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Modo De Existência Da Cidade Contemporânea

Revista Cidades

Buscamos elaborar um quadro teórico-empírico geral dos circuitos da economia urbana à luz da globalização, entendendo os como categorias aptas para compreender e cindir analiticamente o fenômeno urbano. O artigo está estruturado em uma introdução, cinco itens e uma conclusão. Na introdução apresentamos, brevemente, algumas das noções mais utilizadas no estudo da economia urbana. Nos seguintes itens, refletimos sobre a globalização vista como um período e algumas características do processo da urbanização contemporânea; os circuitos da economia urbana como constitutivos do fenômeno urbano; o circuito superior; a porção marginal do circuito superior; o circuito inferior e, finalmente, à guisa de conclusão, apresentamos algumas das complementaridades entre eles. Estas reflexões encontram seus fundamentos em pesquisas teóricas e empíricas, individuais e coletivas, assim como nas teses e dissertações orientadas.

ISSN (online) 2448-1092 volume 14 número 23 2022 índice P.05 - 08 P.09 - 10 APRESENTAÇÃO POLÍTICA EDITORIAL P.11 - 22 P.23 - 48 P.49 - 76 P.77 - 102 SOBRE A JUSTIÇA ESPACIAL MODO DE EXISTÊNCIA DA CIDADE CONTEMPORÂNEA: LAS DINÁMICAS CONTEMPORÁNEAS DEL PROCESO DE URBANIZACIÓN EN EL PARAGUAY LOS PROCESOS DE URBANIZACIÓN EN AMÉRICA LATINA: Uma visão atual dos circuitos da economia urbana GORDON H. PIRIE MARÍA LAURA SILVEIRA KEVIN GOETZ P.103 - 135 P.136 - 160 P.161 - 183 L’ÉMERGENCE D’UNE URBANISATION SUPPLÉTIVE: Le cas de la République Démocratique du Congo MOBILIDADE COTIDIANA E ACESSIBILIDADE NA CIDADE FRAGMENTADA: MOBILITÉ QUOTIDIENNE ET ACCESSIBILITÉ DANS LA VILLE FRAGMENTÉE : O caso de Ribeirão Preto Le cas de Ribeirão Preto FRANÇOIS MORICONIEBRARD ELISEU SAVÉRIO SPÓSITO; VANESSA DE MOURA LACERDA TEIXEIRA; KÉSIA ANASTÁCIO ALVES DA SILVA El caso del estado de São Paulo CARLES CARRERAS equipe editorial Cidades é uma publicação voltada à divulgação de pesquisas e reflexões que envolvem a compreensão da problemática urbana a partir de um olhar preferencial, mas não exclusivamente geográfico. Fundada em 2002 sob a responsabilidade do Grupo de Estudos Urbanos (GEU), ela está hoje sediada na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) sob a responsabilidade de um Conselho Editorial que, em 2020, assumiu a revista sob o compromisso com a pluralidade na produção do conhecimento no campo dos estudos urbanos. A revista tem como objetivo contribuir para ampliar nossa capacidade de ler e interpretar o processo de urbanização e as cidades num período em que tem se aprofundado a complexidade das relações que orientam processos e dinâmicas e se aceleram o ritmo das transformações. Cidades está vinculada à linha de pesquisa Produção do espaço urbano-regional do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFFS. Publicação sob responsabilidade da Universidade Federal da Fronteira Sul Rodovia SC 484 - Km 02, - Chapecó, SC, Brasil. CEP 89815-899 ISSN (online) 2448-1092 cidades.uffs.edu.br @revistacidades volume 14 | número 23 | ano 2022 Conselho editorial Dr.ª Catherine Chatel Université Paris Cité, França Dr. Igor Catalão Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil Dr. Márcio José Catelan Universidade Estadual Paulista, Brasil Dr. Oscar Sobarzo Universidade Federal de Sergipe, Brasil Dr. William Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Responsável editorial Dr. Igor Catalão Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil Direção de arte e design Arq. e Urb. Amanda Rosin de Oliveira Universidade de São Paulo, Brasil Equipe de apoio Me. Carliana Grosseli Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil Me. João Henrique Zoehler Lemos Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Vitor Hugo Batista Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil Bibliotecária responsável Franciele Scaglioni da Cruz Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil Projeto gráfico e diagramação AROLab | Amanda Rosin de Oliveira Capa: Colagem autoral com fotos de Maysa Pinhata Battistam e Amanda Rosin, tiradas em outubro de 2021 - MG Conselho Editorial Internacional Dr.ª Alicia Lindón, Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa, México, [email protected] Dr.ª Ana Fani Alessandri Carlos, Universidade de São Paulo, Brasil, [email protected] Dr. Angelo Serpa, Universidade Federal da Bahia, Brasil, [email protected] Dr.ª Aurélia Michel, Université Paris Cité, França, [email protected] Dr. Carles Carreras, Universitat de Barcelona, Espanha, [email protected] Dr.ª Carme Bellet, Universitat de Lleida, Espanha, [email protected] Dr.ª Claudia Damasceno, École des Hautes Études en Sciences Sociales, França, [email protected] Dr.ª Diana Lan, Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Argentina, [email protected] Dr.ª Doralice Sátyro Maia, Universidade Federal da Paraíba, Brasil, [email protected] Dr. Federico Arenas, Pontificia Universidad Católica de Chile, Chile, [email protected] Dr. Gabriel Silvestre, University of Sheffield, Reino Unido, [email protected] Dr. Horacio Capel, Universitat de Barcelona, Espanha, [email protected] Dr. Jan Bitoun, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, [email protected] Dr. José Borzachiello da Silva, Universidade Federal do Ceará, Brasil, [email protected] Dr. Laurent Vidal, Université de La Rochelle, França, [email protected] Dr.ª Leila Christina Dias, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, [email protected] Dr.ª Luciana Buffalo, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, [email protected] Dr. Luis Alberto Salinas Arreortua, Universidad Nacional Autónoma de México, México, [email protected] Dr.ª Maria Encarnação Beltrão Sposito, Universidade Estadual Paulista, Brasil, [email protected] Dr.ª María Laura Silveira, Conicet/Universidad de Buenos Aires, Argentina, [email protected] Dr.ª Odette Carvalho de Lima Seabra, Universidade de São Paulo, Brasil, [email protected] Dr. Paulo Roberto Rodrigues Soares, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, [email protected] Dr. Pedro de Almeida Vasconcelos, Universidade Federal da Bahia, Brasil, [email protected] Dr. Roberto Lobato Corrêa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, [email protected] Dr. Rodrigo Hidalgo, Pontificia Universidad Católica de Chile, Chile, [email protected] Dr. Saint-Clair Cordeiro da Trindade Junior, Universidade Federal do Pará, Brasil, [email protected] Dr.ª Tatiana Schor, Universidade Federal do Amazonas, Brasil, [email protected] Dr. Vincent Berdoulay, Université de Pau et des Pays de l’Adour, França, [email protected] artigo MODO DE EXISTÊNCIA DA CIDADE CONTEMPORÂNEA: Uma visão atual dos circuitos da economia urbana MARIA LAURA SILVEIRA Conicet/Universidad de Buenos Aires [email protected] RESUMO Buscamos elaborar um quadro teórico-empírico geral dos circuitos da economia urbana à luz da globalização, entendendo os como categorias aptas para compreender e cindir analiticamente o fenômeno urbano. O artigo está estruturado em uma introdução, cinco itens e uma conclusão. Na introdução apresentamos, brevemente, algumas das noções mais utilizadas no estudo da economia urbana. Nos seguintes itens, refletimos sobre a globalização vista como um período e algumas características do processo da urbanização contemporânea; os circuitos da economia urbana como constitutivos do fenômeno urbano; o circuito superior; a porção marginal do circuito superior; o circuito inferior e, finalmente, à guisa de conclusão, apresentamos algumas das complementaridades entre eles. Estas reflexões encontram seus fundamentos em pesquisas teóricas e empíricas, individuais e coletivas, assim como nas teses e dissertações orientadas. PALAVRAS-CHAVE: fenômeno urbano, técnica, globalização, circuitos da economia urbana, categorias. modo de existência na cidade contemporânea 25 | ABSTRACT RESUMEN I seek to elaborate a general theoreticalempirical frame of the circuits of urban economy at globalization, seeing them as categories apt to understand and analytically split the urban phenomenon. This article is structured in an introduction, five items and a conclusion. In the introduction I briefly present some of the most widely used notions in the study of urban economy. In the following sections I reflect about globalization as a period and about some characteristics of the process of contemporary urbanization; the circuits of urban economy as constitutive of the urban phenomenon; the upper circuit; the marginal portion of the upper circuit; the lower circuit and finally, by way of conclusion, I present some of the complementarities between them. These reflections are based and theoretical and empirical research, individual on collective, as well as in doctoral theses and master´s degrees carried out under my direction. Buscamos elaborar un marco teórico-empírico general de los circuitos