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OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO

2017

Este artigo focaliza a participação dos Taurepáng na atividade turística que vem se consolidando na parte setentrional na TI São Marcos, norte do estado de Roraima. Localizada em uma região de floresta, a pesquisa se desenvolve em uma comunidade experiente em receber turistas, rodeada por muitas cachoeiras e ao pé da serra de Pacaraima, marco da fronteira entre Brasil e Venezuela. No entanto, para seus moradores, o turismo suscita ainda muitas controvérsias internas, uma vez que, além de devotos ao Adventismo de Sétimo Dia, que imprimi um ritmo próprio a vida comunitária, os espaços que essa nova atividade pretende são concebidos pelos Taurepáng como a morada de uma diversidade de espíritos, e, portanto, perigosos. Além disso, uma abertura demasiada ao exterior pode ser interpretada como um risco local, visto que aumenta a possibilidade de Kanaimé, isto é, uma categoria de assassino secreto que utiliza de feitiçaria para matar.

OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO Caio Monticelli1 Resumo: Este artigo focaliza a participação dos Taurepáng na atividade turística que vem se consolidando na parte setentrional na TI São Marcos, norte do estado de Roraima. Localizada em uma região de loresta, a pesquisa se desenvolve em uma comunidade experiente em receber turistas, rodeada por muitas cachoeiras e ao pé da serra de Pacaraima, marco da fronteira entre Brasil e Venezuela. No entanto, para seus moradores, o turismo suscita ainda muitas controvérsias internas, uma vez que, além de devotos ao Adventismo de Sétimo Dia, que imprimi um ritmo próprio a vida comunitária, os espaços que essa nova atividade pretende são concebidos pelos Taurepáng como a morada de uma diversidade de espíritos, e, portanto, perigosos. Além disso, uma abertura demasiada ao exterior pode ser interpretada como um risco local, visto que aumenta a possibilidade de Kanaimé, isto é, uma categoria de assassino secreto que utiliza de feitiçaria para matar. Palavras-chave: etnologia; Roraima; Taurepáng; turismo. Abstract: his article focuses on the participation of the health activity holders that has been consolidating in the northern part of TI São Marcos, in the north of the state of Roraima. Located in a forest region, a survey develops in a community experienced in receiving tourists, surrounded by many waterfalls and at the foot of the mountain range of Pacaraima, the border between Brazil and Venezuela. However, for its residents, tourism still aroused many internal controversies, since, in addition to devotees to Seventh-day Adventism, which imprint a rhythm proper to community life, the spaces that this new activity are designed by Taurepáng as the abode of a diversity of spirits, and therefore dangerous. In addition, an opening to the 1 Aluno do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS/UFSCar). E-mail: [email protected] Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 19 outside can be interpreted as a local risk, since it increases the possibility of Kanaimé, that is, a category of secret killer that uses witchcrat to kill. Key words: ethnology; Roraima; Taurepáng; tourism. OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO O turismo na Terra Indígena São Marcos, norte de Roraima No início de 2016, o estado de Roraima teve aprovado seu primeiro itinerário de turismo étnico e ecológico em Terra Indígena (TI). Uma equipe composta por operadores locais de turismo, acompanhados por servidores da Secretaria Estadual de Planejamento e Desenvolvimento (Seplan) e da Secretaria Estadual do Índio (SEI), realizou uma viagem pela TI São Marcos com a inalidade de elaborar o roteiro denominado Caminhos de Macunaíma – já normatizado pela FUNAI em 2015. Apresentado e discutido em um momento posterior, durante assembleia na comunidade Boca da Mata, que apresenta uma população majoritariamente Macuxi, mas também Wapichana e Taurepáng, as lideranças presentes votaram a favor da consolidação do projeto. Deste modo, por meio do Programa de Desenvolvimento Sustentável da Terra Indígena São Marcos, inserido no Plano Plurianual (PPA) 2016-2019 do governo estadual, Caminhos de Macunaíma visa um itinerário turístico de mais de 400 km pela porção norte dos campos e serras do lavrado roraimense. Em meio às trilhas e cachoeiras que fazem parte de seu trajeto, somase a Pedra do Pereira e Pedra Pintada, ambas com pinturas rupestres em pigmentos avermelhados. Muitas estão em bom estado de conservação, enquanto que outras, mais esparsas, já podem ser vistas bem castigadas pelo tempo. Em torno da Pedra Pintada há outros blocos menores, com desenhos variados, que constituem o Sítio Arqueológico da Pedra Pintada. Além disso, algumas comunidades