OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
PAPAVERO, N. e TEIXEIRA, D. M.:
Os viajantes e a biogeografia:
História, Ciências, Saúde Manguinhos,
vol. VIII (suplemento), 1015-37, 2001.
Os viajantes e a
biogeografia
Travellers and
Biogeography
Apresenta-se um breve panorama das
principais teorias biogeográficas, mostrando
como o conhecimento acumulado por
naturalistas viajantes foi responsável por seu
teste e eventual rejeição. Enfatiza-se a
importância de se conhecerem os relatos dos
antigos viajantes e naturalistas, para avaliar
o quão severa foi a ação antrópica sobre a
distribuição geográfica de alguns grupos de
vertebrados.
PALAVRAS-CHAVE: biogeografia, teorias,
contribuição dos viajantes, padrões de
distribuição de certos vertebrados, ação
antrópica.
PAPAVERO, N. e TEIXEIRA, D. M.:
Travellers and Biogeography:
História, Ciências, Saúde Manguinhos,
vol. VIII (supplement), 1015-37, 2001.
This article shows a brief panorama of the
most important biogeographic theories and
how scientific knowledge rendered by
travelling naturalists plays a relevant role in
testing and sometimes rejecting some of these
theories. The article also emphasizes the
importance of becoming familiar with past
travellers and naturalists reports in order to
understand how severe human action was in
geographically distributing some vertebrate
groups.
Nelson Papavero
KEYWORDS: Biogeography, theories, travelers
contribution, distribution patterns of some
vertebrates, human action.
Professor visitante do Museu Paraense Emílio Goeldi e
professor colaborador do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Av. Perimetral, Caixa Postal 399
66040-170 Belém do Pará PA Brasil
Dante Martins Teixeira
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Quinta da Boa Vista
20940-040 Rio de Janeiro RJ Brasil
JUL.-AGO. 2001
1015
PAPAVERO e TEIXEIRA
Criacionismo e traducianismo
P
reliminarmente, necessitamos introduzir dois termos, criacionismo
e traducianismo, adaptados à biogeografia por Papavero e Balsa
(1986, p. 152; ver também Papavero et alii, 1995; Papavero et alii, 2000).
A existência de um único centro de origem e dispersão, a partir do
qual os indivíduos das espécies animais se dispersam para ocupar o
mundo é o que se chama criacionismo. Por traducianismo entendese a existência de múltiplos (e contemporâneos) centros de criação
(regiões biogeográficas); nesse caso, cada espécie teria aparecido (ou
sido criada) já em sua própria região, não tendo ali chegado,
necessariamente, por dispersão, a partir de um único centro original. O
texto do Gênesis, do ponto de vista biogeográfico, é traducianista:
existiu um único centro de origem e dispersão original o Paraíso
Terrestre; secundariamente serviram como centro de origem e dispersão
o Ararat (para animais e homens) e Babel (só para os homens).
A biogeografia traducianista e o livro do Gênesis
Que o patriarca Noé levara em sua arca, por ordem divina, sete
casais de cada espécie de animais puros e um casal de cada espécie de
animais impuros, a fim de salvá-los do dilúvio (que, diga-se preliminarmente, foi quase sempre aceito como um fenômeno universal, e não
local) foi questão mais ou menos pacífica entre os pensadores e filósofos
naturais da Europa cristã, até pelo menos o século XVIII. Cessado o
cataclismo e escancarada a porta da arca, esses animais, obedecendo
a ordem de Deus (crescei e multiplicai-vos), voltaram a povoar o
mundo (Browne, 1983).
Mais do que um episódio bíblico, esta foi a primeira teoria
biogeográfica proposta e a que mais tempo permaneceu vigente. Seus
postulados básicos (considerem-se também os episódios da criação
dos animais no Jardim do Éden e da Torre de Babel) são: existe um
único centro de origem da biota, um ponto bem definido da face da
Terra (o Éden o centro de origem e dispersão primordial, o Ararat e
Babel centros secundários); desse centro de origem animais (e homens)
dispersam-se para povoar o mundo; durante a dispersão radial, podem
eles sofrer mudanças em seus caracteres somáticos, provocadas pela
influência direta do meio e herança desses caracteres adquiridos (assim
se teriam originado as diferenças dos diversos grupos de raças humanas,
por exemplo).
Como toda teoria científica, entretanto, acabou esbarrando em certos
fatos, que serviram para testá-la. Exemplificando, teria Noé transportado
todas as espécies de animais originalmente criadas por Deus no Jardim
do Éden ou apenas as espécies de vertebrados terrestres bissexuadas
de fecundação cruzada? Os animais aquáticos não necessitariam ser
levados pelo patriarca, nem aqueles nascidos por geração espontânea
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HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE Vol. VIII (suplemento)
OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
(como então se acreditava) depois do dilúvio, para estes últimos,
havia grande quantidade de matéria orgânica em decomposição, de
cuja fermentação poderiam surgir (Papavero, 1992, p. 51).
Em sua obra De Civitate Dei (A cidade de Deus), santo Agostinho
(354-430) chegou à conclusão de que Noé tivera que transportar em
sua arca todas as espécies de animais, sem exceção. Foi levado a isto
por duas razões. A primeira é que, para os maniqueístas seus
contemporâneos, Deus não havia criado os animais e as plantas, seres
destinados à corrupção e à morte; Deus criara apenas os seres do
universo supralunar aristotélico (como o sol, a lua, os planetas e as
estrelas fixas), o éter, os anjos e a alma humana coisas perfeitas,
belas, imperecíveis. Todo o resto, destinado à degeneração e à corrupção,
perecível, só podia ter sido criado por um poder maligno oposto a
Deus. Ora, se santo Agostinho admitisse que Noé deixara fora da arca
certo número de espécies de animais, os maniqueístas aproveitar-seiam imediatamente disso para corroborar suas idéias de que essas
espécies não haviam saído das mãos do Criador e que teriam morrido
juntamente com os pecadores, afogadas pelo dilúvio. A segunda razão,
e a mais importante, era que as espécies de animais levadas por Noé
simbolizavam os povos da Terra: todas as nações tinham o direito de
encontrar a salvação na nova arca representada pela Igreja cristã. Noé
teve que transportar casais de todas as espécies, mesmo das aquáticas
e das nascidas por geração espontânea, para simbolizar que nenhum
povo, por menor e mais insignificante que pudesse parecer, seria deixado
fora da Igreja, justamente cognominada de católica (termo que em
grego significa para todos, universal).
O traducianismo biogeográfico de santo Agostinho e o
problema das barreiras à livre dispersão
Uma vez isso resolvido, tem-se que enfrentar um problema
decorrente: como podem animais que não conseguem atravessar grandes
extensões de mares, por não serem capazes de voar ou nadar, povoar
as ilhas oceânicas e talvez outros continentes distantes do Velho Mundo?