de la economía urbana a la luz de la globalización, entendiéndolos como categorías adecuadas para comprender y escindir analíticamente el fenómeno urbano. El artículo está estructurado en una introducción, cinco ítems y una conclusión. En la introducción, presentamos brevemente algunas de las nociones más utilizadas en el estudio de la economía urbana. En los siguientes ítems reflexionamos sobre la globalización vista como un período y algunas características del proceso de urbanización contemporáneo; los circuitos de la economía urbana como constitutivos del fenómeno urbano; el circuito superior; la porción marginal del circuito superior; el circuito inferior y, finalmente, a modo de conclusión, presentamos algunas de las complementaridades entre ellos. Estas reflexiones encuentran sus fundamentos en investigaciones teóricas y empíricas, individuales y colectivas, así como en tesis y disertaciones dirigidas. KEYWORDS: urban phenomenon, technology, globalization, circuits of urban economy, categories. PALABRAS CLAVE: fenómeno urbano, tecnología, globalización, circuitos de la economía urbana, categorías. | 26 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 1 | INTRODUÇÃO Numa interessante reflexão escrita no alvorecer do século passado, Simmel (2006) explicava que as formas do conhecimento científico são formações históricas e, por essa razão, nunca recolhem de maneira completamente adequada a totalidade dos conteúdos do mundo. É o caso, muitas vezes, de ideias herdadas, pré-estabelecidas ou, inclusive, de categorias fundadas na observação de um fragmento da totalidade, próprio de um determinado momento, que se tornam verdadeiras cristalizações de uma realidade em permanente movimento. Talvez essa seja a explicação, no estudo da urbanização e das cidades, da consolidação e persistência de um pensamento dualista, que pode ser reconhecido em diversos dualismos tecnológicos, morfológicos, sociológicos e econômicos, tantas vezes berço e tantas outras resultado da noção de setor informal (Silveira, 2008). Mais recentemente esta ideia tem sido retomada na interpretação do proletariado informal de Davis (2006, p. 178) que, para o autor, tem atualmente um papel macroeconômico revolucionário. Até os dias de hoje, a perspectiva do setor informal resulta bastante dominante na literatura dos estudos urbanos e, entre os trabalhos mais recentes, podemos mencionar os de Muhanga (2020), Mugoda et al. (2020), Huang et al. (2020), Nurhayati (2020), Sharma e Nath (2021), Resnick (2021), Nguimkeu e Okou (2021). Cunhada para discutir as atividades não reguladas pelo poder central na economia soviética e em outras de caráter centralizado, a ideia de second economy foi retomada mais tarde para identificar uma economia estruturalmente desintegrada da primeira economia (SIK,1992; BAGACHWA e NAHO, 1995), tal como apareceu no discurso do Presidente Thabo Mbeki´s na África do Sul em 2003 e nos trabalhos de Reynolds e Van Zyl (2006), Skinner (2006), Rogerson (2007), Toit e Neves (2007) e Arthur (2011). A emergência de um poderoso sistema de produção informal protegido pelo Estado na China, que alimenta o comércio de grande parte do planeta. põe em tensão, segundo Pinheiro-Machado (2011), as noções de informalidade e de segunda economia. Por outra parte, Davis (2006) propõe a expressão “terceira economia” para referir-se à busca de formas quase mágicas de apropriação da riqueza, tais como o jogo e as loterias. Muito foi discutido nos âmbitos estatais e supra estatais em torno do papel das pequenas e médias firmas na criação de empregos e, particularmente, na sobrevivência das populações pobres. A depender da promoção ou não da tecnificação, dos quadros normativos referidos aos conflitos trabalhistas, tributários e fundiários, dos novos métodos de organização nas empresas e dos graus de urbanização, a capacidade dessas empresas para ampliar a base de empregos em ritmos mais acelerados do que as grandes tem sido apresentada como dado surpreendente e mesmo positivo. Impossível não lembrar as antigas metáforas da “esponja” tão frequentes nos organismos internacionais na segunda metade do século passado. Contudo, se esses debates tiveram algum mérito foi o de chamar a atenção, cada um ao seu compasso, sobre a profunda desigualdade da renda e a existência de múltiplas atividades de produção e consumo nas modo de existência na cidade contemporânea 27 | cidades dos países periféricos. Mais coincidentes no reconhecimento das manifestações do que nas suas causas e interdependências, as diversas interpretações atingiram, também, diferentes graus de visibilidade e, inclusive, de participação na formulação de políticas de Estado e na produção de estatísticas. Nos dias de hoje, o quadro de vida torna-se mais complexo graças à globalização dos processos econômicos, políticos, jurídicos e culturais. A cada momento da história, reconhecemos uma modernização ou, mais precisamente, várias modernizações sucessivas e coexistentes (SANTOS, 1972), que nos levam a concordar com Meschonnic (1988) quando, debruçado sobre a modernidade, afirmava que o plural era de rigor. É, portanto, de modernidades que estamos falando ao referir-nos à natureza do período técnico-científico-informacional (RICHTA, 1974; SANTOS, 1988, p. 27), caracterizado pela “invenção do método da invenção”, capaz de produzir a cada dia uma nova modernização. No entanto, a multiplicidade de manifestações produtivas e consumptivas no território nacional e na cidade pode conduzir, hoje, a certo ceticismo sobre sua apreensão e, por essa via, derivar na canhestra utilização de categorias pré-estabelecidas –e legitimadas– levando a uma excessiva simplificação ou a uma interpretação reducionista, mais afeta a uma classificação do que a uma compreensão do atual movimento do real. Daí a necessidade permanente de teorizar, isto é, de preencher as categorias com os dados do presente. das cidades. Como as atividades econômicas ganham novos conteúdos técnico-científicos, informacionais e financeiros, a cidade revela infinitas divisões territoriais do trabalho que, em função da sua interdependência, da sua desigual capitalização e do seu dinamismo, poderiam ser entendidas como diferentes circuitos econômicos, constitutivos de um fenômeno urbano visto como uma totalidade. É por essa razão que podemos continuar falando de um espaço dividido que é, também, compartilhado, tal como propõe o título do já clássico L´espace partagé, escrito por Milton Santos em 1975. O objetivo deste artigo é, portanto, discutir os circuitos da economia urbana à luz da globalização, vistos como categorias aptas para compreender o fenômeno urbano a partir de cisões significativas. Para isso, buscaremos retratar suas feições e constituição atual, fundamentados nas nossas pesquisas teóricas e empíricas, individuais e coletivas, e nas teses e dissertações orientadas. Além desta introdução, que visou mostrar alguns traços do contexto de ideias em que o fenômeno é abordado, o texto compõe-se, a seguir, de uma reflexão sobre o período da globalização e a urbanização contemporânea, os circuitos da economia urbana como constitutivos do fenômeno urbano, o circuito superior, a porção marginal do circuito superior, o circuito inferior e, finalmente, algumas ideias sobre as articulações e complementaridades entre eles. A partir das numerosas transformações contemporâneas, é importante refletir sobre a atual morfologia urbana e a dinâmica | 28 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 2| O PERÍODO VISTO COMO TOTALIDADE E A URBANIZAÇÃO Face à complexidade do mundo atual, o exercício de apreender a totalidade parece tornar-se mais árduo do que no passado. Em outras palavras, a aceleração dos processos, a sofisticação dos objetos técnicos, a invisibilidade dos agentes que comandam e certa dissociação entre estes e os que executam o trabalho no lugar, as normatizações, o poder das finanças e da informação desenham a atual divisão territorial do trabalho hegemônica e, tantas vezes, nos afastam da compreensão do real total que é o período atual. Neste, um conjunto de variáveischave –tecnociência, informação e finanças– controla o movimento da totalidade a partir de uma dada organização. Se alguma dessas variáveis conhece uma evolução brutal, a organização falha e advém uma crise que, eventualmente, pode acabar numa ruptura. Visto como um sistema global de eventos, o período atual revela as possibilidades que as pessoas, as firmas, as instituições e os lugares têm graças a sua condição de contemporaneidade. No entanto, essas possibilidades se realizam de forma desigual, uma vez que esses agentes e lugares recebem seletivamente o novo e o transformam num outro novo. É a possibilidade concreta do período atual tornada existência ou a consciência da sua falta de realização o que constrói a contemporaneidade. De modo que um olhar que ignore essa realização diferenciada não poderá compreender a