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TECENDO GEOGRAFIAS EM VIAGENS

2014, Universidade Federal de Minas Gerais

Ao viajar, nos relacionamos com o espaço. Sentimos e percebemos, pois essa é uma necessidade básica para se existir no mundo: ser no tempo e no espaço. Podemos, portanto, compreender quais sentimentos pelo espaço definem a experiência da viagem através dos significados essenciais anunciados pelo viajante ao relatar sua experiência; e a partir disso, identificar quais categorias geográficas (e como) compreendem e expressam os significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espaço, durante a viagem. Objetivos que me proponho a perseguir aqui. Para tanto, busco primeiramente apoio na filosofia, através de Husserl e Merleau-Ponty, para compreender o sujeito no mundo em termos dos significados essenciais, como ele o percebe e é capaz de apreendê-lo. Entender o ser no mundo permite contemplar os viajantes no que eles são e no que eles estão significando – a viagem. Dessa maneira, me volto para o próprio ato de viajar, e para as peculiaridades de estar em contato com um espaço que não é aquele do cotidiano. Apresento cinco relatos de viagens, que variaram de seis meses a um ano, incluindo o meu, que também foram compostos por inúmeras viagens menores, de alguns dias. É possível interpretar as relações dos viajantes com o espaço em ambas as situações. Cada relato de viagem evidenciou aspectos singulares da experiência, e inclusive pode ser definido a partir de uma categoria essencial, mas é possível notar aspectos essenciais, associados à viagem enquanto vida especializada e a uma reflexão forçada, que compreende: um olhar forçado para o diferente; pequenas aventuras; a consciência da nossa vulnerabilidade e da importância de momentos de proteção. A valorização da experiência pela ciência está na ordem do dia. Esse trabalho, de cunho geográfico, que se constitui através do entrelaçamento dos saberes da fenomenologia, da geografia humanista e da experiência do viajante, se insere nesse contexto. Na primeira parte, Agulha e linha, estabeleço as bases que sustentam e possibilitam esse trabalho. Não discuto, porém, a viagem, visto que busco me voltar à coisa mesma, vivida; que está presente na segunda parte, Viajar, na qual apresento o que vivi, ouvi e li sobre as viagens, os relatos pessoais com os quais estou em contato; e na terceira parte, Tecendo geografias em viagens, escrevo e reflito sobre a relação entre os sentimentos e impressões – os significados – do espaço com seus recortes categoriais geográficos, numa tentativa de expressar e compreender essas relações entre os viajantes e os recortes espaciais que definem melhor suas vivências na viagem.

Universidade Federal de Minas Gerais Instituto de Geociências Departamento de Geografia TECENDO GEOGRAFIAS EM VIAGENS Aline Lúcia Nogueira Medeiros Orientadora: Virgínia de Lima Palhares Belo Horizonte, 2014 Universidade Federal de Minas Gerias Instituto de Geociências Departamento de Geografia TECENDO GEOGRAFIAS EM VIAGENS Trabalho de Conclusão do Curso Aline Lúcia Nogueira Medeiros Trabalho de conclusão do curso de Geografia no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação da professora Dra. Virgínia de Lima Palhares, para obtenção do título de Bacharel em Geografia. Belo Horizonte, 2014 2 FOLHA DE APROVAÇÃO Tecendo geografias em viagens por Aline Lúcia Nogueira Medeiros Trabalho de conclusão do curso de Geografia no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação da professora Dra. Virgínia de Lima Palhares, para obtenção do título de Bacharel em Geografia. BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________ Profa. Dra. Virgínia de Lima Palhares / Orientadora – IGC/UFMG _________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Luiza Grossi Araújo – IGC/UFMG __________________________________________________________ Profa. Dra. Mariana de Oliveira Lacerda – IGC/UFMG 3 AGRADECIMENTOS Sou sinceramente grata às pessoas que estiveram comigo até aqui. É tão fácil se perder na imensidão e na incerteza do mundo. Vocês são minhas âncoras nessa realidade que compartilhamos. Sem vocês, eu não sei onde eu estaria. Agradeço a minha família pelo lar, doce lar. Nunca entendi o que era isso, com todos os seus pesares, até estar longe. Entendo agora o conforto simples e delicioso de se estar em casa. Agradeço às minhas queridas amigas que estiveram sempre comigo, seja aqui ou na França (Carol, você é nosso orgulho, menina!), e com as quais eu cresci; em tantas formas. Esse trabalho também só foi possível por eu ter me conhecido com vocês. Vocês são minhas paixões constantes. Agradeço a minha orientadora, maravilhosa, Virgínia: sua dedicação a nossa geografia humanista é sempre admirável. Sua atenção e paciência me fizeram chegar até aqui e por isso eu sou realmente grata. Agradeço aos meus colegas da geografia, pelos momentos inesquecíveis e conhecimentos e informações menos memoráveis. Em especial: Fernanda, por sempre me dar corda e impulsionar para frente; André, por todos aqueles seriados e filmes; Aluísio, por me doar suas energias sempre que eu precisava; Fafá, pela disposição em me aguentar; e Ítalo, pela companhia sempre agradável. Ao meu grupo especial: Laila, mesmo com todo o estresse de final de semestre, ter você no nosso grupo era a garantia de uma força certa e sempre necessária. Juliana, sua linda, sempre vou te admirar. Sua trajetória me orgulha e ilumina. E, finalmente, por cada uma e todas as incontáveis risadas compartilhadas nas fronteiras da nossa realidade imaginária, marujo, Marcelo, eu sou muitíssimo agradecida. Agora só tente entender isso. 4 RESUMO Ao viajar, nos relacionamos com o espaço. Sentimos e percebemos, pois essa é uma necessidade básica para se existir no mundo: ser no tempo e no espaço. Podemos, portanto, compreender quais sentimentos pelo espaço definem a experiência da viagem através dos significados essenciais anunciados pelo viajante ao relatar sua experiência; e a partir disso, identificar quais categorias geográficas (e como) compreendem e expressam os significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espaço, durante a viagem. Objetivos que me proponho a perseguir aqui. Para tanto, busco primeiramente apoio na filosofia, através de Husserl e Merleau-Ponty, para compreender o sujeito no mundo em termos dos significados essenciais, como ele o percebe e é capaz de apreendêlo. Entender o ser no mundo permite contemplar os viajantes no que eles são e no que eles estão significando – a viagem. Dessa maneira, me volto para o próprio ato de viajar, e para as peculiaridades de estar em contato com um espaço que não é aquele do cotidiano. Apresento cinco relatos de viagens, que variaram de seis meses a um ano, incluindo o meu, que também foram compostos por inúmeras viagens menores, de alguns dias. É possível interpretar as relações dos viajantes com o espaço em ambas as situações. Cada relato de viagem evidenciou aspectos singulares da experiência, e inclusive pode ser definido a partir de uma categoria essencial, mas é possível notar aspectos essenciais, associados à viagem enquanto vida especializada e a uma reflexão forçada, que compreende: um olhar forçado para o diferente; pequenas aventuras; a consciência da nossa vulnerabilidade e da importância de momentos de proteção. A valorização da experiência pela ciência está na ordem do dia. Esse trabalho, de cunho geográfico, que se constitui através do entrelaçamento dos saberes da fenomenologia, da geografia humanista e da experiência do viajante, se insere nesse contexto. Na primeira parte, Agulha e linha, estabeleço as bases que sustentam e possibilitam esse trabalho. Não discuto, porém, a viagem, visto que busco me voltar à coisa mesma, vivida; que está presente na segunda parte, Viajar, na qual apresento o que vivi, ouvi e li sobre as viagens, os relatos pessoais com os quais estou em contato; e na terceira parte, Tecendo geografias em viagens, escrevo e reflito sobre a relação entre os sentimentos e impressões – os significados – do espaço com seus recortes categoriais geográficos, numa tentativa de expressar e compreender essas relações entre os viajantes e os recortes espaciais que definem melhor suas vivências na viagem. Palavras-chave: viagem, fenomenologia, categorias geográficas, experiência. 5 ABSTRACT When traveling, we relate to the space, feel and perceive, as this is a basic need to exist in the world: being in time and space. We can therefore understand what feelings through space define the experience of the journey through the essential meanings announced by the traveler when recounting his experience; and from this, identify which geographic (and how) categories comprise and express the essential meaning established between the traveler and space while traveling. Goals that I propose to pursue here. To do so, first I seek support in philosophy, through Husserl and Merleau-Ponty, to understand the subject in the world in terms of essential significance, as he perceives it and is able to grasp it. Understand being in the world can grasp travelers as they are (consciousness of the world), and they are meaning - the journey. Thus, I turn to the act of traveling itself, and the peculiarities of this act to be in contact with a space that is not that every day. Five travel narratives, ranging from six months to one year, including mine, presented. However, they also were composed of numerous smaller trips, days to weeks. It is possible to interpret the relations of space travelers in both situations. Each travelogue highlighted unique aspects of the experience, even can be defined as an essential category, but it is also possible to see key aspects associated with the trip as a specialized life; a forced reflection, comprising a forced look different; little adventures; awareness of our vulnerability and the importance of moments of protection. The appreciation of the experience of science is on the agenda. This work, geographic nature, which is through the interweaving of knowledge of phenomenology, humanistic geography and traveler experience, falls within that context. In the first part, Needle and thread, I establish the foundations that support and enable this work. I do not dispute, however, the journey, as I try to get me back to the same thing, lived; that is present in the second part, Traveling, in which I present what I experienced, heard and read about travel, personal accounts with whom I am in contact to; and in the third part, Weaving geographies in travel, write and reflect on the relationship between feelings and impressions - the meanings - the space with your clippings geographic categories, an attempt to express and understand these relationships between travelers and spatial slices that define better their experiences on the trip. Key words: travel, phenomenology, geographic categories, experience. 6 SUMÁRIO SUMÁRIO ....................................................................................................................... 7 PRIMEIRA PARTE – Agulha e linha ........................................................................ 11 Do contexto .................................................................................................................... 12 Do trabalho ..................................................................................................................... 13 Da ciência ou como fazer ciência através da compreensão de experiências individuais 19 Singular, universal: significados essenciais........................................................... 21 Sujeitos, viajantes ................................................................................................... 22 Ser no tempo e no espaço: recortes geográficos ............................................................. 23 Pontes para a viagem ...................................................................................................... 25 SEGUNDA PARTE – Viajar ....................................................................................... 28 Eu, viajante ..................................................................................................................... 29 Fabrício, viajante ............................................................................................................ 44 Fernanda, viajante........................................................................................................... 52 André, viajante................................................................................................................ 79 Juliana, viajante ............................................................................................................ 101 TERCEIRA PARTE – Tecendo geografia em viagens ........................................... 115 Das categorias geográficas ........................................................................................... 116 Dos relatos de viajantes ................................................................................................ 133 Tecidos: geografias e viagens ....................................................................................... 138 Do início ou algumas conclusões de não-finais ........................................................... 139 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 141 7 INDICE DE FIGURAS Figura 1- Manhã ensolarada de inverno em Guyancourt, saindo da casa das amigas brasileiras, França ........................................................................................................... 40 Figura 2 - Jardim de um castelo, em Rambouillet, próximo à cidade onde eu morava, França ............................................................................................................................. 41 Figura 3 - Caminhando por Londres, em uma tarde chuvosa, Inglaterra ....................... 41 Figura 4 - Brumas em Veneza, Itália .............................................................................. 42 Figura 5 - Bancos voltados para água, em Veneza, Itália. Ânsia por esse lugar de espera. ........................................................................................................................................ 42 Figura 6 - Escada em processo de erosão nas ruínas de Roma, Itália ............................ 43 Figura 7 - Chuva e sol; poças d'água e reflexos no chão de pedras, em Roma, Itália .... 43 Figura 8 - Caminhão utilizado para viagem até a Bélgica, para assistir a um festival de música eletrônica ............................................................................................................ 49 Figura 9 - Cratera de um vulcão preenchida por água, na Islândia ................................ 50 Figura 10 - Troféus em estádio do Liverpool, em Liverpool, Inglaterra. ....................... 50 Figura 11 - Abbey Road, rua que aparece na capa do disco de mesmo nome dos Beatles, lançado em 1969. ............................................................................................................ 51 Figura 12 - Eu vestido com a máscara de cabeça de cavalo em Springbreak, na Croácia ........................................................................................................................................ 51 Figura 13 - Tronco mágico no lago Maria Laach, próximo a Trier, Alemanha ............. 74 Figura 14 - Monumento em homenagem às vítimas do holocausto, congelado, em Berlim, Alemanha........................................................................................................... 75 Figura 15 - Paisagem típica da Alemanha: encostas verdejantes, vila e centrais nucleares ao fundo .......................................................................................................................... 76 Figura 16 - Piscina pública que invadimos, a noite, em Trier, Alemanha...................... 76 Figura 17 - Monte Tartre, Eslováquia ............................................................................ 77 Figura 18 - Pessoa subindo o Monte Tartre com galões de água e comida nas costas, Eslováquia ...................................................................................................................... 77 Figura 19 - Eu, André e Aline em virada do ano 2012 para 2013, em Paris, França. .... 78 Figura 20 - Dois bonecos de neve na praia, em Brighton, Inglaterra ............................. 78 Figura 21 - Domingo à tarde em Lisboa, Portugal ......................................................... 97 Figura 22 - Um pouco do que eu vi em Marrakech, Marrocos: um povo simples e sereno, simpático e acolhedor ......................................................................................... 98 Figura 23 - O contraste entre duas culturas em um contexto de desenvolvimento, em Marrakech, Marrocos...................................................................................................... 98 Figura 24 - Pub em ruínas em Budapeste, Hungria ........................................................ 99 Figura 25 - Tarde quente em Londres, ao som da voz de uma cantora portuguesa, Inglaterra......................................................................................................................... 99 Figura 26 - Placa indicativa da Rua da Atalaia, em Lisboa, Portugal .......................... 100 Figura 27 - Placas e outras lembranças de viagem no meu quarto, Brasil ................... 100 Figura 28 - Vista da minha casa com família portuguesa para o Rio Douro, na parte superior, e o jardim japonês do Palácio de Cristal, na parte inferior, em Porto, Portugal ...................................................................................................................................... 111 8 Figura 29 - Eu vestida com máscara de unicórnio na casa de um amigo brasileiro em Porto, Portugal .............................................................................................................. 111 Figura 30 - Caminhando pelo Muro de Berlim, Alemanha .......................................... 112 Figura 31 - Exposição sobre imigrantes italianos na Itália ........................................... 112 Figura 32 - Aline e eu em jardim do Castelo de Versalhes, França ............................. 113 Figura 33 - Pôr do sol na foz do Rio Douro no primeiro dia de sol depois um mês horrível de chuva constante, em Porto, Portugal .......................................................... 113 9 Leitor, se tiveres ocasião, erra o caminho Rui Pires Cabral 10 PRIMEIRA PARTE – Agulha e linha 11 Do contexto Para completar o caminho de minha formação como geógrafa cumpre realizar um trabalho final. Esse caminho percorrido nos últimos anos (começou em 2009 e não possui data de término, apenas de conclusão de uma fase – 2014), foi marcado por diversas buscas. Buscas de conhecimento, afinidades e até mesmo de maneiras de expressar (minhas) identidades. Comecei pensando em conflitos ambientais, passei para a climatologia, recursos hídricos, geoprocessamento, depois geografia urbana, bem rápido. E por todo esse percurso não me realizei completamente, seja no quesito afinidades ou no quesito identidade. Sempre faltava algo, e o que eu aprendia nunca falava de verdade sobre o que eu acreditava, sobre quem eu era – não passava por mim todo esse conhecimento; parecia passar fora de mim. Os sinais do que eu buscava foram aparecendo. Eu sabia que tinha que levar em conta a experiência, mas tinha que ser sobre o indivíduo. Não sobre classes, ou grupos sociais. Indivíduos, em suas individualidades. Mas como não incorrer em um relativismo empirista? Como fazer ciência assim? Conheci a fenomenologia, que me veio como solução a esse impasse. Durante o intercâmbio, no qual passei um semestre estudando na Université de Versailles Saint-Quentin en Yvelines, na França, percebi outro sinal. Esse veio na forma de incômodo, não de solução. Que relação é essa que tenho com o espaço? Perguntava-me. Visitei cidades, monumentos que só tinha visto no cinema e em livros. Senti, pensei e conheci tantas coisas. Ainda me incomodava: que relação é essa que comporta um sentimento tão forte, mas que em nada se parece com o que sinto quando estou em casa? Nada tem do conforto e da segurança de conhecer tudo que envolve um espaço ao ponto de poder chamar de meu, meu lar. Ainda assim é possível estar lá, porque existe um sentimento de segurança e de conforto que vem de outra coisa, que não da certeza do meu lar. Que espaço é esse? Como posso denominá-lo? Será possível ser um lugar? Ou não? Ao retornar para casa, todas as relações e sentimentos que desfrutei na viagem se tornaram ainda menos entendidas. Pensei no que senti e vivi, e procurei as respostas na geografia. Cheguei, por fim, à geografia que eu buscava, desde o início – a geografia humanista. Conheci o geógrafo Yi-Fu Tuan e sua produção sobre a relação do indivíduo com o espaço, através da topofilia e da topofobia. Dizia muito sobre as minhas dúvidas ao colocar em palavras os sentimentos para com o lar, o lugar. Mas, ainda assim, não comportava ou respondia minhas dúvidas sobre os espaços da viagem. 12 Do trabalho Daí surgiu esse trabalho, que sinaliza a conclusão de uma fase. Nada melhor do que fazer um trabalho justamente em meio ao movimento geográfico que te define, que fala a você, diretamente. O que busco compreender nesse trabalho são aquelas questões que me ocuparam durante a viagem que fiz à Europa e, especialmente, à França – mas que hoje não se limitam a esses locais ou a mim. Quais os significados essenciais que se estabelecem entre o viajante e o espaço, durante a viagem? Como definir esses significados e quais categorias geográficas os compreendem e explicitam? Questões essas que se traduzem nos meus objetivos:  Compreender os significados essenciais que se estabelecem entre o viajante e o espaço, durante a viagem.  Identificar quais categorias geográficas e como elas compreendem e expressam os significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espaço, durante a viagem. Para alcançar os objetivos propostos, busco primeiramente apoio na filosofia, através de Husserl e Merleau-Ponty, para compreender o sujeito no mundo em termos dos significados essenciais, como ele o percebe e é capaz de apreendê-lo. Entender o ser no mundo permite contemplar os viajantes no que eles são (consciências de mundo), e no que eles estão significando – a viagem. Dessa maneira, me volto para o próprio ato de viajar, e para as peculiaridades desse ato de estar em contato com um espaço que não é aquele do cotidiano. Edmund Husserl (1859-1938) nasceu na Morávia, atual República Tcheca, em uma família judia liberal caracterizada por sua indiferença religiosa. Estudou astronomia, matemática e, por fim, filosofia, buscando sempre um entendimento mais profundo e fundamental do conhecimento.1 Elaborou os princípios da fenomenologia, perspectiva da filosofia contemporânea que se ocupa da descrição dos fenômenos à maneira como eles aparecem a nós na experiência do vivido. Para Husserl, sem esclarecer a maneira como os fenômenos se dão a nós, consciências vividas, as ciências permanecem cegas às origens de seus conhecimentos técnicos.2 Para exemplificar essa ideia, Husserl afirma: “(...) as 1 2 DEPRAZ, Natali. Compreender Husserl. Trad. Fábio dos Santos. Petrópolis: ed. Vozes, 2007. BARCO, Piloto. A constituição do espaço na fenomenologia de Husserl. 2012. 105 f. Dissertação de 13 teorias físicas e fisiológicas das cores não proporcionam nenhuma claridade intuitiva do sentido da cor, tal como quem a vê”3. Ou seja, nenhuma das explicações científicas sobre o que é a cor consegue descrevê-la de maneira a permitir o entendimento do que ela é da mesma forma que a pessoa que a vivencia, que a vê. “A fenomenologia deveria proporcionar um método filosófico que fosse livre por completo de todas as pressuposições que pudesse ter aquele que refletisse; descreveria os fenômenos enfocando exclusivamente a eles (...)”4. Para tanto, convém voltar-nos as coisas à maneira como elas se dão a nós, consciências, em busca de as compreender. Em ordem de operar esse retorno, Husserl adverte para a necessidade de se colocar o fenômeno entre parênteses, isto é, em suspensão – suspende-se qualquer afirmação de realidade acerca do objeto e quem o anuncia é o sujeito do vivido. Nesse sentido, “podese examinar todos os conteúdos de consciência, não para determinar se tais conteúdos são reais ou irreais, imaginários, etc., mas sim para examiná-los como puramente dados”5. Sobre isso, Husserl afirma: “Para a consideração de essências, a percepção e a representação da fantasia estão no mesmo pé de igualdade; a partir de ambas se pode destacar igualmente bem e abstrair a mesma essência”6. A fenomenologia, enquanto estudo da forma como os fenômenos se dão a nós, consciências, não diferencia os fenômenos percebidos, fantasiados ou lembrados, no sentido de que é igualmente possível encontrar os seus sentidos essenciais. Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) nasceu na França e, a partir da leitura da fenomenologia de Husserl, desenvolveu o que seria conhecido como uma ontologia da carne (ou do corpo). Sua obra colocou o ser, consciência, no espaço e no tempo, se baseando na percepção e no comportamento para entender como os fenômenos se dão a nós e como interagimos com eles. Para o filósofo, as coisas do mundo não existiam separadas do sujeito, como simples objetos neutros. O sujeito só existia numa relação carnal com o mundo. Dessa forma, por exemplo, considera que “o mel é um certo comportamento do mundo com relação ao meu corpo e a mim”7 e que suas qualidades, 3 4 5 6 7 mestrado – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Filosofia. Goiânia, 2012. HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 23. MOREIRA, Daniel. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira Thomson, 2002, p. 62-3. MOREIRA, 2002, p. 88. HUSSERL, 1986, p. 99. MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. Trad. Fábio Landa, Eva Landa. São Paulo: Martins 14 como açucarado ou viscoso, são apenas duas maneiras de dizer a mesma coisa, que é a relação do mel com o mundo ou com o sujeito carnal que é por ele confrontado. Essas duas qualidades são “idênticas na medida em que elas todas manifestam a mesma maneira de ser ou de se comportar do mel”8. Para ele, o sujeito está investido no mundo e o mundo no sujeito. A perspectiva da experiência conforme entendida por Husserl e Ponty está presente e fundamenta toda a reflexão acerca da experiência de viajar, assim como do chamado para retornar à coisa mesma, que é aqui a viagem. David Seamon9 afirma que para realizar esse exercício são necessários dois momentos. O primeiro consiste em deixar de lado as teorias convencionais acerca do assunto, o que aqui se refere aos conhecidos trabalhos de teóricos da viagem (ou travelwriters)10. O segundo, em examinar “os movimentos cotidianos assim como eles correm em sua própria forma no mundo vivido”11. Para fazer isso, existem algumas possibilidades. Seamon escreve que é possível refletir cuidadosamente sobre o tema e como a experiencio na minha própria vida. Ou reunir relatos descritos por outros, por meio de entrevistas, conversas ou até da literatura. Através da experiência da viagem é que poderei interpretar e expressar, à luz dos próprios conhecimentos teóricos da geografia, isto é, das categoriais geográficas de lugar, de paisagem, da região, do território, do espaço e do mundo, os significados que se estabelecem entre o viajante e o espaço, durante a viagem. Dessa forma, embora se fundamente na fenomenologia, esse trabalho não se limita a ela. Ele consiste em uma interpretação geográfica da viagem a partir de um arcabouço teórico-metodológico ligado à fenomenologia. Essa interpretação geográfica aparece através da busca por compreender quais categorias geográficas melhor expressam a relação do viajante com o espaço. O trabalho, portanto, apresenta três eixos: o fenomenológico, que é o embasamento teórico filosófico; o geográfico, através das categorias e significados da experiência relacionados à viagem, que é o tema convergente dessa pesquisa. Fontes, 2004, p. 22. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 22. SEAMON, David. Corpo-sujeito, rotinas espaço-temporais e danças-do-lugar. Geograficidade. V. 3, n. 2, 2013. 10 Por esse motivo, qualquer discussão acerca do viajar aparece somente na próxima parte desse trabalho, na qual estão os relatos descritivos dos viajantes. 11 SEAMON, 2013, p. 7. 8 9 15 Busco apreender como se dá a relação do viajante com o espaço através da experiência da viagem. Para tanto, analiso a minha experiência de viagem, com duração de um semestre (setembro de 2012 a fevereiro de 2013), à Europa e, especialmente, à França. Recorro ainda a conversas livres com outros quatro viajantes, quantidade e escolha limitada àqueles que já conhecia e que encontrei durante a minha viagem. Essas conversas são orientadas apenas pela intenção de ouvir uma descrição da experiência de viagem dos sujeitos. De forma que os quatros sujeitos são deixados a levantar as questões que envolveram suas viagens de forma livre, embora eu interfira em certos momentos para tentar entender melhor como se deu alguma experiência relatada. Todos os relatos começam com o período de viagem e país para onde ela ocorreu, em primeiro lugar. Elas têm em comum a longa duração e finalidade: intercâmbio universitário. Mas são recheadas de questões e outras viagens que se diferem amplamente, e que foram anunciadas pelos sujeitos viajantes. Posteriormente, procuro significar o que os sujeitos sentiram durante o processo de experienciar a viagem, sempre focando as relações com espaço. A pergunta que procuro responder nessa etapa é: o que é a experiência da viagem? Ela envolve não apenas as conversas, como também a análise das fotografias dessas viagens. As fotografias foram selecionadas, em primeiro lugar, pelos sujeitos viajantes, inclusive eu. Elas podem ou não ser mencionadas nos relatos de viagem, sendo que a prioridade para integrar esse trabalho foi, além do fato de ser mencionada, o peso emocional ao ser mencionada. A quantidade e o conteúdo das fotografias foram deixados abertos, para escolha dos sujeitos, de modo que alguns escolheram cinco e outros quinze. Geralmente, “lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. (…) A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição (…)”12. Nesse sentido, a análise das fotografias dos viajantes permite duas considerações: a primeira, acerca dos conteúdos e significados contidos na imagem. O que ela enquadra? O que ela evoca? Quais sentimentos permeiam a imagem? A segunda consideração refere-se à escolha das fotografias para completar os relatos. Por que foram escolhidas? A fotografia, assim como o vídeo documental, é uma representação interpretativa da realidade, no sentido de ser algo recortado pela percepção do olhar. A imagem quando divulgada publicamente é uma 12 BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velho. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 17. 16 janela aberta através da qual podemos ver lugares e pessoas que não conheceríamos de outra forma. Ela nos contextualiza, faz-nos imaginar como seria estar em certo ambiente vivenciando experiências.13 A análise dos relatos dos viajantes, inclusive o meu, ocorrem em dois momentos. O primeiro consiste na elaboração das descrições de viagem, permeada com as fotografias; o segundo momento consiste na reflexão sobre os sentimentos e impressões, os significados essenciais, descritos pelos viajantes, seja pelas conversas ou pelas imagens. Realizo, ainda, uma interpretação geográfica das viagens ao relacionar esses significados com as categorias geográficas. Para tanto, há uma conceituação e reflexão acerca de cada categoria, baseada em obras de outros geógrafos e na experiência do viajante. As descrições ou relatos de viagens foram concebidas a partir de conversas norteadas apenas pela intenção de ouvir uma descrição da experiência de viagem; e posteriormente da textualização e transcriação dos relatos colhidos. O meu relato, excluído desse processo, foi diretamente escrito. Cada relato foi colhido em um local diferente e em datas diferentes. Os sujeitos viajantes foram convidados a relatar sua experiência de viagem, bem como a selecionar fotografias de seu próprio acervo que considerassem mais significativas, seja por registrar um momento importante ou um local. As fotografias foram incorporadas aos relatos posteriormente, cerca de cinco ou seis para cada relato. Os casos em que a seleção dos viajantes envolveu mais fotografias, eu selecionei àquelas que foram mencionadas durante as conversas por entender que elas, contextualizadas e anunciadas, carregavam um peso maior conferido e relatado pelo próprio viajante. Os significados essenciais se relacionam diretamente com a experiência de cada viajante, e sua vivência do fenômeno. Ao descrevermos a viagem da forma como a vivenciamos, nós, viajantes, permitimos a análise dos seus significados e a compreensão do fenômeno a partir dos seus aspectos singulares, universais e essenciais. “As essências representam as unidades básicas de entendimento comum de qualquer fenômeno, aquilo sem o que o próprio fenômeno não pode ser pensado.”14 A apreensão das essências é primeiramente intuitiva, pois nos permite agrupar fenômenos essencialmente semelhantes, como as viagens. Entender quais são essas características que determinam o fenômeno é possível através da redução fenomenológica. Ela compreende o retorno à coisa mesma e a 13 SILVA, Sérgio Luiz P. Cultura Visual e afirmações identitárias: novos processos de reconhecimento social. In: Seminário Nacional de Movimentos Sociais, Participação e Democracia, II, 2007, Florianopólis. Anais… Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2007, p. 611. 14 MOREIRA, 2002, p. 84. 17 suspensão de toda afirmação de existência que não advenha do sujeito que vivencia e anuncia o fenômeno. Nesse sentido, e tendo em consideração que “mesmo Husserl, em nenhum momento de sua obra procurou esclarecer definitivamente o que se deveria entender por método fenomenológico e delimitar seu significado e abrangência”15, defino aqui o percurso trilhado, baseado na fenomenologia de Husserl, em três etapas: descrição densa; redução; interpretação. Sabendo que: “O retorno à experiência do sujeito e o método da descrição são os dois traços que caracterizam, desde o início, o método fenomenológico.”16. A descrição densa consiste em dizer tudo aquilo que envolve a experiência singular a que nos referimos, mesmo tendo que provar da pobreza da descrição. Consiste em não completar, isto é, não preencher de propósito as lacunas da descrição, e em ser o mais completo possível, sem negligenciar qualquer faceta da coisa descrita17. Merleau-Ponty diz que essa é a primeira ordem de Husserl: “Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar”18. A redução consiste em variar a coisa descrita até se atingir a consciência da impossibilidade, ou seja, da característica da coisa reduzida sem a qual é impossível pensar. “Tal é o gesto da redução: um retrocesso ao originário sensível, que implica movimento de imersão no mundo concreto. Tais reuniões dão lugar a uma quasecoincidência de nossa carne e do mundo sensível.”19. A redução eidética é “a resolução de fazer o mundo aparecer tal como ele é antes de qualquer retorno sobre nós mesmos, é a ambição de igualar qualquer reflexão à vida irrefletida da consciência” 20. A interpretação consiste no ato final. “Se incluído em algum método fenomenológico, este passo seria obrigatoriamente o último, pois a interpretação encerra qualquer análise”21. A valorização da experiência pela ciência está na ordem do dia. Esse trabalho, de cunho geográfico, se constitui através do entrelaçamento dos saberes da fenomenologia, da geografia humanista e da experiência do viajante. Se insere nesse contexto, e se torna não apenas uma expressão da possibilidade da ciência baseada no indivíduo (superando a querela empirismo versus logicismo) mas também uma abertura (para mim, para outros) MOREIRA, 2002, p. 93. DEPRAZ, 2007, p. 7. DEPRAZ, 2007, p. 30. MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da Percepção. Carlos Alberto R. de Moura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3. 19 DEPRAZ, 2007, p. 53. 20 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 13. 21 MOREIRA, 2002, p. 101. 