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CRÍTICA MARXISTA • 63

Marxista solicitaram a cinco estudiosas que tematizassem e discutissem em seus textos as duas seguintes questões: Qual a contribuição que a teoria marxista produziu e pode oferecer para a análise e a crítica da situação das mulheres nas sociedades de classe, particularmente na sociedade capitalista? Da perspectiva marxista, qual a avaliação teórica e política que se pode fazer dos denominados estudos de gênero, cujo desenvolvimento e cuja influência têm se ampliado nos últimos tempos? 64 MARXISMO, FEMINISMO E O ENFOQUE DE GÊNERO CRÍTICA MARXISTA 65 CRÍTICA marxista

CRÍTICA DOSSIÊ marxista Marxismo e Feminismo * * Os editores de Crítica Marxista solicitaram a cinco estudiosas que tematizassem e discutissem em seus textos as duas seguintes questões: “Qual a contribuição que a teoria marxista produziu e pode oferecer para a análise e a crítica da situação das mulheres nas sociedades de classe, particularmente na sociedade capitalista? Da perspectiva marxista, qual a avaliação teórica e política que se pode fazer dos denominados ‘estudos de gênero’, cujo desenvolvimento e cuja influência têm se ampliado nos últimos tempos?” CRÍTICA MARXISTA • 63 64 • MARXISMO, FEMINISMO E O ENFOQUE DE GÊNERO CRÍTICA Marxismo, feminismo e o enfoque de gênero DOSSIÊ marxista CLARA ARAÚJO * De forma bastante concisa, caberia destacar como contribuições do marxismo ao feminismo o enfoque histórico e material, que permitiu a desnaturalização da subordinação da mulher, situando sua gênese num processo gerado nas e pelas relações sociais, em contextos socioeconômicos determinados; a interpretação da economia política em relação ao processo de trabalho capitalista e ao lugar do trabalho doméstico; e a análise sobre a ideologia, que oferece elementos para pensar outras dimensões das relações e dos conflitos sociais, para além dos vinculados à base material, mesmo quando mediados por esta. A perspectiva histórica e material possibilita pensar as práticas sociais, a construção das instituições, assim como os valores transmitidos através das gerações, como processos mutáveis, que ocorrem via uma agência humana ativa e dinâmica, embora não determinista, como mostrou Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Tal perspectiva é crucial para fugir a enfoques essencialistas sobre a dominação masculina e a subordinação feminina, nos quais as mulheres seriam, desde sempre e por natureza, subordinadas ou diferentes, e os homens, opressores. Em A ideologia alemã,1 é possível compreender como as várias faces das relações humanas originam-se dos processos materiais e históricos, desencadeados a partir das relações que homens e mulheres estabelecem com vistas à produção e reprodução de suas vidas e de suas * Professora de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1 Marx, K. e Engels, F. , A ideologia alemã. Porto, Presença, 1975. CRÍTICA MARXISTA • 65 necessidades. E conformam uma totalidade indispensável à reprodução social da vida material. Produção e reprodução constituem, assim, um único processo. Como indicaram os autores, tais processos se realizam via sujeitos sociais sexuados, os quais, através de suas práticas e interações com vistas à reprodução social e da espécie, dão origem a instituições, também históricas, como, por exemplo, a família. Este enfoque contribuiu para o entendimento de que as relações sociais, inclusive as que se desenvolvem entre homens e mulheres, são construídas, reproduzidas e transformadas, uma vez que a natureza humana não é concebida como algo ontológico e imutável, mas produto das práticas sociais, conflituosas e, muitas vezes, antagônicas. Não obstante os limites de alguns dos referenciais antropológicos presentes em A origem da família, da propriedade e do Estado, particularmente a suposição de que, originalmente, haveria um padrão universal de família, assim como certa simplificação no modo de conceber a divisão sexual do trabalho em sua origem,2 essa obra permanece uma referência para pensar a relação entre condições materiais, surgimento da propriedade privada, das instituições e a