Revista Brasileira de Sociologia | Vol. 05, No. 10 | Mai/Ago/2017
Artigo recebido em 10/03/2017/ Aprovado em 20/06/2017
http://dx.doi.org/10.20336/rbs.214
10.20336/rbs.214
Razão e cidade moderna*1
Rogerio Proença Leite**2**
“Nosso pessimismo: o mundo não vale
tanto quando acreditávamos”
(F. Nietzsche)
RESUMO
Como parte do projeto moderno, a cidade foi erguida como símbolo de uma
racionalidade que supostamente libertaria. Dizer que a cidade é moderna e a
modernidade é urbana implica entender como a razão moderna modelou os
modos de vida urbanos e, por sua vez, como essa vida urbana e a cidade se
tornaram materialidades históricas dessa razão moderna. Importa entender
como a cidade moderna, assente numa concepção específica de razão e de
viver urbano, constitui-se em parte do projeto racional da modernidade e de
que forma a cidade contemporânea, em sua crescente complexidade, parece
ruir em face às promessas emancipatórias não realizadas pela modernidade.
Palavras-chaves: Cidade; Modernidade; Razão.
*
Esse artigo é parte da pesquisa “Cidade Atópica: ensaios sob a consumação urbana”,
resultante de um Estágio Sênior de Pós-Doutoramento em Sociologia, realizado em
2014/2015, no Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra, Portugal, com bolsa CAPES (Proc. 1892/14-2), Ministério da Educação,
Brasil.
** Professor Titular de Sociologia da UFS. Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP),
com Pós-doutorado em Sociologia (U. Coimbra). Pesquisador do CNPq e docente
do PPGS/UFS. É professor colaborador do Mestrado em Preservação do Patrimônio
do IPHAN/RJ. Atua como Consultor do IPHAN/UNESCO na área do Patrimônio
cultural e cidades.
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ABSTRACT
REASON AND MODERN CITY
As part of the modern project, the city was erected as a symbol of a rationality that
would make the being free. To say that the city is modern and modernity is urban
implies understanding how modern reason has shaped urban ways of life and, in
turn, how urban life and the city have become historical materialities of this modern
reason. It is important to understand how the modern city, based on a specific conception of reason and urban living, is part of the rational project of modernity and
how the contemporary city, in its increasing complexity, seems to collapse in the face
of the emancipatory promises not fullfiled by modernity.
Keywords: City, Modernity, Reason.
Embora se saiba que tenha existido formas dispersas de vilas, pequenas
cidades, aglomerados de moradia humana ou mesmo de algumas cidades de
maior complexidade na Grécia, Mesopotâmia, China e antigas nações islâmicas1, a cidade – em sua mais abrangente e atual configuração – é moderna;
e a modernidade, por sua vez, em toda a sua amplitude racional e técnica,
é urbana. Uma não existiu e nem poderia existir sem a outra. Uma criou as
condições funcionais e estéticas para o surgimento e manutenção da outra.
O termo “moderno”, por sua vez, é anterior à chamada modernidade ocidental: Habermas sugere ter sido usado a primeira vez no século
V para diferenciar o tempo cristão do passado pagão de origem romana
(2013, p. 37). Estima-se que teria sido o Papa Gelasius, no ano de 476,
o primeiro a usar o termo, ao classificar as conclusões do Concilio da
Macedônia como admonitiones modernae.2 De facto, alguns historiadores
associam cristandade à modernidade, embora para muitos essa origem
esteja mais no renascimento italiano e no romantismo do século XIX. Ao
menos a relação mais densa entre cidade e modernidade se deve ao período após a reurbanização do ocidente no contexto da sociedade industrial
emergente.
A relação entre cidade e modernidade pode – e deve – ser considerada
histórica e ontológica. Histórica porque a lenta reurbanização da Baixa Idade
Média foi-se aos poucos se configurando na necessária geografia urbana para
1
2
Cf. François Ascher (1995); Pierre Grimal (2003); Leonardo Benévolo (2004 e 2005).
Para uma genealógica do termo, cf. Feres Jr. (2010).
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a economia manufatureira que abriu caminho para a intensificação do comércio e a subsequente pré-industrialização da Europa. Ontológica porque
o ser urbano – na dimensão dos modos de vida urbanos e das sociabilidades públicas típicas da vida nas cidades – deve ser considerado circunscrito
a uma genealogia que (se) cria um novo tipo de ser nas relações urbanas.
Desde muito, a cidade, tal como a conhecemos a partir sobretudo do século
XIX, foi talvez a experiência política e econômica mais “bem-sucedida” da
modernidade, possivelmente até mais do que o próprio Estado-nação. Ela
deu materialidade ao projeto moderno e foi, reflexivamente, forjada pela modernidade.
Dessa complexa relação entre cidade e modernidade, parece ainda oportuno indagar sobre o grau de subsunção dos principais aspectos que podem
configurar uma cidade como cidade, a partir dos níveis das transformações
urbanísticas nela ocorridas. De igual modo, parece necessário pensarmos se
ainda seria válido pensar naquele velho adágio sobre a liberdade urbana: os
ares da cidade libertam.
