PARETO CRÍTICO DE MARX1
Luciana Aliaga2
RESUMO: Vilfredo Pareto é reconhecidamente um crítico de Karl Marx, no entanto, sob
o conjunto de sua vigorosa obra é possível observar não apenas a contraposição, a rejeição
pura e simples dos conceitos marxianos, observa-se, outrossim, uma agenda de pesquisa
ordenada pelos problemas oferecidos por Marx e pelo marxismo. Este artigo tem como
objetivo, portanto, demonstrar que a leitura feita por Pareto da filosofia marxiana e
marxista se orienta inegavelmente pela crítica, contudo, a análise deixa entrever não
apenas aproximações temáticas, mas também “apropriações” de temas e problemas
marxistas que aparecerão reelaborados no interior do elitismo paretiano.
Palavras-chave: Teoria das elites. Pareto. Marx.
ABSTRACT: Vilfredo Pareto is admittedly a critic of Karl Marx, however, under the set
of his vigorous work is possible to observe not only the opposition, the outright rejection
of the Marxist concepts, it is observed, moreover, a research agenda ordered by problems
offered Marx and Marxism. This article aims, therefore, demonstrate that reading made
by Pareto of Marxian and Marxist philosophy is undeniably guided by criticism, however,
the analysis gives us a glimpse not only thematic approaches, but also "appropriation" of
Marxist themes and issues that will appear reelaborated inside the paretian elitism.
Keywords: Elitist theory. Pareto. Marx.
Introdução
Vilfredo Pareto, ao lado Gaetano Mosca, foi responsável pela sistematização da
teoria que se tornou a “marca de fábrica” da cultura política italiana – a teoria das elites
(Cf. BOBBIO, 1988, p. 32). Ele, que foi considerado “o mais maquiaveliano dos elitistas”
por estar particularmente próximo à letra do texto de Maquiavel na medida em que
identificou nas “raposas” e nos “leões” os membros de uma elite que sabe alternar na ação
do governo a força e a astúcia (Cf. MEDICI, 1990, p. 30) é ainda pouco valorizado nas
1
Este artigo reúne parte dos resultados da minha tese de doutorado defendida no programa de pósgraduação em Ciência Política do IFCH/Unicamp, em 2013.
2
Professora do Depto. Ciências Sociais e do programa de pós-graduação em Ciência Política e Relações
Internacionais da Universidade Federal da Paraíba/ UFPB.
1
ciências sociais, à diferença do que ocorre no âmbito das ciências econômicas. Temos em
português, por exemplo, a tradução do Manuale di economia política3, publicado
originalmente em Milão em 1906, mas até hoje não existe uma tradução completa para o
português de sua principal obra de sociologia, o Trattato di Sociologia Generale,
concluído em 1915 e publicado em Firenze em novembro de 1916. Evidentemente a
ausência de Pareto não é uma especificidade da ciência social brasileira. Para Bobbio, o
fato de que os estudos sobre Pareto na ciência política sejam escassos se deve ao caráter
“monstruoso” de sua obra, em especial do Trattato. De acordo com Bobbio esta é uma
obra prodigiosa e disforme ao mesmo tempo4. Pareto – diz o autor – “tem ainda de ser
redescoberto” (BOBBIO, 2002, p. 65).
Certamente a evidente confluência entre o pensamento de Pareto e a ideologia
fascista não ajudaram a aumentar o prestígio do autor. Como se sabe, em 1923, na ocasião
de sua morte, Pareto foi chamado pelo Avanti!, jornal do Partido Socialista Italiano (PSI),
de o “Karl Marx do fascismo e da burguesia” (Cf. GRYNSZPAN, 1999, p. 57). Esta
expressão anuncia a um só tempo a importância do autor como ideólogo do fascismo e
seu antagonismo teórico-prático em relação ao socialismo e ao pensamento de Karl Marx.
Pareto é reconhecidamente um crítico de Marx, não obstante, sob seu construto
teórico-crítico é possível observar não apenas a contraposição, a rejeição pura e simples
dos conceitos marxianos, observa-se também uma agenda de pesquisa ordenada pelos
problemas oferecidos por Marx. O presente artigo, portanto, não propõe um confronto
entre os autores, mas, ao contrário, apresentamos uma análise do pensamento de Pareto à
luz de suas críticas a Marx e ao Marxismo. É preciso notar, neste sentido, que os grandes
cientistas sociais – como observou Giovanni Busino (1974, p. 9) – aqueles que são hoje
chamados de “os pais fundadores da sociologia” tiveram que fazer as contas com o
marxismo e com o socialismo. Isto porque a fundação de uma disciplina positiva,
científica da sociedade exigia o conhecimento dos mecanismos coercitivos e das
regulações sociais, bem como a definição dos limites e das possibilidades da intervenção
humana na ordem social, questões para as quais Marx teria dado respostas originais, assim
como a prática socialista teria suscitado uma série de questões importantes para a
3
Cf. PARETO, Manual de Economia Política, São Paulo: Nova cultural, 1984 (1ª. edição).
O Trattato di Sociologia Generale de V. Pareto é de fato uma obra materialmente grandiosa e de difícil
leitura, são mais de mil e quinhentas páginas (Na edição de 1923 que utilizamos, da Editora G. Barbèra,
são exatamente 1.644 páginas) cheias de argumentações circulares e imbricadas, acompanhadas de
exemplificações exaustivas retiradas quase sempre da história antiga greco-romana e coroadas com uma
linguagem matematizante, que procura recorrentemente “quantificar” a realidade social para tornar a
pesquisa mais exata, mais rigorosa.
4
2
elaboração científica (idem, p. 9-10). Por esta razão autores da estatura de Emile
Durkheim, Max Weber e Vilfredo Pareto, de diferentes maneiras e sob perspectivas
diversas, tomaram a teoria política marxista e o socialismo como interlocutores
privilegiados (idem, p. 11).
