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Temporalidades de Exceção

2022, IFPI

https://doi.org/10.51361/978-65-86592-53-5

Partindo dos principais aspectos da construção do conceito de tempo na tradição do pensamento ocidental, buscamos compreender como a demarcação temporal tornou-se uma forma de dominação ao longo da história de nossa estrutura social, algo visível, sobretudo, quando nos concentraremos nos aspectos históricos e socioeconômicos. Destaca-se daí a relação entre duas temporalidades que surgem com o maquinário social capitalista-liberal e caminham juntas: as temporalidades do progresso e da destruição. Nesta obra indicamos as características da destruição, a qual abarca tanto recursos naturais, como pessoas (em especial, mulheres e pessoas racializadas) e culturas; a relação entre acumulação, produção e violência; e a interligação do controle sobre a função reprodutiva das mulheres com a necropolítica. Ainda, tratamos da relação entre passado, presente e futuro para quem vive na temporalidade de destruição. Ao fim, abordamos os impactos que os avanços tecnológicos tiveram na manutenção do nosso sistema econômico contribuindo, reforçando e ampliando o fato e a quantidade daqueles que permanecem à margem do nosso mundo.

Temporalidades de Exceção Temporalidades de Exceção Alexandrina Paiva Da Rocha João Batista Farias Junior Mariana De Mattos Rubiano 1ª Edição Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí Teresina, 2022 Ministério da Educação Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí Reitor Paulo Borges da Cunha Pró-Reitora de Administração Larissa Santiago de Amorim Pró-Reitor de Ensino Odiomogenes Soares Lopes Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação José Luís de Oliveira e Silva Pró-Reitora de Extensão Divamélia de Oliveira Bezerra Gomes Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional Paulo Henrique Gomes de Lima Conselho Editorial Prof. Dr. Ricardo Martins Ramos – Presidente Prof. Me. Alan Elias Silva – Secretário-Geral Prof. Dr. José Carlos Raulino Lopes – Membro Profa. Ma. Inara Erice de Souza Alves Raulino Lopes – Membro Prof. Me. Israel Alves Correa Noleto – Membro Bibliotecária Me. Sindya Santos Melo – Membro Bibliotecária Me. Sônia Oliveira Matos Moutinho – Membro Projeto gráfico: Lucas Rolim (@contracapadesign) Revisão: Entre Trópicos Ed. Arte da capa: Rogério Narciso R672t Rocha, Alexandrina Paiva da. Temporalidades de exceção / Alexandrina Paiva da Rocha, João Batista Farias Junior, Mariana de Mattos Rubiano. – Teresina, PI: Editora do IFPI, 2022. 136 p. ISBN: 978-65-86592-52-8 ISBN: 978-65-86592-53-5 (ebook) DOI: 10.51361/978-65-86592-53-5 Filosofia. 2. Política. 3. Sociologia. 4. Globalização. 5. Tecnologia. 6. Capitalismo. I. Farias Junior, João Batista. II. Rubiano, Mariana de Mattos. III. Título. CDD: 100 Catalogação na fonte: Biblioteca IFPI, Campus Picos. Introdução, 9 Composições do Tempo e a Temporalidade de Exceção, 15 Temporalidade de Destruição: Modernidade, capitalismo e temporalidade de destruição, 55 Índice A Tecnologia e o tempo programável, 99 Dedicamos este livro a todas as pessoas que se foram no tempo da pandemia, em especial a Paula Gentili Bitondi e a José Costa da Rocha. Introdução A propósito da escrita de um artigo para a edição comemorativa dos Cadernos Arendt, que celebrava os 70 anos da publicação da obra As Origens do Totalitarismo, iniciamos uma discussão acerca da exceção estabelecida nos campos de concentração da Alemanha nazista. No desenvolvimento desta discussão, notamos que a questão da exceção não possuía apenas o caráter espacial, mas também um caráter temporal. Foi desta maneira que passamos a nos dedicar à investigação sobre temporalidade. Em nosso artigo “Temporalidade de Exceção” (2021), analisamos como o espaço e o funcionamento dos campos de concentração nazistas afetavam os internos em sua relação com o passado, presente e futuro. Como afirma Arendt, os campos consistiram em laboratórios onde as pessoas eram cuidadosamente torturadas até se tornarem marionetes sem personalidade. Ora, para isso, era necessário afetar a subjetividade e o espírito dos internos nos campos, incidindo inclusive em sua percepção temporal. O estudo sobre o papel dos campos de concentração no regime totalitário, nos mostrou que a violência e as técnicas de terror visavam a destruir a psique humana e a impor uma temporalidade petrificada. Nela, o indivíduo não era considerado morto nem por uma morte natural nem por uma morte violenta, uma vez que, era como seu espírito estivesse em latência pois ele não realizava suas atividades espirituais – pensar, julgar, querer, imaginar; seu corpo realizava apenas suas funções vitais básicas, perdendo expressão e capacidade de gestos simbólicos tipicamente humanos. Em síntese, a humanidade e singularidade estavam mortas, mas o corpo não passava pelo processo de decomposição. 9 Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz descrevia este estado como ter visto a Górgona ou a Medusa e, por isso, ser transformado em pedra. Observamos com essa metáfora que a relação entre passado, presente e futuro se torna impossível para quem está nos campos de concentração: o terror e a tortura presente ali não podiam ser explicados ou relacionados com as experiências pretéritas, com a vida normal em uma área rural ou urbana; o futuro seria fenecer e morrer, mas de certa forma os internos já eram considerados inexistentes, pois a petrificação é como se fosse uma morte permanente. Ali, a morte deixa de ser o marco de fim da vida, de saída do mundo, pois o interno era tratado como se nunca tivesse existido, como um ser supérfluo. Nesse sentido, a morte dura enquanto se está vivendo no campo de concentração. Arendt nos alerta que os elementos que permitiram a emergência do totalitarismo e a invenção dos campos de concentração não desapareceram com a derrota do nazismo na II Guerra Mundial. Na verdade, os ecos desses projetos autoritários se mantêm em nossos dias – racismo, o imperialismo, a massificação, e a glorificação da violência. Seguem presentes em nossa democracia outros espaços e tempos de exceção que já não precisam necessariamente de muros, soldados, armas e arames farpados para isolar os internos, mas ainda assim vivenciamos situações limites que se tornam cotidianas, em que regra e exceção se imiscuem. Observamos isso na situação de miséria e dentro das prisões. Uma das formas de tortura e desumanização praticadas nos campos de concentração era a fome entendida como inanição. Em nossos dias, a maioria das pessoas não estão expostas a este tipo de fome extrema, contudo, muitas 10 ainda estão exposta à fome parcial ou oculta, em que apesar comerem todos os dias e de obterem a quantidade de calorias necessárias para manter o corpo vivo, a alimentação é insuficiente em elementos nutritivos. De um jeito ou de outro, a miséria consiste em uma fome que mata o corpo e a mente um pouco por dia e, ainda, confina pessoas a um lugar desertificado no mundo: esvaziado, de poucas coisas e relações, com muita pedra e areia, onde a água e a vida estão sempre por um fio. Quem habita este espaço desertificado fala para o vento: sua experiência, situação e opinião são desprezados. Vale ressaltar que a situação de miséria, não é um momento isolado na vida de um indivíduo, em geral, não é passageira, é uma exceção permanente. Isto é, as pessoas já nascem na pobreza, seu passado foi de carências e fome, seu futuro é de incerteza e dívida: não sabem se poderão garantir a sua sobrevivência amanhã e se poderão pagar pelo que já consumiram hoje. Não possuem segurança alguma nem expectativa de mudar sua situação no futuro. A miséria, portanto, deixa a esperança e a vontade seca, pois reduz a vida humana ao tempo cíclico das necessidades vitais, da repetição da escassez e da falta. A temporalidade de exceção da miséria consiste na desertificação da paisagem, a qual parece ser sempre a mesma: passado, presente e futuro são uma recorrente luta para sobreviver com pouco. Uma das maneiras de se conter uma possível revolta popular contra a situação de pobreza, socialmente imposta às grandes massas, é a prisão. As políticas sociais de nossos dias dividem os pobres em dois grupos: aqueles que seriam bons e merecedores de assistência social e os indolentes e perigosos que devem ter seu comportamento corrigido. O Estado, nesse contexto, deve mesclar assistencialismo e re- 11 pressão que criminaliza e pune. A opinião hegemônica na sociedade neoliberal é de que os crimes famélicos, em que o individuo furta para realizar uma das suas necessidades biológicas – se alimentar; não são explicados pela estrutura social desigual somada à necessidade de sobrevivência, mas por um desvio moral. Assim, parte considerável de governantes e da população, ao invés de defender a existência de políticas públicas que garantam a segurança alimentar de todas e todos, defende a punição exemplar. As análises da população carcerária nos EUA e no Brasil mostram que as prisões são as masmorras em que pobres sem trabalho e sem assistência social são jogados. estar encarcerado significa a perda de mundo: não possuir mais papel e importância na sociedade, pois ergueu-se uma barreira entre ele e quem não está encarcerado. Quem adentra uma prisão sofre uma arrumação ou programação, a qual envolve várias etapas: começa com a produção de sua ficha que reduz sua história de vida a um caminho em direção à criminalidade; passa pelo registro de sua fotografia, digitais e a atribuição de um número; por banho e desinfecção; e terminam com a apresentação de seu novo lugar, a cela. Para o preso, o tempo só pode ser medido a partir das dimensões de sua cela, um tempo de limitação de movimento do corpo e da alma e de isolamento do mundo e da humanidade, uma temporalidade que não corre em direção alguma, não aponta para um futuro, mas se desgasta. Trata-se da temporalidade embotada, sem direção e sem sentido, que acompanha a pessoa mesmo depois que ela sai da prisão em direção ao mundo. O objetivo do encarceramento consiste na mudança de comportamento, um experimento para que o eu seja modificado por meio de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações da sua personali- 12 dade. Em alguns casos esta degradação da personalidade e embotamento são tão agudos que a pessoa não consegue se encaixar mais no mundo. Ainda, ela se depara com inúmeros muros feitos, não com tijolos e cimento, mas com coerção moral, o qual demarca que seu lugar no mundo ainda prologará a exceção. A análise presente em nosso artigo acerca da temporalidade petrificada, desértica e embotada – longe de esgotar o estudo sobre temporalidades de exceção ou de nos fazer perder interesse pelo tema – ensejou a continuidade de nossas leituras e debates. Com isso, observamos que a exceção não emergiu com os campos de concentração, embora lá ela fosse acelerada e extremada. Alguns elementos presentes nos campos, como racismo e tecnologia, já estavam relacionados a outras camadas de exceção e, principalmente, ao surgimento da estrutura social capitalista. Além disso, nos deparamos com a necessidade de aprofundar o debate teórico e de estudar a relação e diferenciação entre tempo e temporalidade, bem como de examinar a relação da exceção com a ordem no que concerne as relações temporais. Levando isso em consideração, este livro é fruto da continuidade de nossas reflexões sobre a temporalidade de exceção. No primeiro capítulo do livro, abordaremos os aspectos da construção do conceito de tempo na tradição do pensamento ocidental para compreender como a demarcação temporal tornou-se uma forma de dominação ao longo da história de nossa estrutura social, por isso nos concentraremos nos aspectos históricos e socioeconômicos. Aqui também trataremos da conexão que fazemos entre tempo e temporalidade bem como de seus significados. Já na segunda parte, abordaremos a relação entre duas temporalidades que surgem com o maquinário social capita- 13 lista-liberal e caminham juntas, a saber, a do progresso e da destruição. Indicamos as características da destruição, a qual abarca tanto recursos naturais, como pessoas (em especial, mulheres e pessoas racializadas) e culturas; a relação entre acumulação, produção e violência; e a interligação do controle sobre a função reprodutiva das mulheres com a necropolítica. Ainda, tratamos da relação entre passado, presente e futuro para quem vive na temporalidade de destruição. Na terceira parte, abordaremos os impactos que os avanços tecnológicos tiveram na manutenção do nosso sistema econômico contribuindo, reforçando e ampliando o fato e a quantidade daqueles que permanecem á margem do nosso mundo. Oferecemos nossa reflexão registrada neste livro às leitoras e aos leitores esperando que ela contribua na compreensão de nossa realidade por meio do diálogo acerca do que estamos fazendo. Também esperamos que possamos pensar em novas possibilidade de tratar de nosso espaço de experiência e que melhores expectativas possam surgir no horizonte. 14 Composições do Tempo e a Temporalidade de Exceção Oração ao tempo (Caetano Veloso) Compositor de destinos Tambor de todos os ritmos Tempo, tempo, tempo, tempo Entro em um acordo contigo Tempo, tempo, tempo, tempo Por seres tão inventivo E pareceres contínuo Tempo, tempo, tempo, tempo És um dos deuses mais lindos Tempo, tempo, tempo, tempo [...] E quando eu tiver saído Para fora do teu círculo Tempo, tempo, tempo, tempo Não serei nem terás sido Tempo, tempo, tempo, tempo Ainda assim acredito Ser possível reunirmo-nos Tempo, tempo, tempo, tempo Num outro nível de vínculo Tempo, tempo, tempo, tempo Primeiras considerações Partindo do diagnóstico das formas temporais de exceção que se estendem para além dos campos de concentração, da vida das pessoas em situação de miséria e das prisões, nossa pesquisa busca refletir e identificar os principais agentes e os modos de produção dessas temporalidades que, ironicamente, apesar de serem conceituadas como exceção, tem se tornado a regra, porém não aparecem como hegemônicas, pois está escondida por uma outra concepção de temporalidade capitalista que quer nos convencer de que estamos em tempos de garantias de liberdade individuais, de aumento da produtividade e de acesso a bens, ou seja, estamos em uma temporalidade de progresso, de avanço. Nesse sentido, a temporalidade de exceção caminha junto e na sombra de uma temporalidade do progresso, ambas produzem a dominação social do tempo que, em poucas palavras, consiste no estabelecimento de uma aparência de uma temporalidade hegemônica para uma sociedade em um determinado período e local. Como bem observa Henri LeFebvre, as temporalidades podem se manifestar de formas diversas e podem ter existências simultâneas. O autor descreve três possibilidades: primeiro, uma polirritmia, quando há uma vivência de múltiplos ritmos por uma mesma pessoa a partir de suas diferentes rotinas e papéis sociais, isto é, múltiplas temporalidades em convivência não-conflitiva; em seguida, uma euritmia, uma forma que se inicia com sincronização e controle dos ritmos diferentes e termina por torná-los indistinguíveis, algo como a canibalização das diversas temporalidades heterônimas, a partir do estabelecimento de uma forma com aparência hegemônica; por último, a arritmia que consiste na existência de múltiplos 17 ritmos de forma conflitante (Lefebvre, 2004, p. 16). Em nossa interpretação o modo de vida capitalista lança a sociedade numa euritima e busca obliterar os ritmos conflitantes que produz. A reflexão proposta neste livro, trata de compreender nossa “civilização” a partir desses fluxos e temporalidades ora em funcionamento, uma vez que a demarcação temporal se tornou uma forma de dominação. Nesse capitulo, nosso escopo consiste em tratar das mudanças sofridas pelo conceito de tempo durante a tradição até chegarmos a nossa visão contemporânea, como este conceito se vincula e se diferencia de temporalidade e quais as consequências para a nossa estrutura social e nosso modo de vida. Dessa forma, consideraremos as visões mais pertinentes sobre o tempo: abordaremos o conceito de tempo relacionado a nossa estrutura social, um tempo histórico e socioeconômico, ao invés de tratar de seu aspecto físico relacionado à mecânica quântica e à cosmologia, ou mesmo ao seu aspecto metafísico. Na tradição histórica do conhecimento humano, o tempo é um dos conceitos mais desafiadores para o ser humano, alvo de nossa curiosidade e temor. Na Grécia Antiga, antes mesmo do surgimento da filosofia, os poetas já tratavam da concepção de tempo. A poesia de Hesíodo a qual representa a concepção arcaica sobre o tempo, foi datada como arcaica tanto no sentido historiográfico – por ser um período anterior ao pensamento racional – quanto no sentido etimológico, uma vez que se referia à concepção de arkhé como um princípio inaugural da experiência de formação do cosmos. A partir dessa concepção arcaica, podemos perceber que a construção poética do tempo, transmitida pela oralidade, possuía um aspecto metafísico/cosmológico como podemos observar no trecho “História do Céu e 18 de Crono” em Teogonia que trata de Crono como um deus primordial, filho de Gaia (Terra) e Urano (Céu) que se volta contra seu pai a pedido de sua mãe: Quantos da Terra e do Céu nasceram, filhos os mais temíveis, detestava-os o pai dês o começo: tão logo cada um deles nascia a todos ocultava, à luz não os permitindo, na cova da Terra. Alegrava-se na maligna obra o Céu. [...] 155 Assim falou e a todos reteve o terror, ninguém vozeou. Ousado o grande Crono de curvo pensar devolveu logo as palavras à mãe cuidadosa: “Mãe, isto eu prometo e cumprirei 170 a obra, porque nefando não me importa o nosso pai, pois ele tramou antes obras indignas”. [...] (Hesíodo, 1995, p. 92-93) A concepção de tempo arcaico, além de ter esta explicação poética, também esteve ligada aos questionamentos dos primeiros pensadores considerados filósofos da natureza ou da physis. Eles buscaram compreender de maneira racional tudo o que os rodeava – a natureza -, ao invés de se contentarem com uma explicação mitológica da poesia. O que lhes trazia incômodo não era apenas o aspecto físico da criação do mundo, mas que a origem e a ordem do kosmos (mundo natural e ordenado) suscitava questões ontológicas: Por que as coisas existem? O que é o mundo? O que é o Ser? Qual a maneira de pensá-lo? Os pensamentos dos primeiros filósofos gregos, por buscarem explicações racionais sobre a natureza, adotavam uma ideia de tempo cíclico. 19 Os filósofos do período antropológico mesmo tendo se voltado para questões ligadas às atividades humanas, como a ética, a política e as técnicas, seguiram com esta concepção cíclica de tempo. O mundo humano estava integrado ao mundo da natureza, por isso os eventos históricos e políticos foram vistos de maneira circular. Como podemos verificar ao observar as mudanças políticas da Antiguidade – caracterizados pelos termos Πολιτείων (anaciclose) de Políbio, μεταβολαί dee Platão, στάσις e mutatio rerum da história romana – indicavam uma concepção de mudança cíclica de governos, em que a degeneração e a derrubada de uma forma de governo levavam a substituição por outra, já conhecida anteriormente. Além dos filósofos, os historiadores gregos antigos também adotaram a concepção de tempo cíclica. Na perspectiva tucidideana, a história da Guerra do Peloponeso consistia no estudo do presente, na pesquisa dos fatos e no estabelecimento da relação entre eles, de modo a chegar à interpretação do que foi a guerra e o que ela significou para os homens que a viveram. Em algum momento do futuro, outras guerras surgiriam e o conhecimento sobre a guerra no Peloponeso poderia ajudar gerações futuras a compreender seu presente e saber como agir. O conceito de história de Tucídides estava fundamentado na ideia de que os seres humanos, por possuírem uma mesma natureza, recaiam em situações semelhantes. Cícero, político e filósofo romano, por afirmar que a história é a maestra da vida levou adiante a concepção cíclica de história. É importante destacar que embora na Antiguidade temos uma uniformidade com relação ao tempo – tanto a natureza, quanto a história política eram entendidas como cíclicas – isso não significa que todos e todas as pessoas na 20 Grécia e em Roma viviam numa mesma temporalidade. Os filósofos, poetas e cidadãos ilustres tinham tempo livre para tratar dos assuntos humanos e poderiam escapar da mortalidade uma vez que suas obras, feitos e nomes poderiam ser lembrados depois de suas mortes. Já as mulheres, trabalhadores braçais e os escravizados estavam presos aos afazeres ligados à manutenção do metabolismo do corpo e da vida biológica. Nesse sentido, enquanto filósofos, historiadores e cidadãos estavam ligados a uma temporalidade cíclica propriamente humana e relacionada à vida política e teorética (bios politikon e vita contemplativa); mulheres, trabalhadores braçais e escravizados estavam aprisionados na temporalidade cíclica da zoé, na mesma repetição de atividades que os animais também estão sujeitos para garantir a sobrevivência. Aqui já podemos ver uma primeira relação e diferenciação entre tempo e temporalidade: a concepção de marcação de tempo está ligada à teoria e ao conhecimento, em como se divide em eras e se relaciona a acontecimentos e fatos, já a temporalidade é como a concepção de tempo afeta o modo de vida e as experiências mundanas e interiores de cada um e dos grupos sociais. O tempo em questão e a questão do tempo Alguns filósofos e historiadores contemporâneos, como Arendt, retomam e analisam a concepção de tempo da Antiguidade para compreender as diferenças de concepções temporais na história ocidental e para discutirem sobre a concepção de tempo no presente. Em “O conceito de história – antiga e moderna” de Entre o Passado e o Futuro (1965), a autora consegue nos mostrar a relação entre a passagem desse tempo cíclico para o tempo linear a partir da formação do conceito de história moderna. Para ela, o tem21 po como concebiam os antigos se relacionava com a concepção de imortalidade tanto da natureza quanto dos deuses: ambos existem por si mesmos e, além disso, a natureza se renovava com o ciclo de nascimento, desenvolvimento e morte de cada ser, enquanto os deuses não morriam. Nessa perspectiva, o gênero humano também pertencia à imortalidade da natureza enquanto espécie, mas não enquanto pessoas. Por esta razão, os seres humanos temem o tempo, ele devora sua existência enquanto ser singular, só o preserva enquanto pertencente à uma espécie da natureza. O desconforto está em que o tempo do ciclo repetitivo da vida biológica não imortalizava os homens enquanto indivíduos, apagando seus feitos e falas, como podemos observar na prece do herói Aquiles a sua mãe por honra apesar da sua breve existência (Homero, 2013) Para Arendt, a partir da constatação desse apagamento, a imortalidade torna-se uma preocupação grega e os gregos procuram meios para que a fama pela sabedoria, grandes feitos e discursos pudessem ser preservados pela narrativa histórica. De acordo com Arendt (2005, p. 73-74), esse processo de formação da historiografia grega inicia-se com Heródoto, que estabeleceu a tarefa do historiador como aquele que resguarda as belas ações e palavras humanas do esquecimento. Dessa forma, conscientemente, ele procura escapar ao tempo cíclico, em busca de uma forma de imortalizar grandes feitos humanos e que ações e ideias de algumas pessoas pudessem ser lembradas mesmo depois de sua morte. Isso porque os grandes feitos e discursos não poderiam sobreviver sem o auxílio da recordação, que ao contrário das coisas fabricadas pelas mãos humanos – são bens duráveis – e das coisas da natureza – as quais perduram graças ao ciclo de reprodução- não são apagadas pelo tempo. 