indígenas da região, incluindo o Bananal, também se coniguram como atrações ao público-alvo. Desta forma, o cenário construído parece ser um exemplo daquilo que Grünewald (2001, 2003) deine como arenas etnoturísticas. Em entrevista ao site jornalístico Roraima em Foco, o diretor do Departamento Estadual de Turismo explica, 20 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 Teremos um novo produto para oferecer, certamente tão relevante quanto o monte Roraima. Falaremos dos caminhos percorridos pela igura lendária de Macunaíma, tão importante para a cultura dos povos nativos. Em cada ponto de parada, haverá um indígena para contar histórias, apresentar dança, mostrar como são feitas comidas e bebidas típicas”. E segue escrito nesta mesma matéria, “já existem operadores nacionais e internacionais interessados nesse novo produto. O objetivo do Departamento de Turismo é transformar o roteiro Caminhos de Macunaíma em objeto de atração de visitantes nacionais e estrangeiros e alavancar ainda mais o setor, que deslanchou nos últimos dois anos, com crescimento de 68,6%, fazendo o estado avançar dez posições, saindo da 26ª para a 16ª no ranking do Ministério do Turismo, quando avaliada a intenção de viagens para a região”2. Mas antes mesmo da própria proposição desse programa, a comunidade do Bananal já vinha recebendo turistas. Sediada em Brasília, a empresa BIOMA, consultora nas áreas de turismo e meio ambiente3, há mais de três anos já havia enviado funcionários para esta comunidade com o intuito de fazer um levantamento das condições que favorecem o empreendimento turístico na região. A equipe técnica realizou um diagnóstico basicamente pautado nas seguintes características: i) os moradores do Bananal falam o idioma taurepáng; ii) mantém a culinária tradicional – no caso a damorida, prato típico elaborado a partir de um caldo de peixe, pimenta e auoraçá, uma planta verde escura de sabor picante; iii) fazem artesanato; e iv) a comunidade encontra-se em uma ótima localização – aqui em sentido duplo: situada a poucos quilômetros da serra de Pacaraima, e rodeada por aproximadamente sete cachoeiras, o Bananal está distante apenas 11 km da asfaltada BR-174, rodovia que liga Manais e Boa Vista à Venezuela. Após estas constatações, a BIOMA se disponibilizou a oferecer um curso gratuito para seus moradores, com carga horária de 48 horas, cuja inalidade era capacitá-los como condutores 2 3 Disponível em: <http://www.roraimaemfoco.com/roteiro-turistico-caminhos-demacunaima-esta-em-fase-de-consolidacao/>. Acesso em: 20 maio de 2017. Disponível em: <http://www.bioma.com.br>. Acesso em: 20 maio de 2017. Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 21 CAIO MONTICELLI Os taurepáng do bananal e o turismo OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO de visitantes por paisagens naturais. Dos pouco mais de 190 habitantes na época, em torno de 30 a 40 pessoas participaram do curso. Com parte de sua população treinada, não tardou para que aos poucos os turistas começassem a aparecer, agora através da Roraima Adventure, agência sediada em Boa Vista e principal referência em pacotes turísticos pela região, cuja missão é “transformar potencialidades em oportunidades de negócio, gerando renda sustentável nas comunidades envolvidas, fomentando parcerias nacionais e internacionais, e gerando ambiente propício para as atividades de turismo”4. Todavia, nas ocasiões em que o turismo ocorreu no Bananal, alguns interlocutores relataram as seguintes queixas: 1) a ausência de um espaço físico para abrigar os turistas revela-se um problema, pois eventualmente utilizam do espaço destinado aos parentes visitantes ou da casa de algum morador; 2) não houve uma distribuição efetiva da renda gerada, icando os serviço de guia, carregadores e a alimentação centralizados em poucas pessoas; 3) visitantes da cidade de Boa Vista representam a principal demanda, mas majoritariamente aos inais de semana, o que é incompatível com a prática local do adventismo; e 4) os mais velhos categoricamente sublinham que são agricultores, “era isso que os antepassados faziam, é isso que sabem fazer”, e, além disso, que “turista é problema”: podem trazer bebidas alcoólicas para dentro da comunidade e não raro insistem em se banhar semi-nus nos igarapés e cachoeiras – a primeira situação é proibida, já a segunda deve ser expressamente evitada na presença das crianças (MONTICELLI, 2017). E da mesma forma que há o receio quanto ao desrespeito para com os espaços da comunidade, também há em relação ao comportamento desmedido que os turistas normalmente apresentam ao longo das trilhas pela loresta. Tanto por “quererem de tudo”, isto é, ver onça, tamanduá, macacos, cobras, pássaros, pescar e caçar, quanto pela postura barulhenta e agitada que demonstram em locais que os Taurepáng não frequentam sem uma série de cuidados, pois são morada de espíritos potencialmente maléicos. Portanto, se a comunidade do Bananal é uma referência para vizinhança por contar com moradores treinados, por um contato permanente com 4 22 Disponível em: <http://www.roraimabrasil.com.br/a-empresa/>. Acesso em: 20 maio de 2017. Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 23 CAIO MONTICELLI uma agência e por já ter experiência em receber turistas, percebe-se, no entanto, que certos dilemas internos ainda precisam ser superados para que essa atividade de fato se consolide na vida comunitária. De fato, como escreveu Escobar (1995), nas situações especíicas em que as práticas induzidas por discursos desenvolvimentistas entram em contato e são absorvidas em contextos locais, veriica-se a emergência de formações híbridas, onde itens particulares de tais discursos interagem com questões e saberes das culturas envolvidas. Nesse confronto, sugere o autor, é preciso veriicar aquilo que se passa no plano local – como novas práticas são introduzidas nos cenários comunitários, suas formas de operação e como são atualizadas e transformadas. Trata-se, portanto, de investigar nestes processos como atores culturais especíicos reformulam suas práticas face à modernidade e, ao mesmo tempo, como a “cultura tradicional”, segundo Escobar, persiste através dessa transformação. Sua sugestão é encarar o processo de hibridação como um jogo entre modernidade e tradição, no qual “es necessário idear formas creativas de participar sin sacriicar las condiciones internas” (ESCOBAR;PEDROSA, 1996). Nesse sentido, nas circunstâncias contemporâneas, qualquer projeto de “desenvolvimento sustentável” que envolva alguma população tradicional somente poderá ser continuamente bem-sucedido se estiver alinhado de modo adequado aos princípios metafísicos de sua cosmologia e de suas práticas rituais (WRIGHT, 2014). No caso do turismo entre os Taurepáng, parece despontar algo como uma hesitação, especialmente entre os mais velhos, quanto a adotar ou não essa nova atividade socioeconômica. Com efeito, não se pode dizer que o turismo, tal como começa a ser efetivamente praticado no Bananal, corresponda um discurso desenvolvimentista totalmente exterior, já que na própria comunidade há pessoas mais jovens treinadas para tanto, e em muitos casos já engajadas nessa área. Trata-se portanto de elucidar o que alimenta tal hesitação. Seria apenas uma diferença geracional pautada em novas necessidades de consumo entre os mais jovens? Há décadas, porém, – possivelmente desde a abertura da BR-174 na década de 1970 – os Taurepáng vieram progressivamente se articulando ao mercado local. Nesse sentido, assumem-se explicitamente como agricultores: toda sexta feira comercializam seus produtos na Feira do Produtor, um espaço OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO construído na cidade de Pacaraima por um ex prefeito em homenagem à Bento Loyola, o já inado fundador da comunidade do Bananal e ainda bastante afamado na região. Dessa forma, algumas interrogações conformam o pano de fundo desta pesquisa: em que medida o impacto de novas atividades econômicas pode ser avaliado com precisão sem uma consideração pormenorizada da vida cotidiana e ritual local? Parece que no caso Taurepáng, a prática do adventismo implicou a valorização de certas atividades tradicionais, a agricultura, em detrimento de outras, como a caça de animais de grande porte e seu consumo regular. Portanto, em que medida o turismo poderia reintroduzir certos riscos que possivelmente os Taurepáng trataram de evitar no processo de incorporação das práticas e doutrinas adventistas? Com a inalidade de precisar tais questões, passo a uma descrição sucinta da situação contemporânea deste grupo indígena, bem como de alguns aspectos importantes de sua historia recente. Os Taurepáng, uma introdução Pouco conhecidos no Brasil, os Taurepáng encontram-se distribuídos por um território que assistiu a sobreposição de três fronteiras nacionais – entre Brasil, Venezuela e Guiana. Conhecidos nestes dois últimos países pela autodenominação Pemon, seu contingente é maior na Gran Sabana venezuelana, região sudeste do estado Bolívar, e menor nas terras a oeste da Guiana. No lado brasileiro, onde o etnônimo Taurepáng é mais comum, estão estabelecidos predominantemente na parte setentrional da TI São Marcos5, no alto curso do rio Surumu, e em menor número pela TI Raposa Serra do Sol6 – ambas na porção norte do estado de Roraima, onde totalizam pouco mais de 792 pessoas (ISA, 2014). Nos últimos vinte anos, vale destacar, estas TIs passaram por um processo de retirada das fazendas estabelecidas há muitas décadas dentro de seus limites. Assim, são os próprios povos indígenas que administram a pecuária local ao seu modo. 5 6 24 Com uma área total de 654.000 hectares, onde habitam 3 etnias: os Macuxi, os Wapichana e os Taurepáng. Com uma área total de 1.747.000 hectares, onde habitam 5 etnias: os Ingarikó, os Patamona, os Macuxi, os Wapichana e os Taurepáng. Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 25 CAIO MONTICELLI A organização social taurepáng se estrutura basicamente em dois níveis: o grupo doméstico e o grupo local. Grupos locais vizinhos, conectados por laços de parentesco e por contatos frequentes, formam conjuntos bem delineados, inexistindo qualquer estrutura política hierarquizada entre si. Ao contrário, o grupo local, em relação a seus vizinhos, é caracterizado por uma marcante autonomia política (THOMAS, 1982). Com forte tendência à uxorilocalidade (BUTT COLSON, 1985, 1986), possuem como regra preferencial de casamento a união entre primos cruzados e sua terminologia de parentesco é do tipo dravidiano, conforme um padrão já classicamente descrito por Rivière (1984) para o conjunto dos povos guianenses. Quanto ao plano cosmológico, desde Koch-Grünberg ([1911] 1982), os diversos etnógrafos que passaram pela região são unânimes em indicar um conjunto altamente diversiicado de entes não-humanos que coabitam o mundo, tal como o descrevem os Taurepáng. Assim, Fr. Eulogio de Villarín (cf. Andrello 1993a), um dos primeiros missionários franciscanos a chegar na savana venezuelana nos anos de 1930, registrou que as matas, as serras e os rios são povoados respectivamente por Amaiykó, Mawari e Rató, seres potencialmente perigosos que ocupam muitos dos espaços adjacentes aos grupos locais. Vejamos primeiramente os Amaiykó. Os interlocutores da comunidade do Bananal relataram a mim que são pequenos seres antropomóricos cabeludos, que assobiam para quem está passando pela loresta. Por sentirem-se sozinhos, e buscando atenção, também arremessam pedras e pedaços de madeira nas pessoas. Dessa forma, caso um Taurepáng caminhe pela mata com fome, apaixonado ou com saudade de parentes já falecidos, os Amaiykó muito possivelmente atacarão – em poucas horas a vítima ica febril, com falta de apetite, indisposição e apresenta grandes chances de morrer. Neste caso, o cuidado para despistar estes seres é esfregar alho na sola dos pés antes de entrar na loresta. Se não funcionar, no momento em que os Amaiykó começarem a se manifestar, o que resta é se comunicar com eles em idioma taurepáng passando a seguinte mensagem: eu também sou gente, sou parente, moro aqui perto, sou ilho de fulano, neto de ciclano, estou aqui só de passagem, só estou passando (MONTICELLI, 2017). Quanto aos Mawari, espíritos dos mortos que fazem das serras e montanhas suas casas (FARAGE, 1991), é através de fortes ventos e OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO chuvas que atacam as pessoas solitárias que andam pelas matas ou pelos campos da região. Também podem se apresentar sob a forma de um belo animal, que encanta e adoece os viajantes despreparados (SANTILLI, 2001). Neste caso, a vítima apresenta os mesmos sintomas descritos acima. Mas, diferentemente dos Amaiykó, os Mawari podem ser acionados como auxiliares pelos xamãs em suas sessões de cura. Já com relação a Rató, ser que povoa as águas, senhor ou pai dos peixes, a principal recomendação é o cuidado durante o período menstrual, no qual as mulheres devem evitar o banho nos igarapés e rios. Caso contrário, arriscam-se ser atacadas e puxadas para o fundo das águas. Se isso ocorrer, o corpo só volta à superfície após alguns dias, com unhas, pálpebras e lábios devorados. Aliás, no período menstrual as mulheres devem igualmente manter distância da loresta, para evitar a possibilidade de ataques do mesmo tipo promovidos por outros donos-animais7. Por esta razão, a reclusão feminina durante a primeira menstruação é muito importante. Os interlocutores mais velhos airmam que após passar pelo menos um mês em resguardo dentro de casa, tomando água e comendo apenas mingau de beiju morno servido pela avó ou mãe, a menina adquire uma “saúde forte” para o resto de sua vida. Muito mais frequente do que esses entes, e mesmo mais perigoso, parece ser, no entanto, o Kanaimé. Ao contrário dos demais, trata-se de um humano, feiticeiro-matador secreto, também chamado pelos Taurepáng de Rabudo: é uma ameaça extremamente presente no cotidiano taurepáng, bem como de todos os outros povos indígenas da região circum Roraima (cf. Butt Colson, 2001 e Whitehead, 2001). Voltarei a essa igura mais ao inal. Por ora, cabe ressaltar que o conhecimento acerca desses diversos seres, bem como de suas moradas e de seus hábitos, é relativamente disseminado entre os Taurepáng. Mas uma explanação mais extensa e pormenorizada acerca de suas origens e dos riscos que hoje se enfrenta, e da cosmologia de modo geral, é objeto das narrativas míticas denominadas Pandón (literalmente, “histórias”), contadas em geral por pessoas mais velhas e, portanto, de domínio mais restrito. De acordo com os Pandón, os acontecimentos que levaram o mundo taurepáng a assumir seus atributos ocorreram em um tempo primeiro referido pela expressão Pia Daktai – 7 26 Como a onça e o tamanduá, animais cujo ataque é motivado pelo cheiro do sangue menstrual. Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 8 Ou Makunaimã. A graia Macunaíma ganhou forma somente com o modernismo de Mário de Andrade, inspirado nos trabalhos etnográicos de Koch-Grünberg. Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 27 CAIO MONTICELLI onde Pia é um termo que designa aquilo que é antigo, ao passo que Daktai atua como um localizador temporal (cf. Andrello 1993a). Contar essas histórias corresponde, assim, a uma explanação acerca de como a terra em que vivem os Taurepáng veio a tomar a forma perigosa que possui hoje, o que engloba o surgimento das serras, montanhas, rochedos, rios, onde habitam os seres que mencionei acima. Esse foi também o tempo em que os animais adquiriram suas formas corporais especíicas. O ciclo mais importante dos Pandón é composto por várias narrativas que envolvem a saga de Makunaima8 – um poderoso e primeiro xamã nascido da união do sol, Wei, com uma mulher de barro. Capaz de transformar em rocha os vários seres que encontra pelo caminho, esta igura é deinida ora como um só personagem, ora como um grupo de irmãos. O Pia Daktai, tal como caracterizado nesses relatos, é um tempo no qual animais e humanos não apresentavam diferenças signiicativas entre si, todos eram Pemon-pe, pessoas. Compartilhando dessa condição com os demais seres, Makunaima se encarrega de procurar seu pai, Wei (Sol), que fora raptado pelos Mawari – esta é a primeira aparição destes seres, isto é, parece que já existiam no mundo desde sempre como inimigos prototípicos. É na região próxima ao monte Roraima que encontram seu pai e o libertam. Wei sobe aos céus e deixa seus ilhos sozinhos na terra. Os mitos contam então que, famintos, os irmãos permanecem a perambular pela região do monte Roraima. Assim, seguem uma cotia, akuri, e acabam descobrindo wadaka, a “árvore do mundo” que continha todos os alimentos. Extasiado com a abundância desta árvore, o desmedido Makunaima a derruba. De seu tronco cortado jorrou uma imensa quantidade de água, que veio a provocar um grande dilúvio; posteriormente, um forte incêndio destruiu todos os seres que então restaram. Após o cataclismo, novos homens e animais são feitos de barro por Makunaíma. Depois do corte, por im, Makunaima parte para o outro lado do Roraima, em direção leste, deixando para trás um mundo onde permanecem cristalizados diversos de seus feitos, principalmente nas formações rochosas distribuídas pelo território. De fato, ao apontar para sua forma semelhante a um tronco OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO partido, os Taurepáng contam que o monte Roraima é a raiz da grande árvore que permaneceu após a inundação. Uma triste herança portanto é deixada: o mundo remanescente já não possui a mesma natureza daquele em que se vivia antes do corte da grande árvore. Os seres de agora, sereware, perderam a identidade de outrora e já não são todos Pemon-pe, isto é, pessoas do mesmo tipo. É desta forma que os mitos sugerem como a alteridade foi introduzida na terra. Depois da grande inundação, os vários personagens que aparecem nos Pandón se distanciam aos poucos dos homens e vão se situando em domínios especíicos. Sob esta condição, relações marcadas por um antagonismo explícito emergem: cada ser se converteu em um possível predador do outro (ANDRELLO, 1993a, 1993b; SANTILLI, 2001). Por tudo isso, é interessante observar as correlações entre as mensagens contidas nos Pandón e o depoimento cosmoecológico de Davi Kopenawa, bem como com as teorias sobre o animismo e o perspectivismo ameríndio. O xamã yanomami categoricamente airma, “não pensem que a loresta é vazia. Embora os brancos não os vejam, vivem nela multidões de espíritos, tantos quanto animais de caça. Tampouco pensem que as montanhas estão postas na loresta à toa, sem nenhuma razão. São casas de espíritos; casas de ancestrais” (KOPENAWA; ALBERT, 2015: 118). Suas palavras, portanto, evidenciam de que forma o plano ecológico é indissociável do cosmológico, que por sua vez implica no político, ainal, compreende uma multiplicidade de agentes, humanos e não humanos, em constante interação. Com efeito, a teoria formulada por Descola sobre o animismo ameríndio aborda a concepção dos povos indígenas acerca de uma “espiritualidade” dos seres da “natureza”, tomados assim como pessoas. Segundo o autor, tal condição lhes possibilita o estabelecimento de relações de caráter social com os humanos – seja de proteção, sedução, hostilidade, aliança, ou