Este era de fato um dos temas dominantes no debate cultural europeu da virada do
século XIX para o XX (cf. ALBERTONI, 1985, p. 310). Os intelectuais da época –
sublinha Busino (1974, p. 13) – esperavam por meio da interlocução com o socialismo
“fazer progredir a ciência e ao mesmo tempo exorcizar o diabo”. Como parte deste grupo
de intelectuais, Pareto procura confutar a doutrina marxista e desvincular os movimentos
socialistas de sua matriz doutrinária, contudo, não é capaz de esconder seu “quase
fascínio” pela “força moral e pela intransigência ideal do socialismo” (idem).
Este artigo tem como objetivo, portanto, demonstrar que a leitura feita por Pareto
da filosofia marxiana e marxista se coloca inegavelmente no campo da crítica, contudo,
vai além da simples oposição. Neste sentido, pretendemos expor tanto os distanciamentos
teórico-metodológicos entre os autores quanto as aproximações temáticas, ou, mais
especificamente, as apropriações temáticas feitas por Pareto em relação ao marxismo no
interior da teoria das elites.
Filosofia e epistemologia: a crítica de Pareto ao “conceito”.
Antes de ser um crítico da filosofia de K. Marx, Pareto é, sobretudo, um crítico da
filosofia em si, em especial daquela herdeira do idealismo hegeliano. Não é, contudo,
uma tarefa fácil discernir claramente o julgamento de Pareto sobre o pensamento
filosófico fundamentalmente porque o autor não se propôs a uma crítica sistemática deste,
mas também porque a análise do conjunto da sua obra vai nos mostrar posicionamentos
por vezes contraditórios sobre o tema. Num artigo escrito em 1906, Il método nella
Sociologia, o autor define a filosofia como “teoria geral do conhecimento humano” e
afirma a dificuldade, ou, antes, a impossibilidade de “ocupar-se da sociologia
negligenciando inteiramente certos quesitos que pertencem propriamente à filosofia”, em
outros termos, “toda sociologia pressupõe uma filosofia, que, implicitamente, dá a norma
ao estudo que se pretende fazer”, de modo que torna-se imperativo “estudar os quesitos
da filosofia”, todavia “somente na proporção que é estritamente necessária para alcançar
o objetivo visado” (PARETO, 1980, p. 280). Neste artigo Pareto nos coloca diante de
uma associação epistemológica entre a ciência e a filosofia, isto é, o pensamento
filosófico é entendido como um fundamento que dá norte e norma ao estudo da sociologia
3
e que, portanto, deve ser conhecido, ainda que, para os fins propostos, somente o mínimo
necessário.
Uma década depois, no Trattato di Sociologia Generale, contudo, Pareto mudará
radicalmente seu parecer sobre a associação entre ciência e filosofia, nesta obra há uma
identificação entre filosofia, teologia, religião, mitos e fábulas. O autor as coloca em
conjunto no mesmo capítulo IV, As teorias que transcendem a experiência, o que implica
para o autor em dizer que a filosofia não tem um valor de verdade científica 5 porquanto
exprime sentimentos tanto quanto as religiões e a fé de maneira geral, incluindo aquela
de vertente socialista. A cientificidade é negada na medida em que os sentimentos e as
crenças invertem a lógica formal, isto é, “enquanto na lógica ordinária a conclusão é
resultado das premissas, na lógica dos sentimentos são as premissas que seguem da
conclusão”, isto é, a convicção de que A possui o atributo B não é resultado de um
raciocínio baseado na experiência, mas é previamente estabelecida, somente a posteriori
é que se busca dar um verniz lógico a esta convicção, buscando premissas que justifiquem
a conclusão (cf. T. v. 1, § 514, p. 2656).
Neste sentido, esta inversão entre a conclusão e suas premissas deve
necessariamente ser afastada, de modo que a associação entre ciência e filosofia perde o
valor gnosiológico assinalado antes por Pareto. O antiutopismo e o anti-idealismo
paretianos, deste modo, encontram seu ponto de toque na crítica das teorias
“pseudocientíficas”, das quais participam igualmente a filosofia, a religião, o idealismo e
o positivismo de Comte e Spencer. Como lembra Ripepe (1974, p. 277-278), a polêmica
anti-ideológica de Pareto se traduziu rapidamente em uma polêmica antifilosófica, do
mesmo modo que a oposição cientificista se traduziu na refutação de “qualquer
instrumento de conhecimento que não se referisse ao método das ciências naturais”.
Aquilo que aproxima substancialmente a filosofia das crenças e religiões sob o
olhar crítico de Pareto, isto é, o que lhe embute o caráter metafísico seria a centralidade
que ocupa o estudo da essência, da verdade das coisas, dos princípios fundamentais. Neste
sentido, a diferença entre as teorias metafísicas e as científicas consistiria no fato de que
as primeiras partem dos princípios absolutos para chegar aos casos concretos, enquanto
as segundas tomam como ponto inicial os casos concretos para então chegar aos
princípios gerais (cf. T. v. 1, § 22, p. 12). Dentre as teorias que transcendem a experiência
5
Sobre isto ver BOBBIO (2002, p. 94).
Para simplificação do texto citaremos Pareto no Trattato di Sociologia Generale utilizando a letra “T”,
seguida do volume de referência, do parágrafo e da página.
6
4
estão colocadas mais recorrentemente a filosofia, o direito natural e a teologia.
No que se refere à filosofia, um dos objetos frequentes da crítica paretiana é Hegel.
Para o autor do Trattato o filósofo alemão não teria estabelecido o nexo necessário entre
o conceito e o conhecimento objetivo, experimental. Sobre isto diz:
Quem, portanto, deseja ter conceitos que, como aqueles de Hegel,
discordam dos conceitos dados pela observação, siga a via de Hegel.
