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INTRODUÇÃO AO TEMA DA VIAGEM NA GEOGRAFIA HUMANISTA

2021, Anais do XIV ENANPEGE

Que é viagem? Nesse artigo, apresento as contribuições da Geografia Humanista sobre o tema. Busco evidenciar as formas como a viagem aparece e suas principais referências. Para tanto, realizo uma pesquisa bibliográfica sobre o tema no acervo da Revista Geograficidade, do Grupo de Pesquisa em Geografia Humanista Cultural, em um primeiro momento. Busco ainda identificar as referências bibliográficas dos artigos e livros encontrados nessa primeira busca. O viajante compõe com seus olhares, tanto os de leitura do real quanto os de devaneio e imaginação. Nesse sentido, a descrição que transforma espaço em paisagens e lugares apenas por meio do "olhar de fora" costuma "representar" ou "inventar" o outro (alteridade). Em outra direção, a viagem pode ser entendida ainda como fundação e refundação da conexão com a geograficidade expressa pela paisagem, uma redescoberta de sentido, uma exposição. Assim, a viagem aparece como forma de conexão e envolvimento do corpo pelos sentidos profundos expressados pela paisagem, mas também como impossibilidade de acesso à experiência da vida das gentes do lugar, com as quais, no entanto, é possível partilhar experiências e, assim, aprender com - diferente de falar por ou escrever sobre. A viagem nodula lugares na paisagem por meio da experienciação íntima que só a vulnerabilidade do corpo permite. Nodula lugares que não se confudem com os lugares das gentes do lugar. A viagem se revela como forma de cultivar experiências marcantes que continuam a originar o mundo que somos, como uma arte de tecer mundos, vínculos e sentimentos. É preciso então rasurar os relatos de viagem.

INTRODUÇÃO AO TEMA DA VIAGEM NA GEOGRAFIA HUMANISTA Aline Lúcia Nogueira Medeiros1 RESUMO Que é viagem? Nesse artigo, apresento as contribuições da Geografia Humanista sobre o tema. Busco evidenciar as formas como a viagem aparece e suas principais referências. Para tanto, realizo uma pesquisa bibliográfica sobre o tema no acervo da Revista Geograficidade, do Grupo de Pesquisa em Geografia Humanista Cultural, em um primeiro momento. Busco ainda identificar as referências bibliográficas dos artigos e livros encontrados nessa primeira busca. O viajante compõe com seus olhares, tanto os de leitura do real quanto os de devaneio e imaginação. Nesse sentido, a descrição que transforma espaço em paisagens e lugares apenas por meio do “olhar de fora” costuma “representar” ou “inventar” o outro (alteridade). Em outra direção, a viagem pode ser entendida ainda como fundação e refundação da conexão com a geograficidade expressa pela paisagem, uma redescoberta de sentido, uma exposição. Assim, a viagem aparece como forma de conexão e envolvimento do corpo pelos sentidos profundos expressados pela paisagem, mas também como impossibilidade de acesso à experiência da vida das gentes do lugar, com as quais, no entanto, é possível partilhar experiências e, assim, aprender com – diferente de falar por ou escrever sobre. A viagem nodula lugares na paisagem por meio da experienciação íntima que só a vulnerabilidade do corpo permite. Nodula lugares que não se confudem com os lugares das gentes do lugar. A viagem se revela como forma de cultivar experiências marcantes que continuam a originar o mundo que somos, como uma arte de tecer mundos, vínculos e sentimentos. É preciso então rasurar os relatos de viagem. Palavras-chave: descrever; viajar, estranhamento, relato de viagem, alteridade. RESUMEN ¿Qué es viajar? En este artículo presento los aportes de la Geografía Humanista sobre el tema. Busco destacar las formas en las que se presenta el viaje y sus principales referentes. Para ello realizo una búsqueda bibliográfica sobre el tema en la colección de la Revista Geograficidade, del Grupo de Investigación en Geografía Cultural Humanista, en un principio. También busco identificar las referencias bibliográficas de artículos y libros encontrados en esta primera búsqueda. El viajero compone con sus ojos, tanto los de leer la realidad como los de soñar despierto e imaginación. En este sentido, la descripción que transforma el espacio en paisajes y lugares sólo a través de una “mirada exterior” suele “representar” o “inventar” al otro (alteridad). En otro sentido, el viaje también puede entenderse como fundamento y refundación de la conexión con la geografía expresada por el paisaje, un redescubrimiento de sentido, una exposición. Así, el viaje aparece como una forma de conectar e involucrar al cuerpo a través de los significados profundos que expresa el paisaje, pero también como la imposibilidad de acceder a la experiencia de las personas del lugar, con quienes, sin embargo, es posible compartir experiencia. y, por lo tanto, aprender de - diferente de hablar o escribir sobre. El viaje nodula lugares en el paisaje a través de la experiencia íntima que solo permite la vulnerabilidad del cuerpo. Nodula lugares que no se confunden con los lugares de la gente local. El viaje se revela como una forma de cultivar experiencias notables que siguen dando lugar al mundo que somos, como un arte de tejer mundos, vínculos y sentimientos. Entonces es necesario borrar los informes de viaje. Palabras clave: describir; viaje, distanciamiento, informe de viaje, alteridade. 