Este problema, o das barreiras à livre dispersão, preocupou sempre
os biogeógrafos dispersionistas ou traducianistas, e santo Agostinho foi
o primeiro a tentar solucioná-lo. Ainda em A cidade de Deus no
capítulo intitulado Questão acerca das ilhas remotas, se elas receberam
sua fauna a partir dos animais que foram preservados na arca durante
o dilúvio , concluiu que os animais que sabiam nadar ou voar
passaram às ilhas por seus próprios meios. Os que tinham alguma
utilidade para os homens (na caça, na agricultura etc.) foram por estes
transportados em canoas. A grande maioria das espécies, contudo, não
se enquadra em nenhuma dessas duas categorias; para elas, o grande
doutor da Igreja só teria visto uma solução: Não se pode negar que,
pela intervenção dos anjos, esses seres (os animais) tenham sido
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PAPAVERO e TEIXEIRA
transferidos (para as ilhas oceânicas remotas) pela ordem ou permissão
de Deus. Santo Agostinho postulava assim, pela primeira vez, agentes
externos que promoviam a dispersão a longas distâncias dos animais,
saltando barreiras naturais. Essa solução é recorrente na literatura
traducianista; vamos encontrá-la, só para citar alguns autores, em Lineu
(1744), De Candolle (1821) e Charles Darwin (1859).
A questão dos antípodas
Aristóteles havia explicado, em Meteorologica, que a Terra era
dividida em cinco zonas climáticas latitudinais duas glaciais, próximas
aos pólos, duas temperadas, e uma zona média tórrida, situada no
equador, tão quente e sáfara que não possuía nem águas nem pastagens.
Assim, as duas zonas temperadas (norte e sul), aptas para serem
habitadas, não podiam ter comunicação alguma entre si,
inexoravelmente separadas pela zona tórrida. Endossando a opinião
de outros sábios gregos, Aristóteles acreditava que havia também terras
no hemisfério sul do globo terrestre, o que garantia certa simetria e o
próprio equilíbrio de nosso planeta. Seriam essas terras do hemisfério
sul habitadas por homens e animais? É coisa com que os antigos não
chegaram a se preocupar, pelo que consta.
Santo Agostinho, que aceitava a esfericidade da Terra, combateu a
idéia de que homens pudessem viver do lado oposto do mundo, dizendo
que não falam as Escrituras de tais descendentes de Adão. Para ele,
Deus não permitiria que ali vivessem, pois não teriam acesso ao
cristianismo. Como poderiam os apóstolos de Cristo (que viera ao
mundo no hemisfério norte) atravessar a zona tórrida para chegar a
esses antípodas, a fim de levar-lhes a luz do Evangelho? Pois estava
escrito: A sua voz estende-se por toda a Terra e suas palavras até as
extremidades do mundo (Salmo 18: 5), observação reiterada no Novo
Testamento (Epístola aos Romanos 10: 18): Por toda a Terra se espalhou
a sua voz e até a extremidade da Terra chegaram suas palavras.
O bispo de Hipona desenvolveu assim sua recusa em aceitar a
existência de populações humanas no hemisfério sul, tendo como
premissa a leitura dos textos sagrados. Para santo Agostinho, se todos
os povos da terra descendiam de Adão, através dos filhos de Noé; se
todas as raças provinham de Babel; se os apóstolos foram enviados a
pregar a palavra de Deus a todos os povos sem exceção (povos
simbolizados pelas espécies de animais salvas na arca de Noé); se não
há no Novo Testamento notícia alguma de que os apóstolos tenham
ido pregar para os antípodas; se o Mar Oceano (o Atlântico) é impossível
de ser navegado; se qualquer ser material é literalmente incinerado
ao passar pela zona tórrida do globo; então só se pode chegar a uma
única conclusão verdadeira: não pode haver seres humanos no lado
oposto da Terra (supondo-se, obviamente, que a Terra tenha um lado
oposto!).
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HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE Vol. VIII (suplemento)
OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
Raciocínio semelhante poderia ser feito em relação aos animais.
Para chegarem ao hemisfério sul, aqueles animais que não possuem
meios próprios para ultrapassar barreiras geográficas, e mesmo os que
podem voar ou nadar (no caso de distâncias muito grandes), teriam
que ser transportados por anjos; mas a zona tórrida incinerá-los-ia
inexoravelmente, uma vez que só os anjos podiam passar incólumes
por ela, visto não serem materiais.
Conclui-se, necessariamente, por razões físicas e teológicas, que o
hemisfério sul tinha que ser desabitado. Houve uma única criação, no
Jardim do Éden: isto era indiscutível. Todos os animais e homens
tinham que se dispersar a partir de um único ponto no hemisfério
norte.
E plantas, poderiam existir no hemisfério sul? Por esse tempo (e até
muitos séculos depois) acreditava-se que as plantas eram originadas,
em sua esmagadora maioria, por geração espontânea. Prova é que,
quando Noé soltou a pomba da arca, esta trouxe de volta um ramo,
que a tradição atribuiu erroneamente a uma oliveira. Como explicar, se
o dilúvio havia sido universal, e se havia assolado a face do planeta, a
existência dessa planta verdejante? Por nascerem espontaneamente,
depois da baixa das águas do dilúvio... Por esta razão Deus não ordenara
a Noé que levasse também plantas em sua arca, para salvá-las do
cataclismo, por ser desnecessário.
O impacto da descoberta da fauna americana pelos europeus
A descoberta, pelos europeus, de animais e populações humanas
no Novo Mundo, notadamente na América do Sul, foi o mais severo
teste que a biogeografia traducianista de origem bíblica teve que arrostar.
Esse fato obrigou os pensadores a formular novas hipóteses ad hoc
para imunizar a teoria.
Um dos resultados mais espetaculares do ciclo dos descobrimentos
em fins do século XV e início do XVI foi a derrocada da antiqüíssima
idéia da zona tórrida. O périplo da África e o descobrimento do
Brasil, essas esplêndidas realizações de Portugal, demonstraram a
inexatidão desse conceito. Permitia que os animais oriundos da arca de
Noé se dispersassem, a partir do Ararat, até chegar ao Novo Mundo. O
problema era explicar como ali foram ter, e como puderam atravessar
distâncias tão espantosas. A idéia ingênua de que anjos os tivessem
transportado não tinha voga. Explicações mais naturais precisavam ser
encontradas.