trocas de serviços. Por atribuir a estas entidades disposições humanas – estatuto de pessoa – e atributos sociais, esta concepção implica em comportamentos que se baseiam tanto no parentesco quanto no respeito por certas normas e condutas (DESCOLA, 1992). Tais práticas implicariam uma grande diversidade de esquemas reguladores das relações com a natureza e com a alteridade. Assim, os sistemas anímicos amazônicos 28 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 29 CAIO MONTICELLI concebem o mundo como um grande circuito, no qual ocorre um constante intercâmbio de substâncias, almas e identidades (DESCOLA, 1997). Nesse caso, não há separação ontológica entre “natureza” e “sociedade” e uma série de atividades rituais cumpririam o papel de manter esses intercâmbios em equilíbrio. Essas concepções ganham uma formulação mais especíica na teoria do perspectivismo ameríndio: esta noção se refere ao modo como homens e animais (ou espíritos) veem-se a si mesmos, e a outros seres, tomando a relação presa-predador como um modelo básico. Assim, a relação perspectivista corresponderia a uma disputa permanente pela posição de humanidade. Isto é, entre si todos são pessoas e possuem corpos humanos, ao passo que sob o olhar animal, por exemplo, o humano é presa ou predador. Do mesmo modo, sob o olhar humano, animais se dividem em presas, sendo o porco do mato a referência por excelência, e predadores, com o jaguar representando o principal signo dessa categoria (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2002, 2015). A meu ver, é interessante ponderar em que medida a conversão taurepáng à religião adventista poderia representar um modo, dentre outros possíveis, de lidar com esses problemas cosmopolíticos. Com efeito, a prática do adventismo imprimi uma dinâmica própria ao ritmo da vida cotidiana taurepáng, no qual a igreja, localizada em um espaço central da comunidade, concentra uma atividade ritual quase permanente, entremeada, por sua vez, com uma intensa atividade nos roçados e na produção de farinha para venda e consumo. O dia a dia na comunidade do Bananal é basicamente o seguinte: sempre em idioma taurepáng, os cultos são realizados toda quarta e sexta feira a noite, das 19h às 21h. Aos sábados, em período quase integral, vai das 8h30 às 18h – com intervalo para o almoço. As tardes de domingo também são reservadas para esse compromisso. É importante destacar que quando há necessidade de transmitir uma informação para toda a comunidade, o momento utilizado é logo após o culto, uma vez que os devotos só deixam o local após a saída do pastor. No mais, pelo que pude acompanhar em uma etapa preliminar de campo (realizada durante as festas de im de ano em 2016 e janeiro de 2017), tanto homens quanto mulheres levantam cedo, antes mesmo das seis da manhã, fazem uma refeição e partem para suas roças, retornando por volta das treze horas. Depois de um descanso pós OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO almoço, as famílias se revezam nos barracões de farinha, onde preparam tanto a modalidade amarela quanto a branca. Este é o principal produto comercializado pelos Taurepáng na cidade de Pacaraima, toda sexta feira de manhã na Feira do Produtor. Neste local também vendem banana, laranja, abacaxi, acerola e, em menor escala, o beiju. Exceto aos sábados, quando não se admite qualquer atividade que não seja a prática religiosa, quando não estão rezando ou produzindo, isto é, na parte inal das tardes, quase todos os jovens, crianças e velhos, homens e mulheres, se reúnem na área de lazer em torno do campo de futebol e desfrutam de momentos coletivos de recreação, jogando vôlei, futebol ou apenas se divertindo com a performance dos parentes nessas partidas. Portanto, as atividades na roça e na igreja preenchem de modo praticamente integral o cotidiano dos moradores da comunidade do Bananal. Além disso, é preciso lembrar que a prática adventista taurepáng enfatiza de modo muito saliente o tema de um paraíso celeste a ser alcançado após a morte. Em certa medida, esse lugar destinado às almas das pessoas mortas atende a um ideal que os vivos buscam atualizar no presente: fazer de suas próprias comunidades o que chamam de upatá (que se traduziria aproximadamente por “[meu] lugar bom”), livre de mazelas e de doenças, onde se vive entre iguais, parentes. Assim, no início do século XX, com a chegada de missionários adventistas à região do monte Roraima via Guiana Inglesa, esta concepção haveria convergido com as mensagens trazidas pelos pastores, em particular àquela referente a um lugar preparado no céu pelo criador, livre de perigos, moléstias, trabalho duro e sofrimento. Nas palavras de Andrello, “a boa acolhida que os Taurepáng ofereceram aos missionários, bem como a subsequente conversão a esta religião, não foi fruto de mera imposição catequética, mas sim porque uma vez interpretados seus conteúdos, a doutrina adventista teria encontrado inteligibilidade no código Taurepáng” (1993a: 109). Assim, nas antigas aldeias venezuelanas próximas ao Roraima, novas formas de culto emergiram, conduzidos por lideranças que anunciavam a conquista do “bom lugar”. Mas, se antes o almejavam sobretudo no plano terrestre, na geograia, a partir do contato e da absorção da mensagem cristã passam a buscá-lo também na escatologia, em um tempo futuro. 