INTRODUÇÃO AO TEMA DA VIAGEM NA GEOGRAFIA
HUMANISTA
Aline Lúcia Nogueira Medeiros1
RESUMO
Que é viagem? Nesse artigo, apresento as contribuições da Geografia Humanista sobre o tema.
Busco evidenciar as formas como a viagem aparece e suas principais referências. Para tanto,
realizo uma pesquisa bibliográfica sobre o tema no acervo da Revista Geograficidade, do Grupo
de Pesquisa em Geografia Humanista Cultural, em um primeiro momento. Busco ainda identificar
as referências bibliográficas dos artigos e livros encontrados nessa primeira busca. O viajante
compõe com seus olhares, tanto os de leitura do real quanto os de devaneio e imaginação. Nesse
sentido, a descrição que transforma espaço em paisagens e lugares apenas por meio do “olhar de
fora” costuma “representar” ou “inventar” o outro (alteridade). Em outra direção, a viagem pode
ser entendida ainda como fundação e refundação da conexão com a geograficidade expressa pela
paisagem, uma redescoberta de sentido, uma exposição. Assim, a viagem aparece como forma de
conexão e envolvimento do corpo pelos sentidos profundos expressados pela paisagem, mas
também como impossibilidade de acesso à experiência da vida das gentes do lugar, com as quais,
no entanto, é possível partilhar experiências e, assim, aprender com – diferente de falar por ou
escrever sobre. A viagem nodula lugares na paisagem por meio da experienciação íntima que só
a vulnerabilidade do corpo permite. Nodula lugares que não se confudem com os lugares das
gentes do lugar. A viagem se revela como forma de cultivar experiências marcantes que
continuam a originar o mundo que somos, como uma arte de tecer mundos, vínculos e
sentimentos. É preciso então rasurar os relatos de viagem.
Palavras-chave: descrever; viajar, estranhamento, relato de viagem, alteridade.
RESUMEN
¿Qué es viajar? En este artículo presento los aportes de la Geografía Humanista sobre el tema.
Busco destacar las formas en las que se presenta el viaje y sus principales referentes. Para ello
realizo una búsqueda bibliográfica sobre el tema en la colección de la Revista Geograficidade,
del Grupo de Investigación en Geografía Cultural Humanista, en un principio. También busco
identificar las referencias bibliográficas de artículos y libros encontrados en esta primera
búsqueda. El viajero compone con sus ojos, tanto los de leer la realidad como los de soñar
despierto e imaginación. En este sentido, la descripción que transforma el espacio en paisajes y
lugares sólo a través de una “mirada exterior” suele “representar” o “inventar” al otro (alteridad).
En otro sentido, el viaje también puede entenderse como fundamento y refundación de la conexión
con la geografía expresada por el paisaje, un redescubrimiento de sentido, una exposición. Así, el
viaje aparece como una forma de conectar e involucrar al cuerpo a través de los significados
profundos que expresa el paisaje, pero también como la imposibilidad de acceder a la experiencia
de las personas del lugar, con quienes, sin embargo, es posible compartir experiencia. y, por lo
tanto, aprender de - diferente de hablar o escribir sobre. El viaje nodula lugares en el paisaje a
través de la experiencia íntima que solo permite la vulnerabilidad del cuerpo. Nodula lugares que
no se confunden con los lugares de la gente local. El viaje se revela como una forma de cultivar
experiencias notables que siguen dando lugar al mundo que somos, como un arte de tejer mundos,
vínculos y sentimientos. Entonces es necesario borrar los informes de viaje.
Palabras clave: describir; viaje, distanciamiento, informe de viaje, alteridade.
1
Graduada e Mestra em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, membra do Núcleo
de Pesquisa em Geografia Humanista (NPGEOH-UFMG),
[email protected].
INTRODUÇÃO
Que é viagem? Nesse artigo, apresento as contribuições da Geografia Humanista
sobre o tema. Busco evidenciar as formas como a viagem aparece e suas principais
referências. Para tanto, realizo uma pesquisa bibliográfica sobre o tema no acervo da
Revista Geograficidade, do Grupo de Pesquisa em Geografia Humanista Cultural, em um
primeiro momento. Busco ainda identificar as referências bibliográficas dos artigos e
livros encontrados nessa primeira busca.
A viagem se descortina como uma relação entre o inusitado, a descoberta e a
solidão que se realiza na exploração e descoberta do mundo por meio de experiências de
estranhamento ou talvez de experimentações do espaço. Ela acontece por diferentes
motivos ou impulsos de deslocamento, sendo que este devem ser necessariamente
entendidos a partir da diferenciação entre os de necessidade (ter que ir/ser forçado a ir) e
os de desejo (querer ir). A composição da viagem envolve provisões (qualquer
conhecimento anterior a viagem) imprevistos e improvisos. Enquanto desejo de partir, a
viagem pode se configurar como uma ode à errância, fruto de um desejo de evasão ou de
uma pulsão migratória.
O processo de descobrir por si mesmo que o viajante empreende é também aquele
que de composição de si (identidade) e do outro (alteridade). Descobrir pode ser
considerado uma forma de dominar, nesse sentido, quando o desconhecido desvelado (ou
criado) é composto mais pelo olhar estrangeiro do que pela contribuição dos moradores
do lugar. O viajante compõe com seus olhares, tanto os de leitura do real quanto os de
devaneio e imaginação. Nesse sentido, a descrição que transforma espaço em paisagens
e lugares apenas por meio do “olhar de fora” costuma “representar” ou “inventar” o outro
(alteridade). É preciso então rasurar os relatos de viagem. Exercitar o estranhamento, ver
e desconhecer. Entender as ausências habitadas do corpo, das paisagens e dos lugares.