O acúmulo gradativo de informações sobre plantas e animais,
publicadas por viajantes e cronistas que visitavam as plagas do novo
mundo descoberto ou através de suas figuras surgidas na cartografia
(George, 1969), acrescentou mais um problema para os traducianistas:
por que muitas espécies americanas eram tão distintas das do Velho
Continente? Algumas (como os marsupiais, só para mencionar um
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PAPAVERO e TEIXEIRA
exemplo) nem mesmo tinham qualquer semelhança com os animais
do mundo antigo. Até as espécies marinhas (que supostamente podiam
nadar e se deslocar do Velho ao Novo Continente) eram distintas das
da Europa, como já em 1504 notava Binot Paulmier de Gonneville
(DAvezac, 1869): la mer poissoneuse: les espèces dissemblables
de celles d Europe (o mar venenoso: as espécies dessemelhantes
daquelas da Europa).
A imunização do traducianismo bíblico
Para salvar o traducianismo biogeográfico vigente, várias hipóteses
ad hoc foram propostas.
A Atlântida, uma ponte entre o Velho e o Novo Mundo, através da
qual poderiam ter passado a pé enxuto os animais descendentes dos
indivíduos transportados por Noé, foi uma das soluções apresentadas,
tendo essa ilha, entretanto, dimensões muito maiores do que se supunha.
Foram adeptos dessa hipótese, entre outros, Girolamo Fracastoro (1530),
Francisco López de Gómara (1553) e Agustín de Zárate (1555).
A improcedência dessa hipótese foi brilhantemente demonstrada
pelo genial jesuíta padre Joseph dAcosta (1590), que a substituiu por
um hipotético estreito (o então chamado estreito de Anian, mencionado
por Marco Polo, hoje estreito de Bering) que permitiria aos animais (e
homens) oriundos da Ásia passarem à América do Norte e desta
continuarem sua dispersão rumo ao sul, até o cabo Horn (Browne,
1983; Papavero, 1991; Papavero, Llorente e Espinosa, 1995; Papavero,
Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997). Essa brilhante hipótese de DAcosta
persistiu até alguns anos atrás.
Persistia, porém, o problema das diferenças morfológicas e do número
sempre crescente de espécies que iam sendo descritas e por vezes
registradas pelo traço dos viajantes e naturalistas.
Walter Raleigh (1614) aventou uma explicação simplesmente
engenhosa para evitar esses óbices. Ponderou, inicialmente, que nem
todas as espécies de animais conhecidas já nessa época poderiam ter
cabido nas exíguas dimensões da arca. Para Raleigh, a questão estava
em que, na arca, foram salvas apenas as espécies originais, criadas por
Deus no Jardim do Éden, na semana da Criação. Estas eram poucas,
e couberam facilmente na embarcação de Noé. Encalhada a arca no
Ararat, e aberta sua porta, os animais começaram a emigrar a partir
desse ponto, reproduzindo-se não só dentro de sua própria espécie,
mas também hibridando e dando origem a novas espécies (combinações
das primitivas criadas por Deus), que, por sua vez, também iriam se
transformando à medida que se afastavam do centro de origem, por
influência do meio, herdando esses caracteres adquiridos. Ora, quanto
mais longe do Ararat, mais diferentes deveriam ser, pois teriam mais
tempo para hibridar e degenerar, o que era confirmado pelos relatos
de naturalistas e viajantes na América do Sul o ponto mais distante
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HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE Vol. VIII (suplemento)
OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
possível do Ararat, onde se encontravam animais espantosamente
distintos, por vezes monstruosos, como capivaras, tamanduás,
preguiças, marsupiais, tapires e assim por diante.
Essa hipótese de Raleigh serviu de inspiração para o jesuíta Athanasius
Kircher, que, em sua obra intitulada Arca Noë (1675), admitiu que o
patriarca transportara apenas umas poucas espécies de vertebrados
os bissexuais de fecundação cruzada, praticamente só alguns mamíferos
e aves. Não levara o patriarca nem aquáticos nem os que nasciam por
geração espontânea (que eram a grande maioria). Havia assim espaço
mais que suficiente na arca para todas as espécies de mamíferos e aves
originalmente criadas por Deus, as únicas que incorreriam no perigo
de se afogar. Dessas espécies haviam surgido todas as outras, por meio
de cópula promíscua (hibridação) e de diferenciação ulterior por sua
exposição, no caminho da dispersão, a diferentes ambientes. Assim da
cópula promíscua do camelo com o pardo, surgira o camelopardo ou
girafa; do camelo com o pardal, o avestruz; do leão com o pardo, o
leopardo; do leão com a águia, o grifo etc. (Papavero, Teixeira e LlorenteBousquets, 1997).
O criacionismo no século XVII
Entrementes, crescia assustadoramente o número das espécies novas
assinaladas no Novo Mundo. As antigas idéias sobre hibridação de
espécies animais iam sendo cada vez mais restritas a raros casos; híbridos
interespecíficos, quando existiam, eram estéreis, o que chegou a invalidar
as conjeturas de Raleigh e Kircher. Como explicar, pois, a imensa
diversidade de formas animais encontrada nas Américas? E por que
eram tão diferentes das do Velho Mundo?
O pensador e diplomata francês Isaac de La Peyrère (15941676) discordou frontalmente do pensamento traducianista reinante,
duvidando que os animais pudessem migrar tão amplamente como
sugeria a filosofia corrente. Tudo isso se baseava ainda no pressuposto
de que o dilúvio noético fora universal. Recorrendo à sua própria
exegese de um trecho mais ou menos obscuro da Epístola aos Romanos
(5: 12-14), que reza: Portanto, assim como por um só homem entrou
o pecado neste mundo, e pelo pecado a morte, e assim passou a
morte a todos os homens, (por aquele homem) no qual todos
pereceram. Porque até a lei o pecado estava no mundo; porém, não
havendo lei, o pecado não era imputado. Todavia, a morte reinou
desde Adão até Moisés. Assim, mesmo sobre aqueles que não pecaram
por uma transgressão semelhante à de Adão, La Peyrère especulou
que o dilúvio não fora universal, interessando apenas a uma parte do
Oriente Médio; que Adão não fora o antepassado de todos os homens,
mas só dos judeus; que Adão fora precedido por muitas nações, que
viveram na China, na América, na Groenlândia e no misterioso
continente do Sul. Essas nações não foram destruídas pelo dilúvio.
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PAPAVERO e TEIXEIRA
Publicou essas conjeturas em 1655 (Preadamitae sive Exercitatio supra
versibus 12, 13 et 14 capiti V Epistolae D. Pauli ad Romanos, quibus
indicantur primi hominem ante Adamum conditi).
