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Razão e Fé No Contexto Do Mundo Contemporâneo

2022, Basilíade

BASILÍADE-REVISTA DE FILOSOFIA ADERE A UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS ATRIBUIÇÃO 4.0 INTERNACIONAL-(CC BY-NC 4.0

BASILÍADE - REVISTA DE FILOSOFIA ADERE A UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS ATRIBUIÇÃO 4.0 INTERNACIONAL – (CC BY-NC 4.0) DOI: 10.35357/2596-092X.v4n8p9-36/2022 ARTIGOS / ARTICLES RAZÃO E FÉ NO CONTEXTO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO Reason and Faith in the Context of the Contemporary World Manfredo Araújo de Oliveira1 RESUMO: Na cultura moderna, a visão da realidade em seu todo é reestruturada em suas raízes na base do novo quadro teórico do conhecimento, a ciência moderna e sua técnica. Isso transforma profundamente o cenário da problemática da relação ente Fé e Razão. Vivemos hoje uma mudança radical na estruturação das ciências modernas o que configura um novo paradigma com o que a fé e suas teologias não costumavam dialogar. Tudo isso significa que a questão da fé e da razão se situa hoje num cenário profundamente transformado em relação aos grandes debates do início da modernidade. O artigo procura retomar a questão a partir desse novo cenário teórico. PALAVRAS-CHAVE: Ciência; Técnica; Cultura moderna; Fé; Razão. ABSTRACT: In modern culture, the vision of reality as a whole is restructured at its roots on the basis of the new theoretical framework of knowledge, modern science and its technique. This radically transforms the scenario of the problematic of the relationship between Reason and Faith. Today, we are experiencing a profound change in the structuring of modern sciences, which configures a new paradigm with which faith and its theologies were not used to dialogue. All this means that the question of faith and reason is situated today in a profoundly transformed scenario in relation to the great debates of early modernity. The article seeks to resume the question from these new theoretical challenges. KEYWORDS: Science; Technique; Modern culture; Faith; Reason. 1. A situação do mundo contemporâneo Um fato irrecusável para a compreensão do mundo em que vivemos e do situar-se do ser humano atual frente à realidade em seu todo é a técnica moderna. Entender de forma adequada a função que ela exerce na civilização hodierna só se faz possível por meio da tematização do horizonte de compreensão do universo que baliza a cultura e a civilização da modernidade uma vez que aqui a técnica não se limita a ser um fenômeno entre outros 1 Doutor em filosofia pela Universität München Ludwig Maximilian e professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected] Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 9 ou mesmo apenas um campo ao lado de outros, mas constitui o princípio determinante deste modelo de civilização2. Na cultura moderna, os quadros de pensamento e de ação, a própria captação do sentido da realidade em seu todo é reestruturada em suas raízes na base do novo quadro teórico do conhecimento, a ciência moderna e da técnica daí resultante que exercem um papel cada vez mais importante na configuração da vida humana individual e social atingindo até os espaços mais íntimos e privados da vida, os hábitos e costumes, as instituições e os valores, e constitui, assim, um novo estilo de ser e de viver. A consequência é que a forma como o ser humano se autocompreende e sua visão do todo da realidade hoje têm as ciências como fontes. Por essa razão, como afirma Puntel3: “[...] não pode haver dúvida sobre o seguinte fator fundamental: nenhum povo, nenhuma nação, nenhuma cultura pode hoje rejeitar de modo radical o grande processo científico, já que a estrutura central da comunidade mundial é decididamente marcada por esta dimensão científica. Esta dimensão é o mais poderoso fator unificante da humanidade”. Isso certamente possui implicações fundamentais para a fé e suas teologias que existem não em função de si mesmas, mas do mundo e dos seres humanos: elas não só não podem ignorar tal saber, como têm de considerá-lo um parceiro fundamental de diálogo pelo menos pelo fato de isso ser constitutivo de nosso contexto civilizatório. Karl Rahner4 afirma que as ciências naturais e as ciências sociais, que produziram o ser humano da racionalidade técnico-científica da modernidade através de sua visão do todo e de suas perguntas peculiares, já transformaram consideravelmente a situação da teologia. Na realidade, em suas formulações concretas, essas ciências hoje articulam pretensões que extrapolam de muito seu quadro teórico próprio. Assim, por exemplo, não somente não acolhem a filosofia como aquele empreendimento teórico que lhes equipava e justificava seu próprio horizonte de trabalho, mas levantam a pretensão de deliberar sobre a compreensão da vida humana e de todo o real independentemente da filosofia. Sua característica central é, para J. Ladrière, seu caráter operatório: “Compreendemos a natureza tentando, à nossa maneira, imitar suas operações, refazendo, por nossa conta, o 2 Cf. OLIVEIRA, M. A. de. O positivismo tecnológico como forma da consciência contemporânea. In: OLIVEIRA, M. A. de. A filosofia na crise da modernidade. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 73-83. 3 Cf. PUNTEL, L. B A teologia cristã em face da filosofia contemporânea. Síntese, Belo Horizonte, v. 28. n. 92, p. 359-389, 2001, p. 364-365. 4 Cf. RAHNER, K. Philosophie und Philosophieren in der Theologie. In: RAHNER, K. Schriften zur Theologie. Bd. VIII. Einsiedeln; Zurich; Kóln: Benziger Verlag, 1967, p. 84. OLIVEIRA M. A. de. É necessário filosofar na teologia. In: OLIVEIRA P.R.F.de/PAUL Cl. (Orgs.). Karl Rahner em perspectiva. São Paulo: Loyola, 2004, p. 201-218. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 10 desenrolar-se dos fenômenos cujos vestígios podemos registrar. Nossas explicações são, na realidade, produtoras; nossas teorias produzem o que a natureza produz, permitem reconstituir no abstrato, na forma de modelos analógicos, o encadeamento concreto dos fenômenos reais”5. Por isso, se um diálogo se faz hoje imprescindível, então se faz também necessário, afirma Rahner6, uma consideração rigorosa de questões de teoria do conhecimento e de teoria das ciências no que concerne à essência, à autonomia, aos pontos de contato e aos possíveis conflitos, à especificidade teórica das ciências e das teologias. Mario Bunge considera a consciência que se gestou depois da Segunda Guerra Mundial sobre o papel fundamental das teorias nas diversas ciências, inclusive nas ciências não-físicas, a maior revolução científica desde o nascimento da teoria atômica contemporânea7. Isso tem inevitavelmente consequências importantes para o enfrentamento da questão das relações entre fé e razão hoje. Para L. Boff, uma primeira problemática aqui é fundamental em nossos dias. Vivemos uma mudança profunda na estruturação das ciências o que configura um novo paradigma com o que as teologias não costumavam dialogar: as ciências da vida e da terra, a mecânica quântica, a teoria da relatividade, a nova biologia, as neurociências e principalmente a astrofísica e a cosmologia contemporânea e outras, todas elas englobadas pela teoria da evolução ampliada. O surgimento desse novo tipo de ciência e o diálogo da teologia com elas conduz a uma mudança de paradigma na própria teologia alargando seu horizonte de trabalho8. Antes de mais nada porque a nova estruturação das ciências traz consigo uma profunda “despotencialização” da razão: “antes dela, vigora o vasto e obscuro campo da passionalidade onde ela lança suas raízes e acima dela existe o mundo do espírito, da inteligência e do êxtase... a primeira reação do ser humano face ao real não é comandada pela razão, mas pela emoção”. Essa nova postura ele não vê reconhecida por C. Boff mostra uma clara concepção racionalista da razão e lhe confere tal dominância sobre todos os demais saberes, como os do coração pelo amor e pela compaixão, que significa verdadeiramente a instauração da ditadura da razão. Nem se precisa assinalar 5 Cf. LADRIÈRE, J. A articulação do sentido. São Paulo: E.P.U.; Edusp, 1977, p. 173. Cf. RAHNER, K. Naturwissenschaft und vernunftiger Glaube. In: RAHNER, K. Bilanz des Glaubens. Antworten des Theologen auf Fragen unsererZeit. München: DTV, 1985, p. 31. 