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TEMPORALIDADES

As mercês régias e os pretos devotos: A rede interacional de proteção das irmandades do Rosário no Reino de Portugal. 1 The royal favors and the black devotes: The international network of protection of the brotherhoods of the Rosary in the Kingdom of Portugal.

As mercês régias e os pretos devotos: A rede interacional de proteção das irmandades do Rosário no Reino de Portugal.1 The royal favors and the black devotes: The international network of protection of the brotherhoods of the Rosary in the Kingdom of Portugal. Leonara Lacerda Delfino Pós-Doutoranda em Ensino de História - Brasil UNIMONTES [email protected] Recebido em: 07/12/2016 Aceito em: 22/01/2017 RESUMO: Este artigo tem por objetivo problematizar os vínculos entre as confrarias do Rosário e a Coroa Portuguesa, através da análise da política de concessão de privilégios — na forma dos Resgates, impedimentos de vendas dos cativos confrades para fora do Reino e da proteção no uso de insígnias de distinção devocional. Neste excerto trabalhamos também com a noção de honra devocional, construída pelos devotos pretos, e suas formas de acionamento das mercês régias, como um mecanismo de defesa dos seus anseios coletivos. Palavras-Chaves: irmandades, mercês régias, resgates, devoção do Rosário. ABSTRACT: This article aims to problematize the links between the confraternities of the Rosary and the Portuguese Crown, through the analysis of the policy of granting privileges - in the form of redemptions, impediments to sales of confreres captives out of the Kingdom and protection in use Of insignia of devotional distinction. In this excerpt we also work with the notion of devotional honor, built by black devotees, and their ways of triggering royal favors, as a mechanism to defend their collective yearnings. Keywords: brotherhoods, royal favors, redemptions, devotion of the Rosary. Os resgates dos confrades cativos e os privilégios régios As irmandades negras em Portugal, independente da invocação, foram os mais importantes centros de defesa, proteção e apoio jurídico para os escravos e libertos africanos e seus descendentes. A precedência e a popularidade do 1 Este artigo compõe parte de minha tese de doutoramento: DELFINO, Leonara Lacerda. O Rosário dos Irmãos Escravos e Libertos: Fronteiras, Identidades e Representações do Viver e Morrer na Diáspora Atlântica. Freguesia do Pilar-São João Del-Rei (1782-1850). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora-MG, 2015. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 113 Rosário contribuiu para a identificação desta invocação como um espaço privilegiado para a defesa dos interesses da população negra.2 A invocação da Virgem do Rosário, ícone emblemático da experiência devocional da escravidão na América Portuguesa, passou a ser propagada pela Igreja pelas cinco partes do mundo, durante a expansão ultramarina. Junto ao Santíssimo Sacramento e às Almas de São Miguel, configurou a tríade das chamadas devoções da pastoral tridentina. Concomitante ao movimento de conquista espiritual no Novo Mundo, em que a cruz e a espada tornaram-se instrumentos inseparáveis para a implementação do projeto imperialista português-católico na extensão do Ultramar, o rosário estabeleceu-se como um dos símbolos principais das missões católicas. Tomada inicialmente como senhora dos mares, protetora dos navegantes3 e “rainha da paz e da guerra”, a Senhora do Rosário instituiu-se, segundo Juliana Souza4, como “bandeira da conquista espiritual portuguesa”, ao mesmo tempo em que se fixou como sinal diacrítico da identidade católica frente aos reformadores calvinistas e luteranos. Em Portugal5, as confrarias do Rosário se proliferaram a partir do século XV, quando houve a fundação da primeira irmandade desta invocação no mosteiro de São Domingos de Lisboa, por ocasião da peste que assolou a cidade no ano de 1490. De acordo com Maria Helena da Cruz Coelho, o movimento leigo, num sentido mais amplo, já havia se consolidado no reino desde os fins da Idade Média, se concentrando, sobretudo, nas regiões entre o Minho, Douro e nas proximidades do Tejo.6 Conforme Saul Antônio Gomes, o culto do Rosário em Portugal consolidou-se, em grande parte, não só pela ação do mosteiro de São Domingos, mas pelos monastérios de Santa Maria da Vitória, Santa Ana de Leiria e pelas casas cistercienses, como a de Santa Maria do Cós. Nesta época, Portugal já contava com um amplo conjunto de confrarias 2 REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas. Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista. São Paulo: Alameda, 2011, p. 358. 3 Segundo Scarano, a Senhora do Rosário em Portugal ficou conhecida como protetora dos navegantes, e padroeira dos marinheiros do Porto. Posteriormente, com o avanço do “proselitismo dominicano”, passou a integrar o africano recém-chegado, adotando “regras semelhantes às das demais confrarias portuguesas” que tinham como obrigações pias “remirem cativos e presos, e casarem órfãs”. Cf.; SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito de Diamantina no século XVIII. 2 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1978. 4 SOUZA, Juliana Beatriz de Almeida. Senhora dos Sete Mares. Devoção Mariana no império colonial português. Tese de Doutorado em História. Niterói: UFF, 2002, p. 173. 5 Sobre a escravidão em Portugal, ver: FONSECA, Jorge. Escravos e Senhores na Lisboa Quinhentista. Lisboa: Ed. Colibri, 2010. 