22 Na visão dos antigos, a narrativa histórica além de conferir certa imortalidade a nomes, grandes feitos e discursos, também resguardava do esquecimento ações e acontecimentos relevantes que poderiam servir como exemplo e ensinamento para as próximas gerações. Se o tempo humano também é cíclico, situações semelhantes tornam a ocorrer no futuro, e, por meio desta semelhança, duas épocas entram em contato de forma que os eventos do passado podem iluminar os eventos futuros. Ainda, a narrativa histórica indica quais formas de agir foram consagradas pelo tempo e que devem ser imitadas na vida pública. Contudo, segundo Arendt, o modo antigo de conceber o tempo e a história foi abandonado. A autora afirma que a historiografia moderna possui uma outra concepção de tempo que surgiu por influência da mudança na forma de produzir conhecimento a partir do século XVII. Para a autora, a preocupação da investigação científica passou a ser centrada no conceito de processo: “pensamos e consideramos tudo em termos de processos, não nos interessamos por entidades singulares ou ocorrências individuais e suas causas distintas e específicas” (Arendt, 2005, p. 93). Para a moderna maneira de pensar, nada é significativo em si ou por si mesmo, a noção de processo engolfa todas as coisas tangíveis e individuais. Por conseguinte, o processo adquiriu o monopólio da significação. No caso da história, o processo consiste na sequência temporal que confere a significação e o contexto. Na época moderna a História emergiu como algo que jamais fora antes. Ela não mais compôs-se dos feitos e sofrimentos dos homens, e não contou mais a estória dos eventos que afetaram a vida dos homens; tornou-se um processo feito pelo homem, o 23 único processo global cuja existência se deveu exclusivamente à raça humana (Arendt, 2005, p. 89). A autora mostra que a historiografia grega antiga tratava da narrativa das ações humanas pontuais e não inseridas em um processo histórico e explicada por relações causais, isso porque os rumos da história eram provenientes da deliberação e da iniciativa de seus agentes, ao invés de uma possibilidade única e necessária.1 Essa concepção de ação humana como resultado de uma deliberação coletiva que não está determinada por causas que determinam o que será feito nem qual será o resultado é apropriada por nossa filósofa quando trata de uma das atividades da vita activa que formam a condição humana – a política. Arendt contrasta a historiografia antiga e moderna, porém não mostra como a historiografia e a concepção de tempo sofreram alterações entre um período e outro. Newton Bignotto (1992) faz essa análise no artigo “O círculo e a linha”, onde o autor também reforça esta concepção circular de tempo da Antiguidade em que a narrativa dos acontecimentos presentes poderia servir para compreender a na1 Apesar de Arendt e outros pensadores relacionarem Heródoto e Tucídides, os dois não tratavam a história da mesma forma. Tucídides foi o primeiro a rechaçar a maneira de investigação histórica de Heródoto: em primeiro lugar, por este explorar fatos abrangentes e não se restringir ao exame da vida política; em segundo lugar, pelo fato de Heródoto não deixar claro quais histórias e testemunhos ele considerava como verdadeiros. Nesse sentido, Tucídides acusou Heródoto de ser leviano por não se responsabilizar por tudo o que registrou. De acordo com Momigliano, no século XIX, os escritos de Tucídides e Heródoto voltaram a ser estudados. É curioso que naquele contexto eles não foram considerados historiadores com métodos distintos: admirava-se Tucídides pelas qualidades que se havia encontrado em Heródoto. Assim, os dois historiadores gregos foram entendidos na contemporaneidade como modelos complementares: a história da civilização complementava a história política e vice e versa. Ver em As raízes clássicas da historiografia moderna, p. 83. 24 tureza humana e acontecimentos semelhantes no futuro. Na Antiguidade, a Fortuna (deusa da sorte e do destino) simbolizava a instabilidade e a circularidade das coisas humanas, representava uma natureza ou leis que afetavam a vida dos seres humanos. A roda da Fortuna mostrava que a vida é feita de mudanças que mexem com a vida humana, mas não a definem completamente. Existe um espaço aberto para que os seres humanos possam vencer o destino. Nesta perspectiva, aquele que conhecia as histórias do passado sabia lidar melhor com a mudança dos tempos, podia entender sua dinâmica circular e se portar de modo acertado nas épocas de mudanças, de altos e baixos que a roda da Fortuna tem. Uma vez que esta roda trazia mudanças, mas não novidades, era possível usar o passado como referência e os grandes homens como modelo. Esta concepção circular de tempo sofreu uma modificação com o surgimento e consolidação do cristianismo. De acordo com Bignotto (1992), a Bíblia narra uma história linear da criação e da presença humana no mundo como uma sucessão contínua de acontecimentos. A Criação dá origem ao mundo e ao homem. A queda e o pecado original introduzem os homens no tempo (que será marcado pela busca da salvação da alma). A vinda de Cristo a terra traz uma novidade e indica o caminho para salvação. Ao fim, virá o Juízo final, o qual representa o fim da história e a chegada da eternidade – de certo modo a saída do tempo, o responsável por mudar as coisas. No contexto cristão, temos, de um lado, a história sagrada, que revela a presença de Deus e sua providência, que se pode conhecer por meio das escrituras sagradas; e, de outro lado, temos a história secular, das instituições humanas. Agostinho de Hipona (1996, 2000) introduz com sua filosofia esse dualismo dos tempos – um linear 25 e outro circular, um ligado à eternidade de Deus e da alma humana, outro à finitude do corpo e do mundo humano – e duas histórias: uma sagrada e outra secular. Tal dualidade de tempo e da história que surgiu na Antiguidade tardia, será adotada durante a Idade Média. Ainda, com o domínio da Igreja e da filosofia cristã, a história sagrada será mais importante, uma vez que ela está relacionada com os desígnios divinos e com a imortalidade da alma. A partir do século XII, essa desqualificação do tempo humano, da história das instituições e das ações humanas começou a ser atacada. Poucos séculos depois, no renascimento, ocorreu uma valorização dos feitos humanos e um resgate da importância da história secular e do tempo cíclico. As cidades italianas, como Florença e Veneza se colocaram contra a influência da Igreja e contra as monarquias e impérios. Nesse contexto, os pensadores renascentistas retomaram as ideias antigas parar tratar das leis e das formas republicanas e junto com o pensamento político retomaram também a concepção de tempo. Podemos observar isto no pensamento de Maquiavel. Este autor retoma a concepção de história expressa por Cícero com o topos Historia magistra vitae, da história como mestra da vida. Ele se dedicou ao estudo dos relatos históricos com o escopo de servir de inspiração para as pessoas de seu tempo, uma vez que os regimes políticos do passado poderiam orientar a estratégia de ação dos governos de sua época. Dessa forma, embora a maior parte dos humanistas tivessem receio da experiência republicana romana, agarrando-se aos exemplos de Esparta e Veneza, Maquiavel (2007, I, 6) recomenda tomar a República Romana como exemplo histórico a ser seguido, uma vez que suas virtudes políticas foram provenientes da virtù de seus cidadãos, não 26 da fortuna ou do acaso. Para Maquiavel, Esparta garantiu a solidez de suas instituições por um longo tempo por sorte: seu isolamento político e a população homogênea eram obras de sua posição geográfica isolada. Embora os pensadores do renascimento tenham resgatado a concepção de tempo cíclica antiga, eles não romperam completamente com o pensamento cristão e não descartaram o tempo linear da história sagrada, eles aproximaram os valores e concepções temporais antigos e medievais mesmo que estes tenham surgido em oposição a aqueles. Bignotto mostra que, desse modo, os renascentistas acabaram por criar fissuras tanto nas teorias do tempo e da história medieval, quanto nas teorias greco-romanas. Em outras palavras, os filósofos do renascimento não produziram uma nova historiografia e uma nova concepção de tempo, mas ao confrontar o pensamento antigo com o medieval criaram a abertura necessária para que, nos séculos seguintes, fosse elaborada uma nova concepção de tempo e história para a idade moderna. Conforme mencionado acima, Arendt aponta que no século XVII se iniciou uma mudança nos métodos de investigação das ciências naturais que passou a valorizar os processos. Tal mudança acabou por impactar também a história de modo que a historiografia moderna, ao invés de narrar acontecimentos de modo a trazer uma diversidade de estórias de fatos e feitos significantes por si mesmos, passou a encadear uma narrativa na outra para encaixar os acontecimentos nessa concepção de processo. Assim, a história passou a ser uma grande narrativa linear de um processo feito pela humanidade. Na perspectiva moderna, o significado dos acontecimentos só pode ser entendido enquanto parte de um processo. 27 No século XVIII, com o projeto iluminista, o processo histórico foi compreendido como progresso em todas áreas: na ciência, no conhecimento, na política, na moral (valores e costumes) e na economia. Nelas, havia uma concepção que na passagem temporal da antiguidade para aquele momento ocorreu um melhoramento de todas estas áreas em razão do acúmulo de conhecimento e de experiências pela humanidade que continuaria avançando no futuro. Neste contexto, a concepção de tempo linear e progressista criava uma temporalidade que levava as pessoas e grupos sociais a pensar que sua história individual e coletiva teria que ser construída por acúmulos e avanços. O ontem foi pior do que hoje e o amanhã deveria ser melhor, isto é, o ritmo do progresso deveria ser constante. A partir dessa percepção e projeto de progresso linear dos conhecimentos, podemos perceber a formação da concepção de tempo que encadeia passado, presente e futuro, que direciona a ação da humanidade que deve sempre segui-lo, distinto do que havia antes, um modelo de ação. Não havia ainda ideia de aceleração do tempo, de ruptura e inauguração do novo. Tais ideias só apareceram com a Revolução Francesa. Em 1789, a concepção de tempo circular na esfera política foi suplantada totalmente quando um acontecimento sem precedentes históricos até o século XVIII ocorreu, uma vez que os agentes não puderam encontrar situação semelhante no passado para guiar os atores-espectadores das revoluções. O conceito moderno de revolução passou a ser associado a um novo conceito de história em que o tempo não era mais circular, já que a mudança na estrutura política não foi por meio da substituição entre regimes políticos, mas da implementação de uma nova estrutura constitucional, e consequentemente um novo modo 28 de se fazer política. Nesse contexto, a história deixou de ser entendida como um estoque de experiências exemplares, não havia modelos de ação para os revolucionários. De acordo com Koselleck (2014, p.29, 2006, p.69), esta evidente mudança no conceito de história pode ser observada na língua alemã com a substituição do termo Historie – que significava relato, narrativa histórica – para o termo Geschichte – o qual consiste em um coletivo singular, reúne as diversas histórias em uma única – que consistiria na História em si. Por volta de 1780, o conceito Geschichte absorve o conceito Histoire, assim a linguagem quotidiana passa a utilizar apenas um termo tanto para a experiência da realidade quando para a história enquanto conhecimento científico, como ocorreu também em língua portuguesa-brasileira, o termo “estória” que trata de relatos narrativos foi absorvido pelo termo “história”, ciência que trata do relato histórico coletivo. A história entendida como Geschichte deve trazer à luz motivos ocultos, extrair dos acontecimentos uma ordem causal. Nesse sentido, a história deixa de ensinar a prudência e virtude passadas que poderiam guiar as ações no presente para se tornar uma ciência que indica as causas e efeitos dos fenômenos e a tendência do processo histórico. Nessa perspectiva, o futuro é planejável, ou seja, é possível que se produza o futuro ao se conhecer o espírito da época, o Zeitgeist, e a dinâmica de causa e efeito. Vale destacar que, de acordo com Koselleck, os conceitos de filosofia da história e de Geschichte surgiram nas mesmas décadas, de modo complementares. Assim como Koselleck, Arendt também reconhece a mudança do olhar para o passado e a complementariedade entre a filosofia da história e o conceito moderno de história. De acordo com ela, ambos acabam 29 por negligenciar as particularidades dos eventos e explicá-los em uma perspectiva de progresso, especificamente, um progresso histórico. Na contemporaneidade, essa concepção de progresso e de uma tendência histórica passou a ser questionada. Para Arendt (2005), essa concepção de história progressista lança ao esquecimento todas as ações que apontariam para possibilidades que não se concretizaram. Ela conta a história da sociedade como se a vitória da ordem social vigente fosse inevitável, como se a história fosse a juíza do mundo, pois o que existe no presente seria a melhor possibilidade, a que venceu. Ora, no momento em que surgiram os regimes totalitários, como seria possível afirmar que tais regimes eram necessários e melhores? Que guerras mundiais e totalitarismo são um progresso? A partir dessas considerações, percebe-se que o projeto iluminista estava fadado ao fracasso. Não queremos aqui aprofundar esta visão sobre a historiografia e seus métodos. O que queremos ressaltar é que a concepção de tempo e história mudam, essas mudanças vêm de acontecimentos políticos. Como vimos, as mudanças das formas de governo na Grécia e em Roma, o surgimento do cristianismo, a consolidação do cristianismo e da Igreja, o aparecimento das cidades-estados italianas que enfrentaram o poder da Igreja e do Império, as revoluções políticas e, posteriormente as guerras mundiais e o totalitarismo engendraram uma mudança na concepção de história e de tempo. Nosso objetivo será de pensar como tais mudanças produziram e produzem uma temporalidade, isto é, uma experiência subjetiva e social com o tempo e com a história, uma relação com as narrativas históricas que incidem na mente de cada um, nos afetos e nas relações sociais e de poder. 30 Movimentos, Temporalidade e Contemporaneidade. A partir desses elementos históricos, observamos que há uma mudança nos conceitos de tempo e história em virtude dos acontecimentos políticos, que nos direcionam não mais a uma concepção apenas circular ou linear. Koselleck (2014, p. 25) aponta uma complexa teoria dos tempos históricos, na qual não há uma sucessão linear de acontecimentos históricos, mas estratos de tempo que não recaem na escolha ilusória entre tempo linear ou circular como posto ao longo da tradição filosófica. De acordo com essa estratografia, existem variadas concepções ou, nos termos do autor, estratos de tempo em um mesmo período e local. É dessa forma que observamos concepções de tempo distintas na Idade Média em que havia os tempos – sagrado e secular. Koselleck (2014, p. 14) fala em estratos ao explicar que em cada acontecimento político, por mais singular que seja, sempre há algo do passado, repetido, relembrado, mas também algum grau de alteração e novidade, depositando assim sobre o antigo uma nova camada de sedimentação, o que cria estratos de tempo. Relevos e paisagens diversas vão se formando com estas sedimentações. Devemos ratificar a distinção entre tempo, que consiste na demarcação de períodos (passado, presente, futuro, antigo, moderno, novo, velho, dias, semanas, meses, anos, eras) que determinam os diferentes ritmos nos quais nos movimentamos. O tempo é compositor de destinos e tambor de todos os ritmos, como metaforizou Caetano Veloso na epigrafe deste capítulo. Já a temporalidade vincula-se à experiência com o tempo, como se dá a significação ao tempo, às eras, e como as atividades, os corpos, as mentes, afetos e as subjetividades são impactadas por essa divisão e 31 sua significação. Não se trata apenas do encadeamento entre passado, presente e futuro, mas como ele afeta o espírito, as percepções, pensamentos, juízos, projetos, afazeres, limita ou permite certos movimentos corpóreos e mentais. Koselleck (2006, p. 306) formula duas categorias que podem nos ajudar a compreender a temporalidade, pois tais categorias indicam a relação entre passado e futuro, são elas: “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”. Para o autor, tais categorias fundamentam as condições possíveis da história. Dito de outra forma, todos os momentos históricos seriam constituídos por experiências vividas e expectativas daqueles que agiram ou sofreram. De acordo com ele, quase todas as categorias formais surgiram do mundo da vida, manifestamente as categorias “experiência” e “expectativa” têm um grau de generalidade maior, assim como as categorias de “espaço” e “tempo”. Elas consistem em pares de conceitos que estão intimamente relacionados: não se pode formar uma expectativa sem experiência e não há experiência destituída de expectativa. Estas duas categorias entrelaçam o passado e o futuro. Experiência consiste nos acontecimentos que são lembrados num presente, ou seja, é o passado formulado em um momento específico. A história, nesse sentido, é composta por experiências alheias (Koselleck, 2006, p. 309). Já a expectativa consiste em um futuro como ‘ainda não’, é ao mesmo tempo algo pessoal e interpessoal. A experiência, uma vez vivida, está completa; de forma diferente, a expectativa se decompõe em uma infinidade de momentos temporais. A experiência é, para nós, um repertório de movimentos enquanto a expectativa são as possibilidades desses movimentos para serem vivenciadas. Quanto mais limitada a experiência, mais limitada será a projeção para futuro e 32 os movimentos no presente. No entanto, as experiências e as expectativas não estão diretamente relacionadas, como podemos perceber quando nos deparamos com a situação em que o indivíduo, possuindo um espaço de experiência limitado, sem um horizonte de expectativa amplo, modifica sua compreensão de presente por meio da experiência de outras agentes ou de instituições que vivam em outras temporalidades, portanto detenham outros repertórios, estabelecendo uma troca e fazendo com que a expectativa limitada desse individuo se amplie. Segundo o autor, as presenças do passado e do futuro são distintas, razão pela qual se articulou a palavra “espaço” com experiência e “horizonte” com expectativa. Espaço, na expressão “espaço de experiência”, significa extratos de tempos anteriores reunidos em um só lugar. Horizonte, no termo “horizonte de expectativa”, alude a uma linha ou plano no qual se abre o futuro que pode ser contemplado, mas não delimitado (Koselleck, 2006, p. 311). As expectativas não podem ser deduzidas completamente da experiência, embora elas sejam baseadas nela, em outras palavras, o futuro nunca é o resultado puro e simples do passado. A experiência libera e orienta prognósticos, e os prognósticos, por sua vez, abrem expectativas não contidas na experiência. Com a nossa discussão sobre temporalidade visaremos a refletir como a relação entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa na modernidade interferiu em formas de pensar, querer, julgar, sentir e nas formas de ação humanas, a partir das temporalidades produzidas pelo capitalismo e o desenvolvimento da tecnologia. Koselleck mostra que a coordenação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa se modificou ao longo da história. De acordo com o autor, na Modernidade, as 33 expectativas se distanciaram progressivamente da experiência. No início da Modernidade, quando a maioria ainda vivia no campo, a história era ligada aos ciclos naturais, as mudanças eram lentas e por isso não provocavam uma ruptura entre a experiência adquirida e a expectativa que fora transmitida pela geração precedente. Isso se modificou com a emergência do conceito de progresso – o qual surgiu no século XVIII, quando novos fatos e eventos dos três séculos anteriores foram reunidos em um novo espaço de experiência (Koselleck, 2006 p. 316-319). O conceito de progresso determina que as coisas humanas, ao contrário dos ciclos naturais, se desenvolvem com o tempo. Dessa forma, a história adquiriu um caráter processual. O futuro como portador do progresso repercute na forma de ver o passado: se o presente e o futuro não são mais vistos como semelhantes ao passado, a história deixa de ser entendida como um estoque de exemplos. Nesse contexto, a experiência se distanciou da expectativa. Para ilustrar este afastamento, Koselleck (2006, p. 324) menciona a ideia de “federação dos povos” de Kant, conceito de pura expectativa que não correspondia a experiência alguma. A ação no presente se tornou o instrumento que poderia superar o distanciamento entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa. Em outras palavras, com a noção de progresso, o futuro deixou de ser previsível, mas passou a ser planejável por prognósticos e teorias programáticas. Segundo o autor, expressões como “liberalismo”, “comunismo” e “fascismo” engendram conceitos de movimento, os quais procuram influenciar a ação para acelerar o progresso e atingir o futuro desejado (Koselleck, 2006, p. 326). Observamos que Koselleck marca uma especificidade da temporalidade na modernidade. A emergência do capitalismo impactou nesse tempo e tempo- 34 ralidade modernos e para compreendê-la vamos levar em consideração a teoria do filósofo húngaro István Mèszáros. É possível notar que além de uma história e tempo da humanidade, existe também uma história e tempo pessoal. Devemos destacar também que o corpo social do qual o indivíduo pertence e contribui para o desenvolvimento histórico da humanidade durante seu tempo de vida, já que o tempo da humanidade é distinto do tempo dos indivíduos particulares. Essa ideia de distinção entre tempo da humanidade e tempo dos indivíduos particulares é articulada por István Mèszáros em “O desafio e o fardo do tempo histórico” ao afirmar que O tempo histórico da humanidade transcende o tempo dos indivíduos [...] A humanidade não age por si mesma, mas por meio da intervenção dos indivíduos particulares no processo histórico, inseparável dos grupos sociais aos quais os indivíduos pertencem como sujeitos sociais (Mèszáros, 2007, p.35). Para István Mèszáros o tempo histórico humano – não cosmológico nem metafísico – é proveniente da necessidade humana histórica sem determinações naturalistas – entre tempo do indivíduo e tempo da humanidade-, ambos provenientes de uma ordem natural, vinculados a formação da estrutura social na tradição e a uma concepção linear. De acordo com Mèszáros, o tempo de vida dos indivíduos potencialmente significativo é inserido em um projeto humano historicamente articulado, ou seja, o desenvolvimento produtivo da humanidade, “que pouco a pouco liberta os indivíduos dos constrangimentos brutos de sua remota existência, restrita à mera sobrevivência, e institui para eles o poder de fazer escolhas genuínas” (Mèszáros, 2007, p. 34). 35 Nessa relação entre indivíduos e a humanidade, de acordo com Mèszáros, podemos perceber a formação e a atualização de valores além daqueles dos indivíduos particulares. Isso porque há o tempo de sobrevivência do indivíduo particular no passado remoto, também há o tempo livre disponível aos indivíduos que contribuirá para o desenvolvimento produtivo da humanidade. No entanto, nos cabe ressaltar que essa posição do filósofo não pode ser generalizada como se todos possuíssem um tempo disponível individualmente para contribuir com um projeto de humanidade, na verdade isso é realidade para os trabalhadores formais, já os informais permanecem submetidos a trabalhos análogos à escravidão e a maioria das mulheres com dupla e por vezes tripla jornada contribuem para desenvolvimento produtivo dessa humanidade, porém encontram-se excluídos dela, não usufruindo do que produzem e são submetidas a um modo de vida que confere pouca possibilidade de modificar sua história pessoal e os rumos da humanidade. Tal situação é retratada por Zé Ramalho em sua música “Cidadão”: Tá vendo aquele edifício, moço? Ajudei a levantar Foi um tempo de aflição Era quatro condução Duas pra ir, duas pra voltar Hoje depois dele pronto Olho pra cima e fico tonto Mas me vem um cidadão E me diz, desconfiado Tu tá aí admirado Ou tá querendo roubar? 