15 16 17 18 18 para a elaboração de novos trabalhos e de novas perspectivas para velhos trabalhos. Essa pesquisa, ainda, contempla a elucidação de um fenômeno em voga, que é a viagem. Facilitada pelos avanços dos transportes aéreos, pela política internacional que protege o viajante internacional e muitas vezes facilita a viagem através de acordos de trabalho e estudos (como os intercâmbios universitários), e pela multiplicação de agências e pacotes promocionais de viagem através de compras coletivas, a viagem é hoje uma realidade que perpassa o conhecimento de novos espaços (cidades, monumentos, pessoas, costumes e patrimônios culturais), e, portanto, tem bastante a dizer à geografia do indivíduo. Esse trabalho foi dividido em três partes. Cada parte constitui o todo desse trabalho, mas como as viagens e a experiência, são infinitas em si mesmas e não estão, de maneira alguma, acabadas. Embora estejam materializadas aqui dessa forma, e não de outra, ainda são a evidência de um assunto que é inesgotável. Não pretendo aqui passar algumas informações ou contar histórias. Pretendo realizar uma atividade reflexiva, mas que não seja apenas minha. Nos espaços brancos entre uma letra e outra dessa escrita deixo a abertura para a reflexão. Nessa primeira parte, Agulha e linha, estabeleço as bases que sustentam e possibilitam esse trabalho. Não discuto, porém, a viagem, visto que busco me voltar à coisa mesma, vivida; que está presente na segunda parte, Viajar, na qual apresento o que vivi, ouvi e li sobre as viagens, os relatos pessoais com os quais estou em contato; na terceira parte, Tecendo geografias em viagens, escrevo e reflito sobre a relação entre os sentimentos e impressões – os significados – do espaço com seus recortes categoriais geográficos, numa tentativa de expressar e compreender essas relações entre os viajantes e os recortes espaciais que definem melhor suas vivências na viagem. Da ciência ou como fazer ciência através da compreensão de experiências individuais O conhecimento científico se valida através dos procedimentos que permitem chegar a ele – o também chamado método científico. Baseado inicialmente em experimentos inúmeros que buscavam confirmar ou eliminar hipóteses, o método científico se modificou. Tornou-se obsoleto. Não contemplava o conjunto diverso de práticas dos cientistas para se compreender a realidade. Ainda hoje, diversas escolas de pensamento conversam umas com as outras buscando fundar um método de conhecimento mais pertinente. O que se verifica, no entanto, é que os métodos são aplicados em consonância 19 com os objetivos pretendidos. A ciência existe enquanto saber fragmentado em diversas abordagens e matrizes teórico-metodológicas22, que apresentam inclusive diferentes concepções de ciência. Husserl buscava um ideal de ciência rigorosa. Esse rigor se traduz: “a ciência era um sistema de conhecimento conectado por razões de tal forma que cada passo era construído sobre seu predecessor em uma sequência necessária”23. Entretanto, ele admitia que a forma como a ciência era feita, marcada pelo abismo entre o positivismo e o psicologismo, a impedia de tornar a vida humana mais significativa. “A ciência pedia por uma filosofia que a pusesse em contato com as preocupações mais profundas do ser humano”24. Husserl afirmava a existência de uma crise das ciências. Essa crise não se definiria pela ausência de uma cientificidade genuína (não abalava seus resultados teóricos), mas por um certo “enigma da subjetividade” que comprometia todo o seu sentido de verdade. “Que tem a dizer a ciência sobre a razão e a não razão, que tem ela a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos desta liberdade? A mera ciência dos corpos obviamente nada, pois abstrai tudo o que é subjetivo.”25. Ou seja, o estudo das subjetividades é essencial para a constituição de uma ciência significativa, que tenha algo a dizer sobre a existência humana. Husserl diz ainda que “a verdade científica, objetiva, é exclusivamente a verificação daquilo que o mundo, de fato, é, tanto o mundo físico como o espiritual”26. O método fenomenológico desenvolvido por ele, em termos gerais, busca retomar as investigações acerca do que o mundo, de fato, é, levando em consideração tantos os aspectos físicos quanto espirituais, de uma maneira rigorosa; levando em consideração especificamente o que o mundo é – para a consciência que o anuncia. Merleau-Ponty afirma que o universo inteiro da ciência é “construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda”27. 22 MARANDOLA, Eduardo. Da existência e da experiência: origens de um pensar e de um fazer. Caderno de Geografia, Belo Horizonte, v. 15, n. 24, 2005. 23 MOREIRA, 2002, p. 81. 24 MOREIRA, 2002, p. 81. 25 HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Uma introdução à Filosofia Fenomenológica. Trad. Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 3. 26 HUSSERL, 2012, p. 3. 27 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 3. 20 Sendo assim, acredito que é insensato tentar neutralizar qualquer trabalho, retirando das palavras o sujeito que as escreve, conforme fica evidenciado aqui – e que isso não se confunde de maneira alguma com o ato de colocar o fenômeno investigado entre parênteses para apreender o que ele é sem a influência do que já foi dito sobre o que ele é. E vou além: entendo que a própria negação dessa ciência da ordem e da lei permite a abertura para outras abordagens, inclusive àquelas que se baseiam na experiência do indivíduo como forma de compreender o sentido da existência e do mundo, o que não significa incorrer em um relativismo, conforme veremos. Marandola28 afirma que no estudo das experiências “imbricam-se os sentidos, as sensações, as percepções, as cognições e as relações entre diversos polos que podem ser tanto complementares quanto concorrentes: tempo-espaço, subjetividade-objetividade, história-memória, indivíduosociedade”. Para fundamentar uma tal concepção da ciência e da própria possibilidade de se compreender o mundo, recorro a fenomenologia. Singular, universal: significados essenciais Husserl afirma que não existe consciência que não seja de algo. A existência é intencional. Só existimos nesses momentos de visar algo, nessa relação nossa com o mundo. A consciência é uma atividade de estar consciente, constituída por atos. Podemos pensar, sentir, fantasiar, lembrar, julgar, comparar, explicar, ou seja, realizar diversos atos de consciência. Mas em cada um desses atos de consciência está também o fenômeno pensado, sentido, fantasiado, lembrado… Porque estar consciente é estar consciente de algo. Todos esses movimentos se traduzem no conceito de vivências. Segundo Depraz29, “as vivências de um sujeito formam a textura imanente de sua consciência, pela qual é capaz de se apropriar dos objetos do mundo, recebendo-os a princípio em sua qualidade sensorial, material e sensível”. Nesse trabalho, utilizo a noção de experiência para designar esses movimentos de vivência do mundo. A experiência “abrange as diferentes maneiras por intermédio das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Essas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização”30. Parte da experiência é a percepção dos fenômenos sensíveis, através 28 MARANDOLA, 2005, p. 51. 29 DEPRAZ, 2007, p. 21. 30 OAKESHOTT, 1933. Citado por TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2013, p. 17. 21 dos sentidos. Mas os fenômenos não são percebidos em sua totalidade. Sempre falta uma parte, seja porque nosso olhar não contempla o todo do objeto ou porque a luminosidade do ambiente não nos permite. Estamos sempre completando os objetos visados, o que nos permite pensar em uma primeira análise que eles já se dão em sua totalidade a nós. Os fenômenos são infinitos. Essa mesma abertura, possível porque não vemos a totalidade dos fenômenos ou dos objetos, permite que haja a sua universalização. Além de simplesmente perceber os fenômenos, nós percebemos intuitivamente a essência dos fenômenos. Porque ao visar uma casa (ou diversas casas diferentes), sabemos que é uma casa. Sabemos que casa corresponde a diversos tipos de casas e não a uma só porque já apreendemos a essência de casa – mas também corresponde a cada uma. Existem algumas definições já incorporadas a nós que permitem visualizar, em cada uma, seu traço singular, e também seu traço universal. As essências são as maneiras características do aparecer dos fenômenos. Não são resultados de uma abstração ou comparação de vários fatos. Para poder comparar vários fatos singulares, já é preciso ter captado uma essência, ou seja, um aspecto pelo qual eles são semelhantes. O conhecimento das essências é intuição diferente daquela que nos permite captar fatos singulares. As essências são conceitos, isto é, objetos ideais que nos permitem distinguir e classificar os fatos.31 A experiência não é particular; não diz respeito a só uma situação. Ela é singular, e é universal32. Apreender o universal das experiências permite uma compreensão do geral, superando o relativismo – que implica basear o saber apenas em particularidades infinitas. A viagem tem seus traços singulares, que dizem respeito à experiência contingente do indivíduo, mas também tem seus traços universais. Sendo assim, esse trabalho não se baseia em um relativismo empirista, mas sim na fenomenologia, no estudo dos fenômenos (essências de fenômenos, significados e percepções) conforme proposto, especialmente, por Husserl e Merleau-Ponty. Sujeitos, viajantes Husserl afirma que não existe consciência que não seja de algo. De fato, “a ideia central de Husserl foi sempre de que a consciência era a condição de toda a experiência, e até mesmo constituía o mundo, mas de uma forma tal que o próprio papel da consciência era 31 ZILLES, Urbano. Introdução. In: HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia. 3º ed. Porto Alegre: EDIPURCS, 2008. 32 DEPRAZ, 2007. 22 obscuro e difícil de isolar e descrever” (tradução minha)33. Sem algo ao que a consciência visa, o mundo, não existe consciência. O que significa dizer que nós existimos no mundo, e sempre no mundo, porque o fenômeno que nos permite estar aqui e dizer ou pensar qualquer coisa (inclusive esse trabalho), o que nos permite perceber que nós estamos aqui, é a consciência intencional. Husserl34 nos diz que “O mundo é o conjunto completo dos objetos da experiência possível e do conhecimento possível da experiência, dos objetos passíveis de serem conhecidos com base em experiências atuais do pensamento teórico correto [fenomenológico]”. Dessa forma, os indivíduos não devem ser considerados por si mesmos, mas sempre em interação com o mundo. Suas experiências se dão numa relação entre o ser que experiencia, o experienciar e o que é experienciado. De modo que o mundo não deve ser considerado como exterior ao ser, “independente do meu modo de ser; ele possui um sentido para mim, ele me é dado em seu sentido antes que em seu ser. Ou ainda: seu ser reside em seu sentido”35. Se o que há é uma consciência de algo, esse algo só existe para mim na medida em que é percebido. Logo, seu ser é antes o seu sentido. O sujeito se confunde com o objeto, se completam, concorrem, coexistem. De forma que falar da experiência da viagem não significa descrever a relação entre um ser e sua exterioridade, os espaços da viagem; é mais do que isso. Essa relação inclui uma intencionalidade, uma necessidade de presentificação entre as partes. O sujeito que visa e o objeto que é visado são copresentes e se confundem na textura mesma do ser no mundo. Expressar essa relação através da geografia é como tecer. É infundir na textura do mundo grafias dos momentos de um contato entre ser e mundo que transpassa e perfura a própria espessura dessa existência. Ser no tempo e no espaço: recortes geográficos O ser humano é, portanto, consciência de fenômenos do mundo. Estabeleci já a necessidade do mundo para a existência da consciência. A consciência, por sua vez, só se realiza na corporeidade do ser humano. Enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para mim o espaço e o tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma infinidade de relações das quais minha consciência 33 MORAN, Dermot. Introduction to phenomenology. Londres: Routledge, 2000, p. 61. No original: “Husserl’s central insight was that consciousness was the condition of all experience, indeed it constituted the world, but in such a way that the role of consciousness itself is obscured and not easy to isolate and describe. ”. 34 HUSSERL, 2006, p. 34. 35 DEPRAZ, 2007, p. 40. 23 operaria a síntese e em que ela implicaria meu corpo; não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca. A amplitude dessa apreensão mede a amplitude de minha existência; mas, de qualquer maneira, ela nunca pode ser total: o espaço e o tempo que habito de todos os lados têm horizontes indeterminados que encerram outros pontos de vista36. O ser no mundo, que é a própria síntese da existência humana, só se dá corporificado. O corpo não é uma ponte entre a consciência e mundo; é a própria consciência. “Neste campo de relações o corpo representa a transição do 'eu' para o mundo, ele está do lado do sujeito e, ao mesmo tempo, envolvido no mundo. O corpo constitui o ponto de vista do ser-no-mundo.”37. A forma como a consciência-corpo se dá no mundo é imediatamente através da percepção. O tecido do mundo é um continuum do tempo e do espaço. A experiência perceptiva se dá na medida em que o ser humano existe. “De forma que, se eu quisesse traduzir exatamente a experiência perceptiva, deveria dizer que se percebe em mim e não que eu percebo”38. Ela não é uma vontade ativa, é antes uma manifestação do mundo que se dá em mim; uma espécie de intencionalidade passiva e essencial à existência, que existe na coexistência, de forma que apenas a minha solicitação não o presentifica, da mesma maneira que não existe na medida em que não se dá a mim. Essa manifestação do mundo que se dá em mim através da experiência perceptiva é uma sensação. Toda sensação pertence a certo campo. A visão, por exemplo, refere-se à presença de um campo visual, ao qual o ser humano tem acesso. Da mesma forma, a audição. Esses campos definem a noção de sentido. Sentidos são sensações que pertencem a certo campo39. Cada qualidade é “reveladora do ser” de um objeto40. Entretanto, a unidade de um objeto permanece desconhecida se considerarmos cada uma das suas qualidades como dados que pertencem a sensações distintas (visão, olfato…). “A unidade da coisa não se encontra por trás de cada uma de suas qualidades: ela é reafirmada por cada uma delas, cada uma delas é a coisa inteira”41. Na compreensão das experiências de viagens, busco entender como o tecido continuum 36 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 194-5. 37 HOLZER, Werther. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. Revista Território, ano II, n. 3, jul/dez de 1997, p. 82. 38 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 290. 39 MERLEAU-PONTY, 1999. 40 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 23. 41 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 22. 24 espaço-temporal manifesta-se nos viajantes e quais sentimentos produz nessa dialética, expressando-a à maneira da geografia. Portanto, valorizo os sentidos e as sensações enquanto interações do corpo no espaço (ou do espaço no corpo). A relação carnal entre o sujeito e o mundo define sua própria existência no espaço. “Nossas relações com o espaço não são as de um sujeito desencarnado com um objeto longínquo, mas as de um habitante do espaço com seu meio familiar”42. A existência baseada numa relação em que se interpenetram ser e mundo permite a definição de recortes geográficos expressivos de manifestações do mundo no corpo ou do corpo no mundo. Essa noção é melhor explorada na terceira parte, Tecendo geografias em viagens. Pontes para a viagem O que podemos dizer, então, sobre a viagem? Vimos que a relação do sujeito no mundo conforme proposta na fenomenologia de Husserl permite o entendimento da experiência da viagem não como descrição da relação entre um ser e sua exterioridade, os espaços da viagem; mas através de uma relação que inclui uma intencionalidade, coexistência que se confunde na textura do ser no mundo. Na compreensão das experiências de viagens, devo entender como o tecido continuum espaço-temporal manifesta-se nos viajantes e quais sentimentos produz nessa dialética, expressando-a à maneira da geografia. Entendo a necessidade do corpo ser no mundo e valorizo as formas de interação corpo-mundo, notadamente através das percepções, sensações, sentidos e impressões. A relação entre singular-universal na concepção fenomenológica permite concluir que a viagem tem seus traços singulares, que dizem respeito à experiência contingente do indivíduo, mas também tem seus traços universais. Para compreender ambos os aspectos devo voltar à coisa mesma. Voltando à experiência da viagem, compreendo sua essência. Não pré-julgo ou imagino quais serão os sentimentos e impressões que constituem a viagem, mas antes busco voltar à própria experiência – seja ela a minha ou de outros. As concepções aqui expostas delimitam os fundamentos, a agulha e a linha que vão permitir tecer na textura do mundo grafias dos momentos de contato entre ser e mundo, que transpassa e perfura a própria espessura dessa existência. 42 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 16. 25 Colocar as viagens entre parêntese na busca dos seus significados essenciais perpassa um primeiro movimento: o descritivo. A descrição envolve trazer à mente a experiência e a vivência da viagem, e a articulação das impressões e sentimentos em palavras que possibilitem sua criação. Esse processo não ocorre sem dificuldades. A inclusão das fotografias nos relatos de viagem procura presentificar seus conteúdos, compor a memória e evidenciar o olhar e as impressões que os espaços da viagem proporcionaram nos viajantes ou os viajantes nos espaços. Esses relatos permitem mesmo a criação de uma experiência de viagem e respondem a uma autoria compartilhada: eles são tanto meus quanto daqueles que os anunciaram. O tecido que aqui será composto é marcado pelos relatos de cinco viajantes, incluindo o meu, nossos encontros e outras linhas – formando nós, expressão do cruzamento de fios. 26 Sob a chuva abro um mapa-múndi. Joan Brossa 27 SEGUNDA PARTE – Viajar 28 Eu, viajante Esse relato foi concebido em um quarto bagunçado e cheio de livros, aos sons de uma cidade ao crepúsculo. Grande parte dele foi percorrido pelo sol que é sempre de verão nessa cidade. Outra parte foi regada a música, e outra ainda a café preto e forte. De modo que as palavras são todas manifestações singulares de um momento verdadeiro: de sol, música e café. Percorrido por lembranças, recordações e sensações de uma viagem inteira. Fui para a França em setembro de 2012 e voltei em fevereiro de 2013. Fiz um semestre do curso de Geografia na Universidade de Versailles, campus Saint-Quentin-en-Yvelines, que fica no departamento de Yvelines. Morei numa cidade próxima a Saint-Quentin, que se chama Élancourt. Fica a menos de uma hora de viagem de trem de Paris. O processo de seleção dos intercambistas pela UFMG é composto de várias fases. Após ser aprovado em cada uma, existe a necessidade de apresentar centenas de documentos e preencher outros tantos na busca por visto, moradia, ajuda financeira, comprovação de proficiência linguística, seguro de saúde estrangeiro, etc. Conseguir o visto em si inclui uma jornada, com direito a viagens para o Rio de Janeiro. Tantos documentos e burocracias suscitam um sentimento – preguiça. O início da viagem, toda a preparação para o momento em que eu sairia do avião em solo estrangeiro, em um continente no qual eu conhecia uma, talvez duas pessoas apenas, é uma mistura de nervosismo e muita preguiça. O momento em si em que eu pousaria era ainda uma incógnita. De certa forma, continua sendo. Fiz uma pequena escala em Portugal. Não duraria uma hora. A primeira coisa que fiz ao andar em solo europeu foi, terrivelmente, procurar um banheiro e – bem, vomitar todo o jantar servido no avião. O aeroporto era uma quimera, meio shopping meio aeroporto. Andei rápido pelos corredores até a fila que me levaria para o próximo voo. O voo seguinte, para Paris, foi mais marcante, apesar de bem mais curto. A primeira vivência do idioma francês, sendo falado em toda a sua exuberância, foi ainda antes da decolagem. Houve um problema com algum passageiro, ele não pôde (quis?) entrar no avião. Ficou do lado de fora discutindo com os membros da companhia de avião. Não entendi o que foi e isso segue sendo um mistério. Mas suscitou reações extremas dos outros passageiros, que compartilhavam suas opiniões (se em defesa do passageiro que não entrou ou contra o atraso de mais de uma hora na decolagem, eu sinceramente não sei) em altas vozes, num francês incompreensível. Minha primeira impressão dos aeroportos que conheci foi que tinham muitas pessoas diferentes. Vestindo trajes típicos 29 de diferentes culturas, religiões. Com fisionomias diferentes e tantos idiomas e jeitos de falar incompreensíveis. Ver essas pessoas foi fantástico e impressionante. Ao chegar à França, a ansiedade por não saber como iria do aeroporto até a minha moradia atingiu níveis intensos – e só se dissipou quando vi um homem segurando um pedaço de papelão com meu sobrenome. Era um serviço da universidade que transportava os intercambistas até a moradia ao chegar, mas que em momento algum foi confirmado. O homem tentou conversar durante toda a viagem até a minha nova cidade, Élancourt, mas eu não queria desviar minha atenção do trajeto que passava pela janela. Disse para ele que não falava francês e não nos falamos mais. O trajeto, para minha decepção, não passava por nenhuma cidade. A estrada era contornada por floresta dos dois lados. Ainda que a floresta fosse de um tipo novo para mim. Eu queria ver tudo. A moradia era um prédio no final de uma rua sem passagem para carros, vizinha de um parque, de um teatro e de um outro conjunto de apartamentos idênticos para idosos. Meu apartamento era no segundo andar. A primeira impressão dessa nova vida foi uma sensação aguda de que eu estava sozinha. Foi suscitada pela necessidade de subir quatro lances de uma escada estreita carregando uma mala gigante e pesada totalmente sozinha. Seguida do conhecimento de que meu novo apartamento era menor do que o quarto que eu tinha deixado para trás. Por fim, reforçada pelo fato de que meu telefone celular não funcionava, eu não sabia como usar o telefone público e não tinha acesso à internet. Tive que pedir socorro a uma amiga, Carol, que mora com o noivo em Paris. Nós conhecemos desde o ensino fundamental, quando estudamos juntas. Então encontrar ela nesses primeiros dias incomunicáveis foi como encontrar um pedaço de casa. Ela me apresentou Paris pela primeira vez. Com ela, visitei a Torre Eiffel, a avenida Champs-Elysée e a Igreja de Notre Dame. Os primeiros momentos daquela viagem ficaram marcantes, assim como os últimos. Não sei muito bem como foi o desenvolvimento dessa viagem. Tenho, na verdade, lembranças de momentos que ficaram, por algum motivo, bem acessíveis a memória. Assim como dos sentimentos relativos aos espaços em que vivi naqueles seis meses. A descrição a seguir não vai obedecer a uma cronologia real, até porque não sei qual foi (se é que ela de fato existiu). A moradia estudantil em que morei se chama Lamarck e fica na cidade de Élancourt. A universidade em que eu estudava fica em uma cidade próxima, Guyancourt. Nos meus primeiros dias na França me dediquei a andar pelos arredores da moradia, e uma das 30 minhas primeiras dúvidas foi… Geográfica! Escrevo: “Me pergunto qual é exatamente a configuração da estrutura urbana aqui. As cidades são muito próximas das outras, e são bem pequenas, pelo que pude ver.” (em setembro de 2012). Da minha casa até a estação de trem, trajeto de 15 minutos andando, eu passava por Élancourt, Maurepas e La Verrière. A cidade em si me trazia sentimentos contraditórios. Embora fosse organizada, limpa e cheia de árvores e canteiros de flores que a deixavam esteticamente agradável, sempre me pareceu organizada demais, limpa demais e bonita demais. Arranjos de flores em postes de luz em cada rotatória (existia uma a cada 500 metros) e bandeiras da França em cada esquina tornava a cidade um pouco surreal para mim. Sentia falta da intervenção popular! Os diversos parques que existiam nos arredores da moradia estavam sempre ocupados por idosos jogando “petanque”, ou bocha em português, crianças correndo e pessoas passeando com seus cães, mas talvez por estar sozinha, talvez por não ter vivido essas situações, sempre me pareceram que essas pessoas usavam os espaços sem se apropriar deles. As árvores e a grama e os bancos poderiam muito bem não ter sido usados no fim do dia. Quando achava intervenções nos muros ou nos transportes públicos, ficava sinceramente feliz. Fotografei alguns. O apartamento 121, onde morei, foi ocupado por sentimentos mais intensos. Seu tamanho e estrutura (afunilada, como um corredor) me davam sempre a impressão de estar apertada, sufocando. Essa impressão era tão forte que me fazia sair correndo às vezes. Sobre isso, escrevi: “Pensei pela primeira vez em como deve ter sido enlouquecedor ficar em uma cabana sozinho no meio da floresta por tanto tempo. Sempre achei fascinante o Thoreau ter feito isso, admirável até. Mas fala sério. Como ele conseguiu?”43. Essa sensação se somava com a solidão e o silêncio da casa – que parecia ter um isolamento mais eficiente que o normal daqui, porque quando estava muito frio e fechava a janela, eu não ouvia nada do lado de fora – e se tornava mil vezes mais intensa. Por outro lado, não ficava muitos dias sem ir pra casa. Chegar, depois de uma viagem ou depois de alguns dias em casas de amigos, era sempre um alívio. Ir para o apartamento 121 depois da aula, das compras, do cinema ou das constantes idas à Paris, era sempre agradável. Especialmente no inverno, quando o seu constante aquecimento me dava a impressão de 43 Refiro-me aqui a Henry D. Thoreau, estadunidense que escreveu o livro “Walden ou a vida nos bosques”, publicado em 1854, no qual narra sua vida por pouco mais de um ano em uma cabana no meio da floresta, isolada de praticamente todos. 31 que o apartamento 121 era um pequeno e aconchegante lugar aquecido no frio impassível daquele continente. Existe mais a se dizer sobre a moradia. Aliás, isso pode servir para todos os seis meses que passei na Europa. Se por um lado eu estava lá, por outro eu poderia estar em qualquer outro local. Refiro-me a todo o tempo e espaço que usei para sair do espaço e o do tempo em que estava. A literatura e o cinema sempre foram meus companheiros constantes. No apartamento 121, nosso relacionamento se intensificou. Grande parte das minhas lembranças e impressões dele foi produzida por personagens e espaços que conheci apenas no meu espírito. E o que dizer sobre isso? A Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines foi mais um espaço que eu visitei, e de maneira constante nesses seis meses, e foi em grande parte um ambiente hostil. Em primeiro lugar, por não estudar o que eu queria – geografia. Os estudos obrigatórios de francês demandavam mais tempo do que os outros. As disciplinas de geografia eram incompatíveis em horário com eles. Sem falar que já tinha cursado a maioria, já que viajei no final do meu curso aqui. Não me envolvi com os estudos que fiz, sobre relações internacionais, a União Europeia e história da arte. Os estudos sobre a União Europeia e as relações internacionais me provocam estranhamento. Era curioso ver a opinião dos jovens sobre o resto do mundo e os posicionamentos sobre como a França deveria se relacionar com o mundo, especialmente quando falavam sobre o Brasil. O Brasil de repente tinha se tornado meu lar. Ver estudantes falando sobre ele, pesquisando sobre ele, era simplesmente curioso. Por outro lado, as aulas não me envolviam muito. Os professores entravam, abriam os computadores e liam seus materiais de aulas de maneira compatível com a apresentação que exibiam numa tela maior para o auditório. Os alunos entravam, assistiam a aula e não havia maiores interações entre nenhuma das partes. Fazer trabalhos em grupos foi uma das partes mais sofridas de se estudar lá. As minhas relações com os nativos não foram em nenhum momento agradáveis, pois mesmo tendo que desenvolver trabalhos em grupos eles nunca estavam interessados em interagir. Era sempre um processo sofrido, agravado pela dificuldade em comunicar com o idioma francês em um nível universitário – coisa para qual eles não demonstravam nenhuma paciência. Diferentes eram as aulas de francês, com os outros intercambistas, que exigiam muito participação e envolvimento, inclusive com as professoras, tornando a aula muito mais agradável. Dessa forma, com exceção das aulas e algumas atividades extracurriculares, como palestras com convidados e tempo aproveitado na biblioteca, não tive uma vivência muito grande da universidade. 32 Os momentos que compunham minha rotina nesses meses envolviam idas a faculdade, praticamente todos os dias de manhã ou/e a tarde, ao supermercado a noite e às vezes ao cinema. Quando ficava em casa, dedicava meu tempo a leitura ou assistia a filmes e seriados. Os finais de semana eram marcados por visitas aos amigos, principalmente brasileiros, e à Paris. Na moradia estudantil havia uma sala para encontros, onde os intercambistas se reuniam e, de vez em quando, contavam com a presença de um ou dois franceses. Tinha decidido já visitar Londres, Amsterdã e Veneza e tentei fazer isso nas pequenas férias que tínhamos a cada dois meses. Foram duas casas de amigas que eu visitei constantemente. A primeira, em Paris, da Carol, onde ela vive com seu noivo, e para onde eu corria sempre que precisava. A segunda, em Guyancourt, de duas amigas brasileiras que conheci na universidade e cuja companhia foi fundamental para meus seis meses naquele país. As duas casas sempre me pareceram agradavelmente habitadas, um lar e uma possibilidade de uma vida boa naquele país. Com minhas amigas universitárias brasileiras, vivi momentos deliciosos, seja durante as festas que fomos juntas, os filmes na casa delas ou enquanto fazíamos salgados, brigadeiro ou crepes (para matar a saudade) ou semanalmente, quando tomávamos vinho, tanto vinho, para nos aquecer nas noites frias. As idas à Paris semanalmente foram marcantes. Nelas, eu podia visitar museus, como o Louvre e o Pompidou, ou ir a exibições de filmes comentados por diretores. Muitas vezes, apenas percorria as ruas a pé por horas e horas, visitando sebos, feiras, cafés e restaurantes ou, durante a noite, ia com outros amigos a festas e bares. Percorri caminhos e cenários conhecidos através de filmes famosos, como “O fabuloso destino de Amélie Poulain”. Conseguia o tempo todo apreciar a estranheza (que não era estranha, mas antes diferente) daquela cidade. Os prédios, os monumentos, as ruas, os costumes e as vestimentas. Tudo que parecia diferente inspirava um deliciamento. Apenas ver aquilo me trazia um contentamento quase sensual que me preenche até hoje, quando penso nisso. Eu perdi o fôlego de verdade quando vi a Torre Eiffel da janela do trem, ao longe e quase perdida na escuridão, no fim de tarde em que fui pela primeira vez à Paris. Acho que foi quando eu finalmente me dei conta de onde eu estava. Tudo o que eu senti depois disso ainda teve uma pitada de descrença, mas era quase como uma coceira – um pequeno incômodo num canto da mente, que parecia dizer “não é real”. Por outro lado, caminhar por Paris, subir na Torre Eiffel e percorrer a Champs-Élysée ou ver a Monalisa no Museu do Louvre, nada me provocou uma reação tão forte novamente. Sobre isso, escrevi (em 33 setembro de 2012): As impressões que tive até então é que as pessoas são sempre pessoas, se parecem sempre com pessoas, sejam elas de onde for. Via um vislumbre de brasilidade em tantas que até esquecia de falar francês. É estranho ver elas usando outro idioma, que impede uma comunicação de verdade, quando somos todos tão parecidos. A Carol me corrigiu depois. Disse que não é todo mundo que parece brasileiro, são os brasileiros que parecem com todo mundo. E isso faz todo sentido! Paris se mostrou como qualquer cidade. Achei uma definição perfeita em um livro sobre como são as “estranjas”. “São só outros lugares. Exatamente como aqui, só que diferente.”44. Não tem nada mágico, nenhum conhecimento secreto e novo. Se por um lado a vida cotidiana inspirava sentimentos comuns, daqueles que eu sentia por aqui – preguiça de acordar cedo e ir pra aula, ter que arrumar a casa ou entusiasmo ao ver os amigos a noite para a diversão – por outro nunca estava muito longe o contentamento por respirar num espaço tão diferente (Figura 2). O clima, as árvores e a própria maneira de ser da cidade ou dos habitantes, as relações com outros estrangeiros, tudo isso era empolgante. Assim como desafiador. A insegurança por não dominar um idioma era paralisante, às vezes. A saudade de casa também. Aqui no Brasil, sou antes uma universitária que domina o idioma português, tanto a escrita quanto a fala. Na França, eu não dominava nada. A insegurança de falar ou escrever; de conversar normalmente com as pessoas na rua é paralisante. Em diversas situações, não fui capaz de responder a conversas espontâneas no ônibus ou a perguntas por localização simplesmente porque não me sentia segura o suficiente para falar. Esse foi, de longe, o pior sentimento. Pior que a solidão ou a tristeza ou a saudade. Em Paris, também participei das grandes manifestações por igualdade entre as relações hetero e homossexuais perante a justiça. Foram as primeiras manifestações que participei que envolviam centenas de milhares de pessoas. Além disso, pude encontrar franceses dispostos a conversar ou simplesmente a sorrir, em ruas que já tinha percorrido anteriormente mas que nesse novo contexto me fez sentir novas coisas. Era como ver uma prova de que tantas outras manifestações e revoluções já tinham ocorrido naquelas mesmas ruas. Contemplar monumentos, como memoriais de guerra ou cemitérios, não deram uma ideia tão forte de que a história que eu estudei da Europa de fato aconteceu, como ver aquelas centenas de milhares de pessoas nas ruas. Nesse sentido, podia ver vestígios da história. Alguns cemitérios tinham inscrições em lápides de pessoas que 44 PRATCHETT, Terry. Direitos iguais, rituais iguais. Trad. Roberto DeNice. São Paulo: Editora Conrad do Brasil, 2002, p. 52. 34 morreram em campos de concentração durante a expansão do nazismo, que foi o mais perto que já tinha chegado de uma certeza de que aquilo de fato aconteceu. A primeira viagem que fiz, dentro da viagem, foi à Londres (Figura 3), para passar o Dia das Bruxas, 31 de outubro. A escolha do dia não foi aleatória. Londres era uma cidade das mais importantes para mim por causa da minha história com a série de livros da escritora de fantasia J. K. Rowling. Em 2001, eu tinha 10 anos quando assisti pela primeira vez um filme do Harry Potter. Desde então, acompanhei as estreias de filmes e livros, lendo e vendo tudo o que podia e quantas vezes fossem até saber tudo que acontecia em cada história. Londres está eclipsada pelas minhas leituras de Londres. De maneira que toda a visita foi uma busca por pisar nos lugares significativos para a história. Já tinha percorrido Paris a procura dos espaços da Amélie Poulain45, mas visitar Londres foi como acessar espaços que só existiam e me eram completamente familiares na minha própria mente. Foi como ver uma cidade literária posta em suspensão pelo mundo, sem qualquer preocupação com a sua realidade. E, nesse sentido, foi esfuziante. Nos primeiros dias, tirei fotografias de todos os ônibus com letreiros para King's Cross. Visitei a estação de trem apenas para sentir como seria pisar num lugar tão importante. Ver a placa indicando a “Plataforma 9 3/4” foi intenso. Assim como visitar os estúdios da Warner Bross, de Harry Potter. Não sei direito como explicar a familiaridade e a estranheza, o deslumbramento que era andar por aqueles lugares. Foi perfeito em um nível que eu só posso compreender quando leio novamente os livros e sei que já fui ali. Para ver melhor a cidade, eu preferia andar a pé a de metrô ou ônibus. Quando ia muito longe, preferia ir de ônibus porque ainda podia ver a cidade. Visitei museus e monumentos. Nesses, uma das coisas que mais me incomodou foi ver alas dedicadas a povos dominados pelos ingleses, como os indígenas da América do norte e central, ou povos africanos. Roupas, utensílios de caça e outros artefatos desses povos estavam expostos, assim como mapas informando onde eles viviam. Pareciam se vangloriar do assassinato de povos inteiros e, nesse sentido, eu só conseguia me pensar como fruto de um país colonizado. A consciência da exploração e da injustiça do assassinato de milhões de nativos (que ainda hoje continua) nunca foi mais cortante do que nessas viagens aos países colonizadores. Nesse sentido, esse aspecto da história da Europa foi mais incômodo do que qualquer um relativo às guerras mundiais ou ao nazismo. Refiro-me aqui ao filme francês “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, dirigido por Jean-Pierre Jeunet, de 2001, que se passa em Paris, especialmente em Montmartre. 45 35 Minhas lembranças de Londres estão convenientemente relacionadas aos livros e filmes que já tinham constituído uma Londres em mim, e por isso talvez não tenha ficado muito surpresa com o que vi por lá. Visitar o Big Ben ouvindo a Abertura 1812 de Tchaikovsky foi glorioso46, assim como conhecer os mágicos que faziam performances (roubadas) na ponte que leva ao Parlamento ou conhecer um bairro com predominância de moradores indianos. Os aspectos não esperados da cidade não comprometeram a minha Londres, apenas somaram. Como se todos os aspectos que eu finalmente conhecia, e me maravilhava por isso, fizessem a Londres velha conhecida e esses aspectos novos e inusitados fossem apenas características que eu só agora percebia, mas que faziam todo o sentido. Os transportes públicos eram meus espaços favoritos na França. Eu era aficionada por contemplar cada aspecto e cada detalhe dos cenários que passavam por mim – ou pelas quais eu passava. Por vezes, eu andava de ônibus apenas para variar e aumentar o tempo do trajeto. Podia ir para a universidade em 15 minutos de trem, mas de ônibus levava 40 minutos. Passava por diversas cidades até lá. Eu adorava. Os momentos mais marcantes e mais ordinários que contemplei foram em transportes públicos. Esses momentos pareciam sussurrar pistas sobre que espaço era aquele, como era morar ali a vida toda. Eu ouvia esses sussurros e os guardava. Era meio da tarde de domingo e o trem para Paris estava vazio. Um senhor entra e faz um pedido de ajuda. Qualquer coisa, dinheiro, comida ou trabalho. Ele aceitava. Ele tinha perdido tudo – assim como tantos outros que encontrei na mesma situação – e tinha uma família. Dois filhos, uma esposa. Não me lembro se mais alguém se manifestou, mas observei enquanto um jovem retirava um pão caseiro enrolado em um pano xadrez branco e vermelho de dentro da mochila. Ele partiu o pão ao meio e entregou metade ao homem, que aceitou. Em dezembro de 2012. Dessa vez, era noite. Eu estava em um metrô em Paris, lotado. Outro homem pedindo ajuda. Dessa vez, a reação das pessoas foi da indiferença ao descontentamento explícito. Já vinha observando essa mulher, antes do homem entrar. Não sei bem o motivo. Ela parecia estar além, acima, de uma forma meio elitista de ser. Observo ela tirar um cigarro 46 Refiro-me aqui ao momento em que o Parlamento inglês é explodido, ao som dessa música, no filme “V de Vingança”, dirigido por James McTeigue, de 2005. O filme retrata as ações de um revolucionário durante um futuro distópico na Inglaterra, que é controlada por um regime fascista. A máscara utilizada pelo protagonista, também conhecida como máscara do Guy Fawkes (em referência), se tornou popular durante as manifestações recentes que ocorreram em todo o mundo. 