consiste em uma das dimensões
do direito à saúde. Quando tornada índice de qualidade de vida, a espiritualidade
é convertida em uma constante universal cuja variação pode ser traduzida em
um fator empiricamente mensurável. Trata-se de um novo regime possível do
eixo espiritualidade de todos. Segundo, ao ser convertida em um domínio de
qualidade de vida, agrega-se a essa versão da espiritualidade institucionalizada
pela OMS o sinal positivo. Promulgada nesses termos, espiritualidade torna-se
não somente uma dimensão que diz respeito a todos, como também um domínio
do aperfeiçoamento de si, da promoção de saúde e da melhoria do bem-estar.
A espiritualidade é instituída, nesses documentos, em correlação com qualidade
de vida, ou seja, “espiritualidade faz bem” – quanto melhor estiver, maior será o
indicador de qualidade de vida.
As resoluções da OMS sobre qualidade de vida encerram o conjunto mais
recente dos documentos dirigidos ao tema da espiritualidade, que é significativo
pela abrangência e pela sugestiva positivação, e cujas consequências fora das
políticas globais de gestão da saúde ainda são imprecisas. Isso não nos impede,
no entanto, de identificar que esse tipo de formulação possa funcionar como
uma espécie de senha para que a atenção à espiritualidade seja progressivamente
incorporada em protocolos clínicos, como algumas situações já parecem nos
sugerir (Toniol, 2015a). Esse apontamento nos leva de volta ao quadro de análise
que sustenta e, ao mesmo tempo, justifica este texto. A dificuldade em analisar
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a “espiritualidade” nas ciências sociais não está na falta de definições para o
termo, mas decorre das posições que fazem da tarefa de defini-lo um ato anterior
à própria análise das formas em que ele já opera, organizando realidades.
O antídoto para esse imbróglio, sugiro, acompanhando Courtney Bender e
Omar McRoberts (2012), é voltar-se para essa categoria a partir de sua história
(seja como categoria analítica das ciências sociais, seja como fenômeno empírico),
para as articulações que ela estabelece (com outras categorias, como religião,
cultura e natureza) e também para suas formas institucionalizadas, cada vez mais
visíveis em instituições seculares ou religiosas. Enfim, abordagens que façam das
variadas formas de existência da espiritualidade seu próprio objeto de atenção,
tal como busquei fazer ao longo deste texto.
Recebido em 11/12/2017
Aprovado em 29/01/2018
Rodrigo Toniol é doutor em antropologia e pesquisador da Unicamp.
Contato:
[email protected].
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Rodrigo Toniol
Notas
1. Este texto é resultado de um projeto de pesquisa apoiado pela Fapesp. A pesquisa
que o fundamenta foi realizada durante o período em que fui pesquisador visitante no
Departamento de Filosofia e Estudos de Religião da Universidade de Utrecht. Debati
versões preliminares deste artigo com os colegas do projeto “Religious matter in an
entangled world”, coordenado por Birgit Meyer. Nominalmente, agradeço à Birgit Meyer
pelas sugestões ao artigo, assim como pela acolhedora recepção em Utrecht. Também
agradeço a Emerson Giumbelli, Fabiola Rohden, Fernanda Heberle e Lucas Baccetto
pela interlocução durante a escrita deste artigo. Por fim, devo mencionar os pareceristas
anônimos do Anuário Antropológico pelos comentários precisos.
2. Documento consultado: A37/33, 15 de maio de 1984. Arquivos OMS.
3. Todo material consultado e mencionado neste artigo estava na forma de texto,
inclusive os debates, que objetivamente eram transcrições.
4. Refiro-me tanto a pesquisadores das ciências sociais, com os quais dialogo ao
longo deste texto, como a pesquisadores de outras áreas do conhecimento (para citar
apenas alguns: Castellar, Fernandes & Tosta, 2014; Charlier et al., 2017; Liao, 2017;
Reginato, Benedetto & Gallian, 2016; Saad, de Medeiros & Mosini, 2017; Senel &
Demir, 2018).
5. Sobre a relação entre espiritualidade e modernidade, ver: Veerz (2009, 2013),
Bender (2010) e White (2008).
6. Há aqui um encadeamento de ideias semelhantes ao que apresentou Márcio
Goldman (1998:151) em uma resenha do livro de Herzfeld.
7. Essas consultas foram realizadas entre março e agosto de 2017. Parte dos documentos
foi obtida por meio da pesquisa in loco, na biblioteca da sede da OMS, em Genebra (Suíça),
e outra parte foi acessada por meio da coleção especial disponível em arquivos digitais
da biblioteca da Universidade de Utrecht. Para o levantamento em ambos os acervos,
busquei referências aos termos “espírito”, “espiritual” e “espiritualidade”. O resultado
dessa busca foi de aproximadamente 2.000 documentos, entre os quais descartei aqueles
que se repetiam. Como indico a seguir, terminei com um volumoso material de 1.497
arquivos que li integralmente para elaborar esta sistematização.
8. Documento consultado: Constituição da OMS, 1988, p.1. Arquivos OMS.
9. Constituição da OMS, 1988, p.1. Arquivos OMS.
10. Esse é um processo extenso ao qual podem ser associados muitos aspectos, entre
eles a própria antropologia (Klassen, 2011) e a paulatina legitimação da noção de holismo
no campo da saúde (Toniol, 2014).