7 Cf. BUNGE, M. Teoria y realidad. Barcelona: Ariel, 1985, p. 9ss. 8 Cf. BOFF L. Posfácio, in: AQUINO JÚNIOR, F. de. Teoria teológica: práxis teologal sobre o método da teologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2021, p. 161 e ss. 6 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 11 que esta concepção não tem nada a ver com a tradição bíblica para a qual o pensamento está antes nas entranhas que na cabeça9. Tudo isso significa dizer que a questão da fé e da razão se situa hoje num cenário profundamente transformado em relação aos grandes debates do início da modernidade10. Na teologia católica do século XX, elaborou-se uma compreensão de fé a partir de uma consideração que enfatiza a dimensão intersubjetiva da fé compreendida como um fenômeno básico da vida humana. A fé emerge aqui, antes de tudo, como a efetivação de uma relação interpessoal: ela é a maneira como se tem, conhecendo, acesso ao ser próprio da pessoa11. Esta relação tem, por essa razão, um pressuposto básico: sendo o ser pessoal um ser livre, somente por meio de uma revelação livre de si mesmo faz-se possível ter acesso a seu ser. A fé é justamente a resposta de acolhida a esse revelar-se da pessoa que abre espaço a uma participação no seu ser que livremente se manifesta. Aplicada essa concepção para o entendimento da fé no sentido religioso, a fé, na perspectiva do cristianismo, é um escutar acolhedor da autorrevelação de Deus na linguagem humana, ou seja, é a resposta do ser humano à autocomunicação de Deus que o interpela. A reposta, por sua vez, implica um pressuposto fundamental: a fim ter condições de responder faz-se necessário compreender a palavra através de que a pessoa se revela12. Compreende-se a palavra enquanto palavra, portanto, não simplesmente enquanto um som, mas enquanto linguagem, ou seja, enquanto um sistema de símbolos, que nos diz algo, informa-nos sobre algo e nesta medida nos revela algo. Neste sentido escutar é essencialmente compreender como diz H. Rito: “Se em seu sentido mais profundo a fé é uma resposta do homem ao Deus da Revelação, que o interpela constantemente em sua vida, essa resposta só pode ser autenticamente humana, se comporta uma forma de compreensão racional”13. Ora compreender, em contraposição à redução, hoje muito frequente, da razão à forma como ele se desenvolveu nas ciências modernas, normalmente denominada de “razão instrumental”, pode ser tomado aqui como expressão do que a tradição do pensamento 9 Ibid. p. 162. A respeito dos debates nos séculos XVI e XVII cf. CHAUÍ M. A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa. v. I: Imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 113 e ss. 11 Cf. FRIES, H. Glaube und Wissen. In: Sacramentum Mundi. Theologisches Lexikon für die Praxis. v. 2. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1968, p.431-432. 12 Cf. WELTE, B., Heilsverständnis. Philosophische Untersuchung einiger Voraussetzungen zum Verständnis des Christentums. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1966, p. 28. 13 Cf. RITO, H. Introdução à Teologia. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 44-45. 10 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 12 ocidental entendeu como “razão” de tal modo que se faz necessário afirmar que o objetivo subjacente a qualquer teoria, o produto da razão, em seus diferentes níveis, mas também inclusive nas atividades cognitivas pré-teóricas, é sempre compreender algo. No caso específico da fé se trata da autorrevelação de Deus e por esta razão é uma palavra que diz respeito à vida humana e à realidade em seu todo já que ela engaja o ser humano enquanto ser espiritual e implica uma realização efetiva da totalidade das dimensões do ser espiritual14. Neste sentido, a fé é sempre compreender e acolher o que a palavra revelada nos diz e enquanto tal ela possui uma dimensão racional imanente: “[...] homem, que nunca deixa de ser racional em nenhum momento de sua vida, mesmo quando por um ato de fé aceita o sentido transcendente da Revelação divina. À dignidade do homem pertence sem dúvida sua própria racionalidade”15. Portanto, em princípio não há incompatibilidade nem concorrência entre razão e fé o que não significa dizer que determinadas concepções da razão e da fé possam fazer emergir grandes conflitos, pois a oposição radical entre razão e fé levou a teologia à negação de seu estatuto teórico16. 2. Pressuposição fundamental para a consideração da relação entre razão e fé: a distinção entre níveis de racionalidade Trata-se, na teoria, antes de tudo, de um tipo específico de atividade na vida humana que, enquanto tal, se vincula com o mundo e, em sua efetivação primeira, com a totalidade dos “objetos” e “campos” do mundo, enquanto a totalidade atingível pelas ciências. Num sentido muito genérico, pode-se dizer que se trata de uma característica que abrange toda a vida humana, pois não há, como afirma John McDowell17, qualquer captação da realidade que se situe fora da esfera conceitual, não há uma fronteira exterior para além da esfera conceitual. Isso não nos proíbe de falar de uma realidade independente capaz de tornar possível um controle racional sobre nosso pensamento. 14 Cf. RAHNER, K.; VORGRIMMLER, H. Glauben. In: RAHNER, K.; VORGRIMMLER, H. Kleines Theologisches Wörterbuch. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1967, p. 135. 15 Cf. RITO, H. Introdução à Teologia. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 44. 16 A respeito de uma crítica essa oposição radical entre razão e fé: Cf. COLOMBO G. La ragione teologica. Milano: Glossa, 1995. 17 Cf. McDOWELL, J. Mind and World. With a New Introduction. Cambridge; London: Harvard University Press, 1996, p. 34. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 13 É justamente isto que McDowell18 denomina de “o caráter ilimitado do conceitual” e elabora a partir daqui afirmações decisivas contra as consequências da postura de toda a filosofia moderna da subjetividade: não existe qualquer abismo ontológico entre o tipo de coisa que se pode significar, ou, de modo geral, o tipo de coisa que se pode pensar, e o tipo de coisa que é o caso. Sendo nosso pensamento verdadeiro, o que pensamos é o que é o caso, pois, uma vez que o mundo é precisamente algo que é o caso, não se se justifica a tese do abismo entre o pensamento enquanto tal e o mundo. Nesse contexto, afirma Puntel que semântica e teoria dos entes, respectivamente do ser, se situam numa relação de reciprocidade fundamental. Isso significa dizer que semântica e ontologia/metafísica são dois lados da mesma medalha, ou seja, implicam-se mutuamente e são mutuamente imbricadas, de tal forma que, se uma ontologia se mostrar insustentável, é também insustentável a semântica ligada a ela, ou o contrário. Dessa forma, isso já significa a demonstração da tese da mútua imbricação entre semântica e ontologia/metafísica19. O que é aqui expresso constitui, com razão, a tese fundamental da reviravolta linguística: não existe um mundo em si em todos os aspectos independente da linguagem, de que o pensamento seria cópia fiel, a tese básica do realismo metafísico. De fato, só temos o mundo através da mediação da linguagem: o relacionamento cognitivo do ser humano com o mundo é linguístico, ou seja, o mundo é para nós na medida em que vem à fala, portanto, pela mediação da linguagem. Daí porque a afirmação central da filosofia, segundo a hermenêutica, é “o mútuo pertencer da palavra e da coisa”. Qualquer tentativa de eximir-se da linguagem é inevitavelmente linguisticamente mediada, o que revela a universalidade da linguagem. O mundo se expressa na linguagem e, nesse sentido, Gadamer designa a experiência linguística do mundo como “absoluta”20: ela transcende todas as relatividades de posição do ser, porque ela abrange o ser em si em quaisquer relações em que ele sempre se dá. O caráter linguístico de nossa experiência do mundo é condição de possibilidade do conhecimento e da nomeação de algo como sendo. Numa palavra, é condição de possibilidade e de validade da compreensão do mundo enquanto tal. 18 Ibid., p. 27. Cf. PUNTEL, L. B. Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. Berlin; New York: De Gruyter, 1990, p. 129. 20 Cf. GADAMER, H.-G. Wahrheit und Methode. 2. Aufl. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1960, p. 426. 