1 Graduada e Mestra em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, membra do Núcleo de Pesquisa em Geografia Humanista (NPGEOH-UFMG), [email protected]. INTRODUÇÃO Que é viagem? Nesse artigo, apresento as contribuições da Geografia Humanista sobre o tema. Busco evidenciar as formas como a viagem aparece e suas principais referências. Para tanto, realizo uma pesquisa bibliográfica sobre o tema no acervo da Revista Geograficidade, do Grupo de Pesquisa em Geografia Humanista Cultural, em um primeiro momento. Busco ainda identificar as referências bibliográficas dos artigos e livros encontrados nessa primeira busca. A viagem se descortina como uma relação entre o inusitado, a descoberta e a solidão que se realiza na exploração e descoberta do mundo por meio de experiências de estranhamento ou talvez de experimentações do espaço. Ela acontece por diferentes motivos ou impulsos de deslocamento, sendo que este devem ser necessariamente entendidos a partir da diferenciação entre os de necessidade (ter que ir/ser forçado a ir) e os de desejo (querer ir). A composição da viagem envolve provisões (qualquer conhecimento anterior a viagem) imprevistos e improvisos. Enquanto desejo de partir, a viagem pode se configurar como uma ode à errância, fruto de um desejo de evasão ou de uma pulsão migratória. O processo de descobrir por si mesmo que o viajante empreende é também aquele que de composição de si (identidade) e do outro (alteridade). Descobrir pode ser considerado uma forma de dominar, nesse sentido, quando o desconhecido desvelado (ou criado) é composto mais pelo olhar estrangeiro do que pela contribuição dos moradores do lugar. O viajante compõe com seus olhares, tanto os de leitura do real quanto os de devaneio e imaginação. Nesse sentido, a descrição que transforma espaço em paisagens e lugares apenas por meio do “olhar de fora” costuma “representar” ou “inventar” o outro (alteridade). É preciso então rasurar os relatos de viagem. Exercitar o estranhamento, ver e desconhecer. Entender as ausências habitadas do corpo, das paisagens e dos lugares. Experimentar o olhar divagante e imaginativo do viajante na criação de novas composições. A viagem pode ser entendida, portanto, como um exercício do conhecer. METODOLOGIA A pesquisa bibliográfica aconteceu a partir da procura de palavras-chave (viajar, viajante, viajantes, viagem, viagens) na ferramenta de busca do site da Revista Geograficidade. Foram encontradas 10 obras, sendo que 4 eram resenhas. A segunda parte da pesquisa ocorreu por meio da pesquisa nas referências bibliográficas de cada artigo por obras que mencionassem alguma das palavras-chave já mencionadas aqui. Foram elencadas outras 7 obras. Imagem 1 – Pesquisa bibliografica na Revista Geograficidade (artigos e suas referências) Imagem 2 – Pesquisa bibliografica na Revista Geograficidade (resenhas e suas referências) A terceira parte da pesquisa consistiu na busca das palavras-chave mencionadas anteriormente nas referências bibliográficas dos livros resenhados. Foi possível realizar a pesquisa em apenas 2 dos 4 livros – outros 2 não foram acessados ainda. A partir disso, surgiram mais 8 obras. As obras foram esquemetizadas e apresentadas aqui (Imagem 1; Imagem 2). Embora não tenha sido possível realizar a leitura de todas elas, analisei primeiramente os artigos encontrados na Revista Geograficidade. Após a leitura, realizei um fichamento com destaque para as diferentes concepções de viagem que foram surgindo (reunidas num agrupamento simples); e uma esquematização dos sentidos para viagem observados, realizada manualmente – caneta riscando o papel. Destaquei algumas confluencias dessas produções e aprofundei a partir da leitura de textos chaves que contruibuíam com o tema. Nesse sentido, foi partindo da discussão apresentada nos artigos que articulei com textos chave complementares encontrados no levantamento bibliográfico e, ainda, articulei com minha trajetória de pesquisa no tema. A ordenação inicial da leitura dos artigos, roteiro de leituras, foi desanrrajada no caminhar, fruto de um movimento próprio de encontros. Dessa forma, aparecem relações que inicialmente não estavam visualizadas. Esse texto expressa os sentidos encontrados para a viagem e o que emergiu a partir daí. VIAJAR, DESCOBRIR, CRIAR A viagem aparece, em um primeiro momento, como relação entre o inusitado, a descoberta e a solidão (SUZUKI, 2011), pois “mesmo que acompanhado por outros, o sujeito constrói, com base em seus referenciais, o vínculo com o novo que captura do mundo pelo qual trafega, em um movimento de alteridade e de identidade constante” (SUZUKI, 2011, p. 90-91). Nesse sentido, é a descrição que “transforma o espaço em paisagem, capturada pelo olhar que recorta o mundo” (SUZUKI, 2011, p. 91). O autor, Júlio Suzuki (2011), busca compreender o significado da descrição do espaço na reconstrução da viagem empreendida em “O Turista Aprendiz”, livro de crônicas sobre viagens de Mario de Andrade (1983). Mario de Andrade trata de duas viagens, sendo a primeira “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega” (SUZUKI, 2011, p. 91). Essa viagem aconteceu no período de “7 de maio de 1927, quando Mário de Andrade parte, de São Paulo em direção ao Rio de Janeiro, para embarcar no vapor Pedro I, até 15 de agosto de 1927” (SUZUKI, 2011, p. 91). Já a segunda “refere-se à viagem ao Nordeste do Brasil de 27 de novembro de 1928, quando parte de São Paulo, até fevereiro de 1929” (SUZUKI, 2011, p. 91). Júlio Suzuki (2011) apresenta uma distinção entre duas formas do olhar, que encontra na obra de Mário de Andrade analisada, sendo elas: o olhar que permite a captura do real e o olhar divagante e imaginativo. Reforça a ideia de que os olhares promovem recortes do mundo e da descrição como recurso que transforma o espaço em paisagem, que o pinta com tintas sinestésicas. “São tintas que ultrapassam os sentidos da visão; dãonos o cheiro, o som. É uma descrição extremamente sinestésica” (SUZUKI, 2011, p. 94). Esses olhares “que permite[m] ver tantos elementos é o de um estrangeiro em sua própria terra” (SUZUKI, 2011, p. 94). Mas é “como se o estrangeiro estivesse no interior da nação, cujos fundamentos culturais não tivessem constituído o amálgama