Quem, ao contrário, pretende ter conceitos que melhor se aproximam
dos conceitos dados pelas observações, siga a via dos astrônomos, dos
físicos, dos químicos, etc. Nós aqui desejamos encontrar em Sociologia
conceitos deste gênero e, por isto, seguimos esta via, única a obter tais
resultados. Não temos absolutamente outro motivo para segui-la (T. v.
1, § 514², p. 263).
A polêmica com a “filosofia metafísica” que se utiliza de conceitos formulados a
partir de princípios absolutos e que, por isto, para Pareto não tem lastro objetivo, se refere,
sobretudo, a Hegel e a sua busca da essência das coisas 7. A busca da essência consiste,
para o autor, na busca da verdade, e é justamente este escopo que lança igualmente a
filosofia e a religião sob a sombra comum da metafísica. O único critério válido de
verdade científica para Pareto é a experiência, de modo que a verdade experimental não
é necessariamente útil socialmente e por esta razão nem sempre é bem aceita no âmbito
social mais amplo. Destarte, a aceitação como verdade depende em grande medida da
utilidade social dos sentimentos que esta invoca, de modo que os termos “verdadeiro” ou
“falso” dependem do critério de quem escolhe, bem como aquilo que é aceito socialmente
como verdade nem sempre é uma verdade experimental. Na medida em que se atribui um
sentido absoluto à verdade ela assume um caráter dogmático, o que a retira do campo
lógico-experimental para remetê-la ao campo da metafísica (cf. T. v. 1, § 14, p. 8; T. v.
2, § 1567, p. 443-444).
Para Pareto o elemento que contrariava o pensamento científico consistia na
vinculação entre a verdade e o absoluto na filosofia de Hegel, ou, em outros termos, na
verdade absoluta fundada na essência das coisas e dos princípios. Discorda, portanto, dos
“metafísicos em geral”, que chamariam de “ciência o conhecimento da essência das
coisas” (cf. T. v. 1, § 19, p. 10). À luz desta crítica, o autor propõe que, ao contrário da
7
Sobre isto ver T. v. 1, § 51, p. 21; § 111, p. 49; § 486, p. 250; T. v. 3, § 1906, p. 178; § 2340, p. 473.
5
filosofia hegeliana, a relação das coisas deva ser investigada nos limites do espaço e do
tempo a nós conhecidos por meio da experiência e da observação. Para ser mais preciso,
Pareto afirma que deseja “construir a sociologia sobre o modelo da mecânica celeste, da
física, da química” (T. v. 1, § 20, p. 11). O que se percebe a partir do conjunto dos
parágrafos do Trattato que se dedicam à crítica da filosofia hegeliana é que o principal
nó conceitual que alimenta a polêmica se encontra no campo do método, isto é, Pareto
não admitia a pesquisa que não se iniciasse pelo método indutivo, ou seja, que não
partisse, por um lado, dos fatos, da experiência e, por outro lado, que não tivesse um nexo
lógico, no sentido da lógica formal, isto é, sem contradições.
A ideia de trabalhar com conceitos complexos e abstratos sem referência direta à
realidade concreta lhe parecia uma inversão do método lógico-experimental que remonta
dos casos concretos para formulação de princípios gerais – não absolutos (cf. T. v. 1, §
22, p. 12). O método lógico-experimental de Pareto não admite a lógica da contradição
que define a dialética hegeliana – e a marxista8–, justamente por este motivo a
diferenciação entre aparência e essência, bem como a reflexão sobre a essência no âmbito
da ciência não faz sentido para o autor franco-italiano. Por esta razão afirma que “o fim
acenado é um fim direto, a consideração de um fim indireto é exclusa. O fim objetivo é
um fim real, posto no campo da observação e da experiência, e não um fim imaginário
[...] um fim subjetivo” (T. v. 1, § 151, p. 66). Para Pareto a essência é uma “entidade
desconhecida”, de modo que a ciência somente pode chegar a princípios absolutos sob a
pena de incorrer em graves erros, isto é, “o preconceito que impõem o conhecimento da
‘essência’ visa demonstrar os fatos particulares com um princípio geral ao invés de extrair
este daqueles. De modo que se confunde a demonstração do fato com a demonstração das
causas deste” (T. v. 1, § 24, p. 12).
Diante disto entende-se porque a crítica de Pareto ao pensamento marxiano não
está direcionada apenas à teoria do valor que, como veremos, constitui um dos principais
pomos de discórdia entre os autores. A questão de fundo se refere principalmente ao
caráter conceitual da filosofia política como um todo. Um dos principais problemas, não
apenas do marxismo, mas de todas as teorias consideradas metafísicas seria justamente
as formulações abstratas, isto é, as formulações daquelas teorias que fugiam ao “prudente
ceticismo das ciências experimentais”, que se fundavam em conceitos ao invés de se
fundarem na experiência (cf. T. v.1, § 488, p. 251). Com o método de análise e síntese,
8
Sobre as dialéticas hegeliana e marxista ver GRESPAN, 2002.
6
que veremos a seguir, Pareto estabelece uma polêmica com a filosofia de modo geral
porquanto rejeita qualquer pensamento que se proponha ser científico fundando-se em
conceitos e não em fatos (cf. T. v. 1, § 95, p. 40-41). Benedetto Croce entendia ser errônea
a concepção deste método. Embora não rejeitasse o uso da abstração e dos modelos ideais
(como ressalta L. Bruni, Croce estava de acordo com Pareto na reivindicação dos direitos
da elaboração lógica, abstrata e científica, diferente da elaboração histórica ou sintética),
o autor não admitia, contudo, que o processo de abstração do momento analítico se
efetuasse sem ter por base “o conceito da coisa” (cf. BRUNI, 2000, p. 178-179).