6 COELHO, Maria Helena da Cruz. As confrarias medievais portuguesas: espaços de solidariedade na vida e na morte. In: Confradias, grêmios, solidariedades em La Europa Medieval. XIX Semana de estudios Medievales. Estella. Gobeierno de Navarra: Departamento de Educación y Cultura, 1992, p. 157 Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 114 desta devoção espalhadas por localidades como Lisboa, Évora, Lagos, Leiria, Alcácer-do-Sal, Elvas, Setúbal e Moura.7 Segundo o autor, essas novas confrarias passaram a imprimir uma religiosidade laica moderna, priorizando a prática litúrgica devocional em relação aos serviços de assistência mútua.8 De acordo com os estatutos que regulamentavam o funcionamento interno dessas corporações, a admissão podia ser feita por todas as pessoas cristãs de “qualquer qualidade e condição”9. Cada ingressante tinha por incumbência a prática da oração diária ou semanal do rosário, além de venerar Maria como principal intercessora dos fiéis e pecadores. Outros deveres consistiam em participar ativamente em todos os ritos litúrgicos e celebrações festivas, como acompanhar os enterros dos irmãos defuntos e assistir piedosamente os doentes, órfãos e desvalidos. Ademais, era dever de todo entrante a obrigação de escutar os sermões e entoar os cânticos de louvor à Maria para que pudesse ser agraciado com indulgências e receber uma pena menor durante o julgamento das almas no Purgatório.10 No compromisso de abertura da confraria do Rosário da abadia cisterciense de Santa Maria do Cós em 1583 havia anexada às disposições estatuárias, uma bula papal de Leão X cujo documento estabelecia privilégios espirituais àqueles que rezassem periodicamente o santo rosário. Os irmãos vivos e mesmo os já defuntos poderiam receber registro nos livros de entradas, formando uma única família de devotos. Os primeiros se relacionavam com os confrades defuntos pela obrigação de orar semanalmente para que os ditos falecidos pudessem desfrutar “lá no Purgatório não só de todas as indulgências, mas de todos os bens espirituais de que participam e gozam os confrades vivos”11. Já a segunda disposição presente no documento dizia sobre a festa de celebração em memória a vitória de Lepanto (1571), instituída pelos papas Pio V e Gregório XIII, em 1573, para comemorar a vitória cristã contra os muçulmanos na região do Mediterrâneo. De acordo com as determinações do último papa mencionado, todas as igrejas com altares de 7 GOMES, Saul. Notas e documentos sobre as confrarias portuguesas. Entre o fim da Idade Média e o século XVII: O protagonismo dominicano de Sta. Maria Vitória. In: Lusitania Sacra. Lisboa. 2' série, 7,1995, pp. 89-150. 8 Segundo Gomes, as instâncias de poder municipal passaram a assumir os serviços de assistência social, algo que não ocorreria no Brasil setecentista. Cf.: GOMES. Notas e documentos sobre as confrarias portuguesas. Entre o fim da Idade Média e o século XVII, p. 89-150. 9 Consoante Nicolau Dias: “(...) na confraria do Rosário de Nossa Senhora, recebem todos os estados e condições de pessoas, homens, mulheres, grandes, pequenos, pobres, ricos, velhos, moços, livres, eclesiásticos, seculares e defuntos.” Cf.: DIAS, Nicolau. Livro do Rosário de Nossa Senhora. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1982, 1ª Ed, 1573, p. 45. 10 ______ Livro do Rosário de Nossa Senhora, p. 45. 11 ANTT, Livro 37, fl 1-2. Mosteiro do Cós. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 115 Nossa Senhora do Rosário deveriam celebrar uma festa solene durante os primeiros domingos de outubro.12 Esta tarefa foi logo assumida pelo convento de São Domingos em Lisboa, quando a primeira irmandade dos pretos devotos se separou da confraria de brancos e passou a ser reconhecida oficialmente em meados do século XVI.13 Com efeito, ao saírem fortalecidos do litígio com os irmãos brancos na busca pela autonomia do grupo, os confrades de cor14 solicitaram ao poder régio, além do direito de festejar o Rosário a seu modo, uma série de demandas que ultrapassavam ao largo questões estritamente devocionais.15 As súplicas dirigidas em forma de petições traduziam anseios coletivos, como pedidos para regatar irmãos libertos, reescravizados por ocasião da morte do senhor, quando na condição de recém-alforriados viam seus direitos serem usurpados pelos herdeiros. Outro pleito muito frequente referia-se ao poder da irmandade em comprar o cativo ou lhe arranjar um comprador íntegro, caso o irmão cativo sofresse maus tratos do cativeiro tido como injusto ou não-cristão. Os irmãos pretos também reclamavam contra as proibições do comércio das negras do tabuleiro impostas pelos fiscais municipais daquela cidade. Em 1505, sob intervenção do rei Dom Manoel, as pretas forras passaram a ter direito de venda pública nos arredores da corte lusitana. Como podemos perceber, pelo caso específico desta irmandade do Rosário lisboeta, esses grupos fraternais de homens pretos do reino representavam um canal institucional para as reivindicações sociais e de conquistas de privilégios sancionadas pela concessão de mercês régias.16 Contudo, Didier Lahon pondera que esses privilégios foram gradativamente reduzidos, “em particular a partir de 1740”, quando o poder régio demonstrou cada vez mais reservas em favorecer uma política de alforria mediante o crescimento expressivo de libertos, vistos pelas 12 GOMES. Notas e documentos sobre as confrarias portuguesas. Entre o fim da Idade Média e o século XVII, p. 102. 13 LAHON, Didier. Da redução da alteridade a consagração da diferença: as irmandades negras em Portugal (Séculos XVI-XVIII). In.: Revista Projeto História. São Paulo, nº 44, pp. 553-83, jun. 2012, p. 60-61. 14 Esta referência “irmãos de cor” era uma terminologia utilizada pela linguagem presente na narrativa dos documentos das irmandades do Rosário. 15 Sobre as graças régias concedidas aos pretos do Rosário, ver: TINHORÃO, J. R. Festa de negro em devoção de branco: do carnaval na procissão ao teatro no círio. São Paulo: Ed. UNESP, 2012, p. 47-49. Ver também: BRÁSIO, Antônio. Os Pretos em Portugal. Lisboa: Divisões de Publicações e Biblioteca Geral das Colônias, 1944, p. 73-96. 