Para atualizar a indagação sobre a possível liberdade urbana, devemos
perguntar inicialmente sobre qual cidade estamos a nos referir. Sobretudo
quando a relação entre individualidade e massificação expressam as duas
faces da racionalização econômica do mundo. Quando este adágio supostamente foi dito, em meio às crises intensas de falência do sistema feudal,
fazia-se todo sentido pensar nos ares libertadores das cidades burguesas
emergentes. Mas hoje, em contextos de cidades tão desiguais em suas inserções socioeconômicas globais e populações em situações de vida precárias e
altamente vulneráveis, poderíamos manter viva a ideia de liberdade em um
provérbio semelhante para a maioria das cidades mundiais, ou mesmo para
boa parte das cidades de médio e pequeno porte?
1. Cidade e trabalho: a servidão urbana
Um importante aspecto dessa relação entre cidade e modernidade consiste na proximidade física que sempre nutriu os interesses e as necessidades
das pessoas em residirem e trabalharem próximas umas das outras. O labor
foi possivelmente a primeira forja da vida na cidade, na medida em que a
divisão social do trabalho exigia, para a execução da produção parcelada,
a proximidade física dos diferentes artífices. Este viver “juntos”3, contudo,
3
Cf. Richard Sennett (2013).
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não foi propriamente uma experiência cooperativa bem sucedida. Como
nos interessa menos o labor em si do que a expressão urbana da economia
moderna ou, para usar uma expressão de Georg Simmel (2011), a face
monetária da vida urbana moderna, cabe destacar o sentido pretensamente
emancipador que o trabalho na cidade supostamente teve em dado momento
da modernidade.
Fonte: imagem do filme Metrópolis de Fritz Lang, 1929.
Acervo de imagens do Labeurc
O trabalho racional, pautado na mão-de-obra urbana e assalariada, e voltado à produção em larga escada de valores-de-troca, foi umas das promessas
não compridas de emancipação da modernidade. Em princípio, a ideia do
trabalho assalariado como forma de emancipação dos laços servis foi sem
dúvida um apelo razoável no horizonte das relações pré-capitalistas. E mais
do que um apelo emancipatório dos estamentos mais baixos, o apelo à produção excedente foi vital para a acumulação capitalista. Contudo, a transformação extensa da própria força de trabalho na mais eficaz mercadoria para
gerar mais-valia não tardou a mostrar a fisionomia violenta de todo o processo civilizatório do capitalismo moderno. Como Marx sugeriu, o capital libertaria o ser da servidão da terra, mas o acorrentaria nas amarras do fabrico
industrial, alienando a todos e a tudo transformando em mercadoria. Esse
aparente labirinto sem saída da racionalidade moderna, a que Max Weber
chamou de “gaiola de ferro”, revelou a inescapável contradição que o trabalho na modernidade encerraria: ao mesmo tempo em que contribui para as
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pessoas superarem as privações das necessidades econômicas pela produção
numa vida socialmente compartilhada, fê-las presas de uma lógica autofágica da produção. Ao invés de libertar, o trabalho as teria aprisionado de novo.
E a cidade, espaço racional4 da convergência política e funcional dessa modernidade, ressurge na história recente do urbanismo ocidental como a mais
contundente expressão do esgotamento dessa almejada liberdade.
A paisagem urbana desse trabalho racional, relativamente estereotipada
na Metrópolis de Fritz Lang, não foi exatamente um exagero ao retratar filas
intermináveis de trabalhadores robotizados a funcionar como engrenagens
da mecânica capitalista. Em certo sentido, a cidade industrial recém-instalada na segunda metade do XIX reproduziu em seus espaços arquitetônicos a
funcionalidade necessária para esta nova forma de viver a cidade. Essa adequação urbanística conheceu sua expressão mais paradigmática em algumas
cidades inglesas, cujo relato de Friedrich Engels5 ajudou a tornar célebre.
A descrição de Engels sobre as condições de miséria extrema, insalubridade, segregação e mortes nos modos bairros operários ingleses, sobretudo em
Londres e Manchester, tornou-se em uma das mais contundentes narrativas
acerca da vida urbana do século XIX.
[...] estes londrinos tiveram que sacrificar a melhor parte da sua qualidade de homens para realizarem todos estes milagres da civilização
de que a cidade regurgita [...] Esta indiferença brutal, este isolamento
insensível de cada indivíduo no seio dos seus interesses particulares,
são tanto mais repugnantes e chocantes, quanto é maior o número
destes indivíduos confinados neste reduzido espaço [...] (ENGELS,
2004, p. 63)
A ideia de multidão e confinamento sempre foi um tema muito presente na literatura acerca das cidades modernas. O adensamento demográfico
em áreas industriais disseminou muitas formas de habitações precárias e
de baixo custo que viabilizaram a inserção dos operários no circuito industrial emergente. A precariedade, contudo, não era apenas das moradias. As
4
5
De saída, devemos entender por “racionalidade” um conjunto lógico de deposições e
propensões ao agir, mediado pela vontade normativa de se almejar uma verdade igualmente
normativa e o êxito, entendido como finalidade coerente do objetivo pretendido. A razão
clássica, centrada no sujeito, e assim entendida, seria um procedimento orientado pelas
noções normativas de correto e verdade, assimiladas socialmente (Habermas, 2000).