totalidade. Quando Karel Kosik (1976, p. 35) elabora uma noção de totalidade concreta, argumenta que “totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido”. Continua dizendo o autor (KOSIK, 1976, p. 40) que, por essa via, “cada fenômeno pode ser compreendido como momento do todo”. É um permanente movimento de totalização, tal como definido por Sartre (1979). Em outras palavras, não é o período da globalização –o tempo do mundo– a única totalidade que explica a urbanização e a cidade como fenômenos históricos, ao mesmo tempo processos e resultados temporários, evitando o atraente atalho de descrever a cidade como um mero resultado. Esse tempo do mundo encontra, no território usado de um país, um conjunto de existências que deformam a sua natureza. Esse território usado é o resultado provisório da formação socioespacial, isto é, um momento da história paralela das coisas e das ações que pode ser observado na configuração territorial de um país e na distribuição e organização da população, da economia, do Estado, do direito, da técnica e do trabalho (SANTOS, 1977; SANTOS e SILVEIRA, 2001; SILVEIRA, 2014). Por isso, o tempo da globalização ganha aí uma nova natureza e se revela parcialmente numa pluralidade de manifestações empíricas, ensejando o risco de tomar a parte pelo todo, isto é, o fragmento como sendo a totalidade. Daí a nossa insistência em abordar o urbano e a economia urbana como fenômenos. Portanto, tratar o real como um fenômeno supõe partir das coisas, elas próprias, para entender o que acontece além delas, buscando captar os nexos invisíveis que as relacionam entre si. Alertando sobre a importância daquilo que nos aparece, Maffesoli (1997) explica que o trabalho do pensamento é sublinhar todas as modo de existência na cidade contemporânea 29 | características de tal fenômeno. É desse modo que estamos chamados a explicar os atuais processos de urbanização e as respectivas cidades e redes urbanas, compreendidas como totalidades ou sub-totalidades concretas num permanente movimento de reformulação do tempo global e do território usado da Nação. Nesse sentido, a economia política da urbanização (SANTOS, 1994) permite ver, na formação socioespacial, a seletividade das forças da modernização nas suas formas e nos seus efeitos, isto é, que as variáveis modernas não são acolhidas nos lugares ao mesmo tempo nem na mesma direção, levando a uma inserção diferencial das porções do país na divisão territorial do trabalho. De tal maneira, esses processos desenvolvem-se sobre um espaço já organizado a partir de profundas diferenças de renda e, portanto, de consumo, e com diferentes custos dos fatores de produção, isto é, com desigual capacidade de produzir e de agregar valor à produção. O resultado é uma hierarquia das atividades pré-existentes e uma tendência à hierarquização das atividades novas. Nesse retrato o consumo pode ser entendido como uma força de dispersão e a produção, como uma força de concentração. Ambas as forças realizam-se de modo segmentado. 3| FENÔMENO URBANO E CIRCUITOS DA ECONOMIA URBANA Nas últimas décadas, o planeta conheceu a acelerada difusão do fenômeno urbano, caracterizada, ao mesmo tempo, pela sua extensão e pela sua intensidade. Debruçado sobre ambas as manifestações, Lefebvre (1973) refletiu sobre os aspectos críticos da cidade e do urbano, propondo o par explicativo implosão-explosão. Mais recentemente e retomando as ideias do pensador francês nas suas teses sobre a urbanização planetária, Brenner (2013) assinala que a implosão é dada pelos processos de concentração e aglomeração e a explosão pela extensão do tecido urbano e a intensificação da conexão entre lugares, territórios e escalas. É a metropolização o que se descortina diante dos nossos olhos, consolidando-se como uma tendência que decorre da revolução do consumo, como já assinalou Santos (1994). Mas, ao mesmo tempo, crescem as cidades médias e ganham relevância certas cidades locais e cidades de fronteira, consequência da difusão concentrada e localizada da produção, assim como das desigualdades macroeconômicas entre países vizinhos. Como resultado do acirramento das divisões territoriais do trabalho, do peso da produção imaterial na vida econômica e da expansão dos consumos sociais e mercantis, materiais e imateriais, as redes urbanas são mais rapidamente reorganizadas. As articulações entre cidades numa mesma rede ou em redes urbanas diferentes, assevera Sposito (2010), decorrem tanto de relações competitivas como de relações de complementaridade. O corolário dessa aceleração da urbanização é o crescimento extraordinário do meio construído urbano. As nossas cidades crescem em altura e em extensão, amiúde envolvendo ações especulativas que estendem o tecido urbano a maior velocidade do que a provisão dos serviços que asseguram o bem-estar da população. Além disso, as políticas de modernização dos sistemas de transporte implicaram um escasso desenvolvimento das ferrovias e uma opção pelos modelos viários que, somados ao crédito para aquisição de veículos, tiveram como desfecho a formação ou consolidação de tecidos urbanos radiais, extensos | 30 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 e congestionados. Embora nos dias de hoje algumas parcelas desse tecido estejam submetidas a importantes processos de revitalização e implantação de transporte sobre trilhos, essa configuração territorial, vista como uma totalidade e indissociavelmente unida a uma economia na qual o crescimento do emprego formal é exíguo e a oferta de bens tecnológicos é profusa, criou as condições para o desenvolvimento de atividades de transporte de pessoas e mercadorias por meio de bicicletas, motos, triciclos e carros. São atividades que nascem nos interstícios de divisões territoriais do trabalho mais capitalizadas. Dir-se-ia que o gigantismo da mancha urbana –para utilizar a expressão de Drakakis-Smith (2000)– leva à formação de regiões metropolitanas estendidas, com novos e renovados problemas de gestão e econômicos, estudados na América Latina por autores como Pírez (2014) e Coraggio (2000) respectivamente. Desse modo, a mancha urbana expressa uma justaposição de divisões do trabalho que, na sua articulação, revelam um mosaico de normas elaboradas, em diferentes momentos, para atender geralmente interesses individuais ou corporativos. Portanto, a cidade pode ser entendida como uma pluralidade de divisões territoriais do trabalho superpostas. É bem verdade que não seremos capazes de ver e inventariar todas essas existências, mas podemos perceber algumas delas como fenômenos, cuja apreensão pode ser feita por meio das categorias propostas pela teoria dos circuitos da economia urbana (SANTOS, 1975; 1994). Em outras palavras, a cidade é vista como um único sistema cujo movimento é dado por vasos comunicantes que são os circuitos; de tal modo que somente é possível reconhecer e compreender um dos circuitos concomitantemente à identificação e ao entendimento do outro. Longe de compor uma dualidade, o circuito superior e o circuito inferior revelam sua existência unitária e sua oposição dialética. A existência unitária refere-se à reciprocidade de influências entre os agentes ou, em outras palavras, se um circuito não influísse no outro não haveria fenômeno urbano, uma vez que os circuitos não são estanques, mas responsáveis pelo movimento do espaço e da economia. A origem dos circuitos explica sua existência unitária, já que estes advêm das sucessivas modernizações capitalistas, técnicas e organizacionais, associadas às profundas desigualdades na distribuição da renda. Os circuitos são o modo de existência da cidade submetida a tais modernizações. Não têm origem nem existência independente e, por isso, cada circuito per se carece de autonomia de significado. A oposição dialética significa que um circuito não se define sem o outro. Há, nessa existência unitária, laços de complementaridade, pois um circuito é oposto ao outro e, desse modo, o trabalho se organiza, embora para o circuito inferior se trate de uma relação de subordinação com o circuito superior. Isto significa dizer que o valor dos circuitos é relacional, incluindo também a percepção dos seus limites. Em outras palavras e como já nos alertava Tilly (2000), limites e relações desiguais reforçam-se reciprocamente. Cabe aqui lembrar que os graus de tecnologia, capital e organização não são alheios à especificidade técnica e econômica da atividade nem tampouco às condições do lugar. Portanto, os circuitos poderiam ser definidos e identificados a partir dessas duas condições. modo de existência na cidade contemporânea 31 | Cada circuito tem características próprias e distintivas, extraídas do real a partir dessa visão unitária e teorizadas como elementos constitutivos que permitem defini-lo e explicar seu arranjo. Tais características conferem a cada circuito coerência interna e o diferenciam do seu oposto, fazendo dele um objeto de