Em sua reflexão sobre a relação entre linguagem e ciência, Pareto observará que
as ciências que mais progrediram foram aquelas que possuíam uma linguagem própria ou
porque criaram novos vocabulários ou porque conservaram o vocabulário da linguagem
vulgar, mas com novo significado, tais como a água da química, a luz da física ou a
velocidade em mecânica. Por outro lado, algumas teorias não lógico-experimentais
anularam a relação entre os nomes e as coisas. De modo irônico Pareto diz que os
“economistas literários”, por exemplo, pelo próprio arbítrio criam nomes como “valor” e
“capital” do modo como lhes agrada, contudo, extintos os nomes o que resta seria um
“conjunto de sentimentos”, demonstrando padecer inteiramente de precisão (cf. T. v. 1, §
118¹, p. 52). O conceito de “capital” parece a Pareto algo “desconhecido”, que não
encontra correspondência na realidade concreta. Para o autor o procedimento científico
deveria ser outro: “primeiro se ocupa da coisa, depois se busca o nome para dar a ela.
Primeiro se considera o corpo formado pela combinação de oxigênio e de hidrogênio,
depois se busca como indicá-lo” (T. v. 1, § 118, p. 52-53). Vejamos em detalhe como
Pareto define o método científico e como, a partir dele, formula sua crítica aos conceitos
marxianos.
A economia e a ciência
O método proposto por Pareto no Trattato consiste numa aplicação dos métodos
da economia às ciências sociais, isto se explica porque para o autor a ciência econômica
é também uma ciência natural fundada nos fatos, nos fenômenos concretos, na
experiência e na observação. Como atestam Marchionatti e Gambino (2000, p. 99) desde
o Cours d’economie politique (publicado originalmente em francês em dois volumes
entre 1896 e 1897), passando pelo Manuale di economia política (1906), até chegar ao
Trattato (1916) é constante esta ideia de total assimilação entre ciência econômica e
ciência natural. A ciência lógico-experimental é, portanto, uma ciência que se funda numa
7
abordagem típica das ciências naturais.
A economia pura, contudo, considera unicamente o homo oeconomicus, que
consiste num nível máximo de abstração porquanto, isolando todas as outras variantes,
considera o homem que, diante de escolhas de mercado, age logicamente no intuito de
aumentar tanto quanto possível o seu prazer e de diminuir – na mesma proporção – o
custo para aquisição deste prazer. De modo que os dados fundamentais da ciência
econômica “são os gostos dos homens e os obstáculos que encontram para conseguir os
bens econômicos para satisfazer estes gostos” (MARCHIONATTI; GAMBINO, 2000, p.
102). A economia aplicada, por outro lado, considera outras formas que se aproximam
mais do homem real. Tanto nas obras de economia, isto é, no Cours e no Manual, quanto
no Trattato, Pareto buscará a aproximação dos fenômenos concretos por meio da busca
de fatos históricos e dados estatísticos, “que permitem corrigir e completar os esquemas
da economia pura” (idem). É no campo da economia aplicada – como observam
Marchionatti e Gambino (idem) – que a pesquisa assumirá “aquelas características típicas
do modo de proceder de Pareto”, que se caracteriza por “um misto de teoria e de pesquisa
empírica, que tanto afetaram os seus primeiros analistas”. A pesquisa empírica, neste
sentido, orientará a produção da teoria no início do processo científico ao mesmo tempo
em que servirá de comprovação desta ao final da análise, definindo a preferência de Pareto
pelo método indutivo no estudo dos fatos sociais (cf. T. v.1, § 305, p. 169; § 368, p. 197).
No Trattato, contudo, Pareto utiliza estes métodos de forma combinada (cf. T. v.
1, § 90, p. 39; § 370, p. 198), de modo que considera válidos tanto o método indutivo
quanto o método dedutivo utilizados em economia e aplicados também nas ciências
sociais (cf. BRUNI, 2000, p. 177). A exigência paretiana de concordância com os fatos,
que permeia todo o processo de pesquisa científica, pode ser atendida por meio da análise
empírico-quantitativa. Embora a estatística não fosse utilizada como um dado absoluto
por Pareto e representasse uma primeira aproximação do fato, ela era considerada uma
das principais ferramentas para a “medição” da realidade. É a partir da proposição deste
método que Pareto vai se afastar “da acrítica confiança nas técnicas quantitativas de
Morgan” quanto aproximar-se sobremaneira dos modernos desenvolvimentos da
metodologia econométrica (cf. (MARCHIONATTI; GAMBINO, 2000, p. 111).
Destarte, na proposição paretiana de uma ciência da política, a combinação entre
o método indutivo e o dedutivo, bem como a análise empírico-quantitativa, forma um só
conjunto com o “método de análise e síntese”, o que lança ainda maiores luzes sobre a
vinculação de Pareto com a tradição científica das ciências naturais. O método de análise
8
e síntese – como sublinha L. Bruni – está no próprio nascimento da ciência moderna, isto
é, “no momento em que os cientistas começaram a observar os fenômenos não mais no
seu natural desenvolver-se, mas sob particulares e artificiais situações, ditas mais
especificamente ideais” (BRUNI, 2000, p. 179). O método se orienta pelo
desmembramento do fenômeno concreto, complexo, em suas várias partes componentes,
analisando-as com instrumentos adequados para, posteriormente, reconduzi-las ao
conjunto, à síntese. Sobre isto Pareto já em 1899 em I problemi della Sociologia observa
que
a mente humana não pode estudar com proveito diversas coisas ao
mesmo tempo, deve considerar uma coisa depois da outra. Disto nasce
a necessidade absoluta de separar, mais ou menos arbitrariamente, as
diversas partes de um fenômeno para estudar a parte, e depois reunir
todo aquele estudo em um feixe para obter um conhecimento sintético
do fenômeno (PARETO, 1980, p. 166).
