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A BEBIDA PARA OS TUPINAMBÁS

2006, UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CURSO DE MESTRADO EM HISTÓRIA DISCIPLINA: T.E. DE CULTURA MATERIAL – HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CURSO DE MESTRADO EM HISTÓRIA DISCIPLINA: T.E. DE CULTURA MATERIAL – HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO RONI CÉSAR ANDRADE DE ARAÚJO A BEBIDA PARA OS TUPINAMBÁS João Pessoa 2006 1. A BEBIDA PARA OS TUPINAMBÁS A história da colonização portuguesa na América é marcada por inúmeros relatos de viagens que compõem hoje um importantíssimo acervo para a compreensão do contato entre colonizadores e colonizados. Muito desse encontro entre dois mundos diferentes é refletido em textos e cartas de religiosos que habitaram o Brasil nos primórdios da colonização. É o caso de obras como Viagem ao norte do Brasil feita nos annos de 1613 a 1614, de Yves d’ Evreux, e História da Missão dos Padres Capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circuvizinhas, de Claude d’ Abbeville, onde, dentre as várias observações feitas sobre a cultura e os costumes indígenas, destacou-se a questão das festas e dos ritos. O processo de colonização das terras do Brasil foi marcado por inúmeros conflitos decorrentes do confronto cultural que se deu a partir do contado entre o europeu e o índio. Desde o início da colonização, o português viu em diversos costumes indígenas, como, por exemplo, as cauinagens, barreiras que dificultavam o projeto colonizador. Para um melhor entendimento dessa postura do português diante das cauinagens, nos deteremos um pouco sobre essa prática. Prática mais comum entre os tupinambás, as cauinagens eram festas marcadas pela ingestão de muita bebida alcoólica, fabricadas pelas mulheres, a partir da mandioca, do milho e de frutas. O cauim, como era conhecida a bebida, possuía uma série de regras que envolviam desde o processo de fabricação até o consumo e que deveriam ser obedecidas rigorosamente. Conforme Raminelli (2005, p. 33): Consumida em importantes momentos, a bebida provinha de diferentes plantas. As mais apreciadas eram as feitas de mandioca, doce ou amarga, de milho e de caju. Somente as mulheres podiam prepará-las, os homens que executassem a tarefa eram considerados ridículos, além de arruinar a bebida ou tirar-lhe a virtude. De preferência belas, as moças eram encarregadas desse trabalho com a vigilância das mais velhas e, assim, mascavam frutas e misturavam-nas à saliva, provocando a fermentação. As propriedades inebriantes dependiam dessa operação, revestindo-se, aos olhos dos tupinambás, de significação mística. [...] As mulheres, porém, deveriam ser virgens ou ao menos guardar castidade durante certo tempo. A mandioca era um produto importantíssimo da culinária indígena. Além da bebida, servia ainda para o preparo de vários outros produtos a exemplo da farinha, que era responsável em grande medida pelo sustendo de viajantes e guerreiros. Alimentava, nos anos inicias da colonização, a índios e europeus. Usada tanto para o alimento do cristão quanto para a embriaguez indígena, a mandioca foi tema de muitos cronistas, missionários e viajantes. Eram, segundo os missioários, capazes de levar “os índios às borracheiras, aos desregramentos, ao aniquilamento dos princípios cristãos[...]. (RAMINELLI, 2005, p. 32) Existem na historiografia vários relatos de europeus que se agradavam da bebida indígena. Para o comandante francês Rasilly a bebida parecia com “gosto picante e bem agradável” (RAMINELLI, 2005, p. 33). O missionário francês d’Abbeville, que viveu no Maranhão, em 1612, ano da fundação da cidade de São Luís pelos franceses, considerou a bebida “ótima, saborosa”. O padre d’Evreux, outro francês que também esteve no Maranhão, afirmou que a cerveja produzida a partir do milho era “muito mais saborosa e saudável, por causa do contínuo calor, do que o vinho e a aguardente”. (FERNANDES, 2005, p. 55). No entanto, apesar destes casos específicos, o processo de produção do cauim, do qual era parte essencial a salivação, foi geralmente visto com asco pelo colonizador, que tinham no consumo de bebida, em especial o vinho, um importante símbolo da cultura e civilidade européia. Segundo Fernandes (200?, p. 59): Iberian had, in the consumption of wine, one of the mains symbols of their way of life, and they systemticlly compared this beverage with the ones prepared by the natives, generally considering the latter as “barbaric” or “dirty” and trying, whenever possible, to repress or control ther use or even to replace local beverages with wine. Para além de questões referentes à higiene, os