pensamento ou uma categoria analítica, que pode ser operacionalizada a partir do estudo do meio construído urbano, do sistema técnico, da organização, do consumo, das migrações e dos graus de capitalização. Contudo, entre os circuitos há nexos, também extraídos do real a partir dessa visão unitária e teorizados como elementos relacionais que possibilitam apreender a interdependência e a articulação de um circuito com outro. Assim, podemos compreender ambos os objetos de pensamento ou categorias analíticas, circuito superior e circuito inferior, como uma categoria sintética e unitária, isto é, o fenômeno urbano. São momentos da análise que separam o que, no início do processo histórico, é uma coisa só. Daí a importância de que nem os conceitos nem os procedimentos mutilem os nexos. Por isso, não se trata de utilizar categorias absolutas nem de elaborar um esquema classificatório (SILVEIRA, 2016). Como o fenômeno urbano é uno, as divisões do trabalho na cidade estabelecem entre si uma relação de necessidade. No entanto é evidente que para os agentes que trabalham com baixos graus de capital, tecnologia e organização essa necessidade tem o nome de subordinação. De tal maneira, entendemos que as modernizações fazem da cidade um espaço dividido, constituído por distintos circuitos de produção e consumo. A cada modernização renova-se a composição do capital e, em consequência, o emprego e o desemprego transformam-se quantitativa e qualitativamente. Por exemplo, graças à automação, Facebook e Google demandam 10% dos empregos que necessita uma agência de publicidade para a mesma tarefa (MAGNANI, 2019). Desse novo desemprego deriva uma nova feição e uma reorganização da porção marginal do circuito superior e do circuito inferior. Em outras palavras, o circuito superior transforma-se graças à nova composição do capital, cujas manifestações mais visíveis são os automatismos e a ubiquidade do dinheiro em estado puro e cuja consequência é o desemprego, sendo este último o principal fator que provoca a elasticidade do circuito inferior. Nessa dinâmica autopropulsiva e oligopolizada da economia superior, o circuito inferior é, portanto, um resultado indireto. Daí a necessidade de ver o real como fenômeno. A pandemia de Covid 19 veio agravar, ainda mais, os quadros de pobreza nos países periféricos. Embora, durante o ano de 2020, perderam-se mais de 140 milhões de empregos a escala mundial, também a riqueza aumentou 7,4% graças ao crescimento das bolsas, à valorização dos bens imobiliários, às baixas taxas de juros, à redução de diversos custos para algumas grandes empresas e aos lucros da indústria de alta tecnologia (CEPAL, 2021). É evidente que esse aumento da riqueza não foi heterogêneo apenas socialmente mas também territorialmente, já que a América Latina e o Caribe tiveram a pior queda do PIB desde o início do século XX e, entre 2019 e 2020, perderam-se 25 milhões de empregos (CEPAL, 2021). Ambas as formas de heterogeneidade autorizam a reforçar um olhar da cidade a partir dos circuitos da economia urbana. Nesse contexto, é possível que se intensifique o crescimento por autopropulsão do circuito superior e, por isso, | 32 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 a velocidade de transformação das suas porções marginais seja mais alta, o que significará uma vida mais efêmera das pequenas e médias empresas. Pelas duas vias, isto é, pelas novas dinâmicas do circuito superior e da sua porção marginal, mais população poderá engrossar o circuito inferior, renovando o significado do que McGee (1971) reconheceu como sua capacidade autoinflacionária 4| CIRCUITO SUPERIOR, MACRO-ORGANIZAÇÃO TERRITÓRIO, METRÓPOLE CORPORATIVA DO Resultado direto da modernização tecnológica e organizacional, a atual divisão territorial do trabalho hegemônica é construída por grandes empresas que, exercendo situações de monopólio e oligopólio, tecem relações fora da cidade e da região (SANTOS, 1975). Com efeito, a escala de ação do circuito superior revela sua abrangência crescentemente planetária e multissetorial, demandante de numerosas funções de coordenação (CORIAT, 1976) que os seus agentes reservam para si, desprezando boa parte das funções de execução. Em outras palavras, esse circuito é superior porque as ações que presidem o comportamento dos seus agentes ultrapassam a mancha urbana e desenvolvem, no território como um todo e inclusive no planeta, o que Giddens (1987, p. 63) denomina “uma bateria de capacidades causais, incluindo a de influenciar as capacidades causais desdobradas pelos demais agentes”. Tal bateria de capacidades fica evidente tanto na política de uma empresa global como Fiat na Argentina e no MERCOSUL (DONATO LABORDE e ASTEGIANO, 2018), como na relação, no circuito superior de alimentos, entre firmas desse porte e as que Busch (2019) denomina “empresas de ancoragem na formação socioespacial”. Em consequência, não se trata de uma interpretação meramente urbana que busca explicar a cidade per se, mas de uma teoria que considera o território como variável explicativa central, conduzindonos, mais uma vez, para uma economia política da urbanização. Mas a difusão de uma modernização seletiva, encarnada na expansão do circuito superior sobre um espaço hierarquizado, provoca o crescimento do circuito inferior nas metrópoles e, cada dia mais, em cidades de outros tamanhos, as quais passam a articular-se de modo diverso na rede urbana. Na medida em que as grandes empresas instalam novos pontos e áreas de produção e comercialização, tais como a exploração de petróleo e minérios, a agricultura moderna, os bancos, as instituições financeiras ou redes de comércio atacadista e varejista vinculados a consumos banais, muda a vida de relações da cidade e as firmas agropecuárias, industriais e comerciais do lugar devem subordinar-se às demandas das grandes empresas ou inclusive podem desaparecer (BERNARDES, 2015). Gabriela Maldonado (2021) explica o espraiamento das topologias de empresas globais vinculadas à modernização agrícola na cidade de Río Cuarto, na província argentina de Córdoba, a partir da implantação de filiais e unidades de negócios, além dos bancos e comércios e serviços especializados. Numa reorganização dessa natureza tende a mudar a equação do emprego e a crescer o circuito inferior, dando um ar de família às paisagens ao longo da rede urbana. Na economia superior, o dinheiro e os instrumentos financeiros são profusos e capilarizados, uma vez que seus agentes são bancos e instituições financeiras ou têm participação nestes, com as respectivas interferências nas demais atividades. Além disso, essas firmas trabalham com grandes volumes de mercadorias, modo de existência na cidade contemporânea 33 | exceto as lojas especializadas de preços muito altos ou mesmo as atividades sob encomenda e, portanto, dominam a massa, mas hoje, sobretudo, os fluxos graças à logística, ao just-in-time e às tecnologias da informação. Na circulação de pessoas e objetos, a produção do movimento material –o transporte– acaba sendo, muitas vezes, menos interessante porque menos rentável para as grandes firmas do que a produção do movimento imaterial –a logística. Daí o poder econômico das empresas de logística, trading companies, consultoria que, perseguindo o que Arroyo (2015) denomina porosidade territorial, não podem prescindir do Estado. O circuito superior conta, outrossim, com possibilidades técnicas e normativas para demitir mão-de-obra ou impor novas relações como as contratações temporárias e, em definitivo, para comandar as variáveis determinantes da época. Entretanto, hoje não são apenas grandes indústrias e bancos que fazem parte do circuito superior, mas também corporações globais e multissetoriais, empresas de consultoria e informação, de produção e serviço de alta tecnologia, firmas do entertainment, fundos de investimento e fundos de pensão. Salientam, ainda mais a partir da pandemia de Covid-19, as firmas tecnológicas globais como Alphabet, Amazon, Apple, Microsoft, Netflix, Meta e as chinesas Baidu e Tencent, produtoras e usuárias da digitalização, da inteligência artificial e da robótica que produzem e comandam o big data e cujas repercussões na vida urbana demandarão ainda muita pesquisa e reflexão. Paralelamente observamos uma nova divisão territorial do trabalho no mundo financeiro, cujo papel na urbanização é inegável por meio dos ATM (CONTEL, 2011) onipresentes nos estabelecimentos de comércios e serviços, das instituições financeiras que oferecem crédito desburocratizado, das bandeiras dos cartões de crédito, das grandes redes comerciais, das fintech (PARSERISAS, 2020; 2021) e dos aplicativos nos celulares, manifestações mais visíveis de um processo de concentração de capital e ubiquidade de produtos e investimentos. Caracterizada ademais por bancos que terceirizam funções (CREUZ, 2018) e por firmas que operam e asseguram, através da engenharia de dados, os processos de