Neste sentido diz Bruni: “é este o clássico método de análise e síntese, que afunda
as próprias raízes nos gregos (Arquimedes, Euclides), que atravessa toda a Idade Média”,
e que “comparece também em Galileu” (idem). O método de análise e síntese – como
observa este autor – sempre recebeu muita atenção dos economistas, contudo, o primeiro
a ressaltar a importância do uso deste método nas ciências sociais não foi Pareto, mas sim
J. S. Mill, principalmente em sua obra System of logic (cf. BRUNI, 2000, p. 180). O
conceito de Mill de idealização9 tem por base o “princípio de composição das causas
(generalização do princípio da composição de forças em mecânica)”. Embora este
princípio não funcione para a química – já que, como lembra Bruni “o resultado da ação
de diversas forças é substancialmente diverso dos inputs”, como por exemplo a
composição química da água: no composto final, a água, não se encontram traços das
propriedades do hidrogênio e do oxigênio que a formaram – para Mill, contudo, “o
princípio da composição das causas é geral, enquanto o que ocorre em química é a
exceção”, de modo que pode ser aplicado à ciência social (idem). Pareto, portanto,
assimila essas concepções de Mill, muito embora tivesse conhecimentos suficientes para
apreendê-lo diretamente já que conhecia Newton e Galileu antes de ter lido a Lógica de
Mill. No Manuale aparece a primeira exposição sistemática do método, mas será no
9
No interior do debate da filosofia da ciência o processo de análise é hoje mais comumente chamado de
idealização e o processo posterior, de síntese, de des-idealização (cf. BRUNI, 2000, p. 179-180).
9
Trattato que Pareto vai utilizá-lo para estruturar toda a obra (idem; cf. também PARETO,
1945, p. 20; T. v. 1, § 30, p. 14).
Como exemplo da necessária separação analítica da matéria no âmbito das
ciências sociais Pareto dará o exemplo da economia política. Ele esclarece que o
fenômeno concreto é complexo, isso quer dizer que para conhecê-lo são necessárias a
economia, a sociologia, a história, etc. Cada área específica do saber está, portanto,
habilitada para analisar a matéria que lhe cabe, isto significa que a análise deve se
restringir aos limites de sua especialidade. À economia política caberá o estudo da parte
econômica do fenômeno, de modo que seria “um erro querer incluir na economia política,
como muitos fazem, as partes sociológicas”, é necessário que se agregue – e não que se
substitua – nas teorias econômicas as outras teorias referentes às demais áreas do
conhecimento (T. v.1, § 34-35, p. 15). Pareto aqui está propondo que, no estudo de
determinado problema, cada área do conhecimento se ocupe de seu objeto específico.
Estes parágrafos se referem, sobretudo, à crítica da marxiana teoria do valor. O erro de
Marx seria justamente o de permitir que a teoria do valor, de uma teoria econômica tornese “a porta pela qual se deseja fazer irromper a sociologia na economia política” (T. v. 1,
§ 38, p. 16).
No Cours Pareto ensaia uma tentativa de elaborar uma teoria autônoma do útil e
da ofelimidade no intuito de superar a noção clássica de valor e poder revelar a
inconsistência da teoria do valor-trabalho do Capital de K. Marx. O termo ofelimidade
definiria uma validade econômica que faz com que determinada coisa satisfaça uma
necessidade ou um desejo legítimo ou não, que é identificado com o valor de uso, ao
passo que o valor de troca seria somente uma avaliação que nasce entre duas ofelimidades
(cf. SUSCA, 2005, p. 25-27; cf. também PARETO, 1953, p. 10-15). O conceito, portanto,
sustenta uma noção subjetiva na medida em que a validade econômica somente o é para
o indivíduo10. Esta face subjetiva de valor se constrói a partir da crítica não somente à
economia marxista, mas também de toda a economia liberal – de Adam Smith a John
Stuart Mill – no que se refere à “objetivação do valor”11. Para Pareto, o valor econômico
10
Sobre isto conferir também BRUNI, 2000, p. 160-161.
Em Crítica a O Capital de Karl Marx, introdução à coletânea de textos do filósofo alemão publicada na
Itália, Pareto afirma “K. Marx incidiu no erro que foi, e que é o de muitos economistas, de não prestar muita
atenção ao fato de que o valor de uso não é uma propriedade inerente a cada mercadoria, como o seria a
composição química, o peso específico, etc., mas é, pelo contrário, uma simples relação de conveniência
entre uma mercadoria e um homem, ou homens” (PARETO, 1937, p. 42). Pareto, portanto, identifica a
formação do valor não na esfera da produção como faz a economia política clássica e a teoria marxista, mas
na esfera da circulação, de acordo com a teoria econômica marginalista (cf. CARREIRO, 1975, p. 451455).
11
10
possui um caráter totalmente subjetivo, e é justamente o desconhecimento deste fato que
aproxima Marx e Ricardo, que atribuem ao trabalho a origem do valor “confundindo o
valor, que é para o sujeito o fim, com o trabalho, que não pode ser senão o meio” (SUSCA,
2005, p. 27-2812). De modo que o conceito de ofelimidade é cunhado por Pareto para
suprir as deficiências do conceito de valor de uso, isto é, um conceito que se propõe definir
a utilidade econômica para os indivíduos em sociedade (cf. PARETO, 1945, p. 121-122).
Ocorre, contudo, que Pareto acaba por dar vida a uma teoria sobremaneira
indeterminada da escolha pela utilidade subjetiva, que por fim perde sua potencialidade
explicativa do fenômeno real. Na medida em que toma o indivíduo e sua subjetividade
como unidade de análise da sociedade – sem considerar as relações de forças e as
estruturas sociais como variáveis importantes na determinação social – o autor esbarra no
problema de reduzir as diferentes utilidades para os indivíduos a índices de preferência.