Experimentar o olhar divagante e imaginativo do viajante na criação de novas
composições. A viagem pode ser entendida, portanto, como um exercício do conhecer.
METODOLOGIA
A pesquisa bibliográfica aconteceu a partir da procura de palavras-chave (viajar,
viajante, viajantes, viagem, viagens) na ferramenta de busca do site da Revista
Geograficidade. Foram encontradas 10 obras, sendo que 4 eram resenhas. A segunda parte
da pesquisa ocorreu por meio da pesquisa nas referências bibliográficas de cada artigo
por obras que mencionassem alguma das palavras-chave já mencionadas aqui. Foram
elencadas outras 7 obras.
Imagem 1 – Pesquisa bibliografica na Revista Geograficidade (artigos e suas referências)
Imagem 2 – Pesquisa bibliografica na Revista Geograficidade (resenhas e suas referências)
A terceira parte da pesquisa consistiu na busca das palavras-chave mencionadas
anteriormente nas referências bibliográficas dos livros resenhados. Foi possível realizar
a pesquisa em apenas 2 dos 4 livros – outros 2 não foram acessados ainda. A partir disso,
surgiram mais 8 obras.
As obras foram esquemetizadas e apresentadas aqui (Imagem 1; Imagem 2).
Embora não tenha sido possível realizar a leitura de todas elas, analisei primeiramente os
artigos encontrados na Revista Geograficidade. Após a leitura, realizei um fichamento
com destaque para as diferentes concepções de viagem que foram surgindo (reunidas num
agrupamento simples); e uma esquematização dos sentidos para viagem observados,
realizada manualmente – caneta riscando o papel. Destaquei algumas confluencias dessas
produções e aprofundei a partir da leitura de textos chaves que contruibuíam com o tema.
Nesse sentido, foi partindo da discussão apresentada nos artigos que articulei com textos
chave complementares encontrados no levantamento bibliográfico e, ainda, articulei com
minha trajetória de pesquisa no tema. A ordenação inicial da leitura dos artigos, roteiro
de leituras, foi desanrrajada no caminhar, fruto de um movimento próprio de encontros.
Dessa forma, aparecem relações que inicialmente não estavam visualizadas. Esse texto
expressa os sentidos encontrados para a viagem e o que emergiu a partir daí.
VIAJAR, DESCOBRIR, CRIAR
A viagem aparece, em um primeiro momento, como relação entre o inusitado, a
descoberta e a solidão (SUZUKI, 2011), pois “mesmo que acompanhado por outros, o
sujeito constrói, com base em seus referenciais, o vínculo com o novo que captura do
mundo pelo qual trafega, em um movimento de alteridade e de identidade constante”
(SUZUKI, 2011, p. 90-91). Nesse sentido, é a descrição que “transforma o espaço em
paisagem, capturada pelo olhar que recorta o mundo” (SUZUKI, 2011, p. 91).
O autor, Júlio Suzuki (2011), busca compreender o significado da descrição do
espaço na reconstrução da viagem empreendida em “O Turista Aprendiz”, livro de
crônicas sobre viagens de Mario de Andrade (1983). Mario de Andrade trata de duas
viagens, sendo a primeira “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por
Marajó até dizer chega” (SUZUKI, 2011, p. 91). Essa viagem aconteceu no período de
“7 de maio de 1927, quando Mário de Andrade parte, de São Paulo em direção ao Rio de
Janeiro, para embarcar no vapor Pedro I, até 15 de agosto de 1927” (SUZUKI, 2011, p.
91). Já a segunda “refere-se à viagem ao Nordeste do Brasil de 27 de novembro de 1928,
quando parte de São Paulo, até fevereiro de 1929” (SUZUKI, 2011, p. 91).
Júlio Suzuki (2011) apresenta uma distinção entre duas formas do olhar, que
encontra na obra de Mário de Andrade analisada, sendo elas: o olhar que permite a captura
do real e o olhar divagante e imaginativo. Reforça a ideia de que os olhares promovem
recortes do mundo e da descrição como recurso que transforma o espaço em paisagem,
que o pinta com tintas sinestésicas. “São tintas que ultrapassam os sentidos da visão; dãonos o cheiro, o som. É uma descrição extremamente sinestésica” (SUZUKI, 2011, p. 94).
Esses olhares “que permite[m] ver tantos elementos é o de um estrangeiro em sua própria
terra” (SUZUKI, 2011, p. 94). Mas é “como se o estrangeiro estivesse no interior da
nação, cujos fundamentos culturais não tivessem constituído o amálgama necessário e
suficiente para compor uma cultura nacional” (SUZUKI, 2011, p. 94), o que é
parcialmente alimentado por um deslumbramento “pela descoberta do Brasil para muito
além do que a Ciência tinha dado conta de revelar nas poucas obras já escritas antes da
institucionalização da Geografia e da universidade brasileiras” (SUZUKI, 2011, p. 96).
Nesse sentido, citando Sérgio Cardoso (1995, p. 358-359), Júlio Suzuki observa
o quanto “[...] as viagens revelam inequívoco parentesco com a atividade do olhar [...]”,
marcadas que são pela “exploração da alteridade”, e tal foi possível explicitar em nossa
análise que “[...] as viagens sejam sempre experiências de estranhamento [...]” (SUZUKI,
2011, p. 96). As viagens, experiências de estranhamento, operam um movimento de
construção de si (identidade) e do outro (alteridade) a partir de um olhar que é tanto uma
captura do real quanto um exercício divagante e criativo. No caso brasileiro, Suzuki
(2011) reforça um movimento de descoberta do Brasil por Mario de Andrade, que recorta
o mundo pelo olhar e compõe paisagens sinestésicas para além mesmo do que a ciência
tinha realizado até então.