envio, captação e transmissão de informações com o papel central dos gateways, essa “economia monetária digital” (CREUZ, 2019, p. 432) encontra no endividamento um novo traço de união entre os circuitos. No momento em que o risco é transformado em mercadoria a partir dos derivados, que Appadurai (2017, p. 14) entende como “a principal inovação técnica que caracteriza as finanças contemporâneas”, todos os atores podem ser alcançados pelo crédito. Montenegro (2014, p. 231) explica que o aumento da oferta de crédito vem acompanhado, nas metrópoles brasileiras, “do avanço do endividamento e da inadimplência, implicando, por conseguinte, a reprodução da pobreza em novos termos”. Um autor como Lazzarato (2013, p. 24) assevera que “pelo simples mecanismo dos juros, quantias colossais são transferidas da população, das empresas e do Estado benfeitor aos credores”. Por outra parte, como o capital comercial tornou-se financeiro, certas firmas ganham novo poder. É o caso das redes de atacado, de eletrodomésticos, de materiais de construção e dos hipermercados, detentores de cartões fidelidade e de crédito, tantas vezes instalados em bairros pobres, nas novas centralidades metropolitanas e ao longo da rede urbana (DI NUCCI, 2015). Se os cartões de | 34 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 crédito podem ser vistos como mediação visível da monetarização da vida social, os agentes com capacidade de emiti-los podem revelar que nos encontramos perante novas formas de capital financeiro (SILVEIRA, 2020). Mais uma manifestação da expansão do sistema financeiro para além do sistema bancário. Uma topologia de pontos de produção, distribuição e consumo desenha-se na cidade e no território nacional ao sabor de dinâmicas de escala global, levando à modernização do meio construído urbano. Assim como na escala nacional, é mister criar no espaço urbano as condições de realização da produção dos agentes mais poderosos, o que resulta num condicionamento ao poder público, sobretudo face ao déficit de equipamentos coletivos, particularmente nas metrópoles. Na década de 1970, Topalov (1979) propôs a noção socialização capitalista para denominar as modernizações financiadas com o dinheiro do conjunto da sociedade e cujos benefícios eram usufruídos por um punhado de agentes. Mais tarde, Santos (1990, p. 95) alertava sobre a formação de cidades e metrópoles corporativas nas quais “o essencial do esforço de equipamento é primordialmente feito para o serviço das empresas hegemônicas” e “o que porventura interessa às demais empresas e ao grosso da população é praticamente o residual na elaboração dos orçamentos públicos”. Contudo, ir além do fenomênico significa captar a filigrana de divisões territoriais do trabalho de diferente capitalização que permitem compreender como cada agente encontra um lugar na cidade para realizar sua produção. Eis a economia política da cidade (SANTOS, 1994), vista como um método para apreender o espaço geográfico, sinônimo de território usado. Perante a atual constituição e divisibilidade do fenômeno técnico, as divisões sociais e territoriais do trabalho tornam-se ainda mais complexas porque um número maior de agentes pode ter acesso aos objetos ou às formas de fazer tecnificadas. Aqui ganha novo significado a noção de general intellect (MARX, 1972, p. 230), isto é, a “força objetivada do conhecimento”, o conhecimento social tornado força produtiva, a capacidade científica objetivada que complementa o sistema de máquinas. Tratar-se-ia de um patamar superior do modo pelo qual se perfaz a cooperação e se produz a riqueza. Na opinião de Virno (2008) o general intellect não está presente apenas no capital fixo, mas também no trabalho vivo, sobretudo na interação comunicativa. Para esse autor trata-se da ação concreta e concertada entre indivíduos na forma de paradigmas epistêmicos, linguagens artificiais e constelações conceituais que governam a comunicação social e as formas de vida. Hoje essa seria a principal força produtiva (VIRNO, 2008). Não está longe da ideia de tecnificação da ação contemporânea, proposta por Milton Santos (1996). Esse parece um aspecto fundamental para pensarmos o funcionamento atual da economia urbana e, particularmente, a constituição atual do circuito superior e os nexos com sua porção marginal. Mas nada disso pode ser explicado sem atentar para a crescente normatização e para o domínio e ubiquidade das finanças. modo de existência na cidade contemporânea 35 | 5| PENSANDO AS NOVAS PORÇÕES MARGINAIS DO CIRCUITO SUPERIOR Na complexidade da atual divisão territorial do trabalho, que buscamos explicar nos parágrafos precedentes, a feitura de numerosas tarefas necessárias aos processos modernizadores amiúde não interessa aos agentes mais poderosos e, por isso, é derivada a um conjunto de pequenas e médias empresas que conformam a porção marginal do circuito superior. Esta é responsável também pela difusão das variáveis determinantes que, inclusive, marcam o ritmo do seu trabalho, embora sua condição de efemeridade e vulnerabilidade a assemelhe ao circuito inferior. Entretanto, não é um circuito intermediário, mas um circuito moderno capaz de completar a unicidade técnica (SANTOS, 1996), e o preço de não acompanhar o passo é a inevitável perda da sua complementaridade horizontal com o circuito superior propriamente dito, que define sua condição de emergente. Embora possa consolidar-se, transformando-se num circuito superior puro, frequentemente não consegue tal façanha, tornando-se uma rugosidade ou uma porção residual, tanto mais quanto mais acelerada seja a substituição de uma divisão territorial do trabalho por outra. A chegada de grandes capitais –um circuito superior metropolitano– pode acelerar o processo de descapitalização das firmas regionais, próprias de uma porção marginal. Josefina Di Nucci (2019) relaciona esse processo com o enfraquecimento do comando, por parte de atores regionais, das redes urbanas da província de Buenos Aires, ao analisar as situações dos Supermercados Toledo e CLC. Originárias de Mar del Plata e Saladillo, respectivamente e com marcada presença no interior da província de Buenos Aires, ambas as redes acabaram por fechar ou vender boa parcela das suas lojas para grandes redes internacionais, circunscrevendo seus mercados às cidades de origem. É possível observar o surgimento e a multiplicação das porções marginais do circuito superior na esteira das novas técnicas e da permanente revolução dos consumos de uma população em crescimento. É o caso da elaboração de alimentos orgânicos, fabricação de insumos para alimentação e indústria cosmética, design, desenvolvimento de aplicativos, entre outros. Tantas vezes, há tentativas efêmeras, que mostram concomitantemente a perda de pequenos capitais e de dinheiro público na forma de créditos ou isenções de alguma natureza. Ao contrário, quando se trata de firmas bem-sucedidas, não raro, são adquiridas por agentes mais capitalizados. A porção marginal também se expande nos interstícios mais largos da divisão do trabalho nas cidades médias, ora por imitação, ora como consequência da saturação dos mercados metropolitanos. Contudo, algumas empresas cujo grau de capital não é alto conseguem manter-se como uma porção marginal em cidades médias graças ao exercício de uma situação de oligopólio circunscrita localmente e, por essa via, podem vir a tornar-se um circuito superior propriamente dito. Dentre os fatores que possibilitam essa situação. podemos mencionar a posse de técnicas ou de um know-how ou ramo específico, a modernização seletiva do território, o deterioro da rede rodoviária e ferroviária, o escasso desenvolvimento das telecomunicações, o papel da distância ou, inclusive, o próprio desinteresse das grandes firmas pela área. Bicudo Jr. (2006) mostrou como a chegada de medicamentos nas áreas de mais difícil acesso no território brasileiro resultava | 36 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 de uma complexa arena de pequenas firmas distribuidoras regionais. Todavia, alguns desses mesmos fatores podem provocar a decadência de outras firmas, cuja inserção na divisão territorial do trabalho depende mais da fluidez e do intercâmbio. Graças ao atual sistema técnico, a incessante produção de informação e a aceleração da sua circulação amplia a oferta de insumos, bens e serviços em ambos os circuitos e, assim, alargam-se também as formas de produção e consumo. Hoje, numerosas atividades do tradicional setor terciário nascem integradas ao processo de produção e circulação, como os serviços pós-compra, as manutenções, as atualizações, as garantias e os seguros. É também o caso das assistências técnicas, nas quais um novo sistema de normas acaba criando um interstício para a formação de uma porção marginal (DAVID, 2016). Nessas condições, a informação torna-se um fator de produção de rápida obsolescência e, por isso, cria permanentemente uma demanda por