Cf. Friedrich Engels (2004).
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cidades industriais não estavam preparadas para um rápido crescimento
portuário e nem possuíam vias axiais adequadas ao escoamento urbano da
produção. A chegada dos bondes elétricos em substituição aos veículos de
tração animal reanimou o debate sobre a necessidade das grandes reformas
urbanas, já embaladas na efervescente discussão política sobre a importância de se construir uma nova imagem da cidade burguesa-industrial.
Fonte: Cidade de Manchester, finais do século XIX.
Acervo de imagens do Labeurc
Após a primeira grande reforma de adequação estética, funcional e política da cidade de Paris, feita pelo então prefeito da cidade, o Barão Georges
Eugène Haussmann6, outras experiências se disseminaram, a exemplo da paradigmática reforma de Viena, que a deixou conhecida como a Viena da Ringstrasse. Além de promover uma readequação funcional do centro de Viena,
a reforma ficou conhecida pela excessiva monumentalidade imputada a um
cenário urbano que pretendia expressar e celebrar a grandeza dos espaços
como signos da amplitude do poder da burguesia emergente7.
As reformas do Ring incluíam, além da monumentalidade do poder da Rathaus, uma sofisticada clivagem dos espaços habitacionais. Como ressalta Carl
Schorske (1990), o bairro aristocrático Schwarzenberg e o bairro burguês Têxtil representavam áreas de visibilidade do prestígio social dos seus moradores.
6
7
Cf. Leite (2007; 2009; 2013a; 2013b).
Cf. Carl Schorske (1990).
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Fonte: Viena, foto de autor não identificado. Acervo de imagens do Labeurc
Na sensação de grandeza, criada pela monumentalidade dos edifícios e pelas
ruas largas da Ringstrasse, ressurge um paradoxo liberal do mundo moderno:
ao mesmo tempo em que uma arquitetura celebra o individualismo como recurso simbólico da liberdade burguesa, cria espaços atomizados que concorreram para acentuar aquela dimensão inevitável e quase existencial de estarmos
condenados à “liberdade”. Parece de fato um contrassenso, conceitual e lógico.
Quem é livre não poderia estar condenando a nada, nem mesmo a manter-se
livre. Isso não seria liberdade, seria uma espécie de prisão às avessas. Parece
ser exatamente essa a “liberdade” que se atribui ao ser imerso no mundo do
trabalho e, anonimamente, submerso na multidão moderna. Ele é “livre” em
sua individualidade; mas totalmente cerceado em suas possibilidades transgressivas. Resta-lhe comportar-se como aquele blasé de Simmel, que se refugia na
indiferença como forma de não se reduzir a uma expressão monetária que a
todos homogeneíza. Mas isso não torna o blasé mais “livre”, apenas criaria uma
compensação psicológica, mediante os processos massificadores da monetarização do mundo (SIMMEL, 2011).
A modernidade é, para Simmel e Baudelaire, formas distintas de estar
inserido na multidão. Para o primeiro, a multidão é a expressão monetária da
massa uniforme que somente a atitude blasé de indiferença consegue sobreviver na realidade urbana. Para Baudelaire, a multidão é uma possibilidade
de exploração quase poética do flâneur:
A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o
dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o per-
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feito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar
residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e
no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer
que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer
oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos
independentes, apaixonados imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda
parte do fato de estar incógnito. (1996, p.20)
Se por um lado a cidade moderna inventou a multidão como liberdade impessoal, por outro elevou as restrições para que o trabalho pudesse
contribuir para essa mesma liberdade. A relação entre trabalho, liberdade e
vida urbana não é uma concepção exclusivamente moderna, embora tenha
ganhado relevo na modernidade. Desde a antiguidade que se tenta vincular
a ideia de liberdade com a de cidade, tendo o trabalho como pêndulo propulsor. Contudo, na antiga Polis, havia uma inversão do sentido privativo da
vida íntima em relação ao individualismo recluso defendido pela modernidade. Na antiguidade, como a casa estava relacionada a tarefas administrativas familiares, a residência era associada ao estado da necessidade8, de “privação” a essas necessidades da vida familiar, em contraposição à “liberdade”
e “igualdade” da vida pública da πλατεία e do convívio social.