O próprio Pareto admite que o conceito de utilidade a partir da subjetividade humana é
indeterminado porquanto “os conceitos que os diversos indivíduos possuem a respeito do
próprio bem e do bem alheio são essencialmente heterogêneos, de modo que não é
possível torná-los uma unidade” (T. v. 3, § 2143, p. 304).
Destarte, na busca por apresentar uma alternativa à teoria do valor e ao seu suposto
objetivismo – e também ao utilitarismo e sua base moral – Pareto parece cair num extremo
oposto, isto é, no subjetivismo. O conceito de ofelimidade, contudo, foi o ponto de partida
para a fundação da moderna teoria da escolha no ano de 1899, período de importantes
progressos metodológicos para o autor que se refletirão na releitura anglo-saxã de sua
obra nos anos 1930, hoje central na microeconomia (Cf. BRUNI, 2000, p. 161).
Materialismo Histórico: crítica e assimilação paretiana
As polêmicas paretianas com o socialismo e com o marxismo remontam a meados
dos anos 1880, quando os primeiros deputados socialistas conseguem entrar no
parlamento italiano (BUSINO, 1974, p. 12). O perigo eminente de uma perturbação na
ordem social provocada pela sensibilidade parlamentar às “crenças” igualitárias
socialistas suscitou em Pareto uma intensa atividade intelectual. A ideia de formular uma
teoria geral dos sistemas socialistas nasce em seus primeiros anos na Universidade de
Lausanne na Suíça, onde ministrou um curso de história dos sistemas sociais e socialistas.
Como resultado, escreve nos anos de 1897 e 1901 Les Systemes Socialistes, em dois
12
cf. também PARETO, 1953, p. 15-16.
11
tomos. Em maio de 1902 é publicado em Paris o primeiro volume e em 1903 o segundo.
O pensamento político de Pareto – presente no interior de seu sistema de
sociologia – se edifica, portanto, a partir de um intenso debate com o marxismo e com o
socialismo em suas principais problemáticas, entre as quais se deve destacar as questões
envolvidas na mudança social, isto é, na teoria da revolução
Como já afirmou Busino (1975, p. 22) não existe conflito ou incompatibilidade
entre a teoria da luta de classes e a teoria das elites, pelo contrário, “esta pretende ser uma
generalização daquela”. Enquanto legítimo representante da tradição maquiaveliana de
estudos políticos, Pareto entende a política como esfera onde se desenvolve o conflito, e
que este, contudo, diferentemente da teoria marxista, não ocorre somente entre as classes
fundamentais do capitalismo, mas de dois modos essencialmente: 1. pela concorrência
econômica – o que significa que o conflito pode ocorrer no interior de uma mesma classe
– e, 2. entre elites, que lutam pelo poder de Estado e para espoliar as demais classes. Para
o autor a luta de classes seria efetivamente “o grande fato que domina a história”
(PARETO, 1953a, p. 429). Neste sentido, pode-se concordar com SUSCA (2005, p. 162)
quando afirma que aqui fica evidente a “tentativa paretiana de fazer confluir dentro da
própria sociologia elitista uma porção da reflexão marxista”.
Destarte, a exploração de uma classe pela outra, mais especificamente da massa
pela elite, contudo, ocorreria para o autor somente na esfera política, frequentemente
através dos cargos públicos, por meio dos quais além da exploração, destrói-se riqueza na
medida em que esta é empregada na corrupção e no tráfico de influências. Na esfera
econômica, contudo, a concorrência é benéfica. Afirmando o princípio liberal segundo o
qual cada indivíduo ao procurar o próprio bem econômico indiretamente é útil a outrem,
Pareto sustenta que a produção de riqueza é encetada justamente pela concorrência, que
contribui indiretamente para o aumento do nível da renda mínima e para diminuir a
desigualdade das rendas13. As desigualdades econômicas e sociais, portanto, aparecem no
pensamento do autor do Trattato não apenas como benéficas, mas também necessárias,
isto é, a evolução da sociedade levaria “naturalmente à acumulação de riqueza e poderia
também naturalmente conduzir a uma difusão generalizada do bem estar, se os homens e
os governos não interferissem com seus embustes e as suas utopias reformadoras”
(SUSCA, 2005, p. 68-69)14.
13
Pareto trata desta questão ao longo do segundo capítulo do Corso di Economia Politica, intitulado La
Produzione (cf. PARETO, 1953a, p. 79ss).
14
Se a escola liberal clássica “confiava a resolução do problema da distribuição ao efeito do livre encontro
entre demanda e oferta, a economia paretiana, como aquela de Walras e toda a escola de Lausanne, tende a
12
Para Pareto, portanto, não é o acúmulo de capital ou de riqueza o efeito da
espoliação dos pobres pelos ricos, mas o uso que alguns fazem da riqueza para obter mais
riqueza por meio de relações de influência nos poderes públicos, de modo que não se trata
de qualquer tipo de opressão operada pelo capital. É justamente quando não se transforma
em capital que a poupança se torna improdutiva e, então, pode ser nociva socialmente (cf.
PARETO, 1953, p. 362). Nesta leitura que vai além da própria economia política liberal
não existe lugar para a ideia de que é o trabalho que produz riquezas e em decorrência
Pareto não pode aceitar a teoria do valor, bem como não aceita a teoria marxiana do maisvalor.
Em um artigo de 1898, chamado Del Materialismo Storico, Pareto deixa claro o
foco da sua crítica, isto é, para o autor tanto o materialismo histórico quanto a teoria da
evolução pecavam na medida em que não consideravam a multiplicidade de causas de um
fenômeno. Em outros termos, para Pareto as ações dos homens possuem diferentes e
diversas motivações econômicas, morais, religiosas, etc., sendo difícil, senão impossível
estabelecer uma hierarquia de importância entre elas (cf. PARETO, 1980, p. 158).