16 A mercê régia foi um dos mecanismos de extensão do Império Português, através do estabelecimento de vínculos entre o rei e seus vassalos. A política de premiação ou concessão da graça ou do privilégio real se baseava numa noção de reciprocidade desigual, onde o rei expandia uma cadeia de atos beneficiais, reconhecendo os serviços prestados à Coroa. Cf.: HESPANHA, A. M. A & & XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 116 autoridades como uma ameaça ao sossego público. Segundo o discurso dos homens bons de Lisboa, o aumento efetivo de forros gerava “grandes inconvenientes aos costumes da corte polida”, pois os moços a servir ficavam sem afazeres e poderiam se entregar facilmente à “ociosidade e aos vícios”17. Deste modo, o discurso régio Setecentista já não era o mesmo quando tinha por preocupação integrar, através de premiações e benesses reais, os africanos/escravos estabelecidos na Corte lisboeta. A retórica, antes pautada numa justificativa religiosa para evangelizar os gentios pagãos através da graça da Maria do Rosário, passou a se respaldar numa lógica de proteção à propriedade. Sendo assim, comprovar a injustiça e os maus tratos do cativeiro se tornava cada vez mais difícil, haja vista a palavra do senhor, cada vez mais hegemônica em relação à palavra do escravo.18 Isto posto, mesmo diante da representação jurídica das irmandades ancoradas em privilégios reais, não era fácil fazer frente aos desmandos das autoridades legitimadas pelo exercício da força material e simbólica do poder senhorial. Em consulta ao fundo documental do Desembargo do Paço constatamos que, mesmo frente estas restrições, os irmãos do Rosário do reino continuaram a defender seus privilégios conquistados e a combater a arbitrariedade senhorial, utilizando-se dos espaços reivindicativos dos sodalícios. Ainda sem respostas favoráveis a seus irmãos maltratados ou vendidos para fora do reino, as petições seguiam numa frequência espantosa entre os séculos XVII e XVIII. Já após o terremoto, acompanhado do incêndio de 1755, esses requerimentos se avolumaram ainda mais, sob a justificativa de terem sido queimados os antigos privilégios concedidos antes do desastre. Deste modo, os irmãos do Rosário da Senhora Resgatada – alocada ao Convento da Santíssima Trindade da Corte – encaminharam ao poder régio, em 10 de julho de 1780, o pedido de extensão dos privilégios “concedidos à Irmandade do Rosário do Salvador” por Dom João V (1714). Segundo o requerimento: [...] em virtudes dos quais é facultado a mesma Irmandade poder libertar ou buscar comprador a quais seus Irmãos ou Irmãs escravos querendo seus senhores vendê-los para fora do Reino ou no caso de lhes darem áspero e cruel tratamento ou finalmente deixarem os mesmos Irmãos precisos para o serviço da sua Irmandade. Se lhes conceder a graça pedida somente no veredicto caso de quererem os Senhores dos Irmãos dos Suplicantes vendê- 17 LAHON. Da redução da alteridade a consagração da diferença: as irmandades negras em Portugal (Séculos XVIXVIII), p. 66-67. 18 Observação feira por: REGINALDO, Lucilene. África em Portugal: devoções, irmandades e escravidão no Reino de Portugal, século XVIII. In: Revista História, São Paulo, nº 28, vol. 1, 2009, p. 289-319. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 117 los para fora do Reino em cujo caso poderia a Irmandade Suplicante pagar aos Senhores o seu justo valor.19 (Grifos Nossos) Os irmãos da Resgatada justificaram seu pedido com base nos “ponderados motivos do serviço e obséquios feitos à Senhora do Rosário”, pois caso fossem transferidos para fora do Reino “não podiam continuar com sua devoção”. E por tudo isso, diziam os confrades serem dignos da graça de modo que “fora desta cidade não poderiam empregar-se no culto divino a Senhora do Rosário”20. Em resposta, a Coroa pondera que já “naquele tempo” de Dom João V “constaria na sua Real Presença a perturbação que na República causavam semelhantes Privilégios”. Ademais, alegou também a provisão real que tais perturbações tinham como causas o fato da “maior parte dessas redenções” ser fruto dos desvios dos escravos contra seus senhores, pois, movidos pelo interesse do resgate seriam capazes de se renderem ao furto ou de incitarem, entre os demais, o “amor à liberdade”21. Por fim, o procurador da Coroa reitera seu posicionamento em favor “sempre ao justo domínio dos senhores dos escravos irmãos”22. Em requerimento anterior, os irmãos do Rosário do Convento de Santa Joana suplicaram pela confirmação das mercês concedidas quando ocupavam o antigo mosteiro de São Domingos.23 Em petição, os confrades — João Ribeiro (homem preto, trabalhador e morador da Rua Direita com mais de sessenta anos), juntamente com Bernardo José da Paz Tomé (preto e oficial de alfaiate) — juraram, em nome do Evangelho, pela obtenção daquela irmandade de todas as graças régias queimadas por ocasião do incêndio de 1755. O capelão da associação — o Padre João de Azevedo — defendeu, em carta de 1768, a existência de um antigo privilégio “para que preto algum da Irmandade” fosse vendido ou transportado para fora do Reino. Ainda reitera, “todo senhor que os transportar será condenado em tantos mil cruzados [...]”. E por isso suplicava por meio daquela missiva, o repasse das 19 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 1354, Nº 11. Extensão de Privilégios à Irmandade dos Homens Pretos denominada de N. S. do Rosário, a Resgatada, 1780. 20 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 1354, Nº 11. Extensão de Privilégios à Irmandade dos Homens Pretos denominada de N. S. do Rosário, a Resgatada, 1780. 21 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 1354, Nº 11. Extensão de Privilégios à Irmandade dos Homens Pretos denominada de N. S. do Rosário, a Resgatada, 1780. 22 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 1354, Nº 11. Extensão de Privilégios à Irmandade dos Homens Pretos denominada de N. S. do Rosário, a Resgatada, 1780. Ver também o pedido encaminhado pela mesma Irmandade do Rosário em 1761, no qual os confrades se referem aos escravos irmãos que eram vendidos para o Brasil. Cf.: ANTT. Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço, 2091. 23 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 2091, Nº 29, Petição de confirmação de Privilégios da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos do Convento de Santa Joana, 1768. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 118 certidões de todas as mercês adquiridas pelos “antecedentes reis de Portugal”24. Essas reivindicações ou súplicas também preconizavam o direito em nomear um juiz privativo25 para que a Irmandade pudesse pleitear a liberdade dos irmãos submetidos às sevícias e ásperos castigos, podendo aqueles ser resgatados até o momento em que fossem colocados a bordo dos navios. Além disso, cada senhor seria multado com “duzentos cruzados”, em situação de venda do confrade cativo para fora do Reino. Na mesma carta, o capelão reclamava sobre a necessidade de promover peditórios pela cidade, uma vez que o “incêndio sucessivo ao terremoto” exauriu quase todos os bens da dita irmandade e sua igreja necessitava de muitos reparos.26 Em resposta encaminhada pelo desembargador Antônio Manoel Nogueira de Abreu 1769, o poder régio declarou a sua não concessão, porque se assim o fizesse, tiraria “a liberdade dos senhores”, privando-os da possibilidade de lucro extraído das transações de venda para fora do Reino.27 Tal argumento se respaldou tanto no direito de propriedade como na questão disciplinar, pois os escravos “fiados no privilégio da Irmandade de os remirem” passavam a prestar “mau serviço” aos seus proprietários. As acusações chegavam a ser de cunho moral, atacando os servidores da suspeita de furtarem o “dinheiro e bens” dos seus senhores, na esperança de a confraria interceder em favor deles em prol da alforria. Desta forma, não seria recomendável ao confrade cativo que recorresse ao pedido de mercê, pois havia “remédios de direito” que o protegesse de maus tratos, sem lesar, portanto, o direito de propriedade senhorial. Quanto à licença para esmolar pela cidade, a resposta também foi negativa sob a justificativa de que os negros “abusavam desta graça pelas indecências praticadas no exercício da mesma, causando irreverência na Irmandade da mesma Senhora que consigo traziam [...]”. Por isso, conclui o desembargador dizendo que esses irmãos tinham pouco apreço “a nossa religião”28. Apesar da recusa do desembargador em atender os irmãos do Rosário de Santa Joana, é razoável supor, por outro lado, que a política intervencionista antecedente em favor dos rosários de São Domingos de Lisboa foi regida por uma lógica de privilégios, onde os direitos não significavam equidade e extensão a todas as confrarias negras, mas àquelas, em específico, beneficiadas pela 24 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 2091, Nº 29, Petição de confirmação Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos do Convento de Santa Joana, 1768. 25 Este juiz deveria defender “todas as causas da irmandade”. 26 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 2091, Nº 29, Petição de confirmação Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos do Convento de Santa Joana, 1768. 27 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 2091, Nº 29, Petição de confirmação Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos do Convento de Santa Joana, 1768. 28 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Maço 2091, Nº 29, Petição de confirmação Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos do Convento de Santa Joana, 1768. de Privilégios da de Privilégios da de Privilégios da de Privilégios da Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 119 benevolência régia. A percepção que se tinha em torno dos parâmetros corporativos da sociedade auxiliou a inserção desses escravos, enquanto devotos, à autoridade do rei. Isso ocorria quando os pedidos de resgate chegavam até o conhecimento do poder régio, através da intervenção da irmandade, tida como corporação representante e canal de reinvindicação destes devotos. Nessa perspectiva, as associações religiosas funcionaram, em síntese, como meios de conversão, enquadramentos e normatização dos escravizados, sem deixar de servir também como veículos de integração social, proteção e de reorientação identitária desses sujeitos num contexto de impacto social da diáspora. Lucilene Reginaldo, ao estudar a circulação e a repercussão desses pedidos de privilégios em vários pontos do Atlântico, chamou a atenção para “o fracasso desse recurso” no Ultramar, podendo ser explicado pelas “marcantes diferenças entre a escravidão do reino e na colônia”29. Nesse sentido, acrescenta este estudo: “qualquer questionamento à propriedade escravista era por demais explosiva e subversiva da ordem. Quanto mais evidente foi se tornando esta realidade, mais absurda e inútil se tornava qualquer tentativa de resgate de cativos por argumentos de cunho moral”30. Neste ínterim, não atingidas as mesmas proporções dos privilégios régios obtidos pela confraria de pretos de Lisboa, as irmandades do Rosário no Brasil também tomaram a iniciativa de enviar cartas ao poder régio solicitando a liberdade dos irmãos submetidos em condições de cativeiro injusto. Exemplos conhecidos foram os requerimentos encaminhados pelas irmandades desta devoção das capitanias de Pernambuco e do Rio de Janeiro estudadas por Quintão. Nessas cartas foram solicitados os regates de Domingos Gomes – vítima de maus tratos pelo seu proprietário morador de Olinda – e a liberdade de “alguns irmãos” mantidos em mau cativeiro no Rio de Janeiro. Tendo o último pedido barrado por intransigências categóricas das autoridades locais, a libertação de Domingos em Pernambuco, através deste recurso de apelação ao rei, é um dos poucos casos concretos conhecidos de resgate de irmãos promovido em terras brasileiras.31 No entanto, o alvará régio de 1702 estendeu à Irmandade dos homens pretos de Nossa Senhora do Rosário de Salvador da Bahia, o privilégio de resgatar os confrades vendidos para terras distantes. Todavia, a 29 REGINALDO. Os Rosários dos Angolas, p. 341 REGINALDO. Os Rosários dos Angolas, p. 341. 31 QUINTÃO, Antônia Aparecida. Lá vem meu parente: As Irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e Pernambuco. (Século XVIII). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002, p. 137. 