Como Hannah Arendt (1987) aventou em sua análise sobre o labor na
condição humana, a individualidade grega se externava no plano público
porque o âmbito da vida privada estava delimitado pela satisfação das necessidades de sobrevivência. Havia, contudo, uma concepção de vida “civilizada”, aportada no direito da propriedade e garantida pelo direito doméstico
na pólis grega. A noção de interesse público esteve coligada à preponderância dos significados da vida pública em relação à vida familiar e religiosa. A
ideia de igualdades estava, assim, relacionada à ideia de realização pessoal9:
Pertencer aos poucos iguais (homoioi) significava ter a permissão de
viver entre pares; mas a esfera pública em si, a pólis, era permeada
de um espírito acirradamente agnóstico: cada homem tinha constantemente que se distinguir de todos os outros, demonstrar através de
8
9
Cf. Arendt (1987); Finley (1994); Coulanges (2006).
Ideia de igualdade que na sociedade contemporânea vai encarnar o mito da igualdade pela
transformação de todos em ser-valor (essa concepção será mais adiante desenvolvida)
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feitos ou realizações singulares, que era o melhor de todos (ain aristeuein) (Ibid., 51).
A ideia de uma esfera intima relacionada aos afazeres da produção
doméstica também é abordada por Habermas, em The Structural Transformation of the Public Sphere. Habermas associa a “desprivatização” das
funções econômicas da família no capitalismo industrial com o surgimento de uma “esfera social repolitizada”, com o deslocamento da produção
familiar (oikos) para o âmbito do mercado, processo através do qual surge também a esfera pública burguesa10. Para Habermas, essa reordenação
da vida econômica incide, no século XVIII, no deslocamento político e
cultural da representatividade pública da corte (associada à autoridade
individual da nobreza como personalidade pública). Seria neste contexto que a vida urbana passar a dar suporte a uma emergente esfera pública burguesa, através das coffee-houses e das práticas de leitura (formação
de um público leitor) e crítica literária em ambientes públicos. Em relação à cultura da corte, os cafés significam que as discussões políticas começavam a deixar os salões da corte e a se tornar mais participativas11.
Com os contornos de uma liberdade cívica associada à exposição dos
indivíduos e suas ideias na vida pública, ocorre uma inversão do sentido
público e privado da concepção grega. O individualismo moderno conduz a
persona de volta para a “casa” como dimensão palpável da “liberdade” através da propriedade privada e como o único refúgio para a realização pessoal.
À rua restaria a associação ao mundo do trabalho: obrigatório, massificador e
– sobretudo – impessoal. Com esta mudança estrutural da função produtiva
da família ocorre o que Habermas denomina de “desprivatização da família”,
fato que a torna uma esfera íntima, reduzida às funções de reprodução. Esse
processo culmina também na “refuncionalização” da esfera pública, transformando o tempo de lazer em tempo funcional do trabalho para o consumo
(1996, p.160).
10 Cf. Habermas (1996).
11 Para Habermas, mais do que uma esfera da qual todos participam, a esfera pública burguesa
surge como sendo supostamente capaz de aparecer e representar em seu nome, como o
grande público. Mas Habermas reconhece que uma definição de esfera pública a partir do
critério de público leitor deixava de fora parte da população que não dispunha de recursos
para ter acesso ao mercado de bens culturais. Cf. Habermas (1996, especialmente o item 5
do cap. II, intitulado Institutions of the Public Sphere).
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Contra essa impessoalidade das práticas públicas, Hannah Arendt, em
The Human Condition, tenta reler a noção grega da vida pública e defender
a vida urbana como experiências públicas compartilhadas num “mundo comum”, no qual ao homem pode se conhecer e firmar sua existência, superando a “privação” da vida íntima. O “público” seria o que “pode ser visto
e ouvido por todos” (1987, p. 67), podendo tornar público o mundo privado
e possibilitar o reconhecimento recíproco das diferentes existências. A vita
activa, para Arendt, não existe no isolamento, uma vez que “estar isolado é
estar privado da capacidade de agir” (Ibid., 201). A vida pública se qualificaria pelas práticas socialmente compartilhadas, da qual resultam as ações
humanas. Arendt reconheceu, entretanto, o caráter eventualmente nocivo
de uma exposição demasiado pública da pessoa. Sabia a autora que nem
sempre a “rua” liberta, da mesma forma que não necessariamente o “lar”
protege12. A existência de aspectos “não-privativos da privatividade” seria
uma forma de reconhecer a existência de mecanismos de salvaguarda da
individualidade, face ao excesso de exposição do mundo público. A ideia,
originalmente situada em Platão, é contrapor luz e sombra, uma vez que o
termo pela autora utilizado para designar essa espécie de refúgio é “sombra”,
e não propriamente “casa”. No entanto, Arendt deixa clara a intenção da
analogia, ao informar que o termo grego megaron - que designa o interior da
casa - tem “forte conotação de sombra” (Ibid., p. 81).
A vida ativa, contudo, não é garantia de liberdade. Se por um lado ela
“liberta” o ser das necessidades da vida privada, por outro o encarcera na
obrigatoriedade do trabalho em excesso:
A dialética do ser ativo, que escapa às conclusões de Arendt, consiste
no facto de a intensificação hiperativa da atividade acabar por transformá-la numa hiperpassividade que leva o homem a seguir todo e
qualquer impulso e estímulo sem ser capaz de lhe oferecer resistência
(HAN, 2014b, p. 40)
Sob essa ótica, não seria difícil presumir as razões da gênese da moderna
concepção de intimidade como fuga do mundo e interiorização da subjetivi-
12 Penso aqui nas diversas formas de cárcere privado, agressões familiares e abusos de todo
tipo que permeiam a vida doméstica em muitos países e em diferentes culturas no mundo
contemporâneo.