Fernanda Amaro e Carlos Brandão (2014) escrevem o único artigo cujo foco está
em falar das viagens por si. Nesse sentido, os autores afirmam que a compreendem a
viagem por meio do “conceito mais simples encontrado, aquele que é a motivação de uma
pessoa ao sair de sua casa, para se deslocar para outro lugar” (AMARO; BRANDÃO,
2014, p. 49), baseado em Clifford (1997). Daí a sua busca por diferenciar os tipos de
viagens e de viajantes. Afirmam que: “A oposição entre quem parte por uma obrigação
imposta, por ter que ir, ter que partir, ter que deslocar-se, ter que viajar e quem vai pelo
desejo-de-ir e quem parte pelo prazer-do-viajar deve ser a base de qualquer tentativa de
qualificação das razões-do-ir” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 56).
Desse modo, compreendem duas diferenças centrais entre os tipos de viajantes e
de viagem: as viagens legitimadas (viagem de conquista, a viagem científica, a viagem
por tradição cultural, as viagens por missionarismo, pregantismo, exílio, militância,
obrigações diplomáticas) e as viagens diletantes (da errância, da vagabundagem, do
boêmio, flanêur, do viageiro romântico e do nômade solitário, do anacoreta) a partir da
interpretação, isto é, “enquanto uma se projeta para o diálogo entre o indivíduo e os
espaços visitados; a outra se define pela não responsabilidade de se gerar conhecimento”
(AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 52).
Em outras palavras, enquanto uma cria relatos e constrói o que encontra em
viagem como composição de olhares, a outra não se preocupa com isso. Dessa forma,
buscam apresentar o viajante “individualista, diletante, vagamundo, que não atende
nenhuma demanda externa social, mas que é político, ao passo em que sua ação vai de
encontro ao sistema e repercute como uma ode à errância” (AMARO; BRANDÃO, 2014,
p. 50).
Já a errância, por meio de Maffesoli (2001), é entendida como expressão de uma
outra relação com o outro e com o mundo, que repousa na intuição da impermanência das
coisas, dos seres e de seus relacionamentos, e busca gozar, no presente, o que é dado ver
e que é dado viver no cotidiano, encontrando sentindo na sua própria fugacidade. Envolve
um desejo de evasão, uma espécie de pulsão migratória. Pois “quando o viajante admite
uma função ao ir, seu verbo que o descreve então, torna-se o precisar” (AMARO;
BRANDÃO, 2014, p. 51). Porém, é possível completar que, da mesma forma que busca
o efêmero, o viajante errante não deixa vestígios. Difícil mesmo estudar seus rastros,
portanto.
Os autores acrescentam mais três palavras na descrição do que é a viagem:
provisões, imprevistos e improvisos. Qualquer conhecimento prévio é considerado um
tipo de provisão. E citam Onfray (2009, p. 26): “na viagem, descobre-se apenas aquilo de
que se é portador. O vazio do viajante gera a vacuidade da viagem; sua riqueza produz a
excelência dela”. Nesse sentido, os autores afirmam que “O próprio nome das cidades
visto desde um mapa, já é um começo para incitar os devaneios dos lugares” (AMARO;
BRANDÃO, 2014, p. 50) e “um atlas é uma abertura à viagem da imaginação” (AMARO;
BRANDÃO, 2014, p. 51). Entretanto, apontam que “esta redução de sentido aos lugares,
dos mapas, atlas e guias turísticos não é bastante ao viajante inteiro, apto à ‘totalidade do
encontro’ (BUBER, 2001)” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 52). Assim, a busca pela
totalidade do encontro na viagem é frustrada pela realidade fragmentada a que estamos
sujeitos, de modo que “um ‘fragmento de realidade realiza de modo trágico nossa
existência fragmentada, o drama de nosso estar-no-mundo e, no entanto, estranhados pelo
mundo’ (ARGAN, 2005, p. 98). Na escala do corpo, o horizonte é o limite dos territórios.
Até onde alcança o olhar” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 52).
Para os autores, viajar é descobrir o que já foi descoberto, “é também poder contar
este lugar por si mesmo. Apropriar dele pela escrita pessoal. Ditá-lo com suas impressões
recriadas num relato é ter a possibilidade de vaguear de novo pelos lugares onde foram
escritos” (AMARO; BRANDÃO, 2014, p. 54).
Em diálogo, compreendo que “a viagem é vida especializada. Em nenhum outro
momento da vida a localização, o espaço, se torna tão fundamental. A viagem não
necessariamente pressupõe deslocamento, apenas a relevância do espaço, seu conteúdo e
seu contexto” (MEDEIROS, 2014, p. 136). Daí poder afirmar que a essência da viagem
está na relevância que o espaço adquire. Que a abertura que a necessidade de
contextualização (de se localizar no espaço) promove nos impulsiona a um olhar forçado
para o diferente, a pequenas aventuras e a consciência da nossa vulnerabilidade e da
importância de momentos de proteção.