19 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 14 Nessa ótica, a linguagem se revela como a instância de expressabilidade do mundo assim que na estruturalidade da linguagem se pode ler a estruturalidade do mundo21 de acordo com os diferentes níveis teóricos antes mencionados, ou seja, nas ciências, na filosofia e na teologia. L. B. Puntel22 distingue, nesse contexto, três posturas originárias do ser humano frente ao mundo: a teoria, a prática e a estética. Se é constitutiva de toda postura humana uma articulação com o mundo, o que especifica a atividade teórica é uma relação que se exprime essencialmente através da mediação da linguagem com um objetivo claro: conceituar o mundo (a realidade) nele mesmo já que todo empreendimento teórico possui como tarefa primeira compreender, conceituar, explicar ou articular algo determinado. Dessa forma, tanto a ciência como a filosofia e a teologia têm a ver com “exposição”, ou seja, com a articulação do saber que se efetiva no seio da linguagem. Numa palavra: está em jogo aqui um discurso estruturado com o proposito de verdade, ou seja, com a pretensão de dizer como as coisas são em si mesmas e de maneira contingente ou necessária23. Na perspectiva de um idealismo pragmático, Nicholas Rescher24 destaca que o imperativo da compreensão é algo básico na vida humana, pois o “Homo sapiens” é igualmente o “Homo Quaerens”. Nós, animais racionais, temos de alimentar nossos espíritos tanto quanto alimentamos nossos corpos. Temos interrogações e com isto a necessidade de respostas. Para Kutschera, tanto na vida quotidiana quanto nas ciências não se trata simplesmente de constatar fatos, mas da compreensão de porque as coisas são assim e se comportam de determinado modo. Daí porque para ele, todo o procedimento das ciências da natureza, por exemplo, consiste em explicar os fenômenos a partir de suposições sobre uma realidade que subjaz aos fatos e que permite compreender diferentes fatos a partir de poucos princípios unitários. Nesse sentido, o empirismo é extremamente restritivo diante dos procedimentos das ciências da natureza25. Daí porque a busca por compreensão é uma das mais fundamentais da condição humana o que, para C. Boff, vale também para o crente enquanto ser humano que é: “[...] a fonte do dinamismo teológico se situa na natureza do próprio espírito humano. Esse representa uma estrutura aberta, interrogativa... 21 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. Um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2008, p. 127. 22 Ibid. p. 97ss. 23 Cf. PUNTEL, L. B., A teologia cristã em face da filosofia contemporânea, in: Síntese, v. 28 n. 92 (2001) p. 361. 24 Cf. RESCHER, N. A System of Pragmatic Idealism, Princeton/New Jersey: Princeton University Press, 1992, vol. I: Human Knowledge in Idealistic Perspective, p. 4. 25 Cf. KUTSCHERA, F. von. Die Teile der Philosophie und das Ganze der Wirklichkeit. Berlin/New York: De Gruyter, 1998, p. 102. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 15 esse dinamismo se exerce também, e de maneira eminente, sobre o conteúdo da verdade da fé”26. Na linguagem, que é a esfera em que nos colocamos enquanto seres teóricos, as sentenças têm a primazia, porque, como diz Frege, “somente no contexto de uma sentença as palavras têm um significado”27. Uma sentença expressa um conteúdo informacional e enquanto tal exprime uma relação entre linguagem e mundo, ou seja, exprime um determinado segmento do mundo, exprime informação sobre o mundo. Desta forma, seu objetivo preciso é dizer como o mundo, ou o setor do mundo em si, é, como ele ocorre28 e, enquanto tal, ela implica em si mesma a pergunta pela legitimação dessa pretensão29, fazendo-se, assim, um conhecimento autorresponsável. Nesse contexto, Spinner, afirma que toda teoria é "uma especulação sistemática controlada"30. Assim, as teorias, enquanto tais, efetivam uma restrição da linguagem humana a um de seus objetivos fundamentais, isto é, à apresentação do mundo, que é precisamente o que diferencia a teoria das outras duas dimensões fundamentais do existir humano no mundo. Mas a contenção numa dimensão específica da linguagem não se opõe à pretensão de radicalidade: a pretensão das teorias é serem verdadeiras e, enquanto tais, são uma atividade definida, cujo produto, expresso linguisticamente, se destina a exprimir como o mundo (o universo, o ser) se comporta. Numa palavra, a teoria enquanto apresentação é a dimensão da expressividade do mundo que se efetiva na linguagem humana. Daí porque suas sentenças são sentenças declarativas, precisamente porque o que nelas está em questão é como o mundo está e não como ele pode, deve ou tem de estar. Para a compreensão adequada deste propósito, faz-se necessário levar em consideração uma diferença fundamental entre as linguagens ditas naturais — normais, utilizadas na vida quotidiana pelos diversos grupos humanos das diferentes sociedades, cuja especificidade é se constituírem, em primeiro lugar, enquanto processos de comunicação que podem ter vários níveis ou aspectos e as linguagens artificiais —, as linguagens construídas, as linguagens próprias das teorias, que possuem como objetivo central a 26 Cf. BOFF, C. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 27. Cf. FREGE, G. The Foundations of Arithmetik,1884/1986, §62. 28 Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus, Ed. por L. H. dos Santos. São Paulo: Edusp, 1993, p. 201: 4.5... “A forma proposicional geral é: as coisas estão assim”. 29 Cf. RESCHER, N. A System of Pragmatic Idealism, p. 5-6: “Rationality thus involves the capacity ‘to give an account’ — to use one’s intelligence to provide a rationale for what one does that establishes its appropriateness”. 30 Cf. SPINNER, H. F. Theorie. In: KRINGS, H.; BAUMGARTNER, H. M.; WILD, CH. (Orgs.). Handbuch philosophischer Grundbegriffe. Bd. 5. München: Kösel-Verlag, 1974, p. 1486-1487. 27 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 16 apresentação descritiva ou teórica do mundo. As linguagens naturais contêm com certeza também, embora de forma muito parcial ou restrita, a dimensão da apresentação do mundo e, dessa maneira, incluem, ao menos implicitamente, elementos teóricos. No entanto, todos esses elementos estão aqui subordinados ao objetivo específico dessas linguagens, que é a comunicação intersubjetiva. No nível das teorias, em sentido estrito, ocorre a mudança: mesmo com a presença nelas de elementos de comunicação, sua finalidade específica é a apresentação do mundo. O que precisamente é próprio da teoria é uma linguagem focada na apresentação do mundo e a diferença se revela claramente aqui no fato de que uma linguagem, marcada pela primazia da dimensão comunicativa, tem seu centro na relação com os outros parceiros. Ao contrário, na teoria, é a “coisa” que assume o primeiro lugar e, em consequência, a pretensão exclusiva aqui é a da objetividade. Assim, o objetivo da linguagem científica, filosófica e teológica, que são teóricas, é a expressão do mundo ou de seus segmentos de acordo com os seus respectivos quadros teóricos. Dessa forma, qualquer teoria situa algo no espaço que Frege31 denominou “terceiro reino”, Popper “terceiro mundo”,32 Sellars “espaço de razões”33 e McDowell “caráter ilimitado do conceitual”34. Para Puntel35, um estado de coisas dado ingressa nesse espaço precisamente na medida em que é articulado no quadro de uma teoria, no espaço das razões. Num sentido genérico se pode afirmar que o que caracteriza a teoria é transcender o simples “dado” uma vez que todo dado só é dado, isto é, articulável, expressável, no interior de um quadro teórico. É neste sentido genérico que H. F. Spinner afirma serem as teorias o substrato do conhecimento humano de que o ser humano em todos os tempos e culturas se serviu para compreender criticamente o mundo e alcançar um controle cognitivo sobre seu contorno36. Se ciência, filosofia e teologia são compreendidas aqui enquanto teoria em sentido estrito, então, antes de tudo, faz-se necessário esclarecer a dimensão teórica em geral e a concepção de uma teoria científica, de uma teoria filosófica e de uma teoria teológica. 31 Cf. FREGE, G. The Foundations of Arithmetik, op. cit., §43-44. Cf. POPPER, K. Objective Knowledge: An Evolutionary Approach. Oxford: Oxford University Press, 1972, especialmente os capítulos III e IV. 33 Cf. SELLARS, W. Empiricism and the Philosophy of Mind. 3. ed. Cambridge; London: Harvard University Press, 2000, n. 29, p. 36. 34 Cf. McDOWELL, J. Mind and Word, op. cit., p. 24ss. 35 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser, op. cit., p. 495-496. 36 Cf. SPINNER, H. F. Theorie, op. cit., p. 1486. 