Inaugurou, para outros autores, uma nova era de hipóteses, ora
destinadas a explicar a distribuição das espécies de animais nas distintas
partes do mundo. Deus criara-as separada e simultaneamente, cada
qual em sua própria região. Não houvera um único centro de origem
e dispersão no Jardim do Éden; não fora necessário levar todas as
espécies dentro da arca de Noé. Se na realidade existiram Noé e sua
arca, o dilúvio foi um acontecimento local, no Oriente Médio. Em
suma, Deus criara, desde o início, e simultaneamente, as regiões
biogeográficas, cada qual com suas espécies próprias. Entre outros,
defenderam essas idéias Abraham van der Mijl (De Origine animalium
et migratione populorum, 1667; traduzida pela primeira vez, para o
francês, por Chiquieri et alii, 1998); um anônimo (De Diluvii universalitate
dissertatio prolusoria, 1667; traduzida pela primeira vez, para o francês,
por Chiquieri, 1999); Edward Stillingfleet (Origines sacrae, or a rational
account of the growth of Christian Faith, 1662); Matthew Poole (Synopsis
criticorum aliorumque Sacrae Scripturae interpretem, 1669); e Jean Le
Clerc (Commentarii philologici et paraphrases in Veterum Testamentum,
1690-1731) (Papavero e Pujol-Luz, 1997).
O criacionismo levaria vários autores, no século XIX, à formulação
das regiões biogeográficas (Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets,
1997).
Ulteriores progressos da biogeografia
Nos séculos XVIII e XX, sucederam-se várias teorias, criacionistas
e traducianistas, que não podemos examinar neste curto espaço. Entre
as traducianistas, situam-se as de Lineu (De telluris habitabilis incremento,
1744; Papavero e Pujol-Luz, 1999) e a de Buffon (1778; Papavero,
Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997), incluindo a de Darwin (proposta
em A origem das espécies, 1859).
No século XX, surgiria a revolucionária teoria da biogeografia por
vicariância, a maior revolução já ocorrida dentro dessa ciência.
O mito da natureza intocada
A paciente e continuada tarefa de inventariar as espécies vivas não
só gradualmente contribuiu para testar e/ou reformular as diversas
teorias biogeográficas e evolutivas, mas mostrou igualmente os padrões
geográficos (regiões e sub-regiões) formados pelas espécies. Neste último
domínio, uma importantíssima contribuição dada pelos viajantes
naturalistas, em geral pouco apreciada e utilizada, mas de suma
importância para o estudo da biogeografia de certos grupos de
vertebrados, é mostrar o quão alterada, por ação antrópica, se encontra
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HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE Vol. VIII (suplemento)
OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
a distribuição de certas espécies. Este fato foi amplamente demonstrado
por Teixeira (2000). Diz ele que, embora sujeita a diversas premissas,
a documentação produzida durante o período da dominação holandesa
(idem, 1992, 1993, 1995, 1997, 1998a-d) sem dúvida alguma fornece
um quadro privilegiado da avifauna brasileira durante o século XVII.
As 156 espécies silvestres nativas assinaladas equivalem a nada menos
de 32,50% das 480 aves registradas para Pernambuco e a 46,15% das
338 aves mencionadas para a Paraíba (Farias, Brito e Pacheco, 1999;
Schulz Neto, 1995). No caso do nordeste extremo do país, tal
circunstância se reveste de particular interesse em face da destruição
em grande escala das paisagens naturais observada na região, processo
sem paralelo até mesmo na derrocada das matas atlânticas meridionais
(Dean, 1996). Em nenhuma outra parte do Brasil a dura promessa de
uma ocupação desregrada do espaço natural foi cumprida de forma
tão absoluta, estando o Nordeste refém de uma monocultura de
exportação que se mostrou capaz de erradicar as formações florestais
e de alterar profundamente as paisagens mais secas do interior. A
julgar pelos comentários de Schubart (1938), os 148.054km2 de matas
antes encontrados no nordeste extremo do Brasil estavam reduzidos,
no ano de 1934, a meros 50.527km2 (34,12% da área original), dos
quais 27.234km2 pertenciam ao Ceará (42,78% da área original),
6.361km2 ao Rio Grande do Norte (47,18% da área original), 462km2
à Paraíba (2,24% da área original), 13.759km2 a Pernambuco (41% da
área original), 2.689km2 a Alagoas (34,69% da área original), e 22km2
a Sergipe (0,24% da área original). Com a mecanização da lavoura
introduzida por volta da década de 1960, a agroindústria açucareira
terminaria por ocupar todos os terrenos planos disponíveis, inclusive
os tabuleiros que haviam logrado subsistir. O derradeiro golpe seria
desferido por volta de 1979, graças à implantação de um programa
governamental para a produção de álcool combustível em larga escala,
iniciativa que desdobrou as plantações de cana-de-açúcar rumo às
áreas montanhosas e ao sertão. Entre 1981 e 1983, a destruição da
zona da mata nordestina assumiria proporções catastróficas com a
erradicação quase completa das florestas regionais e a perda de grande
parte das áreas de transição observadas entre os ambientes florestais
e as outras formações (Projeto Radam-Brasil, 1981a, 1981b, 1983).
Nesse período, os 48.611km2 de matas antes existentes do Ceará a
Sergipe estavam reduzidos a inacreditáveis 98km2 (0,20% da área
original), enquanto que os 77.907km2 de ecótonos mal chegavam a
36.981km2 (47,46% da área original). Nos dias de hoje, a paisagem
regional oscila entre um ininterrupto cinturão de canaviais costeiros
e os degradados carrascos que substituíram boa parte da caatinga
primitiva (Coimbra-Filho e Câmara, 1996).
Ao contrário do observado em algumas outras partes do Brasil, o
desbarato das paisagens naturais nordestinas não foi acompanhado de
estudos sobre a fauna local, pois a região parece ter despertado muito
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PAPAVERO e TEIXEIRA
pouco entusiasmo nos naturalistas viajantes que percorreram o país a
partir do século XVIII.
Mesmo que deixem muito a desejar, as notícias sobre a fauna
nordestina tornam-se ainda mais escassas pela crônica dificuldade de
os zoólogos e particularmente os ornitólogos conhecerem e
utilizarem uma vasta bibliografia estranha às ciências naturais que, no
entanto, abriga numerosas referências relativas aos animais brasileiros.