36 da bolsa e o segurar. Imaginei que ela fosse fumar assim que saísse do metrô. Ela estica o braço direito que segurava o cigarro ao longo do encosto do banco vizinho ao seu. Discretamente, ela entrega o cigarro ao homem. Em seguida, me vê observando a cena. Sua expressão é quase surpresa. Foi uma cena absolutamente deliciosa de se presenciar. Quando aconteceu comigo, não foi tão delicioso. Estava espremida no final do vagão de um metrô lotado em Paris, a noite. Alguns segundos em que um metrô vindo da direção contrária diminuiu para parar na estação, enquanto o que eu estava começava a sair da estação. Espremida, carregando um monte de sacolas e sem poder mexer muito bem, observei um jovem no outro metrô me olhando. Dois segundos e eu sorri. Ele sorriu de volta e o metrô já tinha ido. Alguns outros momentos facilmente recordáveis ocorreram fora dos transportes públicos. Um final de semana particularmente entediante, quando sai para dar uma das minhas inúmeras caminhadas pela redondeza, passei por duas garotas – uma vestida segundo a cultura ocidental e outra com véu e toda coberta – que conversavam com uma cumplicidade que só duas amigas poderiam ter. Outras pessoas, de diferentes culturas e em diferentes situações, foram igualmente marcantes. Algumas eu acompanhei de longe, pois sempre as via nos mesmos lugares cotidianamente. Era reconfortante encontrar essas pessoas no ônibus, na estação de trem, na universidade ou no banco, como se reconhecer estranhos fosse algum parâmetro de familiaridade ou de que eu tinha um lar. A segunda viagem que fiz, essa que durou apenas um final de semana, foi à Amsterdã. Eu já tinha planejado aproveitar a liberação e aceitação do consumo de drogas para experimentar um bolinho de maconha, chamado space cake. De forma que cheguei já a noite e depois de uma parada no albergue, um coffee shop foi minha parada seguinte. Vivenciar essa experiência de ir a um estabelecimento, um café, comprar e consumir um bolinho de chocolate com maconha dentro enquanto bebia um achocolatado foi inusitado. A não estranheza da atividade fez com que tudo parecesse bizarro. Os momentos depois em que eu e os amigos que me acompanhavam, inclusive um dos sujeitos viajantes que posteriormente será apresentado, o Fabrício, foram gentilmente nublados da minha memória. No dia seguinte visitei museus e andei pela cidade, apreciando o quão bela era. Foi uma passagem rápida, mas que ficou marcada pela beleza extraordinária da cidade; pela familiaridade de uma experiência absolutamente não familiar; e pela ausência de qualquer sentimento mais íntimo ou profundo por aquele espaço. Um dos acontecimentos mais inesperados nesses dias foi causado pelos sentimentos que 37 tomaram conta de mim quando visitei um shopping em Paris. Sair da estação de metrô pela qual passava todos os dias, percorrer alguns metros dessa área com arquitetura nova e moderna de Paris, chamada La Défense, e adentrar num shopping foi como percorrer um caminho conhecido e de repente sem explicação ou sentido se ver num local totalmente diferente. O shopping era idêntico aos que encontramos aqui, em Belo Horizonte. Foi como voltar, de repente. Quase me virei para o lado esperando encontrar algum parente. Nos meses em que eu estive por lá, quando as saudades de casa apertavam, retornar ao shopping (por mais indigesto que isso seja) era a certeza de encontrar um lugar familiar. Em janeiro, tive as semanas finais de provas e trabalhos. Enquanto minha ansiedade por voltar ao Brasil e meus sentimentos contraditórios pela França tomavam conta dos dias, resolvi fazer a última das minhas viagens para visitar uma cidade que sempre quis conhecer: Veneza. Como ainda faltava um mês para o meu retorno e já tinha vencido meu período de permanência na moradia estudantil, resolvi ir também a Roma e aproveitar um pouco mais de dias em cada uma. Deixar a última das minhas viagens em viagem para o mês final só me fez ter um gostinho mais de tudo aquilo que eu não conheceria. Veneza foi a minha cidade de sonhos, antes mesmo de a conhecer. De todas as outras cidades que conheci, e busquei por motivos diversos, Veneza era a única que eu sentia uma vontade quase mística de visitar. Eu precisava ir a Veneza. Para satisfazer um desejo interno e inexplicável. O desejo interno e inexplicável permaneceu por todo o tempo que passei me perdendo nas ruelas e me encontrando nas paradas e bancos, contemplativa, me sentindo mais terrena, mais carnal, do que nunca antes. Veneza me deixou sentimentos de existência, mais do que qualquer outro espaço dessas viagens. Eu não vi uma Veneza ensolarada. Todos os dias em que permaneci na cidade choveram e estiveram brumosos (Figura 4). Alguns dias, não dava para ver um palmo à frente enquanto andava nos barcos do transporte público. Um dos espaços que mais senti, e que até hoje me provoca uma ânsia particular, eu retratei (Figura 5). Em Veneza, não visitei museu ou monumento algum. Gastei meus dias me dedicando a andar e ver o que eu encontrava, a comer nos deliciosos restaurantes e cafés italianos e a sentir tudo isso. Gostava de me deixar envolver pelas discussões e encontros entre os nativos ou pelos aspectos cotidianos de se viver ali: o lixo que não tinha sido recolhido, os pedreiros de barco trabalhando em uma fachada, a ambulância-barco que passava rapidamente por todos, a vendedora com olhar cansado de uma loja de sapatos a noite, as fantasias nas lojas de máscaras e os turistas comprando, 38 um senhor vendendo uma gravata amarela, um grupo de jovens reunidos numa pizzaria, as intervenções nos becos, uma menina jogando uma bota velha no lixo. Eu me sentia quase como uma outra manifestação da cidade, a versão morena baixa de olhos escuros de uma cidade velha, mofada e cheia de água. De modo que depois da profundidade de sentimentos de Veneza, Roma foi quase frescor. A viagem de trem para Roma foi tranquila e cheia de paisagens bonitas. Castelos no alto das montanhas e vales verdes seguidos por rios compunham uma paisagem romântica quase surreal. As impressões de Roma foram completamente diferentes das de Veneza. Em Roma tentei sentir o ar histórico ou absorver a temporalidade das ruínas, mas tudo o que eu consegui foram boas fotos de resquícios do Império Romano (Figura 6 e 7). Essa história não falava para mim. Uma das experiências mais interessantes foi visitar o Vaticano, especialmente o Museu do Vaticano e a Basílica de São Pedro. Eu não sou cristã e nunca fui. Mas ser revistada para entrar em uma igreja com tanta ostentação e ver janelas fechadas e guardas num museu é impressionante. As representações religiosas não foram tão interessantes quanto observar da janela os pequenos vislumbres de algo proibido. Eu sentia um frenesi por saber o que eu sei sobre a história, a religião e a cultura por trás daqueles muros e, de certa forma, não compartilhar suas visões. Era como contemplar um monstro. Um monstro absolutamente poderoso e monumental sendo contemplado de um ponto minúsculo do chão, em total anonimato e intrepidez. E ser feliz por não ser uma das células que compõem esse monstro (apesar de saber que seus tentáculos ululam sobre minha vida em tantas maneiras que eu nem me dou conta). De maneira geral, sei que no mês final de intercâmbio não queria mais ficar nem um segundo na Europa, e especialmente em Paris. O ponto culminante foi no meu dia de volta, quando perdi o avião que me levaria a Lisboa, e por conseguinte perdi o avião de Lisboa a Belo Horizonte. Entre os trâmites para saber o que fazer em seguida, me lembro de dizer enfaticamente para minha mãe e para a companhia aérea: “eu só quero sair de Paris. Por favor, me deixa sair da França”. Concordei em esperar até o próximo voo para o Brasil, no final do dia seguinte, mas em Portugal, Lisboa. Para onde fui imediatamente e sem olhar para trás. Para onde fui imediatamente e sem olhar para trás… O que torna estranho o que aconteceu a seguir. Saudade. Intensa e real, saudade que parece preencher meu corpo inteiro e me fazer imaginar, antes de me levantar da cama, que estou caminhando pelas ruas da Europa. Quando me lembro de Paris, está sempre ensolarado. Apesar de ter vivido a maior parte 39 do tempo no inverno, o sol fraco banhando as ruas largas e os prédios típicos de Paris, o sol batendo no asfalto, está nas minhas mais saudosistas lembranças (Figura 1). É estranho que essa é a imagem que fica! Na tentativa de recuperar aqueles tempos de andança e reflexão prazerosas, hoje recorro aos livros. Assim minha memória vai se transformando em outra coisa, outra realidade. Eu guardei, além de entradas de museus e outras lembranças físicas, bilhetes de transporte público de todas as cidades que visitei. Guardei também no olhar o deslumbramento pelo espaço que eu via, e vi diferente os espaços do meu lar. Figura 1- Manhã ensolarada de inverno em Guyancourt, saindo da casa das amigas brasileiras, França 40 Figura 2 - Jardim de um castelo, em Rambouillet, próximo à cidade onde eu morava, França Figura 3 - Caminhando por Londres, em uma tarde chuvosa, Inglaterra 41 Figura 4 - Brumas em Veneza, Itália Figura 5 - Bancos voltados para água, em Veneza, Itália. Ânsia por esse lugar de espera. 42 Figura 6 - Escada em processo de erosão nas ruínas de Roma, Itália Figura 7 - Chuva e sol; poças d'água e reflexos no chão de pedras, em Roma, Itália 43 Fabrício, viajante Esse relato foi concebido no anoitecer de uma sala de aula vazia. Nos ecos das palavras, saudades e alegrias. Assim como um testemunho de todo um tempo aproveitado, ao máximo, em outros anoiteceres. O intercâmbio foi a melhor e a pior coisa da minha vida. Porque foi o melhor ano da minha vida, tão bom que transformou todos os outros anos por comparação. Eu sinto como se estivesse num limbo agora; coisas que eu achava divertidas não me parecem mais, coisas que eu nunca pensei que eu gostaria agora me parecem fantásticas: tudo por culpa do intercâmbio. Fui pra Holanda, para a cidade de Utrecht, pelo programa “Ciências sem Fronteiras”47 em setembro de 2012 e voltei em agosto de 2013. Fui fazer um ano de graduação em Geografia. Os semestres eram divididos em dois períodos. Minha rotina contemplava basicamente ir pra faculdade de manhã ou a tarde e aproveitar a diversão da noite. O que mais me marcou nesse ano foi o fato de experimentar coisas novas. Passei todos os anos anteriores me divertindo de um jeito, pensando de um jeito, aprendendo de um jeito. Mas essa mudança repentina de ares, para algo completamente diferente, foi marcante. Um dia eu estava no Brasil e, algumas horas depois, estava inserido em um novo contexto cultural, político, econômico. Fiquei assustado quando cheguei à Holanda, especialmente por causa do idioma. Apesar de ter estudado inglês por muito tempo, eu não tinha essa desenvoltura para a informalidade do cotidiano com o idioma. Na faculdade eu não tinha problemas, mas no dia a dia, nas ruas, era mais complicado. A primeira sensação que eu tive foi essa. Eu saí de um êxtase, de um estupor total e comecei ver as pessoas conversando em inglês, holandês e eu sozinho. Foi um choque. Como eu ficava na faculdade ou estudando durante o dia, me restava a noite para me divertir. Eu já tinha decidido que aproveitaria essa oportunidade para fazer tudo o que eu pudesse, em termos de diversão. Eu aproveitei ao máximo. Não só na Holanda, mas em todos os países por onde eu passei. A diversão consistia basicamente em sair para beber com os amigos, os que eu fiz lá ou outros intercambistas, ir ao cinema (em inglês com legenda em holandês ou sem legenda, ou se o filme era em holandês com legenda em 47 O programa “Ciências sem Fronteiras”, ou CsF, é uma iniciativa dos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Educação (MEC), por meio das instituições de fomento CNPq e Capes, que prevê a utilização de 101 mil bolsas em quatro anos para promover o intercâmbio para o exterior de graduação e pós-graduação (Ciências sem Fronteira, 2013). 44 inglês), em festas, shows, pequenas viagens para cidades no entorno, como Amsterdã ou Haarlem, boates, partidas de póquer, ou então só uma caminhada, porque a cidade era muito bonita. Meu melhor amigo era um armênio e ele lidava com as coisas de uma maneira muito tranquila, sem se importar com nada. Exceto se a conversa fosse sobre turcos. Ele tinha uma rixa política com turcos. A única vez em que ele ficou exaltado foi quando a gente encontrou um turco e ele queria brigar conosco porque ele pensava que eu era americano e porque meu colega era armênio. Mas deu tudo certo. Fizemos uma viagem de caminhão muito divertida para assistir a um festival de música eletrônica na Bélgica (Figura 7). O pai de um dos meus colegas trabalhava em uma central de abastecimento e usava esse caminhão. O meu colega disse que podia pegar emprestado o caminhão. Como seria mais barato do que ir de trem, resolvemos ir e foi muito divertido. Fiz diversas viagens. Fui à Espanha, Inglaterra, Chipre, Malta, Croácia, Rússia, República Tcheca, Hungria, Islândia, Suécia, Itália, Irlanda... Eu preferia viajar sozinho. Primeiro porque assim eu me obrigava a falar inglês; segundo que eu me obrigava a conhecer novas pessoas. Quando se viaja com a família ou um grupo de amigos você fica fechado àquele grupo. Mas quando se viaja sozinho você se vê obrigado a conversar com outras pessoas, que você conhece durante a viagem. Claro que tem seus momentos ruins, quando não dá pra fazer amizades, mas eu acho mais interessante. No Chipre, por exemplo, uma noite eu resolvi ir jantar sozinho. No final da noite, eu me vi jogando gamão com um sujeito que disse que vai concorrer a presidência do Chipre na próxima eleição, com o dono do restaurante e dois sujeitos aleatórios. Uma situação que nunca aconteceria se eu estivesse em um grupo. Também não viajei para países como França ou Portugal. Aproveitei a oportunidade para conhecer países menos convencionais, que eu não poderia conhecer através de um pacote de viagem. Eu não consigo definir minha viagem preferida. Mas, por exemplo, minha viagem preferida em termos de beleza natural foi à Islândia. As paisagens eram pitorescas, com neve e vulcões (Figura 8). Uma coisa que eu sempre quis ver foi uma aurora boreal e eu vi lá. Então em termos de paisagens naturais foi à Islândia. Em termos de diversão, festas, boates, baladas, Barcelona foi fantástica. Mas Ibiza foi tudo o que eu imaginava. Recomendo pra qualquer um. A viagem pra Rússia foi fantástica. Eu fiquei 15 dias em São Petersburgo com uma amiga russa que morava comigo na Holanda, cujo intercâmbio foi só de seis meses. Eu tive que sair da União Europeia, porque meu visto vencia em julho (minhas passagens de volta 45 estavam marcadas para agosto) e eu ia ficar ilegal. Eu fui ao consulado e um funcionário me disse que a solução era sair do espaço Shengen, então, como eu tinha amigas na Rússia, eu resolvi ir pra lá. Quando eu cheguei na imigração, pela Estônia, de ônibus, os funcionários ficaram olhando meu passaporte e conversando entre eles. Eu não falo russo e eles não falavam muito bem o idioma inglês. Meu passaporte estava em um estado deplorável, porque me jogaram em uma piscina com ele no bolso. Mas me passou pela cabeça que eles devem ter achado estranho. Um latino, brasileiro, com o passaporte detonado, indo pra Rússia, entrando de ônibus pela Estônia, para visitar uma amiga que se chamava Natasha. Mas eu nunca vou saber o que aconteceu. No fim das contas, um russo que estava no ônibus e falava inglês ajudou na comunicação e eu entrei. Lá eu conheci muitos russos, pessoas sensacionais. A arquitetura bizantina da cidade foi surpreendente. Porque estamos acostumados com uma arquitetura cristã romana, mas lá era cristã ortodoxa. As igrejas e as cúpulas eram lindas. Fui a festas ótimas. Conheci uma bebida sensacional, que era uma mistura de xarope, com tabasco e vodca. A principal parte foi a diversão com a minha amiga. Como ela estudava sociologia, eu aprendi muito. Aprendi que russos e brasileiros tem mais em comum do que eu pensava. Eles têm uma descrença com a política muito parecida com a gente. Outro detalhe sensacional foi o ar histórico, um ar diferente que eu sentia lá. Eu passei anos estudando revolução russa e de repente eu estava lá. Na antiga URSS. Foi semelhante ao que eu senti em Berlim. Um ar diferente, uma emoção diferente. Faz sentido porque eu conhecia a história; se eu não conhecesse talvez eu não sentisse isso. Outro país que eu gostei bastante foi à Itália. Na Itália eu passei por Napoli, Roma, Veneza, Rimini, San Marino. Eu só tive oportunidade de conhecer Roma pela noite. Eu só consegui ver as fontes, mas foi interessante. Eu não tive o mesmo tipo de experiência que eu tive Berlim ou em São Petersburgo. Mas em Pompeia foi fantástico. O Reino Unido em geral foi muito legal. Inglaterra foi uma das melhores experiências que eu tive. Uma das cidades mais legais que eu conheci foi Liverpool. Tanto porque eu sou torcedor do Liverpool (Figura 9) quanto porque uma das minhas bandas preferidas é de lá, os Beatles. Eu coloco Liverpool na frente de Berlim, de qualquer outra viagem. Eu tive a oportunidade de passar em frente a casa do John, ou do lugar onde ele e o Paul se conheceram. Eu fui ao bar onde eles fizeram o primeiro show e subi e cantei no palco. Eu pisei no mesmo lugar que eles. Essa rua, Abbey Road, (Figura 10) é a capa de um dos discos dos Beatles, no qual tem eles a atravessando. 46 Londres foi incrível. É uma cidade cosmopolita, onde você escuta todos os idiomas. Em alguns momentos, eu tinha a impressão de que não estava na Inglaterra, mas de que eu estava no Brasil. Tem muitos brasileiros, tem mercado para brasileiros, restaurante para brasileiros, festas para brasileiros. Eu fui encontrar um amigo brasileiro que morava lá e eu não sei por qual motivo ele me levou a uma festa para brasileiros. Era realmente música brasileira, comida, bebidas. Foi divertido por um instante, porque foi um mês antes de eu voltar e já tinha quase um ano em que eu não ia a uma festa brasileira. Mas por outro lado eu percebi que não estava sentindo falta nenhuma do Brasil. Foi interessante ver o comportamento de estrangeiros em uma festa brasileira e a diferença entre uma festa lá e outra aqui. Uma situação marcante foi a da cabeça de cavalo. Uma noite, quando eu estava no Chipre, eu recebi um telefonema de uma moça falando holandês. Eu pedi a ela para falar inglês. Ela estava me ligando porque recentemente eu tinha adquirido uma cabeça de cavalo (oi?) e, como tinham muitas pessoas comprando (hein?), eles estavam fazendo uma pesquisa para saber o motivo. Eu fiquei perplexo e disse que era novidade, para mim, eu ter comprado uma cabeça de cavalo. Quando eu voltei para casa, fui tentar descobrir o mistério da transação. Entrei na minha conta no site e vi que eu realmente tinha adquirido uma cabeça de cavalo (horse mask) por 22 euros. Quando eu olhei o horário da transação, 2h da manhã, eu percebi que provavelmente eu estava bêbado, cheguei em casa e comprei. Depois eu a usei no Spring Break, na Croácia. Tiraram uma fotografia sensacional, na qual dá para ver até que o cavalo estava babando (Figura 11). Eu gosto da imagem porque ela representa o quão divertida foi essa viagem. Tem uma diferença entre viajar por dois ou três meses e se estabelecer num lugar por seis meses ou um ano, como foi meu caso. Quando você desenvolve uma rotina, você começa a ter insights de como as pessoas enxergam o mundo. Consegue entender o comportamento em um supermercado, nas ruas… É uma dinâmica completamente diferente. Eu morei com uma holandesa, fiz amizades de ir para festas mas também de ficar atoa conversando na rua. Não era só aquela amizade fácil. Era como se eu estivesse aqui, mas inserido em um outro contexto. Algumas coisas que são diferentes daqui eu fui me acostumando. Por exemplo, aqui quando você vai num bar normalmente você pede uma cerveja e vários copos. Mas na Holanda era comum pedir cada um uma cerveja. A mesma coisa com churrascos. Churrascos lá cada um levava sua carne. Alguns comportamentos das pessoas na Holanda, no início, eu achava estranho, eu reparava e me 47 perguntava a respeito do motivo deles agiram assim. Mas depois de um tempo eu parei de reparar porque eu já estava inserido naquela dinâmica. Parou de ser diferente. Aquilo começou a ser a minha rotina. Por exemplo, para nós brasileiros é muito comum conversar gesticulando e encostando nas pessoas. Não precisa conhecer a pessoa profundamente para dar um abraço. Essa questão do contato físico foi difícil acostumar. Despedir dos meus amigos sem dar um abraço, apenas esticando a mão. São detalhes que você vai percebendo e, no final das contas, não são detalhes: é o comportamento das pessoas. Eu trouxe de lembrança para os amigos, cerveja holandesa e doces típicos. Mais significativo: na Holanda, eu ganhei uma baqueta em um show do baterista e uma palheta do guitarrista porque eles perceberam que eu estava muito empolgado com o show, desceram do palco e foram conversar comigo. Mas eu acabei perdendo a palheta porque ela foi sugada pelo aspirador de pó quando eu estava limpando a casa. A baqueta eu trouxe. Tem também uma pintura. Eu fui a um festival e nele tinham vários quadros. Eu já estava bêbado e pensei “por que eu não poderia pegar?”. Eu dei a pintura para um amigo. Ganhei uma carta de uma amiga holandesa, que me entregou no aeroporto quando eu estava voltando, e pediu que eu abrisse só quando eu chegasse aqui no Brasil. Foi uma das coisas mais significativas. Para cada lugar que eu fosse, eu comprava uma bandeira do país e camisas de times de futebol. Lembranças dos estádios de futebol que eu conheci. Houve uma situação… Não sei para onde eu estava indo ou de onde eu estava vindo. Uma holandesa me parou na rua e me deu um coraçãozinho de borracha. Ela disse que trocava objetos com as pessoas na rua. Eu acho que eu dei uma moeda ou um chaveiro para ela. A explicação dela era que cada objeto tinha uma história e que trocando objetos é como se ela estivesse levando minha história. Trouxe também um celular. Depois de uma noitada em Barcelona, eu acordei no hostel48 e tinha esse celular em cima da minha barriga. Não faço a menor ideia de onde ele veio. Eu gosto mais dessas coisas que eu trouxe do que de qualquer bandeira ou doce que eu tenha comprado para os meus familiares. É extremamente difícil falar das experiências para quem não estava lá. Porque se você 48 Hostel é "uma forma particular de hospedagem diferente das outras como hotéis, motéis ou os bed & breakfast. A característica mais importante é que seu planejamento é feito para que as pessoas se encontrem nos lugares comuns, como o living e as salas de estar e de descanso. [...] Em um hostel você encontrará uma variada oferta de quartos privados (duplos) e dormitórios compartilhados, mobiliados com várias camas e guarda-roupas para guardar seus pertences de forma segura." (Hostelling International, s/data). 48 não estava lá, é difícil ver a importância ou a graça da situação. Mas faz sentido fazer um intercâmbio por causa do crescimento pessoal. Essas situações em que você se vê obrigado a se virar, conversar com pessoas em outro idioma, ver a interpretação das outras pessoas acerca do mundo, como alguém estrangeiro enxerga o seu próprio país ou o Brasil. É ótimo para quebrar estereótipos. O principal do intercâmbio é a sua formação pessoal. São as situações que ocorrem e que marcam. Você vira um ponto de divergência. Porque você começa a enxergar as coisas de outro jeito e não dá para voltar atrás. Eu li em um dos vários sites de viagens uma tentativa de resumo da experiência do intercâmbio. A moça dizia algo como: “Fui viajar e nunca mais voltei”. O fato de eu ter voltado para casa depois do intercâmbio não significa que eu tenha voltado. Acho que é isso que está me deixando nesse limbo. Figura 8 - Caminhão utilizado para viagem até a Bélgica, para assistir a um festival de música eletrônica 49 Figura 9 - Cratera de um vulcão preenchida por água, na Islândia Figura 10 - Troféus em estádio do Liverpool, em Liverpool, Inglaterra. 50 Figura 11 - Abbey Road, rua que aparece na capa do disco de mesmo nome dos Beatles, lançado em 1969. Figura 12 - Eu vestido com a máscara de cabeça de cavalo em Spring Break, na Croácia 51 Fernanda, viajante Esse relato foi concebido no conforto macio de uma cama, à noite. Da familiaridade do lar, as palavras pintaram diferentes horizontes e lugares. Pintaram paisagens sombrias, galhos mágicos e voltas olímpicas. Eu fui para Alemanha, para cidade de Trier. O plano era ficar treze meses, então eu saí do Brasil em junho de 2012 e voltei em julho de 2013. Fui fazer um ano do curso de mestrado em Ciências Ambientais, na Universidade de Trier, a única universidade que tinha um curso com alguma equivalência com a geografia. As minhas experiências de intercâmbio foram “trocentas”. No geral, eu mais estudei do que fiz outras coisas. Realmente, foi um intercâmbio para estudar, acho que até demais. Nunca estudei tanto na minha vida. Eu fui um pouco antes das aulas começarem para agilizar com as burocracias. Ou tive a intenção, porque não adiantou nada. A universidade estava toda de férias, a cidade estava deserta. A cidade é basicamente universitária. São 100 mil habitantes. É como uma zona rural, uma cidade do interior, igual cidade do interior de Minas Gerais. Não tem diferença nenhuma. Eu cheguei lá e a cidade estava vazia porque não tinha estudante na universidade. Eu não consegui adiantar nada porque quem era responsável pelos intercambistas não estava lá. Foi muito legal quando eu cheguei à Alemanha porque eu tive que fazer couchsurfing49 na casa de uma portuguesa, que fazia o mestrado lá também. Eu me inscrevi no site antes de viajar. Minha tutora era uma brasileira casada com um dos professores da universidade e a conhecia. Foi a primeira vez que eu fiz couchsurfing na vida, sozinha, sem conhecer as pessoas que iam me hospedar. Eu já tinha feito no Brasil, mas sempre conhecendo as pessoas antes. Então não conta como couchsurfing mesmo. Chegando à casa dela, eu fiquei com um pouco de vergonha. Eu não queria que ela me buscasse no aeroporto e eu me perdi entre uma cidade e outra. Meu avião desceu em Frankfurt Ham e deu uma confusão. Eu não sabia o que as pessoas estavam falando porque elas estavam falando luxemburguês. Mas, enfim, quando eu cheguei a Trier, 49 Couchsurfing é um serviço de hospitalidade por princípio gratuito em que os participantes oferecem ou se candidatam a receber hospedagem em moradias privadas através de sites na internet, como couchsurfing.org. O couchsurfing gerou uma rede com mais de sete milhões de pessoas conectadas no mundo inteiro dispostas a receber viajantes, seja em casa ou apenas como guia e companhia em sua cidade (Couchsurfing, International, 2014). 52 depois de uma odisseia de viagem, ela não estava preparada para me receber ainda porque, teoricamente, eu só chegaria mais tarde. Ela me recebeu com uma toalha amarrada na cabeça, parecia que tinha acabado de sair do banho. E disse algo assim: “Nossa, mas você já chegou”. E eu: “Desculpa, né”. Eu tinha o endereço, não sabia como telefonar e eu fui. Ela disse que estava pensando em me buscar no horário programado. E esse foi meu primeiro contato com a cultura europeia. Mas foi muito legal. Eu fiquei duas semanas na casa dela. Nunca vi um couchsurfing tão longo na vida. Geralmente as pessoas ficam um final de semana, eu fiquei duas. Eu a ajudei no trabalho de mestrado, caçando borboletas com uma rede, igual ao Bob Esponja50. Ela estudava a dispersão das borboletas as marcando com uma caneta de escrever em CD. Depois fazia um estudo da dispersão para entender como as borboletas se distribuem em cada horário, de acordo com as condições climáticas etc. Quando eu comecei entender o trabalho dela de mestrado, eu sugeri várias coisas e parece que ela não gostou muito. Depois da casa dela, eu fui para moradia de estudantes da universidade. Era um prédio do lado da universidade e, no meu caso, do lado do prédio onde eu ia estudar. O campus tinha outras unidades, uma que ficava a dois quilômetros do nosso Wohnung, que é nosso apartamento e era onde meus amigos brasileiros estudavam. Eu era a única brasileira do meu curso. Então, eu ficava totalmente sozinha na sala. Antes de começar as aulas, eu e os outros intercambistas fizemos um curso de alemão. Eu fiquei amiga dos brasileiros, apesar de nós ficarmos em aulas separadas porque eles já tinham um nível de alemão mais avançado. Eu percebi que se nós continuássemos juntos eu ia aprender muito pouco o idioma, então eu preferia ficar separada deles. Eu achei isso bom no curso de mestrado. Eu morava do lado da faculdade. Demorei muito tempo para acostumar com a ideia de que eu não precisava acordar cedo para me preparar para ir à aula. Eu levava dois minutos para chegar à sala. Eu acordava muito cedo, arrumava a casa, me arrumava. Comecei a acostumar com isso depois e a faculdade não parecia sair de mim. Eu não conseguia criar um intervalo para entender que eu estou na minha casa, estou com meus amigos, depois eu estou em sala de aula. Minha casa também era o lugar de receber pessoas. O mesmo que eu faço aqui no Brasil, eu fazia lá. Sempre gostei muito de receber as pessoas em casa, cozinhar, fazer da minha casa um ponto de encontro. Lá eu fazia isso também. Só 50 No desenho animado “Bob Esponja” (no original, “SpongeBob SquarePants”), criado pelo biólogo marinho e animador estadunidense Stephen Hillenburg, os personagens caçam, ou tentam caçar, águas vivas com redes individuais para fins recreativos. 53 que com a proximidade da universidade, ficava um ambiente só. Era horrível. Precisava de uma distância e eu só percebi isso muito em cima da hora e não dava mais para trocar. Acho que foi um ponto difícil do intercâmbio não conseguir separar a universidade da minha vida. Eu estava me tornando a universidade. Quando eu cheguei, como eu era a única brasileira, meu coordenador do curso me apresentou para os professores. Eu pensei que seria uma oportunidade interessante para falar bem do Brasil. Eu fiz propaganda do Brasil, queria mostrar que meu país é interessante, academicamente, e que eu, ainda na graduação, já fiz várias pesquisas etc. Só que alguns professores não estavam nem um pouco interessados. Um professor, da disciplina que eu mais queria fazer, meteorologia, que eu já tinha pesquisado na internet e visto que ele era uma referência internacional, nem falou comigo. No dia que eu cheguei lá com meu coordenador do curso para conhecer ele, eu senti aquela sensação de indiferença. O coordenador falava o tempo todo com ele, em alemão, que eu tinha bolsa de estudos. Era isso que ele queria passar pra ele. Nós, estudantes, fomos para Alemanha estudar e eles não estavam nem um pouco interessados se a gente estava pesquisando ou estudando. Eles só se preocupavam se a gente já tinha um financiamento ou não. O acordo para gente estudar em Trier era fazer 30 créditos, que são seis disciplinas. Mas seis disciplinas pra um estrangeiro, mesmo que o idioma do curso fosse o inglês, é muita coisa, ainda mais porque os professores são alemães, ou seja, o inglês não é a língua materna deles. Aliás, o inglês não era a língua materna de nenhum dos estudantes que estavam lá. A maioria falava alemão, francês ou chinês. Alguns falavam dialetos africanos. A minha turma era muito multicultural. Às vezes eu pensava em como eu ia conseguir me comunicar com eles. Tinha uma chinesa que não falava nada de inglês. Todos esses intercambistas chegaram 15 dias depois das aulas começarem. Antes era só eu e os alemães. Então quando eles chegaram foi uma reviravolta. O curso virou de cabeça pra baixo e eu achei que ia explodir uma guerra. Mas o que explodiu foi uma cooperação extrema. Eu acho que se isso tivesse acontecido no Brasil teria explodido uma guerra. Com todos os limites dos alemães, eles foram muito receptivos. Extremamente pacientes, muito cooperativos. Eu me lembro que uma vez aqui na UFMG, na geografia, veio fazer intercâmbio um casal de estrangeiros, de algum lugar que falava em espanhol, e ninguém falava com eles. Eles sentavam na frente e falavam apenas com o professor. A gente via que eles sentiam saudades de casa, eles ficavam vendo fotografias durante a aula, mas ninguém se importava. E lá na Alemanha foi totalmente o contrário. Os alemães 54 conversavam, chamavam a gente para ir à casa deles. Todo mundo na mesma situação. Claro que tudo tem seus limites e quando eles estouravam os limites, eles eram muito difíceis. Eram extremamente competitivos. Eles podiam te ajudar desde que você não tentasse ser melhor que eles. A gente tinha que se equilibrar. No final do curso, ficaram separados os estrangeiros de um lado e os alemães de outro. Alguns estrangeiros queriam andar só com os alemães porque se deram bem com eles, e o resto dos estrangeiros se juntaram em um grupo relativamente fechado. Como eu estudei muito, eu pude sentir o ambiente acadêmico e ele é extremamente competitivo, às vezes os estudantes chegavam a agir com má fé. Sumiam com as coisas dos arquivos dos outros, sumiram coisas dos meus arquivos, meus pen-drives foram roubados. Eu esqueci na sala e quando eu voltei não estavam mais lá. Isso não acontece mais na UFMG, eu acho. Alguém pelo menos devolve no “Achados e perdidos”. Nem isso eles fizeram com as minhas coisas. A gente acha que tem roubos onde as pessoas precisam, passam fome ou não tem mesmo dinheiro para comprar um pen-drive. Não. Na universidade, eu vi várias situações de pessoas sendo muito desonestas. Dificilmente eu veria isso aqui no Brasil. Uma delas aconteceu com uma menina que sempre estudava comigo e que hoje eu considero minha amiga, uma húngara. Ela cursou a disciplina só para me fazer companhia porque ela viu que eu estava me sentindo muito sozinha. Um dia, a gente estava sentada na sala de computadores, junto com uma colega ucraniana, fazendo um exercício. Essa ucraniana faz geografia, e era a única geógrafa além de mim. Ela era muito divertida e inteligente. A minha amiga húngara sempre teve uma fama de “nerd”, mas ela é normal, estuda normalmente, tem dúvida normalmente. A gente estava fazendo exercício e ela tinha saído para ir ao banheiro. Acho que a ucraniana não sabia que a gente era muito amiga, então ela abriu o computador da minha amiga, e começou a copiar o exercício. Eu não falei nada, para ver até onde ela iria. Ela copiou o exercício e, quando a minha amiga voltou para a sala, ela fingiu que nada tinha acontecido. O intercâmbio inteiro eu fiquei com esse problema: como eu poderia confiar em alguém assim? Só para ficar claro que não era só estrangeiro que agia assim, vou contar outra situação. Meus amigos alemães sempre tinham ciúmes de mim porque os professores me ajudavam mais. O professor de Estatística me ajudava sempre que eu pedia. Eu não tinha vergonha de pedir ajuda. Os outros alunos tinham. Nesse dia, a gente estava fazendo uma prática no laboratório, no computador, e eu pedi para o professor me ajudar. Ele escreveu o script 55 do exercício pra mim no computador e funcionou, sendo que ninguém estava conseguindo. A aula dele era muito rápida e, depois dessa aula, eu tinha aula de alemão. Como eu tinha que sair depressa, eu pedi para os outros alunos para, quando acabasse a aula, desligarem meu usuário. Essas pessoas que eram meus amigos, que me convidavam para ir para casa deles, mexeram nos meus arquivos e sumiram com umas coisas. Eu não tinha backup. E tudo porque estavam com ciúmes. Uma amiga minha, brasileira, também enfrentou uma dessas situações de ciúmes dos alunos alemães. Ela tinha um professor que falava português e que, às vezes, falava em português com os brasileiros durante a aula para praticar o idioma. Eu, em uma situação como essa, não acharia ruim. Mas os alemães ficavam enfurecidos. Eles a chamavam de Extra-Wurst, salsicha extra. Ela perguntou para o professor o que significava isso e ele explicou que os alemães achavam que ela era uma pessoa com privilégios. Se alguém acha que aqui na UFMG os professores não ensinam é porque não viram como era na minha universidade em Trier. Os professores eram muito mais indiferentes do que aqui. Eles chegavam, abriam os computadores, falavam por duas horas enquanto digitavam linhas de comando. O professor de Estatística tinha que parar a aula de vez em quando porque os alunos iam se perdendo e desistindo. O professor precisava parar a aula e ajudar. Mas mesmo assim eles não tinham esse pensamento de fazer uma aula didática. As aulas práticas eram uma confusão. De modo geral, os alemães na universidade eram muito infantis. Eles não estavam preparados para ter um nível de mestrado, do jeito que a gente conhece o mestrado aqui. Eles não têm maturidade emocional nem psicológica para estar ali. Eu sempre conversei isso com os brasileiros lá. O que adianta eles terem um nível de mestre se eles agem assim? São imaturos assim? Eu vejo, depois que eu voltei de lá, que eu era muito imatura também. Agora, depois que eu voltei, eu acho que tenho mais convicção para falar que eu tenho um nível de graduação. Eu sou uma geógrafa. Eu posso responder tecnicamente por isso. Como que alguém pode assumir essa responsabilidade se ela não tem maturidade? Isso foi uma coisa que me marcou muito no intercâmbio. Tive alguns momentos muito legais, de trabalho dentro da faculdade. Eu fazia uma aula de “Sensoriamento remoto e meio ambiente”. A gente usava um software chamado Erdas para fazer o processamento das imagens. O pessoal no Brasil o chama de “mErdas” porque ele tem muitos problemas. Era muito difícil a disciplina porque a professora fazia tudo muito rápido. Ela era uma professora recente, não tinha muita experiência, mas era 56 muito educada, sempre disposta a conversar, flexível. Gostávamos muito dela por causa disso. Ela passava trabalhos muito difíceis e eu sempre ficava depois da aula fazendo. Eu lembro que um dia estava eu e uma menina da Estônia depois da aula, fazendo atividades dessa disciplina. Meu prédio, onde ficava a universidade, era um antigo hospital de guerra. Trier foi parte do território francês, então era um hospital de guerra francês, e minha colega estoniana não sabia que era um hospital. Eu já sabia e eu já tinha inclusive explorado o prédio, subido vários andares e ido até o subsolo, que era proibido. A gente estava na sala de computador, já estava escuro lá fora, e só estava eu e ela. A sala era suja, apesar dos computadores serem ótimos, porque ninguém parecia limpar. Era um antigo prédio de hospital, semelhante ao Hospital das Clínicas, de Belo Horizonte, muito grande, e só a gente em um andar. A sala iluminada com a porta aberta. A gente estava fazendo um exercício, estava difícil, o programa ficava dando problema. Eu disse para ela: “Você sabia que aqui era um hospital de guerra?”