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dade, quando entendemos essa dimensão prisional do mundo do trabalho.
Arendt lembra que a propriedade imóvel conferia à vida privada um caráter
de “casa”, na medida em que reforçava seu valor de uso privado. O processo
de apropriação privada (por parte de alguns) da propriedade como “meios de
produção” desloca a propriedade do lugar, tornando-a permutável, enquanto
valor de troca. E o que deveria tornar livre o ser, o encarcera também em sua
“casa”, como frágil refúgio de uma subjetividade interiorizada.
Fonte: Le Boulevard Saint Denis, Paris – 1899, de Jean Beraud.
Acervo de imagens do Labeurc
A cidade industrial, berço da monetarização e do fetichismo da mercadoria, banalizou a ideia de liberdade, este prometido e inalcançável legado do
projeto moderno. Reduzido à capacidade de gerar lucros pelo trabalho compulsivo, confinado em curtos circuitos urbanos, em ambientes pequenos e
trajetórias circulares, o ser urbano moderno é um ser sujeitado aos processos
mercadológicos que transformaram as cidades modernas em uma gigantesca
rota de negócios. Tudo parece existir em função das necessidades da lógica
acumulativa que há mais de 800 anos vai-se sofisticando e se tornando cada
vez mais emblemática de uma modernidade civilizatória.
Além do labirinto aparentemente sem saída que a racionalidade moderna
constrói com o trabalho assalariado, e que resulta na “desprivatização da
família” que se torna esfera íntima reduzida às funções de reprodução,
que outros labirintos foram erguidos e barraram a pretendida emancipação
anunciada ?
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2. Luzes da Cidade: desrazão e o inferno do igual
A noção de liberdade foi e continua a ser uma ideia muito cara à racionalidade modernidade. Mas por isso mesmo – também – tão visceral para uma
crítica à cidade moderna.
Dizer que a cidade é moderna e a modernidade é urbana implica sobretudo entender como a razão moderna modelou os modos de vida urbanos e,
por sua vez, como essa vida urbana e a cidade se tornaram materialidades
históricas dessa razão moderna. Importa sobretudo entender como a cidade
moderna, assente numa concepção específica de razão e de “viver” urbano,
constitui-se em parte do projeto racional da modernidade.
A cidade antiga pouco tinha da racionalidade moderna, mas introduziu
parte da concepção racional e técnica, não apenas no pensar, mas igualmente no habitar que posteriormente criou as bases da cidade moderna. O
surgimento da cidade antiga não foi exatamente uma operação racional, no
sentido cartesiano do termo, mas foi “lógica”. Fustel de Coulanges (2006)
explica como a cidade se formou a partir das reuniões de famílias e fratrias
que, ao se associarem, formaram as primeiras confederações (cidades) na
antiguidade13. As cidades que surgiram às margens dos Rios Eufrates e Tigre foram, a exemplo da Babilônia, cidades fortificadas e repletas de ruas
irregulares e tortuosas, sempre a margearem palácios que necessitavam de
proteção. Não havia exatamente nenhuma forma de “planejamento” urbano
que ordenasse o desenvolvimento dessas cidades, embora todas seguissem
uma certa lógica militar.
Em Grécia e Roma, o racionalismo pioneiro advindo do discurso filosófico inaugurou uma concepção também embrionária de pensar a cidade,
na forma do uso mais intenso da ideia do quadrículo como zona central da
urbe. Mas do que isso, as cidades gregas foram as primeiras a contar com
certa concepção urbanística e deixaram um rico legado técnico em aquedutos, pavimentos e esgotos a todas as cidades do Império Romano. Apesar
dessa influente herança helênica, o racionalismo grego repercutiu apenas
marginalmente na concepção das cidades entre os séculos XII e XVIII, como
13 Faz-se perceber a diferença entre os termos cidade e urbe para os antigos, segundo Coulanges:
“Cidade e urbe não eram palavras sinônimas entre os antigos. A cidade era a associação
religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de reunião, o domicilio, e,
sobretudo, o santuário dessa associação (2006, p. 205).
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destaca Fernando Chueca Goitia (2014), em sua Breve História do Urbanismo. Basicamente, essa influência teria se limitado ao uso do paço linear da
quadrícula e nalguns traçados regulares e geométricos. Somente a partir do
século XIX a ideia de razão se faz mais presente na cidade, orientando não
apenas o urbanismo e arquiteturas modernas, como também moldando uma
nova imagem da cidade burguesa, a exemplo das anteriormente mencionadas Paris de Haussmann e a Viena do Ringstrasse.
