Temporalidades de Exceção
Temporalidades de Exceção
Alexandrina Paiva Da Rocha
João Batista Farias Junior
Mariana De Mattos Rubiano
1ª Edição
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí
Teresina, 2022
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí
Reitor Paulo Borges da Cunha
Pró-Reitora de Administração Larissa Santiago de Amorim
Pró-Reitor de Ensino Odiomogenes Soares Lopes
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Projeto gráfico: Lucas Rolim (@contracapadesign)
Revisão: Entre Trópicos Ed.
Arte da capa: Rogério Narciso
R672t
Rocha, Alexandrina Paiva da.
Temporalidades de exceção / Alexandrina Paiva da Rocha,
João Batista Farias Junior, Mariana de Mattos Rubiano. – Teresina, PI: Editora do IFPI, 2022.
136 p.
ISBN: 978-65-86592-52-8
ISBN: 978-65-86592-53-5 (ebook)
DOI: 10.51361/978-65-86592-53-5
Filosofia. 2. Política. 3. Sociologia. 4. Globalização. 5. Tecnologia. 6. Capitalismo. I. Farias Junior, João Batista. II. Rubiano, Mariana de Mattos.
III. Título.
CDD: 100
Catalogação na fonte: Biblioteca IFPI, Campus Picos.
Introdução, 9
Composições do Tempo e a Temporalidade de Exceção, 15
Temporalidade de Destruição:
Modernidade, capitalismo e temporalidade de destruição, 55
Índice
A Tecnologia e o tempo programável, 99
Dedicamos este livro a todas as pessoas que se foram no tempo da pandemia, em
especial a Paula Gentili Bitondi e a José Costa
da Rocha.
Introdução
A propósito da escrita de um artigo para a edição
comemorativa dos Cadernos Arendt, que celebrava os 70
anos da publicação da obra As Origens do Totalitarismo, iniciamos uma discussão acerca da exceção estabelecida nos
campos de concentração da Alemanha nazista. No desenvolvimento desta discussão, notamos que a questão da exceção não possuía apenas o caráter espacial, mas também
um caráter temporal. Foi desta maneira que passamos a nos
dedicar à investigação sobre temporalidade.
Em nosso artigo “Temporalidade de Exceção” (2021),
analisamos como o espaço e o funcionamento dos campos
de concentração nazistas afetavam os internos em sua relação com o passado, presente e futuro. Como afirma Arendt, os campos consistiram em laboratórios onde as pessoas
eram cuidadosamente torturadas até se tornarem marionetes sem personalidade. Ora, para isso, era necessário afetar a
subjetividade e o espírito dos internos nos campos, incidindo inclusive em sua percepção temporal.
O estudo sobre o papel dos campos de concentração
no regime totalitário, nos mostrou que a violência e as técnicas de terror visavam a destruir a psique humana e a impor
uma temporalidade petrificada. Nela, o indivíduo não era
considerado morto nem por uma morte natural nem por
uma morte violenta, uma vez que, era como seu espírito estivesse em latência pois ele não realizava suas atividades espirituais – pensar, julgar, querer, imaginar; seu corpo realizava apenas suas funções vitais básicas, perdendo expressão
e capacidade de gestos simbólicos tipicamente humanos.
Em síntese, a humanidade e singularidade estavam mortas,
mas o corpo não passava pelo processo de decomposição.
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Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz descrevia este
estado como ter visto a Górgona ou a Medusa e, por isso,
ser transformado em pedra. Observamos com essa metáfora que a relação entre passado, presente e futuro se torna
impossível para quem está nos campos de concentração: o
terror e a tortura presente ali não podiam ser explicados
ou relacionados com as experiências pretéritas, com a vida
normal em uma área rural ou urbana; o futuro seria fenecer
e morrer, mas de certa forma os internos já eram considerados inexistentes, pois a petrificação é como se fosse uma
morte permanente. Ali, a morte deixa de ser o marco de fim
da vida, de saída do mundo, pois o interno era tratado como
se nunca tivesse existido, como um ser supérfluo. Nesse sentido, a morte dura enquanto se está vivendo no campo de
concentração.
Arendt nos alerta que os elementos que permitiram
a emergência do totalitarismo e a invenção dos campos de
concentração não desapareceram com a derrota do nazismo na II Guerra Mundial. Na verdade, os ecos desses projetos autoritários se mantêm em nossos dias – racismo, o
imperialismo, a massificação, e a glorificação da violência.
Seguem presentes em nossa democracia outros espaços e
tempos de exceção que já não precisam necessariamente
de muros, soldados, armas e arames farpados para isolar
os internos, mas ainda assim vivenciamos situações limites
que se tornam cotidianas, em que regra e exceção se imiscuem. Observamos isso na situação de miséria e dentro
das prisões.