necessário e suficiente para compor uma cultura nacional” (SUZUKI, 2011, p. 94), o que é parcialmente alimentado por um deslumbramento “pela descoberta do Brasil para muito além do que a Ciência tinha dado conta de revelar nas poucas obras já escritas antes da institucionalização da Geografia e da universidade brasileiras” (SUZUKI, 2011, p. 96). Nesse sentido, citando Sérgio Cardoso (1995, p. 358-359), Júlio Suzuki observa o quanto “[...] as viagens revelam inequívoco parentesco com a atividade do olhar [...]”, marcadas que são pela “exploração da alteridade”, e tal foi possível explicitar em nossa análise que “[...] as viagens sejam sempre experiências de estranhamento [...]” (SUZUKI, 2011, p. 96). As viagens, experiências de estranhamento, operam um movimento de construção de si (identidade) e do outro (alteridade) a partir de um olhar que é tanto uma captura do real quanto um exercício divagante e criativo. No caso brasileiro, Suzuki (2011) reforça um movimento de descoberta do Brasil por Mario de Andrade, que recorta o mundo pelo olhar e compõe paisagens sinestésicas para além mesmo do que a ciência tinha realizado até então. Fernanda Amaro e Carlos Brandão (2014) escrevem o único artigo cujo foco está em falar das viagens por si. Nesse sentido, os autores afirmam que a compreendem a viagem por meio do “conceito mais simples encontrado, aquele que é a motivação de uma pessoa ao sair de sua casa, para se deslocar para outro lugar” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 49), baseado em Clifford (1997). Daí a sua busca por diferenciar os tipos de viagens e de viajantes. Afirmam que: “A oposição entre quem parte por uma obrigação imposta, por ter que ir, ter que partir, ter que deslocar-se, ter que viajar e quem vai pelo desejo-de-ir e quem parte pelo prazer-do-viajar deve ser a base de qualquer tentativa de qualificação das razões-do-ir” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 56). Desse modo, compreendem duas diferenças centrais entre os tipos de viajantes e de viagem: as viagens legitimadas (viagem de conquista, a viagem científica, a viagem por tradição cultural, as viagens por missionarismo, pregantismo, exílio, militância, obrigações diplomáticas) e as viagens diletantes (da errância, da vagabundagem, do boêmio, flanêur, do viageiro romântico e do nômade solitário, do anacoreta) a partir da interpretação, isto é, “enquanto uma se projeta para o diálogo entre o indivíduo e os espaços visitados; a outra se define pela não responsabilidade de se gerar conhecimento” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 52). Em outras palavras, enquanto uma cria relatos e constrói o que encontra em viagem como composição de olhares, a outra não se preocupa com isso. Dessa forma, buscam apresentar o viajante “individualista, diletante, vagamundo, que não atende nenhuma demanda externa social, mas que é político, ao passo em que sua ação vai de encontro ao sistema e repercute como uma ode à errância” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 50). Já a errância, por meio de Maffesoli (2001), é entendida como expressão de uma outra relação com o outro e com o mundo, que repousa na intuição da impermanência das coisas, dos seres e de seus relacionamentos, e busca gozar, no presente, o que é dado ver e que é dado viver no cotidiano, encontrando sentindo na sua própria fugacidade. Envolve um desejo de evasão, uma espécie de pulsão migratória. Pois “quando o viajante admite uma função ao ir, seu verbo que o descreve então, torna-se o precisar” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 51). Porém, é possível completar que, da mesma forma que busca o efêmero, o viajante errante não deixa vestígios. Difícil mesmo estudar seus rastros, portanto. Os autores acrescentam mais três palavras na descrição do que é a viagem: provisões, imprevistos e improvisos. Qualquer conhecimento prévio é considerado um tipo de provisão. E citam Onfray (2009, p. 26): “na viagem, descobre-se apenas aquilo de que se é portador. O vazio do viajante gera a vacuidade da viagem; sua riqueza produz a excelência dela”. Nesse sentido, os autores afirmam que “O próprio nome das cidades visto desde um mapa, já é um começo para incitar os devaneios dos lugares” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 50) e “um atlas é uma abertura à viagem da imaginação” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 51). Entretanto, apontam que “esta redução de sentido aos lugares, dos mapas, atlas e guias turísticos não é bastante ao viajante inteiro, apto à ‘totalidade do encontro’ (BUBER, 2001)” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 52). Assim, a busca pela totalidade do encontro na viagem é frustrada pela realidade fragmentada a que estamos sujeitos, de modo que “um ‘fragmento de realidade realiza de modo trágico nossa existência fragmentada, o drama de nosso estar-no-mundo e, no entanto, estranhados pelo mundo’ (ARGAN, 2005, p. 98). Na escala do corpo, o horizonte é o limite dos territórios. Até onde alcança o olhar” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 52). Para os autores, viajar é descobrir o que já foi descoberto, “é também poder contar este lugar por si mesmo. Apropriar dele pela escrita pessoal. Ditá-lo com suas impressões recriadas num relato é ter a possibilidade de vaguear de novo pelos lugares onde foram escritos” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 54). Em diálogo, compreendo que “a viagem é vida especializada. Em nenhum outro momento da vida a localização, o espaço, se torna tão fundamental. A viagem não necessariamente pressupõe deslocamento, apenas a relevância do espaço, seu conteúdo e seu contexto” (MEDEIROS, 2014, p. 136). Daí poder afirmar que a essência da viagem está na relevância que o espaço adquire. Que a