. Ela começou a ficar aflita perguntando se eu estava falando sério e eu já comecei a brincar com ela, falando para ela escutar bem os barulhos e coisas assim. Pensando que era inacreditável uma mulher da minha idade ficar com medo disso. Quando a gente saiu de lá, ela começou a ficar apavorada. Foi só depois que eu percebi: eu não sei o que é guerra. Que idiota que eu fui. Provavelmente a família dela tem histórias de envolvimento em guerras e eu estou brincando com isso. Depois que veio essa luz. Muito depois. Se tivesse vindo na hora eu teria pedido desculpas. Eu também fiz um trabalho de campo muito interessante para ver os Alpes. Os alunos brigaram durante todo o trabalho de campo e nós ficamos morrendo de medo do que o professor ia fazer com a nossa nota. Como era um trabalho acadêmico e não tinha muita liberdade, eles ficaram meio chatos, e não tinha um sentimento de grupo. O professor falou coisas interessantes, eu fiquei surpresa porque sempre o achei muito desorganizado. E eu vi os Alpes. É uma cadeia de montanhas, gigante e que tem uma parte na Alemanha. É um vale igual ao que a gente vê nos livros, em U que por algum motivo teve os sedimentos todos aprisionados no meio e formou um plano. Hoje eu entendo que o professor teve muita habilidade para organizar esse trabalho de campo pelo tanto de coisa que a gente fez. Antes de ir para a Alemanha, eu tinha muitas esperanças de que eu fosse receber uma educação melhor. Eu lembro até uma coisa que a Aline falou sobre a Dilma mandar os melhores estudantes do Brasil para fora pelo programa “Ciências sem Fronteira”, ou CsF. A pressão que o Governo está fazendo na gente, mandando os melhores estudantes do 57 Brasil para fora, não saía da minha cabeça. Eu tinha que ser a melhor estudante e eu levei isso muito a sério. O consulado brasileiro na Alemanha sempre estava presente. Toda semana, eles mandavam vários e-mails motivacionais, com histórias pessoais de brasileiros que foram pra lá. A primeira linha era assim: “Vai pra Alemanha. Vai! Não deixe de ir porque você não fala o idioma. Vai. Vai. Vai.”. Eram história de pessoas que não queriam ir, não tinham proficiência, mas foram e tiveram sucesso. Eles criaram vários ídolos para os estudantes e sempre se mostraram muito abertos para tirar dúvidas. Isso criou uma espécie de vínculo, uma comunidade de brasileiros estudantes do CsF na Alemanha. Eu recebi intercambistas do CsF de outros lugares em casa. Quando eu fui para Stuttgart, a brasileira que recebeu a gente era do CsF. Mesmo na universidade, tínhamos uma sala com o nosso nome. Eu queria honrar a oportunidade que eu estava tendo. Só que tem a barreira do idioma. Eu cheguei lá e já tinha feito dois anos de alemão no Centro de Extensão da Faculdade de Letras da UFMG, o CENEX. Mas eu não entendia nada, nem uma palavra do que os alemães falavam, e parecia que eu nunca tinha estudado na minha vida. Eu comecei alemão do zero no curso de férias, em uma turma cheia de chinês e japonês, outras pessoas que não falavam nada de alemão, e eu ensinava para elas. Quando eu fiz o teste de proficiência, eu entrei para outra turma, no básico, depois do curso de férias. O teste era muito mais difícil do que o daqui, mais curto e baseado só em escrita e leitura. O programa estava se ajustando, eu fui da primeira turma. Mas tudo isso me deu uma insegurança muito grande. Como a barreira da língua era difícil, eu percebi que teria que investir no inglês. A minha turma só tinha estrangeiro, meu curso era em inglês. Eu fazia muito esforço para durante as aulas para entender o inglês dos professores e na hora do almoço para conversar em alemão. Eu tentava só andar com pessoas que falavam alemão, ficar perto para ouvi-los conversando. Foi assim que eu fiz amizades. Mas minha cabeça cansava… Às vezes eu só queria dormir. Não queria fazer mais nada. Eu estava tão cansada de ter que prestar atenção em cada respirada. Porque se a pessoa conversa com você e você não presta atenção não dá para entender. Você tem que prestar muita atenção até acostumar com a voz, com a entonação, e isso era muito difícil. Eu tinha poucos amigos que entendiam essa situação. Alguns achavam que eu não queria falar com eles, outros que eu falava muito bem alemão. Nas primeiras semanas, eu impressionava todo mundo. Eu já ia para aula com frases prontas. Treinava em casa, usava as conjunções certas, o tempo verbal certo. Mas então eu não tinha muita matéria na 58 faculdade. Depois foi ficando complicado e tinha dia que não saía nenhuma palavra de alemão. Outro aspecto marcante se refere às condições ambientais. O inverno é terrível dependendo da cidade. Eu morava no topo de uma colina e quando nevava era difícil chegar ônibus. Era frio demais, às vezes ventava para tornar pior e não tinha sol. Eu fiquei meses sem ver o céu azul e isso fez falta, fez tanta falta. Era na época em que eu mais tinha que estudar, então foi horrível. Eu tinha que estudar, estava nevando, não tinha nenhuma alegria lá fora. Eu olhava para minha janela e só via o Lidl, que era o supermercado, neve e, se eu olhava no canto da janela, eu via a universidade me olhando. Eu fiquei com depressão muito forte no inverno. Cheguei a ficar em casa, na cama, sem comer… Já tinham me avisado que o inverno dava uma depressão. Mas eu não esperava que fosse tão ruim. Nem era tão frio, a temperatura era de cerca de - 6ºC. Mas meu apartamento era pequeno, eu morava sozinha e não escutava barulho de nada o dia inteiro. É muito diferente do Brasil. Aqui você vê gente passando na rua, passarinho voando. Nem isso lá tinha. Só tinha neve, neve, neve e Lidl. Que nem era um supermercado bom. Alimentação lá era difícil também. Eu passava mal com problemas gástricos quando eu comia na universidade, então eu tinha que fazer comida em casa. Todo dia tinha batata e carne de porco e uma opção vegetariana também, mas os molhos eram cheios de conservante e condimentos. Não tinha feijão e arroz. Arroz era fácil de achar, até melhor que aqui. Quando o Matheus, meu namorado na época, foi me visitar, ele teve que levar 4 kg de feijão pra mim. Só depois que eu fui descobrir que tinha como achar feijão em Luxemburgo, porque lá vivem muitos portugueses. Não tinha fruta fresca. Não tinha banana madura naquele lugar. As bananas eram todas verdes e todo mundo comia as bananas verdes, agarrando no céu da boca, achando bom. Não tinha manga. Isso fazia muita falta. Quando tinha era caro. Alemanha era muito cara para se viver. A alimentação muda muita coisa. Um sábado qualquer em Trier, eu tinha tomado uma cerveja no bar do condomínio e na volta encontrei um colega alemão. Ele me convidou para ir com ele em um lago no dia seguinte. Eu já estava influenciada pela bebida e aceitei, mas acho que ele não estava esperando eu aceitar. No outro dia, fomos nesse lago chamado Maria Laach. Que lugar maravilhoso! Eu não imaginava que essa paisagem existia ali. A gente ficou nadando; o lago era azul. Foi um passeio gostoso. Quando eu fui com o alemão, fomos a um mosteiro que tinha perto do lago. Os monges estavam cantando, mas não era alemão, acho que era 59 latim e eu entrei na igreja e fiquei impressionada. No dia que eu fui com ele, eu tirei duas fotografias só. Mas depois eu voltei com a minha amiga húngara. Nós encontramos um tronco de árvore na margem (eu e o alemão já tínhamos achado ele antes), empurramos o tronco mais para fundo do lago e ficamos brincando de navio, subindo em cima dele: era o nosso tronco mágico (Figura 12). Depois a gente o devolveu para margem, mas foi muito emocionante. Encontrar um lugar tão maravilhoso e tão perto de Trier. Eu queria fazer uma viagem por mês, de três ou quatro dias, mas cada viagem que eu fazia dentro da Alemanha, ficando na casa de outras pessoas, eu gastava cerca de 200 euros. Sempre tinha viagens de final de semana do diretório dos estudantes, mas eram viagens tipo excursão, sempre chovia e eu só ia para conhecer as pessoas. Foi uma ou outra que foi legal. Era sempre uma correria porque tinha que ir e voltar no mesmo dia. Eu fui à casa do Karl Marx, quando minha irmã foi pra lá, em maio. A casa do Karl Marx são três andares de museu. Você entra por uma porta pequena e de repente tem um mundo de coisas lá dentro. O museu contava todas as fases do pensamento do Karl Marx e como a teoria dele foi se espalhando pelo mundo, com mapas plotados no chão e várias reportagens de época. Muita coisa, muita história, mas era um museu bem clássico, com nada muito interativo. Tem uma frase plotada na parede do museu, do Marx, que eu gostei muito. Significa algo como “os filósofos só interpretaram o mundo de uma maneira diferente, convém a nós mudá-lo”. Eu e minha irmã também fomos para Berlim juntas. Berlim é sensacional, muitas coisas culturais, museus, tudo barato, cheia de inovação. É a imagem que eu tinha da Alemanha. Fomos a um monumento em memória às vítimas do holocausto, que tem várias peças enormes. Cada altura e cada inclinação de cada peça tem um significado. No dia em que fomos, uma peça estava congelada. Eu adoro a fotografia que tirei dessa peça, e nunca a publiquei (Figura 13). Se eu fosse voltar, era para lá que eu iria. Uma viagem legal que eu fiz: Stuttgart. Era inverno e a minha amiga brasileira ia visitar um amigo que ela conheceu e gostou bastante na primeira vez em que ela foi para Alemanha. Então, ela foi cheia de segundas intenções, mas me chamou para ir também. Eu disse que eu iria se a gente combinasse de conversar só em alemão porque eu queria treinar. Eu estava totalmente sem segundas intenções de divertimento. No primeiro dia, quando a gente chegou lá, fizemos couchsurfing e foi muito emocionante. Conhecemos uma brasileira, do CsF de Stuttgart, e ela nos recebeu. No dia em que chegamos, fomos passear pela cidade e encontramos ela e uma amiga dela, canadense. Conversamos, fomos 60 ao mercado de natal. Ela disse que a casa dela estava cheia por causa da canadense, então ela tinha conseguido hospedagem para nós duas com um outro brasileiro. Fomos para a casa do sujeito, que era na moradia estudantil, e ele nos atendeu de pijama, com uma expressão de ressaca. Ele se apresentou: era filho de uma baiana casada com um sueco. Fomos cozinhar, conversando, e ele foi dormir no sofá, mas antes deu algumas dicas. Depois fomos para o quarto dele, que era muito legal, dividido em dois espaços, como se fosse loja e sobreloja, com pé direito duplo. Tinha uma cama embaixo e na parte de cima tinha um estúdio de música, com isolamento acústico. A gente subia por uma escadinha, tipo marinheiro, e lá em cima tinha um sofá, onde eu e minha amiga íamos dormir, uma bateria e um som. Foi ele que montou o quarto e o estúdio, depois de comprar tudo pela internet. Ficamos conversando até chegar um amigo dele, outro brasileiro, muito engraçado. Eles contaram que iam fazer um curso de filmagem na Inglaterra. Os dois faziam cinema estavam adorando o curso na Alemanha porque eles podiam trabalhar nos laboratórios de edição, de som etc., e no Brasil não, porque o curso deles aqui é muito precário. A gente assistiu a um vídeo sobre a distribuição das plantações de maconha no mundo e eu descobri que a melhor plantação é no Marrocos. Eu não sabia disso. Nesse meio tempo, chegou outro rapaz, da física, muito louco, e ficamos todos conversando pela noite. No outro dia, estava nevando demais, e eu e minha amiga, muito inteligentemente, resolvemos ir a uma torre de televisão. Andamos cerca de 5 km para chegar à torre, com neve até o tornozelo. Mas foi muito legal porque nós cantamos várias músicas e encontramos pessoas pelo caminho, que falavam um alemão engraçado e minha amiga brincou com eles por isso. Chegando lá, tivemos a ideia genial de subir no mirante da torre, dar uma volta “olímpica” e filmar. A gente estava a mais de 100 m de altura. A temperatura lá embaixo, onde tinha árvores e era fechado, era de 12ºC negativos e estava ventando. Quando chegamos a 100 m de altura, eu imagino que temperatura devia chegar a -20ºC, e o vento cortava. Eu filmei enquanto minha amiga corria e demos uma volta olímpica. Cantamos, corremos. Na hora que eu entrei de novo dentro da cabine, na torre, eu achei que eu ia perder meus dedos de tanta dor que eu sentia. Comecei a entrar em pânico porque estava doendo demais e eu achava que ia perder os dedos. Esse dia eu descobri o que era sentir frio. Mas rendeu um vídeo muito legal e algumas fotos bacanas. Depois disso, fomos para casa do rapaz que a minha amiga conhecia. Ele morava numa casa bem grande, era uma família classe média alta, o pai dele é médico e a irmã dele faz 61 medicina também. Foi a primeira vez que eu fui a uma boate na Alemanha. A boate era de graça para entrar, como a maioria das boates lá em Stuttgart. Estava tocando só hip hop e as pessoas dançavam e se vestiam como em um vídeo clip de hip hop. Minha amiga estava com o cara, e eu dançando enquanto eu me perguntava o que eu estava fazendo ali. Nessa época eu ainda estava meio sem jeito com o jeito alemão de ser, porque eles são muito sérios para estudar, muito sérios para balada, muito sérios para tudo. Então balada era balada mesmo, pelo menos em Stuttgart. Eu disse para os meus amigos que não gostei do lugar e a gente saiu. Entramos de penetra depois em uma festa de uma empresa que alugou uma boate. A festa estava intensa já, todo mundo meio bêbado, o som estava bom. Eu já peguei uma bebida e veio um alemão conversar comigo. Foi engraçado porque no final da festa ele, muito bêbado, estava me pedindo em casamento. Depois veio o amigo dele, falando que ele queria casar comigo... Essa viagem foi muito engraçada. Geralmente, as viagens mais divertidas eram com a minha amiga brasileira. Dentro da Alemanha, tiveram outras, na maioria das vezes para conhecer outras cidades. A viagem mais legal foi a do final do intercâmbio, quando eu não tinha mais aulas e resolvi viajar por um mês. A primeira viagem foi com meus dois amigos alemães, já no verão. Era para ser feita com mais pessoas, mas uma menina que ia machucou a mão no trabalho, e nem ela nem o namorado dela, que falava português, puderam ir. A viagem consistia em fazer um trekking51 de 120 km, saindo de Trier e voltando para Trier, andando na região da Renânia-Palatinado, Rheinland-Pfalz. Um dos alemães tinha comprado um mapa, com guia, para seguirmos. No primeiro dia, nós saímos de Trier, pegamos um trem até certo local e começamos a trilha. A trilha descia um vale, subia a encosta e chegava ao topo, onde ela tinha começado. Foi engraçado porque começamos a trilha dando uma volta e chegando ao mesmo local. Eu perguntei o “guia” se era isso mesmo e ele falou que a gente fez o caminho certo, que estava escrito. Mas depois a gente seguiu a trilha “certa”. Nessa viagem, eu tirei uma fotografia muito legal. Eu estou na encosta, verdejante por causa da aptidão agrícola e das fazendas, e no canto tem uma usina nuclear (Figura 14). Que é a paisagem da Alemanha. Andando de trem pela Alemanha dá para ver muitas usinas nucleares. Um cenário igual de Springfield52. Lá era 51 Trekking consiste em seguir uma trilha ou um percurso terrestre, andando a pé, por vários dias e dormindo em barracas ou tendas pelo caminho, em meio a natureza. 52 Springfield é o nome da cidade fictícia onde se passa a história do desenho animado estadunidenses "Os Simpsons", criado por Matt Groening. As imagens da cidade mostram sempre uma central nuclear ao fundo. 62 assim. Eu pedi para o outro alemão tirar essa fotografia pegando a central nuclear, então ele tirou duas fotos. Uma tampando e uma mostrando. Eu falei com ele depois que daqui a dez anos não queria mais ver essa usina. A Alemanha está com um plano de desativar todas as centrais nucleares em dez anos. Eles vão conseguir, eles são incríveis quanto a planejamento e execução. Fomos acampar no primeiro dia. A gente passou por uma Dorf, que era uma vilazinha, e tinha uma fazendo lá perto, então fomos para lá. Montamos nosso acampamento, debaixo de árvores de uns 30 m. O “guia” já ficou preocupado com a possibilidade (quase impossível) de as árvores caírem. O tempo começou a ficar tempestuoso. A tempestade estava longe, mas como era plano dava pra a ver vindo. Eu lembro que sentamos nós três em um banco (como era trilha e muitas pessoas passavam por lá, eles colocavam bancos enormes e confortáveis), comendo e olhando a tempestade chegar. Até a tempestade chegar, a gente ficou contando a quantidade de raios. O “guia” estava muito preocupado com a tempestade e eu não estava acreditando que ele estava preocupado mesmo. Finalmente, fomos para nossa barraca única para três pessoas e foi muito tranquilo. Antes de dormir, brincamos de uns joguinhos de adivinhar. O primeiro dia foi ótimo, todo mundo estava feliz e descansado. A gente tinha andado 24km, no sol, eu com 15 kg de mochila e os meninos com mais de 20 kg. Eu estava andando muito rápido e os meninos ficaram impressionados com a minha disposição física. No segundo dia, já estávamos mais cansados. Fizemos apenas 16 km; o rendimento já caiu muito. Acordamos e recolhemos algumas roupas que a gente tinha deixado no “varal”, que por sinal estavam molhadas. Começamos a caminhar e paramos numa cidade maior, que foi a última Dorf que a gente tinha visto. Fomos comer uma pizza. O “guia” pediu uma pizza com muito alho. Eu nem me lembro do que eu comi. Saímos da cidade, fomos buscar um mato mais escondido para ficarmos. Nesse dia, minha água já estava acabando. Como compraríamos água só no dia seguinte, acabamos pegando água num córrego que passava numa fazenda. A situação foi essa: a água passava no vale, um córrego bem pequeno, e passava pelas fazendas. Eu avisei que a água estava com um cheiro estranho, que não estava boa. De certa forma, isso era óbvio porque tinham muitas fazendas ao redor, e onde tem fazenda tem animais que usam e contaminam a água. Sem falar que os fazendeiros provavelmente despejavam alguma coisa na água. Eu só me lembro do meu amigo falando: “o ‘guia’ confia nos fazendeiros”. Quando a gente estava passando numa ponte em cima desse córrego, os meninos coletaram a água, bombeando 63 e esperaram filtrar. No fim das contas, eu só abaixei e enchi minha garrafinha. Sem filtrar nem nada. Eles tomaram água filtrada. Depois fomos para outra cidade, lanchamos, e fomos dormir. Nesse dia, eu estava muito cansada. Deitei e apaguei. De madrugada, eu estava escutando os meninos conversando, mas eu estava muito cansada e nem reagi. No terceiro dia de manhã, eu acordei e quando eu olhei para o lado vi que o “guia” não estava lá. Perguntei para o outro amigo onde ele estava. Ele me perguntou se eu não me lembrava de nada do que tinha acontecido de madrugada. Eu disse que não. Então ele me contou que o “guia” ficou a noite inteira passando mal, vomitando e defecando ao mesmo tempo. E que ele teve que chamar uma ambulância para levar ele embora. Nós estávamos acampados a seis metros de distância da autoestrada. Ele disse que eles não sabiam o que fazer, que a situação foi muito constrangedora. Eles ligaram para a colega que estava no hospital por causa do acidente com a mão dela (tiveram que reconstituir e ligar os nervos), de madrugada, para saber o que fazer. Então, ele me pediu desculpas e disse que não tinha condições de continuar a viagem, que a gente teria que voltar para Trier, carregando as coisas do “guia”. A sorte é que tinha um trem numa cidade perto que ia para Trier e a gente voltou. Meu amigo tem vergonha dessa situação até hoje. Tem vergonha do “guia” ter passado mal, deles não estarem preparados fisicamente. Era para ser uma viagem de 15 dias e durou apenas dois. Mas aí voltei para Trier e fui me divertir na cidade. Daí saiu uma aventura muito legal, com um dos alemães e a minha amiga brasileira. Foi uma sugestão de um alemão que morava na mesma república que a húngara. Ele um dia sugeriu que a gente devia invadir uma piscina pública à noite porque a gente estava muito estressada, só estudava e estudava. Eu pensei que era uma ideia legal. Na Alemanha, tem muita piscina pública. Eu tinha ido uma vez, com meu irmão, quando ele veio me visitar. Ele queria ir num clube, então eu procurei e achei essa piscina. A piscina em si era muito boa, de inox e não cerâmica. Era muito barato para entrar, só três euros. Como eu voltei antes do trekking acabar, o meu amigo alemão me perguntou se tinha alguma coisa que eu queria fazer antes de ir embora da cidade. Eu falei que tinha, que era invadir uma piscina de noite e pular do trampolim (Figura 15). Então fomos, eu, ele e a minha amiga brasileira. Pulamos a cerca, que era até difícil de pular, acabei furando meu sapato. Vestimos biquíni. Pulamos do trampolim de 3 metros uma vez, 5 metros duas vezes (eu) e do de 8 metros. Quando eu fui pular dele, meu braço abriu e eu levei um tapa da água que doeu. Mas foi muito legal, a temperatura estava uma delícia. Estava uns 19ºC na água, e no ar estava uns 16ºC. 64 Só a gente, na piscina, de noite. E a gente morrendo de medo de ter sistema de segurança porque tinham várias luzes vermelhas piscando em todo o clube. Imagina se a polícia vem aqui: “brasileirinhas pegas pulando na piscina de noite”. Mas isso era uma prática comum entre os alemães. Tinham três piscinas em Trier. Depois o meu amigo alemão me falou que invadiu outra piscina e ficou bastante tempo nadando, que ele não sentiu medo. No dia que ele invadiu com a gente, ele ficou com medo de a gente ser pega e acabou que ficamos pouco tempo. Mas foi uma adrenalina tão boa, um momento muito feliz. Continuando o mês final do intercâmbio, depois do trekking, outra viagem legal que eu fiz foi para Eslováquia e para Hungria, visitar a minha amiga húngara que já tinha ido embora. Escolhemos a Eslováquia para conhecer com o – e através do – amigo eslovaco da minha amiga brasileira. Ele estudava antropologia em Trier, e sabia muito sobre os indígenas da Amazônia. Segundo ele, tem muito material sobre os indígenas em outras línguas. Ele é ótimo em acampamentos, fazer fogueiras e essas coisas, porque ele é meio cigano. Ele é adotado, mas também já fez muitas viagens de trem com as duas irmãs, sendo que uma mora na França e a outra na Inglaterra hoje. E ele na Alemanha. Nós fomos para a Eslováquia de “mochilão”53, eu, a brasileira e o eslovaco. Eu e a minha amiga brasileira não falávamos nada de eslovaco. A ida foi com um casal com quem ele estava trabalhando. Eles tinham filhos que estudavam na Alemanha, e o eslovaco trabalhava para eles, como tradutor. A gente nunca tinha visto o casal na vida e tinha combinado uma viagem de dois dias de carro, sem nem falar o idioma deles. Era um casal muito engraçado, porque a mulher era húngara e o homem era eslovaco. Eu e a brasileira falávamos o alemão mais ou menos, eles não falavam muito bem inglês. Então a gente dependia totalmente do eslovaco para fazer as traduções para gente. Foi uma viagem de carro de Trier até a Eslováquia, ou seja, foi muito tempo de viagem, era muito longe. A gente acabou conhecendo o casal. A mulher era uma fofa e tratava a outra brasileira e a mim muito bem. Ainda a tenho adicionada ao meu círculo de amigos no Facebook, e ela sempre curte umas fotos minhas. É o jeito de comunicar: imagem. É o que resta. No primeiro dia, quando a gente pisou na Eslováquia, foi numa cidade que chama Priva. Era para ficarmos hospedados em um hostel, que era apenas 10 euros, mas, como tínhamos levado barracas, nós resolvemos acampar. Montamos acampamento numa Mochilão é uma modalidade de viagem em que se procura economizar o máximo possível, por vezes não pagando hospedagem ou transporte (acampando e andando a pé ou de carona), por conta própria e com uma mochila nas costas. 53 65 cidade pequena do interior, num campo de futebol de uma escola. Eu e a brasileira em uma barraca e o eslovaco em outra. A gente teve coragem suficiente de acampar em um campo de futebol de uma escola. Tinham vacas pastando por perto e a gente ficou com medo delas virem até a barraca. A minha amiga estava sempre preocupada, com medo de tudo e todos. Não dormiu a noite inteira. Eu apaguei. De manhã, a gente acordou e estava tendo aula na escola. Acho que as crianças viram as duas barracas e ficaram perplexas, pensando no que essas barracas estariam fazendo ali. Desmontamos acampamento e pegamos um ônibus para uma cidade mais do interior ainda onde um amigo do eslovaco morava. Era uma cidade muito feia, com um estilo barroco misturada com crescimento desordenado. Tinham cimenteiras extraindo calcário no meio da cidade, um córrego canalizado e uma igreja barroca. Típica cidade do interior de Minas Gerais. As pessoas sempre preocupadas com o status, a mentalidade era a mesma. A única diferença era que as pessoas falavam eslovaco. A gente foi comer um rodízio de pizza. Conversamos bastante com esse amigo do eslovaco, que tinha feito intercâmbio também. Ele tinha um filho e umas ideias legais sobre casamento. Ele pensava que o marido e a esposa tinham que dividir o dinheiro igualmente entre eles, mesmo que um dos dois ganhasse mais. Essa parte eu achei legal. Mas eu e a minha amiga ficamos meio decepcionadas: “Vamos embora daqui logo”, pensamos. Vir até a Eslováquia para conhecer uma cidade igual do interior de Minas Gerais... Depois dessa cidade, fomos para uma vila de cerca de 200 habitantes. Em volta tinhas umas colinas, umas casas e a represa. Essa represa ficava cheia de gente acampada, porque era área de camping. Mas como a gente não queria pagar, fomos acampar em um campinho de futebol de uma casa. Eu comecei a procurar uma área para a gente acampar e subi num morro e vi esse campo de futebol. Mas era propriedade privada, então não mostrei para o meu amigo. Voltei, já tinha explorado a área, e falei para gente acampar num lote vago lá mesmo, que era ruim, cheio de pedras. O eslovaco foi nesse morro onde eu fui e chamou a gente para ficar no campo de futebol, porque era o melhor lugar para montar a barraca e ainda era no alto e tinha vista para o lago, para a vila toda. Se o eslovaco falou que não tem problema, então estava certo. Montamos o acampamento. Fui muito legal. Nesse dia, fomos procurar lenha para fazer uma fogueira. A gente roubou lenha de uma fogueira que já estava feita, fizemos a fogueira, chá e macarrão instantâneo. Foi difícil controlar o fogo para fazer. Ele dormiu fora da barraca para ficar perto do fogo. Coisa de cigano! Estava frio demais. 66 No dia seguinte a noite, como a gente tinha visto que tinham barcos no lago, fomos andar e procurar um barco. Até a gente achar um barco que não estava com corrente, com cadeado e que não tivesse o remo trancado foi demorado. A gente andou, andou. Escondidos. De vez em quando passava um pessoal com lanterna. A gente estava morrendo de medo de ser pego. Mas achamos o barco, entramos e começamos a remar. Mas quem disse que a gente sabia remar? A minha amiga brasileira tinha feito curso de remo na Alemanha, mas ela não conseguia remar para nos três. O eslovaco pegou o remo, mas a gente ficava rodando, rodando e não saia do lugar. Foi o dia que eu vi céu mais bonito da minha vida. Estava só a gente no meio do lago, aquela neblina e muito frio. E o céu, que céu cheio de estrelas! Nunca vou esquecer o céu. Muito, muito bonito. A gente foi até uma ilha que tinha dentro da represa. Tinha um gato na ilha e o eslovaco desceu e mexeu com o gato. Eu não estava aguentando nem respirar de tão frio. Voltamos, guardamos o remo e o barco. No outro dia de manhã, meu amigo comprou salsicha para mim (eu era a única do grupo que comia carne) e fez na fogueira, com chá. Fomos ainda a uma caverna de gelo. Essa caverna se formou com a coalizão de duas cavernas. Rompeu o teto, as cavernas se juntaram e dentro tinha água. Na época em que ela foi formada, essa água congelou. E o gelo ficou eterno. Do lado de fora, as estações passavam; no inverno tinha neve, mas lá dentro o gelo era eterno. Então, dentro da caverna tem cachoeiras de gelo. Dá para ver o jeito que a água estava escorrendo quando congelou e tinham sumidouros com gelo. É fantástico. O lugar mais lindo que eu já vi na vida. O final da viagem era no Monte Tartre, que é uma cadeia de montanhas da Eslováquia. A primeira imagem que vi delas foi distante: uma longa superfície plana e algumas montanhas pequenas lá no fundo. Na hora que eu cheguei ao pé da montanha, eu vi que era maravilhoso. Eu só comentava: lindo, maravilhoso. Lembro-me do comentário do meu amigo sobre eu gostar de grandiosidade. Nessa montanha, a gente não sabia onde ficar. Ela era muito explorada turisticamente, então a gente sabia que não podia acampar em qualquer lugar. Ficamos andando pela cidade e de repente veio um grupo de escaladores, totalmente equipados. Na época, eu tinha escalado uma vez, em Trier, mas nem tinha comprado equipamento nem nada. Eu estava muito empolgada, querendo saber mais, mas não sabia se a gente conversava com eles ou não. Começamos a conversar para saber se tinha algum lugar bom para acampar por perto. Eles falaram que tínhamos que ficar longe da polícia, porque não dava para acampar perto. Perguntaram se a gente queria subir o monte com eles. Isso era 20h. E a gente concordou. 67 Não tínhamos lanterna de cabeça, o meu amigo estava com uma mochila pesada que não era ergométrica, eu e a outra brasileira estávamos há um dia sem tomar banho, só viajando, cansadas. A gente andou uns 2,5 km, à noite, e o caminho não era fácil porque tinha muita pedra. O pessoal andava rápido porque eram muito condicionados. Eles tinham se conhecido em Praga, eram duas mulheres e uns quatro ou cinco homens. Em Praga, eles combinaram de montar uma empresa de escalada, que presta serviço para firmas, ensinam escalada como esporte. Quando a gente chegou ao ponto final, que era o abrigo da montanha, eles ofereceram para esquentar água para gente fazer nossa comida. Mas acabou que a gente nem comeu com eles, eu e a outra brasileira, porque estávamos tão cansadas que fomos dormir direto. Mas o pessoal foi muito acolhedor e eu não esperava por isso. Quando a gente acordou nesse lugar, eu percebi que era uma montanha muito interessante. Aquele cenário: montanha só de rocha, árvores gigantes, coníferas, e muita gente fazendo trekking. De todas as idades, até idosos. Tinha um pessoal que subia com galões de água e comida, nas costas, em mochilas de madeira. Três, quatro galões. Sobem a montanha inteira com eles nas costas para vender no topo. Parece uma espécie de tradição. Enquanto a gente estava no Monte Tartre, o meu amigo eslovaco tirou várias fotografias com uma máquina totalmente analógica, que não usa nada de pilha. Ele tinha muito orgulho da máquina. Depois que eu voltei, eu disse para ele que eu queria ver as fotos. Ele me mandou por correio. Eu digitalizei e mandei para a outra brasileira depois. Mas essas fotografias (Figura 16 e 17) são muito especiais para mim. O Monte Tartre foi um dos lugares mais lindos que eu vi na Eslováquia. A gente ia até os lagos, só que já tínhamos a passagem comprada para ir pra Hungria visitar a nossa amiga. Não ficamos muito tempo e fomos embora correndo. Fomos para Hungria. Chegamos a Budapeste, ficamos dois dias lá. Depois fomos para Kaposvár, que é uma cidade do interior muito bonita. A família da húngara é muito interessada em estudo, conhecimento, mesmo que eles não sejam acadêmicos. Eles tinham esse hábito muito forte de ler; vários livros na casa. Eles também gostavam de contar histórias do passado, dos avós da minha amiga que lutaram em revoluções. Eles são muito nacionalistas, com um sentimento muito forte de que a Hungria perdeu muito território na Segunda Guerra Mundial. Que Hitler prometeu muito território para eles e nunca cumpriu. Para dar uma ideia do quanto esse sentimento é forte… Fomos a uma feira perto de um lago grande que tem na Hungria, bem popular, cheio de ciganos. A 68 paisagem era composta de vários vulcões extintos, então esse lago com certeza é de origem vulcânica. E tinham as feiras em volta do lago. Nessas feiras, tinham ímãs de geladeira do território húngaro antes e depois da Segunda Guerra. A Hungria está em recessão, vivendo um período difícil. A Eslováquia também está, mas lá eu não vi tantos problemas. O interior da Eslováquia só tinha idoso. Os idosos morando longe, naquelas cidades afastadas de qualquer coisa, isolados em casinhas. A Europa está precisando de jovem mesmo. As pessoas com as quais eu convivi lá tinham preconceitos com ciganos. E aquele sentimento de que perderam muito território. Eles falavam que estão no centro e no coração da Europa, por isso eles tinham alguma importância. As minhas amigas da Estônia e da Letônia também sentiam isso, que o território foi defasado, que a cultura estava só agora se recuperando, o idioma estava só agora se recuperando. Tinha um apelo muito forte nesse sentido. Coisas que eu nunca imaginava que eu ia vivenciar. Em Kaposvár, ficamos mais na casa da família da minha amiga. Descansando, comendo e engordando porque os pais dela faziam umas geleias de todas as frutas que eles tinham no quintal, maravilhosas. Eles levaram a gente para conhecer a cidade. Cidade cheia de cultura, cheia de museus, estátuas. Sempre aquele acolhimento do interior: querem que você durma na melhor cama, coma nos melhores restaurantes. Os pais dela eram muito culturais e liberais. Depois voltamos para Budapeste, para a casa da irmã dela, já que elas estudam lá. Eu conheci a faculdade dela. Quando eu vi o Instituto de Astronomia, gigante com um telescópio gigante, eu fiquei impressionada. Tudo lá era monumental. Ela me contou que ela era a primeira pessoa da Meteorologia a fazer intercâmbio na Alemanha e, por isso, o pessoal se orgulhava dela. A gente fez vários passeios turísticos; conhecemos Buda e Peste. Ela era uma ótima guia. Na época, eles estavam comemorando a reunificação da Hungria, então em vários dias teve fogos de artifícios. A gente foi em dois eventos assim. Eles comemoram igual à gente, bebendo muito. Budapeste é bem urbana, tem uma vida noturna de alta qualidade. O transporte é muito bom. Mas quando você sai do centro, as coisas ficam mais estranhas. Foi uma viagem bem cultural. Conhecemos os amigos da irmã dela, que sempre convidavam a gente para beber alguma coisa com eles. A Pálinka era o que geralmente a gente bebia, semelhante à cachaça, mas muito forte. Eles cozinhavam para gente, comida típica. As viagens que fiz eram mais para conhecer a realidade das pessoas, mais do que ir para 69 baladas e diversão. Porque depois que você conhece as pessoas no intercâmbio, elas querem mostrar para você como é a vida delas no próprio país. A realidade dos meus amigos era essa. Vida normal, estudando. De vez em quando “chutavam o balde”. E a gente ia fazer essas coisas com eles. Depois disso eu ainda voltei para Trier, no final do intercâmbio, desesperada para fazer mais coisa. Fui para Hamburgo com o alemão com quem eu fiz o trekking e invadi a piscina pública. Hamburgo era uma cidade costeira, onde tem um dos maiores portos na Europa. Tinha muito dinheiro circulando. Foi a primeira vez que eu fui a um porto grande assim, com milhares de contêineres. A pessoa que nos recebeu lá era um vigilante, que já foi policial, alemão, e a esposa dele era brasileira, tia de uma amiga minha. Os dois formam um casal muito engraçado. Eles são iguais crianças. Imagine um alemão de 2 m de altura e uma brasileira de 1,60 m. Os dois foram muito fofos comigo e com o meu amigo. Hamburgo tinha uma avenida principal cheia de boates, baladas, bares. Uma vida noturna intensa, que começa sábado à noite e termina no domingo no mercado de peixe. No mercado de peixe, tem uma balada sete horas da manhã. Você termina a balada no sábado e vai para o mercado de peixe tomar um café ou uma cerveja e ouvir um rock'n'roll. Os alemães fazem isso todo domingo. A gente não foi na balada no sábado porque estávamos cansados, então fomos ao mercado de peixe e todo mundo estava aproveitando intensamente a balada de setes horas da manhã. Em Hamburgo a gente fez uma coisa muito legal: visitamos um submarino russo. Que ambiente horrível. Ficar meses naquele ambiente apertado, muito hostil, quente. Era de deixar qualquer um doido. Na volta de Hamburgo para Trier, fiz uma coisa que eu queria muito fazer e que o meu amigo alemão me ajudou a realizar. Eu dirigi na Autobahn. Eu peguei o Corsa 94 dele e coloquei 160 km/h. Foi muito bom. Eu dirigi três horas na Autobahn. Não tinha mais licença, mas o meu amigo nem me perguntou isso. Além do mais, ninguém ia me parar. E só passava Porsche, BMW, Porsche, BMW... Existe uma qualidade técnica no asfalto que não permite que saía som no carro. A gente pensa que o som é do carro, mas não é. O som é do atrito com o asfalto. A gente até fez esse experimento lá em Hamburgo. Eles estavam colocando um novo tipo de asfalto na cidade, que é mais silencioso. Quando você sai do silencioso, dá uma diferença de ruído intensa. A gente passou na cidade dele, bem rápido, e voltamos para Trier. Foi quando eu descobri que eu ia viajar um dia antes do que eu estava pensando. Eu quase perdi meu voo. Entrei em desespero para arrumar minha mala e ainda tive que despachar uma caixa que não cabia na mala. Eu voltei