Eduardo Marandola Jr. (2014) questiona: “é possível ter a experiência da viagem
no mundo contemporâneo?” (MARANDOLA JR., 2014, p. 53). O autor estabelece uma
distinção entre viagem e deslocamento, em paralelo com a diferença entre viajante e
turista. Para ele, o turista é um “personagem da modernidade ocidental, que se desloca
por um circuito constituído para abrigá-lo e orientá-lo na visitação a sítios préestabelecidos, preparados para este fim e atentos às suas necessidades, demandas e
desejos” (MARANDOLA JR., 2014, p. 53). Já o termo viajante se refere aquele que na
“pré-modernidade era um aventureiro, um desterrado por excelência. Sem lar, ou há muito
dele distante, sobrevivendo à margem, em direção a um objetivo, ou não, mas com os
caminhos para chegar lá um tanto imprecisos” (MARANDOLA JR., 2014, p. 53). Daí,
seu questionamento: é possível que ainda haja viagens “rumo ao desconhecido, à
descoberta, às venturas e desventuras” (MARANDOLA JR., 2014, p. 54) numa sociedade
intensamente conectada, cujos aplicativos e o celular fornecem instantaneamente
localização, serviços, ajudas de todo tipo? Ainda nos perdemos?
No tempo pré-moderno, a viagem implicava, portanto, um deslocar-se
à margem, carregando consigo a alcunha de estrangeiro ou viajante, o
que poderia ser visto da mesma maneira, sendo associada à ideia de
aventureiro, nem sempre bem visto para quem os percebia a partir de
seu lugar enraizado. As viagens, feitas pelos campos, envolviam
acampar e estar exposto a um sem número de perigos, naturais ou não,
inclusive da própria ausência de víveres, ou a qualquer imprevisto: o
homem ficava à mercê da natureza e de sua sorte (MARANDOLA JR.,
2014, p. 55).
Para o autor, viajar na atualidade não tem mais relação com aventurar-se, perderse, com a exposição ao desconhecido. Carrega muito mais experiências de planejamento,
de lazer e de “descobertas pré-determinadas” (MARANDOLA JR., 2014). Nesse sentido,
o autor articula as duas formas distintas de viagem a categorias espaciais que contemplem
os dois tipos de experiências. Ele diz: “na impossibilidade de experiências de lugares,
temos viagens por paisagens, orientadas pelo sentir e pelo querer na sociedade
contemporânea” (MARANDOLA JR., 2014, p. 56). Mas antes de continuar a visualizar
essas distintas concepções do viajar, proponho na trilha que seguimos aqui um momento
para refletir acerca das viagens de “descoberta”.
As viagens de “descoberta”
Para tensionar o sentido da descoberta, exponho agora o percurso de pesquisa
realizado por Carvalho (2013), Mello (2013) e Silva e Almozara (2019). Retomo,
portanto, a ideia do viajante que cria ao perceber, tanto a partir do olhar que captura o real
quanto a partir do olhar divagante e criativo, que é reforçada por meio do texto de Márcia
Carvalho (2013). A autora inicia seu artigo com uma indagação: é possível dizer que o
mapa precede o território? Para ela, o mapa é mais do que uma representação passiva do
território. Ela afirma que existem muitos tipos, que representam tanto lugares concretos
quanto lugares imaginários e imaginados. “Houve neles a incorporação de imagens e
lugares não existentes, assim como dos povos e das criaturas que se acreditavam reais –
terrae incognitae da imaginação humana” (CARVALHO, 2013, p. 127).
Márcia Carvalho (2013) demonstra como os relatos de viagem (périplos da
literatura grega) contribuíram na criação da concepção de mundo e de suas
representações.
Das várias ilhas imaginárias analisadas – Atlântida, a de São Brandão,
a do Brazil, a das Sete Cidades, Mayda, Groenlândia (Greenland), Terra
Nova, Estotilândia, Antílha, Corvo entre outras –, algumas passaram a
ter uma existência real com a descoberta de terras e ilhas reais com os
descobrimentos e viagens mais assíduas. Independente disso, partes
delas foram cartografadas em pelo menos três mapas: o de Albino de
Canepa (1489)2, o de Petrus Roselli (1466) e a Carta Náutica de 1424
(CARVALHO, 2013, p. 131).
Considero interessante mencionar que apenas no texto de Carvalho (2013) há a alusão
explícita a mulheres viajantes. Em um dos três périplos analisados em seu artigo, o Périplo
de Hanão (Hanno), suposta viagem de navegação ocorrida no século V a.C., a autora
afirma que a “presença de mulheres na expedição exploratória pode nos indicar mais um
modelo literário mítico do que um relato de navegação” (CARVALHO, 2013, p. 130).
O artigo de Marisol de Mello (2013) aprofunda a discussão. A autora analisa o
mapa como objeto cultural no período medieval da cartografia, por meio da análise do
“Ebstorf Mappamundi em sua tecitura histórica, a partir de três conjuntos de narrativas
que o constituem: relatos de viagens, lendas antigas e a Escritura Sagrada” (MELLO,
2013, p. 105). A autora reforça que “aprendemos a conhecer dominando. Nosso modelo
de conhecimento é o do conquistador, o do descobridor, um modelo alexandrino.
Fincamos estacas naquilo que é por nós dominado, (des)velado, (des)coberto: o
desconhecido. Possuímos.” (MELLO, 2013, p. 110). Nesse sentido, o olhar que captura
o real se mescla com o olhar que imagina o real, tornando a percepção do viajante que
descobre o espaço uma formulação estrangeira de dominação das paisagens e povos. Ao
descobrir, o viajante finca também suas estacas.
Relatos de Viagem; literatura e ciência
Aqui, fazemos mais uma pausa na condução da discussão para abordar os relatos
de viagem. Oswaldo Bueno Amorim Filho (2010) sintetiza de forma ligeira a relação da
geografia com os relatos de viagem. Ele afirma que “as viagens de explorações e
aventuras têm gerado, ao longo da história humana, dois grandes conjuntos de literaturas
complementares cujas fronteiras nem sempre são claras” (AMORIM FILHO, 2010, p.