36 Dessa relação entre o tempo dos indivíduos e o tempo da humanidade podemos observar a fundação do valor e do contravalor. A humanidade possui potencialidades desenvolvidas pelas atividades dos indivíduos (separáveis dos grupos sociais a que pertencem), no entanto temporalmente há uma distinção entre a atividade dos indivíduos e da humanidade que formam um processo de progressão histórica na escala temporal, por isso o conflito de valores – afirmação ou contestação – é vital para o autodesenvolvimento da humanidade. O tempo histórico da humanidade não é o mesmo do tempo dos indivíduos, vai além. Essa classificação entre o tempo histórico do indivíduo e da humanidade suscita questões, diversas daquelas da Antiguidade, uma vez que esse tempo vinculado a estrutura social nos impõe questões filosóficas sobre um tempo ressignificado pelas relações econômicas. Assim, para compreendermos nossa relação contemporânea com o tempo, não podemos nos privar de compreender a questão econômica que permeia nossas relações sociais. Podemos observar que nossa concepção ordinária de tempo está submetida ao tempo do capital e ao nosso modo de produção. A concepção linear de tempo vinculou-se a formação da estrutura social na tradição. No entanto, Mèszáros (2007, p. 34), ao tratar do tempo histórico, sintetiza essa distinção entre tempo do indivíduo e tempo da humanidade, considerado por ele um fardo, a um único tempo submetido à tirania, trata-se do tempo do capital conforme nosso modo de produção. Retomando a linha de argumentação de Mèszáros, concluímos que o tempo do capital subjuga os demais tempos, ditando o ritmo do processo histórico – individual e da humanidade. Não obstante, devemos nos atentar que esse tempo carrega contradições em sua estrutura ao ser distri- 37 buído de maneira desigual entre as diferentes classes sociais. Para compreendermos a relação entre o tempo do indivíduo e da humanidade na atualidade, devemos compreender o tempo do capital. Essa relação entre humanidade e natureza torna-se um círculo vicioso eternizado, que não pode fugir a perspectiva do capital graças ao sistema socio econômico que estamos inseridos. Isso porque, tal qual nos elucida Mèszáros, o capital é historicamente reproduzido de maneira socio metabólica: um processo construído a partir da relação entre natureza e sociedade uma vez que para que a relação entre capital e homens se mantenha, faz-se necessário que o capital continue sua autoexpansão que se dá pela exploração da natureza e do tempo de trabalho degradado. “O capital, portanto, deve tornar-se cego com relação a todas asdimensõesdotempodiversasrelativaaotrabalhoexcedente explorado ao máximo e o correspondente tempo de trabalho” (Mèszáros, 2007, p. 33). Quando lidamos com as características do capital, observamos que as relações humanas historicamente criadas tornam-se significativas ao se tornarem intrínsecas a ele, isto é, inserindo a acumulação na ordem social, seja relações pessoais dos indivíduos entre si com vínculos monetários ou enquanto grupo social direcionado pelo imperativo da lucrabilidade obtida pela exploração de classe e a dominação estrutural. Todas as relações não inseridas nessa estrutura do capital são destituídas de significado. De acordo com Mèszáros, a relação entre indivíduos e humanidade aparece de forma tardia na história, principalmente porque não havia uma noção de indivíduo como compreendemos atualmente, a relação entre indivíduo e comunidade era apenas um borrão, de uma maneira geral a distinção que tratamos aqui a partir de Arendt e Mèszá- 38 ros aparece na forma literária e filosófica apenas no século XX como uma consciência cotidiana e em um formato não religioso. No entanto essa consciência não se relaciona a situação contingente da humanidade, mas ao seu destino gravemente ameaçado, por colocar em risco a sobrevivência da humanidade em virtude dos desenvolvimentos sociais e económico que trazem uma imposição de contra valor e no qual o papel da moralidade assume um papel de luta contra esses riscos inerentes a crise estrutural do capital, embora haja aqueles que o ignorem ou neguem (Mèszáros, 2007, p. 33) Nessa estrutura das relações sociometabólicas do capital, Mèszáros traça uma distinção entre mediações inevitáveis de primeira ordem, definidas como as relações entre a natureza e a humanidade, e as especificas de segunda ordem como as relações entre as classes, de dominação e subordinação, ambas inseparáveis entre si. Mèszáros afirma que os desenvolvimentos sociais atuais passam por deturpações ao tratar as mediações de segunda ordem do capital como se fossem de primeira ordem, insubstituíveis na interação sociometabólica, ou seja, nas premissas práticas vitais da ordem social. Em outras palavras, ao invés das relações de dominação social e de mercado serem tratadas como laterais, se tornam mais importantes do que as relações entre seres humanos e natureza que tratam de elementos vitais para a sobrevivência. De acordo com Mèszáros (2007) na história do pensamento econômico, houve uma reforma do sistema do capital para evitar essas deturpações que segundo ele estavam fadadas ao fracasso, e eram explicadas a partir da circularidade entre as premissas práticas preconcebidas e as operações da ordem sociometabólica do capital, tratava-se de imperativos reprodutivos nas premissas práticas. 39 Essa contradição, inicia-se logo quando o capitalismo surge, a partir uma mudança entre as mediações de primeira ordem e de segunda ordem já que “todas as demandas mediadorasprimáriasdevemsermodificadasdemodoadequar-se às necessidades auto-expansivas de um sistema de controle reprodutivo social fetichista e alienante, que subordina absolutamentetudoaoimperativodaacumulaçãodecapital (Mèszáros, 2007, p. 41). Nesse modo econômico do sistema capitalista, para que essas necessidades desse sistema sejam expandias, realiza-se uma tentativa de redução tanto custos de produção materiais quanto de custos do trabalho vivo associado a uma contabilidade do tempo do capital inserido em uma luta contra a escassez. Por esse motivo, esse sistema é auto contraditório, uma vez que aniquila conquistas em um plano por meio dos absurdos apetites artificiais de expansão criados pelo próprio sistema e por outro pela crescente escassez, consequência de seu mecanismo. Nessa estrutura do capital, observamos a relação desse sistema econômico não apenas com o valor da sua produção mas, também, com um valor de uso, existente a partir da harmonia entre os imperativos apriorísticos do valor de troca e sua auto-expansão que nos leva a uma situação irônica, pois ao analisarmos a filosofia marxista do capital que se considera uma filosofia utilitária a partir de um conceito de utilidade não lucrativo, suprimido e substituído pela mercantilização universal dos objetos das relações humanas, observamos que tal estrutura distingue-se daquela em que os meios de produção expropriados juntamente com a distribuição desigual dos meios de subsistência formam o conflito de classe. A distribuição na sociedade capitalista é a distribuição dos seres humanos em classes sociais antagônicas que integram uma hierar- 40 quização social em que há uma dominação da produção ordenada de forma hierárquica. Também podemos verificar tal ideia de distribuição das riquezas nas obras do filósofo alemão Hegel quando afirma que os meios de produção são os meios de subsistência assim como o trabalho em geral é o trabalho socialmente dividido, criando o “capital permanente universal” (Mèszáros, 2006, p. 42). Podemos observar como e quem são os agentes dessa distribuição em A Filosofia do Direito, quando Hegel divide a eticidade em três momentos: 1. a família é a parte da estrutura em que desempenhamos as primeiras relações de membro com atribuições de subsistência, cada um cumprindo um papel, da primeira forma social humana; no entanto a família não se subsiste por si só e com o tempo a família se esfacela, uma vez que naturalmente com o passar do tempo cronológico, os filhos precisam sair da esfera familiar para trabalhar, adentram a 2. sociedade civil formada por um sistema de carecimentos, em que as pessoas sentem necessidades, atendidas pelas relações de compra e venda da força de trabalho, preservação da riqueza e do patrimônio, além da oferta de produtos e serviços, tais membros passam a ter relações de membros não mais por meio da estrutura familiar mas como integrantes de um grupo de trabalho de uma corporação (que podemos atualizar pelo conceito de empresa ou de igreja que também é uma corporação) na sociedade civil, não obstante tal riqueza consegue ser produzida mas não consegue ser distribuída pela estrutura dessa sociedade, já que observamos que alguns indivíduos conseguem acumular mais riquezas do que outros, levando algumas pessoas ao estado de miséria, localizando esses indivíduos a margem da sociedade e sem a percepção que pertencem a uma sociedade, que Hegel denomina como po- 41 pulaça. A partir desse diagnóstico hegeliano da ausência de mecanismo de distribuição de riqueza para a população em geral, ele nos fornece uma solução ao estabelecer que deve existir uma instituição que ultrapasse os limites da família e da sociedade civil que possa cumprir essa função denominada por ele como 3. sociedade estatal, o Estado, que universalize as leis, as regras e o direito, podendo concluir que o Estado é a peça de equilíbrio de uma sociedade. No entanto, na estrutura desse sistema socioeconômico, mesmo inseridos numa sociedade estatal, não observamos que esse projeto hegeliano tenha sido realizado, na verdade, ao invés da distribuição de um capital permanente universal entre os membros de uma sociedade civil, verificamos que o ser humano é reduzido a coisa reificada, a uma “carcaça do tempo” (Mèszáros, 2007, p. 42) em que o valor inerente e a especificidade humana dos indivíduos é analisada pela atividade produtiva essencial na produção alienante, uma vez que na lucratividade capitalista não há lugar para a efetivação do valor específico dos indivíduos e o contravalor deve prevalecer em situações de dominação como relação de valor prático. Em contraposição a essa contabilidade de tempo capitalista, temos a contabilidade socialista contra o processo capitalista em que o tempo desumanizador do capital reina sob o imperativo fetichista. Já que trabalhamos com contraposições dicotômicas até aqui, a contraposição do tempo do trabalho num sistema capitalista, seria o do tempo livre, já mencionado, no entanto, percebemos que até mesmo ele não é desprovido de sentido para a estrutura do capital, pelo contrário foi integrado ao tempo capital. Para aqueles que conseguem dispor desse tempo livre no nosso sistema de produção econômica, ele é convertido em lazer ocioso com o objetivo de se enqua- 42 drar no imperativo da acumulação de capital, pois apenas assim passa a fazer sentido, quando é apropriado e inserido na estrutura desse modo de produção, estabelecendo uma hierarquização no mundo do entretenimento e modificando nossa relação com o tempo livre. Não se trata mais de um tempo em que esquecemos as conturbações do nosso tempo de trabalho na estrutura do capital, mas esse tempo passa a ser um tempo que deve ser compartilhado com os demais integrantes da estrutura social por meio das redes sociais e que pode servir de dados para nos compreender como consumidores de outros produtos de entretenimento no futuro. Nossos hábitos nesse tempo de lazer produzem um comportamento no tempo de lazer que não se encontra estritamente relacionado com o nosso tempo como indivíduo, mas com uma imagem que queremos construir para outros, por exemplo, não basta que estejamos em um momento de fruição em um museu, o importante é que possamos compartilhar com os demais o que escolhemos fazer para esse tempo de lazer, produzindo um valor que produzirá desejos em outros, movimentando o sistema capitalista. Já na contabilidade socialista deve-se ter a tarefa de fazer sempre o melhor uso do tempo livre disponível na sociedade para expandir ao máximo o interesse de todos, assim os indivíduos sociais podem enriquecer pelo processo do exercício criativo do tempo livre disponível que é negligenciado na sociedade capitalista. No entanto, nessa estrutura do capital, observamos que a conquista da humanidade do tempo livre também se encontra incorporado ao trabalho excedente e produtivamente crescente da sociedade, a mais valia. Isso porque tudo o que não é lucrativo nesse sistema deve ser considerado irrelevante, inexistente ou destruído, 43 resistir ao capital parece não ser uma possibilidade. Se o valor humano dos indivíduos é excluído da estrutura como os objetos são produzidos a partir das necessidades humanas? Como os valores de uso podem corresponder as necessidades dos seres humanos? Essas necessidades são criadas pelo capital? E como necessidades criadas pelo sistema interferem nas relações sociais? Os seres humanos se adequam aos parâmetros produtivos e ao gênero de produção desse sistema em que tudo é mercadoria lucrativamente comerciável com uma razão de ser de acordo com a contabilidade do tempo do capital. Dessa forma não há avaliação sobre as necessidades dos indivíduos sociais e sobre a questão de quais objetos devem ser produzidos com o tempo dedicado a cada produto, há um mecanismo com base em escolhas que não partem da necessidade humana. O contravalor lucrativo determina com a contabilidade do tempo capitalista que os seres humanos sejam reduzidos a carcaça do tempo, como afirma Mèszáros. Na contabilidade capitalista, sua estrutura é direcionada pela mais valia já na contabilidade socialista, a expansão produtiva do capital excedente e o tempo livre de modo criativo são os direcionadores da sua estrutura. Dito isto, observamos que a história das sociedades de classe sempre foi marcada pela extração forçada de trabalho excedente, seja política ou econômica. Essa extração lucrativa de trabalho do capital, a mais valia, características da ordem social do capital, não modificou a relação exploratória, tornou dominante a expropriação econômica forçada do capital excedente, fazendo com que os seres humanos se reduzissem a carcaça do tempo quando a serviço da mais valia para acumular cada vez mais. O desafio histórico é tentar alterar essa 44 extração forçada e determinar tempo livre para propósitos escolhidos conscientemente pelos indivíduos sociais. Mèszáros, dialogando diretamente com Hegel e Marx, defende a posição de que houve uma perda da consciência do tempo histórico, uma vez que ao observarmos o desenvolvimento teórico ao longo da história, podemos perceber que a história da tradição filosófica burguesa torna-se cética e pessimista depois da concepção de progresso da humanidade ao longo da história defendida pelos filósofos alemães Hegel e Marx, seguindo a toada de pensadores como Alexis de Tocqueville e Ranke que negavam a concepção de filosofia da história, em específico a defendida por Hegel, já que de acordo com ele, Hegel não inseria o agente humano na história. O historiador Sir Lewis Namier também critica a filosofia da história, considerada anti-histórica e predominante nas ideologias burguesas do século XX. Essa visão da filosofia da história traçada por Hegel é um reflexo da tradição iluminista sobre a teoria da história ao estabelecerem uma linha divisória entre o mundo natural e o mundo social produzido pelo homem e regido por regras de desenvolvimento sócio-histórico. O iluminismo estava inserido no período histórico da modernidade que tinha como um de seus preceitos diretores a razão humana que colocava o homem em um status hierárquico superior aos demais animais e a natureza, estabelecendo um projeto de progressão linear não apenas na ciência com o desenvolvimento da técnica e do conhecimento, mas também na política, economia e ordem social, nos remetendo a uma ideia de porque somos detentores de razão podemos tudo nesse percurso do desenvolvimento. Inclusive associando o desenvolvimento do conhecimento a um ideal de felicidade já que haveria um melhoramento nas condições de qualidade de vida do homem. 45 Não obstante, na contemporaneidade, compreendemos que o progresso não é um termo neutro como defendem Marcuse e Hans Jonas, que no caso de Marcuse não se trata de uma visão determinista de Marx, mas da ênfase de que não há neutralidade na técnica, na tecnologia e na ciência, há uma noção de progresso atrelado a elas, e que essa noção nem sempre será a de melhoria da condição humana que virá apenas com um comprometimento com a dignidade da vida humana, por meio de uma consciência humana. Tal visão de progresso iluminista e moderno que percorre um percurso linear e nos leva em direção a um fim específico de aprimoramento da condição humana já não cabe na contemporaneidade como o mundo presenciou ao observar o lançamento das bombas atômicas pelos Estados Unidos nos dias 6 e 9 de agosto de 1945 nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki com o objetivo de forçar a rendição japonesa e evitar uma possível invasão durante a II Guerra Mundial. Marcuse nos alerta sobre essa contradição interna na sociedade industrial, enquanto a consumação da racionalidade tecnológica é nossa pulsão de desejo, travamos intensos esforços para conter esse valor de uso negativo desses instrumentos ao usá-los na dominação eficiente do homem sobre a natureza e posteriormente do homem sobre o homem, denominado por nosso frankfurtiano como “o elemento irracional da racionalidade de nossa civilização” 2. Não é possível organizar esses instrumentos do mesmo modo para a paz quanto para a guerra, não podem servir a guerra e ao mesmo tempo a paz? De acordo com Marcuse quando a racionalidade desse progresso vai de encontro a melhora da condição humana como ele diagnostica ter acontecido com 2 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial, p. 36. Cf. o original MARCUSE, Herbert, One Dimensional Man, p. 19. 46 a sociedade industrial, deveríamos criar uma condição de vida de emancipação em relação ao labor – aspecto negativo do trabalho – e essa condição poderia ser a libertação desse labor ou a “abolição do trabalho” de Marx, o que justificaria uma subversão do comportamento humano nos dirigindo para uma nova organização desse progresso dominante. Tal qual Marcuse declara ao descrever que Essa fase seria atingida quando a produção material (incluindo os serviços necessários) se tornasse automatizada a ponto de todas as necessidades vitais poderem ser atendidas enquanto tempo de trabalho necessário fosse reduzido a um tempo marginal. Daí por diante, o progresso técnico transcederia ao reino da necessidade no qual serviria de instrumento de dominação e exploração, que desse modo limitava sua racionalidade; a tecnologia ficaria sujeita à livre atuação das faculdades na luta pela pacificação da natureza e da sociedade.3 No entanto, na atualidade, esse trajeto de pensamento iluminista que retira o homem da natureza como se o homem estivesse num estágio hierárquico superior a ela é negado, principalmente porque nos demos conta de que interferimos de modo violento no tempo circular da natureza, trazendo consequências catastróficas. A historiografia bur3 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial, p. 35. Cf. o original MARCUSE, Herbert, One Dimensional Man, p. 18: “This stage would be reachedwhenmaterialproduction(includingthenecessaryservices)becomesautomated to the extent that all vital needs can be satisfied while necessary labor time is reduced to marginal time. From this point on, technical progress would transcend the realm of necessity, where it served as the instrument of domination and exploitation which thereby limited its rationality; technology would become subject to the free play of faculties in the struggle for the pacification of nature and of society”. 47 guesa moderna em sua busca pela emancipação da tradição do Iluminismo, tentam fundamentar o conhecimento histórico com o esclarecimento do poder do sujeito histórico humano ao “fazer história”. O desfecho histórico do Iluminismo com a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas nos remete a duplos significados sobre o modo de produção do período que é a origem das mais promissoras conceitualizações burguesas como precursoras da lógica do capital e ao mesmo tempo de apreensões sobre o papel do trabalho no desenvolvimento histórico; além de ser a origem da expansão da ideologia. Esses significados sobre o modo de produção foram consolidados com a ordem social estabelecida pela Revolução Francesa, uma vez que houveram alterações conceituais sobre as questões político e econômica. As questões socio-econômicas e a relevância das lutas de classes conseguiram reconhecimento dos historiadores burgueses, mesmo que a estrutura social daquele período ainda fosse conservadora. No entanto, com o fim do período moderno, essas categorias foram descartadas como conceitos do século, atribuindo a Marx a herança intelectual da qual queriam se desfazer, assim como fizeram com o Iluminismo. Com a ordem estabelecida pelo capital, podemos observar que a questão do ponto de vista da economia politica para compreender que “fazer história” está em harmonia com os interesses materiais e ideológicos dos dominantes por meio das classes subordinadas a serviço dessa ordem social. Mesmo que as forças sociais estejam engadas na emancipação do domínio do capital, como ficará o projeto fazer história e a instituição de uma nova ordem social? Alimentação, moradia, saúde, educação básica são inconcebíveis sem desafiar a ordem estabelecida. 48 Derradeiras considerações iniciais Como observamos a partir do recuo histórico realizado, podemos determinar que em um mesmo tempo ou era, podemos ter temporalidades diferentes, camadas de temporalidades (ou estratos do tempo no vocabulário de Koselleck). E na era moderna, desde a emergência do capitalismo, identificamos duas principais temporalidades associadas: a temporalidade da ordem e a temporalidade de exceção (que no vocabulário do geógrafo Milton Santos chama-se de temporalidades hegemônicas e não hegemônica ou não hegemonizadas). Para compreendermos a relação entre elas, continuaremos com a ideia do homem como criador de temporalidade também defendida por Walter Benjamin ao afirmar que aprendemos que a narrativa histórica confere significação ao tempo, aos acontecimentos, uma dada relação do presente com o passado e o futuro e é inseparável de certa prática. Diante da ideia de que o homem é um criador de temporalidades, Jeanne Marrie Gagnebin nos apresenta Benjamin (1985, p. 7) ao afirmar que “[..] uma reflexão crítica sobre nosso discurso a respeito da história (das histórias), discurso esse inseparável de uma certa prática. Assim, a questão da escrita da história remete às questões mais amplas da prática política e da atividade de narração”. Extraímos desta reflexão crítica de Benjamin a descrição da temporalidade da ordem: um tempo homogêneo, vazio e linear em que passado, presente e futuro formam um contínuo com uma direção ao futuro, ao progresso, como se a sociedade capitalista fosse uma evolução lógica e necessária do tempo e da humanidade. Como se existisse uma inteligência ou providência que conduzisse a humanidade à evolução científica e cultural. Mas o autor adverte 49 que “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão de cultura.” (Benjamin, 1985, p. 225). Em nossa perspectiva, a transmissão da história oficial e a significação do passado, presente e futuro em nossa sociedade como parte da cultura da sociedade capitalista não está isenta de barbárie. De acordo com Benjamin (1985, p. 225), o investigador historicista estabelece uma relação de empatia com o vencedor, com os dominadores, por isso, a história produzida por ele será “um cortejo triunfal” que afirma que os que venceram e dominam são os melhores, merecem a posição social que ocupam. Os que venceram por seu suposto mérito e desenvolvimento deveriam levar a cultura e o progresso aos outros, povos e grupos sociais atrasados, menos capazes. Desse modo, esta história linear, homogênea e evolutiva acaba por sufocar outras narrativas, culturas e significações temporais, bem como por apagar as possibilidades que não se concretizaram, as alternativas que não permaneceram no tempo, consideradas como derrotadas. A conexão de passado, presente e futuro como um tempo homogêneo que conduz ao progresso é aceita pelas pessoas que vivem em espaços e condições materiais que permitem pensar sua história individual dentro do progresso: com acesso a bens de consumo que proporcionam bem-estar e são cada vez mais avançados (computadores, tablets, celulares, televisores com tecnologias novas, de última geração; automóvel do ano ou de modelos mais novos, comidas gourmet diferenciadas, roupas da moda, etc.). Pessoas pertencentes a grupos com algum prestígio social e que conseguem em certa medida acumular algo (se não for di- 50 nheiro, pode ser viagens internacionais, cirurgias plásticas, imóveis, etc.), desde que acumule. No entanto, muitas pessoas vivem uma história decadente, perderam entes queridos, passam por privações de todo tipo: de educação, emprego, roupa, comida, assistência de saúde, proteção, pois estão expostas à violência. Estas pessoas não conhecem a melhoria de vida, seu presente não pode ser considerado melhor que o passado, não possuem muitas perspectivas de melhora ou mudança no futuro. Elas vivem em uma outra temporalidade, uma temporalidade de exceção. Como já nos apontava Benjamin (1985, p. 226), a ordem capitalista engendra sempre a exceção: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade regra geral.” Entendemos que na exceção o passado, o presente e o futuro estão desconectados de alguma forma, assim, as possibilidades de ruptura, de abertura de um novo tempo, de um novo começo ficam ameaçadas. Quem vive na temporalidade da ordem e do progresso não busca um novo começo pois acredita que os problemas do presente serão solucionados por uma nova invenção, tecnologia que estaria garantida pela evolução que o sentido da história já comprovou existir. Quem vive na temporalidade de exceção tem entraves para vislumbrar um futuro diferente do passado e do presente e para agir, porque o espaço para elas também é limitado e de exceção. Trataremos nesse livro do modo como estes entraves podem se apresentar. De todo modo, estas duas temporalidades contribuem para a permanência e sustentação da sociedade moderna capitalista como podemos observar na conexão que realizamos entre temporalidade da ordem e da exceção, bem ilustrada pela interpretação de Benjamin (1985, p. 226) do quadro Angelus Novos de Paul Klee: 51 Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Onde nos vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas assas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. A temporalidade do progresso visa a fazer com que as pessoas não olhem para trás e não vejam os escombros que a sociedade capitalista produz. Mesmo aqueles que, assim como o anjo da história, conseguem ver o amontoado de escombros tem como adversário o vento que imobiliza e empurra para frente, que dificulta que vidas, corpos, afetos, narrativas e possibilidades sejam resgatadas dos escombros. Quem está dentre as ruínas, toda sorte de dominados que vivem na exceção, têm imensa dificuldade de pular para fora da barbárie uma vez que os escombros dificultam seu movimento. Estas ruínas que a sociedade capitalista deixa para trás dizem respeito à temporalidade da destruição, uma das formas de exceção. 