30 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 31 CAIO MONTICELLI Segundo esse autor, outra noção que parece ter ganho um grau a mais de elaboração no contato com o adeventismo foi a de um caminho das almas, que os Taurepáng chamam de Yekaton Ienaruk, isto é, o percurso que a alma do morto deve fazer através de um canal de comunicação entre a terra e o céu. Os que obedecerem a uma conduta correta durante a vida passam por esta via sem encontrar obstáculos, e chegam ao céu, local que convivem com Portori-to (literalmente “nosso pai”). Já os pecadores, Imakoi-pe, concebidos como “portadores de Makoi” ou “aqueles que carregam Makoi” – categoria equacionada a Satanás e que também signiica “maldade” – enfrentam uma sequência de perigos e diiculdades. Ao chegar em determinado ponto do caminho, por exemplo, a alma viajante se depara com um abismo muito profundo, Iarantak. Sua passagem é extremamente difícil, mas é possível ser vencida e a viagem continua em direção ao céu. No entanto, o caminho vai se tornando cada vez mais árduo, como se fosse uma trilha em mata cada vez mais espessa, como dizem os Taurepáng. Finalmente, a passagem se fecha frente a uma enorme samaúma, Kuma-yeg – árvore associada a diversos perigos. No mesmo nível em que se encontra esta samaúma, haveria ainda uma “casa de cabas”, Tapyiucá, com uma picada muito dolorosa. Se uma alma consegue chegar até este ponto, então as cabas investem e cobrem-lhe o rosto com picadas. Desesperada, não pode seguir em frente, e, retornando para a terra, aloja-se entre os Mawari das serras. Deste modo, o batismo para os Taurepáng signiica tirar Makoi do corpo e deixá-lo com Rató sob as águas. Ao sair do rio, aquele que é batizado apresenta uma nova condição: poderá seguramente atravessar o caminho do céu após sua morte. Isto porque a diiculdade para se desvencilhar das barreiras que surgem no percurso das almas é própria dos pecadores, Imakoi-pe, e também das pessoas em estado imatanesak, “estragadas”. Não se trata, portanto, simplesmente de lavar o corpo, mas sim de uma transformação da pessoa taurepáng proporcionada pelas práticas adventistas. Para melhor compreendermos essa puriicação, é preciso ter em vista a formulação taurepáng da condição humana, que obriga os homens a uma permanente interação com os seres da mata e dos rios, domínios de onde retiram alimentos. A caça e a pesca constituem uma espécie de “roubo” dos OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO ilhos dos pais de cada espécie. Do mesmo modo, as doenças que afetam os homens são, na maioria dos casos, roubos da alma praticados por estes seres. Neste caso, seria necessária a intervenção do xamã, responsável pela restituição da integridade da pessoa, ou de um equilíbrio incessantemente afetado pela relação que os homens mantêm com o mundo que envolve o grupo local. Seria essa a situação que os torna imatanesak, “estragados”: o consumo da caça de certos animais e consequentemente a necessidade de tratamento xamânico, que os coloca em contato com os Mawari, e com os espíritos dos mortos de modo geral. Ao se batizar, um Taurepáng pode virtualmente alterar signiicativamente tal condição, uma vez que após sua realização, a prática de um conjunto de proibições alimentares se impõe, sobretudo o consumo do caxiri alcoólico e do tabaco. De fato, os Taurepáng dizem que, após batizado, aquele que voltar a consumir os alimentos proibidos irá fatalmente adoecer – sem possibilidade de cura (ANDRELLO, 1999). Assim, se a cura xamânica consiste em um embate com seres invisíveis e agressivos, o batismo apresentaria um caráter preventivo, no sentido de proteção. Dito de outra forma, praticar o adventismo poderia ser interpretado como uma forma de se precaver de perigos potenciais, talvez algo muito próximo ao resguardo durante a primeira menstruação das mulheres, mas de modo mais amplo e coletivo. Nesse sentido, a vida, tal como vivida na comunidade do Bananal, corresponderia a uma busca permanente por um upatá nesta terra, como condição para alcançá-lo também no além. Um dado que reforça tal hipótese refere-se às constantes airmações de seus moradores referentes à abundância de alimentos que ali se desfruta e, de modo importante, à ausência praticamente absoluta de mortes por ataques de Kanaimé. Abundância