Dedicado a relatos descritivos de caráter geográfico, etnográfico ou
histórico, tal descaso muitas vezes termina por descartar informações
bastante significativas, inclusive descobertas inusitadas sobre a
distribuição original das mais variadas espécies. Apenas a título de
exemplo, cabe mencionar que a Chorographia da provincia da
Parahyba de 1859 (Rohan, 1911) e o Esboço fisiográfico do Ceará de
1916 (Sobrinho, 1962) reconhecem a presença da arara-canindé, Ara
ararauna, de araras-vermelhas, Ara chloroptera e/ou Ara macao, e
de uma arara-azul ou arara-preta, nitidamente um representante do
gênero Anodorhynchus. Afirmação surpreendente tendo em vista que
o único representante do gênero assinalado para o nordeste extremo
do Brasil, Anodorhynchus leari Bonaparte, 1856, hoje se encontra restrito
a duas ou três áreas isoladas do baixo rio São Francisco, tendo sido
descoberto em liberdade apenas em 1978 (Sick e Teixeira, 1980). A
julgar por essas e outras fontes, os domínios de Anodorhynchus leari
poderiam abarcar um território muito mais extenso, devendo o atual
padrão ser imputado antes a fatores históricos associados a uma intensa
ação antrópica que a qualquer determinismo ecológico. Nesse mesmo
sentido, tampouco o mutum, Mitu mitu, deve ser considerado um
táxon endêmico da floresta ombrófila densa, pois os relatos disponíveis
demonstram que essa ave, atualmente extinta e conhecida de apenas
dois exemplares oriundos de São Miguel dos Campos, Alagoas, na
verdade habitava uma área geográfica bem mais ampla, havendo notícias
fidedignas de sua ocorrência em pelo menos vinte localidades distintas
entre Pernambuco e Alagoas.
Ao contrário de seus predecessores, os zoólogos do século XX parecem
dispensar aos relatos de antigos naturalistas o mesmo descaso dedicado
às publicações estranhas às ciências naturais. Por não constituir exceção
à regra, as observações reunidas durante o período da dominação
holandesa do Brasil sempre foram objeto de grande cautela, mesmo
que a realidade dos fatos, pouco a pouco, se encarregasse de comprovar
sua veracidade. À guisa de exemplo, vale notar que as assertivas sobre
a ausência do ferreiro (Procnias averano) no Nordeste do Brasil viramse refutadas apenas com a coleta dos primeiros exemplares na década
de 1920 (Hellmayr, 1929), enquanto que todas as referências ao mutum
(Mitu mitu) permaneceram sendo atribuídas a um exemplar de cativeiro
trazido do Maranhão (apud Hellmayr e Conover, 1942) até a inesperada
redescoberta da espécie na década de 1950 (Pinto, 1952), isso sem
contarmos que a presença do periquito verde (Brotogeris tirica) na
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HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE Vol. VIII (suplemento)
OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
região seria reconhecida apenas com a obtenção dos primeiros
exemplares em 1984 (Teixeira, Nacinovic e Tavares, 1986), apesar do
lúcido relato de Marcgrave (1658) e mesmo das ilustrações dos libri
picturati (Pinto, 1978, 1942). De certa forma, tais circunstâncias conferem
um novo aspecto aos casos em que semelhante comprovação não
pode ser alcançada, conforme ocorre com as referências relativas à
guaruba (Aratinga guarouba), e ao enigmático mituporanga (Crax
fasciolata), que era conhecido da população local e parece ter
desaparecido das matas nordestinas por volta da década de 1930
(Teixeira, Nacinovic e Pontual, 1987). Contudo, o exemplo mais recente
e espetacular de que os antigos relatos seiscentistas não devem ser
vistos com escárnio diz respeito aos mamíferos, pois Callicebus coimbrai,
descrito em 1999 por Kobayashi e Langguth, não passa do mesmo
cagui relacionado por Marcgrave (op. cit.) e completamente esquecido
pelos autores contemporâneos (Hershkovitz, 1988, 1990).
Tal achado constitui um exemplo primoroso das dificuldades que
cercam a análise de antigos documentos relativos ao mundo natural,
pois esse primata parece ter sido descoberto já no limiar da extinção,
sobrevivendo apenas em alguns dos raros remanescentes florestais
localizados no litoral de Sergipe (Projeto Radam-Brasil, 1983). Bastaria,
portanto, eliminar essas poucas matas residuais para que a espécie
desaparecesse e os registros do século XVII a seu respeito passassem
a ser atribuídos, com toda probabilidade, a um exemplar cativo trazido
de outra parte do país, pois não existiriam provas concretas de que
tais macacos ocorressem na região. Afirmativa capaz de ganhar foros
de verdade incontestável caso houvesse uma hipótese biogeográfica
qualquer que não contemplasse ou proibisse semelhante possibilidade.
De fato, não deixa de ser oportuno constatar que o desairoso papel
reservado pela maioria dos contemporâneos aos antigos relatos também
se estenda a antigos exemplares zoológicos coletados muito além de
sua tradicional área de ocorrência. Em vez de despertar a curiosidade
e a inquietação dos interessados, tais espécimens são comumente
atribuídos a erros de rotulagem ou simplesmente esquecidos em
uma das periódicas e convenientes crises de amnésia observadas em
determinados círculos. Este parece ter sido o destino reservado a
parte do material reunido por C. A. Craven em Pernambuco durante
o último quartel do século XIX, pois essa coleção inclui algumas aves
amazônicas, como Aratinga weddellii e Malacoptila rufa, que jamais
voltaram a ser assinaladas para o Nordeste do Brasil (Salvadori, 1891;
Sclater e Shelley, 1891). O mesmo ocorre nas mais diversas partes do
mundo com viajantes e/ou coletores de maior prestígio, conforme
atesta o limbo ao qual foi relegado o enigmático Megapodidae da
Nova Caledônia, assinalado durante a segunda viagem do capitão
Cook. Ovos atribuídos a essas aves foram enviados ao British Museum
(Natural History) e até mesmo basearam a descrição de uma nova
espécie, que terminaria sendo ignorada posteriormente por contrariar
JUL.-AGO. 2001
1025
PAPAVERO e TEIXEIRA
as idéias já estabelecidas sobre a distribuição do grupo (Balouet e
Olson, 1989; Olson, 1990).
Encarados com reservas na primeira metade do século XX, os relatos
antigos terminariam por desaparecer por completo das publicações
ornitológicas mais recentes, que parecem desconhecer até mesmo
registros dos últimos cem anos já consagrados na literatura especializada.
No mais das vezes, uma restrição cada vez maior das fontes bibliográficas
redundaria em conclusões bastante esdrúxulas sobre a área de ocorrência
original de diversas espécies, propiciando a montagem de verdadeiros
artefatos amostrais destinados a exercer forte influência sobre estudos
biogeográficos e ecológicos. De acordo com algumas análises
disponíveis, a anhuma (Anhima cornuta) não teria sido assinalada
para o Nordeste do Brasil (apud Hoyo et alii, 1992) e habitaria apenas
os brejos de água doce (Stotz et alii, 1996) assertiva das mais
peculiares, tendo em vista tratar-se de uma ave encontrada em diversos
tipos de paisagens alagadas, descrita a partir do texto de Marcgrave
(1648) e de outros autores da época, motivo que levaria o Nordeste do
Brasil a ser escolhido como a localidade-tipo da espécie (Hellmayr,
1908). Entre vários outros exemplos, algo semelhante seria mencionado
para o arapapá (Cochlearius cochlearius) (Hoyo et alii, op. cit.; Hancock
e Kushlan, 1984), a marreca-ananaí (Amazonetta brasiliensis), e a
marreca-toucinho (Anas bahamensis) (Hoyo et alii, op. cit.; Madge e
Burn, 1988), além de diversos psitácidas como a arara-canindé (Ara
ararauna), e as araras-vermelhas (Ara macao e/ou Ara chloroptera).