opressão da mulher. A contribuição de Engels foi importante para mostrar que o lugar social das mulheres não era expressão de uma “natureza feminina” inata, identificando a relação entre homens e mulheres como relação de opressão e situando nos processos socioeconômicos os elementos que conduziram à dominação masculina. A primeira divisão de trabalho, entre homens e mulheres, institucionaliza-se como relação opressiva quando as mulheres perdem o controle sobre o trabalho e se tornam economicamente dependentes do homem. Assim, a primeira forma de opressão origina-se por contingências materiais, e não por uma essência masculina dominadora. A família moderna nada mais é do que a expressão dessa “derrota histórica” das mulheres, ou seja, algo construído e mediado pelas relações socioeconômicas ao longo do tempo e do espaço. O marxismo é criticado por haver subestimado o lugar do trabalho doméstico na análise sobre o processo de produção capitalista. De fato, o centro da economia política marxista encontra-se na análise do chamado “trabalho produtivo”, seu processo e sua lógica. No entanto, a leitura mais atenta das obras de Marx e Engels permite identificar a constante relação entre produção e reprodução da vida envolvendo, por conseguinte, trabalho pago e trabalho não-pago, inclusive o doméstico. A economia política, ao estabelecer tal conexão, fornece as bases necessárias para se proceder a uma crítica sobre o valor desse trabalho no próprio ciclo produção/reprodução, assim como para Sobre isso ver, por exemplo, Haug, F. Problematical Aspects of Engel´s View of the Woman Question. Science & Society, v. 62, n. 1, 1998, p. 106-116. 2 66 • MARXISMO, FEMINISMO E O ENFOQUE DE GÊNERO o entendimento dos caminhos através dos quais a exploração de classe e a opressão de sexo se articulam. É essa chave analítica que permite retirar o trabalho doméstico do âmbito das relações “privadas”, para situá-lo no interior de um processo mais amplo e, portanto, tratá-lo como algo afeto às relações sociais em geral. Nessa perspectiva histórica e material, a análise sobre a alienação constitui contribuição importante para entender o papel que o trabalho doméstico veio a assumir no processo de produção da vida material. Os processos de trabalho ganham aparência naturalizada, tornando-se gradativamente elementos “coisificados” e exteriores aos indivíduos que deles compartilham. O conceito de alienação permite mostrar como as relações e a divisão de trabalho entre homens e mulheres também se apresentam naturalizadas, ganhando aspecto “a-histórico”, fixo e dicotômico. Cabe ainda destacar a análise sobre a ideologia, desenvolvida por Marx e Engels e trabalhada de modo mais abrangente por Gramsci, entre outros, como “concepção de mundo”, presente implicitamente em todas as esferas da vida social, e não apenas na esfera econômica. Gramsci mostrou a relativa autonomia que essa dimensão veio a adquirir na sociedade. Nessa perspectiva, podese dizer que a ideologia remete à subjetividade humana, aos valores e formas de perceber e se posicionar no mundo, a partir da condição de inserção dos sujeitos. Como mostra Therborn, ser um sujeito humano é algo “existencial – ser um indivíduo sexuado, em um ponto particular de seu ciclo de vida, relacionando-se com outros indivíduos sexuados (...) é também algo histórico – ser uma pessoa que existe somente em certa sociedade (...) inclusivo (ser um membro de um mundo significado), posicional (ter um lugar particular no mundo em relação a outros membros deles; ter um gênero ou idade particular, uma ocupação, uma etnia, etc.).”3 É, portanto, a partir dessas várias clivagens que se estabelecem as mediações entre condições materiais, valores e visões de mundo. O olhar mais amplo sobre a ideologia torna possível mover de uma análise centrada na classe, em direção a uma abordagem mais pluralista, capaz de abarcar outras formas de luta e conflito.4 A tentativa de considerar, nas análises de gênero, a intercessão entre categorias tais como classe, sexo e raça é expressão dessa perspectiva pluralista, assumida via dimensões materiais e ideológicas. Essas mediações permitem observar as diferenciações nos níveis de conflito e desigualdade nas relações entre homens e mulheres, no interior e entre as diversas classes, em sociedades específicas. 