32 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 17 Nesse contexto, uma das questões básicas é a tese37 de que toda interrogação teórica, toda sentença teórica, argumentação, toda teoria só é compreensível e avaliável no contexto de um "quadro teórico", do contrário tudo permanece indeterminado. A cada quadro teórico pertencem, enquanto momentos constitutivos, uma linguagem, com sua sintaxe e sua semântica, uma lógica e uma conceitualidade com todos os componentes que constituem um aparato teórico. Nesse sentido, deve-se dizer, por exemplo, que um quadro teórico abarca todo o processo de conhecimento de um campo do saber em todas as suas fases e dimensões. É a partir desse quadro que são tomadas decisões sobre a escolha dos problemas a serem investigados, ele constitui a ótica de relevância para o exame da tradição de investigação em questão, como também fornece os critérios para as pesquisas auxiliares. Na vida quotidiana, os quadros teóricos são implícitos, enquanto nos empreendimentos, que transcendem sua esfera, efetiva-se a tematização desses quadros, o que transforma esses conhecimentos num saber de autoridade com a capacidade de dirigir-se tanto às manifestações de superfície quanto aos aspectos estruturais determinantes dos diferentes campos do real (no caso das ciências, fala-se aqui de sua legalidade). Há, de fato, uma pluralidade de quadros teóricos e cada um deles articula sentenças verdadeiras o que significa dizer que não se trata aqui de um relativismo autocontraditório. No entanto, as verdades não estão no mesmo nível o que significa dizer que as verdades são verdades em relação essencial aos quadros teóricos em questão. A primeira pergunta que daqui emerge, e é decisiva também para a questão que estamos discutindo, é sobre a especificidade do status teórico das ciências em sua diferença para com o status teórico das filosofias e das teologias. Se teoria se articula em sentenças, a primeira pergunta aqui é sobre o status das sentenças das ciências, o que claramente não é uma pergunta das próprias ciências, mas da filosofia, como aquele saber das estruturas universais do universo ilimitado do discurso humano38 e que por isso inclui também um saber sobre o saber científico, uma tese que foi sempre de novo tematizada por Fichte no quadro teórico da filosofia transcendental em suas diferentes versões de sua “Doutrina da Ciência” em que a filosofia emerge como a “ciência das ciências”39. 37 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser, op. cit., p. 10 ss. Ibid. p. 342ss. 39 Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Para além da fragmentação. Pressupostos e objeções da dialética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2002, p. 135-168. 38 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 18 O próprio curso das perguntas nos aponta para um procedimento essencial na determinação do status teórico das sentenças científicas: sua comparação com a filosofia. A filosofia, enquanto teoria das estruturas universais da totalidade do discurso, ou seja, do ser em seu todo40, considera cada segmento do real precisamente a partir das estruturas universais. Por exemplo: considerando o mundo natural enquanto elemento do ser em seu todo, ela busca conceituar as estruturas universais neste campo. Numa palavra, a filosofia considera qualquer realidade a partir da perspectiva da universalidade, ou seja, do ser em seu todo. Puntel41 elabora, nesse contexto, uma distinção de grande significação para o tratamento dessa questão. As estruturas universais são constitutivas do ser em seu todo e de cada campo do ser. Faz-se necessário, contudo, para esclarecer melhor a diferença entre o status teórico das ciências e o status teórico da filosofia, distinguir entre estruturas universais absolutas e estruturas universais relativas. As estruturas universais “absolutas” são as que dizem respeito ao ser em sentido próprio e estrito, isto é, enquanto dimensão última abarcante de qualquer realidade. A grande tradição metafísica do Ocidente, que pensou não o ser enquanto a dimensão última do real, mas focou na consideração do ente enquanto ente, conhecia essas estruturas como os transcendentais, isto é, aquelas que se aplicavam a todo e qualquer ente, por exemplo: a verdade, a bondade, etc. As estruturas “relativamente universais” são aquelas que dizem respeito não ao ser enquanto tal, mas às relações de cada ente singular com o ser em seu todo. Têm a ver, portanto, com as estruturas que constituem o lugar sistemático de cada ente ou de cada campo de entes no ser em seu todo. A diferenciação bem fundamentada de diferentes campos de ser se baseia justamente na diferenciação de suas diferentes estruturas. As ciências, portanto, buscam conceituar, nos diferentes campos por elas considerados, justamente as estruturas particulares ou específicas de cada campo sem consideração da universalidade, nem mesmo no sentido relativo. Na perspectiva das estruturas particulares, capta-se a estruturalidade interior de um determinado ente ou de um determinado campo de entes. Isso significa, em última instância, uma consideração nãoadequada dos entes ou dos campos de entes, uma vez que pertence à estrutura plena dos entes ou dos campos de entes uma relação aos demais entes ou ao ser enquanto tal. É isso que consegue tematizar precisamente uma consideração das estruturas relativamente universais que é de ordem filosófica. Por outro lado, tal consideração só consegue isso, 40 41 Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser, op. cit., p. 32ss. Cf. PUNTEL, L. B. Estrutura e ser, op. cit., p. 344ss Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 19 portanto não atinge o particular na sua particularidade, o que significa dizer que uma consideração adequada do real exige as duas perspectivas teóricas como essencialmente complementares. Por isso, cada uma dessas perspectivas teóricas depende da outra quando se trata de compreender e conceituar adequadamente entes ou campos de entes. Isso implica, neste nível geral, uma diferença clara do status teórico das respectivas sentenças das duas formas de teoria o que significa que são complementares na compreensão da realidade. Claro que, apesar da distinção conceitual rigorosa entre as duas esferas do saber, na prática de ambos os conhecimentos as fronteiras são fluidas e há extrapolações em ambas as direções o que tem levado frequentemente ao emprego simultâneo de ambos os tipos de teorias sem que se considere a diferença fundamental de seus estatutos teóricos ou ao uso exclusivo das ciências sem a consideração de perguntas que, em princípio, ultrapassam os quadros teóricos específicos das ciências, porque são perguntas específicas de quadros teóricos filosóficas o que é frequente nas novas configurações científicas antes mencionadas e também em propostas teológicas. Isso tem como consequência que, mesmo que, como ocorre hoje, as ciências busquem considerar o todo do mundo experimentável pelo ser humano, sua consideração é sempre feita a partir de uma ótica particular. Um exemplo claro de tratamento inadequado desta problemática é a relação entre as atuais cosmologias de um lado e as filosofias e teologias de outro. As ciências contemporâneas têm posto em questão, de diferentes modos, o procedimento analítico, característica fundamental das ciências desde seu início na modernidade,42 que produziu uma visão fragmentada do mundo. O que se busca hoje nas novas ciências é fundamentalmente reconquistar a unidade fundamental da natureza, do universo como um todo. Para von Weizsäcker, por exemplo, a física hoje possui uma unidade real, conceitual, maior do que em qualquer outra época de sua história. Seu livro levanta a pretensão de enfrentar esta questão, não como normalmente se faz hoje, isto é, como unidade no método (epistemológica), mas como unidade no objeto (ontológica). Trata-se de pensar a unidade da natureza a partir de que se explica a unidade da física. Para ele, o desenvolvimento histórico da física é na realidade um caminho na direção desta unidade43. 42 Sobre a proposta de uma “física relacional”. Cf. ASSIS, A. K. T. Uma nova física. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999, p. 115ss. 43 Cf. WEIZSÄCKER C. F. von, Die Einheit der Natur. München: Deutscher Taschenbuch Verlag GmbH & Co. KG, 1995, p. 207ss. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 20 A ideia básica, que está em processo de consolidação nessas ciências, é que o universo é constituído de muitos membros que se conectam entre si como uma grande teia de relações. A unilateralidade do procedimento analítico consiste justamente em sua incapacidade de conceber, no seio de seu quadro teórico, a unidade fundamental que reúne todos os segmentos do universo, o que é condição de possibilidade para pensá-lo como uma entidade complexa, única, diferenciada e dinâmica. Usa-se hoje a expressão “cosmologia” para indicar uma teoria física a respeito da origem, do desdobramento e da estrutura da totalidade do cosmos físico. Com o mesmo objetivo usa-se também a expressão “theory of everything”. O exemplo de Hawking é muito importante para a compreensão da estrutura teórica das novas ciências44. Ele focalizou, em sua produção teórica, antes de tudo, a questão da origem do universo. Sua tese básica, radicada em teoremas que ele considera ter demonstrado com R. Penrose, é que o universo tem que tido um começo, o que ele denomina de “explosão inicial”. Neste ponto inicial, a densidade do universo e a curvatura do espaço-tempo eram infinitas. Esse ponto é chamado por matemáticos de “singularidade”. O problema fundamental aqui é que todas as teorias científicas pressupõem que o espaço-tempo é liso e quase plano. Como isso não é o caso na singularidade, tem-se que afirmar que na singularidade as leis científicas não possuem validade. Uma vez que o próprio tempo emergiu com a explosão inicial, fica claro, neste quadro teórico, que a pergunta sobre a origem do universo pode ter uma resposta fácil: o universo começou com essa explosão inicial e qualquer outra proposta como, por exemplo, a referência a um criador, é dispensável para enfrentar esta problemática. A partir de então, há grandes debates entre cientistas, filósofos e teólogos a respeito do status destas teorias. Os dois extremos da controvérsia são: alguns filósofos e teólogos elaboram uma interpretação criacionista da teoria da explosão inicial. Outros, ao contrário, consideram que as teorias científicas a respeito da origem do universo tornaram insignificante qualquer outra tentativa de explicação. A emergência do universo não tem causa, ele surgiu espontaneamente45. Por tudo o que foi exposto, trata-se aqui, em ambas as partes, de mal-entendidos radicados num problema fundamental: a não consideração 44 Cf. HAWKING St., The Universe in a Nutshell, New York: Bantam Books, 2001. Cf. a respeito: PUNTEL, Estrutura e ser, op. cit., 429ss. 45 Cf. GRÜNBAUM, A. A New Critique of Theological Interpretations of Physical Cosmology. The British Journal for Philosophy of Science, n. 51, p. 1-43. 2000. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 21 do status específico do quadro teórico em questão. De um lado o das ciências e do outro o da filosofia e da teologia46. Dessa forma, por exemplo, quando um cientista fala da origem do universo a partir do quadro teórico próprio à ciência, ele está falando de um ponto inicial no passado. Afirmar que o universo teve sua origem ou início precisamente nesse ponto significa dizer que o universo físico, a partir desse ponto, é explicável como um todo configurado de acordo com as leis da natureza que são conhecidas justamente no quadro teórico das ciências. Se se leva em consideração esse quadro teórico, seu objetivo fundamental e a natureza de suas sentenças, então, pode-se, sem problemas, defender que a cosmologia explica a origem e o começo do universo. Porém nesse quadro não se pode falar de emergência do universo “ex nihilo”, como posição atemporal do universo enquanto tal, como falam a filosofia e teologia, uma vez que, no quadro teórico específico das ciências, é fundamental a pressuposição do ponto inicial enquanto algo já existente. Portanto, nesse quadro teórico não pode emergir a pergunta a respeito da existência enquanto tal desse ponto e da totalidade dos entes contingentes que daqui se originam. O que uma teoria físico-cosmológica do universo pode fazer enquanto ciência é remeter um ponto do universo, por exemplo, o mundo atual, a outro ponto, o ponto inicial, que na realidade é apenas um algo que não é configurado de acordo com as leis científicas conhecidas. A interrogação filosófica (e a teológica em seu quadro teórico específico) sobre a origem do universo diz respeito fundamentalmente ao ser ou à existência do universo enquanto tal, ou seja, com seu caráter absoluto ou contingente assim que a afirmação (ou sua negação) da criaturalidade do universo não é nem pode ser uma afirmação físicocosmológica, portanto, científica, mas só pode ser filosófica (teológica) já que a criação não pode ser compreendida como um evento no início do tempo, mas exprime uma relação permanente entre o ser absolutamente necessário e o ente contingente. O que se afirma num quadro teórico filosófico é que o ser em seu todo consiste numa dimensão absoluta e numa dimensão não-absoluta e que, portanto, os entes contingentes, por definição, não podem existir sem o Absoluto, pressupõem para seu existir um ato do ser absoluto. O filósofo (e o teólogo) afirmam assim que simplesmente tudo o que é contingente é criado pelo ser absolutamente necessário, ser absoluto pessoal, portanto, espírito absoluto, 46 Cf. PUNTEL, L. P. Estrutura e ser, op. cit., p. 429ss. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 22 inteligibilidade e amor absolutos, igualmente tanto acima de tudo, enquanto não constitui um momento essencial dos entes criados quanto imanente radicalmente a tudo como criador de tudo. Tudo tem a marca fundamental de sua criaturalidade e neste sentido todos têm que constituir uma comunidade ontológica última, uma unidade fundamental do universo na diferença. Rahner47, no quadro teológico, conclui daqui que a matéria e o espírito humano não podem constituir duas esferas de ser completamente dicotômicas porque têm uma raiz comum o que implica uma unidade última do universo. Assim, a matéria tem que ser compreendida como o mais baixo degrau do espírito, embora esta afirmação possa ser sem importância para a ciência da natureza. 3. Teologias enquanto conhecimento da totalidade do real no horizonte da autocomunicação livre de Deus. A consideração da totalidade do real em si mesma é, como vimos, a tarefa específica da filosofia, cujo discurso é coextensivo à totalidade do ser. Com isso ele tem como objeto justamente o que constitui o para onde da intencionalidade do espírito humano48 que é, em última instância, o todo que abarca simplesmente tudo, ou seja, tudo aquilo que, em princípio, pode ser conhecido e/ou pensado: “[...] a totalidade do Ser... é um elemento integrante da estrutura e do status ontológico do nosso pensamento”49. A filosofia, portanto, é aquele tipo de conhecimento, cujo propósito específico é a apreensão conceitual da própria totalidade do ser pela mediação das estruturas constitutivas da linguagem, as estruturas formais e as estruturas de conteúdo: semânticas e ontológicas. A Filosofia, enquanto pensamento integrativo, desemboca, então, em seu nível último, em afirmações sobre a dimensão absolutamente necessária do ser enquanto fonte incondicionada de toda e qualquer realidade. Assim, sua tarefa específica é a tematização do fundamento que subjaz a toda e qualquer realidade. Sua primeira tarefa, contudo, é pensar o que se pressupõe para que ela, enquanto teoria, possa ser articulada, ou seja, as estruturas universalíssimas que enquanto tais são estruturas de toda e qualquer realidade. Dessa forma, ela se situa no nível de uma interpretação oniabrangente da realidade, que 47 Cf. RAHNER, K. Naturwissenschaft und vernünftiger Glaube. In: Bilanz des Glaubens. Anworten des Theologen auf Fragen unserer Zeit, München, DTV, 1985, p. 50. 48 Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Subjetividade e totalidade. In: CIRNE-LIMA, C.; HELFER, L; ROHDEN, L. (Orgs.), Dialética, caos e complexidade. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004. p. 118ss. 49 Cf. PUNTEL L. B., A totalidade do Ser, o Absoluto e o tema "Deus": um capítulo de uma nova metafísica. In: IMAGUIRE, G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, A. de (Orgs.), Metafísica contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 202. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 23 tematiza a unidade e a diferença de todas as coisas. Enquanto saber da totalidade do ser, tanto suas perguntas como suas sentenças se distinguem, como vimos, fundamentalmente das perguntas e das sentenças das ciências. Precisamente enquanto fundamento absoluto de tudo, a dimensão absolutamente necessária do ser não pode constituir um membro da totalidade dos entes contingentes, ou seja, um elemento singular na série dos fenômenos, no interior do mundo plural, que constitui o objeto específico de investigação das ciências, mas antes põe esse mundo no ser e o sustenta. Na ótica das ciências, que buscam compreender os entes através de suas estruturas particulares; a totalidade do ser e consequentemente a dimensão absoluta necessária do ser não constituem objeto de consideração, portanto elas têm o direito de ignorar a dimensão absolutamente necessária do ser e a leitura da realidade a partir de sua referencialidade essencial a essa dimensão. Essa consideração transcende a especificidade de seu quadro o que implica a impossibilidade de articular afirmações sobre essa esfera. Por essa razão, as ciências não podem absolutizar sua própria forma de ver o real considerando-a como o único conhecimento válido do real. Assim, a filosofia, em sua especificidade, é autônoma e não necessita propriamente de uma legitimação científica, embora seja complementar a ela o que significa que ela também não pode absolutizar sua forma de conhecer o real. Isso, de modo algum, significa dizer que os cientistas, enquanto seres humanos, não se vejam confrontados com as perguntas metafísicas próprias da filosofia. Tratou-se aqui de esclarecer a especificidade dos diferentes tipos de articulação teórica e de sua complementaridade. O passo reflexivo seguinte, que aqui só pode ser anunciado e não desenvolvido, consiste em mostrar que a dimensão absoluta da totalidade do ser só pode ser compreendida enquanto um absoluto pessoal, um ser dotado de inteligência, vontade e liberdade, o que tem como consequência que a existência da dimensão contingente, por sua vez, só pode ser compreendida a partir de um ato da dimensão absolutamente necessária que se pode designar adequadamente com a expressão “criação”50. Isso implica que a dimensão absolutamente necessária do ser, enquanto ser necessário, incondicionado, sem o que o contingente é ininteligível, não só se diferencie radicalmente de todas as esferas dos entes contingentes, mas que igualmente seja intimamente presente 50 Cf. PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e J. L. Marion. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2011, p. 288ss. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 24 em tudo,51 de tal forma que cada entidade se revele como uma forma específica de manifestação do Absoluto. Sem dúvida, enquanto fundamento absoluto de tudo, a dimensão absoluta do ser se diferencia radicalmente de todo e qualquer ente contingente que, por definição, não possui seu próprio ser, mas o recebe. O Absoluto emerge, assim, como o último fundamento do ser contingente e o contingente em tudo o que é, como produzido pela dimensão absolutamente necessária do ser de tal modo que os entes contingentes, na medida em que só o são pela participação no Absoluto, constituem uma comunidade ontológica apesar de todas as suas diferenças. Isso significa dizer que a filosofia trabalha com a unidade de opostos: o Absoluto, por um lado, em sua incondicionalidade e plenitude de ser, é radicalmente distinto do mundo, portanto, transcendente. Por outro lado, em virtude mesmo de sua transcendência absoluta, está presente em tudo, perpassa tudo, é radicalmente imanente a tudo. Aqui está o fundamento tanto da unidade como da diferença de todas as coisas: cada ente está em comunhão com cada ente e se diferencia de todos na base de sua forma própria de participação no fundamento absoluto de tudo. Numa palavra: o ente contingente se une ao outro e, ao mesmo tempo, transcende o outro na medida de seu grau de participação no absoluto, o que significa dizer que o absoluto, o ser perfeito, é imanente a tudo da forma mais perfeita possível, abarca tudo o que dele recebe o ser na forma de participação e, por outro lado, transcende, de forma perfeita tudo, o que nele participa e do absoluto recebe o ser como seu ser próprio, portanto, de tudo o que dele se distingue. É o que se exprimiu com a expressão “panenteísmo”: “O universo em cosmogênese nos convida a vivermos a experiência que subjaz ao panenteísmo: em cada mínima manifestação do ser, em cada movimento, em cada expressão de vida, de inteligência e de amor, estamos às voltas com o Mistério do universo-em-processo”52. Trata-se de pensar a presença do absoluto no mundo e a presença do mundo no absoluto, que existe de uma forma radicalmente diferente do mundo e, por essa razão, não pode ser compreendido simplesmente como se trata de um ente como outros no mundo. O absoluto se fundamenta a si mesmo e a todas as outras realidades, enquanto elas são o que existe através da participação nele, ou seja, sua presença penetra todo o universo. Por outro lado, isso implica dizer que é só nesse nível de saber, de referência explícita à 51 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Summa theol. I, q. 8, a. 1: “Unde oportet quod Deus sit in omnibus rebus, et intime”. Cf. também: AGOSTINHO. De fide et symbolo 7; PL 40, 185. 52 Cf. BOFF, L., Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995, p. 236. Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 25 dimensão absolutamente necessária do ser, que podem ser postas as questões a respeito da estrutura ontológica do ser humano, do sentido de seu existir, de sua vocação última. A dimensão absolutamente necessária do ser emergiu, na consideração radical da filosofia, como ser pessoal, inteligente e livre. Isso tem implicações fundamentais para a passagem da filosofia para um novo quadro teórico: o da teologia. Uma compreensão mais determinada da dimensão absoluta enquanto criador absoluto livre só nos é possível através de uma consideração da história enquanto história de suas ações livres53, isto é, sobretudo através da história das religiões, que precisamente levantam a pretensão de tematizar a inteligibilidade imanente ao evento da autodoação livre de Deus. No caso do Cristianismo, o primeiro conteúdo desta tematização é a Palavra de Deus e por isso teologia é, no sentido estrito, "ver finalmente tudo à luz da Palavra”54. A filosofia parte dos fenômenos concretos da experiência cotidiana até chegar a articular uma teoria compreensiva do universo, do sentido fundamental de tudo, tematizando em última instância o ser absolutamente necessário, criador e conservador da totalidade dos entes finitos e contingentes como princípio de unificação em relação a essa totalidade. De forma análoga, também a teologia se situa no nível do pensamento integrativo e, assim, continua, a partir de um outro horizonte, o horizonte das ações livres do ser absolutamente necessário na história, ou seja, da história que o ser absolutamente necessário inicia com a humanidade, história em que o ser absolutamente necessário se revela em sua autocomunicação, a mesma tarefa da filosofia: articular uma compreensão da realidade enquanto totalidade. “A palavra de Deus é uma palavra dirigida ao ser humano e, enquanto tal, a condição de possibilidade de sua compreensão é o próprio ser humano, enquanto palavra interpretadora de sentido com tudo o que isto implica. Deus e seu Reino são seu objeto”55. As teologias são um discurso humano, portanto, uma atividade em que o que está em jogo é a articulação teórica da inteligibilidade que foi fundamental para a teologia desde suas primeiras expressões na história do Ocidente 56. Isso diz respeito ao próprio conteúdo da fé enquanto acolhimento da autocomunicação de Deus à humanidade como evento salvador. A fé é uma opção fundamental que concerne toda a vida do ser humano e de seu 53 Cf. PUNTEL, L. B. A totalidade do Ser, op. cit., p. 218; Ser e Deus, op. cit., p. 236ss. Cf. BOFF, C. Teoria do método teológico, op. cit., p. 124. 55 Cf. OLIVEIRA M.A. de. Prefácio. In: AQUINO JÚNIOR F. de. Teologia e Filosofia. Problemas de fronteira. São Paulo: Paulinas, 2018, 15. 