30 Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 120 condição colocada à libertação “mediante justa avaliação” da Coroa não nos fornece parâmetros suficientes para afirmarmos se houve aplicação desta mercê no cotidiano dos irmãos cativos.32 Por outro lado, as confrarias negras na colônia não deixaram de exercer este papel interventor a favor das causas dos seus membros, mesmo quando não eram atendidas pelas mercês régias, no que diz respeito ao resgate dos seus irmãos maltratados ou vendidos para longe de suas comunidades. O comportamento mais próximo disso pode ser encontrado em algumas agremiações que disponibilizavam parte do seu tesouro àqueles irmãos que, ao demonstrarem capacidade em amealhar recursos, financiavam a juros a compra da alforria, sob empréstimos da irmandade. Nesse sentido, longe de reivindicar a liberdade nos moldes abolicionistas, o que seria uma postura anacrônica quando pensada para a sociedade escravista do século XVIII e da primeira metade do XIX, esses financiamentos foram concebidos como privilégios e nunca estendidos a todos os membros da corporação.33 Sendo assim, a libertação mediada pelo auxílio da irmandade, era pensada a partir dos valores caros à economia moral da escravidão34 vigentes naquele período. Buscava-se, portanto, melhorias nas condições de vida, através de uma percepção estratificada de sociedade em que a obtenção do justo e do equitativo estava entrelaçada a uma noção de justiça distributiva, onde a desigualdade era tomada como algo natural e regedora daquela sociedade corporativa e hierárquica.35 No item a seguir, procuramos ampliar a compreensão desta apropriação dos ideais do Antigo Regime36 — como os princípios de honra, distinção e pureza de sangue — enquanto Sobre o Alvará Régio de 1702 concedida ao Rosário dos Pretos de Salvador (BA), ver: BOSCHI: C. “Sociabilidade religiosa laica: as irmandades. In.: BETHENCOURT, Francisco, CHAUDHURI, Kirti. História da Expansão Portuguesa. Navarra: Círculos de Leitores, Vol. 3, 1998, p. 356. 33 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 178-180 34 A economia moral da escravidão se refere à leitura de alguns autores, como Silvia Lara, Sidney Chalhoub, Robert Slenes, em torno da análise de E.P. Thompson (economia moral dos trabalhadores ingleses do Antigo Regime). Esses estudos procuraram redimensionar os contornos dados à experiência social do cativeiro no Brasil, antes desprovida de agenciamento histórico. O conceito consiste em explicar o papel desempenhado pelos parâmetros morais costumeiros, socialmente construídos e compartilhados, na vivência cotidiana entre senhores e escravos. Busca-se entender os lugares do ethos normativo da escravidão neste campo de tensão permeado por relações plurais de confrontos silenciosos, negociações, alianças (horizontais e verticais) e rupturas violentas (revoltas). Cf.; LARA, Silvia. Blowin in the wind. E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. In.: Projeto História, nº 12,1995, pp. 43-56. SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava. Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 28-53. CHALHOUB, S. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 17-24. 35 Cf.; LEVI, Giovanni. Reciprocidade mediterrânea. In: OLIVEIRA, M. R. de & ALMEIDA, C. M. (Orgs.) Exercícios da Micro-história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009, p. 51-82. 36 Sobre a discussão acerca do antigo regime, ver: LUZ, G. A.; ABREU, J. L.; N. NASCIMENTO, M. Ordem Crítica. A América Portuguesa nas fronteiras do século XVIII. Belo Horizonte: Ed. Fino Traço, 2013. VENÂNCIO, R.; GONÇALVES, A. L.; CHAVES, C. M. G. Administrando Impérios. Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. 32 Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 121 norteadores da estratificação social das irmandades, através de um estudo de caso envolvendo um conflito entre os irmãos do Rosário e os do Santíssimo Sacramento de Lisboa. A honra, a devoção e a distinção dos irmãos: O conflito entre o Rosário do Convento de Santa Joana e os Irmãos do Santíssimo. A estratificação social do Antigo Regime e sua polarização se refletia, grosso modo, na configuração das segmentações e restrições acionadas pelas associações religiosas leigas, tanto no Reino como em sua extensão no Ultramar.37 Sendo assim, as exigências de limpeza de sangue apresentadas em estatutos de algumas agremiações religiosas, diferenciavam os cristãos velhos — detentores dos direitos civis e de qualidades sociais, como honra e prestígio — das ditas nações infectas (cristãos novos e descendentes até o 4º grau de parentesco de judeus, indígenas, mouros, negros e mulatos).38 Este princípio de desigualdade entre os homens não se baseava somente no critério de condição social, separando os livres dos escravos, mas, principalmente nos parâmetros assentados numa economia social dos privilégios de argumentação religiosa, onde ser limpo de sangue significava ter honra religiosa em razão da procedência da velha cristandade. Destarte, a ideia de impureza de sangue — pela qual excluía homens livres não brancos da participação de sodalícios como o Santíssimo, Passos e Ordens Terceiras — estava atrelada à mesma matriz religiosa que marginalizava judeus e mouros do corpo místico cristão. Isso ocorria em função do argumento segregador de cunho religioso, afastar, portanto, os “puros” (verdadeiros cristãos) dos “impuros” (cristãos novos, hereges e infiéis). Com efeito, a concepção da maldição de Cam lançada aos africanos serviu de base doutrinária não só para expansão do império português sob a égide da catequização, mas também à incorporação desses gentios escravizados a serviço da extensão dos domínios católicos sem o escamoteamento das estratificações sociais vigentes no antigo regime. Esta estratificação, entendida como algo natural, estava presente na composição do Direito Canônico e dos textos jurídicos como as Ordenações Filipinas ao restringirem juridicamente a ocupação dos cargos de governança, postos militares, eclesiásticos e 37 SALLES, Fritz, Teixeira. Associações Religiosas no Ciclo do Ouro. Introdução ao estudo do comportamento social das irmandades de Minas no século XVIII. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 72 38 A primeira política discriminativa em Portugal foi implantada em 1497, quando a Coroa distinguiu os cristãos novos (judeus convertidos) dos cristãos velhos, proibindo que os primeiros e seus descendentes até a quarta geração ocupassem postos burocráticos do reino. Em 1671, esta restrição foi estendida ao sangue mouro e mulato. Mais informações sobre o assunto ver: PRECIOSO, Daniel. Legítimos Vassalos: pardos livres e forros na Vila Rica Colonial (1750-1803). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011, p. 68. CARNEIRO, M. Luiza Tucci. Preconceito Racial. Portugal e Brasil-Colônia. 2. ed, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988, p. 211. BOXER, C. R. O Império Marítimo Português (1415-1825). 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2014, p. 245-265. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 122 participação de determinadas associações leigas aos limpos de sangue, também denominados como homens bons.39 Não obstante, durante o reinado de Dom José I foram incisivas as reformas administrativas nesta política das estratificações sociais implantadas pelo ministro Sebastião José de Carvalho (Marquês de Pombal). Embora não se tenha atingido diretamente os pardos e crioulos no Ultramar, pois a legislação não abarcava os descendentes de africanos40, criou-se outra concepção de servidão. Nesta nova percepção, houve – ao lado da supressão do critério de limpeza de sangue em relação aos mouros, judeus e ciganos – a libertação de filhos e netos de africanos em Portugal, fato que serviu para intensificar os pedidos de resgate de escravos e de extensão de privilégios emitidos pelas irmandades, a exemplo do Rosário de Lisboa. Nessas cartas, enviadas de vários pontos do Atlântico, os irmãos de diferentes associações de aceitação de escravos questionavam os abusos de sevícias sofridos pelos confrades em cativeiro, a revogação da liberdade testamentária feita por herdeiros e o assédio dirigido às irmãs cativas.41 Apesar de essas mudanças atingirem em alguns aspectos o ideal de pureza de sangue, as políticas restritivas continuaram a ser praticadas no cotidiano daquelas irmandades, pois era difícil que valores estruturalmente tão arraigados no comportamento daquela sociedade se desfizessem facilmente da noite para o dia; mesmo porque a reforma pombalina não incluía os pretos, pardos e seus descendentes, mesmos na condição de livres ou libertos. Com efeito, muitas agremiações ditas “aristocráticas” persistiam na exclusão de homens vis (executores de ofícios mecânicos e manuais) e de pessoas que pudessem gerar desonra ou desdouro à agremiação. Neste aspecto, as associações de privilégio não aludiam somente ao comportamento moral dos seus irmãos, mas a seus postos ocupados naquela sociedade, pois não era bem quisto que em irmandades como as Misericórdias, por exemplo, assentassem pessoas sem distinção e reconhecimento social naquele sodalício tradicionalmente arregimentador das elites locais. 39 LARA, Silvia (org). Ordenações Filipinas (1603): Livro V. São Paulo Companhia das Letras, 1999. Cf.; Título 92 “Dos que tomam insígnias de armas e dom ou apelidos que lhes não pertencem”; Título 93 “Que não tragam hábitos nem insígnias das ordens militares em jogos ou em máscaras”; Título 94 “Dos mouros e judeus que andam sem sinal”, p. 293-303. 40 A supressão da limpeza de sangue em 1776 por Pombal fazia referência aos descendentes de judeus, mouros, ciganos e indígenas e não aos descendentes de africanos. Os direitos civis aos homens livres de cor só foram oficialmente reconhecidos pela Constituição de 1824, desde que nascessem brasileiros e livres. Caso fossem africanos libertos ou crioulos alforriados não gozariam plenamente dos direitos civis e políticos, pois não eram vistos como cidadãos. Sobre o assunto ver: MATTOS, Hebe. M. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000, p. 14-21. 41 Mais informações sobre os resgates de cativos ver: DELFINO. O Rosário dos Irmãos Escravos e Libertos, p. 59; REGINALDO. África em Portugal, p. 289-319. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 123 Sem desprezar a experiência devocional desses homens e mulheres42, observamos como as polarizações sociais daquela sociedade estratificada refletiram-se nas diferentes arregimentações devocionais. Se, por um lado, as irmandades do Rosário aceitavam todos os cristãos de qualquer qualidade e condição, associações como o Santíssimo Sacramento, Passos e as Ordens Terceiras exibiam cláusulas rigorosamente restritivas, negando o acesso aos não livres e aos impuros de sangue, principalmente no período anterior às reformas pombalinas.43 O estudo de caso apresentado a seguir refere-se às formas de apego ao ideal nobiliárquico, aos valores de honra, prestígio e ao princípio de poder corporativo calcado na diferença natural dos homens, enquanto princípios norteadores das segmentações devocionais no Império Português. Isso pôde ser constado pela leitura dos requerimentos dos irmãos pretos do Rosário do Convento de Santa Joana de Lisboa ao Desembargo do Paço para reclamar acerca dos direitos sob uso das insígnias de distinção e devoção, as quais a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia do Coração de Jesus tinha por objetivo vetar.44 A causa inicial das querelas residia em disputas hierárquicas e canônicas das confrarias. O motivo, aparentemente ingênuo, se arrastou em um processo jurídico entre as duas devoções e ocorreu em função da violação de símbolos tidos como propriedade dos “cristãos velhos” representantes da pureza de sangue da cristandade. Os irmãos do Santíssimo viram sua honra afetada, quando os confrades do Rosário passaram a utilizar das opas encarnadas em seus atos públicos festivos e na realização dos peditórios. A mudança das murças brancas com insígnias pretas para a cor púrpura (distinção nobre) foi encarada como uma profunda ofensa pelos irmãos do Santíssimo, considerados lesados nas esmolas e prejudicados na distinção de sua imagem. Segundo o procurador da Irmandade da Igreja do Sagrado Coração de Jesus: [...] comparada e igualada às Misericórdias, [a Irmandade do Santíssimo Sacramento] achando-se na posse e uso de tempo imemorial de ela só ter e 42 Não se trata de reproduzir aqui a interpretação de uma religiosidade exteriorista e superficial, mas entender as motivações religiosas desses devotos a partir dos constrangimentos e imperativos sociais que movimentavam as estratificações daquela sociedade. Deste modo, busca-se a compreensão de como as polarizações sociais refletiram também nas fronteiras identitárias devocionais impressas na segregação de templos e associações. 