com 70 excesso de bagagem. Eu quase perdi o voo, fui a última pessoa a entrar. Mas a viagem mais legal que eu fiz foi a viagem do réveillon. O plano era: passar o réveillon na França, na casa da Aline. Eu, uma amiga, meu namorado na época e o André. A gente ia de ônibus, saindo de Saarbrüucken, da empresa que a minha amiga indicou, de lugar nenhum. O ponto de ônibus era um lugar inexistente no mapa e ia sair de madrugada para chegar à França, em Paris, 7 h. A gente entrou no ônibus e parecia que não tinha lugar para gente sentar. O motorista falou que a gente não podia tirar o sapato de jeito nenhum. Muito estranho! Mas a gente aceitou, afinal de contas réveillon em Paris ia ser chique. Que lama. Choveu muito, a gente ficou próximo a Torre Eiffel, no Trocadéro, e o que a gente fez foi beber (Figura 18). A gente achou que ia ter fogos de artifício, mas só teve a torre Eiffel piscando. Até que a gente saiu desejando “bonne année” e “happy new year” para as pessoas. E foi o melhor réveillon! Eu estava em um estresse em Trier, e em Paris no réveillon fiquei livre. Nos outros dias eu fiquei preocupada com todo mundo. Porque eu chamei todo mundo, reuni pessoas de diferentes contextos. Eu sabia que a Aline não estava fazendo nada e uma das intenções de viajar para lá foi deixar ela bem feliz. Eu podia ter ido em outra época, mas preferi passar o réveillon em família. Eu achei muito interessante a viagem como um todo. Porque é muita coisa nova, diferente. E eu consegui juntar várias pessoas que eu gosto muito. Eu ainda sou muito próxima das pessoas, do André, da minha outra amiga (a gente se reencontrou no Brasil, passamos outro réveillon juntas), e da Aline. E eu odiei Paris. Que tanto de gente, sem saber para onde vai, perdida, naquele metrô e que medo de ser empurrada no trilho do metrô. Eu sentia muito medo o tempo todo na cidade. Medo de ser agredida. Eu não me sentia segura. Não sei se foi por causa do bairro que a gente ficou, em St. Ouen, que era perto de um viaduto e tinha uma galera que dava muito medo de ser assaltada, perseguida. Eu não vi aquele movimento jovem, de universitário. Meu contato foi totalmente turístico. Acho que esse contato turístico lá não é bom. Acho que quando você está na universidade lá deve ser muito bom. Porque aí você vai perto da Torre Eiffel, faz um piquenique. Faz muito sentido. Acho que a liberdade e a cultura, pelo menos a sensação de que tem uma cultura e uma história legal, essa sensação vem, mas na posição que a gente estava, de turista, não deu para sentir. Eu senti que eu estava só fazendo um “check-in” nos lugares, mas não que estava desfrutando a cultura. Uma coisa que eu gostei muito foi quando a gente estava no bairro do hotel, e eu e o meu namorado fomos a um café. Era uma coisa comum. Era tudo tão delicioso e a pessoa tratou a gente tão bem que eu gostei. Uma coisa 71 que eu achei estranho foi que a gente não conheceu nenhum amigo seu, e os meninos não conheceram nenhum amigo meu também quando me visitaram porque estava todo mundo viajando. Eles falavam que eu tinha vários amigos imaginários. Eu fui para Inglaterra também. Fui visitar o meu namorado na época, em Brighton, que era onde ele estava morando. Ele morou lá por um mês. Em Brighton, a gente fez um circuito turístico, fomos nos monumentos da cidade, visitamos um aquário. Em Londres, a gente foi e voltou no mesmo dia porque era perto de Brighton. Nós visitamos uma amiga minha do intercâmbio que estava morando lá, só que estava tão frio que foi difícil visitar os monumentos. Mas fomos ao Big Ben, no Parlamento, fomos no London Eye, que é muito legal. Fomos de noite, mas ainda assim a vista é um charme porque a cidade fica toda acesa. Foi uma viagem mais para matar a saudade do meu namorado. A hora de despedir é que foi difícil. Em Brighton, nevou na praia. Foi uma coisa muito inusitada. A praia, o píer e a neve. A gente fez dois bonecos de neve (Figura 19). Eu também fui para Portugal. Eu fui em uma cidade do interior, chamada Curia, que só tinha velhinhos. Os amigos dos avós da minha amiga brasileira tinham casa lá e fomos conhecer eles. Era ele e a esposa dele na casa. Os dois eram agricultores, já tinham vivido uma parte da história deles na França e fugido do território francês. O velhinho era igual ao cara do “Up!”54 Esqueci o nome dele. Eles receberam a gente muito bem, fizeram um prato típico de sardinha com manteiga de garrafa. Nessa cidade, teve uma encenação de uma história da Bíblia e através dela eu vi o quanto os portugueses são irônicos. Mesmo em interpretações bíblicas. Eu também descobri que é muito difícil entender o português de Portugal do interior. Eu não entendia quase nada. Depois eu fui acompanhar um trabalho de campo do curso de Biologia, porque essa minha amiga brasileira perguntou o professor se eu poderia acompanhá-los. Eu fiz o trabalho de campo com eles e foi muito legal. A gente conheceu alguns sítios em Portugal, algumas praias. Uma das atividades foi retirar as ervas daninhas de uma área, limpar ela com a mão mesmo, e depois jogar no fogo. Fomos ao ponto mais a oeste da Europa. A gente foi em Lisboa também. Foi interessante porque eu e a minha amiga dominamos o português e os alemães que estavam com a gente por causa do trabalho de campo não falavam nada. A situação tinha se invertido. Muitos deles estavam pela primeira vez em Portugal. O 54 "Up! Altas aventuras" é nome de uma animação da Pixar, produzida nos Estados Unidos no ano de 2009. O protagonista, já idoso, além de narrar sua história de vida, embarca em uma aventura com um jovem escoteiro ao fazer sua casa flutuar colocando centenas de balão amarrados a ela. 72 professor fez um tour com a gente em Lisboa e visitamos as favelas, ou lugares mais pobres. Os alunos confiavam apenas no professor e tudo o que a gente falava que a gente ia fazer eles desconfiavam. No primeiro dia, quando a gente saiu à noite, eles que escolheram o lugar. Eu podia levar eles para um lugar melhor, mas achei melhor deixar eles com as desconfianças deles se limitarem. Eu fui visitar o André, mas ele estava na semana de provas, então foi limitado o contato. Apesar de que ele fez vários passeios turísticos comigo. Eu nunca achei graça de fazer as coisas sozinhas. Eu sempre vou para os lugares conhecer as pessoas. Não acho interessante conhecer as coisas sozinha. Eu também não achava fácil na rua conhecer pessoas. Aqui no Brasil eu faço isso. Mas lá eu não fazia isso. Não sentia vontade, não sentia confiança. Eu fui, então, em Portugal, na Inglaterra, na Eslováquia, na Hungria e, claro, na Alemanha. Fiz algumas viagens para cidades do interior da Holanda com o centro de estudantes de Trier, para Bélgica também. Luxemburgo fui várias vezes porque era a 30 minutos da minha casa de trem. Era muito bom. Eu senti muita saudade de casa. Pensava em voltar, no que eu estava fazendo lá, perdendo tempo. Tinha outras horas em que eu achava muito bom morar sozinha porque não tinha ninguém me controlando, perguntando aonde eu ia ou que horas eu ia voltar. Mas também não via sentido em fazer as coisas e não poder compartilhar com a minha família ao vivo. Sentia muita falta de abraços. Uma coisa que choca é que as pessoas não se abraçam. Uma vez, eu estava na faculdade e um amigo brasileiro me deu um abraço para se despedir de mim na aula. Uma amiga alemã me perguntou se ele era meu namorado. Eu respondi que não, que ele era meu amigo. Ela perguntou se eu abraçava meus amigos sempre… Eu sempre aproveitava dos meus amigos alemães mais próximos para abraçar. Eles não gostavam nada. Disso eu sentia muita falta, contato físico, carinho. Então eu tinha a minha amiga brasileira para abraçar e uma amiga da Lituânia, que sempre me dava abraços longos de graça. Ela também era da geografia. A gente compartilhava muitas visões semelhantes por causa da geografia. Eu tive um professor que era geógrafo. Ele compartilhava o mesmo fascínio que a gente tem pelo mundo. Eu sou hoje uma pessoa muito diferente. Às vezes, eu acho que minha visão de mundo é outra. Não é mais tão limitada. Eu escuto quando uma pessoa fala, eu concentro no que ela fala. Antes eu não conseguia fazer isso. Antes eu ficava pensando no que eu ia responder, na situação que aquilo gera. Hoje minha mente não funciona dessa forma mais. Eu vejo que muitas pessoas agem assim. Isso mudou muito. Aprendi a dar valor às pessoas 73 que gostam de mim e não as pessoas que eu queria que gostassem de mim. E aprendi a não chorar. Eu era muito chorona antes de ir para o intercâmbio. Hoje eu não choro. Só quando eu estou muito mal. Eu criei uma resistência. Eu tenho esse mapa que a minha amiga húngara me deu no Natal pregado na parede do meu quarto. A gente foi visitar a cidade de Koblenz. Ela comprou esse mapa para ela, e eu comprei outra coisa. No Natal ela me deu porque ela lembrou que eu tinha gostado. Dá pra ver o tanto de castelos que tem ao longo do rio Mosel. Essa é uma região romântica da Alemanha, com os rios, os castelos. É muito bonito. Viajando de trem é muito bonito ver a paisagem com os castelos, os vales, as vilas. Mas é um lugar triste de morar. Porque não tem vida, é tudo velho e mofado. Não tem renovação. É como viver na idade medieval. É a região mais pobre da Alemanha. Até chegar em Koblenz, que é mais moderna. Eu também vim com um desânimo do Brasil de modo geral. Porque as coisas aqui não funcionam, você tem que fazer tudo para as coisas darem certo. O país não funciona como um sistema, em que cada um faz a sua parte. Todos os dias eu penso que eu devia estar na Alemanha. Com todos as dificuldades de ter vivido lá. Estar em um lugar onde as coisas não funcionam, transporte público é ruim, você tem que ter influência para conseguir as coisas, é muito ruim. É claro que eu gostaria de mudar isso. Eu tento na medida em que eu posso: ser mais transparente, fazer as coisas com mais paixão, mas às vezes meu esforço é nulo. Eu sempre defendo o programa, o CsF. Eu incentivo as pessoas a viajar, ver o mundo, não ser tão limitadas… Figura 13 - Tronco mágico no lago Maria Laach, próximo a Trier, Alemanha 74 Figura 14 - Monumento em homenagem às vítimas do holocausto, congelado, em Berlim, Alemanha 75 Figura 15 - Paisagem típica da Alemanha: encostas verdejantes, vila e centrais nucleares ao fundo Figura 16 - Piscina pública que invadimos, a noite, em Trier, Alemanha 76 Figura 17 - Monte Tartre, Eslováquia Figura 18 - Pessoa subindo o Monte Tartre com galões de água e comida nas costas, Eslováquia 77 Figura 19 - Eu, André e Aline em virada do ano 2012 para 2013, em Paris, França. Figura 20 - Dois bonecos de neve na praia, em Brighton, Inglaterra 78 André, viajante Esse relato foi concebido no andar mais alto dum prédio bem alto no centro de Belo Horizonte. Em um café, com vista para cidade até as montanhas, enquanto o sol se tornava mais vermelho. Entre uma interrupção e outra – querem alguma coisa? –, quilômetros percorridos. Meu nome é André; eu tenho 24 anos. Eu fui morar em Lisboa, Portugal, em setembro de 2012. A princípio fiquei com medo porque era a primeira vez que eu viajava para fora, sozinho. O começo foi um pouco tumultuado porque eu cheguei e não tinha onde morar. Tudo deu errado, todos os quartos para alugar que eu tinha separado já estavam alugados. Aí eu fiquei no hostel e várias coisas aconteceram. Eu tranquei a mala com o cadeado e a chave estava dentro e tive que arrombar minha própria mala. Nos primeiros dias, eu resolvi coisas da faculdade que estavam pendentes. Consegui uma casa para morar no terceiro dia, com um contato que eu tinha feito anteriormente com um alemão. Na verdade, escolhi essa casa porque eu estava desesperado. A casa era velha, cheirava a mofo. Mas depois eu fiquei amigo dos outros meninos que moravam lá e não quis sair. A casa era próxima ao centro e tinha uma linha de metrô que ia direto para universidade. No início foi um pouco difícil porque eu não tinha nenhum amigo. Mas os meninos lá de casa me adotaram. Ainda era um pouco difícil pela barreira do idioma. Eram dois alemães e um americano. As saídas com eles eram “ótimas”, porque eles juntavam todos os alemães de Lisboa e ficavam conversando em alemão e eu ficava lá. Mas depois eu comecei a conhecer os brasileiros, fiz amigos brasileiros e aí foi mais tranquilo. Eu fazia geologia na Universidade de Lisboa. Eu estava muito animado com as disciplinas. Eu as escolhi antes de ir para Lisboa, mas eu não chequei os horários. Então quando eu cheguei, percebi que os horários das disciplinas se sobrepunham e não dava para fazer. Eu acabei fazendo só algumas das disciplinas e foi uma experiência muito boa, aprendi muito da área que eu gosto, que é hidrogeologia. Lá eu tive uma vida muito boa. Eu ia para faculdade, estudava, saía à noite quase sempre. Eu aproveitei o verão quando eu cheguei e fui para Algarve, que é a parte sul de Portugal. Logo, juntamos uma turma de brasileiros e fomos. Foi a primeira vez que eu tive contato com eles. Nós ficamos uma semana. Eram as praias mais bonitas de Portugal. A gente conheceu muita gente, fechou um hostel. Eram umas 12 pessoas. Tem uma foto (Figura 20) que representa todos os meus domingos à tarde, quando eu saía 79 vagando pela cidade na busca de algo pra fazer. E sempre encontrava alguma opção. Normalmente estava com minha câmera treinando alguns ângulos e enquadrando paisagens. Neste dia fui para uma feira de produtos naturais em Belém, normalmente era o lugar que eu ia aos domingos. Fui caminhando da área baixa de Lisboa até Belém, cerca de 10 km. Normalmente ia sozinho e aproveitava para conhecer melhor alguns cantos da cidade que não conhecia. O início foi assim: uma vida bem boêmia. Eu estava com vontade de conhecer coisas novas... Eu estava muito agitado e saía quase todos os dias, bebia muito. Mas foi bom para conhecer a cidade. Os outros intercambistas brasileiros também estavam muito animados. Fomos para Belém, eu visitei todas as atrações turísticas. Comi pastel de Belém, que era muito bom. Eu fui para Sintra, que é uma cidade histórica, com vários castelos e parques. Na última semana, fui visitar amigos da faculdade. Fui para a cidade do meu amigo português, que mora em Bombarral. Ele foi muito receptivo e me levou em vários lugares. Fomos a uma festa medieval em Óbidos. Depois voltei para Algarve, onde minha outra amiga portuguesa mora. Ela estava trabalhando num restaurante da família dela. Ela também me levou para vários lugares. Eles são muito receptivos, pelos menos os que eu conheci. Eu fui para Porto também, mas foi só para conhecer, no último mês, quando eu fiquei sem casa porque os alemães foram embora. Eu peguei o dinheiro que eu ia pagar um quarto e viajei. Fiz um tour por Portugal e fui para Londres. Deixei as malas nas casas dos amigos, e morei duas semanas na casa de um e uma semana na casa de outro. Até chegar a hora de voltar. A primeira viagem que eu fiz fora de Portugal foi para o Marrocos. Em outubro ou novembro. Foi uma excursão Erasmus, organizada para os estudantes internacionais. Fomos de ônibus, lotado, saindo de Lisboa até a Espanha, onde embarcamos no ferry boat para Marrocos. Foi gente de todo mundo, mas tinha mais brasileiros. Foi bom porque a gente estava com o guia, e o hotel em que a gente ficou era muito bom. Nosso guia era muito engraçado porque ele não tinha combinado nada. Ele chegava aos monumentos e falava que estava com uma turma e às vezes a gente não conseguia entrar. Visitamos três cidades. Chegamos à capital, Rabat, depois fomos para Casablanca e depois para Marrakesh, onde ficamos mais tempo, em um hotel. Fomos muito bem recebidos, pela população e pelos atendentes do hotel. Eu estava muito nervoso por causa dessa viagem. Recebemos um e-mail antes, aterrorizante, nos informando como nos comportar no Marrocos. Eles diziam para não tomar água se a garrafa não estivesse lacrada, para tomar 80 cuidado com os cachorros porque eles podiam transmitir raiva, porque o sistema de saúde lá era primitivo. Eles usaram essa palavra: primitivo. Tanto é que quando a gente recebeu esse e-mail a gente fechou o pacote de alimentação com o hotel. Depois a gente viu que era um preconceito porque não era tão diferente do Brasil. A cultura é diferente, mas não tinha motivos para ficar aterrorizado. As pessoas eram todas muito simpáticas. Os beduínos do deserto tratavam a gente muito bem, falavam 50 línguas diferentes, tiraram fotos. Pediram para a gente mandar as fotos por e-mail para eles. Lá em Marrakesh era um cenário tão diferente mas tão próximo ao mesmo tempo. Por exemplo, era sujo mas sujeira a gente vê aqui também. Não era igual ao que a gente imaginava, as mulheres andando o tempo todo cobertas com véu. Elas flertavam com a gente quando saíamos a noite, ficavam olhando. Nessa parte, foi muito surpreendente, bem liberal. A gente saiu para jantar um dia, de semana, não muito cheio. A gente chegou num restaurante e para eles ganharem a clientela, eles começaram a dançar para chamar a gente. Com certeza, nós jantamos lá. Eu sentia que eu estava bem recebido. Dos lugares que fui, eu me lembro muito do tratamento das pessoas. Acho que no Marrocos foi onde eu me senti mais em casa. Foi diferente da Itália, por exemplo. Porque lá eu me sentia um turista mesmo. Todo mundo queria agradar mas porque eu ia gastar, eu me sentia um consumidor ambulante. No Marrocos, não me senti assim. Eu me senti mais em casa. Foi um dos lugares que mais gostei. Eu me assustei quando eu fui ao Carrefour porque tinha um monte de gatos no meio das frutas e legumes. A gente visitou uma casa típica; o guia falou que tinha 3 esposas. Outra coisa muito legal era negociar quando a gente ia comprar. Porque não tinha preço e se você perguntar quanto custa eles te perguntam quanto você quer pagar. Só que eu não tinha nem ideia de quanto as coisas custavam e eu ainda estava na moeda deles. Era muito difícil. E é ofensivo para eles se a gente não negociar e não chegar a um acordo. No início, a gente não sabia disso então a gente desistiu de comprar uns chaveiros e o vendedor ficou com muita raiva. Se você oferecia um preço muito baixo, eles ficavam com raiva. Aí eles ofereciam um preço muito alto e a gente tinha que ficar negociando. Se você olhar para um produto, eles já querem vender. Eu comprei várias coisas. Tinha especiarias, muitas ervas, bijuterias, véus. Mas às vezes a gente perdia a paciência também. Um dia antes de ir para o deserto, a gente teve uma tarde livre. Então a gente foi andar. Era uma bagunça porque as ruas eram muito estreitas e passava tudo. Pessoa, cavalo, motocicletas. O engraçado é que ninguém era atropelado. Foi quando colocaram a cobra em mim. Eles 81 simplesmente colocam a cobra, depois tiram fotos e pedem para você pagar. Duas fotografias representam um pouco o que vi em Marrakesh, sobretudo a boa impressão que tive dos moradores. Sempre simpáticos e acolhedores, apesar da diferença cultural tão grande. Foi uma experiência incrível. Acho que as fotos demonstram bem a diferença entre estes dois mundos. A primeira foto (Figura 21) indica na minha concepção o povo marroquino - simples e sereno. Já a segunda foto (Figura 22), que eu gosto muito, mostra bem o contraste. Gosto também dos grandes prédios em construção ao fundo. É como se as duas culturas convivessem bem entre si num contexto de desenvolvimento. O deserto foi lindo. A gente tentou se vestir igual eles. A gente foi na Medina e comprou uma roupa típica. E saímos assim na rua. Compramos um lenço e pedimos para os beduínos amarrarem o turbante. Eles eram muito simpáticos. O nascer do sol no deserto foi muito legal. A gente acordou muito cedo e no dia anterior os beduínos fizeram uma fogueira para gente, uma festa, com música. Uma brasileira dançava dança do ventre e foi muito legal. No outro dia a gente acordou cedo para ver o nascer do sol, e estava muito frio. Para ir para o deserto a gente foi de dromedário. Machuca mas foi uma experiência muito boa. Eles ofereceram jantar e café da manhã. Mas como eles tentaram agradar a gente, eu também tentei agradar eles. A comida não era muito boa, mas como eles sentaram com a gente e ficaram conversando, eu comi. Os lugares onde a gente parou para comer na volta para Lisboa foram muito legais. No meio do nada, tinha um restaurante. Eu trouxe de lembrança várias sacolas de areia do deserto. Depois teve a época de provas. Estudei bastante. E fui para a viagem de Natal e Ano Novo, que foi para a Alemanha e para França. Dessa vez, foi a primeira vez que eu viajei sozinho. Os alemães que moravam comigo me ajudaram muito a comprar as passagens. Eu fui pra Frankfurt. Foi uma viagem muito corrida, porque eu fiz as malas duas horas antes de partir por causa das provas... O que eu lembro muito de Frankfurt foi depois que eu desci do aeroporto para pegar o trem para o centro. A imagem é essa: eu descendo as escadas e o frio vindo. Foi um choque. Eu sinto até hoje esse frio. Mesmo eu estando todo agasalhado. É um frio diferente de Lisboa. Em Lisboa, venta muito. Aí eu me confundi com o ticket porque eu achei que tivesse que validar. Eu comprei um ticket em uma máquina automática e vi que todo mundo estava com outro. Eu voltei no atendente e pedi para ele trocar. Ele ficou me olhando, perplexo, porque eu já tinha o ticket. No final tudo se resolveu e eu não precisava validar o ticket. Eu ia encontrar o alemão que morava comigo mas tinha voltado para passar o Natal com a família. A gente ia passar uma tarde 82 juntos até o horário do meu trem para Trier. Só que a gente desencontrou e eu fiquei à deriva na cidade. O dia estava muito bom. Eu andei, vi as praças, fui ao Banco do Euro. Lá estava tendo uma feira de Natal. Só que eu fui com a mala. Eu não lembrei que na estação tinha guarda volumes. Então, eu voltei e deixei minhas malas lá. Consegui falar com meu amigo e fui encontra-lo. Conversamos e andamos pela cidade. Eu achei que ele fosse me chamar para dormir na casa dele. Só que ele não chamou. Voltei para a estação. Minhas malas continuavam lá. Dormi na estação. Estava muito frio e eu estava esperando o trem que partia só de madrugada. Eu tive uma impressão muito ruim das pessoas em Frankfurt quando eu cheguei. Eu pedi para um alemão tirar uma foto minha e ele disse “Nein”, não. Nunca mais pedi para ninguém tirar fotos. Mas na estação eu vi o outro lado… Quando eu estava lá, chegou uma velhinha falando comigo. Ela disse que fazia parte de uma ONG que acolhia viajantes que estavam esperando o trem, especialmente no inverno. Eles tinham uma sala na estação que acolhia essas pessoas. Ela perguntou se eu queria ir. Eu fui, junto com outras pessoas que estavam esperando o trem. Foi muito bom porque eles ofereceram chá, travesseiro. Foi a melhor coisa que aconteceu. Era tudo controlado. Ela anotava para onde a gente ia, olhava o passaporte. Depois eu fui para Trier e a Fernanda me esqueceu na estação. Eu liguei e ela me buscou, junto com o Matheus. Foi aquela merda de viagem. Não tinha nada para fazer, era véspera de Natal e estava tudo fechado. O Natal foi muito legal. Ela morava na moradia da universidade e os estudantes que ficaram fizeram uma ceia. A ideia era cada um levar um prato típico. Levamos arroz e feijão. Foi uma viagem bem tranquila. A gente mais dormia que passeava. Nossa programação era assim: a gente acordava, tomava um café e depois ficava esperando a Fernanda falar o que a gente ia fazer. Conhecemos a cidade, fomos à frente da casa do Karl Marx, porque estava fechada. A gente voltava por volta das 16h, o Matheus fazia a janta e a gente ia dormir. Foi assim até a gente ir para Paris. Nos últimos dias, fomos para Luxemburgo, que é bem bonito e tem muitos brasileiros, e em outras cidades pequenas do interior da Alemanha. Foi bom porque deu para conhecer um pouco os costumes. Fomos a várias feiras de Natal. Tomamos chocolate quente, tomamos vinho quente (Ghul wine). Os meninos da Alemanha que moravam comigo também faziam esse vinho quente. Na noite mais fria em Lisboa, eles fizeram isso. Nossa casa não tinha aquecedor, aí gente abriu um aplicativo que é uma fogueira virtual, no computador. Fica o barulho da lenha queimando. Sentamos em frente ao computador e ficamos bebendo vinho quente. Foi muito engraçada essa noite. 83 Mas a viagem foi isso. Foi bom porque eu estava com a Fernanda… Também foi bom porque a Alemanha era um país que eu queria conhecer. E deu para ver os dois lados, o leste e o oeste. Depois eu voltei, de mochilão, fui para Berlim e Hamburgo. Mas depois dessa viagem fomos para Paris. Foi difícil para chegar porque o ônibus passava no encontro de duas avenidas não movimentadas. Meia noite. O ônibus atrasou e não tinha para quem perguntar. A Fernanda ligava para companhia de ônibus e ninguém atendia. Estava chovendo, estava frio. Já começou mal. A gente entrou no ônibus e não tinha lugar para gente. O motorista tinha ocupado dois lugares com as coisas deles. Pedimos para tirar porque não tinha mais lugar. Finalmente chegamos a Paris. Chegamos bem no norte, na última estação. A gente ficou muito tempo perdido. Depois encontramos um amigo da Fernanda. Ele levou a gente para conhecer a parte nova da cidade, onde tinha uns shoppings. Ele foi nosso guia nesse primeiro dia. Depois encontramos a Aline e fomos para casa dela. Fomos muito bem recebidos, na medida do possível. Foi bem legal. Mas eu esperava mais de Paris. Foram momentos inesquecíveis, mais pela companhia do que pelo lugar. Eu acho que, por exemplo, em Londres que eu fui sozinho eu aproveitei bem mais do que Paris, que tinha a Aline para guiar. Quando você não tem ninguém para guiar, você se perde e acha novos lugares. Em Londres, às vezes eu resolvia deixar o mapa no bolso e ia andando. Do nada, eu estava tirando foto e não sabia para onde ir depois ou o que fazer. Mas foi bem diferente em Paris. Porque a Aline guiava tudo, e a gente ia sempre de metrô. Eu não tenho uma visão de Paris… Eu tenho a visão dos monumentos e não do que ligava eles. Paris é isso: metrô. A gente andou muito de metrô. A ligação entre os lugares em Paris é uma coisa que eu não tenho na cabeça. Por incrível que pareça, a noite que eu mais lembro é a noite do Ano Novo. Foi quando eu mais aproveitei a cidade. Eu lembro que nós estávamos muito doidos e passamos em baixo da torre. Eu olhei para cima e foi uma sensação muito boa. Eu me lembro dessa cena muito bem. Tudo deu errado, mas a gente confiava na Aline para chegar a casa. Foi horrível. Tudo molhado e não tinha lugar para secar. Isso no Ano Novo. Em Paris, eu me senti muito inseguro. Aquele tanto de gente, um povo meio estranho. Eu ficava olhando para os lados, reparando se não tinha ninguém estranho querendo me assaltar. Eu fiquei muito inseguro. Sobre os franceses… Eu não tinha muito contato porque tinha a Aline para guiar. Foi uma coisa que eu concluí: viajar sozinho é muito melhor. Para conhecer a cidade, aproveitar, ter uma percepção melhor da cidade. 84 Eu voltei para Lisboa. Nesse tempo, eu tive provas finais. Quando acabou esse período, fiz o primeiro mochilão, com meus amigos de Lisboa – os engenheiros. Eu estava bem animado porque a gente ia visitar a Itália. Cada um tinha que pegar uma cidade para fazer o roteiro, mas ninguém fez nada. Só eu. Ficamos 16 dias, com mochila nas costas. Era a primeira vez viajando para fora de Lisboa dos meninos. Então eu era o mais experiente. Fomos pra Itália, chegamos a Veneza de avião e, foi muito engraçado, porque eu fiquei com o roteiro de Veneza. A gente nunca tinha visto neve, e estava com previsão de neve. Eu fiz muito propaganda, falando com eles que ia ter a neve. Mas a gente chegou, e, apesar de muito frio, não tinha neve. E choveu muito. Chegamos à noite e nosso hostel ficavam bem no meio da ilha, perto da praça San Marco. Chegamos ao continente e de lá pegamos um ônibus para ilha. Depois a gente não sabia para onde ir porque nenhum mapa pegava todas aquelas ruas direito... Nosso amigo tinha um tablet com todos os mapas. Ele ficou com medo de usar o tablet e ser roubado, então a gente não olhou o mapa. Já era mais de 22h da noite e a gente na rua, em Veneza, naquela escuridão. Nenhum nativo sabia falar inglês, mas eles tinham muita boa vontade. Eu me lembro de uma velhinha para quem a gente perguntou, mas ela não sabia falar inglês e levou a gente até uma mulher que sabia. Mas essa mulher não conhecia a rua. A gente tinha feito uma rota, mas quando a gente seguia a rota no meio do caminho tinha um canal ou dava em um beco sem saída. É uma cidade muito idade média. Até que eu tive a ideia de procurar a praça. Porque eu tinha reservado o hostel e sabia que ele era perto da praça. E alguém muito bondoso colocou placas ou escreveu nas paredes o caminho. Nosso plano então foi ir para praça e de lá procurar o hostel. Fizemos isso. Mas não sabíamos onde era, ficamos perdidos. De repente achamos, por acaso. Mas não tinha ninguém no hostel. As cartas todas empilhadas na caixa de correio. Ficamos desesperados. A gente pensou que o endereço estava errado. Mas tinha um número de telefone lá. No inverno não fica aberto o hostel porque tem pouca demanda, então eles deixam um número de telefone para você ligar e eles irem abrir. Mas não conseguimos ligar, não sei por quê. A gente deu muita sorte. Eu fui perguntar um rapaz se o endereço estava certo. O rapaz mais estranho que tinha no bar, parecia que ele tinha quebrado o nariz. Eu mostrei para ele o papel com o endereço e ele viu que estava em português. E disse que o amigo dele falava português. Veio um rapaz e começou a falar com um sotaque baiano. Ele contou a história dele. O pai dele casou com uma baiana, ele morou no Brasil um tempo. A gente acabou usando o celular dele e falamos com o pessoal do hostel. Eles disseram que tinham mandado um e-mail no mesmo dia de manhã, avisando que a gente tinha que passar em outro lugar 85 antes para pegar a chave com um amigo da mulher que era dona do hostel. Ela tinha viajado e deixado a chave com ele. Então ele avisou que ia chegar em uma hora. Aí fomos com o baiano para um bar, onde ele estava. Ele ajudou muito a gente, foi muita sorte e depois ele explicou que ajudou a gente porque no Brasil ele teve muita ajuda. No hostel, a gente descobriu que a dona tinha deixado a casa para gente. Tudo da dona estava lá, a bolsa dela estava em cima da mesa. Todos os quartos abertos. Inicialmente, não estava incluso a cozinha. Mas a cozinha estava lá e a gente cozinhou. Fiquei impressionado com o tanto que eles confiam em estudantes viajantes. A viagem de Veneza foi muito tranquila porque não tinha muito lugar para visitar. Calculamos muito mal a quantidade de dias por cidade. Em Veneza ficamos três dias, mas no primeiro já tinha esgotado as coisas para fazer. E lá era muito caro também. A gente tinha pouco dinheiro, contudo combinamos de comer em um restaurante muito chique um dia, uma pizza italiana de verdade. Porque a gente sabia que depois ia sobreviver de hambúrguer. Foi muito bom, a pizza estava muito boa. A massa é completamente diferente da nossa. Às vezes eu me arrependo do quanto a gente economizava em comida. A gente acabou não comendo muita comida típica dos países que visitamos. Nos outros dias, fomos para as outras ilhas: Burano e Murano. Havia várias lojas de cristais. Fomos à fábrica de vidro. Uma coisa que eu gostei muito foi o cemitério. Era em uma ilha e tinha uma estação cemitério no barco que fazia o transporte. Era muito lindo. Foi a coisa que mais me chamou atenção na cidade. Foram as praças medievais, com as igrejas enormes e as fontes. Depois disso passei pela pior noite da minha vida tentando economizar hostel. Nosso trem saia muito cedo e a gente ficou na estação de trem, do continente. Como a gente ficou esperando muito tempo, acharam que a gente estava dando informação. Estava muito frio, eu passei mal. Tinha uma sala onde as pessoas esperavam, mas lá dentro estava parecendo um gueto do Rio de Janeiro... Ficamos no McDonald's até 23h e depois ficamos sentando na escada da estação. O legal da viagem foi que deu para conhecer bem meus amigos. Um deles estava muito animado, como sempre, e queria ir para uma balada. A gente com frio, com mala, chovendo, e ele procurando uma balada. A gente saiu na chuva e ele encontrou um cara que ia levar a gente na balada. Mas quando a gente chegou lá, o lugar era muito chique. Não dava para entrar lá. Voltamos para estação. Passamos muito frio, meu amigo teve que me dar a blusa dele. Mas foi bom porque ficamos mais amigos. Depois fomos para Florença. Foi a mesma história, não tinha ninguém no hostel e tivemos 86 que ligar para eles. O rapaz chegou, ele falava português. Em Florença a gente não conheceu muito por causa dos reflexos da noite anterior. Nós estávamos muito cansados. Depois fomos para Siena. É uma cidade muito bonita. A gente chegou, sem saber o que tinha na cidade. Fomos andando e achamos uma praça linda. Linda, linda. Uma igreja enorme, com uma praça enorme. Subimos até uma igreja bem afastada. A gente foi em um supermercado, achamos uma cerveja de um litro, muito barata. Era uma cidade de interior, muito tranquila. As pessoas sempre simpáticas. A paisagem era muito bonita. Relevo montanhoso, com as casinhas todas juntas. À medida que a gente ia subindo, tinha uma visão panorâmica. Depois fomos direto para estação, pegar o trem para Roma. Eu lembro mais das situações com os meninos em Siena. Depois fomos para Roma. Separamos cinco dias. Compramos um Roma Pass, que dava passagem livre de transporte e dois lugares para visitar. Tinha muita coisa para fazer, e eu tinha preparado tudo. Eu sabia de cor o caminho para chegar ao hostel e foi muito tranquilo. O hostel era muito engraçado porque era de chineses. A gente ficou em um bairro onde tinha muito estrangeiro. Dava para ir a pé ao Coliseu, meia hora andando. Pela primeira vez, a gente estava em um quarto decente. Tinham brasileiros. Uma mulher estava reclamando muito do bairro, que só tinha estrangeiros. A história dela é engraçada. Ela conheceu um italiano pela internet e foi morar com ele. Eles estavam lá passeando em Roma. Todos os dias foram muito atarefados. A noite a gente saia para tirar foto, passear, beber. Era muito irreal. Eram coisas muito grandiosas, muito longe do que eu estava acostumado. Eu me senti muito turista. A cidade estava lotada, e imagino que durante todo o ano deve ser assim. Parecia que todo mundo me olhava já esperando que eu fosse comprar. Tinha aquelas barraquinhas perto do Coliseu, e os vendedores falavam: para brasileiro é tal preço, para japonês é tal preço… Eu me lembro desse tratamento de turista, tipo “vou te explorar”. Então não tivemos muito contato com as pessoas de lá. Mas a gente fez coisas muito típicas. A gente comprava o sorvete e tomava todos os dias. Os nossos dias eram todos programados. A gente conheceu a cidade toda. A gente jogou um cent de euro na Fontana. A gente ficou um dia só no parque, um que ficava na porção norte da cidade e a paisagem era bonita. Um dia a gente separou para ir ao Vaticano. Para você ir, passa por uma ponte. E nessa ponte tinham vários artistas. Era muito legal. Tinha gente tocando música, tinha comércio. A gente passou por ela, depois fomos ao Vaticano. Tinha um telão e era época em que o Papa renunciou. Estava muito cheio. A gente passou pelo detector de metais, entramos na igreja. Tudo estava em obra. Depois os meninos 87 compraram umas coisas. Crucifixo, terço. Eu comprei para minha avó e para minha mãe. Meu amigo quis benzer o terço. Aí ele enfrentou uma fila para ir lá de novo, benzer o terço. Duas horas depois estava enferrujado. A gente não foi no museu do Vaticano porque a gente estava com o passe de Roma. Ele não valia no Vaticano. Mas eu fiquei impressionado com Roma. Era tudo grandioso, quase irreal. Como se você não estivesse na Terra. A gente foi numa igreja de ossos. Eles faziam arranjos com ossos, coroas de flores. Era muito diferente das Catacumbas de Paris. Em Paris, os ossos ficam amontoados. Para ir embora a gente passou um perrengue. Porque o aeroporto fica distante e as passagens de ônibus para o aeroporto estavam muito caras. Fomos a uma estação onde ficavam os ônibus e conhecemos outro lado de Roma. Compramos o ticket de uma vez, a gente pagou e foi embora. Só depois que a gente viu que o ticket estava vencido há dois anos. A gente perguntou um motorista se o ticket era válido e ele falou que sim, indicou onde a gente pegava o ônibus. Pegamos o avião e fomos para Atenas. No meio do voo, descobrimos que tudo estava em greve. Ficamos nos perguntando como a gente ia chegar ao hostel. Acabamos dividindo um táxi com outros brasileiros; estávamos com medo de ficar muito caro. Chegamos ao hostel e fomos muito bem recebidos. A cidade estava vazia, estava tudo fechado. A gente só podia andar de táxi. Estávamos com medo, pensamos que ninguém falava inglês. Mas foi muito tranquilo. A comunicação não foi um problema. Eu lembro que a gente foi no mercado, de bairro. Os produtos não tinham preço e estava tudo escrito em grego, não dava para entender. Eu estava doido para experimentar o iogurte grego original. Mas eu não soube qual comprar. A comida não era muito boa. Então no primeiro dia a gente ficou só passeando no bairro. No segundo dia, a gente foi para Acrópole. Estava aberto, mas estava tudo em obra. Mas a gente ficou um tempo. A gente foi no estádio olímpico também. Tem um museu dentro, que tem todas as tochas de todas as Olimpíadas. Foi muito legal. Tinha o pódio também. Mas estava tudo muito vazio. Tinham muitos protestos na cidade. Não dava para entender por que eles estavam protestando, mas eu fui. Foi quando eu percebi o que era estar em crise. Em Lisboa eu não tinha essa noção porque eu não vivi lá antes da crise. Mas na Grécia dava para ver que as coisas chegaram a um limite. No mais, fomos bem tratados. Uma mulher ficou muito preocupada porque eu fui comprar uma camisa. Era uma loja que ficava abaixo do nível da rua. Quando eu fui subir, eu bati a cabeça. A mulher ficou desesperada querendo saber se eu estava bem, se eu tinha machucado. Mas doeu demais. Eu me lembro de outro dia também. Eu inventei 88 de colecionar plaquinhas. Todo lugar que eu fosse eu tinha que comprar uma plaquinha (Figura 26). Nesse dia, os meninos estavam muito desanimados e não queriam fazer nada. Eu fui procurar minha placa grega. Conheci uma parte da cidade diferente. Parecia o centro da cidade, com várias lojas. Eu fui entrando nos lugares e fiquei bem perdido. Achei as placas. Eu ficava perguntando o que tinha escrito e o vendedor ficou bem impaciente. Quando eu voltei para o Brasil, eu fiz no meu quarto um canto com todas elas. Nesse dia, eu encontrei alguns policiais, que me ajudaram a encontrar um supermercado decente... Eles não falavam inglês, e resolveram me levar lá. Foram muito simpáticos. Fomos andando; eu no meio dos dois policiais. Eles perguntaram de onde eu era e o que eu estava fazendo. Foi muito legal. Acho que esses momentos em que eu ficava sozinho eram os melhores. Porque eu ficava parando para tirar fotos e os meninos não tinham muita paciência. Tanto é que em Londres que eu fui sozinho as fotos ficaram ótimas. Teve um dia em que a gente fez o concurso da melhor cerveja. Compramos várias cervejas gregas e demos notas. Eram horríveis. Tinha cerveja de mel. A gente passou no parque, ficamos uma tarde inteira, fizemos um piquenique. No último dia, tinha um monte na cidade e meus amigos falaram para gente subir nele porque devia ser interessante a vista. Fomos, sem saber o caminho. E estava ameaçando chover, todo mundo cansado, sem paciência, e a subida era muito forte. Mas lá de cima dava para ver toda a cidade. Foi uma visão bem bonita. A melhor cena de Atenas foram os guardas, que ficavam em postos espalhados pela cidade. Eles têm uma coreografia para trocar os postos, em duplas e fazendo uma dança. Foi uma atração, a gente adorou. Eu tive uma impressão muito boa das pessoas de Atenas. Eles pareceram bem determinados. Não sei se foi por causa da época que eu fui. No outro dia, pegamos o avião para Milão. Voltamos para a Itália porque o próximo destino era a Polônia, e não tinha avião direto de Atenas. A gente já estava impaciente porque não tinha dado certo em Atenas. Nós odiamos porque nosso hostel era horrível. Não tinha banheiro. Mas isso destruiu a gente. Ocorreu o assalto do meu amigo. A gente foi comprar a passagem na estação, que fica cheia de pedintes. Quando a atendente deu o troco do dinheiro da passagem, um desses pedintes veio correndo e pegou o troco e enfiou tudo na boca. Foi horrível, mas era só uma noite. A gente ia passar uma noite e depois ir para Polônia. E depois fomos para Polônia, que foi o melhor da viagem. No caminho já começou a nevar. Eu estava dormindo, eu sempre dormia nas viagens. Aí meu amigo me acordou no 89 meio da noite para ver que estava nevando. Fomos e deu tudo certo. Eu estava muito ansioso para ir lá. Por causa de Auschwitz, principalmente. A gente não conhecia muito a cidade. A gente ia ficar na Cracóvia. Mas quando a gente chegou tivemos uma surpresa. A cidade era muito bonita. E como a moeda lá é muito desvalorizada, ficamos muito ricos de repente. A gente ia aos melhores restaurantes. Fomos muito bem recebidos no hostel. Foi o melhor hostel que a gente ficou e pagamos bem barato. Os dias estavam muito contados, e tinha muita coisa para fazer. A gente gostou muito também porque quando a gente chegou, para pegar ônibus do aeroporto para o centro, a máquina que vende tickets só aceita moeda. A gente só tinha notas porque a gente tinha acabado de trocar o dinheiro. E ficamos desesperados, achando que eles iam pegar a gente. E aí os nativos viram o que gente estava passando e começaram a fazer uma vaquinha. Claro que não deu certo, mas a gente ganhou umas moedas. Ficamos com medo também porque tinha uma televisão que ia passando as estações e não tinha a estação que a gente ia descer, e a gente não sabia onde a gente ia descer. Depois que a gente percebeu que à medida que ia passando as estações o caminho na televisão ia se movimentando e revelando novas estações. Mas foi legal porque as pessoas ajudaram a gente. Deu para ver que eles são simpáticos. Lembro que nesse dia estava nevando e era a primeira vez que eu tinha contato com a neve. A gente deu uma volta pela cidade e foi muito legal andar na neve. Os lugares eram muito bonitos. A gente foi na parte antiga, onde tem uma igreja antiga, toda de ouro com detalhes. Mas que tinha um estilo completamente diferente do que estamos acostumados. Muito luxuosa. Os meninos queriam entrar em um lugar para sentar e beber, mas eu queria passear. A história da Cracóvia é que um guerreiro foi lutar com um dragão e matou ele. E daí começou a cidade. Eu estava andando e me deparei com um dragão. Era impressionante. O dragão era enorme. Eu estava lá olhando, tirando foto. Tinha uma mulher que ficava vendendo umas lembrancinhas do lado do dragão. Ele chegou para mim e falou que o dragão soltava fogo e que era para eu esperar um pouco. Eu pensei que tinha sido o inglês, que eu não tinha entendido, não acreditava. Mas esperei. Daí a pouco saíram umas chamas enormes do dragão. Ele realmente soltava fogo de cinco em cinco minutos. Compramos cerveja, colocamos ela no gelo. Tinha muita coisa para fazer e a gente só tinha um dia, porque no outro dia a gente ia para Auschwitz e depois ia passar mais uma tarde na Cracóvia e ia embora. Era inverno, as coisas fechavam muito cedo. Foi muita correria. Mas ficamos encantados com a cidade. A gente foi em um bar muito legal, que eu guardo até hoje o cartão porque foi bem significativo para mim. Era um bar medieval e nós jantamos todos os dias lá. A comida era muito boa, as atendentes muito 90 simpáticas. A porta era escondida e a gente achou por acaso. A gente acabou ficando conhecido dos atendentes. No outro dia, fomos para o mercado e compramos umas coisas. Depois fomos para Auschwitz, e foi meio tenso. Primeiro que a gente foi com uma van clandestina. A gente não sabia como chegar lá, e quando a gente chegou à estação o próximo ônibus ia demorar não sei quantas horas. Aí a atendente falou que tinham umas vans que faziam transporte. Quando a gente chegou à estação, tinha uma saindo. Eu lembro muito bem desse dia porque a gente saiu de manhã cedo e o sol estava lindo. Foram as melhores fotos. A cidade estava linda. Eu lembro perfeitamente desse caminho... A gente na van, saindo da cidade e indo para Auschwitz. Eu comecei a tirar fotos de tudo. A gente chegou a Auschwitz e estava lotado porque a gente foi no dia de comemoração da libertação. A gente andou muito para chegar lá e a visita foi bem tensa. As exposições eram todas assim: um monte de cabelo, um monte de próteses, um monte de tigela… É um museu muito interessante, em termos históricos, mas é um museu muito triste. Tinha uma ala que era só sobre experimentos com crianças. Tinha uma prateleira com um vidro e várias bonecas quebradas. Eu me lembro disso até hoje. Tinham fotos dos prisioneiros e, em algumas, os familiares deixavam flores. Tinha os blocos onde ficava os prisioneiros, e cada bloco era uma exposição de um país que teve prisioneiros lá. Tinha uma parte muito bacana dos resistentes que lutaram contra Auschwitz. As fotos ficaram meio tremidas, acho que eu estava com medo. Mas o que mais me chamou atenção foram os montes de cabelos. Quando eu fui tirar a foto do monte de cabelo, eu lembro que a menina do meu lado começou a chorar muito. Eu fiquei sem saber o que fazer. Nós passamos horas lá, visitamos cada bloco. Tinha o bloco principal, onde os prisioneiros chegavam e eles eram analisados, torturados. Era muito cenário de filme. Tinha o banheiro e eu fiquei muito horrorizado em como era o banheiro. Lá não tinha as tubulações, mas a mulher explicou onde elas passavam e onde os prisioneiros ficavam, porque eles tomavam banho antes de… A gente foi em Auschwitz 2 também, que é o campo de filmes, tipo “A vida é bela”, que tinha o galpão, cheio de beliches. Eram longe os blocos uns dos outros. Tinha muito neve. Eu vi uma galera parada no meio da neve e depois eu percebi que eles estavam olhando o trilho do trem. Foi muito triste. Eu vi também muitos judeus, característicos, visitando. Tinham muitas homenagens também. Acho que eles rezaram, eu não entendi direito, depois saíram como em passeata e levavam essas flores. Ficamos bem chocados. Cracóvia foi realmente uma surpresa. A gente estava adorando, queria ficar mais. Depois 91 voltamos para Milão para pegar o voo para Lisboa. Estávamos bem cansados. Acho que se eu estivesse sozinho eu ia aproveitar mais. Eu gostei mais dessa primeira viagem de Roma e da Cracóvia. Roma mais pelos monumentos irreais. Depois eu voltei para Lisboa, em fevereiro. Entre esse mochilão e o outro, eu estudei muito. Muito mesmo. Fiz pequenas viagens, fui para praia às vezes. Depois, em junho, nós fizemos outro mochilão de 18 dias. Foi legal, porque foi outro amigo meu. Esse mochilão não foi planejado porque todo mundo estava ocupado com coisas da faculdade, trabalhos e provas. A gente comprou as passagens em cima da hora, decidiu o roteiro em cima da hora. Eu que fiz tudo. Porque ninguém tinha tempo de encontrar para resolver. Já fomos cansados. A primeira parada era Amsterdã. Por coincidência, outros amigos foram no mesmo tempo. Juntamos uma galera e fomos para curtir mesmo. Todas as besteiras que você pode imaginar, a gente fez. Encontrei o Fabrício, a gente saiu para beber. A gente não visitou quase nada, foi uma coisa de passeios de amigos em um lugar diferente. Fomos ao museu do sexo. Foi muito legal. Em Amsterdã, primeiro eu tive um susto quando eu vi as mulheres no Distrito da Luz Vermelha. Era bem engraçado porque meu hostel ficava lá e era um hostel cristão. Foi muito bom, porque encontramos todos os amigos de Lisboa e já estava todo mundo se despedindo. A gente aproveitou a cidade, os bares, andamos pelos canais. Eu machuquei meu pé, não sei como. Depois fomos para Hamburgo, de ônibus. A gente decidiu que ia de ônibus agora. Porque o aeroporto era sempre longe, e a gente economizava um dia de hostel e não perdia tanto tempo. Chegamos no domingo de manhã achando que não ia ter nada e as pessoas da cidade estavam caídas no chão de bêbadas, muita gente começando a beber cedo. A gente foi no mercado de peixes e estava tendo um show domingo de manhã. A galera bebendo. Ficamos lá um tempão, nesse mercado. A gente ficou num hotel. Fomos lá, deixamos as coisas. Eu estava com o pé machucado, muito inchado. Como a gente estava andando muito, eu não sentia a dor. Só a noite, quando eu parava é que eu sentia dor. Lá a gente mais passeou pela cidade, fomos a parques. Meus amigos fazem engenharia naval e eles gostaram bastante por ser a cidade especializada em construir navios e submarinos. A gente foi no museu da marinha. Foi uma cidade que a gente aproveitou mais em passeio de amigos. A gente aproveitou bastante, saindo para os bares. Fomos à avenida onde falaram que tinha as melhores festas e não era nada. Nós ficamos dois dias só. Essa segunda viagem foi muito assim. A gente saía a noite com muita expectativa e depois não era nada igual ao que a gente tinha esperado. Depois nós fomos para Berlim. 92 Berlim era uma cidade que eu tinha muita expectativa. Tudo foi lindo. Chegamos ao hostel e era maravilhoso. As pessoas tratavam a gente bem. Eu respirava todos os filmes que eu assisto e que se passam lá. A gente aproveitou muito a cidade. Fomos ao muro de Berlim, que agora é um museu ao ar livre. Subimos na torre de TV. Meus amigos não queriam ir à torre porque era longe, mas eu inventei que tinha um teto de vidro que dava para você andar e ver lá embaixo e eles acreditaram e foram. Mas não tinha nada disso. Fui à Alexander Platz. Eu fiquei emocionado porque tem uma série que chama Alexander Platz, que eu assisti antes de ir. Eu ainda estava machucado, mas de dia ainda dava para aguentar. Estava muito quente. A gente parava nos mercados. Berlim é muito cosmopolita. Tinha vendas de coisas da segunda Guerra. A gente foi no parque e andamos a tarde inteira nele. Depois dessa viagem deu para comparar mesmo a diferença entre o leste e oeste. As pessoas são completamente diferentes, são bem mais alternativas... A gente tomou cerveja. Como estava muito calor, a gente vivia de salada. Escurecia 23h e 4h já estava claro. O hostel era muito legal. A gente conheceu uns alemães que estavam fazendo umas viagens de final de ensino médio. A gente ficava jogando sinuca. Teve uma noite que eu fiquei muito mal por causa do pé. O homem do hostel me ajudou, me deu gelo para colocar e me falou para comprar um anti-inflamatório. Os meus amigos compraram. Os lugares eram lindos. A Catedral de Berlim era maravilhosa. Monstruosa. O que tinha muito na cidade eram aquelas máquinas que tiravam fotos instantâneas. A gente tirou uma, foi muito engraçado. A cidade toda inspira arte e política. Depois de Berlim, fomos para Praga, que é o melhor lugar do mundo. Foi surpreendente. Algumas cidades não têm muita atração, é mais por você estar com seus amigos em um lugar diferente. Não Praga, mas, por exemplo, Amsterdã. Praga estava tão quente que não dava para ficar na rua. Era completamente diferente. A gente não entendia nada que tinha na rua. E o caminho foi muito bonito também. E pobre. As casas eram muito humildes mesmo. Muitas casas ao longo da linha do trem. Em Praga, a cerveja era mais barata que água. Então a gente bebeu muito mesmo. O mais legal de Praga foi o museu do comunismo. Eu tirei foto com Lênin. O mais legal é que, atualmente o museu fica em cima de McDonald's. Acho que foi o museu que eu mais aproveitei. Foi bem quando estavam acontecendo as manifestações aqui no Brasil e eu vi vídeos da primavera de Praga. Eu fiquei muito impressionado com esse museu. Tinha uniformes, objetos referentes ao comunismo. Tinha textos falando que a divisão não era bem igualitária, que alguns produtos alimentícios eram reservados para certas pessoas. E tinha uma parte que 93 falava só o que o comunismo fez de mal. Tinha cartazes das pessoas mortas em vários lugares do mundo. Eu fiquei muito feliz de visitar esse museu. No mais, aproveitamos bastante. Teve um dia que a gente visitou um castelo. Eu achei muito diferente do resto da Europa. As pessoas são mais diferentes também... E teve a festa na igreja. É uma igreja que virou uma boate. Teve uma discussão enorme sobre isso porque meus amigos eram religiosos e acharam que aquilo não era certo. Daí a gente foi para Budapeste. Engraçado que parecia que ainda era comunista mesmo. Tinha um ônibus que me marcou muito porque ele era como se fosse comunista, pequeno e antigo. Budapeste também foi uma surpresa. A gente ficou em hostel que era um apartamento e só para gente. Compramos coisas, fizemos comida, jogamos truco, ficamos conversando. A gente saía mais a noite. Aproveitamos mais o hostel que a cidade. A gente não sabia nada do que tinha na cidade. A gente foi em Buda e Peste. Fomos mais ou menos a um tour. Tinha uns monumentos muito bonitos, como a praça da Vitória. Era tudo meio antigo. As placas de metrô. Bem a cara do que a gente imagina que era na época do comunismo. Era uma cidade maior e mais séria do que Praga. Fomos também aos parques e em uma igreja muito afastada, mas que era linda. Estava acontecendo um casamento e o noivo segurava uns balões. A vista era linda da cidade. A gente foi em uma igreja que foi feita dentro da rocha. Era muito bonito, era coisa muita diferente. Era muito cara de livro de história. A comida, a gente gostou bastante. Tirei uma fotografia de um pub em Budapeste (Figura 23). Escolhi para o relato, pois representa o espírito corajoso e aventureiro meu e de meus amigos. Fizemos um passeio por ruinspubs (pubs feitos em ruínas) no último dia da viagem na cidade. O nosso dinheiro na moeda local tinha acabado, estávamos cansados (era no fim do mochilão) e chovia muito. Apesar disso, foi um passeio muito bacana por representar um lugar completamente diferente. Foi uma ótima opção, nos divertimos bastante neste lugar, apesar de todo o contexto adverso. Depois fomos para Barcelona. Eu queria muito conhecer Barcelona porque todo mundo falava que era muito legal. Estava muito quente. Encontramos uma amiga, que tinha ficado na nossa casa e que agora estava linda. Foi uma cidade que também me deixou muito surpreso. Quando você entra na Sagrada Família, é uma coisa completamente diferente. O altar é maravilhoso. Fomos aos lugares mais turísticos da cidade. A gente comeu comida muito boa e bebemos muito porque era muito barato. As praças eram lindas. A gente foi em uma festa na praia e ficamos mais na praia do que na festa. 94 Conhecemos um monte de gente de lá, e muitos gostavam de nós porque éramos brasileiros. A gente não sabia nada da cidade e fomos descobrindo. Assistimos a um jogo do Brasil em Barcelona, em um pub. Acho que era Brasil e Itália e no pub tinha a gente, de brasileiro, e uns italianos. Então foi muito legal. Depois a gente foi para Valência, para pegar o avião para Lisboa. E a gente ficou o dia inteiro no bar porque a cerveja era um euro. Eu não aproveitei tanto, não fui a tantas cidades da Espanha. Queria ter ido a mais. Voltamos para Lisboa, mortos de cansados, mas felizes. Eu cheguei e, dois dias depois, tive que sair do apartamentoo. Fiquei na casa dos meus amigos e depois viajei para outras cidades de Portugal para visitar meus amigos. Foi muito bom porque eu tive outra visão de Portugal. Porque em Lisboa as pessoas não eram legais. Os portugueses que conversavam com a gente eram mais alternativos. Um era mais velho, já estava na universidade fazia oito anos. A outra começou a conversar comigo porque nosso sotaque parecia de desenhos animados. Ela explicou depois que era porque os desenhos animados em Portugal usavam a dublagem brasileira. Até hoje eu converso com ela. Eu falei que estava sem casa e que estava recebendo convites. Recebi alguns convites. Primeiro eu fui para Porto. Fiquei na casa de uma menina por couchsurfing. Ela me tratou muito bem, era brasileira. Ela me levou para vários lugares, saímos para beber. Conheci os amigos dela, tocamos violão na Ribeira. De Porto, eu fui para Londres. A viagem para Londres foi a melhor. Primeiro porque eu estava sozinho e eu aproveitei muito a cidade. Eu fui muito bem tratado, as pessoas sorriam para mim quando eu passava por elas. Acho que é a melhor cidade do mundo. O melhor lugar que eu visitei. Também por causa dos seriados que eu assisto e que se passam lá. Eu me lembro do dia em que eu fui comprar o passe. Esse dia, eu reservei para andar só de trem porque era muito caro. Era quase meia-noite e eu entrei no metrô. E lá são várias linhas, algumas param de passar em um horário e outras em outro. Estava vazio, mas eu achei que fosse por causa do horário. Veio um senhor que limpava a estação e me perguntou o que eu estava fazendo ali. Ele disse que o metrô já tinha parado de funcionar e me explicou como eu pegava um ônibus para o lugar onde eu estava hospedado. Ele foi muito atencioso. Em todos os lugares que eu fui as pessoas eram muito legais. É uma cidade convidativa. Tem mapa para todo lugar. Tive tempo para tirar fotografias, que eu gosto. Foi muito bom. Estava lotado porque estava tendo show do Mick Jagger de comemoração dos 50 anos do Rollings Stones. Muito quente, todas as praças estavam cheias. Fui ao museu de História Natural. Fica em um prédio monstruoso. Tem uma escada rolante que entra no globo 95 enorme. Mas a parte mais legal estava fechada, que era sobre vulcanismo. Fui à troca de guarda. O guarda xingou um menino porque ele levou um laser e jogou na cara do guarda. Mas eu não sabia disso. A gente estava na praça e o policial chegou e começou a brigar com o menino. Depois a mãe dele veio, mas o guarda não falava para mãe, ele falava para o menino. Isso eu achei muito interessante. Ele ficava pedindo a arma do crime e, por fim, o menino entregou o laser. O policial falou com ele, bem forte: “você nunca mais faz isso, eu não quero nunca mais ver você fazendo isso”. A mãe ficou sem reação e o policial foi embora. Depois que eu fui entender o que o menino estava fazendo. Ele nunca mais vai fazer isso depois dessa discussão. No mais, foi tranquilo. Conheci um pessoal no hostel. Tinha um cara que tinha nascido em Praga, estava morando em Amsterdã e agora estava viajando para Londres. O hostel era engraçado porque tinha gente morando nele. Tinham placas pedindo silêncio porque era área residencial. Tirei uma fotografia em Londres (Figura 24) e lembro bem o contexto. Era uma tarde bem quente e eu estava visitando a London Eye e o Big Ben. Tirei essa e outras fotos ouvindo uma cantora portuguesa que cantava músicas na rua em troca de dinheiro. Ela cantava muito bem e fiquei admirando a cidade ao som desta cantora. Escolhi por refletir esse momento tão significativo da viagem. Depois de Londres, fui para casa da minha amiga portuguesa. Duas semanas depois fui para casa de outro amigo português. Eu já estava indo embora mesmo. Ele me convidou e fui para casa dele. Saí de Lisboa de manhã e cheguei à casa dele em 1h e meia. Ele me buscou na estação e a família dele foi muito simpática. Receberam-me muito bem, tinha um quarto só para mim. O pai dele pescou uma lula para mim. Foi bom que eu experimentei tudo o que eu não tinha experimentado durante a viagem, que é a comida típica de Portugal. No outro dia, ele me levou para conhecer várias coisas. Fomos a um jardim japonês, muito bonito, com muita arte oriental. Depois ele me levou em Peniche, onde ele tinha uma casa na praia. Ele me levou em depósito de carvão. Era muito legal. Era bom que ele me explicava. Lá tinha as praias mais bonitas. Todo lugar que a gente parava, ele me falava para beber, beber mais. Depois a gente foi em um festival medieval. Ficava em uma cidade chamada Óbidos, que é conhecida pelo festival medieval e pelo festival de chocolate. A cidade é um castelo. Estava todo mundo fantasiado, eu fui também para ganhar desconto no ingresso. Eu fui de árabe e só tinha eu de árabe. Tinham drinks, um chamava drink do inferno. Tinha um circo, uma contação de história, uma exposição de águias e corujas. Comida típica, cerveja preta que vinha num copo de barro. 96 Era tudo típico, inclusive as danças. Eu adorei. Tirei na última noite em Lisboa uma fotografia da placa da Rua Atalaia (Figura 25). A Rua da Atalaia é uma rua onde passei a maior parte das minhas noites na cidade. Sempre me lembrarei dos momentos e das pessoas que conheci neste lugar. Normalmente a rua ficava cheia de estudantes estrangeiros e turistas. Era o lugar que encontrava gente de todos os lugares do mundo. Escolhi a foto pelo grande significado que essa rua tem do período que estive em Lisboa e o quanto esse lugar representa a cidade. E foi isso. Voltei para o Brasil e agora estou triste. Porque eu estou em uma fase de indecisões, acho que minha vida não é aqui, que eu não vou ser feliz aqui. O engraçado é que tem lugares que na hora eu não senti que era tão legal, como, por exemplo, Barcelona. Mas depois, comentando, vendo as fotos, eu tive outra visão. Acho que eu refleti mais. Outra coisa foi que depois que eu voltei eu observo muito mais as coisas, eu paro para olhar as coisas. A praça da Estação, por exemplo. Um dia eu fiquei olhando a praça da Estação, e percebi que eu nunca tinha parado antes para fazer isso. Eu estou contemplando mais as coisas, estou mais atento. Isso mudou muito. Figura 21 - Domingo à tarde em Lisboa, Portugal 97 Figura 22 - Um pouco do que eu vi em Marrakesh, Marrocos: um povo simples e sereno, simpático e acolhedor Figura 23 - O contraste entre duas culturas em um contexto de desenvolvimento, em Marrakesh, Marrocos 98 Figura 24 - Pub em ruínas em Budapeste, Hungria Figura 25 - Tarde quente em Londres, ao som da voz de uma cantora portuguesa, Inglaterra 99 Figura 26 - Placa indicativa da Rua da Atalaia, em Lisboa, Portugal Figura 27 - Placas e outras lembranças de viagem no meu quarto, Brasil 100 Juliana, viajante Esse relato foi concebido numa mesa de pedra, no jardim do prédio de geociências, ao sabor do vento e da noite. Ao fundo, estudantes conversam. No conforto das palavras trocadas, memórias de dias mais frios se concretizavam. E a história de novos olhos que se descobriram pintou um relato, estrelado. Eu fui pra Porto, Portugal, por seis meses, de setembro de 2012 até o final de fevereiro de 2013. Primeiro semestre letivo lá, segundo semestre letivo aqui. Foi tão chocante e emocionante ao mesmo tempo. A expectativa de coisas boas, o medo… Tudo acontece ao mesmo tempo. Parece que foi ainda mais intensificado por ser apenas seis meses. Tudo começou com o edital da Diretoria de Relações Internacionais – DRI. Eu não queria fazer, mas fiz para ver se ia dar certo. Fiz e passei. A experiência da viagem é muito boa, mas o pré viagem é um processo muito doloroso. As poucas informações que recebemos são incompletas e a DRI nos deixa fazer tudo sozinhos. Antes de ir, eu conversei muito com duas colegas do curso que foram antes para Portugal e ficaram mais tempo também. Elas me deram muitas dicas de viagem, mas ainda assim eu fiquei com a sensação de que eu poderia ter aproveitado mais. Uma delas me ajudou muito com a questão da documentação e, se não fosse ela, eu não tinha ido nesse intercâmbio. Eu tive várias crises de desespero e desesperança: pensava que eu ia desistir e ela foi uma das pessoas que me deu força, que falou que eu conseguiria ir e me incentivou a não desistir. Porque eu deixei para arrumar os documentos três meses antes da data limite da DRI. Eu fiquei muito ansiosa com o visto, o financiamento, fazer as malas. Quando eu cheguei a Porto, percebi que não precisava daquele desespero. Foi a primeira coisa que eu senti. Eu me desesperei tanto e quando eu cheguei lá eu vi que todo o processo podia ser mais simples. O primeiro mês foi o mais marcante. Eu fui para Porto muito em cima da hora. Eu não tinha escolhido um lugar para morar ainda e as aulas já tinham começado. Não foi uma boa ideia ter feito isso. Como eu não tinha lugar para morar, o primeiro mês foi o mais difícil pra mim. Eu tive vários problemas no primeiro mês: não conhecia nada da cidade, nem ninguém. Alguns contatos que eu fiz aqui na UFMG não deram certo. Eu não sabia lidar ainda com o valor do dinheiro e com o tanto que eu podia gastar, tanto que no primeiro mês eu gastei mais da metade do valor da bolsa de estudos, apesar de que isso inclui meu aluguel inteiro. Eu fiquei em um hostel durante as primeiras semanas e fiquei uma semana sem dormir, desesperada por não ter lugar para morar. Eu consegui um lugar para morar com uma família portuguesa, então meu único problema depois foi com o 101 tanto que eu ficava perdida, além dos problemas com a família. Eu me perdia muito na cidade, mesmo com mapa. Era uma coisa impressionante. Um dia, eu andei por três horas tentando achar o lugar onde eu morava. O primeiro mês foi muito angustiante. Foi o pior mês da minha vida. Quando saí do Brasil, decidi que não ia morar com outros intercambistas porque toda casa de intercambista é muito bagunçada e eu tenho muitos problemas com falta de organização e não gosto que mexam nas minhas coisas. Eu ainda acho que isso não foi um ponto negativo. Os intercambistas que conheci, mesmo que dessem certo como amigo, não combinavam para morar comigo. Uma coisa é você ter amigos de festa, para sair, e outra é você morar com aquela pessoa, 24 horas por dia. Então eu decidi que eu não ia morar com intercambistas. Até porque achar casa para duas ou três pessoas era bem mais difícil. Eu ficaria só seis meses e a maioria dos alunos ficariam um ano. Acho que nós, brasileiros, éramos um dos poucos grupos que ficariam apenas seis meses. Eu tentei alugar um lugar sozinha, mas não achei que seria interessante. Além de ficar muito caro, eu ficaria muito isolada. Meu objetivo era me abrir, porque eu sempre fui muito fechada. Então decidi morar com uma família. A casa ficava a cinco minutos do Rio Douro, bem abaixo do jardim japonês do Palácio de Cristal (Figura 27). Essa família com quem eu morei era composta por uma senhora, não me lembro do nome dela (eu sempre a chamava de senhoria), e a filha, Andrea. Elas eram católicas, fervorosas, extremamente conservadoras. Eu só descobri isso depois que já tinha pagado o aluguel e não tinha como voltar atrás. Mas isso era negativo, por um lado, mas positivo por outro. O lado positivo era a preocupação que elas demonstravam comigo. Nos meus momentos de maior desespero elas tinham uma palavra positiva para me dar. A senhoria me tratava mesmo como uma filha. É até irônico isso porque ao mesmo tempo em que elas não aproximavam muito, a gente conversava pouco, teve um período que passei três dias fora de casa e ela ficou tão preocupada que ligou para saber o que estava acontecendo. Então ao mesmo tempo em que tinha uma distância, tinha essa proximidade. Por esse lado, foi bom ter morado com uma família. Eu me sentia mais em casa. Por outro, foi difícil. Elas tinham muitas restrições. As principais eram: eu não podia levar ninguém para a casa, nem sequer amiga. Eu tinha dias determinados da semana para usar o fogão, na cozinha (mas eu podia usar o micro-ondas e a geladeira sempre que quisesse), não podia levar bebidas alcoólicas nem nenhum outro tipo de droga. Uma vez eu levei uma cerveja e elas jogaram fora. Eu tinha meu espaço para colocar meus alimentos e elas 102 tinham o delas que eu não poderia mexer em hipótese alguma. O armário delas de mantimentos era trancado com chave. Água também era um problema, porque elas tinham um filtro na torneira, mas eu não podia usar. Eu comprava água. Eu tinha dias determinados para lavar roupas, mesmo se estivesse chovendo. Então eu torcia para que o dia em que eu fosse lavar roupa não chovesse. Eu tinha tempo de banho: 5 minutos. Se eu ficasse mais tempo do que isso, primeiro ela desligava a chave de luz, depois a água. Essas restrições eram complicadas para mim, especialmente a do banho. Porque eu estava com um cabelo enorme e cinco minutos para lavar era impossível. Quanto às restrições da cozinha, no início, eu passei por problemas para me acostumar também. Alguns dias, eu não consegui comer porque eu não podia usar o fogão. Então eu comecei a me organizar, a criar alguma disciplina. Isso foi bom, por um lado. Eu sempre fiz o que eu queria na hora que eu queria. Nunca tive restrições como essas no Brasil. Depois disso comecei a ter alguma disciplina na questão da minha rotina. Hoje, eu não teria escolhido morar com uma família. As minhas restrições, os limites, eram muito grandes. Eu aguentei porque eu não tinha opção. Mas também não sei se eu moraria com intercambista porque todos os que eu conheci tinham sérios problemas dentro de casa. Eu acho que eu teria ido pra residência estudantil. Apesar de que as residências também tinham problemas… No segundo mês, já começaram as alegrias. Comecei a conhecer a cidade de verdade, a fazer alguns contatos. Comecei a me acostumar com o ambiente universitário, que é muito diferente do Brasil. Tive sorte por fazer muitos amigos portugueses em sala de aula. Alguns, inclusive, ainda são colegas, e pensam em vir para o Brasil. Comecei a ir a festas e eventos universitários. Fiz cinco disciplinas, inclusive uma que eu já tinha feito aqui. Tiveram duas situações em que fui convidada a me retirar das salas. Uma quando eu comi uns biscoitinhos durante a aula e outra, quando fui de chinelo. O terceiro e o quarto mês eu não me lembro em detalhes porque eu realmente entrei no ambiente e no espírito universitários. Lá foi muito diferente daqui. Eu não tinha a pressão que eu sinto aqui na universidade. Eu não precisava ler tantas referências da bibliografia, nem estudar tanto porque os professores ensinavam praticamente tudo em sala. Eu não senti necessidade de me dedicar tanto. Apesar das provas serem difíceis, eu não tive problemas. Não estava acostumada a sair tanto, mas fui a muitas festas, participei de muito evento da ESN (Erasmus Student Network) Porto, que é a organização dos estudantes internacionais ou estudantes Erasmus. É um grupo de estudantes voluntários 103 que tem como missão oferecer oportunidades culturais para os estudantes intercambistas se adaptarem e se integrarem à nova cidade. A ESN do Porto era bem agitada, bem ativa. Não tinha só festas, tinha diversas atividades culturais e viagens também. Fiz oficinas de culinárias típicas, diversos passeios guiados pela cidade e pela universidade. Foi uma das formas que eu conheci a cidade. Eu participei e adorei. Tinha atividades para aprender outros idiomas. Tive um contato muito bacana com o pessoal de Moçambique. Então, valeu a pena. As festas também valeram a pena. Tinha churrascos, que não eram iguais aos daqui. Tinha churrasco normal, de carne, e tinha churrasco de castanha. Nós pegávamos a castanha e fazíamos churrasco de castanha. Apesar de não ter ficado na residência universitária, eu também participei de muitas atividades nas residências universitárias. Tinha cafés, discussões. Participei de uma discussão sobre a crise econômica e foi muito interessante porque tinha pessoas de vários países. Os depoimentos dos intercambistas da Grécia foram emocionantes. Então, participei mesmo da vida universitária. O que eu nunca tinha feito na universidade do Brasil. E que continuo não fazendo agora depois que eu voltei. Aproveitei intensamente, em todos os sentidos: passava noites sem dormir, morei na casa das pessoas por semanas. Fui a muitas festas e baladas. Um dia, eu estava na casa do meu amigo brasileiro e ele tinha essa cabeça de unicórnio (Figura 28). Ele fez coelho assado com uns “sushis” vegetarianos. Que dó do coelho! Mas estava uma delícia. Foi muito divertido. Uma atividade que a gente fazia muito, e que eu gostava muito, era almoço ou jantar na casa das pessoas. Eu tinha algumas restrições em casa por causa da família com a qual eu morava, então a gente nunca cozinhava na minha casa. O grupo era pequeno, tinha quatro ou cinco meninas, e éramos bem próximas. Claro que não era só amor, a gente brigava também. Valia muito a pena fazer esses momentos porque além da gente comer um pouco melhor (porque se deixava a gente comia só comida de micro-ondas), era o momento de a gente conversar e eu me sentia mais em casa, mais em família. Comer sozinha era uma coisa que eu nunca tinha feito, no Brasil, porque eu moro com a minha família, então sempre tem alguém para conversar, tem almoços de domingo. Lá eu não tinha isso. Então às vezes eu ficava sem comer porque eu não queria comer sozinha. No quarto mês, eu viajei. Eu queria ter viajado mais, mas não tinha dinheiro. Eu deixei para viajar no período de férias, em dezembro, e foi o pior período que eu podia ter escolhido. Estava nevando em alguns lugares e estava frio em todos os lugares. A ideia era fazer um mochilão, só que não funcionou no espírito do mochilão. Eu não me preparei. 104 A gente simplesmente reservou o hostel e comprou as passagens. A gente não pesquisou a cidade, não pesquisou o que a gente queria ver. O que tinha um ponto positivo: nós chegávamos às cidades e, conversando com as pessoas que estavam lá, montávamos o itinerário do que seria visto e do que faríamos. Porém, isso não era totalmente bom porque nem sempre a gente encontrava pessoas dispostas a conversar sobre a cidade. Na maioria das vezes, nós encontrávamos intercambistas que também estavam desesperados buscando informações sobre a cidade. Eu viajei com duas colegas. Tivemos alguns desentendimentos durante a viagem, mas não me arrependo de viajar com elas. Porque uma é inteligente e a outra é engraçada. Era um trio bom de viajar. Eu não me lembro de quantos dias foram, mas fomos antes do Natal e voltamos dia 6 de janeiro. Da volta eu me lembro bem porque eu já não estava aguentando mais viajar. Estava desesperada para voltar para minha casa. Minha casa que não era minha casa. Lá não era minha casa, mas eu sentia saudade do meu quarto. Eu nunca senti tanta falta daquele quarto. Chega a ser engraçado porque antes eu não sentia que aquele espaço era meu. Para mim, aquele quarto era um espaço onde eu dormia e onde eu estudava. Mas não era um quarto como eu tinha aqui no Brasil, era só um lugar onde eu dormia. Depois que eu fiz essa viagem, esse mini mochilão, eu vi que ali era meu lugar. Foi meu lugar durante um mês chuvoso em Portugal. A gente fez um itinerário básico, não pelos gostos nem pelo que a gente achava mais atrativo, mas escolhemos os locais para onde as passagens eram mais baratas. Começamos em Londres, depois fomos para Holanda… Eu já nem me lembro mais de onde eu fui. Depois fomos para Paris, na França, Alemanha e Itália. Então foram cinco países. Eu deveria ter feito uma viagem por mês, não todas ao mesmo tempo, e por isso eu me arrependo amargamente. Eu queria ter feito a viagem e ter um tempo pós viagem para pensar nas coisas que eu fiz. Ver as fotografias, rir, brincar e a gente não teve isso. Foi tudo muito agitado, muito frenético. A gente estava em um país e já ia para outro e já deparava com outra cultura, com outro idioma na maioria das vezes, e outras pessoas. Então foi um turbilhão de emoções que valeu muito a pena. O primeiro lugar foi Londres e ficamos apenas três dias. Logo quando eu cheguei já me perdi na cidade. Foi horrível. Passei na frente do hostel umas cinco vezes e simplesmente não via que ele estava ali. Mas deu tudo certo. Fomos lá, passeamos. A cidade é linda, as pessoas são educadas. Tive só um probleminha na hora de entrar no país, mas nada grave. Amsterdã foi a cidade que eu senti que menos aproveitei. Por não ter planejamento, a 105 gente não sabia o que fazer na cidade. A gente só ficou nos pubs, fomos no distrito da luz vermelha, área tradicional de prostituição. Fomos expulsas de lá pelos seguranças por tentar tirar fotos. Sofri um pouco em Amsterdã, tive muita dificuldade para andar. O hostel que a gente ficou era mal localizado (mas era barato) e isso foi um empecilho para conhecer a cidade. Se nós tivéssemos ficado na área central teríamos aproveitado mais. Não fui ao museu do Van Gogh, porque preferi ir ao museu da Heineken. Uma das poucas coisas de que eu me arrependo. Mas eu queria ir ao museu da Heineken. Ganhei um monte de brindes, bebidas até. Uma coisa que eu descobri é que ser brasileira abre portas… Em Berlim, na Alemanha, a gente aproveitou pouco porque estava nevando muito e a gente não conseguia sair do hostel. Um dia, tentamos sair e a neve estava até na altura do joelho. Ficamos de novo em um hostel muito longe da área central. Entretanto, as atividades no hostel constituíram a parte mais interessante dessa viagem por causa de um grupo de italianos que estavam hospedados lá e que animaram a viagem. Eu comi massa italiana, pasta fresca, pela primeira vez. Foi muito bom porque conversamos e nos divertimos bastante. Queria ter ido à Universidade de Berlim, mas não consegui nem entrar porque tem que agendar para visitar. Fiquei do lado de fora, olhando. Fomos ao Parlamento, ao Muro de Berlim (Figura 29). Vimos mais coisas relacionadas ao contexto político da cidade. A Itália foi a viagem mais fantástica que já fiz na minha vida. Foram os 11 dias mais fascinantes de todos os tempos. Dessa vez, foi um pouco mais planejado e conseguimos visitar várias cidades. Fomos à ópera, comemos muita pizza, fizemos uma atividade de culinária que ensinava a fazer o macarrão, pasta. Ficamos em hostéis bem localizados, pela primeira vez. Eu me apaixonei pela cidade de Roma. As pessoas eram muito gentis. Os alemães eram bem receptivos, mas eu os senti mais frios. Os italianos, pelo menos os que a gente conheceu, eram abertos, gentis, nos convidavam para ir à casa deles. Na Itália, eu fui também a uma exposição dedicada às famílias de imigrantes. Tinha livros com os nomes das pessoas que vieram para o Brasil e um dos livros era só para a família Fonseca. Eu não consegui ver todos os nomes, mas eu queria ver. Foi muito especial para mim. Eu não tirei fotografias do livro, porque não podia, mas tem uma foto minha na exposição (Figura 30). Encontrei a Aline na França. Foi muito bom a ter visto lá, o melhor do mochilão. Sabe aquela sensação de ver uma pessoa conhecida? Eu senti que estava na UFMG de novo. Apesar de que foi muito corrido. Eu a deixei esperando muito tempo porque eu me perdi. 