52 Bibliografia ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Mauro Barbosa, 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2005. BENJAMIN, W. “Sobre o conceito de história”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. BIGNOTTO, N. “O círculo e a linha”. In: NOVAES, A. (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. HESÍODO. A Teogonia: A Origem dos Deuses. Tradução de Jaa Torrano. 3ª edição. Editora Iluminuras: São Paulo. 1995. HOMERO. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. 1º edição. Editora Penguin Classics Companhia das Letras: São Paulo. 2013. MARCUSE, Hebert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Tradução de Giasone Rebuá. 4º edição. Zahar Editores: Rio de Janeiro. 2018. _______. One – Dimensional Man: Studies in the ideology of advanced industrial society. Routledge Classics: London and New York. 2007. MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. Tradução de Ana Cotrim e Vera Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2007. SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Traduzido por J. Dias Pereira. 2ª edição. Vol. 1. Editora Calouste Gulbenkian: Lisboa. 1996. 53 ________ . A Cidade de Deus. Traduzido por J. Dias Pereira. 2ª edição. Vol. 2. Editora Calouste Gulbenkian: Lisboa. 2000. KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Tradução de Markus Hediger. 1º ed. Rio de Janeiro: Contraponto. PUC-Rio, 2014. ________. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Waas. Rio de Janeiro: Contraponto. PUC-Rio, 2006. 54 Temporalidade de Destruição: Modernidade, capitalismo e temporalidade de destruição. Depois de nós já não havia mundo para receber mais ninguém. (Mia Couto. Terra Sonâmbula) Provoca nossa tristeza caminhar entre ruínas, saber que tanto esplendor e tanta vitalidade tiveram que desaparecer. (Olgária Matos. A escola de Frankfurt) Primeiras considerações Neste capítulo discutiremos o surgimento do capitalismo, mostraremos como o progresso neste sistema econômico e social está relacionado com a destruição a qual acaba por produzir uma temporalidade de exceção. Para fazer esta discussão iremos, primeiro, apontar em que medida o capitalismo engendra destruição da natureza, de territórios, modos de vida, culturas e pessoas. Ao final do capítulo trataremos do modo pelo qual esta destruição engendra uma temporalidade e como ela se dá, isto é, como passado, presente e futuro ficam desassociados com o par produção/destruição, como isto altera subjetividades, expectativas, afetos e a atividade política. Trataremos, primeiro, da destruição da natureza, mais especificamente sobre o início do antropoceno, uma nova era geológica em que o homem passa a ser uma das principais forças de modificação do espaço natural dada a massiva exploração de recursos naturais para o comércio e a indústria. Em seguida abordaremos a noção de progresso como acúmulo de capital e expansão que engendra não só a circulação de mais mercadorias e geração de riqueza, mas também um ciclo incessante de produção, destruição e consumo. Nesta discussão mobilizaremos o pensamento de Hannah Arendt e sua análise sobre a relação entre imperialismo, expansão e aniquilação. Em seguida traremos o filósofo Achille Mbembe para indicar que a acumulação capitalista envolveu o racismo, a destruição e a violência desde o mercantilismo, pois o colonialismo, o racismo e o termo negro fazem parte do maquinário social capitalista. O autor mostra como o capitalismo produz a morte na vida uma vez que seleciona um grupo 57 de pessoas que são tratadas como meros instrumentos de trabalho como se não tivessem alma, afeto, razão e cultura próprias. Tal desumanização se tornou um padrão de segurança no capitalismo: todo aquele que não seja espelho do homem branco burguês deve ser controlado ou eliminado. A violência se tornou, portanto, um dos pilares que possibilitaram o comércio no Atlântico e a acumulação para a industrialização. Silvia Federici concorda com Mbembe em que o maquinário social capitalista fragmenta a classe trabalhadora e a explora e a viola de formas diferentes. A autora mostra que a misoginia e o patriarcado, assim como o racismo, tiveram um papel central na formação do proletariado moderno e na acumulação de capital. Para Federici, o ódio e a violência contra as mulheres foi uma estratégia para fragmentar a classe de trabalhadores, enfraquecer as lutas camponesas e urbanas na Europa. O rebaixamento das mulheres serviu para a apropriação do trabalho feminino, mal pago ou mesmo não remunerado no capitalismo e também serviu para o controle da função reprodutiva das mulheres. Levando em consideração, argumentamos que para que se tenha uma política de destruição de pessoas, é necessário o controle da produção de pessoas, isto é, o controle sobre os corpos, principalmente, sobre o útero das mulheres. O que iremos mostrar é que embora os defensores do capitalismo e a história escrita por homens brancos afirmem que a modernidade e a emergência de um novo sistema social e econômico signifique progresso: crescente liberdade individual, acesso a bens, aumento do bem-estar e da riqueza. Isso só é verdade para uma parte da população, pois a produção e a acumulação caminham ao lado da destruição. A maior parte do globo – florestas, rios, solo, ani- 58 mais, mulheres e racializadas – está sujeita à destruição, ou seja, à violência, que é realizada em nome do capital. Nesse sentido, uma grande parte do mundo vive em uma forma de temporalidade de destruição, em que o esplendor e vitalidade da natureza, de culturas e de gente são destroçados, em que um amontoado de escombros se junta enquanto se glorifica o progresso de uma minoria e em que a morte se dá em vida. Mudança no significado de progresso: par expansão e destruição O progresso na historiografia capitalista é ligado a um progresso na “qualidade de vida” entendida como maior capacidade de produção e abundância no consumo. Este progresso está ligado a um conceito corrompido de trabalho, tecnocrático, que destaca os progressos na dominação da natureza e não olha para os retrocessos na organização social e para os danos ecológicos causados pelo aumento da produtividade do trabalho e do consumo. A ciência e a técnica vêm tratando a natureza como um objeto manipulável e, assim, tem buscado alterar a vida em todos os aspectos, incluindo a vida humana, nas palavras de Arendt “produzir seres humanos superiores e lhes alterar o tamanho, a forma e a função” (Arendt, 2010, p. 3). A autora adverte, entretanto, que o avanço tecnológico não pode somente melhorar e manipular a vida humana, mas também pode destruir toda a vida orgânica na Terra. Podemos notar que isso pode ser feito tanto em poucos segundos, por meio de bombas atômicas e outras armas químicas e biológicas, como gradual e lentamente, por meio da destruição de recursos naturais que possibilitam a vida no planeta. Como diz a autora, o ser humano está “livre para 59 consumir o mundo inteiro” (Arendt, 2010, p. 163). Levando isto em consideração, vemos que na modernidade os seres humanos deixam de se compreender como parte do mundo natural e que, em certa medida, vivem o tempo cíclico e de renovação da natureza. Uma vez que os seres humanos passam a subjugar a natureza, manipular recursos e coisas naturais conforme seus desejos, reproduzir, acelerar e modificar artificialmente processos ligados a vida geológica e biológica, foi imposta a natureza, uma outra temporalidade ligada ao progresso na produção e à destruição, uma vez que a natureza subjugada e atormentada não possui tempo e condições de se renovar e refazer. Arendt analisa a relação entre o capitalismo, expansão, progresso e destruição em Origens do Totalitarismo (1951), especificamente, na parte que trata do Imperialismo do final do século XIX e início do século XX. Para a autora, a concepção de progresso era precedente, existia desde o início da modernidade e se referia antes ao avanço nas ciências – que abandonou os paradigmas e métodos antigos e, a partir do século XVII, adotou novos paradigmas e métodos – na moral, nos costumes e na política (os quais desde o Renascimento passaram a se libertar gradualmente dos ditames religiosos). No entanto, com o Imperialismo, o progresso foi ligado à expansão territorial e a uma suposta vocação civilizatória europeia. Segundo Arendt, a invasão de territórios africanos e asiáticos promovida por Estados nacionais europeus no final do século XIX foi motivada pela ganância de investimento de dinheiro supérfluo, o qual não poderia mais ser investido dentro das fronteiras da Europa. Para continuar a acumulação de capital – processo interminável de ficar cada vez mais rico, aumentar riqueza e propriedade – era preciso 60 mais terras, mais recursos naturais, mais mão de obra e mais consumidores. Nesse contexto, Inglaterra, França entre outros, invadiram terras na África e Ásia para explorar recursos naturais, seres humanos e investir o dinheiro supérfluo. Para garantir a rentabilidade deste empreendimento e a dominação de terras e povos, expandiram o braço repressor de seus Estados nacionais. A polícia e o exército asseguravam o acúmulo de capital por meio da violência e da violação4. A autora sustenta que a burguesia acredita que é possível um acúmulo interminável de capital, propriedade e bens. Isto é o que anima sua atuação e empreendimentos e que, fomentou tanto o acúmulo de poder entendido como a dominação da máquina estatal e de outras pessoas pelo braço repressor do Estado. “Esse processo de constante acúmulo de poder, necessário à proteção de um constante acúmulo de capital, criou a ideologia ‘progressista’ de fins do século XIX e prenunciou o surgimento do imperialismo” (Arendt, 1989, p. 173). A análise arendtiana aponta que o progresso enquanto expansão e acumulação acabam por caminhar ao lado e de mãos dadas com a destruição. Quando a constante acumulação encontra um limite natural, a aniquilação é mobilizada. Em outras palavras, há no mundo um limite natural de terras, matérias primas, recursos e da capacidade humana de consumir e trabalhar. A ciência e a tecnologia moderna, por mais que possibilitem um aumento da produtividade do trabalho com maquinaria, automação, da extração de recursos naturais e da maximização da capacidade do corpo e da mente – melhoria artificial da força física, da atenção por meio de treinamento, suplementos e medicamentos – 4 Isso será um dos elementos imperialistas que prospera até os dias atuais na forma do capitalismo financeirizado. 61 também possui seu limite, o qual só pode ser ultrapassado por meio da destruição. As mercadorias não podem ser consumidas cada vez mais sem o desperdício e a obsolescência programada; a produção não pode aumentar sem o uso predatório de recursos naturais e matérias primas, sem a obsolescência programada dos próprios instrumentos de produção; o trabalho não pode ser realizado sem o desgaste e exaustão de corpo e mente, sem exploração e opressão de grupos sociais e étnicos; o capital investido não pode ser valorizado sem violência e violação. Arendt afirma que este limite ficou claro no início do século XX, em suas palavras, “a sede de poder só podia ser saciada pela destruição. [...] substituía a superstição do progresso pela superstição da ruína” (1989, p. 173). De acordo com a autora, durante o século XIX, o progresso deixa de se vincular com o avanço da humanidade em direção à autonomia e ao esclarecimento e passa a se vincular ao interminável e crescente ciclo de produção, destruição, consumo. A aniquilação das coisas não se liga apenas à acumulação de capital, mas também à posse. “A forma mais radical – e a única segura de posse – é a destruição, pois só possuímos para sempre e com certeza aquilo que destruímos” (Arendt, 1989, p. 174). Os donos de propriedade, capital e coisas que não consomem, gastam e destroem o que possuem, não podem demonstrar e ostentar suas posses de forma inequívoca. Esta pulsão capitalista por destruição não é apenas estimulada no indivíduo, o qual deve acumular e destruir para mostrar que possui excedente, é uma pulsão que deve se tornar social. A vida humana, por ser mortal, traz um limite ao consumo e ao uso de bens e dinheiro individual, por isso, os interesses de acumulação constante devem se tornar sociais. Como mostramos, o processo de acumula- 62 ção engendra a destruição, deste modo a destruição deve parecer ser do interesse de toda a sociedade e deve também parecer progresso, algo que empurra para frente e procura invisibilizar as ruínas e os escombros que deixa para trás. Arendt é assertiva ao notar que o imperialismo como parte do processo de acumulação e expansão precisava da violação. E que ao lado do investimento e aumento do capital vinha a destruição de territórios, recursos, culturas e etnias. A autora também acerta ao indicar como esse processo de expansão e acumulação precisavam engendrar o racismo para justificar a invasão de territórios e a opressão de diversos povos. Ainda, a dominação de recursos e pessoas no imperialismo precisava de um governo burocrático, que governa por meio de normas e regras sem se importar com a opinião, a visão de mundo e a vida dos governados, mas apenas visa ao rendimento do capital investido. Nesse sentido, de acordo com Arendt, o século XIX lança uma visão temporal em que o progresso está ligado a expansão territorial, de domínio de terras e povos e de crescente acumulação. Este progresso caminha ao lado da destruição: se dá também uma acumulação de ruínas de poses que são afirmadas pela aniquilação, de territórios invadidos onde a violência destrói a natureza, culturas, formas de vida e pessoas. Enquanto para os países europeus está em curso uma temporalidade de progresso, para os territórios coloniais está em curso uma temporalidade de destruição: os escombros de recursos naturais, de culturas, almas humilhadas, corpos feridos e mortos se acumulam por todo lado. Embora Arendt faça uma análise precisa dos elementos que envolveram a acumulação durante o imperialismo e a concepção de progresso que surgiu no final do século XIX, ela não percebeu que a acumulação já envolvia o racismo, a 63 destruição e a violência desde a emergência do capitalismo em sua versão mercantilista, quando se iniciou o empreendimento colonial. Mercantilismo, colonialismo, racismo e destruição Mbembe discute sobre acumulação e racismo em Crítica da Razão Negra. Segundo o filósofo, o racismo e o termo negro são produtos indissociáveis do maquinário social e técnico do capitalismo, foram estas categorias que permitiram a transformação do ser humano em mercadoria, a máxima exploração, a venda não só da força de trabalho, mas do corpo e da vida. Para ele, a categoria de raça tem sua origem no estudo do âmbito animal e serviu para nomear os povos não-europeus, já o termo negro designou diversos povos africanos como seres com as mesmas características, supostamente biológicas. De acordo com o autor (Mbembe, 2019, p. 11), [...] o pensamento europeu sempre tendeu a abordar a identidade não em termos de pertencimento mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo com o mesmo, do surgimento do ser e da sua manifestação em ser seu primeiro ou, ainda, em seu próprio espelho. O pensamento europeu está pautado numa autocontemplação, só vê a si mesmo, produz um modelo de Homem que corresponde à imagem do homem branco europeu. Assim, outras formas de ser e existir não são reconhecidas como propriamente humanas, as pessoas de outras culturas, com outras formas de viver não são consideradas sujeitos de direitos, portadores de opiniões, razão, forma de organi- 64 zação e pensamento próprio e válido. Mbembe destaca que nada se quer compreender destes outros, apenas se busca controlar e oprimir. Aqueles que foram racializados pelos europeus no início da modernidade, foram apresentados como seres mais próximos aos animais, sem ou quase sem consciência e razão, inferiores e menos evoluídos. Esta concepção de que as pessoas racializadas teriam características mais animalescas do que humanas perdurou por muito tempo e foi sustentada até mesmo por cientistas e filósofos, Hegel5, por exemplo, afirma isto na Fenomenologia do Espírito. Os europeus na medida em que animalizaram outros povos se colocaram no papel de tutelar, ajudar e proteger as raças “inferiores e menos evoluídas”. Esta divisão da humanidade em raças superiores e inferiores fazia com que o empreendimento colonial parecesse uma obra “civilizatória” e “humanitária”, “cujo corolário da violência não era senão moral” (Mbembe, 2019, p. 31). Contudo, Mbembe sustenta que a invenção da raça foi e é uma ficção útil. Ficção uma vez que não está fundada no 5 Os autores desse livro não compartilham da mesma interpretação sobre a obra Fenomenologia do Espírito do filósofo alemão Hegel. Nessa obra, ressaltamos que Hegel não pode ser considerado não racista biológico, mas um racista cultural, respectivamente, porque: 1. ele se contrapõe a correntes dominante em sua época que explicavam a inferioridade dos africanos por meio do formato do crânio – frenologia – e pelas características faciais – fisiognomia – afirmando a existência de uma capacidade cognitiva desenvolvida; para ele, não possuímos uma semântica que possa relacionar a existência de algum elemento orgânico no ser humano que possa determinar seus comportamentos, devemos pautar nossa explicação dos seres humanos a partir de nossas ações; 2. Quando ele trata do grau de desenvolvimento dos povos, afirma que ele não foi completo para os africanos, mas não tece comentários acerca dos europeus, mesmo ciente de que havia povos na Europa que se encontravam em diferentes graus de desenvolvimento cultural. No entanto, devemos mencionar que Hegel foi racista na obra Filosofia da História. 65 conhecimento biológico, mas é uma categoria que produz um tipo de ser humano desumanizado. O negro, como ser racializado, “[...] não existe enquanto tal. Ele é constantemente produzido. Produzi-lo é gerar um vínculo social de sujeição e um corpo de extração, isto é, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor e do qual nos esforçamos para obter o máximo de rendimento” (Mbembe, 2019, p. 42). A invenção da raça negra foi útil pois produziu um ser humano mercadoria, possibilitou a máxima extração de rendimento do corpo, foi o que viabilizou uma produção comercial ao longo de enormes distâncias, isto é, a troca comercial entre os continentes Europeu, Africano e Americano. Foi elemento central para acumulação de riqueza no período colonial, da integração do capitalismo mercantil e da subordinação e controle do trabalho por meio da violência ilimitada (Mbembe, 2019, p. 45). O comércio negreiro, a plantation e o extrativismo não poderiam funcionar sem a invenção da raça, não seria possível os massacres coloniais, a extrema violência usada para aprisionar e obrigar ao trabalho povos da África e das Américas sem a existência do racismo.6 Ser nomeado como negro significou então a exclusão, 6 Para Mbembe, o termo negro operou uma redução do corpo e do ser à cor da pele. Em outras palavras, com o surgimento do pensamento racista, a cor da pele passou a conferir características determinantes e foi causa de assombrosos crimes, massacres, agressões físicas e devastações psíquicas. Como já foi dito, foi a invenção da raça e do negro que possibilitou o tráfico Atlântico e a escravização – fundamentais para a acumulação no mercantilismo – a transformação de milhares de homens e mulheres em objeto, mercadoria e instrumento de trabalho. A cor da pele foi usada como motivo de desterro e prisão. Nas palavras do autor, “Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a outros, hostilmente predispostos contra eles, deixando assim de ter nome ou língua própria” (Mbembe, 2019, p. 14). Mbembe sublinha que embora coisificados e não autorizados a estabelecer relação com os outros como co-humanos, homens e mulheres originários da África resistiram e se tornaram sujeitos ativos. 66 degradação e embrutecimento em favor da acumulação de capital. Nas palavras de Mbembe (2019, p. 21): “Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria – a cripta viva do capital”. Nesse sentido, o termo negro nomeia várias coisas: um modelo de depredação e sujeição assim como modalidades de superação uma vez que mesmo diante de tanta violência e exploração de seus corpos e mentes, negros e negras conseguiram resistir e lutar. Não iremos tratar neste momento das lutas e da resistência negra, vamos nos deter à vinculação do termo negro e do racismo ao capitalismo, à exploração e à destruição de seres humanos. A criação da categoria negro produziu nos europeus e naqueles que se nomeavam brancos uma consciência coletiva neurótica e fóbica, que odeia o outro por não o reconhecer como semelhante e por considerá-lo como inferior. E, além disso, que possui medo do outro, considera a alteridade ameaçadora e, por isso, os racializados deveriam ser tutelados e vigiados. Assim, o racismo provocou o medo e o ódio, um impulso de controlar totalmente ou destruir este outro, ou seja, produziu o que Mbembe chama de altericídio. A ficção útil da racialização pode ser compreendida ao analisar o contexto histórico e econômico europeu no início da modernidade. A Peste Negra e a Grande Fome (séculos XIV e XV) causaram uma crise populacional na Europa, pois estima-se que até dois terços da população tenha morrido neste período. A falta de mão-de-obra fez com que se iniciasse um afluxo de africanos para Portugal e Espanha. Mbembe aponta que o aprisionamento e a escravização de pessoas começou nas rotas transaarianas e aumentou a partir de 1440 com as rotas pelo oceano Atlântico até a África 67 Ocidental e Central. O autor indica com isso que o aprisionamento e a escravização foram respostas à necessidade de mão de obra diante da crise populacional. O escravo na modernidade é privado de qualquer estatuto humano, os brancos buscaram transformá-lo em objeto, num corpo gerador de energia e trabalho e numa mercadoria que possui tem valor de uso e de troca (Mbembe, 2019, p. 145). Para tanto, era preciso violentar não só o corpo, mas a mente e a psique também. A utilização do corpo escravizado na Europa foi apenas o primeiro estágio do processo de destruição e acumulação do início do capitalismo. Logo os europeus buscaram novas rotas comerciais, novas terras, mais povos para escravizar. A colonização da América e a plantation consolidaram a destruição da natureza e de pessoas a favor de um processo de acumulação, uma vez que a razão mercantilista considerou o mundo como um comércio ilimitado em que tudo poderia se transformar em mercadoria. Segundo Mbembe (2019, p. 145): A expansão do liberalismo como doutrina econômica e arte específica de governar foi financiada pelo comércio de escravos, num momento em que, submetidos a uma acirrada concorrência, os Estados europeus se esforçavam para ampliar seu poder e consideravam o resto do mundo sua propriedade e seu domínio econômico. O filósofo mostra que o liberalismo e o capitalismo, embora digam se basear na liberdade individual, produz, ao mesmo tempo, um modelo de homem livre que existe junto e às custas do escravizado. Nas palavras de Mbembe (2019, p. 146): “[...] Foucault afirmou que, na origem, o li- 68 beralismo ‘implica em seu cerne uma relação de produção/ destruição [com a] liberdade’, mas se esqueceu de explicar que, historicamente, a escravidão dos negros representou o ponto culminante dessa destruição de liberdade”. Levando em consideração o que foi dito até aqui, podemos ver que o capitalismo, desde o mercantilismo, necessita de um processo de produção e destruição em vários sentidos: de liberdade, de produtos, de matérias primas, de pessoas e culturas. Nesse sentido, o capitalismo não consegue se manter sem engendrar uma temporalidade de destruição, sem por um lado, empurrar para frente a acumulação e a produção e, por outro, deixar