serviços técnicos, como nas firmas da alimentação analisadas por Busch (2018). Aqui as afirmações de Virno (2008, p. 91) ganham novo sentido quando explica que “profissionalismo” deriva de “oportunismo”, fazendo alusão ao valor técnico, à reação cognitiva e comportamental face à indeterminação e ao fato de transitar com habilidade entre oportunidades abstratas e intercambiáveis. Hoje, assistimos o descortinar de talentos genericamente sociais, advindos da socialização atual e do hábito de não ter hábitos duradouros (VIRNO, 2008). Pensamos que, num período no qual o general intellect ganha grande relevância, esse é um traço que ajuda a entender a tendência dos jovens profissionais a criarem suas próprias empresas, conformando uma porção marginal bastante técnica e elástica. Ao mesmo tempo, cresce o número de profissionais qualificados que trabalham como freelancer para empresas ou clientes no exterior, revelando tanto uma nova forma de internacionalização dos territórios nacionais como os nós de redes imateriais. É o caso da plataforma Workana, a mais importante da América Latina, que vincula três milhões de trabalhadores freelance com mais de 600 mil empresas no mundo. Esse tipo de trabalho também está provocando migrações de nova natureza, os denominados nômades digitais. Não podemos esquecer, como alerta Berardi (2021), que a acumulação de conhecimentos e o aprimoramento da tecnologia levou ao aumento da produtividade do general intellect e, com isso, ao automatismo e ao esgotamento dos trabalhadores cognitivos. Embora a tecnificação do trabalho possibilite o crescimento e diversificação da porção marginal, aumenta, ao mesmo tempo, sua subordinação ao circuito superior propriamente dito e sua capacidade de tornar-se mais um braço deste na apropriação das rendas dos mais pobres. Em outras palavras, também por meio das suas porções marginais o circuito superior estabelece uma complementaridade hierárquica com o circuito inferior. Os fenômenos conhecidos como sharing economy e gig economy, que assinalam respectivamente a possibilidade de compartilhar certos meios de produção e o caráter temporário dos trabalhos, podem ser vistos como manifestações do que estamos buscando explicar. É o que parece acontecer com a produção e utilização de numerosos aplicativos no que Srnicek (2018) denomina “capitalismo de plataformas”, isto é, um momento do capitalismo no qual desponta uma economia digital face à queda da rentabilidade do setor industrial. Tratar-se-ia, segundo esse autor, de novas infraestruturas digitais que se erigem como intermediárias de outras atividades. No entanto, é modo de existência na cidade contemporânea 37 | importante sublinhar a enorme diferença de poder técnico e econômico entre, de um lado, as tecnológicas globais como Amazon e as demais já mencionadas e, de outro, as companhias de plataformas, sejam estas as que realizam o trabalho de maneira digital para um mercado global, como Upwork, sejam as que sendo globais trabalham localmente como Uber, entre tantas outras (ILO, 2021). É evidente que transformações de tal natureza e proporção, no seio do que Milton Santos (1999) denominou modo de produção técnico-científico, provocam a indissociável mutação do circuito superior marginal. Em novas complementaridades, o circuito superior puro, sua porção marginal e o circuito inferior utilizam esses aplicativos que permitem organizar a força de trabalho, antes contratada individualmente, em sistemas centralizados que alargam e adensam o tecido da oferta e da demanda, uma vez que dão visibilidade ao prestador do serviço via internet e celulares e viabilizam e aceleram a contratação por meio de cartões, terminais de pagamento e carteiras digitais. Trata-se de um verdadeiro alargamento dos contextos (SANTOS, 1996), definido pelo crescimento do número de atores envolvidos nos processos graças à multiplicação das interdependências. Sistemas técnicos que reúnem dispositivos materiais e general intellect, os aplicativos resultam numa mediação significativa, ora exercida por grandes empresas do circuito superior, ora por uma porção marginal. Multiplicam-se as firmas especializadas em funções de um terciário banal: reformas e consertos, limpeza de casas, entrega de refeições prontas e outros bens, transportes, hotéis e restaurantes, entre outras. Nessa nova complementaridade hierárquica entre o agente que elabora um bem ou presta um serviço, o motoboy que eventualmente transporta o produto e os pagamentos virtuais, instaura-se uma nova forma de intermediação, já que uma parcela do valor do serviço fica nas mãos da empresa que gerencia a distribuição do trabalho por meio do aplicativo. Embora essa intermediação amplie a escala da sua oferta, não deixa de ser uma redução do excedente para os agentes da porção marginal e do circuito inferior. Os softwares que estão na base desses novos sistemas de trabalho têm como traços comuns o georreferenciamento, as bases de dados de trabalhadores e clientes, a tecnologia de comunicação, o rastreamento do trabalhador e o controle do tempo do serviço, o pagamento virtual e a avaliação do serviço. Desse modo, aumenta o grau de organização e alteram-se as condições gerais de emprego nos serviços banais. Há também uma tendência à unificação dos preços dos bens e serviços que passam a fazer parte de plataformas online e, desse modo, parecem tornar-se commodities. Por outra parte, as agtech multiplicam-se, sobretudo ao ritmo das rodadas de investimentos em startups, revelando novas complementaridades verticais dessas porções emergentes do circuito superior com agentes capitalizados e financeiros. Schiaffino (2020) mostra a dinâmica de inserção nos mercados nacionais e internacionais de firmas como Sismagro e SIMA, com sede nas cidades argentinas de Buenos Aires e Rosario respectivamente, dedicadas à elaboração de plataformas digitais para uso de informação agrícola e desenvolvimento de aplicativos para smartphones, orientados ao trabalho no campo modernizado. | 38 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 6| FEIÇÕES E DINÂMICAS CONTEMPORÂNEAS DO CIRCUITO INFERIOR A dinâmica urbana completa-se com o circuito inferior, definido pela fabricação, comércio e serviços de pequena escala, realizados a partir de capitais reduzidos e de um trabalho intensivo. A criação e a imitação convivem e utilizamse da justaposição de técnicas, ao tempo que as situações de emprego são diversas e envolvem acordos pessoais entre empregador e empregado, trabalho autônomo e familiar, entre outras. Trata-se do pequeno comércio varejista, vendedores ambulantes, diversos artesanatos, consertos, alguns transportes e serviços banais, mas também algumas formas de fabricação. Variável intrínseca do circuito inferior, a migração não qualificada alimenta tal circuito pela base e contribui a manter baixas as rendas. Não se trata de um circuito tradicional, já que é um produto indireto da modernização e está em permanente transformação e adaptação. Na sua longa pesquisa sobre os circuitos da economia urbana na área concentrada da Argentina, Di Nucci (2010) encontrou, nas cidades de Mar del Plata e Tandil, pequenas empresas como Spring-up e Tandil Jugos que fabricavam refrigerantes, com técnicas artesanais, organização familiar e trabalho intensivo. Estudando a produção automotriz na região metropolitana de Buenos Aires, Donato Laborde (2017) constatou a importância das pequenas oficinas mecânicas, indispensáveis para a manutenção da frota de veículos mais envelhecida, porém com significativas complementaridades com o circuito superior na busca da atualização técnica e normativa, da aquisição de ferramentas e maquinário e, quando possível, do crédito. De tal modo, nos diversos ramos, uma parte do abastecimento do circuito inferior provém dos atores modernos, dos quais depende e de cuja propaganda beneficia-se indiretamente. No entanto, alguns desses agentes pouco capitalizados também fazem publicidade por meio de banners, cartões, boca a boca, rádios, redes sociais, jornais locais e comunitários e qualquer outro veículo de baixo ou nenhum custo. Embora continue a existir particularmente nas periferias, o agiota foi substituído hoje pelos bancos e instituições financeiras, embrenhados como estão na desburocratização do crédito (SILVEIRA, 2009; 2017). A presença do circuito inferior é mais significativa nos centros e periferias metropolitanas, onde a densidade demográfica e a contiguidade ensejam –apesar das inovações digitais ascendentes ou coexistindo com estas– o que Marina Montenegro (2014) denomina “economia dos centavos”, uma vez que há um conjunto de transações que gira em torno das pequenas quantias de dinheiro vivo. Como vimos, a expansão das manchas urbanas é uma característica constitutiva do atual processo de urbanização, que se acompanha de dois processos entrelaçados: de um lado, o déficit de habitação, equipamentos, transportes e serviços e, de outro, a