106 Essa parte me angustiava bastante, ficar perdida. Pedir informação em outro idioma e entender era muito difícil. Eu já tenho bloqueio em me localizar, em outro idioma eu ficava desesperada. Não havia mapa que me falava onde que eu estava. Acho que meu desespero me cegava. Eu queria ter ficado mais tempo em Paris. Mas foi a pior recepção que já tive. Saímos do aeroporto e estava tudo muito confuso porque era Natal. Conseguimos pegar o ônibus certo e saímos do aeroporto. Fomos para uma estação de trem e nós não sabíamos nem qual ticket comprar. O rapaz da bilheteria não queria responder em inglês, só em francês. Uma coisa que até hoje eu não entendo. A nossa sorte foi encontrar uma brasileira que ajudou a gente a comprar o ticket. Eu falo que são anjinhos da guarda essas pessoas que a gente encontra. Chegamos ao apartamento onde a gente ia ficar hospedada, só que a chave tinha sido deixada em um estabelecimento comercial que estava fechado. Nós ficamos na rua. Então fomos procurar um hostel para hospedar. Pegamos o trem de novo e na hora que eu estava chegando na estação do trem e passando pelas portas, vi que estava acontecendo uma confusão. Tinha muito policial, muito cachorro. Jogaram o cachorro em cima da gente. Eu não sabia o que estava acontecendo, tinham pessoas gritando para todos os lados. Foi a segunda vez que eu estava pegando o metrô e foi horrível. Eu fiquei desesperada. Pensei: “que cidade é essa?” Saímos de lá, pegamos o trem e descemos em um lugar que não devíamos ter descido. Homens estranhos começaram a nos seguir. Foi desesperador porque éramos eu e minhas duas colegas, cansadas porque a gente tinha viajado a tarde toda, com fome, e cinco homens enormes andando atrás da gente. Novamente um anjinho da guarda, outra brasileira e uma portuguesa nos ajudaram a chegar ao hotel. Isso tudo foi na primeira noite. De todas as viagens foi o único acontecimento ruim. Não fomos assaltadas, nada de ruim aconteceu nos hostéis, mas nesse dia… Meu medo era a gente entrar naquela confusão, sem saber falar o idioma, e os policiais levarem a gente pra alguma delegacia. Eu não sabia nem o que falar nessa situação… Foi muito ruim. Foi uma das poucas vezes que me senti fora do lugar. Aquela sensação de que aqui não é meu lugar. “O que eu estou fazendo aqui?” Eu não senti isso nem na minha primeira semana de desespero em Porto, mas nesse dia eu senti. Mas passou, eu encontrei a Aline, fui ao Louvre, no castelo de Versalhes, comemos comida boa (Figura 31). Depois de meses comendo mal e comendo no McDonald's. Uma coisa que eu achei fantástica foram as feiras de rua. Nós ficamos em um bairro residencial 107 e nele tinha essas feiras. No segundo dia, levantei de manhã, fui andar e me deparei com essa feira. Fiquei lá até 14h, comendo. Muitas frutas, muitas verduras e carnes diferentes, cheiros diferentes. Compramos muita comida, tanto que até jogamos fora algumas coisas. Acho que ficamos muito empolgadas por ver todas aquelas coisas que a gente não via em Porto. Então nessas feiras eu me sentia aqui no Brasil. Sentia-me em casa, me sentia bem. É uma coisa engraçada porque eu não entendia o idioma, alguns vendedores pareciam nem falar francês, mas eu entendia o que eles estavam falando comigo. Foi a primeira vez que a língua não foi um empecilho para a comunicação. Essas viagens foram muito divertidas, aconteceram muitas coisas boas. E logo depois delas veio esse mês de chuva, angustiante. O quinto mês foi o segundo pior mês da minha vida. Porque chegou o inverno… Foi o mês mais deprimente da minha vida. O primeiro mês em Porto foi angustiante, mas por causa do medo do desconhecido. O quinto mês foi muito depressivo porque a maioria das pessoas que eu conhecia começaram a voltar para seus países ou cidades, e choveu. Choveu muito. Choveu um mês, dia e noite. Chovia o tempo todo e tinha muita neblina. Segundo os noticiários locais, eram as maiores chuvas dos últimos dez anos. Mas isso é noticiário local… Aquilo me deixava angustiada, não tinha como sair. Eu passei muito tempo dentro de casa e foi quando eu descobri o que era morar sozinha de verdade. Deprimente. Foi o mês em que eu fiquei mais em rede social, que eu comecei a ver muitos seriados e filmes, que eu achei que eu ia surtar. Eu não gosto nem de me lembrar. Tudo era muito ruim, a cidade era ruim. Eu fiquei desesperada para vir embora para o Brasil. Tentei remarcar minha passagem, mas eu decidi que não ia desistir, que ficaria até o final. Senti um ódio de chuva e ambientes fechados. A cidade era cinza, era cinza o tempo todo. Choveu o mês inteiro. Não tinha estiagem, igual tem aqui, não tinha sol. Minhas coisas mofaram, fazia muito frio. Eu vivi locais mais frios. Não era questão das temperaturas, mas o ambiente em geral não estava bom. Eu não me sentia confortável. Nem indo na casa das pessoas a gente se sentia confortável. Era uma coisa que inquietava não somente a mim, mas vários outros intercambistas. E foi o mês em que a organização estudantil reduziu os eventos porque a maioria dos portugueses ia pra casa. Era o mês em que o pessoal ia passar as férias com a família. E a gente ficou lá, na cidade, naquela cidade chuvosa e molhada. Foi o mês que eu desloquei meu ombro, porque eu caí naquelas calçadas portuguesas. Foi um mês muito ruim. Mas não foi o pior, porque eu acho que o medo é pior do que a 108 tristeza. Foi um mês que a gente ficou muito parado, todo mundo engordou. Porque não tinha absolutamente nada para fazer, inclusive não tinha aula. Tinham só os exames finais, mas eu já tinha me preparado, então… Foi o mês que eu tive mais atritos com o pessoal que alugava a casa pra mim. Porque ficava todo mundo em casa, então quando você convive muito tempo começam a ter os conflitos e as confusões. Eu senti muita falta do calor. Eu não gosto do verão, eu odeio o verão. Nunca gostei. E eu só conseguia pensar que quando eu chegasse ao Brasil eu ia colocar um biquíni e ficar torrando no sol, eternamente. Eu só conseguia pensar isso. Eu sentia falta do calor, eu sentia falta do sol, de vento, daquele mormaço horrível. E eu não aguentava ver o mofo, a cidade tinha cheiro de mofo, de molhado, de coisa velha, muito velha. Então foi muito angustiante esse mês. Graças a Deus que acabou. O bom é que não foi uma angústia só minha, foi geral. O dia em que fez sol pela primeira vez depois desse um mês de chuva a gente saiu de casa (Figura 32). Eu não estava aguentando mais ficar em casa. O último mês foi o mais corrido da minha vida. Sempre deixo tudo para resolver na última hora. Então foi o mês de buscar documentos, trazer documentos, verificar as notas, fazer as malas, ir ao consulado. Tiveram alguns casos de intercambistas brasileiros desaparecidos e suicídios, então foi o mês que o Consulado mais esteve presente. Houve até acompanhamento psicológico com os alunos. Então, nesse último mês fui a alguns eventos no Consulado, além de resolver questões relativas aos meus documentos. Fiz a mala e vim embora. Momento mais alegre e mais triste. Foi muito estranho meu último dia na cidade. Eu me lembro de todos os detalhes do último dia. Na noite anterior eu não saí, o que era um milagre; então levantei oito horas da manhã. Tomei meu iogurte na varanda. Pensei: “vou aproveitar meu último dia”. Sai de casa, andei pela cidade. Andei, andei e andei pela cidade... Fui à Ribeira, que é o lugar de concentração dos alunos. Fui tomar meu vinho do Porto de frente para o Rio Douro. Andei a foz do Rio Douro. Voltei pra casa por volta das 16h para encontrar algumas amigas portuguesas, e fomos tomar um café. “Café”. A gente foi tomar esse “café”, rimos, brincamos. Por volta das 18h, fui jantar na casa de outros amigos portugueses. Jantamos e terminei a noite em uma balada. A balada que eu fui no primeiro dia. Que era no Piolho, que era também um local de encontro dos estudantes. Fomos para o Piolho, tomamos uns “finos”, rimos, até duas horas da manhã. Duas horas da manhã, exausta, eu cheguei a casa e fui terminar minha mala, que não estava pronta. A minha senhoria brigou comigo porque eu estava fazendo muito barulho. Quando foi 6h30 minha mãe me ligou. Eu até 109 assustei. Ela falou apenas: “Vem embora que a gente está te esperando”. E desligou. Não falou mais nada. Foi muito emocionante quando que ela falou isso. Eu pensei: “É, estou indo embora mesmo”. Saí de casa sete horas da manhã. E vim embora para o Brasil. Quando eu cheguei, foi a primeira vez que eu vi meus pais chorarem. Meu pai chorou; eu só o vi chorando umas três vezes nos meus 25 anos. Eu arrepio até hoje quando penso nesse telefonema. Porque minha mãe não me ligava. Ela disse que se eu queria viver sozinha, então eu viveria sozinha. Nós tivemos muito atrito. O que é engraçado porque aqui no Brasil a gente não tem tanto atrito quanto eu tive por morar fora. Foi bom porque de alguma forma aproximou a gente. Sempre fui muito fechada e muito receosa. Quando decidi fazer o intercâmbio toda a minha família foi contra. Eles não queriam que eu fosse. Meu pai me conhece melhor do que eu mesma e ele sabia que alguma coisa muito grande ia mudar. Sempre muito fechada e nesse intercâmbio eu comecei a ver que eu tinha que me abrir mais, muito mais. Eu senti que me abri mais. As minhas fotografias do início do intercâmbio e do final tem uma diferença que chega a ser marcante. Sempre tive a feição muito carregada e no início as minhas fotografias são assim. Estou sempre com a cara muito fechada, carregada, não estou me sentindo confortável. Na minha última foto do intercâmbio, eu estou caindo na escada rolante do aeroporto; é a primeira vez que vejo que estou leve. Estou me sentindo mais leve. É uma coisa boa, mas que fez uma mudança enorme na minha forma de ver as coisas, de perceber as coisas. Então esse ponto é o que mais me mudou. Vejo o mundo com outros olhos. Só que eu acho que vejo com os meus olhos e que antes eu não via com os meus olhos. Eu via com os olhos da cobrança do meu pai, ou da cobrança do meu exnamorado. E agora não. Estou vendo a partir do que eu quero, dos meus objetivos, do que eu preciso fazer para mudar, do que eu posso fazer para melhorar. Isso para mim foi uma evolução pessoal. Vejo hoje que apesar de todos os medos, de todas as angustias, de toda a raiva que eu passei, me sinto muito mais confiante, mais leve. Vejo que muita coisa que eu abri mão valeu a pena. Porque tenho um objetivo maior. Aquele medo todo foi só uma antecipação para as coisas fantásticas que iam acontecer. Não sei se essa experiência é assim para todo mundo, mas foi assim para mim. Eu trouxe da viagem meus olhos e meus ouvidos e minha boca. 110 Figura 28 - Vista da minha casa com família portuguesa para o Rio Douro, na parte superior, e o jardim japonês do Palácio de Cristal, na parte inferior, em Porto, Portugal Figura 29 - Eu vestida com máscara de unicórnio na casa de um amigo brasileiro em Porto, Portugal 111 Figura 30 - Caminhando pelo Muro de Berlim, Alemanha Figura 31 - Exposição sobre imigrantes italianos na Itália 112 Figura 32 - Aline e eu em jardim do Castelo de Versalhes, França Figura 33 - Pôr do sol na foz do Rio Douro no primeiro dia de sol depois um mês horrível de chuva constante, em Porto, Portugal 113 São só outros lugares. – respondeu. – Exatamente como aqui, só que diferente. Vovó – Terry Pratchett 114 TERCEIRA PARTE – Tecendo geografia em viagens 115 Das categorias geográficas Entendo aqui as categorias geográficas como recortes essenciais das manifestações do tecido do mundo, isto é, desse continuum espaço-temporal no corpo (ou do corpo no mundo). Para Hissa55, as categorias científicas são intermediações entre a “realidade” e o discurso que se constrói sobre ela, sendo necessário certo investimento na correspondência entre eles. São extraídas do objeto e trabalhadas teoricamente, viabilizando o discurso geográfico. Aqui, considero as categorias extraídas não do objeto, mas da própria existência do ser no mundo. Holzer afirma que “o corpo constitui o ponto de vista do ser-no-mundo. Desta relação fundamental, que é com certeza, geográfica, devem brotar os conceitos essenciais a serem utilizados pelos geógrafos”56. Sendo assim, os sentidos, sensações e impressões, as experiências perceptivas e os sentimentos, fundamentam em grande parte as categorias nesse trabalho. Holzer afirma ainda: A paisagem, assim como o lugar e a região, é um desses termos que permitem à geografia, colocar-se como uma das ciências das essências nos moldes propostos pela fenomenologia. Ela nos remete para o 'mundo' que, como coloca Tuan (1965), é um campo que se estrutura na relação do eu com o outro, o reino onde ocorre a nossa história, onde encontramos as coisas, os outros e a nós mesmos.57 A fundamentação dos recortes geográficos a partir do ser no mundo é possível porque as relações com o espaço são necessárias ao ser humano desde o momento em que começa a existir. Tuan afirma que “o homem, pela simples presença, impõe um esquema no espaço”58. O ser humano configura o próprio mundo a partir da sua posição e localização no espaço, mesmo que não se dê conta disso na maior parte do tempo. Esse esquema que o ser humano impõe no espaço é sentido, porém, quando ocorrem os acontecimentos adversos, quando se está perdido ou em certas “ocasiões rituais que elevam a vida acima do cotidiano e forçam-no a uma consciência dos valores da vida, incluindo aquelas manifestadas no espaço”59. Dessa forma, posso fazer a leitura do ser no mundo enfocando a própria relação com o espaço. As categorias geográficas são, portanto, aqui consideradas como intermediações entre a realidade e o discurso científico que a explica, configuradas a partir das vivências do ser 55 HISSA, Cássio. Categorias geográficas: reflexões sobre a sua natureza. Caderno de Geografia, v. 11, n. 17, p. 49-58, 2001. 56 HOLZER, 1997, p. 82. 57 HOLZER, 1997, p. 82. 58 TUAN, 2013, p. 52. 59 TUAN, 2013, p. 52. 116 no mundo, e que levam em considerações os sentimentos e percepções do ser humano no espaço (ou do corpo no mundo). Tuan se questiona acerca dos sentidos que permitem aos seres humanos terem sentimentos intensos pelo espaço ou pelas qualidades espaciais. Isto porque além de configurar o espaço a partir de um esquema corporal praticamente inconsciente (que seria uma relação necessária do ser humano com o espaço em que vive), também é possível nutrir sentimentos, intensos ou não, pelo espaço. Para o geógrafo, os sentidos que estimulam sentimentos intensos são a visão, o tato e a cinestesia. A visão é um sentido distanciador porque não precisamos estar perto para enxergar. Através da visão, podemos ver o mundo e entendemos a noção de espaço, da distância e da relação entre os objetos. Já o tato promove uma experiência direta da pessoa com o mundo60, exigindo proximidade. Para Tuan61, “Enxergar e a sensação táctil são tão ligadas que, mesmo quando estamos vendo uma pintura não é claro se nós estamos usando apenas nossas qualidades visuais” (tradução minha). Por fim, a cinestesia (kinesthesia, em inglês) corresponde a um sentido de equilíbrio, posição e deslocamento, sendo, portanto, fundamental para a compreensão do espaço62. Tuan acrescenta: O paladar, o olfato, a sensibilidade da pele e a audição não podem individualmente ou juntos nos tornar cientes de um mundo exterior habitado por objetos. No entanto, em combinação com as faculdades espacializantes da visão e do tato, estes sentidos essencialmente não distanciadores enriquecem muito nossa apreensão do caráter espacial e geométrico do mundo.63. Alguns sentidos permitem sentir diretamente a noção de espaço, como a visão, enquanto outros não tanto – o olfato. Entretanto, sabemos que o olfato, o paladar e a audição são importantes sentidos na constituição de paisagens; ou mesmo de lugares. De fato, especialmente conhecida é a relação do olfato e dos cheiros com a memória. “O odor tem o poder de evocar lembranças vívidas, carregadas emocionalmente, de eventos e cenas passadas”64. A audição também é considerada mais sensibilizadora para Tuan do que a 60 PÁDUA, Leticia Carolina Teixeira. A geografia de Yi-Fu Tuan: essências e persistências. 2013. Tese (Doutorado em Geografia Física) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. 61 TUAN, 1993, citado por PÁDUA, 2013, p. 91. No original: “seeing and the tactile sensation are so closely wed that even we are looking at a painting it is not clear that we are attending solely to its visual qualities”. 62 PÁDUA, 2013. 63 TUAN, 2013, p. 13. 64 TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo de percepção, atitude e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980, p. 11. 117 visão. Afirma: Os olhos obtêm informações muito mais precisas e detalhadas, sobre o meio ambiente, do que os ouvidos, mas geralmente somos mais sensibilizados pelo que ouvimos do que pelo que vemos. O som da chuva batendo contra as folhas, o estrondo do trovão, o assobio do vento no capim e o choro angustiado, nos excitam com intensidade raramente alcançada pela imagem visual.65 Para Tuan, o mundo conhecido pelos outros sentidos, além da visão, é menos abstrato. A visão nos permite conhecer objetivamente o mundo, mas envolve menos emoções do que o olfato ou a audição. Para Merleau-Ponty, entretanto, a visão comporta mais do que um conhecimento objetivo do mundo, “porque olhar o objeto é entranhar-se nele”66. Ele descreve da seguinte maneira o processo da visão: Ver um objeto é ou possuí-lo à margem do campo visual e poder fixálo, ou então corresponder efetivamente a essa solicitação, fixando-o. Quando eu o fixo, ancoro-me nele, mas esta “parada” do olhar é apenas uma modalidade de seu movimento: continuo no interior de um objeto a exploração que, há pouco, sobrevoava-os a todos, com um único movimento fecho a paisagem e abro o objeto.67 Os sentidos permitem a apreciação do espaço pelo que ele é, o que compõe o desenvolvimento da afeição e amor pelo espaço, chamada de topofilia. Podemos nos afeiçoar a um espaço pelo que ele é, praias tropicais e clima quente e fresco, ou através das experiências que vivemos no espaço, como uma festa ou um encontro entre amigos. Chamamos de topofobia o sentimento contrário a esse, que se relaciona com o medo causado pelo espaço. Tuan afirma: “Os medos são experimentados pelos indivíduos e, nesse sentido, são subjetivos; alguns, no entanto, são, sem dúvida, produzidos por um meio ambiente ameaçador, outros não.”68. O medo, continua ele, pode ser entendido como o colapso iminente do mundo do sujeito e a aproximação com a morte, quando não está personificado e dotado de intenção. Nesse sentido, algumas paisagens expressam esse sentimento. Comportam o medo, o subjetivo se manifesta na relação com mundo. O mundo, e todas as manifestações de seus objetos e pessoas, envolve o sujeito de maneira total; é impossível existir fora da consciência dele. Os sentidos são percepções do mundo no corpo. Mesmo a atividade reflexiva não se faz em ausência do mundo. Ela acontece no corpo e é sempre incomodada por ele, seja na forma de estímulo ou não. As categorias 65 TUAN, 1980, p. 10. 66 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 104. 67 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 104. 68 TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: UNESP, 2005, p. 7. 118 geográficas se apoiam na constante imersão do mundo no ser humano ou do ser humano no mundo para compreender suas relações essenciais. Elas se distinguem uma das outras, mas não se excluem. É possível ter sua relação com o espaço enfocada a partir de um ou dois significados essenciais, de maneira que encontramos lugares em territórios ou paisagens em regiões. As relações das categorias geográficas são ainda mais complexas, quando, por exemplo, consideramos que só se percebe as regiões a partir das paisagens. Essas e outras relações serão melhor compreendidas a seguir. Espaços de liberdade Tuan afirma que o espaço “é um termo abstrato para um conjunto complexo de ideias. Pessoas de diferentes culturas diferem na forma de dividir seu mundo, de atribuir valores às suas partes e medi-las.”69, mas uma primeira distinção, elaborada por Merleau-Ponty, é necessária. Essa distinção diz respeito a forma como o espaço é considerado pela ciência clássica, que ainda habita, em alguma maneira, a nossa concepção dessa categoria em termos gerais. Para essa ciência, “o espaço é o meio homogêneo onde as coisas estão distribuídas segundo três dimensões e onde elas conservam sua identidade, a despeito de todas as mudanças de lugar.”70. Ele é considerado o mesmo, seja nos polos ou no equador, com condições físicas ambientais que variam em cada local, de maneira que “a forma e o conteúdo do mundo não se mesclam”71. Sabemos que essa consideração do espaço de maneira abstrata, como um manto invisível que percorre e envolve tudo o que existe, não satisfaz às relações mais reais do ser no mundo. É preciso considerar o espaço pelo que ele é para as consciências que o habitam: tornar impossível distinguir rigorosamente o espaço das coisas no espaço72. De forma que considero que o espaço não é um abstrato tridimensional sem conteúdo, uma ideia de espaciosidade. O espaço é um intricado que considera a forma e o conteúdo, antes definido pela sua oposição ao conceito de lugar e pela relação humana com ele. O espaço é portanto composto por tudo isso o que vemos e sentimos ao existir no mundo e com o que, inicialmente, não possuímos relações afetivas. O espaço começa indiferenciado para ser dotado de valor à medida que é conhecido, se transformando em lugar. O espaço pode ser definido a partir dos sentimentos que evoca no ser que o habita. Ele é 69 70 71 72 TUAN, 2013, p. 49. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 10. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 10. MERLEAU-PONTY, 2004. 119 conhecido pela amplidão, a liberdade e a ameaça que produz no indivíduo ao se contrapor a tudo o que é confortável e familiar, ao lar. “O espaço aberto não tem caminhos trilhados nem sinalização. Não tem padrões estabelecidos que revelam algo, é como uma folha em branco na qual se pode imprimir qualquer significado”73, mas não existe fora do seu conteúdo: o solo, a vegetação e o relevo. As montanhas, as praias e o céu, tão azul. O cheiro do mar e o sol, que em um instante é descoberto pelas nuvens e ilumina o mundo com sua luz e calor. As relações com o espaço são vivas, são as relações de um habitante no mundo, não as de “um puro sujeito desencarnado com um objeto longínquo”74. A liberdade do espaço existe na solidão, e por isso é muitas vezes acompanhado pelo medo. A presença de outras pessoas, conhecidas, impõe limites. A sós, nossos pensamentos vagam livremente no espaço. Na presença de outros, os pensamentos recuam devido ao fato de que outras pessoas projetam seus próprios mundos na mesma área. O medo do espaço muitas vezes vai junto com o medo da solidão. A companhia de seres humanos – mesmo de uma única pessoa – produz uma diminuição do espaço e ameaça a liberdade. Por outro lado, à medida que as pessoas penetram no espaço, para cada uma chega um ponto em que a sensação de espaciosidade passa ao seu oposto – apinhamento.75 O apinhamento é contraposto a espaciosidade, sendo que esta está ligada a sensação de estar livre e poder atuar. Estar livre em vários níveis. O mais básico se refere à condição de poder se movimentar. “O fundamental é a capacidade para transcender a condição presente, e a forma mais simples em que essa transcendência se manifesta é poder básico de locomover-se. No ato de locomover-se, o espaço e seus atributos são experienciados diretamente.”76. Desenvolver relações com as pessoas ou com o espaço, tornando-o um lugar, é o deixar apinhado; limitando a liberdade, em seus diversos níveis. Por isso mesmo o lugar é pausa. O processo de transformação do espaço em lugar, porém, não é exato. Subsistem relações de espaço mesmo a partir do momento em que os lugares são formados. O lugar é denso em topofilia. Ao viajar, nossa primeira relação é com o espaço. Ele define nossos sentimentos para com os novos ambientes: liberdade, para ser e agir. Ausência de qualquer limite, de qualquer reconhecimento ou pausa. A partir do momento em que começamos a conhecer pessoas 73 74 75 76 TUAN, 2013, p. 72. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 16. TUAN, 2013, p. 78. TUAN, 2013, p. 70. 120 e desenvolver laços afetivos com o espaço, ele começa a se tornar um lugar. Em todos os relatos de viajantes, inclusive o meu, esse processo é descrito. Na minha viagem, as situações que geraram um sentimento pelo lugar foram bem descritas através das cenas que eu presenciei ou vivi em transportes públicos, especialmente. Essas cenas sempre se constituíam na manifestação do contato entre pessoas, marcada por traços de espontaneidade e algo de inusitado. Além disso, o desenvolvimento de relações de amizade com outros intercambistas gera topofilia por tornarem especiais alguns lugares nos quais nos encontramos e vivemos. Nesse sentido, ao passar a virada do ano na torre Eiffel me apropriei do principal símbolo de Paris, e da França, através de um acontecimento muito especial vivido com amigos queridos. O mesmo vale para o André e a Fernanda, que estiveram lá. Todas essas situações falam da perda dos sentimentos de espaço através da manifestação dos sentimentos de lugar e serão analisados melhor a seguir. Os sentimentos de espaço não foram ainda mencionados. São eles marcados pelo medo, do desconhecido ou da solidão; pela própria solidão; pela liberdade ou libertação; pela ausência de laços mais significativos. O medo do desconhecido tornou o primeiro mês de viagem o pior mês da vida da Juliana. Receio esse que marcou também o início das viagens do Fabrício, que relata sair de um estupor para pisar no chão holandês e o sentir; onde se deu conta de onde estava, e de como estava sozinho. A solidão foi comentada, pelo André e por mim. A solidão pode trazer consigo a liberdade, mas estar totalmente só é desconfortável e triste. Eu entendo agora a minha apreciação pelos momentos em transportes públicos, pelo movimento e por observar as cenas que passavam por mim. Ao me movimentar, eu adquiria sempre e mais espaço. Eu exercitava minha liberdade, mas sem estar totalmente só. Ver, para mim, era entranhar-me no que eu via. Tuan afirma: "Quando o transporte é uma experiência passiva, a conquista do espaço pode significar sua diminuição"77. Isso é válido para a viagem inicial, do Brasil para a Europa, conforme demonstra o Fabrício ao comentar sobre a estranheza de se estar aqui no Brasil e, algumas horas depois, se ver inserido em um contexto cultural, econômico e político totalmente diferentes. A aparente proximidade é estranha para quem experimenta as diferenças desse outro ambiente. O apinhamento, sendo contraposto a espaciosidade – espécie de sentimento de espaço –, 77 TUAN, 2013, p. 72. 121 fica claro durante o mês chuvoso em que a Juliana permaneceu em casa em Porto. Ela afirma ter sido o mês em que houve mais conflitos entre os moradores, justamente porque estavam todos fechados dentro de casa o tempo o todo. No fim desse mês, tudo o que ela queria era sair de casa. A casa, que nunca foi muito espaçosa, de repente estava tão apinhada que era impossível estar lá, daí todo o tempo gasto em redes sociais ou assistindo a filmes e seriados, em fuga para outros lugares. Era quase impossível respirar. Outra situação comum a qualquer viagem é ficar perdido. Só ficamos perdidos no espaço? Ou, em outras palavras, só as relações com o espaço que entendemos através dessa categoria permitem considerar momentos em que ficamos perdidos? Nesse caso, o que significa se perder? O espaço ainda está organizado de acordo com os lados do meu corpo. Há regiões à minha frente e às minhas costas, à minha direita e à minha esquerda, mas não funcionam em relação aos pontos de referências externos, e portanto, são inúteis. As regiões em frente e atrás de repente parecem arbitrárias, e tanto faz eu ir pra frente ou para trás.78 Estar perdido envolve essa situação em que ir para frente ou para trás parece igualmente possível e arbitrário. Nada, nem mesmo uma vontade de seguir determinado caminho que se apoia unicamente em si mesma, define o caminho a seguir. É diferente de seguir sem rumo (flanar). Nesse sentido, a Juliana passou por mais situações assim do que qualquer um. Em Porto, em Londres, em Paris... Ela passa várias vezes em frente ao local que procura e mesmo assim não enxerga; nenhum mapa consegue ajudar. Ela mesma afirma que parecia ficar cega por causa do desespero que era estar perdida. Estar perdido significa ser incapaz de se localizar em relação a qualquer ponto de referência externo. Envolve principalmente os sentimentos de espaço, como insegurança e medo, movimento e instabilidade. Para se localizar, é preciso achar uma referência, através de mapas, placas ou pessoas. É preciso achar um lugar, uma pausa. Nós nos perdemos no espaço, mas o próprio até de se perder pode gerar sentimentos íntimos pelo espaço quando nos encontramos. Viagens por paisagens A paisagem pode ser compreendida, epistemologicamente, como arte e estética, em suas origens mais remotas, como conceito científico, objetivo e operacional, ou como expressão do mundo da vida, através de um entendimento fenomenológico e baseado na 78 TUAN, 2013, p. 51. 122 experiência do sujeito79. A paisagem, na perspectiva desenvolvida aqui, fenomenológica e experiencial, do ser no mundo, envolve uma vivência e, portanto, os sentidos e sensações. Marandola80 diz: “Paisagem, conjunto físico-humano, material-imaterial, concreto-imaginal, eis do que se fala enquanto se pensa que a paisagem abarca todos os sentidos. Associada ao ver, paisagem também envolve o ouvir, o sentir e o caminhar.”. Nesse sentido, dizer que a paisagem envolve tanto a base material física quanto às experiências e sentidos simbólicos, individuais ou sociais, é reafirmar o óbvio: o ser humano só existe na interação, é ser no mundo e, portanto, não é possível separá-lo da análise. Em outras palavras: O conceito de paisagem não pode perder seu significado essencial, no sentido fenomenológico, de uma formatação intersubjetiva de determinada porção da Terra delimitada por cultura relativamente homogênea, sendo que tal delimitação reflete o trabalho coletivo do homem sobre a Terra. Ela representa o acúmulo, através da memória, e o descarte, pelo esquecimento, das expressões e associações culturais que se definem sobre o espaço geográfico e que são a base do ser social das pessoas.81 A paisagem envolve o conteúdo do espaço, portanto também o trabalho coletivo do ser humano na terra, mas só existe na intersubjetividade. A intersubjetividade é, para Husserl, a possibilidade de se conhecer a experiência que temos do outro, que será sempre marcada pelo conhecimento indireto via consciência intencional. “Assim, o outro só me aparece através dessa mediação, através das condições presentes de ter apenas consciência de meu ego como pertença inequívoca, como presença imediata. O outro só existe, nesse sentido da consciência intencional, como uma experiência de meu ego.”82. A paisagem envolve, portanto, a intersubjetividade sempre pautada no outro enquanto experiência do sujeito que a anuncia, mas reafirmada no seu conteúdo. Besse afirma que “a paisagem é sinônimo de ausência de objetivação. Ela precede a distinção entre sujeito e objeto, e a aparição da estrutura do objeto. A paisagem é da ordem do sentir. Ela é participação e prolongamento de uma atmosfera, de uma ambiência.”83. MARANDOLA Jr., Eduardo. Um sentido fenomenológico de paisagem: o sentir em mistura do serlançado-no-mundo. Seminário Internacional Questões Contemporâneas sobre a Paisagem, 2014, São Paulo. Universidade de São Paulo, 2014, p. 1-2. 80 MARANDOLA Jr., Ouvir a cidade: experienciando paisagens sonoras. Anais... Encontro de Estudos sobre Geografia e Humanismo, 3, 2008, São Paulo. 2008, p. 20. 81 HOLZER, 1999. Citado por MARANDOLA Jr., 2014. 82 COELHO JUNIOR, Nelson E. Da intersubjetividade à incorporeidade: contribuições da filosofia fenomenológica ao estudo psicológico da alteridade. Psicologia USP, São Paulo, v. 14, n. 1, 2003, p. 2. 83 BESSE, Jean-Marc. Ver a terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. Trad. Vladimir Bartalini. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 79. 79 123 No que ela se diferencia do espaço? Os sentimentos de espaço envolvem a liberdade e o conhecimento da imensidão do mundo; envolve possibilidades, ou melhor, potencialidades. Por outro lado, a paisagem é um recorte que enfoca no acumulo da memória (e o esquecimento) da presença humana em um espaço. Ela envolve, portanto, a pessoa que a anuncia, posta em presença nessa paisagem, que é história. Ela é, antes, o sentir do que o perceber, possui uma tonalidade afetiva. Tuan afirma que uma cena pode ser um lugar, mas que não é por si mesma um lugar. Segundo ele, falta à cena “a estabilidade: é da natureza da cena mudar a cada mudança de perspectiva. A cena é definida por esta perspectiva, o que não é verdadeiro para o lugar: é da natureza do lugar aparecer como tendo uma existência estável, independente de quem o percebe”84. A paisagem não envolve a pausa, a estabilidade. É da natureza da paisagem, assim como da cena, os pontos de vistas; o deter o olhar. Merleau-Ponty afirma: “A cada momento, enquanto nosso olhar viaja através do espetáculo, somos submetidos a um certo ponto de vista, e esses instantâneos sucessivos não são passíveis de sobreposição para uma determinada parte da paisagem”85. Olhar é entranhar-se no espaço, na paisagem. Mas ela não é “em sua essência, feita para se olhar, mas para a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação do seu ser com os outros, base de seu ser social”86. Marandola afirma que a paisagem “é uma forma de ser invadido pelo mundo”87. A paisagem é uma forma de invadir o mundo, se colocar no espaço, sentir e criar o seu ponto de vista. “No mundo tomado em si tudo é determinado. Há muitos espetáculos confusos, como uma paisagem em um dia de névoa, mas justamente nós sempre admitimos que nenhuma paisagem real é em si confusa. Ela só o é para nós.”88. Sentimentos intensos pelo espaço configuram um lugar. Mas como englobar as paisagens? Paisagens não são percebidas, mas sentidas. Essa afirmação perpassa o cerne da paisagem. Nós percebemos o espaço, e a partir do momento que o configuramos a partir de nós, do que nós achamos ou sentimos, falamos de paisagens. Os lugares são frutos de uma relação intensa de afetividade, que começa a se desenvolver aos poucos e TUAN, 1979. Citado por HOLZER, 1997. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 13-4. 86 DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Trad. Werther Holzer. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 32. 87 MARANDOLA Jr., 2013, p. 6. 88 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 27. 