43 Por outro lado, as devoções de pardos e mulatos, como a da Boa Morte, São Gonçalo Garcia, Nossa Senhora do Terço reproduziram um estágio mais aprimorado da estratificação social na colônia. O fortalecimento da identidade devocional dos homens pardos gerou a objeção destes em relação aos crioulos e africanos, em razão das tradicionais irmandades atreladas ao cativeiro não atenderem aos anseios deste grupo, cuja noção de pertença não perpassava mais pela adesão maciça às Mercês dos crioulos e aos Rosário dos homens pretos. 44 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Nº 17, Requerimento da Irmandade do Rosário do Convento de Santa Joana, 1798. Cópia da Petição dos Irmãos do Santíssimo Sacramento da Igreja do sagrado Coração de Jesus, 1793. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 124 vestirem seus irmãos privamente capas de pano encarnado, só eles pedirem para ser a do Santíssimo Sacramento no recinto da sua freguesia, e sendo isso o distintivo de todas as outras irmandades que, sempre estiveram os ditos do Santíssimo das Paróquias: acontece que de pouco tempo a essa parte os Irmãos de uma Irmandade que há no Convento de Santa Joana com o título do Santíssimo Rosário tendo dantes capas (...) brancas os deitaram de pano encarnado como as do Santíssimo da paróquia e com elas se apresentam nos dias festivos na porta do dito convento e na rua a pedirem esmolas ao Povo, por forma que a dita Irmandade Suplicante uma grande diminuição nos seus Peditórios, porque o Povo enganado com a dita aparência das capas encarnadas entende que tem dado a esmola para o Santíssimo de sua Paróquia [...].45 (Grifos Nossos) Como observado, os irmãos de Santíssimo se viam com a mesma graduação e distinção religiosa que a aquela atingida pelos irmãos das Misericórdias. E o direito ao uso da cor púrpura era, segundo seu requerimento, imemorial e reservado às “pessoas de alta hierarquia e beneméritas”, isto é, dos representantes leigos engajados na promoção do culto da eucaristia e da escolta do viático. Por isso os irmãos do Rosário do Convento de Santa Joana provocaram o espólio não só das esmolas, mas da distinção e da honra daqueles irmãos, tradicionalmente tidos como guardiães da sagrada comunhão.46 Não obstante, esta noção de honra não estava limitada a uma reivindicação de status de nobreza, mas abrangia a própria concepção de hierarquia devocional em que o Santíssimo, por ocupar ordinariamente o espaço central da capela-mor, representava o sacramento de reconciliação com Cristo ressuscitado. No decorrer da exposição dos seus argumentos, esses irmãos esclarecem em quais pontos a escolha das vestes suscitou uma situação de injúria provocada pelos negros àquela confraria, recorrendo assim à intercessão da Coroa: [...] Não é livre a qualquer confraria usar das vestes que bem quer. A diferença dos vestidos não é certamente um ponto de mero capricho; é um Direito constituído em Ordem Civil, que se adquire legitimamente: que constitui propriedade, que produz ação e que irroga (sic) penas e que influi diretamente sobre a Economia política [...]. A cor púrpura que em todos os tempos foi reputada a mais nobre, que na Lei Antiga foi designada por Deus mesmo ao Divino Culto [...] e que por isso mesmo devia transmitir-se a Lei da Graça com justa razão constitua a cor própria das Vestes destinadas ao serviço do Santíssimo Sacramento nas Paróquias, para dali se administrar aos fiéis e aos enfermos. [...] Em uma palavra as Irmandades do Santíssimo Sacramento das Paróquias, pelo seu fim, pelo objeto em que se empregam, pelo culto a que se destinam e pelo interesse do estado não devem confundir-se com alguma outra confraria [...] A extorsão das esmolas foi um fato público, 45 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Nº 17, Requerimento da Irmandade do Rosário do Convento de Santa Joana, 1798. Cópia da Petição dos Irmãos do Santíssimo Sacramento da Igreja do sagrado Coração de Jesus, 1793. 46 BORGES, C. M. Em Honra ao Senhor: a devoção à hóstia consagrada pelos irmãos do Santíssimo Sacramento em Minas Colonial. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 125 indubitavelmente demonstrado, pois que na verdade os Suplicantes pediam pela Rua, longe do Adro da igreja [...] desde as suas próprias casas até a igreja.47 (Grifos Nossos) Esta confusão na aparência das insígnias fez com que os irmãos ofendidos passassem a utilizar argumentos depreciativos e a desqualificar a todo custo a ação dos pretos devotos. Segundo os suplicantes, aqueles confrades do Rosário se figuravam em público com as vestes do Santíssimo para extorquir esmolas do Povo que, enganados com a aparência das opas, prestavam auxílio pensando ser a doação destinada ao Senhor Sacramentado. De acordo com o procurador daquela irmandade da paróquia, “não o sendo realmente em serviço da Igreja” os servidores do Rosário “com capas do Santíssimo vai buscar esta [doação] onde a despesa é insignificante e menor o pio trabalho e decrescendo outra que é indispensável”48. Todavia, os irmãos do Rosário responderam prontamente à associação dizendo ser “absolutamente falso” o depoimento declarado de que os irmãos pretos iludiam “a piedade dos fiéis extorquindo-lhes as esmolas por engano”. Segundo os devotos, era público e notório o fato de que a Igreja de Santa Joana não se confundia com a Paróquia do Coração de Jesus. Por isso não tinha fundamento a reclamação dos irmãos do Santíssimo que – baseados na “falsa imaginação de a cor encarnada ser a mais grave e mais respeitável” – se indispuseram com os irmãos do Rosário. Ademais, acrescentam ainda: [...] em 1º lugar, as capas encarnadas nunca foram privativas somente próprias das Irmandades do Santíssimo Sacramento das paróquias, que antigamente usavam delas brancas, antes da celebração dos Santos Mártires, sendo absolutamente