atrás de si uma montanha de destroços, ruínas e corpos. Não se trata apenas de destruição da posse, como Arendt já nos indicou, a forma de provar que se possui algo para sempre e com segurança é destruindo essa posse. Também se trata da destruição do meio ambiente, de mercadorias pelo consumo incessante e o aniquilamento de corpos, psiques e vidas. A destruição no que se refere ao ser humano está relacionada ao poder e à morte. Mbembe (2019, p. 232) nos mostra que a morte não está situada somente no fim da vida: “No fundo o mistério da vida é ‘a morte na vida’, ‘a vida na morte’, esse entrelaçamento que é o próprio nome do poder do saber e da potência”. O sentido que podemos extrair deste entrelaçamento de morte e vida é o de que o capitalismo não apenas mata gente, coloca fim à existência, mas que ele também produz uma morte na vida quando limita um ser humano ao trabalho escravo, ao processo interminável de trabalho e consumo, ao fazer da carne e do espírito a cripta viva do capital. Esse poder de criar formas de existência, de adestrar o corpo e a mente, de criar vida e morte que Mbembe denomina de necropolítica. Em nossa interpretação, Foucault caracterizou o po- 69 der soberano como o poder de fazer morrer e deixar viver, a biopolítica como o poder de fazer viver e deixar morrer, Mbembe ao tratar de necropolítica analisa um poder que faz viver, faz morrer e que produz a morte em vida. O escravizado nas colônias foi submetido a uma situação que consistia numa forma de morte em vida. Como instrumento de trabalho, o escravo tem um preço. Como propriedade tem um valor. Seu trabalho responde a uma necessidade e é utilizado. O escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em ‘estado de injúria, em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos. (Mbembe, 2020, p. 28). O estado de injúria está fundado no tratamento violento, cruel e humilhante destinado aos escravizados. O mundo parece ser espectral na medida em que estas pessoas foram reduzidas a ferramenta de trabalho, a instrumento de produção, foram tratados como se não tivessem alma, razão, afetos e cultura. No entanto, mesmo diante de tamanha brutalidade, dominação e espoliação, os escravizados foram capazes de afirmar sua humanidade por diversas formas de resistência e pela criação de cultura. Mbembe ao tratar dessa morte em vida que marcou a existência dos escravizados indica a tripla perda sofrida por eles: perda de um lar (de seu lugar de origem e de qualquer lugar que pudesse abrigá-lo), a perda de direito sobre seu corpo (uma vez que era coisificado, reduzido a uma ferramenta de trabalho) e a perda do estatuto político, o que diziam, pensavam, a sua visão de mundo e opinião não eram consideradas como importantes. Era uma vida marcada pela morte por carecer de mundo, direitos e participação política. Isso coincide com a expulsão da humanidade, o nascimento e a morte dos escravizados não possuíam sig- 70 nificado social ou importância dentro de uma comunidade. Ao discutir sobre a vida daqueles que foram racializados nas colônias, Mbembe sustenta que não é possível compreender o capitalismo e a biopolítica sem analisar a colonização e o sistema social e de produção imposto pelos europeus em territórios estrangeiros. “Qualquer relato do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica” (Mbembe, 2020, p. 27). Segundo o autor, o racismo é central na política de morte, ele faz a divisão entre os vivos e os mortos, é uma tecnologia que permite transgredir a proibição de matar. O filósofo também aponta que além de um racismo ligado à cor da pele e culturas não europeias, também existe um racismo de classe, ou seja, negros, indígenas, pobres e trabalhadores são vistos como selvagens. A tradição do pensamento europeu considera que o sujeito racional é aquele que se afasta do animal e da natureza, que possuem organização social e cultura semelhante às classes abastadas europeias. Nesta perspectiva, os pobres seriam humanos animalizados e os racializados seriam completamente selvagens. Aqueles que não pertencem inteiramente ao mundo humano europeu não podem gozar de controles e garantias judiciais. Por este raciocínio, as classes trabalhadoras acabam por ter menos direitos e os colonizados não precisam ter qualquer direito garantido. Em outras palavras, algumas classes e povos podem viver parcialmente ou inteiramente em estado de exceção. No caso das colônias, elas podem ser governadas sem lei e direitos uma vez que nenhum vínculo humano e comum é reconhecido entre conquistadores europeus – ou melhor, invasores europeus – e nativos. Negros e indígenas por 71 serem entendidos como semelhantes a animais selvagens poderiam ser violentados, agredidos e mortos pelos brancos sem que estes pensassem estar cometendo algum crime. As ações violentas cometidas contra classes trabalhadoras e colonizados, além de não serem entendidas como criminosas, ainda são consideradas como forma de proteção dos brancos. A mentalidade da branquitude não sabe lidar pacificamente com a alteridade, o outro visto como perigoso, como ameaça mortal. Nesse sentido, a eliminação do outro reforça a segurança e o potencial de vida dos brancos e abastados. Quando Mbembe discute sobre necropolítica não trata apenas do fazer viver e fazer viver produzido pelo poder soberano, pelo Estado. Ele também mostra que é dada a liberdade para algumas pessoas usarem seus próprios critérios para definir quando e quem se pode matar. Em nome da segurança um agente da polícia ou um cidadão pode matar outra pessoa sumariamente. Vemos isso cotidianamente, chacinas, execuções, agressões, torturas e mortes por “combate à criminalidade”, “legítima defesa”, “defesa da honra ou da moralidade”, “auto de resistência” toda uma gama de violências que são legitimadas por não serem consideradas criminosas e seus autores não serem condenados. Ainda, o filósofo não trata apenas da colonização das Américas e do imperialismo. Ele identifica o funcionamento da necropolítica na contemporaneidade, dando como principal exemplo as ações do Estado de Israel contra os palestinos. Levando isso em consideração, vemos que a temporalidade de destruição caminha junto com o capitalismo e a modernidade. Se atualiza e se modifica, mas de uma forma ou de outra sempre engendra destruição da natureza, da cultura e de pessoas. 72 Capitalismo, destruição e controle das mulheres Silvia Federici, assim como Mbembe, identifica uma mudança importante no poder e na ideologia a partir da crise populacional e social gerada pela Peste Negra. A autora, contudo, foca na questão das mulheres. De acordo com ela, as mulheres na Idade Média buscavam controlar sua função reprodutiva: existem numerosas referências ao aborto ou contraceptivos, poções para esterilidade (chamadas de maleficia). Para Federici (2017, p. 84): “Na Alta idade Média, a Igreja ainda via estas práticas com certa indulgência, impulsionada pelo reconhecimento de que por razões econômicas, as mulheres podiam estabelecer um limite para suas gestações”. A Peste Negra mudou isso drasticamente em razão da crise demográfica que produziu: mais de um terço da população europeia morreu entre 1347 e 1352 (menos de uma década). Nesse contexto, o controle das mulheres sobre sua função reprodutiva começou a ser entendido como um risco para ordem social e econômica. “As hierarquias sociais foram viradas de cabeça para baixo, devido ao efeito nivelador da mortandade generalizada” (Federici, 2017, p. 96). A autora explica que diante da possibilidade repentina de morte as pessoas colocaram em questionamento regulações sociais, sexuais e de trabalho. Ainda, a crise demográfica provocada pela Peste Negra gerou uma crise de acumulação pois tornou a mão de obra escassa. Com pouco trabalhadores, os empregadores pagavam mais pelos serviços prestados, tinham que aceitar as condições de trabalho exigidas pelos trabalhadores. Ou seja, a luta dos trabalhadores se fortaleceu uma vez que não havia trabalhadores sobrando, desempregados 73 ou passando necessidade. Nesse período foram registrados aumentos de greves de inquilinos, aldeias organizadas exigindo que multas, impostos e talhas fossem diminuídos ou extintos, ameaça de êxodo em massa para outras terras ou para a cidade. Isso acabou com o sistema de servidão na Europa, elevou o nível de vida do campesinato e dos trabalhadores urbanos e diminui bastante a diferença de renda masculina e feminina:7 Na baixa Idade Média, ante a crise de acumulação que se prolongou por mais de um século, a economia feudal estava condenada. Entre 1350 e 1500 houve uma mudança muito importante na relação de poder entre trabalhadores e mestres. O salário real cresceu em torno de 100%, os preços caíram por volta de 33%, os aluguéis também caíram, a jornada de trabalho diminuiu e surgiu uma tendência à autossuficiência local (Federici, 2017, p. 115). Diante disto, a classe dominante se viu ameaçada e, segundo Federici, respondeu à crise do fim da Idade Média com a escravização de povos africanos, a degradação e controle sexual das mulheres no período entre 1450 e 1650 e a expropriação de terras dos camponeses e povos ameríndios. Mbembe mostra bem como a reação da classe dominante a este quadro veio torna o corpo das e dos africanos escravizados mercadoria e instrumento de trabalho. Já Federici (2017, p. 104 e 105) aponta a degradação das mulheres como estratégia para dividir a classe operária na Europa por meio de uma política sexual fragmentadora: 7 Conferir sobre a relação entre crise demográfica e fortalecimento das lutas dos trabalhadores e melhoria do nível de vida da população no campo e nas cidades em Federici, 2017, p. 96, 97 e 102. 74 uma série de leis foram feitas para degradar as mulheres, tais como a legalização do estupro e a prostituição gerida pelo Estado.8 A degradação feminina e a fragmentação da classe dominada eram estratégias para enfraquecer as lutas camponesas e urbanas. Além disso, se buscou um controle sobre o corpo feminino e a capacidade reprodutiva. Como já foi mencionado, durante a Idade Média as mulheres conheciam muitos métodos contraceptivos (poções e pessários – supositórios vaginais) que poderiam estimular a menstruação, provocar aborto, ou criar uma condição de esterilidade. A criminalização da contracepção que começou após a crise demográfica tirou este saber das mulheres. Aqui, quero apenas ressaltar que, ao negar às mulheres o controle sobre seus corpos, o Estado privou-as da condição fundamental de sua integridade física e psicológica, degradando a maternidade à condição de trabalho forçado, além de confinar as mulheres à atividade reprodutiva de um modo desconhecido por sociedades anteriores (Federici, 2017, p. 181). Dito de maneira direta, as mulheres foram forçadas a produzir filhas e filhos para o Estado. Na lógica mercantilista, a qual emergiu no século XV, uma população numerosa significava geração de riqueza e de poder para o Estado. Esta lógica entendia que a grande oferta de trabalhadores faria cair o preço da mão de obra e aumentar o acúmulo de riqueza para a classe mercantil e para os Estados nacionais. Nessa perspectiva forçar as mulheres a produzir mais mão de obra se tornou uma questão de Estado e de mercado. 8 A autora cita que governos de cidades criaram e mantiveram casas de prostituição. 75 Outra medida para baratear a mão de obra foi a desvalorização simbólica e material do trabalho feminino, confinando as mulheres a um trabalho sem remuneração ou mal pago. As mulheres perderam espaço em profissões que tradicionalmente haviam ocupado como a fabricação de cervejas e a realização de partos, elas ficaram restritas ao trabalho doméstico, rural, de fiandeiras, bordadeiras ou amas de leite. Embora tais funções sejam vitais para a economia, elas não eram reconhecidas como dignas de valor. Federici mostra que essa desvalorização do trabalho feminino não foi natural, foi uma política de Estado: os governos das cidades, por exemplo, ordenaram que as guildas ignorassem os trabalhos que as mulheres realizavam em casa.9 Rapidamente as mulheres, sem acesso à terra e com seu trabalho ignorado, passaram a ter o casamento e ou a prostituição como carreira. Uma vez que o salário feminino não era o suficiente para que as mulheres se sustentassem, elas tinham que se submeter aos homens ou como esposas ou como prostitutas (Federici, 2017, p. 183 e 184). Nas palavras da autora, “Tal política que impossibilitava que as mulheres tivessem seu próprio dinheiro, criou condições materiais para sua sujeição aos homens e para a apropriação de seu trabalho por parte dos trabalhadores homens. É nesse sentido que eu falo do patriarcado do salário” (Federici, 2017, p. 195). 9 Federici critica Marx pois afirma que os livros de O Capital não levaram em consideração o papel do trabalho doméstico e escravo para a formação e a sustentação do capitalismo. Muitos dos bens consumidos na Europa do século XV em diante foram produzidos por trabalho escravo – açúcar, café, algodão, metais preciosos etc. As mulheres que trabalhavam em casa foram consideradas como pessoas que estavam fora das relações capitalistas por não serem assalariadas. Federici mostra, contudo, que o trabalho doméstico produziu e continua a produzir força de trabalho: não só coloca no mundo novos operários como garante os cuidados com a alimentação, limpeza e moradia os quais necessários para que o trabalho remunerado seja realizado. 76 Antes desta emergência do mercantilismo, as mulheres tinham acesso a terra e, por esta razão, desfrutavam de mais independência. Elas não precisavam dos homens para conseguir o mínimo para sua sobrevivência. Com o cercamento e a privatização de campos abertos e terras comunais, as mulheres passaram a ter dificuldades materiais e os homens eram forçados a trabalhar por comida e salário. Cercamentos e privatização consistiu num conjunto de estratégias para eliminar o uso comum da terra e expandir as posses de propriedade da nobreza e da burguesia (Federici, 2017, p. 133).10 Esta estratégia se iniciou nas Américas no século XV e na Europa no século XVI (Federici, 2017, p. 130 e 133). A perda do acesso à terra significou ficar a mercê dos dominantes, pois as pessoas não podiam mais produzir o necessário para sobreviver. Também significou a perda da cooperação e da solidariedade que o uso comum das terras estimulava (Federici, 2017, p. 138 e 139). O resultado disso foi que o trabalho agrícola coletivo foi destruído para forçar aos contratos individuais de trabalho. Ainda, isso provocou uma decomposição de laços sociais de solidariedade e desenraizamento. As mulheres que tinham mais dificuldade de serem proprietárias de terra foram as que mais sofreram com o cercamento, por isso elas lutaram contra esta estratégia. Sabemos que este processo de cercamento e privatização foi violento, implicou expulsar as pessoas de seus territórios, privá-las dos seus meios tradicionais de subsistência, reprimir revoltas e lutas ameríndia e camponesas, isto é, 10 Com os cercamentos os camponeses e camponesas europeus perderam acesso aos campos abertos, onde o trabalho agrícola coletivo dava autonomia e segurança alimentar a eles, e também perderam as terras comunais, onde se fazia extrativismo e festas. 77 prender, torturar e matar gente. A caça às bruxas foi um dos meios usados para reprimir revoltas, uma vez que a acusação, tortura e queima de “bruxas” foi maior em regiões que a resistência à expropriação de terras foi mais intensa. Mais uma vez vemos que a acumulação desde o início do capitalismo vem acompanhada de violência e destruição. Federici (2017, p. 326) sustenta que a caça as bruxas, além de ser um modo de repressão em regiões onde havia resistência camponesa aos cercamentos ou revoltas urbanas contra as condições de trabalho, também foi uma criminalização do controle de natalidade para colocar o corpo feminino – o útero – a serviço do Estado e do capital – e para acumular força de trabalho. De acordo com a autora (Federici, 2017, p. 334), o efeito da caça às bruxas foi a destruição do direito das mulheres ao controle de seu próprio corpo e da natalidade “[...] foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade”. Em resumo, foi o terror e a violação que forçaram às mulheres ao trabalho reprodutivo e à submissão aos homens. A desvalorização do trabalho das mulheres somada com a alienação do corpo (o corpo feminino governado pelo Estado, pela Igreja e pelos homens) e a caça às bruxas produziu a figura da dona de casa – trabalhadoras não assalariadas do lar, dependentes e submissas. Na perspectiva de Federici, a família burguesa emergiu no período de acumulação primitiva e foi responsável pela apropriação e ocultamento do trabalho das mulheres. E, para autora, por mais que as lutas feministas tenham avançado, a degradação feminina e a apropriação de corpos persistem. Numa entrevista de 2019 ela declarou: 78 Nós somos as fábricas de trabalhadores. Da comida às roupas e o trabalho emocional. E o sexo também é parte do trabalho doméstico. Não importa o quão cansada esteja, se é casada e seu marido quer fazer sexo, muitas de nós faremos sexo. Se dissermos não, muitas vezes eles nos obrigam. [...] O sexo é parte do trabalho, ele se torna uma tarefa. Dar prazer ao homem, fazê-lo feliz. O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago” (entrevista de Silvia Federici no site: https:// www.geledes.org.br/o-que-eles-chamam-de-amor-nos-chamamos-de-trabalho-nao-pago-diz-silvia-federici/) E esta degradação e apropriação do corpo das mulheres não foi imposta somente na Europa, foi espalhada pelo mundo durante a colonização e o imperialismo. “Enquanto a resposta à crise populacional na Europa foi a subjugação das mulheres à reprodução, na América, onde a colonização destruiu 95% da população nativa, a resposta foi o tráfico de escravos, capaz de prover à classe dominante europeia uma quantidade imensa de mão de obra” (Federici, 2017, p. 206). Os europeus provocaram uma crise demográfica também nas Américas, que alguns autores chamam de holocausto americano: a violência usada na colonização e as doenças que os colonizadores levaram ao novo mundo reduziu brutalmente a população originária na América do Sul que chegou a perder de 90 a 95% de sua população (Federici, 2017, p. 167). O extermínio de povos originários das Américas e a escravização de povos africanos foi lucrativo. De acordo com Federici, o sistema escravocrata, a plantation e a extração de metais preciosos nas Américas alimentaram a Revolução Industrial. Para o capitalismo, o sangue e o suor 79 que fluíram das plantations foram essenciais. A acumulação primitiva foi um processo de colonização, cercamento de terras e apropriação dos corpos femininos, africanos e ameríndios em grande escala (Federici, 2017, p. 207). A apropriação de corpos nas colônias não foi feita do mesmo modo para homens e mulheres, isto é, a colonização mesclou racismo e misoginia. As mulheres escravizadas além de instrumentos de trabalho eram também produtoras de trabalhadores escravizados: seus corpos foram forçados a funcionar como máquina para a reprodução e acumulação (Federici, 2017, p. 34). Federici mostra que a caça às bruxas foi levada para o novo mundo. A acusação de adoração ao demônio permitiu o extermínio em massa de populações inteiras e foi vastamente usada como pretexto para acabar com as resistências locais ao domínio colonial e ao trabalho escravo. Nesse contexto, houve um intercâmbio entre a ideologia da bruxaria e a ideologia racista: cultos, ritos e crenças africanas e indígenas foram etiquetadas como demoníacas e, a partir daí, o diabo passou a ser representado com pele negra. Este intercâmbio possibilitou técnicas de imposição religiosa e culturais europeias às culturas africanas e ameríndias. A autora enfatiza que a escravização, a violência e o assassinato em massa foram justificados por modelos “etnográficos” pejorativos tais como o do canibal, do infiel, do bárbaro e dos adoradores do diabo (Federici, 2017, p. 383). Segundo a autora (Federici, 2017, p. 37), o capitalismo precisa difamar a “natureza” daqueles que são explorados: indígenas, negros, mulheres, pobres, imigrantes deslocados pela globalização. Assim, faz com que as condições de vulnerabilidade e de sofrimento impostos a estes grupos humanos apareça como característica natural e intrínseca destas 80 pessoas, como se elas fossem as responsáveis pela situação degradante e sofrida em que estão. Ainda, ao difamar certos grupos o capitalismo produz uma fragmentação dentro da classe trabalhadora. Aqui vale lembrar que La Boétie (1577) mostra que quem tiraniza só pode ser forte na medida em que outras pessoas lhe emprestam sua inteligência, braços, pernas, olhos, ouvidos e bocas. Em outras palavras, o tirano parece ser extraordinário e poderoso por contar com a força corporal e mental de outros. O autor também afirma que quem sustenta o tirano, retira proveito da tirania, se associa ao dominador para obter privilégios. Articulando o pensamento de La Boétie com o de Federici podemos concluir que o capitalismo ao criar políticas de fragmentação sexual e racial, confere privilégios aos trabalhadores brancos e classes médias que em troca emprestam sua força corporal e mental à classe dominante. Desse modo, um grupo da classe trabalhadora – as classes médias e brancas – ganha uma parte do espólio que a classe burguesa adquire com a exploração e a dominação: salários maiores, capacidade de consumo e alguns privilégios. Além disso, possuem também poder sobre mulheres, negros, asiáticos, africanos e ameríndios, podendo sujeitá-los ao seu arbítrio. Com isso, emprestam olhos, ouvidos, inteligência e força corporal à classe dominante e ajudam a manter o sistema capitalista em pé. A exploração sofrida pelas classes médias e brancos se torna mais suave e doce, por obter certa satisfação por meio do consumo e por viver mais na temporalidade da ordem do que na de exceção: conseguem ter mais acesso ao progresso e escapar mais da destruição. Levando em consideração o estudo rigoroso e potente de Silvia Federici, podemos compreender que racismo e misoginia constituíram a resposta para uma crise demográ- 81 fica e econômica que surgiu na baixa Idade Média após a Peste Negra. Esta resposta gerou riquezas para os Estados nacionais europeus e para a classe mercantil, colocando a violência e a degradação de mulheres, pessoas africanas e ameríndias em favor da acumulação de capital. Ainda, tomando como base o estudo da autora podemos concluir que a temporalidade de destruição só pode ser estabelecida com a apropriação dos corpos femininos e da função reprodutiva. Em outras palavras, só se pode matar e destruir gente quando se tem o controle da reprodução de seres humanos. Federici (2017, p. 170), afirma que o surgimento da biopolítica ocorreu com o início do capitalismo. Em suas palavras: o que coloco em discussão é que tenha sido a crise populacional dos séculos XVI e XVII, e não a fome na Europa durante o século XVIII (tal como defendido por Foucault), que transformou a reprodução e o crescimento populacional em assuntos do Estado e objetos dos principais discursos intelectuais. Sustento, ademais, que a intensificação da perseguição às ‘bruxas’ e os novos métodos disciplinares que o Estado adotou nesse período, com a finalidade de regular a procriação e quebrar o controle das mulheres sobre a reprodução, têm também origem nessa crise.11 Conforme foi mencionado acima, no mercantilismo a riqueza de uma nação estava ligada ao número de sua população, nesse sentido, o estímulo à reprodução humana, a 11 Federici (2017, p. 19) critica Foucault pois, para ela, em seu estudo sobre técnicas de poder e disciplina do corpo o autor ignorou o controle reprodutivo e o disciplinamento dos corpos das mulheres. 