anos que marcaram o contato com esses ritos e festas, tornavam cada vez mais evidente aos olhos do colonizador a necessidade de repressão. Nessas festas que às vezes duravam até três dias, os nativos consumiam uma quantidade excessiva de álcool e não se consumia nenhum alimento. Festejavam os mais diversos momentos da vida religiosa e social, que iam desde ritos de passagem a momentos que precediam ou sucediam às guerras. Naquele momento de embriaguez os homens e mulheres adultos reuniam-se para celebrar as vitórias dos heróis já falecidos ou não. Dançavam, cantavam e celebravam a coragem e a virtude dos guerreiros. Eram comuns cenas de vômitos e brigas provocadas pelo excesso de bebida. Para o colonizador, na sua maioria católicos, a cauinagem servia para incentivar práticas pecaminosas, como a embriaguez e a antropofagia. Raminelli traz a impressão do padre Abbeville sobre a natureza pecaminosa da cauinagem: “a seus olhos, mais pareciam símbolos ou figuras infernais”. (2005, p. 39). A festa, antes de ser vista como uma bebedeira generalizada, imoral e pecaminosa como consideravam alguns cronistas -, deve ser entendida como um momento de celebração cultural, um espaço de solidificação das relações sociais entre a sociedade tupinambá. Estimulando o espírito guerreiro, despertando o sentimento da vingança contra o inimigo, compondo a essência da coesão do grupo. O consumo do cauim está diretamente ligado com esse espírito guerreiro e com a vingança. Eram nessas festas que eram celebrados os ritos antropofágicos. Para Fernandes (2002, p. 47): Tais sessões de embriaguez possuíam uma profunda relação com o sistema de guerra e vingança das sociedades ameríndias, apresentando-se como um instrumento mnemônico em que a história de cada grupo, as crônicas de suas guerras e deslocamentos, as agruras e angústias causadas pelas ações dos inimigos e seus atos violentos, as honrarias conseguidas por seus campeões eram lembradas e permanentemente reconstruídas [...] A morte do inimigo e o consumo de sua carne era um momento de grande euforia para os indígenas. O cauinagem possuía uma relação íntima com a antropofagia e não demorou muito para que os jesuítas percebessem essa relação. Somada ao caráter guerreiro, a cauinagem possuía também uma profunda significação num sistema de relações de gênero. O cauim era produzido exclusivamente pelas mulheres que também eram responsáveis pelo cultivo agrícola e fabrico e enfeite das igaçabas (grandes potes de cerâmica onde as bebidas eram fermentadas) e das cuias para o consumo da bebida. As mulheres desempenhavam um papel fundamental nas cauinagens, estava reservada a elas a tarefa de servir aos participantes e atuando no sentido de impedir que seus maridos e filhos se envolvessem em brigas. No entanto, em muitas ocasiões, tal qual os homens, bebiam e se embriagavam, cantavam e proferiam discursos. Percebendo a importância da mulher em todo o contexto que envolvia as cauinagens, os clérigos passaram a investir na conversão da mulher indígena ao cristianismo, a fim de, contando com o seu apoio, atuar mais incisivamente na repressão às bebedeiras e à antropofagia. Segundo Fernandes (2005, p. 57): Nessa difícil luta contra as bebidas, os padres tiveram a ajuda inestimável das mulheres nativas. Essa era uma estratégia importante, já que todo o processo de realização de uma cauinagem estava relacionado às mulheres. Além de produzir a saliva que fermentava as bebidas, eram elas que plantavam a mandioca e o milho, e que colhiam as frutas que seriam transformadas nos cauins. No fim de todo esse processo de dominação, o colonizador acabou por conseguir por um fim às cauinagens. O universo simbólico que envolvia as festas foi cada vez mais combatido e reprimido com veemência pelo europeu. No decorrer dos anos, as bebidas fermentadas nativas foram sendo substituídas pelas destiladas, como a cachaça que hoje é apontada com uma das principais responsáveis por muitos dos males enfrentados pelos grupos indígenas ainda existentes no Brasil. REFERÊNCIAS: RAMINELLI, Ronald. Da etiqueta cannibal: beber antes de comer. In: Alcóol e drogas na História do Brasil. – São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Editora PUCMinas, 2005. FERNANDES, João Azevedo. Alcohol. In: Iberia na the Americas: Culture, Politics, and Histor: A Multidisplinary Encyclopedia, v. 01, pp. 58-61, 200[?]. _______. Cauinagens e bebedeiras: os índios e o álcool na história do Brasil. In: Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 6, vol. 13(2), pp. 39-60, 2002. _______. Guerreiros em transe. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 1, vol. 04, pp. 52-57, out. 2005.