81), a saber: 1) o romanesco, conjunto mais numeroso de obras que se utilizam das
descrições geográficas de itinérarios, regiões, lugares e paisagens como contextos ou
cenários; 2) o cientifíco, em que os itinérarios, regiões, lugares e paisagens constituem o
próprio objetivo. Para o primeiro grupo, romanesco, havia a mescla de “informações
fidedignas, resultantes das observações diretas e relatos elaborados com método e
equilíbio, com impressões do insólito e do exótico, que valorizavam ainda mais o
extraordinário” (AMORIM FILHO, 2010, p. 81).
Imagem 3 – Alguns tipos de literaturas ligadas às viagens na Europa do Século XIX.
Fonte: AMORIM FILHO, 2010.
O conjunto das obras mais próximas do científico, para o autor, teriam atingido
o apogeu com a expedições europeias do século XIX. “É certamente o momento histórico
de maior prestígio para a já antiga atividade geográfica, que atinge o status de disciplina
acadêmica, status este que, a partir da Europa, generaliza-se rapidamente por quase todo
o mundo” (AMORIM FILHO, 2010, p. 83). Ele aborda ainda a importância que teve, para
promoção e patrocínio dessas viagens, as sociedades geográficas, criadas sobretudo por
países europeus a partir de 1821. Os viajantes patrocionados, portanto, ao retornarem
apresentavam seus resultados, relatos orais e escritos, para as assembleias dessas
sociedades, acumulando um acervo geográfico inestimável (AMORIM FILHO, 2010).
Parte da ampliação de horizontes geográficos dos europeus levando ao que o autor chama
de “século de ouro da geografia”, que repercutiu também na literatura. O autor, enfim,
prossegue na sua discussão acerca da obra de Jules Vernes, precisamente onde nossos
caminhos se bifurcam e retomo a linha de discussão que traçavámos sobre as viagens de
“descoberta”.
Pausa.
Mais que uma descrição do outro, trata-se de uma tentativa de situar-se
frente ao desconhecido, domesticando-o, tornando-o familiar, num
processo ambíguo de atração pelo exótico e repulsa pelo que significa
como uma cópia imperfeita de si mesma. Esta ação, iniciada na
Antiguidade pelos gregos e romanos com o intuito de provar, segundo
Said, a sua superioridade, é explicada como um confronto cognitivo.
(MELLO, 2013, p. 115)
Marisol de Mello (2013) cita Said (1990) para contribuir na discussão, uma vez que ele
elabora a forma como a pulsão da Europa pelo oriental, no ato de conhecimento, o cria
ou o inventa. O mesmo poderia ser dito da América? E, mais ainda, da América do Sul?
O confronto cognitivo que vive o viajante seria o próprio processo de estranhamento que
marca a experiência da viagem? Nesse sentido, podemos dizer que é mister um olhar
desde as contribuições de Said para repensar a própria relação da geografia com as
viagens de “descobrimento”. Assim, explorando as tensões e composições daquele
chamado “século de ouro da geografia”. Reflexão essa que atravessa necessariamente a
própria noção da viagem. Seguimos.
Thaís da Silva e Paula Almozara (2019) apresentam uma contribuição a essa
discussão a partir do uso da autoetnografia como estrutura metodológica interdisciplinar
na qual um tema se desenvolve a partir de questões individuais e coletivas que se
interrelacionam na busca pela identidade brasileira, especialmente considerando os
processos e os sujeitos que compõe as caboclas-brabas. As caboclas-brabas são “mulheres
sobreviventes da resistência indígena no Nordeste, conhecida como Confederação Cariri
ou Guerras dos Bárbaros (1683-1725)” (SILVA; ALMOZARA, 2019, p. 63), que foram
“pegas pelo colonizador ‘a dente de cachorro e casco de cavalo’”. Elas completam que:
“A sua brabeza é, na verdade, resistência, é a luta por um corpo e alma que sempre foi
seu, mas que agora é violentado. Essa naturalização da violência vem sendo construída
desde a chegada dos colonizadores no território brasileiro” (SILVA; ALMOZARA, 2019,
p. 63).
Thaís da Silva e Paula Almozara (2019, p. 61) sintetizam o papel dos
colonizadores, a violência que submeteram essas mulheres e essa terra, por meio de uma
citação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2015, p. 11), em que ele diz:
“nenhuma história, nenhuma sociologia consegue disfarçar o paternalismo complacente
dessa tese, que reduz os assim chamados ‘outros’ a ficções da imaginação ocidental sem
qualquer voz no capítulo”.
Nesse sentido, apresentam a autoetnografia como “uma estruturação narrativa,
um recurso de soma de vozes dissonantes e até dissidentes. Uma ferramenta que dá nova
potência e subsidia as falas de minorias marginalizadas em um lugar em que o ‘olhar de
fora’ costuma ‘representar’ ou ‘inventar’ o outro (alteridade)” (SILVA; ALMOZARA,
2019, p. 60). Nessa busca pela devolução de “uma imagem de nós mesmos na qual não
nos reconhecemos”, as autoras se alinham com pensadores das minorias, como Daniel
Munduruku:
Um dos elementos na educação indígena do povo Munduruku está em
entender as ausências habitadas no corpo. “Essas ausências precisam
ser preenchidas com sentidos escritos por nós. Aprender é, então,
conhecer o que pode preencher os vazios que moram em nosso corpo.
É fazer uso dos sentidos, todos eles” (MUNDURUKU, 2011, p. 54-55).
Essa relação de ausências do corpo de que fala Daniel Munduruku,
sobre a educação indígena, dialoga com as ausências inscritas em nossa
identidade.
Para preencher essas ausências, as autoras buscam acessar, por meio da autoetnografia,
as memórias subterrâneas dessas histórias, dessas vivências, dessas mulheres.