Na verdade, o motivo que levaria determinadas fontes (Hoyo et alii,
1997; Juniper e Parr, 1998) a considerar certos representantes do gênero
Ara como aves jamais assinaladas para o nordeste extremo do Brasil
constitui um autêntico enigma, haja vista que a descrição de Ara ararauna
se encontra parcialmente baseada no relato de Marcgrave (op. cit.) e
que Pernambuco foi designado como localidade-tipo da espécie desde
o começo do século (Hellmayr, 1906). Não chega a causar grande
comoção, portanto, a risível afirmativa de que o primeiro registro de
Ara chloroptera para os domínios da caatinga teria sido levado a cabo
no Piauí entre 1987 e 1991 (apud Olmos, 1997).
Ainda que possa parecer desalentadora, a existência de erros
grosseiros não deveria constituir uma novidade em si, pois estabelecer
a verdadeira área de ocorrência das diferentes espécies animais
constitui tarefa muito mais complexa e trabalhosa do que supõe a
grande maioria. Na realidade, mudanças climáticas e outros fenômenos
da mesma magnitude estão longe de representar os únicos fatores
envolvidos, já que profundas alterações no mundo natural,
desencadeadas por ações antrópicas ao longo da trajetória da
humanidade, não podem ser desprezadas. Constitui grande surpresa,
contudo, que a maioria dos autores empenhados no estudo da
biogeografia silencie sobre o assunto, pois tal lacuna muitas vezes
se confunde com uma aceitação tácita de que a distribuição dos animais
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HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE Vol. VIII (suplemento)
OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
na superfície do globo teria permanecido essencialmente a mesma
durante o período de estabilidade climática observado nos últimos dez
mil anos, regra quebrada apenas pela indefectível perda de
biodiversidade contemporânea. Esta parece ser, de fato, a opinião de
uma parcela bastante significativa dos biólogos contemporâneos, apesar
de não faltarem evidências de que há muito o homem vem exercendo
sua capacidade de promover grandes mudanças na composição das
comunidades animais e na própria paisagem de amplos espaços
geográficos. Na verdade, o exame de depósitos datados de 2300 a 576
a. C. apontam que Antigua, uma das Pequenas Antilhas, teria perdido,
pouco a pouco, várias de suas espécies de mamíferos, aves e répteis
pela ocupação humana, processo aparentemente generalizado entre as
ilhas do Caribe (MacPhee e Flemming, 1999; MacPhee, Flemming e
Lunde, 1999; Reis e Steadman, 1999; Steadman, Pregill e Olson, 1984).
Outros indícios sugerem que as primeiras populações indígenas
poderiam ter realizado translocações e/ou introduções de aves e
mamíferos de importância econômica entre as diferentes ilhas ou até
mesmo com o continente (Olson, 1982).
Todavia, as informações mais conclusivas nesse sentido dizem
respeito às ilhas do Pacífico, pois os estudos levados a cabo no Havaí
indicam que parte considerável da avifauna local e dos próprios
ambientes de baixada já havia sido dizimada pelos polinésios bem
antes da chegada dos europeus, os quais tiveram a oportunidade de
registrar apenas uma fração dos animais e plantas antes encontrados
no arquipélago. Ao que parece, 50% da avifauna das ilhas havaianas
teria desaparecido, percentual capaz de atingir 69% no caso de Ohau
e 71% no de Maui. Pelos mesmos motivos, a Nova Zelândia teria
perdido 46% de suas aves, a Nova Caledônia pelo menos 40% dos nonpasseres; as Marquesas, entre 55% e 69% da avifauna nativa, conforme
a ilha considerada, a ilha de Huahinea, 78% e a de Mangaia, 80%. Os
efeitos dessa derrocada atingiriam os rincões mais remotos do Pacífico
Sul, pois até mesmo a ilha Henderson, tida como deserta desde sua
descoberta em 1606, perdeu 43% da avifauna nativa, após ter sido
colonizada e abandonada pelos polinésios entre os séculos XII e XV.
Além de alterar profundamente a distribuição das aves que lograram
sobreviver, o processo de ocupação humana do Pacífico eliminaria por
completo grupos inteiros entre os Threskiornithidae, Anatidae,
Megapodidae, Rallidae etc., estando os representantes incapazes de
voar entre os primeiros a ser riscados do mapa, conforme demonstra o
caso clássico das cerca de 12 espécies de moas (Dinornithiformes)
antes conhecidas da Nova Zelândia. Como um todo, estima-se que
mais de duas mil espécies de aves podem ter sido extintas nas ilhas do
Pacífico tropical graças à ação antrópica, cifra espantosa que representa
20% do total de espécies de aves existentes no planeta. Por não levar
em conta esse quadro, parcela razoável dos estudos referentes à
sistemática, evolução e ecologia das aves encontradas nas ilhas do
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1027
PAPAVERO e TEIXEIRA
Pacífico teria sido induzida a sérios erros ou revelar-se-ia um mero
desperdício de esforço (Athens, Kaschko e James, 1991; Balouet e
Olson, 1989; James e Olson, 1983; James et alii, 1987; Olson, 1990,
1989; Olson e James, 1984, 1982; Steadman, 1995, 1989, 1985; Steadman
e Olson, 1985).
As profundas alterações no mundo natural promovidas pelas ações
antrópicas dos últimos seis mil anos não estiveram restritas aos frágeis
ambientes insulares, embora sua ação em grandes massas continentais
usualmente assuma aspectos bastante complexos e se revele bem
mais difícil de comprovar em face da própria extensão do espaço
geográfico envolvido. Entre os vários exemplos nesse sentido, talvez
um dos mais notáveis seja conferido pelas pesquisas de Bodenheimer
(1960) acerca dos animais do Egito e do Oriente Médio, estudos que
terminaram por desenhar uma fauna muito diversa da atual e até
mesmo daquela registrada durante a alta Idade Média. Apenas à
guisa de ilustração, vale comentar que os tigres (Panthera tigris)
(Lineu, 1758) sobreviveram nas vizinhanças do mar Cáspio pelo menos
até 300 a. C., ao passo que os leões (Panthera leo) (Lineu, 1758)
desapareceram do Iraque apenas no século XIX. Hoje restrita ao
Paquistão, Índia e Bangladesh, a cervicapra (Antilope cervicapra)
(Lineu, 1758) chegou a ser comum na Mesopotâmia, enquanto que o
elefante indiano (Elephas maximus) (Lineu, 1758) ainda ocorria no
alto Eufrates e talvez também em Antióquia, até 1000 a. C. Encontrados
nos dias de hoje apenas ao sul do Saara, a girafa (Giraffa
camelopardalis) (Lineu, 1758), o hartebeest (Alcelaphus busephalus)
(Pallas, 1776) e o licaonte (Lycaon pictus) (Temminck, 1820) existiram
no Egito até o final do período pré-dinástico (3100 a. C.), cabendo
notar que esse último chegou mesmo a ser domesticado para a caça
de gazelas e antílopes. Além de mover uma perseguição sem trégua
aos elefantes do Norte da África após as guerras Púnicas (264-146 a.