arbitrária e voluntária a mudança que fizeram, sem ter direito algum e muito menos exclusivo das outras irmandades: em 2º lugar todas as confrarias eretas estabelecidas nas Igrejas dos Conventos de religiosos e de religiosas desta Corte, que tem a administração das Capas do Santíssimo Sacramento das mesmas Igrejas sempre tem usado das mesmas vestes encarnadas, como é constante nos conventos de S. Francisco da Cidade, dos Paulistas, de Jesus, de S. Domingos e outros das quais algumas tem já convencido judicialmente as confrarias das paróquias por Licenças que passaram em julgado. [...] Em terceiro [...], podem todas as confrarias usar das outras Insígnias por sua devoção sem escândalo e prejuízo de alguma das Ordens Militares [...].49 (Grifos Nossos) 47 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Nº 17, Requerimento da Irmandade do Rosário do Convento de Santa Joana, 1798. Cópia da 2ª Petição dos Irmãos do Santíssimo Sacramento da Igreja do sagrado Coração de Jesus, 1799. 48 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Nº 17, Requerimento da Irmandade do Rosário do Convento de Santa Joana, 1798. Cópia da 2ª Petição dos Irmãos do Santíssimo Sacramento da Igreja do sagrado Coração de Jesus, 1799. 49 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Nº 17, Requerimento da Irmandade do Rosário do Convento de Santa Joana, 1798. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 126 Portanto os irmãos negros se viam na condição de beneméritos a serviço da Virgem e seria “muito indecoroso para a irmandade” se os filhos do Rosário fossem privados “do uso atual das capas encarnadas”. Segundo os devotos, o uso procedia de forma legítima, pois os mesmos já haviam adquirido a licença do Ordinário daquela Freguesia, por isso recorreram ao Desembargo do Paço para que fosse conservado “o uso de suas insígnias e capas encarnadas”. Em resposta, o desembargador Francisco Alves da Silva se coloca parcialmente ao lado dos suplicantes negros, ao declarar que “estando eles munidos da licença do Ordinário e não havendo Lei que encobrisse esta determinação”, lhe pareceu pertinente a resolução régia de não proibi-los de usarem as vestes encarnadas. Esta determinação foi aceita desde que não pedissem os pretos do Rosário “fora da Igreja e de seu Adro”50. Este caso de enfrentamento dos pretos devotos à poderosa entidade do Santíssimo Sacramento demonstra não só o esforço coletivo acionado pela identidade devocional ao Rosário, mas como esses espaços de padronização de condutas e regulação de comportamentos da política de conversão foram apropriados em benefício à defesa jurídica dos escravos irmãos. Como podemos notar, não raro os confrades recorriam ao Desembargo do Paço em defesa dos seus interesses devocionais e dos privilégios adquiridos principalmente nos primeiros anos de conversão, quando o projeto missionário se demonstrava bastante incerto e o poder régio, cada vez mais envolvido na política de colonizar corpos e espíritos.51 Em suma, diante do que foi exposto, notamos como a coesão intragrupal veiculada às associações leigas refletiu, de certa forma, as polarizações da sociedade de estratificação do antigo regime. A necessidade dos irmãos do Santíssimo em demarcar fronteiras sociais — em relação à distinção que se viam frente aos pretos do Rosário de Santa Joana — demonstra o ideal de nobilitação, como princípio de segmentação e fronteirização devocional presente nas irmandades leigas. Por outro lado, as regras restritivas — nas quais reservavam aos homens de sangue limpo, as devoções de distinção canônica, e às gentes de qualquer qualidade ou condição, as irmandades do Rosário — expressam que mesmo com as interdições houve a apropriação e mobilidade das insígnias e crenças religiosas. 50 ANTT, Desembargo do Paço, Estremedura e Ilhas, Nº 17, Requerimento da Irmandade do Rosário do Convento de Santa Joana, 1798. 51 Esta intervenção crescente do poder régio nos assuntos confrariais resultou teve seu ponto máximo com a exigência do Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens, em 1765, com a fiscalização dos estatutos das irmandades leigas. Cf.; PENTEADO, Pedro Manoel Pereira. Nossa Senhora de Nazaré. Contribuição para a História de um Santuário Português (1600-1785). Dissertação de Mestrado em História Moderna. Lisboa: FLUL/Universidade de Lisboa, 1991, p. 39-45. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 127 Considerações finais: A política intervencionista em favor dos rosários de São Domingos de Lisboa foi regida por uma lógica de privilégios, onde os direitos não significavam equidade e extensão a todas as confrarias negras, mas àquelas em específico que solicitaram suas súplicas e foram de algum modo, atendidas pela benevolência régia. A percepção que se tinha em torno dos parâmetros corporativos da sociedade auxiliou a inserção desses escravos, enquanto devotos, à autoridade do Rei. Isso ocorria em função de que os casos atendidos pelo poder régio, como os pedidos de resgate, por exemplo, não eram feitos em nome de um escravo em particular (este desprovido de personalidade jurídica), mas em nome da irmandade, enquanto corporação e canal de representação deste devoto. Nessa perspectiva, as associações religiosas funcionaram, em síntese, como canais de conversão, enquadramentos e normatização dos escravizados, sem deixar de servir também como meios de integração social, veículos proteção e de reorientação identitária desses sujeitos num contexto desagregador e de impacto incomensurável da diáspora. Esta ânsia por familiarizar-se, por “estar em comunidade” e reconstituir laços solapados pelo tráfico se tornou um projeto buscado pelos negros estrangeiros quando se filiavam em associações religiosas nos diversos pontos do Império Português. A oferta de recursos a despeito do aparato jurídico às causas pontuais colocadas pelos irmãos submetidos à condição de injustiça no cativeiro fez das irmandades, um espaço não só de conforto psicológico, mas de expressão das causas grupais, atendidas, eventualmente, pelas mercês régias. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016) 128