A viagem aparece, dessa forma, como um exercício de estranhamento
(confronto cognitivo) que no ato de descobrir o espaço e aqueles que o habitam cria, tanto
a partir do que vê/sente quanto a partir do usa da imaginação. Esse movimento é
constatado desde os primeiros relatos de viagem ocidentais escritos, elaborados pelos
gregos – que eram tanto exercício de um olhar analítica quanto imaginativo, num processo
que se retroalimentava, como visto a partir dos mapas analisados.
Em contraponto às visões ficcionais elaboradas pelos viajantes, pelos
estrangeiros, vemos a possibilidade de uma escavação das memórias subterrâneas, das
gentes dos lugares, que buscam falar de si e se compor nas ausências que constatam.
Nesse sentido, retomo a constatação anterior acerca da necessidade de um olhar desde
aqui para repensar a própria relação da geografia com as viagens de “descobrimento”,
explorando as tensões e composições daquele chamado “século de ouro da geografia”,
numa reflexão que atravessa necessariamente a própria noção da viagem.
Eduardo Marandola Jr. (2014), já mencionado no texto, estabeleu uma
diferenciação entre as viagens por paisagens e por lugares, legando esta última aos
viajente pré-modernos. Ele diz que “a experiência de lugar é apontada como um dos
motivos frequentes quando se quer/ deseja viajar. Viajar para conhecer novos lugares,
outras culturas, para ver o diferente, o não habitual” (MARANDOLA JR., 2014, p. 57).
O autor questiona: o desejo de sentir o lugar e a experiência do outro seria mesmo
possível? Pois,
Para sentir o lugar tal como o lugar é, seria necessário recorrer à
experiência do insider? Ou seria necessário se desfazer da teia do
turismo, que pega todo e qualquer estrangeiro como moscas? Mas,
afinal, a teia do turismo não faz parte do lugar? A sensação que temos
ao visitar os lugares, atualmente, é a de que, mesmo que não se assuma
a condução de uma agência ou agente, nem que se deixe de ler os
folhetos e os guias, escapar desta teia e acessar os lugares tal como uma
pessoa do lugar nos é vedado completamente” (MARANDOLA JR.,
2014, p. 57).
Mas será que algum dia o acesso ao lugar tal qual uma pessoa do lugar já ocorreu? Essa
impossibilidade, portanto, marca a necessidade da viagens por paisagens.
a paisagem, ao invés de uma forma de ver criada a partir do ocidente,
uma maneira própria de conceber a relação sociedade-natureza, à
distância, é uma forma de ser invadido pelo mundo, pois é uma
disposição original, ou seja, “[...] corresponde à disposição original do
ser”, tornando a paisagem a fusão e comunicação original do homem
com o mundo (BESSE, 2006, p.79). Isso significa que a paisagem, ao
invés de uma totalização ou uma sistematização, à maneira de uma
ecologia de paisagem, é um horizonte de sentir, que só tem significância
na escala do lugar. Assim nasce um lugar-paisagem, que é a própria
referência da circunstancialidade deste sentir, o que leva à conclusão de
que a paisagem é invisível por essência, e não visível por excelência,
como nos dizem nossos dicionários. Ao invés do facilmente
apreensível, a paisagem precisa ser experienciada para poder ser sentida
(MARANDOLA JR., 2014, p. 58-59).
A viagem, dessa forma, pode ser entendida como fundação e refundação da conexão com
a geograficidade expressa pela paisagem, uma redescoberta de sentido, uma exposição.
Marandola Jr. (2014) sintetiza, por fim, essa relação ao declarar que:
No fundamento, no sentido mais originário, a paisagem expressa
sentidos profundos de geograficidade que, pela sua própria
manifestação e presentificação (momento privilegiado do viajar),
permitem ao viajante experiências do sentir e do querer que nos
conectam, ao mesmo tempo, à Terra, como ente que nos alça à nossa
condição humano-terrestre, e com os paisanos, aqueles que vivem a
paisagem como lugar. No primeiro caso, o vislumbre ou redescoberta
do sentido originário da condição terrestre nos assoma via sentidos; no
segundo caso, a empatia nos permite partilhar a experiência, enquanto
querer, e nos tornamos um pouco eles (MARANDOLA JR., 2014, p.
61).
Assim, chegamos a um esboço de fim de percurso do caminhar que não se conclui, mas
se desdobra. A viagem aparece por fim como forma de conexão e envolvimento do corpo
pelos sentidos profundos expressados pela paisagem, mas também como impossibilidade
de acesso à experiência da vida das gentes do lugar, com as quais, no entanto, é possível
partilhar experiências e, assim, aprender com – diferente de falar por ou escrever sobre.
Nesse sentido, vislumbro que
A viagem é deslocamento incontido do ser que se movimenta e se abre
nesse processo. Quem se contém em si não viaja. [...] O que se abre na
porosidade do corpo em movimento é transformado, o espaço é
entranhado no ser. Daí vem o desejo pela aventura e o prazer pela
estrada percorrida. Vem de uma insatisfação em se conter em si, mas
também da possibilidade de se conter em outro lugar (MEDEIROS,
2017, p. 120).
A viagem não é mero movimento no espaço - deslocamento. Ela não é feita sem
consequências por quem a empreende, porque ela entranha. “A viagem é um movimento
incontido que nodula lugares na paisagem por meio da experienciação íntima que só a
vulnerabilidade do corpo permite” (MEDEIROS, 2017, p. 122). Nodula lugares que não
se confudem com os lugares das gentes do lugar.