56 Cf. BOFF, C. Teoria do método teológico, op. cit., p. 25ss. 54 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 26 destino e por isso, segundo Cl. Boff, contém três componentes básicos: o afetivo, o cognitivo e o normativo57. Enquanto tal, é um tipo especial de exercício racional que implica a consciência de si mesmo e autocontrole. Daí afirmação de Cl. Boff: “Por isso a Teologia pode definir-se como “a fé de olhos abertos”. É a fé lúcida, inteligente, crítica “[...] a Teologia não reflete finalmente uma doutrina, mas a Revelação mesma, e esta como verdade-evento: o acontecimento da verdade na história, do qual a fé é a acolhida”58. Por essa razão, não está em jogo aqui, apesar de elementos comuns, o discurso próprio das ciências nem também o da filosofia, embora, no contexto global do saber humano, tenha de ser considerado complementar a esses discursos59. Por essa razão, ela é uma atividade que se articula no seio da linguagem humana, pressupondo tudo o que qualquer discurso humano pressupõe, tanto as estruturas fundamentais da linguagem (as formais, as semânticas e as ontológicas) quanto os condicionamentos históricos, mesmo os ideológicos. Trata-se, em tudo isso, dos momentos constituintes dos mundos vividos em que as teologias estão situadas. É justamente isso que justifica a afirmação de que é a vida da comunidade eclesial o “lugar natural” da teologia, pois é deste mundo vivido que ela brota60. Isso implica consequências fundamentais para o discurso teológico: “A Teologia é um discurso ‘sobre’ o Absoluto e não um discurso absoluto. E, mais, de um Absoluto apreendido desde a experiência de uma revelação que se dá no âmago de uma história opaca, também aos olhos da fé, que não dispensa o discernimento e a hermenêutica”61. Por essa razão, Jon Sobrino conta, entre os grandes riscos da teologia, o que ele denomina “docetismo”, que é arquitetar um âmbito de realidade próprio que a separe da “realidade real”, onde estão presentes o pecado e a graça62. Além disso, enquanto ela se configura como um discurso sobre a totalidade do real, ela pressupõe o discurso da totalidade que a precede, o discurso da filosofia, de modo particular, em nossos tempos, os quadros teóricos em que ela se articula hoje 63 como 57 Cf. BOFF, C. Teoria do método teológico, op. cit., p. 29. Cf. BOFF, C. Teoria do método teológico, op. cit., p. 27; Ibid., p. 115. 59 Cf. LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à teologia. São Paulo: Loyola, 1996. p. 76-89. 60 Cf. PALÁCIO, C. Trinta anos de teologia na América Latina. Um depoimento. In: SUSIN, L. C. (Org.). O mar se abriu. Trinta anos de teologia na América Latina. São Paulo: Soter; Loyola, 2000, p. 55. 61 Cf. BRIGHENTI, A. Fazer teologia desde a América Latina: novos desafios e implicações semânticas e sintáticas. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 38, n. 105, maio/ago. 2006, p. 221. 62 Cf. SOBRINO, J. Teologia desde la realidad, in: SUSIN, L. C. (org.). O mar se abriu, op. cit., p. 168. 63 Cf. PUNTEL, L. B. A teologia cristã em face da filosofia contemporânea, op. cit., p. 381ss. A respeito dos novos quadros teóricos teológicos, cf. BOFF, C. Teoria do método teológico, op. cit., p. 51-52. 58 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 27 igualmente todo o campo do conhecimento das estruturas particulares dos entes nas ciências. Como diz Puntel: Por sua vez, a Teologia cristã é guiada por uma perspectiva regressiva no seguinte sentido: ela parte do Deus por assim dizer 'concretíssimo' ou 'absolutamente determinado', feito manifesto pela sua revelação na história: o Deus trino, revelado em sua ação livre com respeito à humanidade. A Teologia articula teoricamente este Deus supremamente 'determinado' 'regredindo' para todos os níveis pressupostos ou, para usar a terminologia kantiana, para as condições de possibilidade da admissão de um tal Deus64. Por isso a Teologia pressupõe, em primeiro lugar, filosoficamente, a fala sobre o ser absolutamente necessário enquanto criador do mundo e do ser humano, isto é, como a fonte comum do eu e do mundo, o que significa dizer que sua fala sobre Deus se relaciona com uma compreensão global do ser humano e do mundo, como pressupõe também a fala sobre o ser humano e o mundo dos discursos das ciências. Se Deus, como diz Wohlfart Pannenberg65, deve ser entendido como a realidade que determina todas as realidades, então tudo tem de mostrar-se determinado por essa realidade e, sem ela, permanece, em última instância, ininteligível. Assim a teologia, enquanto atividade e produto teóricos, não pode se efetivar sem mediar-se pelas categorias humanas precisamente por ser uma atividade humana...Se as diferentes teologias pretendem articular teoricamente a “realidade” que está em jogo nas religiões, em seus pressupostos já sempre se põe a realidade em seu todo que a filosofia tem como tarefa tematizar teoricamente. Por isso, não tomar consciência crítica de que “há sempre uma filosofia presente em toda teologia”, como assevera K. Rahner, não se confrontar criticamente com a filosofia imanente ao trabalho teológico, implica adentrar numa situação de não conhecimento da verdadeira estrutura da teologia e, sobretudo, deixá-la à mercê das concepções hegemônicas da realidade em seu todo66. Na leitura cristã da história da salvação realizada por Deus se foca no centro da mensagem de Jesus que foi o Reino de Deus enquanto soberania do perdão, da misericórdia e do amor: "Reino de Deus apenas exprime uma experiência histórica do povo escolhido: a ação divina como fonte de toda a criação e como salvadora da 64 Cf. PUNTEL, L. B. A teologia cristã em face da filosofia contemporânea, op. cit., p. 377. Cf. PANNENBERG, W. Wissenschaftstheorie und Theologie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 304. 66 Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Prefácio. In: AQUINO JÚNIOR, F. de. Teologia e Filosofia. Problemas de fronteira. São Paulo: Paulinas, 2018, 16. 65 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 28 humanidade”67. O Reino, enquanto plano amoroso de Deus para a humanidade, fundamentalmente é ação de Deus no mundo humano e no cosmo, dom do Pai (Lc 12,32), graça de Deus e também interpelação radical à vida humana. Constitui, assim, uma realidade abrangente, projeto livre e gratuito de Deus, que revela o sentido último da história. Essa grande utopia da vida, articulação de um sentido radical, se historifica precisamente no caminho de vida de Jesus: Nosso Deus é um Deus encarnado na miséria e duplamente rebaixado. Rebaixado enquanto Deus que se faz homem e rebaixado enquanto homem que se abaixa ao que há de mais baixo no ser humano, ao fazer-se pobre e oprimido. No baixo da história Deus encontrou o seu lugar, lá onde as pessoas não têm os meios suficientes de vida, lá onde sofrem injustiças que desumanizam, lá onde elas são injustamente crucificadas. Não é esse o único lugar do encontro, mas o lugar privilegiado; se for esquecido, torna os demais lugares de encontro com Deus problemáticos68. Através de sua ressurreição, Jesus efetiva em plenitude o projeto de Deus que já estava em ação durante toda a história e por isso humaniza em plenitude a humanidade já que, sobre o lugar privilegiado da ação de Deus, a ressurreição confirma essa suspeita e é a tomada de posição definitiva de Deus sobre essa vida que terminou na cruz. Diz que o Messias fraco e aparentemente vencido pelas forças do mundo é o verdadeiro vencedor. Aquilo que ele em vida dizia sobre Deus e o serhumano tem razão de ser. Os valores em que ele apostava vigem. Os pobres e pecadores são mesmo os prediletos de Deus, sinais de sua presença e protagonistas de um mundo novo69. Em Jesus ressuscitado se revela a salvação de todo e qualquer ser humano70 e os destinatários privilegiados e os protagonistas na construção desse Reino71 são precisamente os representantes do mundo velho, os pobres e os pecadores: "A utopia do Reino se realiza na história, mas culmina em Deus mesmo. Começa sempre pelo elo mais 67 Cf. MIRANDA F. de. A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça. São Paulo: Loyola, 2004, p. 32. Cf. BOFF, L. Nova era: a civilização planetária. São Paulo: Ática, 1994, p. 80. 69 Cf. OTTEN, A. Inculturação como seguimento de Jesus Cristo. In: ANJOS, M. F. dos (Org.). Inculturação: desafios de hoje. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 65. 70 Cf. SEGUNDO, J. L. Teologia abierta para el laico adulto; Iglesia-gracia. Madrid: Cristiandad, 1983: “[...] los hombres que conocemos nacen ya dentro de una existencia cuya estructura es sobrenatural, donde todo esta referido a esse único destino de hombre, donde el hombre nada puede hacer que non tenga valor positivo o negativo para la vida eterna”. 