Embora reconheça que a teoria socialista não “nega a existência dos motivos morais,
religiosos, etc.”, adverte que “trata-se de motivos secundários, dependentes na realidade
do primeiro motivo, que é a causa econômica” (idem, p. 159). Transparece, contudo, na
crítica de Pareto, como de resto de uma miríade de críticos positivistas – inclusive de
positivistas socialistas –, uma visão esquemática do materialismo histórico, o que
condicionou uma leitura mecanicista deste, segundo a qual a relação entre a constituição
política e o ordenamento econômico seria de simples e direta causa e efeito. Diz o autor
em um artigo publicado em 1899, intitulado I problemi della Sociologia:
Se pudéssemos demonstrar que a constituição política é consequência
do ordenamento econômico, muitos dentre os problemas dos quais
discorremos se desfariam facilmente. Mas esta demonstração nem se
dá, nem se pode dar. Aqueles que querem demonstrar esta dependência
apresentam argumentos que, quando são válidos, demonstram somente
como entre a constituição política e o ordenamento econômico existe
estreita dependência; proposição verdadeira mas bem diferente da
primeira” (PARETO, 1980, p. 176).
radicalizar a ideia liberal de uma ‘mão invisível’ do mercado que guie as trocas em direção aos mais
apropriados pontos de equilíbrio” (SUSCA, 2005, p. 66-67).
13
De acordo com Pareto, a teoria materialista da história erra ao afirmar que “são os
fatos econômicos a modificar as instituições sociais e as doutrinas, e que se refletem na
consciência dos homens”. Para o autor “muito frequentemente são outros fatos, os quais,
ao menos no estado atual dos conhecimentos, não são redutíveis a puros fatos
econômicos”. De modo que a teoria materialista da história do ponto de vista de Pareto
possui no seu ponto de partida um princípio que é verdadeiro – a inteiração entre as duas
esferas – “mas que errou muito ao querer precisar e ultrapassar de tal modo as conclusões
que podem ser tiradas legitimamente da experiência” (PARETO, 1974, p. 145).
Em Del materialismo storico. Dilucidazione preliminare, de Antonio Labriola,
Pareto encontra a “exposição mais completa e mais erudita da doutrina marxista”. O autor
descobre uma notável afinidade com Labriola no que se refere à crítica do “verbalismo”,
isto é, a pretensão de “poder conhecer a coisa estudando a origem etimológica da palavra
que serve para designá-la”. De acordo com Pareto, Labriola teria corretamente advertido
que não se deve deduzir o sentido da “interpretação materialista da história da análise dos
termos, e mais precisamente que não há necessidade de torná-la uma doutrina fundada na
matéria e refratária ao ideal, visando glorificar os instintos brutais do homem e
subvalorizar os sentimentos morais” (PARETO, 1980, p. 160). Contudo, permaneceria
incorreta a ideia de uma determinação pela estrutura econômica, isto é, o erro seria não
perceber que a estrutura não é apenas causa (seja imediata ou mediata), mas também
efeito – estrutura econômica e vida moral são dois fenômenos estruturalmente
relacionados, mas não se pode dizer – segundo o autor – que um é causa e o outro é efeito.
A determinação estrutural dos fatos sociais, portanto, é entendida por Pareto como
um princípio a priori, e, em decorrência, desligada dos fatos concretos e da pesquisa
empírica, o que atribui ao marxismo um caráter dogmático. Em Del materialismo,
Labriola teria afirmado que é indiscutível o princípio que afirma que não são as formas
da consciência que determinam o ser do homem, mas o modo de ser é que precisamente
determina a consciência. Isto seria para Pareto um recurso ao princípio de autoridade e
que este é desprovido de valor enquanto elemento de prova (idem, p. 161-162). Em suma,
para Pareto a obra de Labriola possui “uma parte crítica ótima, que é especificamente
aquela que refuta as ‘ideologias’, persistentes ainda em certos setores históricos e que
visa investigar com os métodos das ciências naturais”. Esta crítica, contudo, não é
completamente nova, observa o autor, “mas nunca foi expressa talvez com tanto vigor
quanto por Labriola e pelos outros marxistas”. O problema da teoria materialista, contudo,
seria justamente o de reduzir a mútua dependência dos fenômenos a uma relação de causa
14
e efeito entre as condições econômicas e a moral, a religião, etc. (idem, p. 163-164, 339)15.
Embora Pareto tenha externado severas críticas ao materialismo, não deixou de
observar que entre materialismo e idealismo, o primeiro teria errado menos. Em Il
fenômeno del bolscevismo, de 1919, o autor afirma que tanto é errada a hipótese idealista
segundo a qual “as ideias são a causa dos acontecimentos” quanto a hipótese de que “os
acontecimentos são a causa das ideias”. A primeira hipótese, contudo, erra muito mais
que a segunda, que “frequentemente pode ser admitida como primeira aproximação,
sujeita a retificações”, a primeira, entretanto, não teria nem mesmo uma validade
primária. Para o autor tudo o que é conhecido se explica muito melhor admitindo-se que
os acontecimentos e ideias são interdependentes, e acrescentando que nos casos mais
numerosos e de maior momento predominam os acontecimentos (cf. PARETO, 1980, p.
792; ver também T. v. 2, § 1014, p. 93).