abertura que a necessidade de contextualização (de se localizar no espaço) promove nos impulsiona a um olhar forçado para o diferente, a pequenas aventuras e a consciência da nossa vulnerabilidade e da importância de momentos de proteção. Eduardo Marandola Jr. (2014) questiona: “é possível ter a experiência da viagem no mundo contemporâneo?” (MARANDOLA JR., 2014, p. 53). O autor estabelece uma distinção entre viagem e deslocamento, em paralelo com a diferença entre viajante e turista. Para ele, o turista é um “personagem da modernidade ocidental, que se desloca por um circuito constituído para abrigá-lo e orientá-lo na visitação a sítios préestabelecidos, preparados para este fim e atentos às suas necessidades, demandas e desejos” (MARANDOLA JR., 2014, p. 53). Já o termo viajante se refere aquele que na “pré-modernidade era um aventureiro, um desterrado por excelência. Sem lar, ou há muito dele distante, sobrevivendo à margem, em direção a um objetivo, ou não, mas com os caminhos para chegar lá um tanto imprecisos” (MARANDOLA JR., 2014, p. 53). Daí, seu questionamento: é possível que ainda haja viagens “rumo ao desconhecido, à descoberta, às venturas e desventuras” (MARANDOLA JR., 2014, p. 54) numa sociedade intensamente conectada, cujos aplicativos e o celular fornecem instantaneamente localização, serviços, ajudas de todo tipo? Ainda nos perdemos? No tempo pré-moderno, a viagem implicava, portanto, um deslocar-se à margem, carregando consigo a alcunha de estrangeiro ou viajante, o que poderia ser visto da mesma maneira, sendo associada à ideia de aventureiro, nem sempre bem visto para quem os percebia a partir de seu lugar enraizado. As viagens, feitas pelos campos, envolviam acampar e estar exposto a um sem número de perigos, naturais ou não, inclusive da própria ausência de víveres, ou a qualquer imprevisto: o homem ficava à mercê da natureza e de sua sorte (MARANDOLA JR., 2014, p. 55). Para o autor, viajar na atualidade não tem mais relação com aventurar-se, perderse, com a exposição ao desconhecido. Carrega muito mais experiências de planejamento, de lazer e de “descobertas pré-determinadas” (MARANDOLA JR., 2014). Nesse sentido, o autor articula as duas formas distintas de viagem a categorias espaciais que contemplem os dois tipos de experiências. Ele diz: “na impossibilidade de experiências de lugares, temos viagens por paisagens, orientadas pelo sentir e pelo querer na sociedade contemporânea” (MARANDOLA JR., 2014, p. 56). Mas antes de continuar a visualizar essas distintas concepções do viajar, proponho na trilha que seguimos aqui um momento para refletir acerca das viagens de “descoberta”. As viagens de “descoberta” Para tensionar o sentido da descoberta, exponho agora o percurso de pesquisa realizado por Carvalho (2013), Mello (2013) e Silva e Almozara (2019). Retomo, portanto, a ideia do viajante que cria ao perceber, tanto a partir do olhar que captura o real quanto a partir do olhar divagante e criativo, que é reforçada por meio do texto de Márcia Carvalho (2013). A autora inicia seu artigo com uma indagação: é possível dizer que o mapa precede o território? Para ela, o mapa é mais do que uma representação passiva do território. Ela afirma que existem muitos tipos, que representam tanto lugares concretos quanto lugares imaginários e imaginados. “Houve neles a incorporação de imagens e lugares não existentes, assim como dos povos e das criaturas que se acreditavam reais – terrae incognitae da imaginação humana” (CARVALHO, 2013, p. 127). Márcia Carvalho (2013) demonstra como os relatos de viagem (périplos da literatura grega) contribuíram na criação da concepção de mundo e de suas representações. Das várias ilhas imaginárias analisadas – Atlântida, a de São Brandão, a do Brazil, a das Sete Cidades, Mayda, Groenlândia (Greenland), Terra Nova, Estotilândia, Antílha, Corvo entre outras –, algumas passaram a ter uma existência real com a descoberta de terras e ilhas reais com os descobrimentos e viagens mais assíduas. Independente disso, partes delas foram cartografadas em pelo menos três mapas: o de Albino de Canepa (1489)2, o de Petrus Roselli (1466) e a Carta Náutica de 1424 (CARVALHO, 2013, p. 131). Considero interessante mencionar que apenas no texto de Carvalho (2013) há a alusão explícita a mulheres viajantes. Em um dos três périplos analisados em seu artigo, o Périplo de Hanão (Hanno), suposta viagem de navegação ocorrida no século V a.C., a autora afirma que a “presença de mulheres na expedição exploratória pode nos indicar mais um modelo literário mítico do que um relato de navegação” (CARVALHO, 2013, p. 130). O artigo de Marisol de Mello (2013) aprofunda a discussão. A autora analisa o mapa como objeto cultural no período medieval da cartografia, por meio da análise do “Ebstorf Mappamundi em sua tecitura histórica, a partir de três conjuntos de narrativas que o constituem: relatos de viagens, lendas antigas e a Escritura Sagrada” (MELLO, 2013, p. 105). A autora reforça que “aprendemos a conhecer dominando. Nosso modelo de conhecimento é o do conquistador, o do descobridor, um modelo alexandrino. Fincamos estacas naquilo que é por nós dominado, (des)velado, (des)coberto: o desconhecido. Possuímos.” (MELLO, 2013, p. 110). Nesse sentido, o olhar que captura o real se mescla com o olhar que imagina o real, tornando a percepção do viajante que descobre o espaço uma formulação estrangeira de dominação das paisagens e povos. Ao descobrir, o viajante finca também suas estacas. Relatos de Viagem; literatura e ciência Aqui, fazemos mais uma pausa na condução da discussão para abordar os relatos de viagem. Oswaldo Bueno Amorim Filho (2010) sintetiza de forma ligeira a relação da geografia com os relatos de viagem. Ele afirma que “as viagens de explorações e aventuras têm gerado, ao longo