A VIAGEM COMO EXERCÍCIO DO CONHECER
Carlos Galvão Filho (2019) realiza um percurso poético por entre os conceitos da
Geografia Humanista em um ensaio sobre a viagem. Ele acende trilhas possíveis no viajar,
como o cultivo da imaginação do encontro:
Não me lembro se alguma vez, antes da viagem ao Cardoso, tinha
imaginado caminhar num mangue, pelo menos nunca fora uma
imaginação alimentada. No entanto, caminhar no mangue despertou
referências íntimas, mudando-as dos lugares que até então coupavam
em mim, arrebentou os limites do mundo que eu era até então, dando
maior profundidade à existência. Com intensidades distintas, onça e
mangue mexem com minha condição terrestre (GALVÃO FILHO,
2019, p. 58).
Ele fala de uma recusa ao esquecimento do pulsar da realidade geográfica e da busca pelo
encantar-se com o mundo. Assim, descreve sua experiência de viagem pela paisagem do
mangue, de ser invadido pelos sentidos expressos nessa conexão. O autor diz que:
No mangue, encontrei um vazio lamacento, preenchido de terra e de
água misturadas pelas marés e esquentadas pelo sol forte, um vazio
cheio da vivacidade dos caranquejos. Experiência que, desde que fora
escrita, emerge como necessidade findalmental: escrever sobre o
mangue tornou-se vital, sinto que é preciso movimentar essa desmesura
geográfica que ele deixou em mim (GALVÃO FILHO, 2019, p. 60).
Para ele, trata-se de “cultivar experiências marcantes que continuam a originar o
mundo que somos” (GALVÃO FILHO, 2019, p. 64). Viajar poderia ser experienciado,
assim, como “arte de tecer mundos, de urdir vínculos e sentimentos geográficos”
(GALVÃO FILHO, 2019, p.78). Sentimos a viagem como uma artesania de encontros
que mobiliza o cuidado desde a imaginação do que estar por vir até mesmo na urdidura e
preparo de sentimentos geográficos. Em outras palavras, menos ricas, visualizo aqui a
possibilidade da viagem enquanto exercício de uma conexão fundada e refundada com a
paisagem (e com o mundo) que passa pelo cultivo dos sentimentos, como estranhamento,
vertigem, sedução, alívio, abismamento, libido. Nesse sentido, a viagem deixa em mim.
É assim que a praia permanece no corpo mesmo após a viagem, transgredindo a paisagem
de mar e se revelando mesmo no urbano seco distante do litoral.
A praia permanece, mesmo quando a paisagem já é outra. Corpo curtido
de praia é testemunho da penetração do mundo na carne. O espaço curte
a carne humana. Erode e intemperiza, soergue e escava; faz brotar água
e ondular pele, atrita e parte e, por fim, quebra. Dizer que existe uma
vulnerabilidade profunda na pele, através da qual o espaço se entranha,
não é metafórico. É uma descrição da realidade corporificada humana
crua. As emoções nunca serão meras ficções. São transformações
físicas, alterações da espacialidade sensível em que existimos. Assim
também adentra e transforma o corpo estar em imersão ou interações
com outros espaços, não cotidianos. O significado da viagem nunca foi
tão violento (MEDEIROS, 2017, p.120).
A escrita se coloca como possibilidade de expressão do entranhamento da paisagem
oportunizado pelo cultivo da experiência de viagem, mas existem outros. Nesse sentido,
o exercício visualizado, de cultivo de uma conexão fundada e refundada com a paisagem,
de viagem, é exercido como possibilidade de pesquisa e de aprendizado. Justamente por
operar esse estranhamento que abre a possibilidade de criar, a viagem é trazida para a
dimensão do ensino de geografia. De que formas?
Antônio Queiroz Filho (2012) o faz por meio de uma atividade realizada com
alunos do curso de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), cujo
propósito foi a “produção de relatos de viagem a partir da ideia de pensamento menor
discutida por Deleuze e Guattari, aproximando Geografia e Arte como forma de criar
possibilidades outras de explicar o mundo: aproximando afetividade de efetividade
política” (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 104). Nesse sentido, ele explora o olhar
imaginativo do viajante em busca do processo criativo – o que autor denomina de “desvio
do olhar” (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 107) - na produção de relatos da viagem
desenvolvida com os alunos do curso de Geografia, na qual saíram de Vitória (ES) rumo
a Cumuruxatiba (BA).
Sobre a produção desses relatos de viagem, informa que:
Resolvemos então rasurar a ideia de relato como cópia, descrição,
representação. Nossos relatos assumiriam a própria viagem como
exploração e descoberta, antes e depois de sua produção, assim como
são as crianças quando chegam ao parque de diversões. Quando olham
para a roda-gigante. Corpos que se agitam no clique da trava. Começa
a jornada (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 107).
E ainda acrescenta que são “relatos feitos de memórias, rastros, pegadas, derivas, numa
geografa do corpo que percorreu por um determinado lugar e nele se intensificou:
memória e corpo como constituintes das geografas que fazemos dos lugares. Essa
intensidade é o que o relato, nessa perspectiva, buscou dar visibilidade” (QUEIROZ
FILHO, 2012, p. 107).
Assim, foram produzidos três relatos da viagem: 1) aproximações feitas a partir
da verossimilhança de forma e temática daquilo que foi visto e capturado pelos alunos e
os artistas (pintores) Debret e Tarsila; 2) brincadeiras com a escala de captura das
imagens, sobrepondo o olhar distante e horizontal da imagem de satélite pelas fotografas
tiradas no plano horizontal; 3) criação de poesias como diretriz e aproximação do corpo
e da palavra.