Como se vê, o problema introduzido por Pareto é aquele mesmo que os marxistas
tratam em termos de relação entre estrutura e superestrutura, mas que, se entendido
apartado da lógica dialética que pressupõe movimento e dupla implicação entre as esferas
econômica e jurídico-política, torna-se de fato um esquema simplista e bastante frágil
para explicar a realidade. Destarte, a crítica de Pareto a Marx pode ser considerada
forçada e lacunar porquanto o autor é “colocado no banco dos réus pelos limites que são
mais do movimento socialista que do próprio autor de O Capital”. Além disto, Pareto
“refuta o determinismo econômico marxista e acaba por criar, com o Trattato, uma
sociologia marcada por um determinismo psicológico bem mais férreo” (SUSCA, 2005,
p. 153). Neste mesmo sentido observa Ripepe:
O que lhe fugia, sobretudo, era a abordagem e o papel que o
desenvolvimento objetivo das forças produtivas, a vida cultural, o
progresso técnico, o caminho da civilização humana, em suma, não
podiam não ter na formação e no comportamento das várias elites. A
deformação ótica consequente da preferência dispensada aos requisitos
subjetivos de pertença à elite (capacidades pessoais e caráter) mais que
aqueles objetivos não poderia de resto conduzir a resultados diversos
(RIPEPE, 1974, p. 349).
É possível afirmar, entretanto, que Pareto guardava uma importante atenção ao
15
Ver também T. v. 1, § 829, p. 426; T. v. 2, § 2023, p. 253.
15
marxismo, mais que isso, como afirma Susca, ele estava persuadido da necessidade de
integração de alguns princípios fundamentais do marxismo (como aquele da luta de
classes ou a crítica das superestruturas ideológicas) para o progresso da ciência social.
Essa empreitada exigiria, contudo, a assimilação de aportes e orientação política diversa,
“como o evolucionismo spenceriano16, a grande tradição antirrevolucionária de
Tocqueville e Taine e, por último, o darwinismo social” (SUSCA, 2005, p. 147).
Considerações finais
Um olhar em perspectiva para o conjunto da obra paretiana torna evidente que a
sua consideração em relação à filosofia como um todo muda notavelmente ao longo do
tempo, por outro lado, a tensa e complexa relação com o marxismo não apresenta
alterações significativas. No espaço de uma década, isto é, de 1906, quando Pareto publica
Il método nella Sociologia, até 1916, ano da publicação do Trattato di Sociologia
Generale é sensível a mudança de posição de Pareto em relação à validade científica da
filosofia. Como se viu, partindo de uma consideração da filosofia como “teoria geral do
conhecimento humano”, donde se deduzia uma associação epistemológica entre a ciência
e a filosofia chega-se a uma perspectiva radicalmente diferente, isto é, da identificação
entre filosofia, teologia, religião, mitos e fábulas. Nesta última perspectiva a filosofia não
teria um valor de verdade científica, pelo contrário, ela mesma consistiria na expressão
de sentimentos, tanto quanto as religiões e a fé de maneira geral.
Diversamente, Pareto mantém uma constante atenção aos desenvolvimentos
teóricos e práticos do marxismo desde os anos 1880, quando da eleição dos primeiros
deputados socialistas para o parlamento italiano, passando por suas primeiras obras, ainda
especificamente no âmbito da Economia, até chegar a sua obra magna, o Tratatto, se
estendendo ainda para artigos posteriores. Neste sentido, desde o Cours (1896-97) podese notar o saldo teórico metodológico da polêmica estabelecida por Pareto com o
16
Pareto guarda uma relação ambígua com o positivismo. Por um lado, se afasta de A. Comte, H. Spencer
e E. Durkheim, dedicando a eles críticas agudas e recorrentes, desenhando uma concepção de ciência cujos
pressupostos em certa medida contrariam os pressupostos positivistas (Cf. ALIAGA, 2013), por outro lado
não abandona o campo do positivismo naquilo que ele tem de mais característico: a afirmação da ciência
como um corpo unificado (cf. RIPEPE, 1974, p. 290-291, cf. também PARETO, 1980, p. 318). Apesar
destas críticas, a influência mais profunda no pensamento de Pareto foi de fato aquela de Spencer, seu
antigo mestre (cf. SUSCA, 2005, p. 83), considerado por Pareto muito superior a Comte do ponto de vista
científico (cf. PARETO, 1974, p. 600). Dele virá o primeiro impulso para a elaboração da teoria do
equilíbrio social, mais especificamente do conceito de interdependência dos fenômenos sociais (cf.
RIPEPE, 1974, p. 378), bem como a consideração da influência das paixões e dos sentimentos nas ações
humanas, que – de acordo com Pareto – Spencer havia sintetizado muito bem (cf. PARETO, 1974, p. 142).
16
marxismo e o socialismo. Como procuramos mostrar, nesta obra, no intuito de revelar a
inconsistência da teoria do valor-trabalho e do mais-valor de O Capital de Marx, o autor
elabora a teoria da ofelimidade, fundamental para a moderna teoria da escolha e para os
avanços metodológicos da microeconomia contemporânea. Neste mesmo sentido, em Les
Systemes Socialistes (1891-1892), na qual se encontra já uma primeira formulação da
teoria das elites, que será plenamente desenvolvida no Trattato (1916) é possível observar
igualmente uma tentativa de “fazer confluir dentro da própria sociologia elitista uma
porção da reflexão marxista”. E, por fim, em Il fenômeno del bolscevismo, de 1919, como
já dissemos, o autor afirma que o materialismo teria errado muito menos que o idealismo.
Diante disto, é possível afirmar que Pareto não apenas guardava uma importante
atenção ao marxismo, ele também estava persuadido da necessidade de integração de
alguns princípios fundamentais do marxismo (como aquele da luta de classes ou a crítica
das superestruturas ideológicas) para o progresso da ciência social. Uma convicção se
mostra constante no pensamento do economista de Lausanne: Marx teria oferecido um
conjunto de problemas importantes para a ciência lógico-experimental, mas teria
encontrado em seu próprio método conceitual, não empírico, os limites de sua
investigação.
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