produção de soluções individuais face à escassez desses mesmos bens e serviços, como os motoboys e moto-taxis (Oliveira, 2011) e a miríade de plataformas já mencionadas. Boa parte dessas soluções supõe graus mais altos de financeirização e endividamento. A partir da difusão atual de um sistema técnico com tendência à unicidade, poderíamos diferenciar tecnologias pretensamente inclusivas, que aumentam a capilaridade do dinheiro eletrônico e do crédito e, assim, criam novas determinações e dependências, e tecnologias excludentes, fundamentalmente modo de existência na cidade contemporânea 39 | a automação da indústria, do comércio e dos serviços que reduz o número de empregos nos respectivos setores. No entanto, pouco se fala sobre as tecnologias deliberadamente ocultadas, isto é, as inovações eclipsadas a que se referia Gaudin (1978), as quais teriam permitido resolver problemas simples da vida e, quiçá, ampliar a base de empregos. Quando a técnica é pensada per se, desconsiderando sua diversidade e a possibilidade política de combinação de instrumentos, aparece como absoluta e inquestionável e impõe formas de organização. Olhada com mais vagar, a técnica contemporânea revela a coexistência entre, de um lado, macrossistemas técnicos, variável intrínseca do circuito superior que aumenta a fluidez potencial e, por isso, pode levar a um uso seletivo do território e, de outro, um leque de técnicas divisíveis, doces e flexíveis (Gaudin, 1978; Santos, 1996), variável intrínseca do circuito inferior. No entanto, haveria um leque de combinações possíveis, com ênfase nos microssistemas técnicos, que demandam informação para sua produção e funcionamento e não obrigatoriamente precisam de alta capitalização. Se a velocidade e seletividade na escolha de localizações e a respectiva produção de amplas topologias são dados do comportamento do circuito superior, o enraizamento continua a caracterizar o inferior, revelando a persistência do circuito inferior central (SANTOS, 1975) nos centros metropolitanos, naquilo que Pacheco (2020, p. 273), estudando a cidade do Rio de Janeiro, denomina “coração terciário do centro”. Mesmo quando a venda de produtos importados da China tornou-se muito frequente nos estabelecimentos comerciais, nas grandes feiras e nos camelôs do centro de São Paulo, tal como mostrou a pesquisa de Montenegro (2014), o circuito inferior não se transforma por isso numa atividade footloose, a não ser quando o indivíduo emigra levando o pequeno capital na sua mão. Alertando sobre a necessidade de entender o camelô como categoria sociológica e não como tipo social, Ana Clara Torres Ribeiro (2014, p. 200) afirma que “é dessa maneira que de fato a sociedade se constitui na maior parte do tempo: é a estratégia do camelô, as pessoas se viram, a enorme ‘viração brasileira’”. Entretanto, os excedentes das atividades do circuito inferior são captados, a cada dia mais, pelo sumidouro das empresas do circuito superior em cada pedaço do território. Possíveis graças aos atuais semoventes técnicos, os pagamentos virtuais modificam o exercício das atividades fixas e móveis, criando novas possibilidades nos lugares e atingindo também os pobres. Os pagamentos por meio das “maquininhas” de cartões e, cada vez mais, dos smart POS e do QR Codes possibilitam a ampliação dos mercados dos serviços banais e, ao mesmo tempo, aumentam sua dependência financeira por meio das taxas cobradas e dos prazos impostos pelos bancos e pelas bandeiras dos cartões. Na Argentina, surgiram aplicativos e plataformas que incluem carteiras virtuais como Todo Pago da rede de bancos privados Banelco, Vale da rede de bancos públicos Link, Rapipago, PIM do Banco Nación e fundamentalmente Mercado Pago, pertencente ao Mercado Livre e que, no ano de 2016, tinha realizado 140 milhões de transações (SILVEIRA, 2020). De tal maneira o circuito inferior também passa a depender da tecnologia, pois de modo geral há uma requalificação da demanda, uma vez que, atravessando todas as camadas sociais, o consumo encontra diversas formas de realização, ainda que com diferentes custos do dinheiro. O produtor ou vendedor do circuito inferior encontra-se hoje com um cliente que, embora carente de liquidez, possui | 40 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 um cartão de débito ou crédito e ganha, portanto, uma capacidade de consumir relativamente desassociada do seu poder aquisitivo, aquilo que Bauman (2007, p. 136) assinalava como homo consumens. Este autor (2007, p. 72) reconhecia a vida a crédito, que implica a incorporação do hábito de viver com dívida e sem poupança, participando da “economia do engano”. Dir-se-ia que, em décadas passadas, a liquidez permitia uma negociação “orgânica”, isto é, uma relação direta entre cliente e vendedor no lugar sem mais mediações. Impõe-se, agora, uma redução dessa organicidade e a implantação de um princípio organizacional na negociação, que é alheio ao lugar. Na negociação orgânica, os prazos de pagamento eram dados pelas possibilidades e limites do vendedor –sua subsistência, o custo das mercadorias compradas e a necessidade de comprar novos produtos, sua demanda de liquidez– e pelos prazos do comprador –quantias de dinheiro vivo, data do pagamento do salário e outras despesas a serem pagas no mesmo momento. Na negociação “organizacional” o prazo determinante é o do banco ou da financeira –dia de vencimento da fatura do cartão ou do empréstimo– e as possibilidades de consumir e voltar a consumir advêm do refinanciamento da dívida e da possibilidade de crédito antecipado, entre outros elementos. 7| À GUISA DE CONCLUSÃO: PENSANDO ALGUNS ELEMENTOS RELACIONAIS DOS CIRCUITOS DA ECONOMIA URBANA Um estudo dos circuitos da economia urbana demanda não apenas uma abordagem dos elementos constitutivos para mostrar a diversidade do fenômeno urbano –como buscamos fazer nos itens anteriores, mas também dos nexos entre os circuitos. A apreensão de tais elementos relacionais nos aproxima ao nosso concreto pensado: a unidade do fenômeno urbano. Nesse sentido, é oportuno aceitar o conselho de Bourdieu et al. (2011) quando afirmam que a consciência da unidade do objeto de pesquisa leva a uma vigilância epistemológica para não separar o indissociável e para pôr de relevo as relações que ontologicamente unem o que provisória e metodologicamente foi cindido. O Estado é um dos mais importantes traços de união entre os circuitos, desempenhando tantas vezes o papel de árbitro, fundamentalmente quando se trata da relação entre o circuito superior e sua porção marginal. Como resultado dessa mediação, não é incomum que se consolide a existência de um mercado oligopolizado. É o caso das compras públicas e das contratações de serviços que, amiúde, beneficiam os agentes mais capitalizados, dotados de capacidade técnica suficiente para enfrentar a construção de grandes obras de infraestrutura, a fabricação em grande escala de produtos especializados ou a prestação de serviços complexos, assim como de poder econômico para influenciar as políticas públicas. Na sua análise dos circuitos da economia urbana dos equipamentos médicos no estado de São Paulo, David (2016, p. 194) constatou que os distribuidores menos capitalizados orientavam-se às demandas locais privadas, “já que a compra por parte dos estabelecimentos públicos exige escala de produção”. Essas situações acabam excluindo firmas de menores graus de capital, tecnologia e organização, cuja existência é decisiva para limitar a oligopolização da economia e do território e, certamente, para a criação de empregos. modo de existência na cidade contemporânea 41 | Cabe também lembrar o papel do Estado na denominada economia do acesso, significativamente dominada pelo circuito superior mas que, a partir da nova revolução tecnológica, vê também surgir porções marginais. A telefonia celular, a Internet e as diversas formas de televisão por assinatura, cujo consumo se difunde aceleradamente em todas as camadas sociais, constituindo tantas vezes verdadeiros fatores de produção, não se desenvolvem sem a regulação pública. De fato, a política pública está chamada a atingir um complexo equilíbrio entre a modernização permanente das infraestruturas, que envolve investimentos públicos e privados e rigorosos controles ao cumprimento dos contratos das empresas, a distribuição territorial dos serviços e as políticas tarifárias. Como resultado de uma desordem nessa equação, existem áreas mal servidas, onde a população acaba pagando mais caro acesso aos mesmos serviços. É o que acontece com a telefonia celular, com as modalidades de serviço pré-pago e, inclusive, com o uso da internet através do celular. Em função das tarifas mais altas, o peso desses serviços nos orçamentos familiares dos pobres e, inclusive, de certas classes médias é significativo. Desse modo, como as famílias veem majorar suas despesas fixas nesses serviços, aumenta sua necessidade de consumir de modo