82 proibição de aborto e de métodos contraceptivos foi uma política estatal que fez parte da implementação do capitalismo. Esta perseguição das mulheres demonizou e puniu qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade não reprodutiva – incluindo as práticas homoafetivas (Federici, 2017, p. 174). A biopolítica, isto é, a administração e promoção das forças vitais, precisa estimular a produtividade de uma população, contabilizar e gerir o número de nascimentos e mortes. Para tanto é fundamental o biopoder disciplinar os corpos dos trabalhadores para que produzam e também regular a sexualidade, principalmente sujeitando os corpos femininos, a função reprodutiva, as técnicas e saberes de aborto, contracepção, gestação e parto. Federici mostra como o saber e controle destas técnicas foi extraída a força das mulheres e passou para o Estado, a Igreja e os homens brancos – maridos, pais e senhores de escravizados. Além de não ser possível um biopoder sem controle dos corpos femininos e da sua capacidade de reprodução, também não é possível a necropolítica e a temporalidade da destruição sem o controle reprodutivo: só se poder fazer uma política de morte quando se produz excedente de pessoas. Nas palavras de Federici (2017, p. 35), “[...] a promoção do crescimento populacional por parte do Estado pode andar de mãos dadas com uma destruição massiva de vidas”. Ao relacionar o pensamento de Federici e Mbembe podemos compreender que tanto o discurso civilizatório europeu quanto o discurso antiaborto e contrário ao uso de contraceptivos buscaram esconder a exploração brutal de pessoas racializadas e a necropolítica em favor da acumulação. Tais discursos visam a produzir uma ideia de temporalidade da ordem, em que a colonização parece levar o 83 progresso a outros povos e a apropriação dos saberes reprodutivos e corpos femininos parece ser uma questão moral de defesa da vida. Isso porque a história escrita de um ponto de vista universal, abstrato e assexuado é na verdade uma história escrita por homens brancos, europeus que focam no progresso do capitalismo uma vez que eles são os que mais se beneficiam desta ordem econômica e social. Já as histórias escritas do ponto de vista dos africanos, indígenas e mulheres são capazes de revelar a violência, a violação e a exceção. São estas as histórias que apontam a articulação entre o progresso no sentido capitalista e a destruição. Federici (2017, p. 44) é enfática ao afirmar que o capitalismo não foi consequência de um movimento evolutivo, da superação das relações feudais que seriam piores e mais cruéis que as capitalistas. Para a autora, o capitalismo foi a resposta dos senhores feudais, mercadores, do alto clero e de governantes a um conflito social e econômico, foi o modo de minar a luta campesina e da cidade por melhores condições de vida e por autonomia e liberdade. “As lutas sociais da Idade Média também devem ser lembradas porque escreveram um novo capítulo na história da libertação. Em seu melhor momento, exigiram uma ordem social igualitária baseada na riqueza compartilhada e na recusa a hierarquias e ao autoritarismo” (Federici, 2017, p. 45). A autora ao refletir sobre a emergência do capitalismo critica Marx por compreender o capitalismo com produto de progresso histórico e por não levar em consideração a apropriação dos corpos femininos e racializados. Para falar de maneira resumida, Federici (2017, p. 119) afirma que: i. A expropriação dos meios de subsistência dos trabalhadores europeus, e a escravização dos povos originários da América e da África nas minas e nas 84 plantações do Novo Mundo não foram os únicos meios pelos quais um proletariado mundial foi formado e ‘acumulado’; ii. este processo demandou a transformação do corpo em uma máquina de trabalho e a sujeição das mulheres para a reprodução da força de trabalho. Principalmente, exigiu a destruição do poder das mulheres, que, tanto na Europa como na América, foi alcançada por meio do extermínio das ‘bruxas’; iii. A acumulação primitiva não foi, então, simplesmente uma acumulação e uma concentração de trabalhadores exploráveis de capital. Foi também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que as hierarquias constituídas sobre o gênero, assim como sobre a raça e a idade, se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado. Desse modo, para a autora, o capitalismo instaurou formas de dominação mais brutais e traiçoeiras, pois intensificaram e ocultaram a exploração e a violência. Este uso da violência e da política de fragmentação de classe por meio de criação de hierarquias de gênero e de raça não foi mobilizado somente no início do capitalismo, pois para haver acumulação é preciso recorrer constantemente à violência, à violação, ao racismo e ao sexismo. Nesse sentido, não existe progresso, pois a exploração e a devastação de vidas seguem ocorrendo em todos os cantos do mundo. Segundo Federici, (2017, p. 27): Marx acreditava que o desenvolvimento do capitalista acabava com a propriedade em pequena esca- 85 la e incrementava (até um grau não alcançado por nenhum outro sistema econômico) a capacidade produtiva do trabalho criando condições materiais para libertar a humanidade da escassez e da necessidade. Também supunha que a violência que havia dominado as primeiras fases da expansão capitalista retrocederia com a maturação das relações capitalistas; a partir desse momento, a exploração e o disciplinamento do trabalho seriam alcançados fundamentalmente por meio do funcionamento das leis econômicas. Nisso, estava profundamente equivocado. cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que mostra que a contínua expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época. Considerações finais: temporalidade de destruição Levando em conta o que mostramos até aqui vemos que o par produção/destruição envolve diversos aspectos e, além de criar espaços de exceção – em que não há progresso, mas violação da natureza, de culturas e pessoas -, também gera uma temporalidade de exceção. A destruição de recursos naturais para produção de mercadoria gera áreas devastadas, onde as águas, solos e vegetação foram devastados predatoriamente. Nestas áreas encontramos também dificuldade de sobrevivência: a alimentação e a moradia se tornam precárias, isso atinge não só a vida biológica, ataca também a cultura local. dado que as práticas e manifestações culturais tornam-se inviáveis. Essa situação expõe como o capitalismo não apenas precariza o presente e impede o fu- 86 turo, também o passado vai sendo apagado e são os povos tradicionais que sempre em maior grau são afetados. Não faltam exemplos deste tipo de destruição. Terras indígenas invadidas por madeireiras, mineradoras ou agronegócio, como ocorreu na Amazônia brasileira. Locais onde existe extração de petróleo, como o delta do rio Niger. Barragens para construção de hidroelétricas (por exemplo, Belo Monte) ou barragens com detritos de extração de minérios (vale lembrar do rompimento da barragem da Samarco em Mariana). Nestes territórios o modo de vida tradicional foi arrasado. A população nativa quando não tem de mudar de casa e de ocupação, fica exposta à contaminação de água, solo ou ar, e geralmente tem sua cultura afetada. Isso porque a cultura não é construída e experienciada de forma abstrata, fora de um território e sem atribuir significado a coisas naturais, como rios, montanhas, animais etc. Nessa perspectiva, a destruição da natureza implica exposição de certas populações à poluição e contaminação que não só afetam sua saúde, mas a vida como um todo, incluindo hábitos, cultura e tradições. Geralmente, populações nativas não se beneficiam com os lucros e produtos provenientes da destruição de seu território original. Eles ficam mais expostos à destruição. Nesse contexto, o passado se torna irrepetível: não é possível voltar a ocupar o mesmo espaço do mesmo modo, não é possível ter o modo de vida tradicional. O presente se torna um viver entre ruínas, uma busca de sobreviver em outro território ou em terra arrasada. O presente é luto: estar enlutado pelo que foi violentado e aniquilado, lutar pela sobrevivência num ambiente em que se tem risco de sofrer violência, ser contaminado, em que alimentação, moradia e a cultura se tornam precárias, sempre ameaçadas. A ex- 87 pectativa de futuro é continuar em luto, esforçando-se para sobreviver em meio a ruína e à destruição que segue o curso do progresso. Resistir a mais violência e destruição. Vimos que a categoria de raça divide a humanidade entre os brancos que são superiores e os outros grupos humanos que devem ser controlados ou eliminados. Mostramos também que o termo negro transformou seres humanos em mercadoria de modo que não só a força de trabalho fosse explorada, mas o corpo, a alma e a vida como um todo. O negro é produzido socialmente pelo maquinário capitalista o qual nega a razão, os afetos humanos dos que são denominados negros. Seus corpos e mentes são violados incessantemente para sujeitá-los. Mbembe nos indica que, desde o surgimento do mercantilismo, o passado significa para os racializados sujeição, degradação e humilhação, mas também resistência e superação. A narrativa histórica do progresso busca ocultar as lutas e os grandes feitos dos negros. Isto é ao mesmo tempo um modo de afetar sua consciência, degradar sua existência e esconder a exceção que surgiu junto com a ordem capitalista. Em outras palavras, a história que tenta apagar os pares civilização e degradação do negro, liberdade liberal e escravidão, expansão e invasão, sujeição e superação visa a tornar a violência sutil ao nomeá-la de obra civilizatória e humanitária, ainda, procura apagar os exemplos de resistências e os feitos e ações que apontam para alternativas ao modelo social capitalista. Assim, o passado ao invés de ser um tempo vergonhoso para os que se nomeiam brancos, torna-se glorioso para os europeus e os que se entendem como seus descendentes, ao contrário, torna-se humilhante para as outras “raças”. As culturas, corpos, mentes e vidas violadas no passado são transformados em um amontoado de escombros inútil. Pois 88 a história branca do progresso não deixa abertura na consciência social para a reparação, para que dos escombros se construa algo novo, para que das resistências do passado, das culturas e das vidas perdidas seja possível extrair inspiração para agir no presente e buscar outros modos de vida e outros arranjos sociais. Walter Benjamin já tratava disso ao afirmar que na concepção de história do progresso nem os mortos estão salvos. Para ele, é preciso encontrar um modo de ver o passado que seja capaz de acordar os mortos e juntar os fragmentos, somente assim será possível abrir novas perspectivas para o futuro. O autor afirma que isso só pode ser feito quando citamos o passado. A citação consiste em selecionar um pedaço de um todo, isto é, separar algo de seu contexto. Em outras palavras, citar significa dissolver uma imagem fixa, contínua e completa do passado. Segundo Arendt, o olhar benjaminiano para o passado deve construir uma reflexão sobre os fragmentos que sobraram dos eventos históricos: [...] esse pensar sonda as profundezas do passado – mas não para ressuscitá-lo tal como era e contribuir para a renovação de eras extintas. O que guia esse pensar é a convicção de que, embora o vivo esteja sujeito à ruína do tempo, o processo de decadência é ao mesmo tempo um processo de cristalização, que nas profundezas do mar, onde afunda e se dissolve aquilo que outrora era vivo, algumas coisas sofrem uma ‘transformação marinha’ e sobrevivem em novas formas e contornos cristalizados que se mantêm imunes aos elementos, como se apenas esperassem o pescador de pérolas que um dia descerá até elas e as trará ao mundo dos vivos – como ‘fragmentos de pensamentos’, como algo ‘rico e estranho’ [...] (Arendt, 1987, p. 176). 89 Estas pérolas e corais não revelam o passado enquanto tal, uma vez que sofreram uma transformação marinha. Em nossa perspectiva esta transformação está ligada ao processo de acumulação e destruição. Os modos de vida, culturas e feitos que foram violados para que o capitalismo pudesse se instalar e se manter foram quebrados e jogados ao mar como resíduos de algo sem valor, lixo. Portanto, não poderiam ser recuperados intactos, mas apenas como fragmentos valiosos os quais podem ser reparados. O que os que vivem na temporalidade de progresso chamam de passado inferior e atrasado, as pessoas que vivem na temporalidade da destruição chamam de ruínas. Aqueles que lutam e resistem buscam pérolas e corais dentro das ruínas por entenderem que há algo de valor ali que pode iluminar o presente, ser reparado e abrir novas perspectivas para o futuro. Para exemplificar, aqueles que citam os casos de rebelião de escravizados e de quilombos, que mantém vivos a capoeira, o samba, a umbanda e o candomblé pescam pérolas e não deixam nas ruínas as táticas de resistência e luta dos afro-americanos no Brasil. Ao contrário, quem entende que o passado é um amontoado de escombros inútil do qual não se pode tirar nenhuma pérola, defende a história do progresso e do avanço da civilização, atualiza a sujeição e a humilhação para grupos humanos racializados, contribui para que o presente se torne o prolongamento do processo de acumulação e destruição, uma contínua degradação e exploração humana para produzir mais riqueza. Além da criação da categoria de raça e da degradação de pessoas racializadas, vimos que o capitalismo também engendrou a degradação, o controle das mulheres e da função reprodutiva quando a questão demográfica se tor- 90 nou importante para a acumulação de capital. O Estado e a Igreja passaram a controlar o útero e a sexualidade. Ainda, as mulheres na Europa foram confinadas no trabalho sem remuneração, isto é, a figura da dona de casa obediente se tornou o modelo de mulher branca. Já as mulheres negras e ameríndias tiveram seu corpo apropriado como instrumento de trabalho e como produtoras de trabalhadores escravizados. A figura da bruxa demoníaca, que deveria sofrer castigos severos e ou morte foi destinada às mulheres que buscaram resistir à degradação e à exploração. A diferenciação entre mulheres brancas e racializadas fez com que surgisse um paradoxo na divisão entre trabalho reprodutivo doméstico e trabalho remunerado. O trabalho doméstico para mulheres brancas significou exclusão do espaço público, de fontes de renda, de independência e degradação. Já para mulheres racializadas e escravizadas ocorria o contrário: enquanto o trabalho produtivo significava desumanização e degradação, pois visava ao benefício do senhor e era extraído por meio de violência física e simbólica, o trabalho doméstico era a atividade que permitia a recuperação da humanidade, era o trabalho que fazia sentido por estar voltado à vida dos escravizados (Davis, 2016, p. 6 e 7). Levando isso em consideração, vemos que enquanto para as mulheres classificadas como brancas foram degradadas ao serem confinadas ao trabalho reprodutivo e ao espaço doméstico, de modo que sofriam com isolamento, pois não podiam ter laços sociais e políticos e ficaram presas dentro de um tempo cíclico característico das tarefas repetitivas do ciclo vital; as mulheres que foram racializadas podiam escapar da destruição nas atividades que não eram produtivas: estas que preservavam sua vida e sua cultura, isto é, as atividades reprodutivas eram uma maneira de re- 91 sistir à degradação. As mulheres brancas, assim, não tinham uma percepção temporal que permitia uma diferenciação entre passado, presente e futuro, a temporalidade é repetitiva como as tarefas domésticas e o isolamento encurtavam extremamente o espaço de experiência e o horizonte de expectativas. A resistência destas mulheres e a possibilidade de acessar outra temporalidade se dava sempre que elas ousassem sair do espaço doméstico e constituir outras relações para além dos familiares. Com isso se abria um novo horizonte de expectativas e se descobria que a figura da dona de casa recatada e obediente foi forjada com violência e que os grandes feitos de mulheres do passado poderiam inspirar ações no presente. As mulheres negras e indígenas escravizadas ou obrigadas a uma condição servil, quanto tinham de fazer o trabalho produtivo eram tratadas como mercadoria e instrumento de trabalho, numa temporalidade em que corpo e mente se desgastam pela humilhação e violação der serem degradas a coisas. Enquanto faziam o trabalho produtivo exaustivo e degradante são jogadas numa temporalidade da deterioração, em que cada dia os senhores sugam mais de sua força vital para acumular riquezas e uma suposta superioridade. Cada dia os corpos e mentes de escravizados eram deteriorados de modo que passado e presente são sentidos como aviltamento e esgotamento e a expectativa do futuro era de morte precoce e indigna. Enquanto faziam o trabalho reprodutivo, em geral, coletivamente em senzalas, cuidavam da vida, resistiam ao criar músicas, cultivar ritos, crenças e saberes, e ao planejarem e executarem levantes, sabotagens e fugas. Nestes momentos se preservava, mesmo que precariamente, traços dos modos de vida e da cultura do passado e abria-se novo horizontes para um futuro an- 92 tiescravagista e antirracista. Para atualizar essa discussão é preciso dizer que hoje a sociedade ocidental não defende mais a escravidão, no entanto, os trabalhos mais mal pagos, exaustivos e insalubres são destinados a mulheres e homens negros de modo que uma das heranças da escravidão e do racismo é a extrema exploração e degradação impostas a pessoas racializadas. O maior exemplo disso é o desrespeito e a precarização sofrido pelas empregadas domésticas. Estas trabalhadoras provavelmente encontram mais dignidade em casa do que no trabalho. Esta situação das mulheres fica mais complexa quando pensamos que o trabalho reprodutivo de gerar filhos e filhas para o Estado e para o mercado está atrelado a uma política de morte. Corpos que são obrigados a carregar nova vidas num maquinário social que produz morte. Principalmente problemático para as mães de crianças e jovens negros, indígenas e ou pobres. Crianças e jovens mais expostos à violência e à morte por fome, doenças e assassinato. Mulheres além de terem dificuldade de escapar ao controle de seu corpo e útero – as mulheres que procuram métodos contraceptivos definitivos, abortivos e as que têm práticas sexuais homoafetivas são as que sentem mais isso – ainda, as que se tornam mães têm dificuldade de se desvencilhar da temporalidade da destruição. É corriqueiro os movimentos de mulheres serem atacados pela defesa de acesso a métodos contraceptivos e abortivos, dizem que estes movimentos são contra a vida e a família. Ao mesmo tempo, os movimentos de mães que perderam seus filhos em razão da violência do Estado nas periferias e comunidades – como as mães de maio de São Paulo e as mães de Manguinhos do Rio de Janeiro – são criminalizados e aviltados. A defesa do direito à vida é usa- 93 da e jogada fora de acordo com a conveniência do Estado e do mercado. Conforme mostramos acima, a necropolítica e o necroliberalismo só pode ser colocado em prática com o controle da sexualidade em geral e dos corpos femininos em particular. O crescimento populacional e a acumulação andam junto com a destruição massiva de pessoas. Desse modo, as mulheres são forçadas a viver uma temporalidade parecida com a de Prometeu, o titã que teve seu corpo acorrentado no alto do monte Cáucaso onde todos os dias um abutre comia seu fígado, que se regenerava para sofrer o mesmo suplício no dia seguinte. As mulheres também tem correntes impostas pelo patriarcado de proteger seu próprio corpo e tem como abutre o Estado e a religião que atacam seu útero e também eventuais filhos e filhas. Nesse contexto, o passado, presente e futuro são entendidos como a exposição a um ciclo de aviltamento e violação do qual se tem dificuldade de escapar. Diante desta destruição, morte, aviltamento e violação os afetos que surgem entre as pessoas que vivem na temporalidade de destruição são tristeza, medo, desesperança, luto, humilhação e ódio. A tristeza e o luto surgem da experiência de presenciar um território, pessoas e culturas arrasadas. O medo e a desesperança, por sua vez, estão ligados à expectativa de que a destruição continue. Nesse sentido, estes afetos estão ligados com o passado de violência e aniquilação, com o presente vivido entre escombros e ruínas e com um horizonte de expectativas de mais destruição. A humilhação surge da percepção de que certos territórios e grupos humanos têm sua natureza e importância desprezadas, rebaixadas e violentadas. O ódio emerge, por um lado, como fúria dos ataques e violências sofridas, e impulsiona um desejo de atacar de volta, vingar-se no sentido de causar 94 o mesmo dano a outros, devolver a violência sofrida. Por outro lado, ele emerge como percepção de injustiça, de que o desprezo e a destruição de biomas, pessoas e culturas não são naturais, mas socialmente construídos. Este ódio anda junto com a indignação e leva a um desejo de vingar no sentido de resistir e escapar da temporalidade de destruição. Nesta perspectiva, embora o espaço de experiência seja de destruição, abre-se um horizonte de expectativa em que seja possível viver outra temporalidade individualmente ou coletivamente. Levando isso em consideração, notamos algumas maneiras de lidar com os afetos e com a relação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa. Uma é de desesperança e apatia: dado que seu passado foi presenciar aniquilação, seu presente consiste em habitar entre ruínas e mortos, o futuro fatalmente será de violência e morte. A outra é de fúria e vingança, que faz uma ampliação da destruição na medida em que procura espalhar a violência e destruição para os territórios e grupos sociais que estão na temporalidade do progresso, os quais obtém ganhos e vantagens com a humilhação e violação de outros. Nesse contexto o presente é um esforço de equalização: que todos tenham que lidar com ruínas e mortos, com o medo, a tristeza e o luto. Também pode ser uma tentativa dos explorados e aviltados de obter alguma vantagem ou ganho por meios violentos, abrindo uma possibilidade de um futuro mais favorável. Por fim, um outro modo de lidar com os afetos gerados na temporalidade da destruição é ver que o ódio aponta para o injusto e que, portanto, deveria ser diferente; que a tristeza e o luto mostram algo importantíssimo que foi violado ou perdido. Este ódio e indignação têm a capacidade de impelir para a resistência entendida como perseverar a existência, 95 reparar os danos e reconstruir a partir das pérolas e corais encontrados nas ruínas. Em nossa perspectiva este último modo de lidar com a temporalidade da destruição é o mais promissor uma vez que é o esforço de fazer outros movimentos corporais e espirituais, os quais, embora marcados pela violência e aniquilação, não são determinados pelo ritmo da destruição. Mais do que isso, são estes outros movimentos que abrem um novo horizonte de expectativa e podem fazer surgir uma outra sociedade e outras temporalidades. 96 Bibliografia ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. __________. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. Em: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016. FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação. São Paulo: Editora Elefante, 2017. LA BOÈTIE, Etienne. Discurso sobre a servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982. MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 edições, 2019. 97 A Tecnologia e o tempo programável Não é inútil lembrar que o tempo da criação artística ou do pensamento também exige algo dessa ordem. Do dar tempo e paciência para que o tempo e a forma brotem a partir do informe e do indecidido. O desafio é propiciar as condições para o tempo não controlável, não programável, que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em neutralizar. Pois importa, tanto no caso do pensamento como no da criação, mas também no da loucura, guardadas as diferenças, de poder acolher o que não estamos preparados para acolher, porque este novo não pôde ser previsto nem programado, pois é da ordem do tempo em sua vinda, e não em sua antecipação. (Peter Pál Pelbart, A NAU DO TEMPO-REI, p. 36) Toda civilização é definida pela experiência que faz do tempo, uma experiência que oferece o horizonte a partir do qual torna-se compreensível o modo de pensar e o sentido do agir dessa determinada civilização. Pela mesma razão, toda passagem de civilização comporta uma mudança fundamental na intuição do tempo, pela qual o tempo pode ser pensado como esse fundo simbólico a partir do qual toda civilização se torna compreensível. (Galimberti, 2006, p. 571) As ilusões da aceleração sem referente fixo O trecho acima de Umberto Galimberti é, afinal, o mote assumido neste livro para pensarmos as temporalidades: compreender nossa “civilização” a partir dos fluxos de temporalidades ora em funcionamento, que envolvem diferentes sujeitos em diferentes locais do mundo globalizado, ainda que encontrem resistências e dissonâncias a uma temporalidade hegemônica. Esse contexto de fluxos de temporalidades na contemporaneidade opera com uma acelerada transformação das experiências de vida (em sua compreensão biológica) e de “estar no mundo”. De modo que a aceleração da técnica (Rosa, 2019, p. 189) passou a ser o principal mecanismo condicionante dos corpos, das subjetividades, das sociedades e mesmo de toda a natureza. Outro teórico a partir o qual podemos pensar as implicações da relação entre a aceleração entre e o tempo é o geógrafo Milton Santos (2013, p. 28), para quem, na verdade, as acelerações temporais que se encontram em diversos ritmos, sejam superpostas ou concomitantes. Isso porque estamos diante de uma fase em que a economia capitalista foi mundializada e impetrou a adoção de um modelo técnico único que sobrepõe, quando não silencia e apaga, as múltiplas formas de recursos naturais e humanos (Santos, 2013, p. 18). Tais considerações se aproximam de Mèszáros que também apontou que as relações de primeira ordem (relações dos homens com a natureza) e as de segunda ordem (relações sociais) se subordinavam a um tempo do capital que tem por objetivo a acumulação e expansão desse capital que encontrou na tecnologia sua grande aliada como já mostrava Marx ao tratar do conceito de mais valia relativa. 