3 Therborn, G., “A formação ideológica dos sujeitos humanos”. Lutas Sociais, n. 1, 1996, p. 49-60. Grifos do autor. 4 Sobre isto, ver, Bryson, V., Feminist Political Theory. An Introduction. Londres, MacMillan, 1992. CRÍTICA MARXISTA • 67 E quanto às limitações? De forma esquemática, poder-se-ia identificar, sobretudo, a ausência de uma abordagem mais abrangente quando se passa à questão de como os conflitos e interesses foram se conformando e como a subjetividade humana foi sendo estruturada ao longo da história. Em outras palavras, como as relações de classe e gênero, apesar das intercessões, foram assumindo contornos próprios e a opressão foi sendo algo estruturante das relações entre homens e mulheres, moldada pelas práticas e condições materiais, mas adquirindo dimensão subjetiva como relação de poder. É, no entanto, difícil dizer, até que ponto isto poderia ter sido mais bem desenvolvido há mais de um século, já que os autores foram fruto de sua época e estavam mais preocupados em aprofundar a dimensão de classe das relações sociais. Muitas leituras5 sugerem que os autores clássicos, ao derivarem da análise de classe todas as outras formas de conflito, deram margem ao reducionismo econômico na análise sobre a opressão da mulher. Segundo Haug, tal reducionismo estaria presente, por exemplo, na análise de Engels sobre a família no capitalismo, já que não ficaria clara uma relação de opressão do homem proletário sobre a mulher proletária, dando a entender que a solidariedade de classe seria suficiente para quebrar a subordinação e estabelecer grandes diferenças entre as relações de gênero proletárias e as burguesas. Mais problemática parece ter sido a apropriação posterior dessa produção. Nos clássicos, as análises tratando da produção e reprodução da vida material, em geral, abarcavam as relações de classe e de sexo, mesmo que esta última fosse pouco aprofundada. Mas vieram a ser apropriadas posteriormente de modo simplificado pelo movimento marxista, ficando a dimensão de sexo diluída nas relações de classe. Prevaleceu a ausência de enfoque mais aprofundado sobre o impacto da subjetividade e da ideologia na construção social dos lugares de homens e mulheres, o que levou à subestimação da situação da mulher proletária, supondo-se relações de gênero baseadas exclusivamente no amor e livre de opressão. Além disso, tais análises tenderam a reduzir a chamada “dimensão material” aos seus impactos econômicos, estabelecendo um vínculo excessivamente direto entre base econômica e mudanças nos valores e padrões culturais. O conceito de gênero e seu lugar na análise feminista O conceito de gênero surge da tentativa de compreender como a subordinação é reproduzida e a dominação masculina é sustentada em suas múltiplas manifestações, buscando incorporar as dimensões subjetiva e simbólica de poder, para além das fronteiras materiais e das conformações biológicas. A 5 Ver, por exemplo, Barret, M., Women´s Opression Today. Londres, Verso, 1988; Haug, F. op. cit. 68 • MARXISMO, FEMINISMO E O ENFOQUE DE GÊNERO possibilidade de pensar as práticas materiais e, ao mesmo tempo, as construções simbólicas, evitando o essencialismo biológico ou a sustentação exclusiva na dimensão econômica, fez com que esse conceito fosse assumido também pelo feminismo de base marxista, preocupado em responder à permanência de relações de opressão entre homens e mulheres, mesmo em contextos econômicos e políticos diferenciados. Trata-se de importante recurso analítico para pensar a construção/desconstrução das identidades de gênero, isto é, os caminhos através dos quais os atributos e lugares do feminino e do masculino são social e culturalmente construídos, muito mais como significados do que como essência. Gênero é relacional e, nesse sentido, um gênero só existe em relação com o outro. Essa característica permite considerar que tanto o processo de dominação quanto o de emancipação envolvem relações de interação, conflito e poder entre homens