fracionado e segundo sua liquidez os demais bens e serviços. Eis uma das razões da elasticidade dos mercados do circuito inferior. Por outra parte, as políticas orientadas ao desenvolvimento do circuito superior, acompanhadas de fórmulas para remediar a pobreza, parecem amiúde consolidar a ideia de que a economia informal é o leitmotiv dos problemas, atrasando o encontro de diagnósticos mais próximos do real e as respectivas e urgentes soluções. Assistimos, não raro, a uma esquizofrenia entre processos modernizadores e diversos clientelismos interessados em manter a ordem existente, cujo corolário é a ineficácia técnica e organizativa na provisão de um bom serviço à população. Frequentemente vinculada a modelos globalizados de urbanismo, turismo e lazer, a modernização contemporânea impede a inclusão efetiva de um maior número de pessoas num espaço urbano revitalizado. Assim, certas porções da cidade que eram refúgios da pobreza tornam-se objeto de renovadas políticas higienistas que expulsam o circuito inferior. Por outra parte, convivemos com organizações corruptas e clientelistas associadas à permanência do comércio e do transporte clandestinos, cujo traço mais significativo é menos a informalidade e mais seu alto grau de capitalização. É também necessário pensar o papel do Estado na promoção da economia imaterial a partir de projetos de smart cities, indústrias criativas, desconcentração industrial, que parecem indissociáveis de certa automação do trabalho no circuito superior e de um crescimento do quaternário altamente especializado. Nesse contexto, a porção marginal presta serviços ora qualificados, ora banais, e o circuito inferior conhece uma nova expansão no comércio e nos serviços pessoais numa cidade que vê perder seu emprego industrial. Por outra parte, tantas vezes levando a uma espécie de folclorização das atividades menos capitalizadas, as políticas de inovação social e empreendedorismo decorrem de uma trama de isenções tributárias, patrocínios, mecenas e investidores-anjos que pode acabar numa confusão entre dinheiro público, dinheiro social e dinheiro corporativo. Na produção de um meio construído apto para as atividades da economia imaterial, as empresas organizam espaços de coworking, isto é, ações que criam organizacionalmente a contiguidade e certa densidade comunicacional. Nascem os | 42 revista cidades volume 14 | número 23 | ano 2022 individualismos de base técnica num primeiro momento e, no momento seguinte, cria-se o ambiente coletivo. Não esqueçamos que, nos pedaços deteriorados do meio construído urbano, o circuito inferior nunca abandonou a contiguidade, o convívio e a comunicação, já que estas são as condições da sua existência. A globalização da técnica, da informação e da finança transforma as complementaridades entre os circuitos ao longo da rede urbana. Na década de 1970, Milton Santos (1975) assinalava que, na pequena cidade, o circuito inferior podia substituir os serviços modernos, ao tempo que na cidade grande esse circuito existia para atender demandas da população pobre apesar do grande número de serviços modernos. A conclusão era que se o volume do circuito inferior variava em relação direta à importância dos centros, sua importância relativa para a economia urbana variava indiretamente à hierarquia dos centros urbanos. Esse quadro parece ter-se modificado, de um lado, pela onipresença social e territorial do circuito superior, que chega nas cidades de menor hierarquia com a instalação de estabelecimentos próprios ou franquias e, de outro, pela importância do circuito inferior metropolitano na venda de produtos modernos que provêm de longe e cuja oferta também acaba atraindo consumidores de outras cidades. Em decorrência, o mercado do circuito inferior não é apenas local, mas regional e nacional, fundamentalmente a partir dos agentes pouco capitalizados que integram, junto ao circuito superior marginal e ao circuito superior, a formação de áreas especializadas na metrópole (SILVEIRA, 2004) e, assim, participam das polarizações. Além disso, a irrupção e depois a banalização do comércio eletrônico, graças à nova base técnica e aos sistemas de ações definidos como logística, tenderam a tornar ubíqua a variedade. A partir de um smartphone ou de um computador é possível o acesso a produtos e serviços para além da hierarquia urbana. De posse de sistemas próprios de logística ou em parceria com outras empresas, Amazon, Mercado Livre e OLX, para mencionar algumas, ampliam os contextos da oferta e da demanda e revelam que boa parte das articulações entre os circuitos, mais do que nunca antes, acontecem fora de cada cidade. Na economia superior, os avanços da tecnificação, somados às formas mais flexíveis de contratação, tendem a demandar menos empregos em certos pontos do território. Em decorrência, expande-se o circuito inferior para absorver esse excedente de mão de obra e, desse modo, tende a aumentar a concentração de pessoas naqueles pontos onde a demanda já existe e por isso é possível oferecer algum bem ou serviço. As novas formas de organização da produção contribuem para explicar os movimentos da população, as novas localizações produtivas e as renovadas economias de aglomeração nos pedaços das cidades. Por outra parte, os atacadistas, dentre eles os hipermercados, avançam sobre o varejo, isto é, envolvem os consumos ‘consumptivos’ das classes médias e o abastecimento das pequenas quitandas do circuito inferior. Significará isso uma redução da intermediação? Em função das situações de oligopólio que exercem, esses grandes atacadistas não diminuem os preços e, desse modo, nos perguntamos se estamos defronte novos horizontes de acumulação pelo fato de prescindir de porções marginais. modo de existência na cidade contemporânea 43 | Como massa ou como fluxo a população mostra, hoje, a pobreza estrutural e sua coexistência com a multiplicação dos consumos. Esse retrato parece-nos mais uma prova da necessidade de entender a pobreza como um fenômeno historicamente determinado. Como já escrevera Milton Santos em 1978, a pobreza deve ser entendida ao mesmo tempo como uma categoria econômica e como uma categoria política. Demanda uma noção dinâmica, já que não é apenas um estado, mas um processo; não é um elemento residual, senão um aspecto estrutural do processo de modernização concentrada. Esse é o contexto no qual o circuito inferior cresce aparentemente sem limites, encontrando também outros usos para a técnica contemporânea (Santos, 1996; Martín-Barbero, 2003). O circuito inferior contribui a criar, espontaneamente e sobretudo na metrópole, economias de aglomeração. Estas são um verdadeiro laboratório para compreender a imitação, mas também a criatividade da economia de baixo fundada na docilidade das técnicas contemporâneas, na aderência ao lugar, no abastecimento e no emprego a partir de baixos capitais e abundante trabalho. Nesses atores, a preocupação pela sobrevivência ultrapassa a preocupação pelo lucro como elemento funcional da atividade. Essa economia assemelha-se a um tecido. No momento em que invade os mercados de insumos e produtos do circuito inferior, o circuito superior substitui o tecido –o abastecimento recíproco entre agentes pouco capitalizados– por um fio –grandes firmas que exercem situações de oligopólio e oligopsônio. O certo é que o circuito superior renova, sobre a base da técnica da informação, sua capacidade de macro-organizar o território e o circuito inferior parece, ao mesmo tempo, ampliar-se e diminuir os excedentes do seu trabalho. Acelerada pelas consequências da pandemia de Covid-19 e das políticas exercidas para combatê-la, a expansão do circuito inferior e da pobreza demandará, ainda mais que antes, uma perspectiva compreensiva da cidade como um todo e não apenas uma mera descrição de atividades modernas. Hoje, a cidade é o reino dos paradoxos, os quais despontam como limites para um discurso taxativo. Nesse caminho, trata-se de atentar para as relações horizontais, as interdependências e as solidariedades que permitam entender as formas de descobrimento da escassez e o pragmatismo existencial (Santos, 2000) como formas de construir uma nova consciência. As novas combinações técnicas e a valorização das economias de aglomeração como lugares de coexistência poderiam, entre outros aspectos, apontar um conteúdo para a política. 8| REFERÊNCIAS APPADURAI, A. Hacer negocios con palabras: el fracaso del lenguaje como clave para entender el capitalismo financiero. Buenos Aires: Siglo XXI, p. 224, 2017. ARROYO, M. Redes e circulação no uso e controle do território. In: ARROYO, M.;CRUZ, R.C.A. (Org.). Território e Circulação: a dinâmica contraditória da globalização. São Paulo: Annablume/FAPESP/PPGH/CAPES, p. 37-49, 2015. ARTHUR, W. B. The second economy. McKinsey Quarterly, p. 9, 2011. BAGACHWA, M.S.D; NAHO, A. Estimating the second economy in Tanzania. 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