da história humana, dois grandes conjuntos de literaturas complementares cujas fronteiras nem sempre são claras” (AMORIM FILHO, 2010, p. 81), a saber: 1) o romanesco, conjunto mais numeroso de obras que se utilizam das descrições geográficas de itinérarios, regiões, lugares e paisagens como contextos ou cenários; 2) o cientifíco, em que os itinérarios, regiões, lugares e paisagens constituem o próprio objetivo. Para o primeiro grupo, romanesco, havia a mescla de “informações fidedignas, resultantes das observações diretas e relatos elaborados com método e equilíbio, com impressões do insólito e do exótico, que valorizavam ainda mais o extraordinário” (AMORIM FILHO, 2010, p. 81). Imagem 3 – Alguns tipos de literaturas ligadas às viagens na Europa do Século XIX. Fonte: AMORIM FILHO, 2010. O conjunto das obras mais próximas do científico, para o autor, teriam atingido o apogeu com a expedições europeias do século XIX. “É certamente o momento histórico de maior prestígio para a já antiga atividade geográfica, que atinge o status de disciplina acadêmica, status este que, a partir da Europa, generaliza-se rapidamente por quase todo o mundo” (AMORIM FILHO, 2010, p. 83). Ele aborda ainda a importância que teve, para promoção e patrocínio dessas viagens, as sociedades geográficas, criadas sobretudo por países europeus a partir de 1821. Os viajantes patrocionados, portanto, ao retornarem apresentavam seus resultados, relatos orais e escritos, para as assembleias dessas sociedades, acumulando um acervo geográfico inestimável (AMORIM FILHO, 2010). Parte da ampliação de horizontes geográficos dos europeus levando ao que o autor chama de “século de ouro da geografia”, que repercutiu também na literatura. O autor, enfim, prossegue na sua discussão acerca da obra de Jules Vernes, precisamente onde nossos caminhos se bifurcam e retomo a linha de discussão que traçavámos sobre as viagens de “descoberta”. Pausa. Mais que uma descrição do outro, trata-se de uma tentativa de situar-se frente ao desconhecido, domesticando-o, tornando-o familiar, num processo ambíguo de atração pelo exótico e repulsa pelo que significa como uma cópia imperfeita de si mesma. Esta ação, iniciada na Antiguidade pelos gregos e romanos com o intuito de provar, segundo Said, a sua superioridade, é explicada como um confronto cognitivo. (MELLO, 2013, p. 115) Marisol de Mello (2013) cita Said (1990) para contribuir na discussão, uma vez que ele elabora a forma como a pulsão da Europa pelo oriental, no ato de conhecimento, o cria ou o inventa. O mesmo poderia ser dito da América? E, mais ainda, da América do Sul? O confronto cognitivo que vive o viajante seria o próprio processo de estranhamento que marca a experiência da viagem? Nesse sentido, podemos dizer que é mister um olhar desde as contribuições de Said para repensar a própria relação da geografia com as viagens de “descobrimento”. Assim, explorando as tensões e composições daquele chamado “século de ouro da geografia”. Reflexão essa que atravessa necessariamente a própria noção da viagem. Seguimos. Thaís da Silva e Paula Almozara (2019) apresentam uma contribuição a essa discussão a partir do uso da autoetnografia como estrutura metodológica interdisciplinar na qual um tema se desenvolve a partir de questões individuais e coletivas que se interrelacionam na busca pela identidade brasileira, especialmente considerando os processos e os sujeitos que compõe as caboclas-brabas. As caboclas-brabas são “mulheres sobreviventes da resistência indígena no Nordeste, conhecida como Confederação Cariri ou Guerras dos Bárbaros (1683-1725)” (SILVA; ALMOZARA, 2019, p. 63), que foram “pegas pelo colonizador ‘a dente de cachorro e casco de cavalo’”. Elas completam que: “A sua brabeza é, na verdade, resistência, é a luta por um corpo e alma que sempre foi seu, mas que agora é violentado. Essa naturalização da violência vem sendo construída desde a chegada dos colonizadores no território brasileiro” (SILVA; ALMOZARA, 2019, p. 63). Thaís da Silva e Paula Almozara (2019, p. 61) sintetizam o papel dos colonizadores, a violência que submeteram essas mulheres e essa terra, por meio de uma citação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2015, p. 11), em que ele diz: “nenhuma história, nenhuma sociologia consegue disfarçar o paternalismo complacente dessa tese, que reduz os assim chamados ‘outros’ a ficções da imaginação ocidental sem qualquer voz no capítulo”. Nesse sentido, apresentam a autoetnografia como “uma estruturação narrativa, um recurso de soma de vozes dissonantes e até dissidentes. Uma ferramenta que dá nova potência e subsidia as falas de minorias marginalizadas em um lugar em que o ‘olhar de fora’ costuma ‘representar’ ou ‘inventar’ o outro (alteridade)” (SILVA; ALMOZARA, 2019, p. 60). Nessa busca pela devolução de “uma imagem de nós mesmos na qual não nos reconhecemos”, as autoras se alinham com pensadores das minorias, como Daniel Munduruku: Um dos elementos na educação indígena do povo Munduruku está em entender as ausências habitadas no corpo. “Essas ausências precisam ser preenchidas com sentidos escritos por nós. Aprender é, então, conhecer o que pode preencher os vazios que moram em nosso corpo. É fazer uso dos sentidos, todos eles” (MUNDURUKU, 2011, p. 54-55). Essa relação de ausências do corpo de que fala Daniel Munduruku, sobre a educação indígena, dialoga com as ausências inscritas em nossa identidade. Para preencher essas ausências, as autoras buscam acessar, por meio da autoetnografia, as memórias subterrâneas dessas histórias, dessas vivências, dessas mulheres. A viagem aparece, dessa forma, como um exercício de estranhamento (confronto cognitivo) que no ato de descobrir o espaço e aqueles que o habitam cria, tanto a partir do que vê/sente quanto a partir do usa da