de alimentos e ausência de Kanaimé, dois aspectos que marcam, portanto, de modo muito explícito a vida na comunidade, aspectos recorrentemente assinalados por seus moradores. Mas o que são os Kanaimé ainal? Para usar expressões correntes, é “gente” ou é “bicho”? Se humanos, índios ou brancos? Com efeito, Koch-Grunberg registra que etnias inteiras podiam ser consideradas Kanaimé, categoria que encerra uma atribuição de feitiçaria e canibalismo. Conhecidos como “aqueles que matam de repente” (BUTT 32 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 Revista Terceira Margem Amazônia | v. 2 • n. 8 • Jan/Jun. 2017 33 CAIO MONTICELLI COLSON, 2001), essa deinição refere-se a feiticeiros-assassinos que secretamente atacam suas vítimas quando estão desprevenidas. Para tanto, ou o Kanaimé ataca isicamente, com uma pancada, ou por meios mágicos, com o deslocamento de seu princípio vital até o local onde a vítima se encontra. Nesse sentido, há algumas plantas especiais que permitem sua alma viajar grandes distâncias em poucos minutos. Após três dias do assassinato, o Kanaimé vai até a sepultura da vítima e chupa o suco de seu corpo em decomposição – ação análoga ao modo pelo qual os Taurepáng dizem que o mel é extraído das colméias. No caso Kanaimé, parece que esse estado de putrefação dos corpos atacados apresenta um sabor “doce” para o feiticeiro. Todavia, como pondera Whitehead (2001: 225), pesquisas comparativas ainda são necessárias, para que os pormenores do discurso sobre Kanaimé sejam melhor integrados às etnograias. Ainda assim, ao explorar esses ataques no quadro da “estrutura social” dos povos indígenas da região circum-Roraima, Butt Colson e Whitehead sugerem que as suspeitas de Kanaimé majoritariamente recaem sobre alguém de fora da comunidade, um outro, seja do mesmo grupo étnico ou não, de modo que ninguém consegue icar completamente a salvo de seus ataques. Quando interroguei alguns Taurepáng sobre os ataques de Kanaimé no Bananal, disseram-me que felizmente o local é muito “forte espiritualmente”. Mas tal ameaça está presente na região, uma vez que diversos casos são registrados nas comunidades da vizinhança. Também é interessante destacar que, no início de 2017, durante minha pesquisa de campo, corria pela região o boato de que havia muito Kanaimé entre os refugiados venezuelanos. Nesse período, e com o signiicativo aumento de pessoas se deslocando da Venezuela para o Brasil, tal suspeita fez com que os Taurepáng evitassem dar caronas em suas caminhonetes pelas vicinais e pela própria BR-174. Assim, como os autores acima mencionados assinalaram, o acionamento da categoria Kanaimé revela-se um mecanismo eicaz de demarcação de certas unidades sociais para com grupos vizinhos e, de modo mais abrangente, para com todos não-parentes. OS TAUREPÁNG DO BANANAL E O TURISMO Considerações finais Portanto, levando em consideração o conjunto de dados apresentados – os quais a presente pesquisa em desenvolvimento se dedica em ampliar e aprofundar – levanto as seguintes questões: em que medida a hesitação dos mais velhos face à introdução do turismo na vida comunitária estaria associada ao conjunto de cuidados voltados para a manutenção da comunidade expressos na prática adventista? Nessa linha, em que medida a consolidação dessa atividade não signiicaria uma correlata e demasiada abertura à alteridade (FAUSTO, 2012)? Ao que tudo indica, a prática religiosa local pode ser interpretada como uma forma pela qual os Taurepáng operam uma espécie de gestão constante de suas relações exteriores – tanto do ponto de vista das relações inter-humanas, como das relações com não-humanos. Nesse caso, talvez a abertura da comunidade para visitantes externos apresente alguma ressonância com o temor sempre presente de ataques de Kanaimé. Em suma, em que medida os problemas explicitamente levantados quanto às diiculdades de implementar o turismo (logística, falta de estrutura, comunicação, cronogramas, risco do consumo de bebidas alcoólicas pelos visitantes, banhos de rio sem roupa) ocultariam outras razões implícitas? Será que o espaço zeloza e longamente constituído da comunidade do Bananal, desde sua fundação por Bento Loyola, não estaria prestes a se confrontar com novos riscos e desaios? Se até os Amayikó das imediações já se encontram minimamente domesticados, não seriam os turistas uma perturbação demasiadamente arriscada a este estado de coisas tão sensível? Ou, por outro lado, haveria, ao lado do interesse emergente pelo turismo, alguma atração inusitada pelo risco? Referências bibliográficas ANDRELLO, G. Os Taurepáng: Memória e Profetismo no Século XX. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 1993a. ANDRELLO, G. Rumo Norte: Migrações e Profetismo Taurepáng no século XX. 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