e mulheres. Numa perspectiva política, nos obriga a ampliar o olhar sobre os atores. O problema deixa de ser apenas das mulheres, requerendo alterações nos lugares, práticas e valores dos atores em geral. Esse conceito contribuiu para incorporar na agenda feminista a luta no plano da cultura e da ideologia, fornecendo um espaço para a subjetividade na construção e reprodução dos lugares e significados socialmente identificados com o masculino e o feminino. Mas o seu percurso analítico guarda certos problemas que merecem ser assinalados. A ênfase na dimensão subjetiva das relações de poder entre homens e mulheres, desvinculada de bases materiais, seria um primeiro aspecto a destacar. Nas análises pós-estruturalistas, sobretudo, a dimensão simbólica ganha centralidade e a referência às práticas e relações materiais torna-se opaca. Gênero deixa de ser um conceito meio, isto é, uma forma de ampliar o olhar e entender a trajetória em torno da qual a dominação foi se estruturando nas práticas materiais e na subjetividade humana, para tornar-se um conceito totalizador, um modelo próprio e autônomo de análise das relações de dominação/subordinação, centrado quase exclusivamente na construção dos significados e símbolos das identidades masculina e feminina. As práticas materiais e as intercessões com outras clivagens praticamente desaparecem e/ou são bastante secundarizadas. Gênero passa a descrever tudo e a explicar muito pouco, pois, como conceito, tendeu a ser auto-referido. Já em 1990, debatendo o clássico texto de J. Scott6, Machado7 questiona o estatuto atribuído a esse conceito, sugerindo que “as tentativas de afirmar as diferenças entre os sexos, ou que a construção das relações de gênero são significativas, termina por Scott, J., “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. Educação e Realidade, vol. 16, n. 2, 1990, p. 5-22. 6 7 Machado, L., Gênero: conceito ou categoria de análise? XIV ANPOCS, Caxambu, mimeo, 1990. CRÍTICA MARXISTA • 69 assentar essa intenção na defesa da centralidade de uma dessas noções para o entendimento da vida social”. Para Machado, Scott não estabelecia os limites próprios do conceito no interior de um modelo teórico mais geral, produzindo o que o autor viria a denominar de “imperialismo do conceito”. Coole8 também observa que as análises iniciais sobre gênero asseguravam o vínculo com a dimensão material e as práticas coletivas daí originadas. Mas com o crescente “descolamento” em direção à dimensão simbólica, o conceito de gênero vem se tornando um código cultural de representação e aparece como mero efeito discursivo, desvinculado dos contextos socioeconômicos concretos. Em suma, pode-se dizer que as tentativas de achar um lugar para a dimensão subjetiva da dominação de gênero correm o risco de “jogar fora o bebê com a água do banho”, isto é, abdicar de qualquer perspectiva estrutural de um sistema econômico e político mais amplo, só restando lugar para o “simbólico”, abstraído de bases concretas. A totalização produzida por um conceito – classe –, por demais criticada, parece ceder lugar para outra forma de totalização conceitual, a de gênero. Essa apropriação analítica implica, também, o risco de se perder de vista os possíveis impactos que as relações de classe ou de raça podem vir a ter sobre a própria situação da mulher. Como refazer esse recurso preservando ambas as dimensões – materiais e simbólicas – que envolvem as relações sociais de gênero, eis um ponto para reflexão. Um dos desafios do marxismo tem sido o de incorporar a complexidade e as dimensões de conflitos que foram surgindo com a modernidade, gerando diversidade de sujeitos políticos e conformando manifestações variadas de subjetividade e interesses, com dimensões políticas específicas. Um projeto emancipatório da humanidade necessita pensar prioridades na ação política, sem perder de vista como as diversas clivagens que perpassam as relações sociais podem ser simultaneamente trabalhadas, em suas dimensões próprias e inter-relacionadas. 8 Coole, D., “Wither Feminism?”, Political Studies, v. 42, n. 1. Oxford, Blackwell. 70 • MARXISMO, FEMINISMO E O ENFOQUE DE GÊNERO