101 Embora Único e mundializado, esse modelo técnico está multiplicado em suas formas de operação e com objetivos diferentes de acordo com a região em que se encontra, o que o torna ainda mais poderoso e penetrante mesmo nas mínimas práticas e formas de subjetivação resilientes à cooptação. Vide movimentos como o de proteção à natureza e de defesa de minorias que acabam virando estratégias de marketing nas grandes corporações e slogans de campanhas políticas. Antes de compreendermos como a tecnologia estabeleceu uma relação entre os indivíduos e o tempo, diversa daquela concepção de tempo existente antes de sua exponencial transformação, devemos perceber que a modernidade, como caracteriza David Harvey, realizou uma mudança no modo como nos “localizamos” no espaço e no tempo, de modo que agora a experiência que parece prevalecer entre nós é a de um “confuso vagar de um lugar para o outro” (Harvey, 2016, p. 256). Vagar, também confirmado por Hartmut Rosa, no sentido de que “o tempo começa a perder seu caráter orientacional e unilinear, pois o conjunto de sequências e cronologias parece se dissolver progressivamente.” (Rosa, 2019, p. 199). Com o desenvolvimento da tecnologia, agente determinante dessa aceleração, não conseguimos nos relacionar com o tempo do mesmo modo como aqueles que estabeleceram as primeiras formas de medir o tempo a partir de fenômenos naturais, como o amanhecer e o entardecer, as estações e mesmo o ciclo lunar. Isso porque aqueles que estabeleceram as primeiras formas de mensurar o tempo, eram capazes de ordenar as atividades laborais, religiosas ou culturais ao ligar os sujeitos a valores e objetivos comuns, isto é, a um mundo compartilhado. 102 Hodiernamente, apesar de estarmos sincronizados a fuso horários globais, medir o tempo já não é algo que nos liga e nos referencia a um lugar no mundo, isto porque os processos de individualização levam a uma introspecção de valores e experiências. Nesse modo de mensuração contemporânea do tempo, percebemos que a tecnologia funciona mais como uma forma de gestão das atividades repetitivas e burocráticas da vida social, especialmente quando se tratam de cidades grandes e de atividades ligadas e dependentes do comércio internacional e à internet, do que como uma ferramenta que nos auxilia na construção de laços e soluções compartilhadas. Podemos observar essa gestão burocrática da vida social a partir do avanço das técnicas de iluminação artificial, quando foi possível aumentar e padronizar o tempo de trabalho, que passou não depender mais dos períodos de incidência solar, o tempo do trabalho superou o tempo natural. Isto chegou a alterar o ciclo de sono de seres humanos e animais em favor das atividades produtivas. De modo semelhante, as técnicas de controle de temperatura de ambientes fechados permitiram escapar de algumas características climáticas típicas das estações do ano, o que, além de contribuir para a padronizar as horas de trabalho diárias, também permitiu que a “produtividade” de algumas plantas deixasse de ser sazonal. Os avanços científico e da técnica também mudaram a relação cultural com o corpo e com elementos naturais – como rios, montanhas, arvores etc. – por meio de um desencantamento. As tradições religiosas, ritualísticas e culturais que, ao mesmo tempo sacralizavam corpo e elementos naturais, também interditavam algumas atividades em certos períodos ou a modificação de ciclos biológicos e naturais, foram atacadas e transformadas quan- 103 do se tornam um entrave para a acelerada acumulação de capital. Crenças, tradições e ritos só são mantidos se puderem ser absorvidos pelo tempo do capital. Essa desorientação espaço-temporal dos indivíduos é um dos resultados mais visíveis e determinantes da presença tecnológica que impactou o modo como concebemos e nos relacionamos: a aceleração das temporalidades e seu consequente encurtamento do espaço. O tempo acelerado acaba por encurtar o espaço, ou melhor, comprimi-lo. O que até pouco tempo atrás considerávamos distante e medido temporalmente em dias, como os 44 dias que a embarcação de Pedro Alvares de Cabral com sua tripulação levou em sua incursão imperialista de Portugal ao Brasil, torna-se alcançável em poucas horas com os meios de transportes contemporâneos, como as pouco mais de 9 horas de viagem de avião do Porto a São Paulo. Esse impacto no tempo em virtude dos avanços tecnológicos nos leva à impressão de que nada mais parece ser inalcançável, dado que hoje já existem tecnologias em uso que permitem “alcançar e ver” até mesmo o universo em seus primeiros momentos de desenvolvimento, isto é, seus primeiros milhões de anos. Essa aceleração modificadora da nossa compreensão do tempo e, consequentemente, do modo como compreendemos e vivenciamos o espaço nos levam a outras questões além do encurtamento espaço-temporal, dentre elas, é visível o fato de que quem nasce em meio a essa compressão do espaço-tempo, passa a ser condicionado por ela, por isso esses indivíduos tornam-se incapazes de identificar os avanços tecnológicos ou as catástrofes ambientais como eventos grandiosos e espantosos. De fato, até mesmo a magnitude dos fenômenos astronômicos parece tornar-se diminuta para quem experiência a temporalidade desde essas pri- 104 meiras décadas do século XX. Esse encurtamento espaço-temporal, entendido como normal para as novas gerações, é tratado com estranhamento por Gilberto Gil na música Parabolicamará: “Antes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo é muito grande Porque Terra é pequena Do tamanho da antena Parabolicamará [...] De jangada leva uma eternidade De saveiro leva uma encarnação De avião o tempo de uma saudade” Na letra, percebemos como a tecnologia transforma a percepção do mundo, a relação entre as pessoas e os afetos, isto é, a subjetividade como um todo: o mundo se tornou grande, a eternidade foi transposta e a saudade surge com a possibilidade de manter vínculos com pessoas, mesmo distantes. Ainda que a tecnologia siga afetando as pessoas de diferentes formas, seu poder destaca-se por varrer terra, céus e mares com seus fios e ondas de modo a finalmente dar sentido a conceitos como onisciência e onipresença, atributos anteriormente dos entes divinos e que também determinavam uma concepção de tempo, bem como veio a permitir a superação de parâmetros para velocidade e quantidade de informações manipuláveis e cambiáveis. Por isso, os exemplos e princípios, aqui analisados, serão retirados das tecnologias de comunicação digitais, isto é, das tecnologias que permitem o funcionamento da internet ao mesmo 105 tempo em que dela são dependentes. Utilizando um termo do historiador alemão Reinhart Koselleck (2014, p. 306), a internet tem se tornando o espaço de experiência globalizado par excellence, ou seja, abrimos uma outra concepção de temporalidade, aquela que se dá nas redes sociais, mas que repercute na nossa realidade fora delas. O fato é que vivenciamos um tipo de aceleração jamais imaginável, por exemplo, dentro dos paradigmas da física clássica e de uma organização social pautada em instituições seculares e relacionáveis como víamos poucas décadas atrás. Uma simples compra de um livro em uma livraria de outro estado ou país, que, antigamente poderia levar dias ou semanas para seu envio, estava regida por um parâmetro de velocidade. Para as empresas possuíssem eficiência nas entregas, além da logística, deveriam investir e defender políticas de infra-estrtura que melhorassem as estradas. No entanto, hoje o envio de livros segue um outro parâmetro de velocidade em que a entrega é realizada instantaneamente graças à possibilidade da transferência de dados pela internet, ou seja, está pautada na velocidade da luz por meio de cabos de fibra ótica que ligam continentes. Assim, a logística envolvida no transporte de informações não segue mais padrões de velocidade mecânicos da física clássica. Trata-se de um momento em que somos impelidos a avançar, não em relação aos parâmetros recentemente alcançados, mas em relação a um valor abstrato qualquer, instituído artificialmente e de forma arbitrária. Isso porque os símbolos, normas e padrões para nossa orientação, ainda que fruto de convenções sociais e científicas, são, por princípio, um tipo de ponto arquimediano que pode facilmente ser deslocado. Mesmo analisando as contradições da modernidade citadas por autores como Hartmut Rosa e David Harvey, 106 observamos o fato de que ainda que existam experiências aceleradoras, também persistem exemplos de experiências que resistem à aceleração as quais podem ser chamadas de desaceleratórias. Essas experiências aceleratórias e desaceleratórias em nosso sistema de produção acabam fazendo parte de uma contabilidade capitalista que são vivenciadas de maneira diversa dependendo da classe social a que cada um de nós pertencemos. Por exemplo, quando Rosa (2019, p. 248) menciona a diminuição do tempo dedicado às tarefas e experiências que vivenciamos dada a vasta disponibilidade de objetos para usar e coisas para fazer (o que só cresce exponencialmente graças ao fetichismo consumista influenciado pelos mercados), observamos aqui uma experiência aceleratória. Dito de outro modo, esse exemplo de experiência aceleradora está relacionado à capacidade de uma determinada classe conseguir diminuir o tempo despendido em suas atividades quotidianas em virtude dos privilégios da classe a que pertence no nosso sistema de modo de produção, com o objetivo de melhorar sua qualidade de vida ou aumentar a acumulação e expansão do capital. Este último, pode ser melhor observado por meio do exemplo de indivíduos que possuem o privilegio de morar em um bairro autossustentável perto do trabalho, da escola das crianças e dos bens e serviços que necessitam como bancos, supermercados e locais de lazer. Isto permite a formação de uma contabilidade do tempo: quem possui dinheiro pode contratar serviços ou comprar bens que permitem poupar tempo com certas coisas e investi-lo. Por exemplo, alguém pode pagar uma empregada doméstica para limpar a casa, máquinas para lavar roupa e louças e gastar esse tempo economizado em um curso de especialização para conseguir um cargo e salário 107 melhor, ou mesmo ir para uma academia fazer a atividade física da moda e postar em suas redes e com isso aumentar seu prestígio social. Postar nas redes algo que obtém muitos “likes” é rentável, não só para quem se torna influencer e passa a receber dinheiro e produtos, mas também estimula consumo de serviços e mercadorias, bem como pode proporcionar melhoria no network e das relações pessoais que podem resultar em ascensão econômica e social. Essa é a contabilidade que permite o intercambio entre aceleração e desaceleração para grupos socias abastados. A aceleração é experienciada não apenas nas esferas privada e social, a esfera pública também tem sido esmagada por eventos, discursos e tantas variáveis que a participação numa discussão política tende a ser um diálogo aporético uma vez que não chegamos a uma solução. Ao contrário do modelo socrático-platônico, não há um avanço na compreensão de mundo por meio da argumentação, temos apenas a difusão veloz de informações, por vezes não verdadeiras, sem espaço para troca e reflexão sobre os temas. Esse processo de debate público ampliado, em que é possível verificar informações, depurar opiniões, aprofundar ideias e encontrar respostas compartilhadas é lento, o que vai contra a aceleração exigida pelo capital. Diante, então, de uma imensa dificuldade em chegarmos a acordos rapidamente e, assim, encontrarmos formas de autodirecionamento e organização, as soluções mercadológicas e técnicas são apresentadas como mais eficientes para as questões públicas. Desse modo, o debate democrático e ampliado parece ser inadequado, declara-se incompetente os processos participativos e ignorante a população enquanto o mercado e seus gestores se mostram competentes e detentores soluções rápidas e eficientes, por conseguinte decidem os rumos de nossas vidas. 108 Enfatizamos que essa situação só ocorre por valorizarmos a aceleração como um elemento imprescindível para a temporalidade em que estamos inseridos. A obsolescência programada parece ter sido o principal arquétipo da atual lógica de transição estética e de valores que orienta e conforma os comportamentos dos usuários no ambiente virtual e também na vida ordinária offline (cada vez mais apenas o sono tem permanecido realmente offline)12. Conseguimos observar essa obsolescência programada em produtos quando percebemos que os aparelhos eletrônicos que compramos, poucos meses depois tornam-se obsoletos em relação aos lançamentos daquele mesmo produto no mercado (algo que parece seguir uma progressão geométrica em suas funções e significados). Ainda observamos que ideias também ficam rapidamente ultrapassas na mass media, uma vez que a lógica que orienta as trends, hashtags e memes, sé é que é possível chamá-la de lógica, é tão passageira quanto contraditória. Essa lógica da obsolescência também passou a ser aplicada a pessoas e relações: ao invés de se buscar laços duradouros e confiar na capacidade humana de atualizar e manter relações, acordos e parcerias, passou a se entender que pessoas e vínculos envelhecem13 e deveriam ser descartadas e substituídas por novas mercadorias e círculos sociais num clique. 12 Isso porque temos saído de um modo de produção-consumo orientado para objetos caros e duráveis para nos voltarmos para produtos descartáveis e massificados de diversos pontos de vista. O acesso ao consumo de bens antes considerados elitizados é, inclusive, utilizado como mote para a aceleração do desejo consumista, sendo, por isso, necessária essa descartabilidade em prol de sua contínua satisfação 13 Aqui não se trata de um envelhecimento natural caracterizado pela fase que se atinge ao final da vida biológica. 109 Diante dessa realidade em que há uma obsolescência de ideias também na construção de valores, a produção dos conteúdos nas mídias, orientada pelos ideólogos ou “criadores de conteúdo” da vez, mudam constantemente sempre em decorrência de algo acidental ou aleatório. A partir dessa fugacidade própria dos conteúdos produzidos pelas atuais mídias, não é possível desenhar uma linha entre os conteúdos ou mesmo explicar alguma coerência entre os assuntos. Quanto a essa fugacidade própria dos conteúdos produzidos pelas atuais mídias, a organização dos conteúdos na internet não permite uma cronologia e, assim, um tipo de orientação em relação às transformações ocorridas e aos sujeitos envolvidos, de forma a inviabilizar qualquer estabilidade temporal ou, mais evidentemente, espacial (dada ao topos invisível de seus usuários e dos servidores que operam as conexões). O fato é que há uma relação circular entre a obsolescência de produtos e as ideias e pessoas no sistema capitalista: o mercado vê nessa troca constante de interesses e assuntos um meio pelo qual pode ofertar novos objetos de desejo e programar novos comportamentos para vender seus produtos. Práticas como a personalização de estratégias de venda, bem como o monitoramento e controle de trabalhadores via dispositivos como o GPS, revelam a pressão operada pela racionalidade neoliberal que, em sua procura por eficiência e lucro, vê nas tecnologias de controle do espaço e do tempo, a realização de seu fetiche de uma governamentalidade ubíqua, isto é, desenvolvendo formas de controle e cooptação do tempo dos trabalhadores. Retornando à concepção de Lefebvre sobre a variação dos ritmos de vida percebemos que essas práticas neoliberais passam despercebidas pela maior parte da população, uma vez que 110 as tecnologias produzem uma falsa sensação de diversificação social e pluralidade política quanto às formas de nos organizarmos, quando na verdade o que estamos vivendo é uma aglutinação de ritmos e temporalidades de modo a permitir que alguns poucos sujeitos e instituições tenham o controle sobre presente e futuro de todos. Para corroborar isso, acrescenta Jonathan Crary: O alinhamento temporal do indivíduo com o funcionamento dos mercados, em desenvolvimento há dois séculos, tornou irrelevantes as distinções entre trabalho e não trabalho, público e privado, vida cotidiana e meios institucionais organizados. (Crary, 2014, p. 84) Essa irrelevância entre público e privado já havia sido problematizada por Hannah Arendt ao longo de muitos de seus textos. A filósofa destacava que o desaparecimento da linha separando o público do privado, com a consequente aparição da esfera social durante a modernidade, tratava-se de um evento pernicioso, sobretudo, para a política, dada a “invasão” de questões do âmbito privado na esfera pública. Essa invasão ocorrida nas primeiras etapas de crescimento do capitalismo global, em nada se compara com a atual impossibilidade de distinção espaço-temporal de nossas atividades, independentemente de qual âmbito elas sejam primordialmente oriundas. A presença, literalmente espetacular, de dispositivos de monitoramento e interação digital, bem como a massificação dos serviços de internet de alta velocidade, têm permitido a aparição de múltiplas temporalidades que operam de forma simultânea. Em casa, na frente de um computador, os chamados youtubers promovem a transmissão, por exemplo, de 111 partidas online de jogos de computador, nas quais além de compartilharem seu desempenho com milhares de espectadores (seus seguidores), aparecem, graças às suas câmeras e microfones, como figuras e ícones formadores de opinião. E esse processo de formar opinião nada mais é que uma jornada retórica em busca da massificação de determinadas ideias cujos fins são o lucro ou a mobilização ideológica, por vezes ambos. Vale a pena ressaltar que esses youtubers não são admirados apenas pela habilidade que possuem num determinado campo: como jogar bem certos games, ou se maquiar bem. Tudo relacionado a eles passa a ser admirado (consequentemente transformado em mercadorias – produtos e ideias) e muitos vezes imitado: o modo de falar, as roupas usadas, o corte de cabelo, a decoração do ambiente e, até mesmo, sua opinião sobre todos os assuntos (mesmo aquelas em que a pessoa sabe pouco e não é especialista). É importante ressaltar que a manifestação de opinião sobre um assunto que mal se conhece em um diálogo não é um problema, pois a forma dialógica tem a potência de levar a um maior conhecimento sobre um assunto por meio da troca de ideias e do surgimento de questões que colocam em dúvidas o que se pensava saber e, ainda, incentivam a busca por informação e conhecimento. O problema encontra-se no fato de que lives e vídeos de yotubers e influencers, em geral, não abrem um diálogo com troca de ideias entre espectadores de modo a ter um desenvolvimento na argumentação e um aumento de saberes, por fim, uma apuração de opiniões, na verdade trata-se de um simples propagar de opiniões. Além disso, youtubers e influencers nem sempre expressam opiniões ou falam de temas espontaneamente, às 112 vezes o que dizem é imposto pela lógica das trends e hashtags: eles devem falar do assunto do momento e devem emitir opiniões que atraiam mais likes ou as que evitem a perda de fãs uma vez que a monetização de seus canais e perfis está ligada ao número de seguidores e likes. Antes da internet e das redes sociais, outros meios como jornais, rádios e televisão eram os principais meios de comunicação que por vezes também eram formadores de opinião. No entanto, nesses meios, os comunicadores deveriam ser especialistas do tema que tratavam. O tubo de raios catódicos foi um exemplo decisivo e vívido de como o brilho e a tagarelice de um mundo público de transações penetraram mesmo o mais privado dos espaços e contaminaram o silêncio e a solidão – para Arendt, elementos essenciais à subsistência de indivíduos políticos. A televisão redefiniu rapidamente o significado de pertencimento a uma sociedade. Esgotou-se até mesmo o projeto de valorizar a educação e a participação cívica, na medida em que a cidadania foi suplantada pela condição de espectador. (Crary, 2014, p. 89) Essas mídias tradicionais eram distintas das que interagimos atualmente, uma vez que eram monológicas, aqueles que as consumiam não podiam opinar como fazemos hoje em dia nos comentários do Facebook, Instagram e Twitter. Com a internet e a popularização das redes sociais, a necessidade de opinar sobre tudo tornou-se mais que um direito, uma regra. E mais, os falsos defensores da liberdade de expressão têm se servido dessa tagarelice generalizada para suplantar direitos e difundir desde campanhas políticas difamatórias e baseadas em notícias falsas até ideias fascistas como podemos observar nas palavras de Crary: 113 O regime 24/7 [24 horas por dia, 7 dias na semana] oferece a ilusão de um tempo sem espera, de um atendimento instantâneo, do isolamento – mesmo em presença do outro. Agora, a responsabilidade pelo outro que a proximidade implica pode ser facilmente contornada pelo gerenciamento eletrônico de nossas rotinas e contatos diários. O mais importante talvez consista no fato de o 24/7 causar a atrofia da paciência e da deferência individual – essenciais a qualquer forma de democracia direta: a paciência de escutar os outros, de esperar nossa vez de falar. (Crary, 2014, p. 133) Observamos uma progressão dos meios de comunicação como capturadores do nosso tempo, corpo e mente. No início, as transmissões de rádio conseguiram aglomerar pessoas em seu entorno para ouvir notícias, músicas e novelas, influenciando suas subjetividades – emoções criadas pela comoção das estórias, formação de opiniões e gostos musicais. Em seguida, com a televisão há um aumento da potência de captura, uma vez que a transmissão é sonora e imagética, o que faz com que não se precise de um grau maior de imaginação para preencher as lacunas deixadas pelo rádio. Na televisão, não há margem para pensarmos se um personagem é alto ou baixo, gordo ou magro, branco ou negro, assim os estereótipos são completamente determinados, deixando pouco para nossa imaginação, o que aumentou o poder da televisão na formação de nossas subjetividades e numa busca para conseguir alcançá-los, ou seja, devemos nos encaixar nos padrões que são difundidos por aquela caixa de som e imagens. Como dito na composição da banda Titãs: “que tudo que a antena captar meu coração captura”. Vale ressaltar que no início a televisão tinha uma programação restrita, nos treinava a assistir noticiários e no114 velas apenas 19:00 às 22:00. Com o seu desenvolvimento técnico, a programação passou a ser estendida e ela passou a estar conosco 24/7 e mesmo quando estamos com a tv ligada, o que se assistiu nela se tornou assunto durante o dia, por exemplo em 1989, todos comentavam sobre a personagem de Beatriz Segal na novela “Vale tudo”: quem matou Odete Roitman? Hoje, diante dos diversos tipos de aparelhos ligados à rede mundial de computadores, nosso tempo é programado e atualizado 24/7 e nossas atividades, desde aquelas compartilhadas e públicas, até o mais íntimo desejo ou o mais utópico sonho, tornam-se o resultado dos códigos que nos programam objetiva e subjetivamente. Conforme mencionamos no inicio do nosso argumento, as redes sociais fazem parte dessa evolução dos meios de comunicação na captura do nosso tempo cotidiano, corpos e mentes, pois há uma interatividade já que não somos mais apenas espectadores estáticos, mas também produtores de conteúdo. À medida que o mercado financeiro avança desterritorializando subjetividades e o próprio entendimento comum do que seja trabalho, classe, economia e política, a ciência, cooptada pela máquina capitalista, elabora e entrega, aos donos do mercado e aos governos que não abrem mão totalmente do jogo de exploração social, tecnologias capazes de programar e controlar os fluxos temporais das massas e dos próprios mercados. Os sujeitos e, principalmente, as grandes corporações agem como se não houvessem outras formas de nos relacionarmos com o tempo que não sejam aquelas produzidas pelas ciências naturais, hodiernamente guiadas pela informática e pela microeletrônica. Tal postura se deve pelo controle que os CEOs das corporações tecnológicas sentem em relação a seus funcionários, produtos ou serviços, bem como pelos usuários que deles dependem, li- 115 teralmente, para realizar mesmo as mais simples tarefas do dia a dia. Esse tempo programável superou sua antiga forma de operação, promovida pela sociedade industrial fordista, a qual mensurava os valores econômicos a partir do tempo de trabalho, rumo a uma forma volátil e caótica, na qual o tempo é vivenciado de forma aleatória e se torna um elemento individual, impulsionado pela financeirização da economia global e também pela produção flexível em pequenos lotes com uma maior variedade, capaz de atender uma gama mais ampla do mercado ao produzir pequenas quantidades de produtos, mas personalizados para cada grupo social. Ainda podemos falar de um tempo programável, mas agora os algoritmos que o regem são elaborados por pessoas que não podemos identificar claramente e as variáveis com as quais operam são mais numerosas e pautadas na precarização das massas e na exploração dos afetos e dos imaginários coletivos. Essa programação também passou por um processo de progressão, se hoje temos essa realidade programável com as redes, antes, também tínhamos um gérmen dela com as rádios, como podemos observar no seguinte trecho de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector: Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava a “hora certa e cultura”, e nenhuma música, só pingava um som de gotas que caem – cada gota de minuto que passava [...] E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para dar anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era a rádio perfeita pois também entre os pintos do tem- 116 po dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse precisar saber (Lispector, 2020, p.33). Além da programação, esse trecho nos remete à massificação e idiotificação da população mais carente diante desses meios de comunicação, a personagem vê-se hipnotizada pelo ritmo dos pingos, que não possuem qualquer significado para além da marcação de tempo vazio. Mesmo sendo um artefato tecnológico, característico de uma grande cidade, talvez essa contemplação dos “valiosos” ensinamentos culturais representem para a personagem uma forma de vida e de experenciar o tempo diferente daquela vivenciada diariamente na grande metrópole do Rio de Janeiro na qual ela é apenas um grão da massa de gente. Programar o tempo, inevitavelmente, passa pela formatação do espaço e, por conseguinte, dos sujeitos que nele vivem. Tal programação consiste, afinal, em uma das formas mais violentas de cooptação total dos indivíduos, daquilo que Reinhart Koselleck chamou de espaços de experiências e de horizontes de expectativas. Por espaço de experiência devemos entender os elementos concernentes ao passado que utilizamos para compreender e agir no presente, por sua vez, horizonte de expectativa é o campo de possibilidades que estamos desenhando no presente a fim de tornar-se nossas experiências futuras. Quando dizemos que estas duas categorias de interpretação da história e de nossa própria existência encontram-se condicionadas pelas formas de dominação social do tempo programável, queremos dizer que este se tornou a temporalidade hegemônica que opera sob a forma de uma produção euritmica. Restando-nos justamente o dever de compreender os modos pelos os quais o tempo hegemônico da tecnologia é programado. 