Quando em 1851 é inaugurado o Crystal Palace de Londres para abrigar
a primeira Exposição Universal, uma nova estética marca o advento de uma
linguagem própria à razão moderna. Para Peter Sloterdijk (2008), deu-se ali a
“entrada triunfal da modernidade”. Mais importante, contudo, do que os materiais envolvidos na construção do edifício – aço e vidro – foram os sentidos
relacionados aos ideais do capitalismo que o edifício condensou.
A razão adentra a cidade por muitas portas e ao longo de muito tempo.
Desde a construção das primeiras estruturas de defesa militar até os mais
complexos mecanismos de abastecimento de água e esgoto, a matemática e
as engenharias cuidaram de aperfeiçoar as formas humanas de habitar. Ao
entrar na cidade moderna, a razão promete liberdade e anuncia emancipação. Entre a Paris de Haussmann, o Crystal Palace de Londres e a Cidade de
Quartzo, de Mike Davis (1993), a modernidade se abriu num amplo espectro
de complexidades e problemas, que hoje atinge grande parte das cidades em
todo o mundo. Aqui, não nos interessa a razão em si, mas sua presença na
cidade moderna, nomeadamente na forma como moldou a noção de verdade
e os sentidos atribuídos à materialidade das coisas.
Sabe-se que a ideia de uma verdade racional universalmente válida, entendida como aquilo que é-por-si-mesma, sempre esteve na base do imaginário científico e teológico do ser humano moderno. Uma das mais importantes
contribuições neste tema foi Kant e seu ambicioso projeto de uma Crítica da
Razão. Antes dele, Platão traçara as bases da ideia de razão e “liberdade”, de
cuja análise Arendt retira a contraposição entre luz e sombra anteriormente
mencionada. Uma primeira relação entre modo de vida e verdade foi elaborada por esse filósofo14, em sua celebre Alegoria da Caverna. Nesta Alegoria,
era o modo através do qual as pessoas estavam posicionadas no interior da
caverna (acorrentadas e de costas para a saída) que as impediam de ver e en-
14 Cf. Platão (2001).
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tender o que de fato projetavam as sombras e que lhes parecia ser a verdade.
Não eram apenas limitações racionais que impediam que as sombras fossem reveladas como meros reflexos, havia uma limitação socioespacial para
o entendimento do que era a “verdade”. Os prisioneiros da ilusão somente
podiam ter acesso à razão na medida em que se alterasse não apenas sua
situação carcerária como também sua posição no mundo, de modo a poderem experimentar a claridade da razão. A ideia de que temos uma visão
distorcida do mundo quando estamos presos a ilusões é quase uma metáfora
da ideia moderna de razão como verdade. A cidade moderna está associada,
muitas vezes, a esse espaço privilegiado, onde impera uma racionalidade
que liberta, ao ser capaz de desvendar a verdade. Na caverna, a disposição socioespacial acaba por contribuir para o ocultamento da real causa das
sombras. Nessa analogia, seria a cidade que libertaria, na medida em que
representa o convívio racional e esclarecido (iluminado) dos seres humanos.
Embora a face obscura da caverna seja associada, na Alegoria, à pouca
percepção da realidade, ela também é, de outro modo, rica em insinuações
e possibilidades de apreensões do mundo. Outra forma de ver o problema
é entender que é na penumbra, e não no excesso de luminosidade, que as
sombras podem representar a dúvida, a possibilidade de erro, o dissenso.
A luz, assim, em sentido oposto, representaria o acordo direto, contratual,
inquestionável e dado pela certeza racional indubitável.
O excesso de razão (e de luz), por outro lado, pode sobrecarregar as percepções de mundo, negando ao ser a possibilidade de dúvida que a sombra
insinua. A vida excessivamente racional pode ser também uma vida por demais metódica, exposta e sempre visível. Impossível não associar essa condição ao contexto contemporâneo de hiperexposição narcisista das comunicabilidades virtuais. O mundo dessa razão exposta cobra do ser que ele deve
“expor-se para ser” (Han, 2014a, p. 21), revelando a transformação do mundo
em vitrine para o consumo de tudo: pessoas, signos, ideias etc.
Esse excesso (luz/razão) encerra outros excessos. Alguns dos excessos derivados são os de exposição e de vigilância. A excessiva exposição das coisas
e das pessoas é uma marca incontornável da vida urbana contemporânea.
As antigas fronteiras entre os aspectos públicos e privados da vida pessoal foram há muito subvertidas pela erosão do próprio sentido público da
vida urbana e pelos significados atribuídos ao convívio privado. Expor-se
publicamente não é mais necessariamente uma forma de comunicabilidade
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inteligível acerca do que pensamos e sobre aquilo que desejamos expressar
acerca do mundo. Expor-se passou a ser uma mero espelhar exibicionista de
nós mesmos ou daquilo que desejamos que os outros pensem sobre nós. Não
mais somos construídos com base na relação dialógica com o outro estranho, mas tão somente nos afirmamos e somos acariciados egoicamente
com o próximo conhecido. Não se almeja a comunicabilidade com alter, mas
apenas a exibição excessiva de e para ego. A hipervisibilidade concreta ou
virtual é uma expressão altamente saturada do excesso de ambientes lisos e
iluminados. A penumbra é dúvida e ambiguidade. A imprecisão é inimiga
da clareza que a tudo acomoda no mundo dos excessos.