71 Cf. GUTIERREZ, G. O Deus da vida. São Paulo: Loyola, 1990, p. 147ss. 68 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 29 fraco, pela cana rachada e pela mecha que ainda fumega. O Reino tem sua realização primeira nos seres mais ameaçados e nos humanos mais oprimidos e marginalizados" 72. O Reino é, assim, a esperança que tornou possível justiça, verdade, bondade, numa palavra, um sentido radical para a história humana, o que se concretiza numa convivência humana toda renovada: Reino — o sentido dos sentidos, o valor supremo de todo o criado — é libertação de e libertação para. Libertação de tudo o que rompe a aliança de convivência e solidariedade entre os seres e do fosso que distancia de Deus. Libertação para tudo o que resgata a direção originária e para tudo o que faz evoluir para todos os lados e para cima toda a criação73. Dessa forma, o Reino é a antecipação de um novo mundo, no qual é assegurada a salvação mesmo aos derrotados da história74. A dor, o sofrimento75, o não-sentido, a morte, não detém mais a palavra definitiva na história humana. É justamente por essa razão, então, que sua práxis pode confrontar-se com toda e qualquer práxis humana, pois nela se manifesta o sentido apto a dar direção e guia a tudo o que o ser humano realiza em seu agir histórico. Já o Reino de Deus, o futuro absoluto da humanidade, diz respeito a toda a humanidade, então a Igreja, na media em que é a comunidade-portadora desse Reino ao mundo, só pode entender-se a partir de suas relações com o mundo, com a humanidade como um todo76. O discípulo de Jesus, de acordo com J. L. Segundo, “é aquele(a) que se distingue por conhecer e aceitar numa entrega pessoal a revelação da generosidade de Deus para com todo o gênero humano”77. Assim, é no horizonte do Reino que o discípulo de Jesus pode definir o caráter e o sentido de sua vida, um sentido, como nos diz J. L. Segundo, que subjaz a toda a história, “[...] consciência de que à totalidade da história preside um sentido, isto é, o plano e desígnio de Deus de que nos tornemos filhos(as) no Filho”.78 (Mt 13, 44-46) e de sua vocação. Nesse sentido, pode-se falar aqui de utopia: 72 Cf. BOFF, L. Nova era: a civilização planetária, op. cit., p. 53-54. Ibid., p. 54. 74 A respeito do mundo pobre de hoje e as tarefas da Teologia, cf.: GUTIÉRREZ, G. Situação e tarefas da Teologia da Libertação. In: GIBELINI, R. (Org.). Perspectivas teológicas para o século XXI. Aparecida: Santuário, 2005, p. 85-100. 75 Cf. HAMMES, E. O sofrimento de Jesus Cristo e o sofrimento do ser humano. In: CESCON, E.; NODARI, P. C. (Org.). O mistério do mal Caxias do Sul: Educs, 2006, p. 77-90. 76 Cf. PANNENBERG, W. Theologie una Reich Gottes. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Gerd Mohn, 1971, p. 32. 77 Cf. LIMA, D. N. de. A criteriologia missiológica subjacente à eclesiologia de Juan Luís Segundo. In: SOARES, A. M. L. (org.). Dialogando com Juan Luis Segundo, São Paulo: Paulinas, 2005. p. 117. 78 Cf. LIMA D. N. de. A criteriologia missiológica subjacente, op. cit., p. 115. 73 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 30 A fé cristã [...] em primeiríssimo lugar se manifesta como uma utopia. A utopia não é algo que se opõe ou nega a realidade. Ela pertence à realidade, na medida em que expressa as potencialidades da realidade ainda não concretizadas, mas possíveis de o serem no processo histórico e no absoluto de Deus. A utopia que a fé judaico-cristã sustenta é essa: existe um sentido global e derradeiro da realidade, tudo está destinado a conservar-se no ser, a chegar a uma plena realização e a ser totalmente transfigurado. A morte não terá a última palavra, mas a vida, e esta em abundância79. Toda a tradição religiosa cristã compreende a si mesma como recordação e testemunho da mensagem e da práxis de Jesus e, sobretudo, de sua realização suprema na morte e na ressurreição. Isso, na realidade, constitui a manifestação do dinamismo do amor infinito de Deus que circunscreve a história humana. Por essa razão, ela antevê na práxis do Reino, enquanto futuro da humanidade e do cosmo, uma “antecipação prática”80 de um reino universal de justiça, de paz e de amor, de todos e para todos, com Deus que, enquanto Deus da vida, da gratuidade, do amor e da misericórdia, é ponto central e fator de unidade dessa comunidade solidária. Nesse horizonte, o Reino de Deus significa para os discípulos de Jesus, caracterizados por uma participação consciente no plano amoroso universal de Deus, uma interpelação para uma visão e um estilo de vida novos já que Jesus revela, em sua caminhada de vida, quem é o ser humano e qual seu lugar e o sentido de sua vida no todo do real. O discípulo tem acesso efetivo ao Reino através de uma agir novo que significa a acolhida do estilo de vida de Jesus, enquanto práxis do Reino, como seu próprio caminho (o Reino é igualmente dom e exigência: Mt 18,23-35). Engajamento pelo Reino de Deus implica consequentemente recusa a legitimar um mundo que desrespeita, teórica e praticamente, os direitos mais fundamentais do ser humano. Acolher o Reino implica, então, resgatar a vida e a integridade humanas, reerguer os desprezados e marginalizados, contagiar de esperança os desanimados, devolver a dignidade de todo ser humano pisado, proclamar a libertação dos cativos e a evangelização dos pobres (cf. Lc 4,18-19), pois pela Encarnação o próprio Deus se fez “a imagem do ser humano maltratado e oprimido, desprezado e humilhado”81. Não existe Reino sem transformação radical de vida, isto é, sem ruptura, sem abandono de sentidos anteriores e acolhimento do sentido novo captado no caminho de vida de 79 Cf. BOFF, L. Nova era: a civilização planetária, op. cit., p. 53. A expressão é de E. Schillebeeckx. In: Menschen. Die Geschichte von Gott. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1990, p. 224. 81 Cf. OTTEN, A. Inculturação como seguimento de Jesus Cristo. In: ANJOS, M. F. dos (Org.). Inculturação: desafios de hoje. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 68. 80 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 31 Jesus, pois nele o Reino e sua justiça se tornam acessíveis ao ser humano de tal modo que podemos assegurar que o sentido total se fez “presença histórica” por meio da história de Jesus, que, como Messias servo sofredor, adotou a carga da história suportada por suas vítimas fazendo-se presente, em primeiro lugar, nos sofredores, nos fracos, nos pobres e condenados do mundo, em todos os crucificados da história. Justamente aí se instala a força histórica do Deus da vida, que nos interpela ao compromisso com a justiça e o amor entre os seres humanos. É esse atuar dos seguidores de Jesus na história, na medida em que acolhe os valores do Reino como um estilo de vida que abarca as diferentes dimensões do ser humano, que torna atual a práxis de Jesus nas diferentes situações históricas. Através dessa práxis Deus se revela como fonte e alicerce irrevogável da liberdade humana enquanto salvação para vivos e mortos, para toda a humanidade, de forma primeira para os humilhados da história: “Deus mora no grito e no lamento do pobre. Esta é a teofania mais divina. O clamor e, ao mesmo tempo, o protesto de Deus contra a injustiça sofrida por seus filhos e filhas e, também, a certeza de seu socorro. É aqui o lugar onde irrompe o Reino”82. O Reino de Deus se revela dessa forma como um dinamismo de libertação que fermenta a realidade histórica recuperando a esperança humana: “No reino da finitude, oferece-se o infinito; na morte, a vida; na treva, a luz; numa história humana, a história de Deus”83. Esse sentido acolhido na fé que já contém em si mesma uma pré-teologia uma vez que todo dado já se encontra sempre situado num quadro, no caso aqui num quadro pré-teórico do mundo vivido religioso. Essa dimensão cognitiva do ato de fé é desdobrada pela teologia enquanto teoria que procura precisamente esclarecer a inteligibilidade desse sentido acolhido na fé. Nesse sentido: “A preferência pelos pobres que vale para a fé vale também para o estudo da fé e vale igualmente para seu método, já que as três coisas estão unidas”84. Esse sentido proclamado pela fé se contrapõe inevitavelmente ao não-sentido de teorias e práticas humanas e, nesse choque, produz sempre um estímulo para alternativas teóricas e práticas a fim de orientar a vida humana a formas mais humanas de vida. As teologias constituem, então, o momento teórico dessa práxis realizadora do Reino, quer dizer, seu momento consciente e reflexo. Daí por que a referência à situação histórica em 82 Ibid., p. 69. Cf. FORTE, B. Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história. São Paulo: Paulus, 1985, p. 284. 84 Cf. BOFF, C. Teoria do método teológico, op. cit., p. 18. 83 Basilíade – Revista de Filosofia, Curitiba, v. 4, n. 8, p. 9-36, jul./dez. 2022 32 que ela está situada é indispensável85. Isso implica dizer que elas têm, como tarefa específica, explicitar o sentido da totalidade do real a partir da ação livre de Deus, que constrói seu Reino na história humana rumo a uma realização definitiva. Por isso, sendo a teologia um saber racional tem que entrar em diálogo com os demais saberes humanos da época e com isso prestar sua colaboração para a construção de um mundo mais humano e mais justo. Referências AGOSTINHO. De fide et symbolo 7. PL 40. ANJOS, M. F. dos (org.). Inculturação: desafios de hoje. Petrópolis: Vozes, 1994. AQUINO JÚNIOR, F. de. Teologia e Filosofia. Problemas de fronteira. São Paulo: Paulinas, 2018. AQUINO JÚNIOR, F. de. 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