C.) (Toynbee, 1973), os romanos quase exterminaram os hipopótamos
por causa dos grandes prejuízos causados às plantações nas margens
do Nilo, um dos motivos que levaria esse mamífero a ser erradicado
da região por volta do século XII. Os ouriços (Atelerix algirus)
(Lereboullet, 1842), as civetas (Viverra civetta) (Schreber, 1776), certas
gazelas (Gazella spp.), um gavião (Melierax gabar) (Daudin, 1800), o
waldrapp (Geronticus eremita) (Lineu, 1758) e o crocodilo (Crocodilus
niloticus) (Laurenti, 1768) teriam sido extintos do Egito antes do século
XVIII, enquanto que o orix (Oryx gazella) (Lineu, 1758), o addax
(Addax nasomaculatus) (Blainville, 1816), o avestruz (Struthio
camelus) e o íbis sagrado (Threskiornis aethiopicus) (Latham, 1790)
perdurariam até o começo do século XIX.
Por não recuar tanto no tempo quanto a grande maioria dos casos
anteriores, as fontes históricas disponíveis sobre o Nordeste do Brasil
constituem prova eloqüente de que alterações muito significativas na
composição e distribuição dos animais podem acontecer no intervalo
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HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE Vol. VIII (suplemento)
OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
de apenas algumas centenas de anos. Com efeito, o material produzido
durante o domínio holandês e outros relatos dos séculos XVII e
XVIII configuram uma realidade bastante diversa da atual, que se
encontra caracterizada por uma ausência quase completa de paisagens
florestais, formações interioranas cada vez mais áridas e terrenos
alagados em franca retração. Não deve causar surpresa, portanto,
que grande parte das espécies das matas secas ou úmidas do Nordeste
tenha sido extinta ou caminhe a passos largos para a extinção,
enquanto que várias das aves aquáticas desapareceram ou se tornaram
tão raras que a combalida literatura ornitológica contemporânea não
encontra grande dificuldade em desconhecer os antigos registros
existentes.
A exemplo de outras áreas sob intensa ocupação humana, observase uma acentuada perda das espécies de maior porte, processo marcado
pela desaparição completa, ou quase completa, das emas (Rhea
americana), jaburus (Jabiru mycteria), anhumas (Anhima cornuta),
araras (Ara spp.), grandes gaviões (Accipitridae) etc. (Teixeira et alii,
1986). A mesma tendência ocorreria em relação aos mamíferos, pois os
últimos estudos sobre esse grupo zoológico levados a cabo na região
primam pela ausência de qualquer alusão às antas (Tapirus terrestris)
(Lineu, 1758), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), e várias
outras espécies assinaladas durante o domínio holandês, enquanto
certos táxons, como a onça-pintada (Panthera onca), são mencionados
apenas de forma muito condicional (Eisemberg e Redford, 1999; Mares,
Willig e Lacher, 1985; Mares, Willig, Streilen et al., 1981; Willig e
Mares, 1989). Na verdade, a atual distribuição de Anodorhynchus leari,
Cyanopsitta spixii e de várias outras aves deve ser entendida como um
artefato de origem antrópica que pouca semelhança guarda com a
provável área de ocorrência da espécie há alguns poucos séculos,
fenômeno também observado em relação a diversos mamíferos
nordestinos como Allouata belzebul (Lineu, 1766) (Coimbra-Filho e
Câmara, 1996; Langguth et alii, 1987). Por conseguinte, tampouco parece
necessário recuar ao pleistoceno para explicar a propalada falta de
adaptação da fauna local às condições de aridez (apud Mares, Willig
e Lacher, op. cit.; Mares, Willig, Streilen et al., op. cit.; Vivo, 1997), pois
semelhante paradoxo talvez derive apenas de a caatinga ter sido uma
paisagem bem mais arbórea e muito menos árida em um passado nada
remoto (Coimbra-Filho e Câmara, op. cit.).
Por outro lado, as fontes históricas propõem alguns problemas que
podem nunca vir a ser resolvidos de forma satisfatória, conforme
demonstra a discussão sobre a possível ocorrência de aves como o
guará (Eudocimus ruber) e a guaruba (Aratinga guarouba) no Nordeste
do país. No entanto, os indícios mais intrigantes dizem respeito a
eventuais espécies extintas que jamais chegaram a ser descritas ou cuja
existência vem sendo objeto de acirradas controvérsias, como talvez
seja o caso de alguns psitácidas. Nesse particular, o exemplo do tucana
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1029
PAPAVERO e TEIXEIRA
de Marcgrave (1648) revela-se curioso ao extremo, pois a sucinta descrição
disponível parece não corresponder a nenhum Ramphastidae conhecido,
embora guarde certa semelhança com um estranho araçari de
procedência ignorada, retratado na Coleção Niedenthal. A questão tornase ainda mais complexa pelo fato de essas ilustrações estarem claramente
baseadas em uma ave viva e também representarem um exemplar de
Pteroglossus aracari, espécie muito comum no Nordeste do Brasil,
várias vezes figurada pelos holandeses.
O pressuposto de que a distribuição de numerosos animais pode ter
sofrido profundas alterações durante os últimos séculos apresenta sérios
reflexos em termos de nossa visão do mundo natural. Por conseguinte,
boa parte dos padrões observados nos espaços geográficos que sofreram
uma influência antrópica de certa magnitude deve ser entendida como
um artefato construído pelo homem em um período relativamente curto,
em vez de representar a expressão de fenômenos naturais observados
ao longo do processo evolutivo. Como esse fenômeno costuma produzir
áreas de ocorrência que pouca semelhança guardam com as originais, a
tentativa de basear hipóteses de sistemática, evolução e ecologia apenas
nos registros atuais revela-se no mínimo temerária, sobretudo tendo em
vista que mesmo os locais mais remotos do planeta podem reservar
surpresas bastante inesperadas quanto a uma antiga e insuspeita ocupação
humana.