11. Documento consultado: SEA/RC27/11, julho de 1974. Arquivos OMS.
12. Documento consultado: Legal status of traditional medicine and complementary/
alternative medicine: a worldwide review. 2001.
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13. Documento consultado: Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional 2002–
2005. 2002.
14. Documento consultado: Legal status of traditional medicine and complementary/
alternative medicine: a worldwide review. 2001.
15. Documento consultado: EB/63, janeiro de 1979. Arquivos OMS.
16. Documento consultado: CD47/13, 2006. Arquivos OMS.
17. Documento consultado: Traditional Medicine in Asia. 2002. p. 94, p. 100.
Arquivos OMS.
18. Documento consultado: Regional Workshop on Promotion of Mental WellBeing, 2009. p. 13. Arquivos OMS.
19. Não é possível apresentar uma lista fechada das práticas implicadas nessa
categoria. Limito-me a mencionar homeopatia, reiki, floral, cromoterapia e fitoterapia.
20. Documento consultado: Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional 2002–
2005. 2002.
21. Documento consultado: Rio Grande do Sul. Secretaria Estadual da Saúde.
Resolução no 695/13 – CIB/RS. Porto Alegre, 2013.
22. Documento consultado: Manual on the prevention and control of common
cancers, 1998. Arquivos OMS.
23. Manual on the prevention and control of common cancers, 1998. Arquivos
OMS.
24. Documento consultado: EB/2, 1948. Arquivos OMS.
25. EB/2, 1948. Arquivos OMS.
26. EB/2, 1948. Arquivos OMS.
27. Documento consultado: EB/61, 1978. Arquivos OMS.
28. EB/61, 1978. Arquivos OMS.
29. Documento consultado: WHA32/ A32/B/SR/15, 1970. Arquivos OMS.
30. Documento consultado: WHA/36 - A36/VR/5, 4 de maio de 1978. Arquivos
OMS.
31. Sites consultados: https://goo.gl/JVH4iQ e https://goo.gl/wLCEvz (acesso em:
7/12/2017). Os países que assinaram o encaminhamento do pedido inicial de votação
foram: Arábia Saudita, Bahrein, Botswana, Chile, Egito, Iêmen, Quênia, Kuwait,
Malawi, Mauritânia, Marrocos, Oman, Qatar, Síria, Somália, Suazilândia, Sudão,
Tunísia, Emirados Árabes, Venezuela e Zâmbia.
32. Documento consultado até este trecho: A36/A/SR/14, 13 de maio de 1983.
Arquivos OMS.
33. Documento consultado até este trecho: A36/A/SR/15, 14 de maio de 1983.
Arquivos OMS
34. WHA36/1983/REC/2, 16 de maio de 1983. Arquivos OMS.
35. Documento consultado: WHO/HIS/HSI Rev.2012.03, 1998. Arquivos OMS.
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Rodrigo Toniol
Abstract
Resumo
A presença da noção de espiritualidade
nos documentos da Organização
Mundial da Saúde é tão duradoura
quanto pouco explorada, seja pelos
estudiosos identificados com o campo
da antropologia da saúde, seja pelos
pesquisadores das ciências sociais da
religião. Este texto é uma tentativa de
cobrir parcialmente essa lacuna. Para
tanto, recorro a atas, memorandos,
transcrições de discursos, resoluções
oficiais e relatórios que me permitem
acessar como a ideia de espiritualidade
foi acionada ao longo do tempo na
instituição e, principalmente, como ela
foi articulada com outras noções, como
as de cultura, religião, direitos e bemestar. Diante desse material, realizo
dois movimentos. Primeiro, explicito
algumas das questões que envolvem a
análise do tema da “espiritualidade”
nas ciências sociais da religião e
justifico as razões pelas quais este
texto pode contribuir para tal debate.
Segundo, detenho-me nos documentos
analisados, apresentando-os a partir de
dois eixos de variação: a espiritualidade
dos Outros e a espiritualidade de
todos. Explicitarei como esses dois
eixos não somente diferem, mas
principalmente se articulam. Encerro
o texto delineando um conjunto de
consequências empíricas associadas à
“oficialização da espiritualidade” na
OMS e aponto para direções que novos
investimentos analíticos sobre o tema
podem seguir.
World Health Organization documents
is as long-lasting as non explored, either
by scholars identified with the field of
health anthropology or by researchers
in the social sciences of religion. This
text is an attempt to reduce this gap.
To do so, I analyze the minutes,
official texts, transcripts of speeches,
resolutions, and reports, and I reflect
about how spirituality was enacted in
the institution and, mainly, how this
category has been articulated with
other, such as culture, religion, rights,
and wellbeing. The article has two
main sections. First, I explain some of
the questions related to the analysis of
“spirituality” in the social sciences of
religion and justify why this text can
contribute to such debate. Secondly,
I dwell on the documents analyzed,
presenting them from two axes of
variation: the spirituality of Others
and the spirituality of All. On the
conclusion I outline a set of empirical
consequences associated with the
“officialization of spirituality” in the
WHO. Also, I point to directions that
new analytical investments about this
topic could follow.
Keywords: spirituality; World Health
Organization; health; religion.
Palavras-chave:
espiritualidade,
Organização Mundial da Saúde, saúde,
religião.
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