117 Programando o tempo A temporalidade do progresso, reforçada pela guinada tecnológica das últimas quatro décadas, especialmente no campo da informática e das bioengenharias, possibilitou à globalização chegar a um horizonte inimaginável. Não por sua extensão sobre os países ou por sua velocidade de comunicação e transporte, mas por sua ubiquidade que tornou mesmo as mais rotineiras e naturais atividades em eventos condicionados pelo espectro do progresso informático. Quanto aos processos corporais, por exemplo, a intervenção tecnológica na temporalidade da vida biológica vai muito além da adequação das diversas atividades humanas a uma rotina cronometrada, trata-se agora até mesmo de uma busca por viabilizar a superação de “limitações” metabólicas tais como a maternidade em idade avançada, a modificação corporal estética ou aquelas com vistas a melhoramento de performance. De modo que sua inserção dentre os condicionantes da vida humana torna-se radical e firma-se como uma máquina simbólica que acelera todas as demais máquinas, sejam elas físicas, abstratas-virtuais, psicológicas-sociais, etc. Sem um valor de referência, essa aceleração absurda que vivenciamos ocorre num mundo cuja materialidade é, majoritariamente, informatizada, ou pelo menos, dependente de aparatos tecno-digitais, e assim, a forma com a qual os sistemas operam seus processos pode nos esclarecer seus funcionamentos. Isto é, compreendendo a arquitetura e funcionamento das máquinas e daquilo que lhes permite operar, estaremos em melhor posição de igualmente compreender essa temporalidade programável em que temos vivido nas últimas décadas. É via programação (ausência de 118 referentes que não os produzidos pelos próprios códigos). Inserido no mercado capitalista global, cujo principal produto de venda e troca é o sentido, o tempo torna-se uma das mais importantes “tecnologias” que, se dominadas, permite o condicionamento e manipulação de instituições e pessoas e, consequentemente, a produção e venda de mais sentidos. A marca primordial da temporalidade moderna, generalizando suas possibilidades de manifestação, é a aceleração. Isso porque não importa se se trata de um trabalhador de uma metalúrgica ou de uma artista que se apresenta ao vivo no metrô de uma grande cidade, as configurações sociais, tecnológicas, políticas e econômicas os levarão a experienciar o tempo de forma acelerada. De forma bem abrangente, podemos dizer que a tecnologia captura, organiza e programa o tempo das pessoas em pelo menos três estágios. O primeiro, e mais superficial, trata-se do tempo despendido com a manipulação de ferramentas simples em vistas da execução de uma tarefa igualmente simples. Este é o tempo superficial do homo faber, como chama Hannah Arendt ao ser humano enquanto fabricador de objetos e construtor do mundo, aquele é determinado pela manipulação de objetos e reificação da matéria natural. Trata-se de uma temporalidade com vistas a um fim. Tão logo seja executada a tarefa, a ferramenta pode ser posta de lado por um tempo e ela só voltará a condicionar nossa rotina e nossas atividades quando novamente precisarmos executar uma determinada tarefa. Utilizando um exemplo que perpassará as próximas formas de vivenciar o tempo em relação à tecnologia, podemos mencionar aqui o caso do telégrafo, da comunicação postal ou dos primeiros telefones públicos. A presença de tais tecnologias era bastante pontual durante o dia de uma pessoa e seu uso tinha objetivo específico e 119 não se estendia para além da comunicação em si. Tão logo alguém deixasse a cabine telefônica ou entregasse uma carta em uma agência postal, estaria ali finalizada, ainda que momentaneamente, o uso de tal serviço ou tecnologia. Isso, porém, se alterou com a invasão persuasiva de aparelhos e serviços mais sofisticados. A segunda forma, mais profunda e invasiva que a anterior, começa quando os objetos e técnicas de organização do tempo penetram e articulam a vida íntima e social das pessoas. Os relógios, calendários, agendas e as instituições que os manipulam (escolas, trabalho, televisão, etc.), tornam impossível até mesmo pequenos ajustes nas rotinas em prol de alguma demanda de bem-estar dos sujeitos. Como exemplo, podemos citar a difusão do sistema telefônico para as residências e a aparição dos primeiros sites e serviços de comunicação instantânea via internet. A presença do telefone nas residências disponibilizava uma comunicação rápida e simples vinte e quatro horas por dia ao longo de todos os dias do ano, isso inspirava o sentimento de controle de um poder comunicativo sofisticado e sempre à disposição. Assim como os primeiros mensageiros eletrônicos dos computadores pessoais também levavam essa sofisticação a um outro patamar, abrindo canais comunicativos entre usuários da internet de qualquer lugar do mundo, de forma instantânea e progressivamente mais barata. Essas tecnologias, porém, podem ser vistas como uma das primeiras formas de vivenciar o tempo em que a ansiedade e o imediatismo são prerrogativas para todas as atividades. Além disso, também perdemos o senso de prioridade nas comunicações e de tratar um assunto de cada vez. O acesso a mensagens instantâneas que podem ser enviadas e recebidas a qualquer tempo nos faz falar de vários assuntos simultaneamente, nossas 120 conversas se tornam cada vez mais fragmentadas sem qualquer organização de quais mensagens são mais relevantes e quando um assunto começou ou foi terminado. A terceira forma de condicionamento e programação de nosso tempo pela tecnologia consiste na completa captura afetiva e psicológica dos sujeitos, de modo que estes, mesmo na ausência de dispositivos ou redes de comunicação, passam a pensar e desejar em prol de alimentar suas plataformas ou suas relações. Qualquer reunião com amigos ou férias familiares torna-se conteúdo semiótico capaz de dar-lhes a sensação de pertencimento ao abstrato (ao mesmo tempo extremamente real) meio virtual no qual habitam majoritariamente. Finalizando então com o exemplo relativo à comunicação, com o barateamento e consequente difusão dos dispositivos eletrônicos conectados à internet e com suas incríveis capacidades de comunicação e facilitação de prestação de serviços, passamos a viver sob uma temporalidade tecnologicamente mediada e ubíqua. Não é mais em um canto de nossas casas que estará a ferramenta comunicativa acessível e instantânea, mas ao alcance de nossos olhos e mãos, de uma forma quase já aglutinada a nossos corpos14. Os aparelhos eletrônicos, individuais ou aqueles que funcionam em redes, são o arranjo de uma parte física (composta por chips, baterias, circuitos, etc.), um código que os faz funcionar e uma máquina sócio-psíquica que lhes condiciona aos princípios das empresas e sistemas nos quais são concebidos, a única lógica que reconhecem é a repetição 14 Mencionar a concepção de Donna Haraway que diz que o ser humano contemporâneo já pode ser considerado como ciborgue dado que o celular, assim como outros dispositivos, já está ligado ao nosso corpo de maneira quase cirúrgica. 121 e, quando muito, permitem uma atualização dos códigos quando diante de alguma mudança nos objetivos das corporações ou uma transformação dos sistemas em que operam. A parte física, visível e palpável é aquela mais fácil de ser interpretada e de ter seu design compreendido do ponto de vista técnico, isto é, de ter suas funções e manuseios expostos de forma clara; enquanto a parte lógica, em especial quando se trata de programas de computador e de serviços eletrônicos, permanece escondida e de difícil compreensão semiótica, ainda mais quando estão inseridos em um ciclo acelerado de tarefas que não apenas afastam o interesse dos usuários em compreender aquilo que operam, mas os impedem completamente de ter tempo para tal fim, minando seu tempo livre. Ainda que saibamos como os aplicativos e sistemas podem ser operados, e mesmo que alguns de nós tenham “sucesso” no compartilhamento de conteúdo e venda de produtos, devemos assumir que não compreender seu real funcionamento e, principalmente, quais e como nossos dados estão sendo compartilhados e manipulados e até mesmo por quem. Os códigos a partir dos quais a tecnologia opera são construídos com base em uma gramática específica, isto é, baseiam-se em uma linguagem de programação que consiste em um conjunto de palavras que operam tais quais os verbos e regras que condicionam a sintaxe nas quais esses verbos são encaixados. A partir dos dados oferecidos pelos usuários esses códigos são capazes de fazer quase tudo, desde a exibição de vídeos e a reprodução de sons, até o processamento dos cálculos mais complexos e mesmo da exploração e estudo do comportamento humano. Ocorre que, apesar de semelhantes às linguagens naturais com as quais lidamos no nosso cotidiano entre nossos semelhantes hu- 122 manos, as linguagens de programação são em geral muito engessadas e acabam por matematicizar tudo aquilo com o que operam. Loop: o tempo dos códigos As linguagens de programação possuem, em suas sintaxes, recursos lógicos e aritméticos que estruturam todo o funcionamento dos softwares. Entre eles, o loop que engendra os comandos de repetição e integra, além do código fonte em si, uma das principais características de tudo que é produzido digitalmente: os softwares são pensados para a execução contínua ou repetitiva. Essa repetição, conforme veremos, invade nossa vida à medida que nos sujeitamos aos códigos e sistemas cuja temporalidade nos impede de genuinamente compartilhar afetos e valores. Só é possível revelar a singularidade, isto é, quem alguém é, por meio da narrativa de sua história de vida, contar o que foi vivido, feito e sofrido. Dessa maneira, as experiências ganham sentido, pode-se suportar os afetos e comunicá-los. Nas redes sociais, não contamos nossas histórias, criamos perfis: postamos frases e imagens onde reificamos um tipo de personalidade em loop, contínua e repetitivamente, conforme nos exige o algoritmo. Essa tipologia só surge porque as redes sociais apenas permitem customizar os perfis dentro de um esquema de apresentação de si mesmo que é padronizado. Os comentários e likes dos seguidores não são compartilhamento de experiências, afetos, nem a criação de espaços comuns entre os usuários, mas aclamação ou reprovação ao que foi postado. Os primeiros programas de computador, ainda no momento em que estes estavam restritos aos departamentos mi- 123 litares de poucos países e às corporações tecnológicas então em emergência, e cujos programas eram escritos em cartões perfurados ou fitas magnéticas com o objetivo de resolver equações ou problemas individuais, eram descartados após sua execução. Ao contrário, as atuais linguagens de programação permitem não apenas o desenvolvimento de programas que conseguem funcionar por anos a fio, como podem se atualizar quando diante de novas variáveis e se associar a programas distintos, bem como incentivam a disponibilização de partes dos códigos na forma de repositórios que serão utilizados em outros projetos e até por outros desenvolvedores. Ainda que desconhecidos das maiorias dos usuários de equipamentos eletrônicos e sistemas digitais, os códigos fontes são a orientação de comandos lógicos e matemáticos escritos em uma linguagem específica. Assim como as diversas mensagens que recebemos e emitimos ao longo de nossas vidas, esses códigos respondem a certas normas “gramaticais”. Ocorre que, se no plano comunicacional ordinário escapam-nos as valorações e diretrizes comportamentais que por vezes mesmo os sujeitos mais críticos, seja por sua rotina acelerada ou pela deliberada e dissimulada semiótica das mensagens, não conseguem perceber seu real significado, na operação, ou melhor, na navegação cotidiana pela internet as camuflagens semânticas e os artifícios psicoestimulantes são tantos que acabamos não tendo condições e tempo para conhecê-los e evitá-los. Mesmo quando usamos signos e gramáticas bem conhecidas, usando nossa língua materna e presencialmente, ainda persistem dificuldades e desentendimentos, isso se agrava ainda mais quando usamos os signos e gramáticas digitais. A exceção engendrada por essas formas de produção do tempo, assim como a ausência de ponteiros e de eventos 124 que nos orientem, baseia-se, ao fim, em uma generalizada indisposição para a vagarosidade do pensar, para a escuta atenta do outro e para o respeito durante o exercício político compartilhado. Isto é, quando assumimos que não nos interessamos mais pelo comum, resta-nos simplesmente a possibilidade de viver e habitar entre formas espaço-temporais privadas ou sociais, mas que são completamente condicionadas por movimentos ideológicos ou princípios mercadológicos nos quais não temos parte e os quais não podemos realmente compreender. Lazzarato descreve as ações da indústria tecnológica e das grandes corporações que operam mundialmente da seguinte forma: As mídias e as indústrias culturais agem sobre os “módulos” da subjetividade, enquanto outros enormes conglomerados industriais, explorando as pesquisas da ciência e as inovações da tecnologia, intervêm sobre os elementos químicos, genéticos e neuronais do corpo. A desterritorialização do indivíduo fornece os elementos de base para reconstruir não os “sujeitos”, mas os consumidores, os eleitores e os comunicadores, e para fabricar identidades sexuais, comportamentos, condutas conformes e novas corporeidades. (Lazzarato, 2017, p. 183) Trata-se, portanto, de uma intervenção sobre todos os sujeitos e sobre tudo o que é sujeitável. Aquilo que buscamos entender na forma de uma biopolítica e, mais recentemente, também denominado de psicopolítica, tem se tornado, na verdade, uma política totalizante. Mesmo que muitos insistam em chamá-lo pelo termo neoliberalismo, nos distanciamos cada vez mais de qualquer referência à liberdade dos liberais modernos e nos aproximamos de sistemas tota125 litários do século XX, apenas mascarados de democráticos. Este mascaramento se dá pela possibilidade de customizar a sujeição e o controle, por serem descentralizados, estabelecendo uma padronização (e não uma homogeneização) que comporta grupos diferentes. Essas políticas totalizantes encontram nos dispositivos digitais seus mais profícuos estimulantes, isso porque lhes permitem operar desde o controle da produção de mercadorias e serviços, passando pelo mercado e pelas ideologias operadas pelas mídias, até a exacerbação do controle psicossocial das massas. Sobre isso diz Lazzarato: As máquinas cibernéticas organizam um funcionamento modular, distribuído e descentrado, e uma microfísica “tecnológica” da produção, do consumo e da governamentalidade. Elas não se limitam a registrar, estocar e transmitir informação. Elas constituem plataformas de autorregulação e de retroação sobre o social, o econômico e a subjetividade, mas é sempre a axiomática – a máquina social capitalista – que as enquadra e limita. (Lazzarato, 2004, p. 191) A axiomática citada por Lazzarato anteriormente, essa “máquina social capitalista”, trata-se de um sistema de condicionamento dos sentidos e, principalmente, do espaço e do tempo, que elabora não só a lógica que orienta o trabalho, o consumo e a governamentalidade, mas que produz também os adoecimentos, físicos e psicológicos, e ainda oferece inúmeras “escapes” que, ao fim, são apenas formas de manutenção dessa mesma lógica. Tais adoecimentos ocorrem porque ainda não temos nem uma teoria filosófica de uma educação para a tecnologia e nem uma prática educacional interventiva sobre o assunto que possam fazer 126 com que lidemos com todas as questões apontadas sobre o impacto da tecnologia no tempo e nos espaços, sejam eles públicos ou privados, online ou offline. Essa axiomática, vale lembrar, não opera sobre cada indivíduo, isoladamente, mas socialmente. Ainda que nem todos nós façamos uso da tecnologia, ou por escolha, ou por falta de acesso, alguns poucos nos controlam por meio dos aparatos tecnológicos. Como vimos, o funcionamento dessa máquina axiomática do capitalismo que impõe um ritmo de aceleração sem referente, reconfigura o conhecido sentido de progresso. Não se trata de um sentido qualitativo de melhoria de nossas atividades sociais e econômicas, mas um simples avançar processual que, no máximo, pode ser comparado a valores anteriores em termos de aumento ou diminuição, isto é, termos quantitativos, mas que se isenta de juízos de valor e análises quanto a seu sentido. (cf. Galimberti, 2006, p. 592). A ausência de referência de juízos de valor para orientar o processo de acúmulo do capital não significa que este não realize seus próprios julgamentos e os considere para justificar a violência de suas atividades. As consequências para nossa relação com o tempo é que: O tempo perde o seu traço qualitativo: o futuro não é mais o tempo da esperança, no qual está o remédio para os males do passado, mas se torna só o tempo que vem depois do presente, naquela sucessão serial do tempo visualizado só sob o perfil da quantidade. (Galimberti, 2006, p. 592) Concordamos com Galimberti quanto à perda de um traço qualitativo do tempo. Temos, porém, que lembrar que essa perda ocorre de maneiras diversas, tal como a própria vivência do tempo acumula variáveis que fazem mesmo a 127 mais geral forma de temporalidade de exceção ser sentida de diferentes maneiras. Se, do ponto de vista individual, a etapa em que a tecnologia passa a controlar nossa rotina e formatar nossa condição exclui em nós aquilo que poderíamos chamar de singular, aquele elemento que nos identifica como únicos em meio aos bilhões de outros seres de nossa espécie; do ponto de vista histórico, a massificação promovida pela técnica conduz movimentos, corpos e ideias à passividade que nos exige esperar e acreditar nos códigos e técnicas formatadas pelas grandes corporações e seus programadores. Como diz Galimberti (2006, p. 593), dessa forma a história na era da tecnologia digital passa a orientar-se pelo ritmo do funcionamento dos mercados e dos algoritmos, abandonando qualquer conotação valorativa, o que tem levado a uma violenta precarização dos trabalhadores e trabalhadoras. Ao que acrescenta Franco Berardi: Um fluxo contínuo de infotrabalho fractalizado e passível de recombinação circula na rede global como fator de valorização universal, mas esse fluxo não é capaz de se transformar em sujeito, não consegue consolidar comportamentos organizacionais, formas de defesa política ou sindical, devido às características técnicas do processo de trabalho celularizado. Conectividade e precariedade são as duas faces da mesma moeda. O sistema conectivo captura e conecta fragmentos celulares de tempo despersonalizado. O capital compra fractais de tempo humano e os recombina na rede. (Berardi, 2019, p. 136). Os dispositivos digitais operam um papel fundamental nessa fragmentação do tempo dos trabalhadores. Isso porque o tempo de trabalho passa a ser divisível em partes pequenas que podem ser alocadas em qualquer posição ao 128 longo das vinte e quatro horas que o trabalhador dispõe, assim, o capital opera também minimizando o valor do trabalho. Os computadores e algoritmos preparam não apenas as rotinas para o trabalho, para a diversão e até para o sono, como passam também a calcular os menores valores que podem ser pagos para o máximo de trabalho que conseguem estimular. Enquanto, por meio das contrarreformas políticas e econômicas, vão sendo eliminados também os direitos trabalhistas e sociais até então assegurados juridicamente. Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, retrata metaforicamente a forma de viver das pessoas pobres e sujeitáveis dentro da máquina tecnocrática. Na obra o narrador da estória diz o seguinte sobre a personagem Macabéa: “Pois que vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável.” (Lispector, 2020, p. 26) A razão que move a criação e organização dos dispositivos tecnológicos não busca trazer felicidade e bem estar às massas, dado que não se encontra nenhuma real iniciativa que trate de mitigar a imensa desigualdade social ou mesmo diminuir o imperativo econômico por imensa quantidade de horas de trabalho para cada pessoa. Antes, trata-se justamente de organizar as massas de trabalhadores rumo à mais lucrativa forma de exploração de sua força de trabalho, seu tempo de vida e suas energias libidinais. Transformando, por exemplo, ócio em ócio produtivo, cuidados com saúde em melhoramento de suas performances graças às tecnologias que disciplinam e sujeitam as pessoas aos mais diversos projetos mercadológicos e políticos. Como pode haver futuro quando tudo já está escrito? A técnica, divindade benéfica da qual o futu129 rismo esperava a beleza, a velocidade, a riqueza e, sobretudo, o futuro, revelou-se uma divindade despótica que anula o futuro, transformando o tempo em repetição, em ilimitada geração de fragmentos idênticos. (Berardi, 2019, p. 99) Esse progresso, esse loop de repetição, a favor da manutenção do tempo do capital e acumulação, parece ser uma temporalidade da ordem, mas engendra exceção. Isso porque esse progresso que vem junto com a destruição, ligado a tecnologia, e se há a possibilidade de surgir uma nova temporalidade, nos parece razoável que seja uma temporalidade de reparação – natureza, singularidades, culturas e afetos – por meio da luta social. Dessa forma, precisamos buscar uma união de trabalhadores cognitivos do vale do silício, povos tradicionais, proletariado em geral, na construção de uma alternativa temporal, econômica e afetiva pautada num mundo compartilhado. 130 Bibliografia BERARDI, Franco. Depois do Futuro. São Paulo: Ubu Editora, 2019. BRIDLE, James. A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro. São Paulo: Todavia, 2019. BURDICK, Alan. Por que o tempo voa? São Paulo: Todavia, 2020. CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. São Paulo: Zahar Editor, 1998. GALIMBERTI, Umberto. Psiche e Techne: o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus, 2006. HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2020. HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 2016. KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. 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