84 85 124 se soma até criar uma densidade, segurança e conforto. Já as paisagens são frutos mesmo das nossas relações, mesmo intensas e breves. Diz respeito a quem nós somos, pelo que nutrimos paixões. Sentir a paisagem é ser e estar no conteúdo do mundo. Nos relatos de viagens, percebemos a paisagem especialmente com a Fernanda e comigo, mas também com a Juliana. As paisagens são pintadas de maneiras distintas de outras categorias. Levam mais tempo, perpassam sentimentos complexos. No relato da Fernanda, destaco algumas situações: a paisagem típica da Alemanha, que ela viveu através do trekking de dois dias que fez pela região da Renânia-Palatinado; a vila na Eslováquia, com o lago e o frio, em que ela viu o céu mais bonito da vida dela; o Monte Tartre e suas peculiaridades e encontros, no mesmo país. Já no meu relato, a paisagem enfoca meus sentimentos e impressões em minha visita a Veneza, principalmente, e na primeira vez que vi a Torre Eiffel. No relato da Juliana: o mês chuvoso em Porto, em que choveu dia e noite, o tempo inteiro e tudo era cinza, mofado e frio. As paisagens comportam os sentimentos e o nosso ponto de vista acerca do espaço. Elas também se formam a partir da diferenciação do espaço, mas não a maneira do lugar. O lugar envolve sentimentos de lar, a tranquilidade, conforto e a segurança. As paisagens envolvem diversos sentimentos, de apreciação ou não. Envolve também as marcas do trabalho humano no mundo, ou o esquecimento das mesmas. A paisagem envolve o ser no conteúdo do espaço. É possível o lugar? O lugar existe a partir da transformação do espaço pelas experiências intimas e pelo desenvolvimento da topofilia. Ele é, principalmente, estável e denso. Estável porque é constituído a partir de uma pausa no movimento, ele é pausa no espaço, um ponto de referência. Densidade porque envolve e abriga as experiências e a topofilia que o constituem, em um processo acumulativo. O início desse processo pode ser conhecido apenas em um nível subconsciente, ou pode ser bem explícito, como em uma explosão de paixão. O lugar envolve os sentimentos e vivências do indivíduo para com o espaço em vários níveis. Tuan conceitua lugar a partir do sentimento provocado no corpo pelo espaço do lar, pelo espaço conhecido e dotado de valor (ou o contrário). É caracterizado por uma rotina também. Afirma: “Como experiência pessoal, o tempo que leva para um indivíduo se sentir em um lugar é o tempo necessário para se formar hábitos e rotinas inquestionáveis” 125 (tradução minha)89. Portanto, o lugar é associado ao cotidiano, ao hábito. Já o espaço se relaciona com o inusitado, com a fuga do movimento cotidiano. Crescer envolve a transformação de espaços em lugares. Tuan afirma que, quando criança “os pais são seu 'lugar' primeiro. (…) Uma pessoa madura depende menos de outras pessoas. Ela pode encontrar segurança e apoio em objetos, localidades e até na busca de ideias.”90. Fabrício afirma em seu relato: Quando você desenvolve uma rotina, você começa a ter insights de como as pessoas enxergam o mundo. Consegue entender o comportamento em um supermercado, nas ruas… É uma dinâmica completamente diferente. Eu morei com uma holandesa, fiz amizades de ir para festas mas também de ficar atoa conversando na rua. Não era só aquela amizade fácil. Era como se eu estivesse aqui, mas inserido em um outro contexto. (Relato: Fabrício, viajante) O lugar é uma leitura da casa, do lar. “Pois a casa é nosso canto do mundo”91. Tuan afirma que a afeição pelo lugar, ou topofilia, pode se formar a partir da certeza de alimentação e segurança, da familiaridade e tranquilidade das atividades comuns e prazeres simples acumulados ao longo do tempo92. “Os lugares íntimos são lugares onde encontramos carinho, onde nossas necessidades fundamentais são consideradas e merecem atenção sem espalhafato.”93 O que leva a um sentimento de satisfação, frequentemente lido como ausência de vontade de mudar ou de curiosidade para conhecer o mundo. A casa também pode ser vista como um “reservatório de lembranças e sonhos”94. Bachelard afirma que mesmo a casa é mais íntima no inverno do que no verão. “O inverno nos lembra da nossa vulnerabilidade e define o lar como refúgio. Ao contrário, o verão transforma o mundo inteiro em éden, de modo que nenhum canto é mais protetor do que o outro”95, especialmente em espaços onde as estações envolvem grandes variações de temperatura, tornando o inverno especialmente frio. Todos esses sentimentos se acumulam e geram a densidade do lugar. Sobre isso, a Juliana conta que o seu quarto só se tornou seu lugar depois que ela chegou da viagem de vários dias pela Alemanha, França, Itália e Holanda. Durante a viagem, ela sentiu falta do quarto, ainda que ele não 89 TUAN, 1984 citado por PÁDUA, 2013, p. 48. No original: “As personal experience, the time it takes an individual to feel in place is the time necessary to form unquestioning habits and routines”. 90 TUAN, 2013, p. 169. 91 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Cartas, conferências e outros escritos. São Paulo: Abril cultural, 1974, p. 358. 92 TUAN, 2013. 93 TUAN, 2013, p. 168. 94 TUAN, 2013, p. 203. 95 BACHELARD, 1974, p. 230. 126 fosse como o quarto dela aqui no Brasil, mais denso em experiências e topofilia. Mais complexo. O lugar existe em várias escalas. Pode ser um sofá ou um banco em praça, uma casa ou até mesmo um país. “A pátria é um tipo importante de lugar em escala média”96. Pátria, portanto, é o nome dado ao lugar-país, pois comporta toda a noção de sentimento e topofilia. As cidades são lugares por excelência, constituídas pelos seres humanos e cheias de símbolos bem visíveis97. Entretanto, lugares como cidades ou países podem ser significantes apenas para certos grupos ou indivíduos. Por outro lado, monumentos como o Stonehenge na Inglaterra, ou as pirâmides no Egito e no México, podem ser considerados lugares permanentes, porque possuem significado tanto específico para aqueles que o construíram quanto geral, para humanidade, um testemunho que fica. “Os lugares permanentes, que são muito poucos no mundo, advertem a humanidade.” 98. Por outro lado, alguns lugares altamente significativos para indivíduos ou grupos tem pouca ou nenhuma notoriedade, pois são conhecidos emocionalmente e não através de um olhar crítico. 99 Outra sensação associada ao lugar é a noção de realidade. O lugar da casa e o cotidiano parecem “reais”. Viajar frequentemente traz uma noção de irrealidade. O que isso quer dizer? Sobre isso, Tuan afirma que a vida “é vivida e não é um desfile do qual nos mantemos à parte e simplesmente observamos. O real são os afazeres diários, é como respirar. O real envolve todo o nosso ser, todos os nossos sentidos.”100. Esse sentimento foi compartilhado por mim, quando menciono o sopro que parecia dizer “não é real”, atestando contra uma noção de lugar. Eu sentia que meu lugar era no Brasil, onde estava a minha vida de verdade. Ainda assim, viver em outro espaço não permite relações descompromissadas. É preciso sentir e se confortar com a segurança de alguns lugares. No meu caso, as casas de amigas eram uma certeza de lar, que não era o meu lar, mas era compartilhado comigo. Minhas experiências nessas casas me possibilitaram sentir a familiaridade e o conforto agradável de um lar. O lugar se cria em um processo contínuo. Ele é denso. É criado a partir das experiências 96 TUAN, 2013, p. 183. 97 TUAN, 2013, p. 211. 98 TUAN, 2013, p. 202. 99 TUAN, 2013. 100 TUAN, 2013, p. 178. 127 íntimas que acontecem ali e que se acumulam. As experiências íntimas com um lugar podem se acumular até o ponto em que “explodem” em afeição íntima e sincera por um lugar. Ou ele pode ser criado a partir de um primeiro encontro apaixonado. De todo modo, o tempo cria a densidade que o lugar exige. Sobre as experiências íntimas, Tuan afirma: As experiências íntimas jazem enterradas no mais profundo do nosso ser, de modo que não apenas carecemos de palavras para dar-lhes forma, mais frequentemente não estamos sequer conscientes delas. Quando, por alguma razão, assomam por um instante à superfície de nossa consciência, evidenciam uma emoção que os atos mais deliberados – as experiências ativamente procuradas – não podem igualar. As experiências íntimas são difíceis de expressar. Um simples sorriso ou um contato pode alertar nossa consciência sobre um momento importante. […] Os momentos íntimos são muitas vezes aqueles em que nos tornamos passivos e que nos deixam vulneráveis, expostos à carícia e ao estímulo de nova experiência.101 As experiências íntimas se acumulam, geralmente despercebidas, até que um dia, relembrando o que aconteceu em determinado lugar, percebemos como um sorriso ou uma troca qualquer foram relevantes emocionalmente e ainda são. Quando pensamos na experiência da viagem, percebemos o quanto essas experiências íntimas, difíceis de comunicar, são importantes no desenvolvimento de sentimentos por um lugar. No meu relato, falo de alguns momentos singelos como esses que aconteceram e me marcaram profundamente, no metrô ou em um domingo modorrento. O Fabrício, ao relatar sobre os objetos que trouxe da viagem, diz que o celular ou o coraçãozinho de borracha que ele trocou com uma holandesa na rua foram mais importantes que qualquer “lembrança” comprada durante as viagens. É difícil entender porque essas experiências são importantes, como afirma mesmo o Fabrício. Talvez sejam pela sua espontaneidade que nos conforta e nos faz sentir menos sozinhos e mais ligados ao lugar. Tuan afirma ainda que uma pessoa pode se apaixonar à primeira vista por um lugar, assim como por uma outra pessoa, e que uma experiência breve, mas intensa, é capaz de a fazer abandonar o lar e buscar essa terra prometida. Continua: “Ainda mais curioso é o fato de que as pessoas podem desenvolver uma paixão por um tipo de meio ambiente sem terem tido contato direto com ele. É suficiente uma história, um trecho descritivo ou uma gravura em um livro.”102. Sabemos que a nossa realidade não existe no mundo, mas na interação entre ser e mundo. 101 TUAN, 2013, p. 167-8. 102 TUAN, 2013, p. 225. 128 Grande parte dessa realidade é determinada pelos livros, filmes e imagens que hoje estão à nossa disposição. Elas são incorporadas na nossa vivência e, portanto, em nós, à maneira da subjetividade. A importância para mim, ao visitar os lugares em Londres de referência a Harry Potter, está descrita pela familiaridade, a estranheza e deslumbramento de estar ali, de uma forma tão perfeita que eu só compreendo quando releio os livros ou revejo os filmes e sei que eu já fui ali. Assim como para o Fabrício, ao visitar Liverpool, que coloca entre as viagens mais importantes e significativas, mais até do que para a Alemanha ou Rússia. O André afirma que a viagem a Londres foi a melhor, primeiro por estar sozinho e poder sentir a cidade e segundo por causa dos seriados e filmes que ele assiste e que se passam lá. Esses sentimentos são íntimos, mas também fala a muitas pessoas e, portanto, são culturais. Nesse sentido, a fotografia nos ajuda pouco. Podemos criar um registro público e permanente desses lugares visitados, mas a singularidade da nossa experiência, a emoção que sentimos, não fica imediatamente registrada. As paisagens são, nesse sentido, melhor retratáveis. Elas não comunicam imediatamente o que sentimos, mas nos colocam no conteúdo do mundo. Apreender as regiões A região pode ser concebida como uma criação mental e perceptual, não de geógrafos profissionais nem baseada em critérios e índices quantificáveis, mas da percepção espacial de indivíduos comuns103, assim como de processos interpretativos e imaginativos que atribui sentido a um espaço não diferenciado. As regiões são comunidades imaginadas, construídas por múltiplos atores, como escritores, cartógrafos e musicistas, que estimulam um sentido de pertencimento ou relacionamento com o espaço104. As regiões são também reforçadas por outros atores, inclusive geógrafos, e por instrumentos como mapas ou pelas regionalizações oficiais. Entretanto, ela é apreendida principalmente a partir da vivência. “São compósitos ou sínteses dos mapas mentais da sua população.”105. Fremont afirma que “a região, caso ela exista, é um espaço vivido. Visto, percebido, sentido, amado ou rejeitado”106, que portanto é criado pelo sujeito JORDAN, 1978. Citado por SEEMAN, Jorn. Estratégias pós-fenomenológicas para cartografar uma região: narrativas, mapeamentos e performance. Geograficidade, v.3, n.2, 2013. 104 PRICE, 1996. Citada por SEEMAN, 2013. 105 SEEMAN, 2013, p. 68. 106 FRÉMONT, 1976, p. 14. Citado por SEEMAN, 2013. 103 129 intencional e expressão da sua identidade. Concluindo seu pensamento, Frémont afirma que “redescobrir a região, então, é procurar capturá-la onde ela existe, vista pelo homem”107. A apreensão das regiões é intuitiva e experiencial, conforme nos mostra a Fernanda em seu relato sobre o mapa que ganhou da amiga húngara. O mapa reforça a concepção da região que ela conheceu primeiramente através da viagem de trem: região romântica da Alemanha, ao longo do Rio Mosel, com suas colinas e castelos; e que pela percepção da Fernanda é também triste e sem renovação, onde vive a população mais pobre do país. Outra ocasião em que a região aparece, em seu relato, é durante o trekking na Alemanha. E, no relato do André, quando ele compara as duas regiões da Alemanha, ocidental e oriental. Qual a relação da região com a paisagem? A paisagem insere o ser no mundo, tanto a partir das suas subjetividades e identidades quanto do conteúdo físico e da obra do ser humano. Nesse sentido, se relaciona com a região. A região é um construto, assim como o país, que remete a um pertencimento ao espaço. Falamos de regionalidades como expressões de características e comportamentos típicas de determinadas áreas. “Essas regiões, suas narrativas e imagem, por sua vez, também produzem discursos e práticas em reciprocidade. Fiquei fascinado com a idéia de imagens regionais.”108. As regiões podem, portanto, se relacionar com a paisagem na medida em que a vivência desta permitir formular concepções daquela, inclusive criando essas imagens regionais, que responderia tanto pelas imagens quanto pelas narrativas acerca da regionalidade e da região. Vivências de mundo e território Husserl nos diz que: “O mundo é o conjunto completo dos objetos da experiência possível e do conhecimento possível da experiência, dos objetos passíveis de ser conhecidos com base em experiências atuais do pensamento teórico correto” 109. Já Tuan afirma que: “O corpo é uma 'coisa' e está no espaço ou ocupa espaço. Ao contrário, quando usamos os termos 'homem' e 'mundo', não pensamos apenas no homem como um objeto no mundo, ocupando uma pequena parte do seu espaço, mas também no homem habitando o mundo, FRÉMONT, 1976, p. 14. Citado por SEEMAN, 2013. SEEMAN, 2013, p. 68. 109 HUSSERL, 2006, p. 34. 107 108 130 dirigindo-o e criando-o”110. O mundo é, portanto, “um campo de relações estruturado a partir da polaridade entre o eu e o outro, ele é o reino onde a história ocorre, onde encontramos as coisas, os outros e a nós mesmos, e deste ponto de vista deve ser apropriado pela Geografia”111. Nesse sentido, o mundo comporta todas as relações faladas aqui do ser humano, inclusive durante as viagens. É o reino das possibilidades, mas não desprovido de conteúdo. Viajamos no mundo. Somos no mundo. O território, entretanto, já se relaciona com sentimentos mais específicos. Seu fundamento está na própria noção de poder, seja no sentido mais concreto, de dominação, ou no sentido mais simbólico, de apropriação112. Por isso, se relaciona em grande medida ao poder instituído e legitimado do Estado. Mas não só a ele. Enquanto categoria geográfica, território é a expressão dos sentimentos de poder, submissão, conflitos e resistências do ser no mundo. Nesse sentido, também se relaciona com identidades. Holzer apresenta três passos para definição de território113. O primeiro consiste em nos afastarmos das definições da biologia, já que os seres humanos apresentam concepções diferentes de território, tais como ele não precisar ser espacialmente unido ou não induzir a um comportamento estável. O segundo passo consiste em relativizar as concepções, para que o território possa abarcar grupos sem governo ou políticas territoriais definidas. O terceiro passo é a consideração do território como um conjunto de lugares hierárquicos, conectados por uma rede de itinerários. O território engloba a mobilidade e a fixação, os itinerários e os lugares. Nesse sentido, territorialidade “é melhor compreendida através das relações sociais e culturais que o grupo mantém com esta trama de lugares e itinerários que constituem seu território, onde os conceitos de apropriação biológica e o de fronteira têm validade, no mínimo, limitada”114. As relações sociais são concebidas a partir da organização e da produção da sociedade no espaço, enquanto as relações culturais, consideradas estímulos, a partir da significação e da relação simbólica. Se por um lado aquele emoldura, por outro este é portador de sentido115. TUAN, 2013, p. 49. TUAN, 1965. 112 HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, ano IX, n. 17, 2007. 113 HOLZER, 1997. 114 HOLZER, 1997, p. 83. 115 BONNEMAISON, 1981. Citado por HOLZER, 1997. 110 111 131 Holzer afirma ainda que a territorialidade não deve ser reduzida ao estudo do sistema territorial, já que ela é antes a expressão de comportamentos vividos, da constituição do mundo pessoal e intersubjetivo, englobando inclusive as relações do território com o desconhecido, esse que chamamos espaço estrangeiro116. Nesse sentido, as disputas territoriais se desdobram em diversas dimensões, inclusive nos comportamentos vividos dos indivíduos no cotidiano. Diversas situações nos informam sobre esses desdobramentos nos relatos dos viajantes, inclusive sobre as relações com espaços estrangeiros: quando o Fabrício nos conta sobre seu melhor amigo, um armênio que só perdia a tranquilidade quando falava da Turquia; durante as viagens da Fernanda, em que ela conheceu pessoas extremamente nacionalistas, especialmente na Hungria, onde imãs de geladeira sobre a perda do território húngaro no pós-guerra são vendidos em feiras locais. O André nos relata que estava nervoso por causa da viagem ao Marrocos, porque tinha recebido uma mensagem antes de ir que descrevia como se comportar mediante as diversas características “primitivas” do país; coisa que ele logo viu ser infundada. Existem diversos tipos de territórios, definidos por relações sociais e disputas cotidianas distintas. Alguns lugares são expressões óbvias desses conflitos, como o campo de concentração de Auschwitz ou o muro de Berlim. Outros se avultam a depender de quem está sentindo, de suas relações culturais ou sociais. Os territórios, enquanto manifestações de sentimentos, também se relacionam com identidades, com características que assumimos para nós, e que às vezes defendemos para o mundo. A pátria pode ser um lugar quando se foca as relações de carinho que nutrimos pelo “país”, pelos comportamentos ou pelo idioma de origem. Mas o nacionalismo não é um sentimento de lugar. É um sentimento de território. Envolve mais do que o carinho pela pátria. Envolve a tomada de posição frente aos outros em favor do seu país. Envolve conflitos. Os sentimentos de território não estão limitados apenas pelo nacionalismo. Podem envolver uma classe social, uma etnia, uma identidade de gênero ou de sexualidade. Ao visitar os museus na Inglaterra, o que me tocou foi o descaso com o assassinato de milhões de indígenas que eles ajudaram a promover. Porque eu não concebo a minha identidade enquanto brasileira sem considerar a minha herança cultural e histórica indígena. Da mesma forma que qualquer manifestação religiosa vai ser primeiramente territorial. Ao visitar locais como o Vaticano, os guetos de judeus em 116 HOLZER, 1997. 132 Berlim ou de muçulmanos em Paris, a relação imediata para quem conhece a história é territorial. A territorialidade, porém, não se expressa apenas em relações de conflitos. Em todos os relatos de viajantes, em algum momento, entramos em contato com alguma bebida ou prato típico de determinados países. É uma forma de desfrutar territorialidades sem conflitos, assim como de expressar sentimentos de nacionalidade. É uma defesa: fazer questão de que os viajantes experimentem seus pratos típicos. Dos relatos de viajantes Foram apresentados cinco relatos de viagens, que variaram de seis meses a um ano. Mas que também foram compostos por inúmeras viagens menores, de dias a semanas. É possível interpretar as relações dos viajantes com o espaço em ambas as situações. Mas antes de eu empreender esse movimento, é preciso pensar: o que é a experiência da viagem em termos de significados essenciais? Cada relato de viagem evidenciou aspectos singulares da experiência, mas também é possível notar aspectos essenciais. Estes fundamentam toda a experiência e sem eles é impossível conceber uma viagem. Todos os relatos foram concebidos a partir da memória. A memória trabalha com a presentificação de momentos anteriores, mas esse tornar presente envolve mais do que simplesmente uma imersão. Envolve uma nova vivência, uma presentificação. Nesse sentido, a experiência de viagem é aqui momentaneamente referida no tempo porque se trata de uma experiência de viagem que foi presentificada no momento do relato. Que talvez seja compreendida de forma inteiramente diferente no futuro. Amado diz: “A memória toma as experiências inteligíveis, conferindo-lhes significados. Ao trazer o passado até o presente, recria o passado, ao mesmo tempo em que o projeta no futuro”117. Esses significados que nós conferimos dizem respeito mesmo a quem nós somos. Com a exceção do meu próprio relato, todos os outros foram colhidos por mim. A leitura que eu faço deles depois é inteiramente minha; diz respeito a mim presentificando momentos que não foram da minha existência do mundo. Portanto, falam mais de mim, do meu olhar, do que da opinião da Juliana, do André, da Fernanda ou do Fabrício sobre suas viagens. 117 AMADO, 1995, p. 131 133 Das singularidades Do meu relato O meu relato foi articulado em torno dos espaços que compuseram a minha viagem pelo fato de eu agir em função da minha angústia, aquela que me levou a começar esse trabalho em primeiro lugar, e que nunca deixou de estar presente. Falo do meu apartamento na moradia, da universidade, das casas de amigos, dos momentos marcantes nos transportes e, por fim, das outras cidades que conheci. As fotografias, por outro lado, não falam disso. Falam de momentos e locais específicos, que fazem parte da própria simbologia que compõe a minha identidade. Eu busquei fotografias de momentos que exprimiam a minha relação com o mundo, a forma como eu via e adorava esses espaços. Cada uma delas fala de mim, sem eu sequer estar presente. Falam do meu olhar e, nesse sentido, só pode comportar minhas singularidades. Meus momentos concretos como um ser no mundo são marcados pela atenção aos detalhes que me fazem bem: as poças de água refletindo o sol numa rua de pedras; ou o arco que dava as boas-vindas a um jardim no meio da água. É do que eu quero lembrar, mais do que qualquer festa ou pessoa brevemente conhecida. Nesse sentido, não importa mais tanto como eu vivi enquanto estive por lá. Importa os sentimentos que mexem comigo quando penso a respeito. A categoria geográfica que comporta meus sentimentos e significados essenciais, aliado à viagem, é a paisagem. Ainda que a viagem em si tenha sido feita de outras maneiras, os sentimentos mais intensos que eu preservo não estão relacionados com a casa ou com o espaço, mas sim com a paisagem. Do relato da Juliana A Juliana articulou seu relato em função dos meses e do que aconteceu em cada um: em uma espécie de contagem. Sua vida em Porto foi marcada por relações conflitantes entre sua liberdade e seus limites, sendo eles impostos por outros ou por si mesma. Quando impostos por outros, se destaca a família portuguesa com quem viveu; já por si mesma, percebemos em suas falas sobre o quanto costumava ser fechada e queria se abrir para as pessoas e os lugares. Seu primeiro grande ato de liberdade foi empreender a viagem em si, mas a forma como ela viveu essa viagem nos diz mais ainda. Suas restrições em casa se contrapunham com suas liberdades na rua em movimentos conflitantes. Se por um lado ela nos conta que sua vivência intensa do ambiente universitário a levou a conhecer muitas pessoas novas e a se divertir bastante, por outro as suas restrições em casa e constante atrito com sua família no Brasil nos mostra seus limites. Suas viagens em 134 viagens não se apresentam tão impressionantes quanto sua vida em Porto. Talvez a única que nos fale mais seja sua permanência na Itália, que não é desprovida de relação significante. A exposição sobre a família Fonseca nos permite perceber isso. Se no primeiro mês o medo do desconhecido era paralisante, no quinto era o próprio aprisionamento que parece apavorar: essa parte do relato é quase sufocante. Nós sentimos a sua falta de ar. O final dessa viagem não poderia ser outro: o sol deslumbrante depois de um mês de chuva é imagem máxima desse sentimento de libertação que ela nos conta. Sua viagem comporta sentimentos de liberdade que nos remete ao espaço. Mas o espaço nunca é desprovido de pausas, que nos mostram a configuração de lugares que estão sempre se adensando. Nesse sentido, o que compreendemos através da geografia é que o movimento exige pausas, que o espaço exige lugares e que a vida do ser no mundo pode ser marcada por uma vivência de sentimentos de liberdade, mas que nossa própria subjetividade nos pausa em lugares que falam sobre a nossa identidade. Vemos o movimento no caminhar da Juliana pelo Muro de Berlim; vemos a pausa na exposição sobre imigrantes italianos, com seu livro inteiro dedicado a família Fonseca. Do relato do André O André articulou seu relato em função das viagens que empreendeu enquanto estava vivendo em Portugal, com alguns intervalos de dedicação aos estudos, assim como suas fotografias. Essas viagens são destacadas como novos espaços para se estar e se divertir com amigos, mais do que como possibilidades de conhecer novos espaços, com exceção do Marrocos, da Polônia e de Londres. Ele afirma, inclusive, que essas viagens o fizeram se aproximar ainda mais dos amigos com os quais viajou. Em Londres, essa possibilidade foi anulada pelo fato de que ele viajou sozinho. Tanto o Marrocos quanto a Polônia foram importantes, pois fala mais sobre o André por causa do tanto que ele se impressionou com o que viu. O Marrocos se destaca pela diferença de contexto cultural, social e político, bem como ambiental, mas que comporta semelhanças inesperadas. O que diz sobre o contexto do próprio André, que apesar de diferente, apresenta semelhanças essenciais que o fez “se sentir em casa”. Já a Polônia pela beleza encontrada na cidade cujo único referencial era a proximidade a campos de concentração nazista, conhecidos pelo contexto de horror. Nesse sentido, seu relato nos fala de momentos de amizade, de encontros que promoviam conforto e segurança, seja na beleza de uma cidade ou na inesperada semelhança com o lar. Seu relato nos fala sobre as possibilidades vislumbradas de se caminhar sozinho: ora ele encontra um dragão gigantesco que solta baforadas de 135 fogo pela boca, ora policiais gentis e partes diferentes de uma mesma cidade. Nesse sentido, o André empreende o movimento inverso ao da Juliana: sua viagem é por lugares, que comporta momentos de liberdade. Seu movimento é por pausas, e dentro dessas pausas às vezes é possível vislumbrar outros movimentos. O André nos fala, no final do relato, sobre seu sentimento de inadequação a vida no Brasil: “Porque eu estou em uma fase de indecisões, acho que minha vida não é aqui, que eu não vou ser feliz aqui”, que é uma expressão da possibilidade vislumbrada de se viver e ter um lar em outros lugares. Do relato do Fabrício O Fabrício nos fala de maneira geral das suas viagens, por vezes apenas indicando sua presença em algumas cidades. Mas todas apresentam um elemento comum: a diversão. Seus casos de diversão incluem idas a festivais de música, a estádios de futebol, a casas de amigos ou jantares com estranhos. Nesse sentido, nos diz sobre a sua vontade de sempre viajar sozinho, mas não acompanhado por sentimentos de solidão. A categoria que comporta sua relação com espaço é, assim como o André, o lugar. Ele mesmo nos fala das mudanças que transformaram sua casa em Utrecht em lar, de como é se misturar com a dinâmica do ambiente diferente em que ele viveu. Sobre como não queria voltar ao Brasil, e como acha mesmo que não voltou. Do relato da Fernanda A Fernanda articulou seu relato em dois atos: o primeiro aconteceu em Trier, e foi marcado pela sua presença na universidade; o segundo, pelas suas viagens para além disso, mesmo que ocorressem em Trier mesmo. A imagem que ela nos passa do primeiro ato é quase aterrorizante: uma paisagem do medo. Sua universidade que costumava ser um hospital de guerra, sua casa com nada além da vista de um letreiro de supermercado, a neve que aprisionava. Por outro lado, os momentos de alegria e companhia são igualmente intensos: as viagens a pé, suas amizades, o momento libertador em que ela invadiu a piscina pública. Nesse sentido, suas viagens foram antes por paisagens do que por qualquer outra categoria. Suas relações com o espaço comportaram sentimentos intensos, não necessariamente ligados à liberdade ou ao lar. Dos significados essenciais No que a viagem é diferente da vida? A essência da viagem está na relevância do espaço. Por mais que exista um problema pessoal, um problema de saúde, o tempo todo tanto o problema quanto as soluções para ele levam em conta o espaço. A viagem é vida 136 espacializada. A primeira pergunta que fazemos quando pensamos em viagens é: para onde? Em nenhum outro momento da vida a localização, o espaço, se torna tão fundamental. A viagem não necessariamente pressupõe deslocamento, apenas a relevância do espaço, seu conteúdo e seu contexto. Viajamos na leitura de livros de viagens sem sair do lugar, mas a estrutura das relações que passam a valer é deslocada ao se deslocar o espaço lido. A localização, ou ato de se localizar envolve justamente isso: encontrar pontos de referências externos que sejam úteis. É colocar em contexto aquele momento do concreto ser no mundo. O contexto ou o ambiente pode ser entendido, conforme nos conta Tuan, como “as condições sob as quais qualquer pessoa ou coisa vive ou se desenvolve; a soma total de influências que modificam ou determinam o desenvolvimento da vida ou do caráter”118. Modificar o ambiente e se localizar implica entender qual a história, a cultura, a política, as características ambientais que compõe e definem e concretizam aquele local, muitas vezes apenas a partir dos vislumbres que vivenciamos no cotidiano. Nesse sentido, a própria abertura para a contextualização nos impulsiona a uma reflexão forçada, que compreende: um olhar forçado para o diferente; pequenas aventuras; a consciência da nossa vulnerabilidade e da importância de momentos de proteção. O olhar forçado para o diferente é a evidência primeira de que estamos em outro ambiente. É também o que justifica o sentimento de irrealidade que às vezes sentimos durante a viagem: “Os turistas buscam novos lugares. Em um novo ambiente, são forçados a ver e a pensar sem apoio de todo um mundo de vistas, sons e cheiros conhecidos – em grande parte irreconhecidos – que dão peso ao ser: os lugares de férias, apesar de encantados, após algum tempo parecem irreais.”119. As pequenas aventuras são fruto da mesma insegurança em agir sem o apoio do “mundo de vistas, sons e cheiros conhecidos”. Elas se configuram a partir do desafio proporcionado pelo ambiente à realização de uma tarefa. “Queria precisar certos conhecimentos”, diz ele com unção, “e gostava também que me sucedessem coisas inesperadas, coisas novas, aventuras para falar com franqueza.” Baixou a voz e tomou um modo maroto. “Que espécie de aventuras?”, perguntolhe surpreendido. “De todas as espécies. Tomar um comboio que não é o nosso. Descer numa cidade desconhecida. Perder a carteira, ser preso por engano, passar a noite na prisão. Acho que se podia definir a aventura assim: um acontecimento que sai do ordinário, sem ser forçosamente extraordinário. Fala-se da magia 118 119 TUAN, 1965, p. 6. TUAN, 2013, p. 178. 137 das aventuras. O senhor acha a expressão adequada?”120. As pequenas aventuras, esses acontecimentos que saem do ordinário, mas não são forçosamente extraordinários, são incontáveis durantes as viagens. Nos relatos, as percebemos nos desafios para comprar o ticket certo de transporte, para entender um comportamento alheio ou pegar o metrô na hora correta. Isso acontece porque estamos vulneráveis, sem nossos mundos de apoio. Encontrar momentos de proteção é uma garantia de sobrevivência durante as viagens, sejam eles ocasionados por pessoas (os “anjinhos da guarda” da Juliana, que estão presentes em todos os relatos de viagem) ou por lugares (como os meus sentimentos indigestos pelos shoppings, ou, mais compreensível, da Juliana pelas feiras que encontrou em Paris). Tecidos: geografias e viagens A constituição de um lugar envolve uma grande carga afetiva. Nascemos e crescemos imersos em um ambiente, existindo nesse ambiente; reagimos aos seus desafios. Vislumbramos de tempos em tempos espaços, marcados pela imensidão e solidão. Mas do conforto simples dos nossos lugares, apenas vislumbramos. Não compreendemos realmente como é existir nesses espaços de liberdade. Até que resolvemos viajar. Viajar é estarmos imersos em novo ambiente, um ambiente definido por uma relação com o espaço, não com o lugar. O processo de se estabelecer laços começa, quase imediatamente. Lembramo-nos da primeira vez que andamos por esse novo ambiente. Nós nos perdemos, e qualquer direção parece arbitrária. Para onde ir? Nós nos encontramos ao encontrar pontos de referência externo, às vezes com a ajuda de outras pessoas. A disposição dos estranhos em ajudar nos conforta. Sabemos que é possível sobreviver, apesar da imensidão da solidão no mundo. Os desafios ululam: chegam a ser pequenas aventuras, marcadas pela superação das nossas inseguranças e vulnerabilidades em desafios ordinários. Nesse ambiente-espaço, encontrar pessoas conhecidas é como jogar uma pedra no rio e sentir a reação da água. Tudo se transforma. Quando estamos sós em um novo ambiente, não somos reconhecidos. O mundo não reafirma nossa presença singular e somos conhecidos apenas pelo que temos em comum com os que nos reconhecem: nossa irmandade de espécie. Não somos, ainda, amigos nem parentes. Não somos partidários ou militantes. Somos estrangeiros. Com o tempo, ou talvez com os movimentos para se estabelecer, criamos laços. E começamos a configurar nossos novos 120 SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Trad. Rita Braga. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2002, p. 50. 138 lugares. Desenvolvemos sentimentos afetivos por uma padaria, uma praça ou banco verde em um jardim. Esses sentimentos são fruto das nossas experiências íntimas com os lugares, essas que são difíceis mas não impossíveis de relatar. Começamos a reconhecer estranhos nas ruas. Nós sentimos ser reconhecidos pelo que somos, pelas nossas subjetividades, a partir da experiência pessoal de outras pessoas. De repente, cumprimentamos rostos conhecidos no ônibus. Somos envolvidos pela teia de adensamento da topofilia. Do reconhecimento da nossa existência, surgem os atritos. Somos continuações das relações e comportamentos que empreendíamos no passado, no ambiente do qual saímos. Somos identidades de gênero, sexualidade, religiosidade, nacionalidades e comportamos diferentes crenças, valores e tradições socioculturais. Definimos territórios, e nos chocamos pela definição dos outros. O espaço começa a se apinhar. Mas nem sempre é um atrito negativo. Às vezes é como uma reação que chama a atenção por produzir ruído, como quando conhecemos novas bebidas ou comidas típicas. Sentimos territórios quando nos envolvemos por conflitos, guerras ou genocídios, ao ver seus índices, suas marcas: nas pessoas, no espaço. Outras vezes, sentimos o espaço de maneira tão intensa que ele nos invade. De repente, somos o ponto de vista daquela paisagem, comportamo-la em nós. Somos a expressão da paisagem, em um novo nível. Vislumbramos diferenças nos espaços que conhecemos e compreendemos o que são regiões. Somos seres no mundo. Consciências de espaço. Somos a própria existência tomando consciência de si mesma. Somos livres, envolvidos, imersos, entranhados, resistências, conformidades: somos no tempo e no espaço. E viajamos. Do início ou algumas conclusões de não-finais O que demorou a fazer algum sentido para mim foi o próprio sentido de se fazer um trabalho assim. Que bem poderia possivelmente vir disso? Eu cheguei até aqui a partir da busca por respostas. Mas nesse que deveria ser um espaço para reflexões finais, eu só percebo novas dúvidas, novas aberturas para caminhar. Do trabalho, guardo apenas um sentimento: meu esforço não foi o bastante. É preciso tanto mais, para se começar a entender o ser no mundo. É preciso mais ainda para se entender o sentido disso tudo? Bem, é preciso acima de tudo viver. Se usei até aqui as categorias geográficas para focar as relações do ser humano no espaço partindo de uma leitura do espaço, também é possível seguir a direção oposta. No corpo, antes o mundo se percebe do que é percebido. No corpo se percebem lugares, territórios, paisagens. Nesse sentido, preciso de novo retornar a coisa mesma, preciso ousar novas concepções e vivências. 139 A geografia que eu busco se delimitou ao compor esse trabalho. É preciso todo um recomeço para fazer sentido. Se por um lado, entendo que somos a existência tomando consciência de si mesma, por outro sei que só existimos no mundo, sentindo e experienciando. Pareço ter tudo resolvido acerca do ser, mas o que dizer do mundo aí? Dardel nos conta, em seu clássico “O Homem e a Terra, natureza da realidade geográfica”, de 2011, na página 2, que a Terra é um texto a decifrar e que o desenho da costa, os recortes da montanha e as sinuosidades dos rios formam os signos desse texto. Preciso ser no mundo para buscar a geografia que me falta. Para ver os signos e decifrar o texto. Por fim, se por um lado, segundo Tuan afirma na página 238 do seu livro “Espaço e lugar, a perspectiva da experiência”, “os objetos seguram o tempo”, e segurei algum nesse trabalho, por outro (ainda na página 238): Para fortalecer nossos sentidos do eu, o passado precisa ser resgatado e tornado acessível. Existem vários mecanismos para escorar as deterioradas paisagens do passado, por exemplo, vamos ao bar: aí temos oportunidade de falar e transformar nossas pequenas aventuras em epopeias, e dessa forma as vidas comuns alcançam reconhecimento e até uma pequena glória nas mentes crédulas dos companheiros ébrios. Um brinde então àqueles que compartilharam comigo seus momentos de glória. 140 REFERÊNCIAS AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História oral. História, n. 14, p. 125-136, 1995. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Cartas, conferências e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. BARCO, A. Pilotto. 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