imaginação. Esse movimento é constatado desde os primeiros relatos de viagem ocidentais escritos, elaborados pelos gregos – que eram tanto exercício de um olhar analítica quanto imaginativo, num processo que se retroalimentava, como visto a partir dos mapas analisados. Em contraponto às visões ficcionais elaboradas pelos viajantes, pelos estrangeiros, vemos a possibilidade de uma escavação das memórias subterrâneas, das gentes dos lugares, que buscam falar de si e se compor nas ausências que constatam. Nesse sentido, retomo a constatação anterior acerca da necessidade de um olhar desde aqui para repensar a própria relação da geografia com as viagens de “descobrimento”, explorando as tensões e composições daquele chamado “século de ouro da geografia”, numa reflexão que atravessa necessariamente a própria noção da viagem. Eduardo Marandola Jr. (2014), já mencionado no texto, estabeleu uma diferenciação entre as viagens por paisagens e por lugares, legando esta última aos viajente pré-modernos. Ele diz que “a experiência de lugar é apontada como um dos motivos frequentes quando se quer/ deseja viajar. Viajar para conhecer novos lugares, outras culturas, para ver o diferente, o não habitual” (MARANDOLA JR., 2014, p. 57). O autor questiona: o desejo de sentir o lugar e a experiência do outro seria mesmo possível? Pois, Para sentir o lugar tal como o lugar é, seria necessário recorrer à experiência do insider? Ou seria necessário se desfazer da teia do turismo, que pega todo e qualquer estrangeiro como moscas? Mas, afinal, a teia do turismo não faz parte do lugar? A sensação que temos ao visitar os lugares, atualmente, é a de que, mesmo que não se assuma a condução de uma agência ou agente, nem que se deixe de ler os folhetos e os guias, escapar desta teia e acessar os lugares tal como uma pessoa do lugar nos é vedado completamente” (MARANDOLA JR., 2014, p. 57). Mas será que algum dia o acesso ao lugar tal qual uma pessoa do lugar já ocorreu? Essa impossibilidade, portanto, marca a necessidade da viagens por paisagens. a paisagem, ao invés de uma forma de ver criada a partir do ocidente, uma maneira própria de conceber a relação sociedade-natureza, à distância, é uma forma de ser invadido pelo mundo, pois é uma disposição original, ou seja, “[...] corresponde à disposição original do ser”, tornando a paisagem a fusão e comunicação original do homem com o mundo (BESSE, 2006, p.79). Isso significa que a paisagem, ao invés de uma totalização ou uma sistematização, à maneira de uma ecologia de paisagem, é um horizonte de sentir, que só tem significância na escala do lugar. Assim nasce um lugar-paisagem, que é a própria referência da circunstancialidade deste sentir, o que leva à conclusão de que a paisagem é invisível por essência, e não visível por excelência, como nos dizem nossos dicionários. Ao invés do facilmente apreensível, a paisagem precisa ser experienciada para poder ser sentida (MARANDOLA JR., 2014, p. 58-59). A viagem, dessa forma, pode ser entendida como fundação e refundação da conexão com a geograficidade expressa pela paisagem, uma redescoberta de sentido, uma exposição. Marandola Jr. (2014) sintetiza, por fim, essa relação ao declarar que: No fundamento, no sentido mais originário, a paisagem expressa sentidos profundos de geograficidade que, pela sua própria manifestação e presentificação (momento privilegiado do viajar), permitem ao viajante experiências do sentir e do querer que nos conectam, ao mesmo tempo, à Terra, como ente que nos alça à nossa condição humano-terrestre, e com os paisanos, aqueles que vivem a paisagem como lugar. No primeiro caso, o vislumbre ou redescoberta do sentido originário da condição terrestre nos assoma via sentidos; no segundo caso, a empatia nos permite partilhar a experiência, enquanto querer, e nos tornamos um pouco eles (MARANDOLA JR., 2014, p. 61). Assim, chegamos a um esboço de fim de percurso do caminhar que não se conclui, mas se desdobra. A viagem aparece por fim como forma de conexão e envolvimento do corpo pelos sentidos profundos expressados pela paisagem, mas também como impossibilidade de acesso à experiência da vida das gentes do lugar, com as quais, no entanto, é possível partilhar experiências e, assim, aprender com – diferente de falar por ou escrever sobre. Nesse sentido, vislumbro que A viagem é deslocamento incontido do ser que se movimenta e se abre nesse processo. Quem se contém em si não viaja. [...] O que se abre na porosidade do corpo em movimento é transformado, o espaço é entranhado no ser. Daí vem o desejo pela aventura e o prazer pela estrada percorrida. Vem de uma insatisfação em se conter em si, mas também da possibilidade de se conter em outro lugar (MEDEIROS, 2017, p. 120). A viagem não é mero movimento no espaço - deslocamento. Ela não é feita sem consequências por quem a empreende, porque ela entranha. “A viagem é um movimento incontido que nodula lugares na paisagem por meio da experienciação íntima que só a vulnerabilidade do corpo permite” (MEDEIROS, 2017, p. 122). Nodula lugares que não se confudem com os lugares das gentes do lugar. A VIAGEM COMO EXERCÍCIO DO CONHECER Carlos Galvão Filho (2019) realiza um percurso poético por entre os conceitos da Geografia Humanista em um ensaio sobre a viagem. Ele acende trilhas possíveis no viajar, como o cultivo da imaginação do encontro: Não me lembro se alguma vez, antes da viagem ao Cardoso, tinha imaginado caminhar num mangue, pelo menos nunca fora uma imaginação alimentada. No entanto, caminhar no mangue despertou referências íntimas, mudando-as dos lugares que até então coupavam em mim, arrebentou os limites do mundo que eu era até então, dando maior profundidade à existência. Com intensidades distintas, onça e mangue mexem com minha condição terrestre (GALVÃO FILHO, 