No que diz respeito ao nordeste extremo do Brasil e a outras
regiões que perderam grande parte de suas paisagens naturais, a
existência de padrões artificiais deve constituir antes a regra do que
a exceção, com o agravante de que ocorrências relituais podem ser
facilmente alteradas a curtíssimo prazo por fatores tão variados e
imponderáveis como a cobiça de um proprietário, um incêndio acidental
ou mesmo um simples gato faminto. Não parece impossível, portanto,
supor que diversas áreas isoladas com um alto número de endemismos
não passem de meros artefatos, em lugar de representar o produto de
intricados fenômenos evolutivos, ou que a ação antrópica possa produzir
numerosos casos de alopatria entre táxons aparentados, os quais
constituiriam exemplos perfeitos para a demonstração do princípio
da exclusão competitiva (Gause apud Lincoln et alii, 1984) e/ou do
conceito de espécie geográfica ou superespécie (Haffer, 1974; Mayr,
1969) se não tivessem sido criados pelo homem há poucos séculos.
Conforme mencionado por Olson (1990), a hipótese biogeográfica
proposta por MacArthur e Wilson (1967) viu-se bastante abalada pela
descoberta de que o modelo utilizado, a avifauna das ilhas do Pacífico,
sofreu forte influência dos polinésios, que alteraram sobremaneira a
distribuição original de várias espécies e promoveram uma autêntica
extinção em massa muito antes da chegada dos primeiros exploradores
europeus.
Nesse mesmo sentido, as observações de Teixeira et alii (1986)
sobre as matas nordestinas abrigarem uma avifauna típica das terras
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HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE Vol. VIII (suplemento)
OS VIAJANTES E A BIOGEOGRAFIA
altas e outra das baixadas costeiras devem ser encaradas com grande
suspeita, pois nada impediria que semelhante padrão resultasse dos
azares de uma intensa ação antrópica sobre um número muito limitado
de remanescentes florestais, os quais lograram subsistir exatamente por
estarem situados em áreas de difícil acesso, como as vertentes mais
íngremes das serras e os estreitos vales encaixados típicos dos tabuleiros
litorâneos. De fato, algumas espécies conhecidas apenas das matas de
altitude (p. ex., Terenura sicki Teixeira e Gonzaga, 1983, Procnias
nudicollis e Iodopleura leucopygia Salvin, 1885) terminariam sendo
assinaladas em terrenos mais baixos (Almeida e Teixeira, 1997; Teixeira,
1987; Teixeira et alii, 1990), enquanto que a tradição oral, velhos registros
e a própria toponímia da região registram a presença de Mitu mitu e
outras aves supostamente próprias das florestas litorâneas para áreas
mais altas (Teixeira e Papavero, 1999). Na verdade, mesmo a simples
tentativa de estabelecer a área de ocorrência original de uma dada
espécie pode representar uma tarefa bem mais complexa e trabalhosa
do que supõe a grande maioria dos autores atuais (Bibby et alii, 1992;
Wege e Long, 1995).
Além de conferir maior nitidez à importância de estudos capazes
de integrar acervos zoológicos com fontes históricas, etnográficas e
arqueológicas, a existência de padrões de distribuição absolutamente
artificiais lança sérias dúvidas sobre determinados aspectos relativos à
conservação da diversidade biológica do planeta. Mais do que preservar
a diversidade remanescente, boa parte das iniciativas atuais pretende
garantir a continuidade de uma suposta herança natural que, ao menos
em alguns casos, possui apenas alguns séculos de existência. Semelhante
paradoxo pode levar às mais curiosas deformações em termos das
prioridades e políticas a serem adotadas, conduzindo muitas vezes a
ações inócuas ou destinadas ao fracasso, por contemplarem apenas
aspectos tópicos e/ou cometerem sérios erros de premissa. Considerando
o elevado prestígio que o mercado persa da conservação atribui às
áreas jamais tocadas pelo homem e aos pretensos refúgios ancestrais,
parece bem mais provável que a existência desses artefatos seja ignorada
como uma simples inconveniência, produto de métodos pouco
ortodoxos que utilizam velhos documentos e outras fontes pouco
convencionais para obter resultados discutíveis. Nesse sentido, não
deixa de ser curiosa a constatação de que as restrições cada vez maiores
impostas à coleta de espécimens zoológicos vêm reduzindo a ornitologia
contemporânea a um somatório de relatos bem inferior aos dos
séculos XVII e XVIII, pois as listagens produzidas sequer contêm
elementos descritivos que permitam submeter a identidade das espécies
assinaladas a qualquer tipo de teste.
Por último, cumpre reconhecer que a ocorrência de tais artefatos
pode ser de difícil aceitação por motivos bem menos mundanos, entre
os quais se destaca o perpétuo fascínio exercido pelo mundo natural
sobre uma humanidade cada vez mais citadina. Não constituindo em
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1031
PAPAVERO e TEIXEIRA
absoluto um fenômeno recente (Schama, 1996), essa atração quase
sempre reflete o sonho libertário que identifica a paisagem natural, seja
ela silvestre ou pastoril, com a nostalgia de uma Idade de Ouro imaginária
e fabulosa, a fuga de uma realidade social sombria ou a reconquista de
uma promessa de grandeza capaz de afastar o peso insuportável de um
cotidiano de pequenas mazelas. No entanto, esse sentimento carrega
uma pesada carga de ambigüidade, pois o verdadeiro mundo natural,
feito de silêncio, caos e noite antiga, prossegue tão hostil e inóspito
quanto na aurora dos tempos, maldição a ser combatida com todas as
forças e todos os meios, por mais que os discursos vigentes afirmem o
contrário. Apenas sua derrota permitirá a plenitude do mito, pois é em
torno desse adversário vencido e inerme que se consolida a visão
idílica da paisagem natural como um autêntico jardim das delícias,
fantasia construída sobre tristes remanescentes domesticados que variam
entre a casa de campo, o bosque suburbano e o parque nacional.
Ao macular uma natureza que se pretende intocada pela mão
humana, a história passa a ser inimiga do mito e conduz a uma indesejada reflexão sobre o cunho utilitarista que sempre marcou as relações
do Ocidente com o universo natural. Além de afastar qualquer sonho
de remissão, esse perambular pelas trevas adquire contornos quase
profanos, ao trazer do passado uma imagem tão inesperada e angustiante,
frágil desenho composto de documentos esfacelados, frases incompletas
e velhas figuras, farrapos de uma memória cada vez mais gasta e débil,
último refúgio de um mundo que não mais existe sob o sol. Estranho
oráculo esse, cuja indizível crueldade condena à renovada lembrança
de florestas sem fim e do grito das aves a escurecer o céu em um
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