Na Sociedade da Transparência (Han, 2014a), a vitória da razão é a ruína
do imponderável e da sutileza. Se a razão estabiliza o mundo, cobra um
preço altíssimo ao transformar tudo e a todos em mercadorias. Pior: essa suposta estabilidade foi assentada na ilusão de uma felicidade mediada pelos
valores. Como já pude discutir em trabalho anterior (Leite, 2016), a Sociedade do Consumo é a expressão típica da sociedade contemporânea. A análise
de Baudrillard (2014) destaca uma característica central da problemática do
consumo na modernidade: a felicidade encarna o mito da suposta igualdade.
Entretanto, como essa igualdade precisa ser mensurável, a noção de felicidade é subsumida pela capacidade de compra. Baudrillard denuncia, assim,
uma das falácias do projeto politico da modernidade: ao não ser capaz de implantar o principio democrático da igualdade politica e econômica, o projeto
moderno transfere para o consumo a ideia de uma igualdade (inatingível):
O princípio democrático acha-se transferido de uma igualdade real,
das capacidades, responsabilidades e possibilidades sociais, da felicidade (no sentido pleno da palavra) para a igualdade diante do objecto e
sentido e outros signos evidentes do êxito social e da felicidade (BAUDRILLARD, 2014, p. 50)
Assim, para usar a expressão de Byung-Chul Han (2014a), na Sociedade
do Consumo, onde o ser é transformado em valor, a única “igualdade” que nos
resta é o inferno dos iguais, assinalado pela excessiva presença de assimetrias
de poder e desigualdades econômicas.
Não por acaso, a expressão também remete à reflexão a Schopenhauer
em As Dores do Mundo: “O mundo é o inferno, e os homens dividem-se em
almas atormentadas e em diabos atormentadores” (2014, p. 28). Para além
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do declarado pessimismo da visão de mundo de Schopenhauer, subsiste uma
crítica dura às desigualdades e complexas relações de poder no mundo moderno. Parece ser esse precisamente o inferno do igual de Byung-Chul Han:
não se trata de escamotear desigualdades reconhecidamente existentes e muito menos de desprezar a importância das ações e movimentos democráticos
por maior inserção e equidade econômica, participação política e inclusão
social; mas de destacar que, ao final de tudo, o inferno do igual (demônios e
almas atormentadas) ainda persistem nesta sociedade moderna. A ideia básica
da argumentação de Byung-Chul Han a que destacamos aqui também pode ser
encontrada no centro da Teoria Crítica, como sublinha Vandenberghe:
Reduzir a heterogeneidade à homogeneidade, a diferença à igualdade, a
multiplicidade à unidade, nisto consiste (segundo a tese que Adorno e
Horkheimer longamente desenvolvem na Dialética do Esclarecimento)
o ideal da Aufkarung que está na origem da reificação universal dos homens e das coisas (2012, p.239)
Naturalmente que a defesa dos direitos das minorias e o alargamento das instâncias de participação social se mantêm atual, legitima e desejável na agenda
política e no debate social. A questão é adicional, portanto: a inclusão social daquelas diferenças de outrora não parece ser o fim do problema, mas exatamente o seu início. A diferença foi subsumida na agenda política e acabou por se
tornar, também, uma mercadoria no mercado dos bens políticos. As diferenças
foram reduzidas em sua capacidade aguerrida justamente por terem sido transformadas em heterotopias consumíveis. A diferença foi incluída como mercadoria, mais precisamente como subproduto cultural, e sua inclusão passou a
ter mais significado retórico do que resultados práticos: uma vez incluídos, os
diferentes foram e são interpelados a se tornarem exatamente iguais: idênticos e
equivalentes como valor no inferno do igual.
Contudo, essa redução do ser a uma igualdade como ser-valor não nega
as diferenças e desigualdades que permanecem. E a existência dessas
particularidades no ser igualado pela sua condição de ser-valor não aniquila
sua singularidade. Deleuze (2000) já resolvera essa equação quando refletiu
sobre a univocidade do Ser:
Com efeito o essencial da univocidade não é o Ser que se diga num
único e mesmo sentido. É que ele diga num único sentido de todas as
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suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas. O Ser é o
mesmo para todas estas modalidades, mas estas modalidades não são
as mesmas. Ele é “igual” para todas, mas elas mesmas não são iguais.
[…] O Ser diz-se num único sentido de tudo aquilo que ele se diz,
mas aquilo de que ele se diz difere: ele diz-se da própria diferença.