2019, p. 58). Ele fala de uma recusa ao esquecimento do pulsar da realidade geográfica e da busca pelo encantar-se com o mundo. Assim, descreve sua experiência de viagem pela paisagem do mangue, de ser invadido pelos sentidos expressos nessa conexão. O autor diz que: No mangue, encontrei um vazio lamacento, preenchido de terra e de água misturadas pelas marés e esquentadas pelo sol forte, um vazio cheio da vivacidade dos caranquejos. Experiência que, desde que fora escrita, emerge como necessidade findalmental: escrever sobre o mangue tornou-se vital, sinto que é preciso movimentar essa desmesura geográfica que ele deixou em mim (GALVÃO FILHO, 2019, p. 60). Para ele, trata-se de “cultivar experiências marcantes que continuam a originar o mundo que somos” (GALVÃO FILHO, 2019, p. 64). Viajar poderia ser experienciado, assim, como “arte de tecer mundos, de urdir vínculos e sentimentos geográficos” (GALVÃO FILHO, 2019, p.78). Sentimos a viagem como uma artesania de encontros que mobiliza o cuidado desde a imaginação do que estar por vir até mesmo na urdidura e preparo de sentimentos geográficos. Em outras palavras, menos ricas, visualizo aqui a possibilidade da viagem enquanto exercício de uma conexão fundada e refundada com a paisagem (e com o mundo) que passa pelo cultivo dos sentimentos, como estranhamento, vertigem, sedução, alívio, abismamento, libido. Nesse sentido, a viagem deixa em mim. É assim que a praia permanece no corpo mesmo após a viagem, transgredindo a paisagem de mar e se revelando mesmo no urbano seco distante do litoral. A praia permanece, mesmo quando a paisagem já é outra. Corpo curtido de praia é testemunho da penetração do mundo na carne. O espaço curte a carne humana. Erode e intemperiza, soergue e escava; faz brotar água e ondular pele, atrita e parte e, por fim, quebra. Dizer que existe uma vulnerabilidade profunda na pele, através da qual o espaço se entranha, não é metafórico. É uma descrição da realidade corporificada humana crua. As emoções nunca serão meras ficções. São transformações físicas, alterações da espacialidade sensível em que existimos. Assim também adentra e transforma o corpo estar em imersão ou interações com outros espaços, não cotidianos. O significado da viagem nunca foi tão violento (MEDEIROS, 2017, p.120). A escrita se coloca como possibilidade de expressão do entranhamento da paisagem oportunizado pelo cultivo da experiência de viagem, mas existem outros. Nesse sentido, o exercício visualizado, de cultivo de uma conexão fundada e refundada com a paisagem, de viagem, é exercido como possibilidade de pesquisa e de aprendizado. Justamente por operar esse estranhamento que abre a possibilidade de criar, a viagem é trazida para a dimensão do ensino de geografia. De que formas? Antônio Queiroz Filho (2012) o faz por meio de uma atividade realizada com alunos do curso de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), cujo propósito foi a “produção de relatos de viagem a partir da ideia de pensamento menor discutida por Deleuze e Guattari, aproximando Geografia e Arte como forma de criar possibilidades outras de explicar o mundo: aproximando afetividade de efetividade política” (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 104). Nesse sentido, ele explora o olhar imaginativo do viajante em busca do processo criativo – o que autor denomina de “desvio do olhar” (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 107) - na produção de relatos da viagem desenvolvida com os alunos do curso de Geografia, na qual saíram de Vitória (ES) rumo a Cumuruxatiba (BA). Sobre a produção desses relatos de viagem, informa que: Resolvemos então rasurar a ideia de relato como cópia, descrição, representação. Nossos relatos assumiriam a própria viagem como exploração e descoberta, antes e depois de sua produção, assim como são as crianças quando chegam ao parque de diversões. Quando olham para a roda-gigante. Corpos que se agitam no clique da trava. Começa a jornada (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 107). E ainda acrescenta que são “relatos feitos de memórias, rastros, pegadas, derivas, numa geografa do corpo que percorreu por um determinado lugar e nele se intensificou: memória e corpo como constituintes das geografas que fazemos dos lugares. Essa intensidade é o que o relato, nessa perspectiva, buscou dar visibilidade” (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 107). Assim, foram produzidos três relatos da viagem: 1) aproximações feitas a partir da verossimilhança de forma e temática daquilo que foi visto e capturado pelos alunos e os artistas (pintores) Debret e Tarsila; 2) brincadeiras com a escala de captura das imagens, sobrepondo o olhar distante e horizontal da imagem de satélite pelas fotografas tiradas no plano horizontal; 3) criação de poesias como diretriz e aproximação do corpo e da palavra. Aproximando-se desse mesmo sentido, do uso da viagem como recurso de ensino, temos a atividade realizada por Ivânia Marques (2012) – o projeto Ecogeográfico. O projeto busca “levar o morador à experiência de um viajante e refletir sobre as imagens que reverberam desta experimentação do espaço. Convidamos e convidaremos grupos da comunidade escolar a entrar em relação com o espaço através da produção de imagens” (MARQUES, 2012, p. 55). Interessantíssimo nesse projeto é que os viajantes são os moradores do lugar, que buscam experimentar o espaço como em viagem e produzir/criar um relato a partir da fotografia. Exercitar o estranhamento, descobrir a cidade – o uso intencional do olhar que vê/olhar que divaga e imagina. A transformação do espaço em paisagem a partir da descrição em tonalidades vivas, realizado por Mario de Andrade e discutido por Julio Suzuki (2011), já apresentada, é aqui confrontada com o exercício de um