Aproximando-se desse mesmo sentido, do uso da viagem como recurso de ensino,
temos a atividade realizada por Ivânia Marques (2012) – o projeto Ecogeográfico. O
projeto busca “levar o morador à experiência de um viajante e refletir sobre as imagens
que reverberam desta experimentação do espaço. Convidamos e convidaremos grupos da
comunidade escolar a entrar em relação com o espaço através da produção de imagens”
(MARQUES, 2012, p. 55). Interessantíssimo nesse projeto é que os viajantes são os
moradores do lugar, que buscam experimentar o espaço como em viagem e produzir/criar
um relato a partir da fotografia. Exercitar o estranhamento, descobrir a cidade – o uso
intencional do olhar que vê/olhar que divaga e imagina.
A transformação do espaço em paisagem a partir da descrição em tonalidades
vivas, realizado por Mario de Andrade e discutido por Julio Suzuki (2011), já apresentada,
é aqui confrontada com o exercício de um estranhamento ao lugar de morada. Lugar que,
para a autora, “diz respeito ao dinamismo e à possibilidade de melhor compreender a
complexidade do mundo. Trata-se de olhar e perceber mudanças e transformações em
diferentes momentos, sob diferentes interesses e condições sociais, culturais,
geográficas... Que lugar é esse que vejo e desconheço?” (MARQUES, 2012, p. 55).
Atenção: que lugar é esse que vejo e desconheço?
Ivânia Marques (2012, p. 57) reforça que deseja promover
um distanciamento e uma recusa das práticas que tornam os alunos
reféns de uma única forma de imaginar o espaço, aquela imaginada pelo
estado, e eu acrescentaria: aquela das imagens prontas dos materiais
didáticos, que desconhecem as nossas comunidades e os locais onde
(com)vivemos.
O que parece demonstrar a busca, já observada anteriormente por meio de citação do
Daniel Munduruku (2011), pelas ausências que constituem. Redescobrir o lugar a partir
do estranhamento de um viajante e aí preencher as ausências com novas criações, novos
relatos - “mais do que descobrir, a coragem de esquecer-se das descobertas”, expõe a
autora (MARQUES, 2012, p. 58) citando Godoy (2008, p. 286). Nesse sentido,
compreender a viagem enquanto uma artesania de encontros, tal qual uma “arte de tecer
mundos, de urdir vínculos e sentimentos geográficos” (GALVÃO FILHO, 2019, p.78)
em uma relação de partilha e aprendizado com os paisanos passa pela coragem de
esquecer as descobertas... Uma forma intencional de viajar.
QUE É VIAGEM?
Busco agora elaborar uma síntese do que foi apresentado, retomando as diferentes
expressões do viajar presentes no quadro simples que compus anteriormente.
A viagem é uma relação entre o inusitado, a descoberta e a solidão que se realiza
na exploração e descoberta do mundo por meio de experiências de estranhamento ou
talvez de experimentações do espaço. Ela acontece por diferentes motivos ou impulsos
de deslocamento, sendo que este devem ser necessariamente entendidos a partir da
diferenciação entre os de necessidade (ter que ir/ser forçado a ir) e os de desejo (querer
ir). A composição da viagem envolve provisões (qualquer conhecimento anterior a
viagem) imprevistos e improvisos. Enquanto desejo de partir, a viagem pode se configurar
como uma ode à errância, fruto de um desejo de evasão ou de uma pulsão migratória.
O processo de descobrir por si mesmo que o viajante empreende é também aquele
que de composição de si (identidade) e do outro (alteridade). Descobrir pode ser
considerado uma forma de dominar, nesse sentido, quando o desconhecido desvelado (ou
criado) é composto mais pelo olhar estrangeiro do que pela contribuição dos moradores
do lugar. O viajante compõe com seus olhares, tanto os de leitura do real quanto os de
devaneio e imaginação. Nesse sentido, a descrição que transforma espaço em paisagens
e lugares apenas por meio do “olhar de fora” costuma “representar” ou “inventar” o outro
(alteridade). Em outra direção, a viagem pode ser entendida ainda como fundação e
refundação da conexão com a geograficidade expressa pela paisagem, uma redescoberta
de sentido, uma exposição. Assim, a viagem aparece como forma de conexão e
envolvimento do corpo pelos sentidos profundos expressados pela paisagem, mas
também como impossibilidade de acesso à experiência da vida das gentes do lugar, com
as quais, no entanto, é possível partilhar experiências e, assim, aprender com – diferente
de falar por ou escrever sobre. A viagem nodula lugares na paisagem por meio da
experienciação íntima que só a vulnerabilidade do corpo permite. Nodula lugares que não
se confudem com os lugares das gentes do lugar. A viagem se revela como forma de
cultivar experiências marcantes que continuam a originar o mundo que somos, como uma
arte de tecer mundos, vínculos e sentimentos.
Sentimos a viagem como uma artesania de encontros que mobiliza o cuidado
desde a imaginação do que estar por vir até mesmo na urdidura e preparo de sentimentos
geográficos. Testemunha dessa forma de interação e cuidado, a viagem permite a escrita
como possibilidade de expressão do entranhamento da paisagem. Mas é preciso ir para
uma direção diferente daquela já posta pela tradição dos relatos de viagem na geografia.
Fugir do “século de ouro da ciência geográfica” em direção a um século de terra, água
limpa, projetos coletivos, resistência e artesiana de sentimentos e cuidados do corpo rumo
a terra. É preciso então rasurar os relatos de viagem.
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2021.
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MEDEIROS, Aline Lúcia Nogueira. Introdução ao tema da
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viagem na geografia humanista. Anais do XIV
ENANPEGE... Campina Grande: Realize Editora, 2021.
Disponível em:
<https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/78259>. Acesso
em: 03/01/2022 11:36
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