(Ibid., p. 93)
Da junção de Deleuze (2000), Heidegger (2012) e Byung-Chul Han
(2014a) pode-se dizer, então, que o ser-reduzido-a-valor não é um ser ausente
de singularidades intrínsecas. Ele continua a ser um Ser unívoco, porém
reduzido a condição de ser-valor. E nisso se torna exatamente igual a todos
os outros, no inferno do igual da Sociedade de Consumo.
Uma outra questão ainda se refere ao sentido do termo igual na expressão
de Byung-Chul Han. O igual é também a negação do outro, do estranho, da
diferença negativa daquele que não se enquadra nos circuitos de aceleração
da acumulação lisa do capital. Seríamos todos “iguais” porque estamos todos imersos na mesma cosmovisão de mundo de uma sociedade voltada ao
consumo, ainda que possamos estar em posições diferentes. Essa recusa ao
estranho, de modo oposto às políticas de mitigação dos processos discriminatórios, revela a face dura da realidade preconceituosa em muitas partes
do mundo: tolera-se o outro apenas na medida em que ele não se configure
num embaraço para as metas do sucesso a que cada um busca em seus processos individuais ou coletivos de vivência atual. A “igualdade” do inferno
dos iguais rejeita o diferente que não exerce seu papel de ser valor adequadamente e se torna um estorvo aos fluxos de circulação do capital. Essa “igualdade” é discricionária, discriminatória e forja “identidades” defensivas.
A absolutização do valor de exposição manifesta-se como tirania da
visibilidade. [...] O imperativo da transparência torna suspeito tudo que
não se submete à visibilidade. É nisso que consiste a sua violência. (HAN,
2014a, p. 25)
Pode-se ponderar, contudo, que podem ocorrer pelo menos três situações
distintas sobre essa recusa ao estranho: a primeira, de Han, deriva da exposição exacerbada dos “iguais”; a segunda, sintetizada pela abordagem de
Richard Sennett (1976), é o insulamento comunitário da intimidade. Em ambas, subsiste uma forma de abstenção social (Leite, 2009) que se caracteriza
por atitudes deliberadas de recusa ao encontro com o outro, seja pelo medo,
xenofobia ou pelo desejo explícito de se individualizar.
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A terceira possibilidade, contudo, rechaça o estranho por um motivo
aparentemente oposto: precisa dele. Refiro-me aos complexos processos
afirmativos de identidades em contextos pós-nacionais. Em ambientes urbanos, essas identidades criam suas abstenções relacionais, muitas vezes
inscritas nos espaços urbanos, na medida em que necessitam demarcar
lugares nos espaços da vida pública (LEITE, 2007). E, assim, mais do que
recusar o outro, as pessoas em processos de formação de identidades precisam se contrapor ao outro. Essa contraposição é mais do que uma recusa:
é uma recusa qualificada que, em algumas situações, demanda o próprio
encontro com este outro.
Em um dos seus ensaios no qual reflete acerca da identidade contemporânea, Giorgio Agamben afirma: “o desejo de ser reconhecido pelos outros
é inseparável do ser humano” (2014, p. 77). Agambem retoma ao mesmo
tempo a explicação freudiana sobre a formação relacional do ego (a persona somente se constitui quando se distingue de e é reconhecido por alter)
quanto as abordagens mais atuais da sociologia e da antropologia sobre o
caráter reflexivo e dialógico dos processos de identificação que informam
as identidades. A desiderabilidade do encontro decorre de uma suspensão
temporária da recusa ao estranho, em virtude da necessidade de não apenas tornar visível, mas ter reconhecidas as marcas da diferença, como sugere Jesus Martín-Barbero (2000) ao afirmar que as identidades demandam
ser reconhecidas ao necessitarem se tornar visíveis socialmente.
Por fim, é nessa direção que podemos entender como a vida urbana
contemporânea está fortemente marcada por tensões e disputas que caracterizam a vida social, qualificando e diferenciando certos espaços da vida
urbana cotidiana como espaços públicos. Uma vez que essas identidades
necessitam se externar e afirmar publicamente suas diferenças, devemos entender que as ações interativas acontecem mediante uma comunicabilidade
política do desentendimento, que muitas vezes ganha contornos de um contra-uso da vida urbana e dos espaços da cidade (LEITE, 2010a; 2010b). Esses
contra-usos são um tipo de expressão tática (Certeau, 1996) que anunciam
contraposições insubmissas nos espaços pretensamente lisos da cidade.
Embora a razão moderna tenha tentado apaziguar os desiguais e diferentes numa mortalidade ancorada na sujeição ao mundo do trabalho e do
consumo, parte da vida urbana continua indomável. A afirmação da discordância, do dissenso e do contra-uso, pelo que tem de contraposição ao esta-
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belecido, é sempre uma expressão outsider; uma sombra rejeitada no inferno
do igual. E por isso, a “clareza” da razão pode ser enganadora ao ofuscar a
percepção e obliterar a realidade. Essa desrazão, pela via da “absolutização do valor”, adultera o futuro emancipador que a modernidade prometera,
através do racionalismo moderno e seu subproduto filosófico, o humanismo
pretensamente emancipador.
Os ares da cidade moderna ainda não libertam.
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