estranhamento ao lugar de morada. Lugar que, para a autora, “diz respeito ao dinamismo e à possibilidade de melhor compreender a complexidade do mundo. Trata-se de olhar e perceber mudanças e transformações em diferentes momentos, sob diferentes interesses e condições sociais, culturais, geográficas... Que lugar é esse que vejo e desconheço?” (MARQUES, 2012, p. 55). Atenção: que lugar é esse que vejo e desconheço? Ivânia Marques (2012, p. 57) reforça que deseja promover um distanciamento e uma recusa das práticas que tornam os alunos reféns de uma única forma de imaginar o espaço, aquela imaginada pelo estado, e eu acrescentaria: aquela das imagens prontas dos materiais didáticos, que desconhecem as nossas comunidades e os locais onde (com)vivemos. O que parece demonstrar a busca, já observada anteriormente por meio de citação do Daniel Munduruku (2011), pelas ausências que constituem. Redescobrir o lugar a partir do estranhamento de um viajante e aí preencher as ausências com novas criações, novos relatos - “mais do que descobrir, a coragem de esquecer-se das descobertas”, expõe a autora (MARQUES, 2012, p. 58) citando Godoy (2008, p. 286). Nesse sentido, compreender a viagem enquanto uma artesania de encontros, tal qual uma “arte de tecer mundos, de urdir vínculos e sentimentos geográficos” (GALVÃO FILHO, 2019, p.78) em uma relação de partilha e aprendizado com os paisanos passa pela coragem de esquecer as descobertas... Uma forma intencional de viajar. QUE É VIAGEM? Busco agora elaborar uma síntese do que foi apresentado, retomando as diferentes expressões do viajar presentes no quadro simples que compus anteriormente. A viagem é uma relação entre o inusitado, a descoberta e a solidão que se realiza na exploração e descoberta do mundo por meio de experiências de estranhamento ou talvez de experimentações do espaço. Ela acontece por diferentes motivos ou impulsos de deslocamento, sendo que este devem ser necessariamente entendidos a partir da diferenciação entre os de necessidade (ter que ir/ser forçado a ir) e os de desejo (querer ir). A composição da viagem envolve provisões (qualquer conhecimento anterior a viagem) imprevistos e improvisos. Enquanto desejo de partir, a viagem pode se configurar como uma ode à errância, fruto de um desejo de evasão ou de uma pulsão migratória. O processo de descobrir por si mesmo que o viajante empreende é também aquele que de composição de si (identidade) e do outro (alteridade). Descobrir pode ser considerado uma forma de dominar, nesse sentido, quando o desconhecido desvelado (ou criado) é composto mais pelo olhar estrangeiro do que pela contribuição dos moradores do lugar. O viajante compõe com seus olhares, tanto os de leitura do real quanto os de devaneio e imaginação. Nesse sentido, a descrição que transforma espaço em paisagens e lugares apenas por meio do “olhar de fora” costuma “representar” ou “inventar” o outro (alteridade). Em outra direção, a viagem pode ser entendida ainda como fundação e refundação da conexão com a geograficidade expressa pela paisagem, uma redescoberta de sentido, uma exposição. Assim, a viagem aparece como forma de conexão e envolvimento do corpo pelos sentidos profundos expressados pela paisagem, mas também como impossibilidade de acesso à experiência da vida das gentes do lugar, com as quais, no entanto, é possível partilhar experiências e, assim, aprender com – diferente de falar por ou escrever sobre. A viagem nodula lugares na paisagem por meio da experienciação íntima que só a vulnerabilidade do corpo permite. Nodula lugares que não se confudem com os lugares das gentes do lugar. A viagem se revela como forma de cultivar experiências marcantes que continuam a originar o mundo que somos, como uma arte de tecer mundos, vínculos e sentimentos. Sentimos a viagem como uma artesania de encontros que mobiliza o cuidado desde a imaginação do que estar por vir até mesmo na urdidura e preparo de sentimentos geográficos. Testemunha dessa forma de interação e cuidado, a viagem permite a escrita como possibilidade de expressão do entranhamento da paisagem. Mas é preciso ir para uma direção diferente daquela já posta pela tradição dos relatos de viagem na geografia. Fugir do “século de ouro da ciência geográfica” em direção a um século de terra, água limpa, projetos coletivos, resistência e artesiana de sentimentos e cuidados do corpo rumo a terra. É preciso então rasurar os relatos de viagem. REFERÊNCIAS AMARO, Fernanda Ribeiro; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os verbos e nomes do viajar: por uma geografia do deslocamento. Revista Geograficidade, v.4, n.2, Inverno 2014. Disponível em: https://periodicos.uff.br/geograficidade/article/view/12899. Acesso em: 12 de mar. 2021. AMORIM FILHO, Oswaldo Bueno. 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Acesso em: 12 de mar. 2021.  Realize Eventos Científicos e Editora Ltda Portal de Eventos Início Revistas ANAIS de Eventos Publique Conosco E-books  Blog Contato Início / Artigo: INTRODUÇÃO AO TEMA DA VIAGEM NA GEOGRAFIA HUMANISTA Artigo Anais do XIV ENANPEGE INTRODUÇÃO AO TEMA DA VIAGEM NA GEOGRAFIA HUMANISTA  ANAIS de Evento ALINE LÚCIA NOGUEIRA MEDEIROS  Palavra-chaves: DESCRIÇÃO, VIAJAR, ESTRANHAMENTO, RELATO, ALTERIDADE UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS  Trabalhos  GT 46: GEOGRAFIA, LITERATURA E ARTE: POR UMA EDUCAÇÃO GEOLITERÁRIA EM TEMPOS DESAFIADORES ISSN: 2175-8875  Publicado em 14 de junho de 2021 Amei! Autores Sugestão de citação: 0 MEDEIROS, Aline Lúcia Nogueira. Introdução ao tema da Compartilhe: viagem na geografia humanista. Anais do XIV        ENANPEGE... Campina Grande: Realize Editora, 2021. Disponível em: <https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/78259>. 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