Uma das formas de tortura e desumanização praticadas nos campos de concentração era a fome entendida
como inanição. Em nossos dias, a maioria das pessoas não
estão expostas a este tipo de fome extrema, contudo, muitas
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ainda estão exposta à fome parcial ou oculta, em que apesar
comerem todos os dias e de obterem a quantidade de calorias necessárias para manter o corpo vivo, a alimentação
é insuficiente em elementos nutritivos. De um jeito ou de
outro, a miséria consiste em uma fome que mata o corpo e
a mente um pouco por dia e, ainda, confina pessoas a um
lugar desertificado no mundo: esvaziado, de poucas coisas e
relações, com muita pedra e areia, onde a água e a vida estão
sempre por um fio. Quem habita este espaço desertificado
fala para o vento: sua experiência, situação e opinião são
desprezados.
Vale ressaltar que a situação de miséria, não é um
momento isolado na vida de um indivíduo, em geral, não
é passageira, é uma exceção permanente. Isto é, as pessoas
já nascem na pobreza, seu passado foi de carências e fome,
seu futuro é de incerteza e dívida: não sabem se poderão garantir a sua sobrevivência amanhã e se poderão pagar pelo
que já consumiram hoje. Não possuem segurança alguma
nem expectativa de mudar sua situação no futuro. A miséria, portanto, deixa a esperança e a vontade seca, pois reduz
a vida humana ao tempo cíclico das necessidades vitais, da
repetição da escassez e da falta. A temporalidade de exceção
da miséria consiste na desertificação da paisagem, a qual
parece ser sempre a mesma: passado, presente e futuro são
uma recorrente luta para sobreviver com pouco.
Uma das maneiras de se conter uma possível revolta
popular contra a situação de pobreza, socialmente imposta
às grandes massas, é a prisão. As políticas sociais de nossos
dias dividem os pobres em dois grupos: aqueles que seriam
bons e merecedores de assistência social e os indolentes e
perigosos que devem ter seu comportamento corrigido. O
Estado, nesse contexto, deve mesclar assistencialismo e re-
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pressão que criminaliza e pune. A opinião hegemônica na
sociedade neoliberal é de que os crimes famélicos, em que
o individuo furta para realizar uma das suas necessidades
biológicas – se alimentar; não são explicados pela estrutura
social desigual somada à necessidade de sobrevivência, mas
por um desvio moral. Assim, parte considerável de governantes e da população, ao invés de defender a existência de
políticas públicas que garantam a segurança alimentar de
todas e todos, defende a punição exemplar.
As análises da população carcerária nos EUA e no
Brasil mostram que as prisões são as masmorras em que pobres sem trabalho e sem assistência social são jogados. estar
encarcerado significa a perda de mundo: não possuir mais
papel e importância na sociedade, pois ergueu-se uma barreira entre ele e quem não está encarcerado. Quem adentra
uma prisão sofre uma arrumação ou programação, a qual
envolve várias etapas: começa com a produção de sua ficha
que reduz sua história de vida a um caminho em direção à
criminalidade; passa pelo registro de sua fotografia, digitais
e a atribuição de um número; por banho e desinfecção; e
terminam com a apresentação de seu novo lugar, a cela.
Para o preso, o tempo só pode ser medido a partir
das dimensões de sua cela, um tempo de limitação de movimento do corpo e da alma e de isolamento do mundo e da
humanidade, uma temporalidade que não corre em direção
alguma, não aponta para um futuro, mas se desgasta. Trata-se da temporalidade embotada, sem direção e sem sentido,
que acompanha a pessoa mesmo depois que ela sai da prisão em direção ao mundo. O objetivo do encarceramento
consiste na mudança de comportamento, um experimento
para que o eu seja modificado por meio de rebaixamentos,
degradações, humilhações e profanações da sua personali-
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dade. Em alguns casos esta degradação da personalidade e
embotamento são tão agudos que a pessoa não consegue se
encaixar mais no mundo. Ainda, ela se depara com inúmeros muros feitos, não com tijolos e cimento, mas com coerção moral, o qual demarca que seu lugar no mundo ainda
prologará a exceção.
A análise presente em nosso artigo acerca da temporalidade petrificada, desértica e embotada – longe de esgotar
o estudo sobre temporalidades de exceção ou de nos fazer
perder interesse pelo tema – ensejou a continuidade de nossas leituras e debates. Com isso, observamos que a exceção
não emergiu com os campos de concentração, embora lá ela
fosse acelerada e extremada. Alguns elementos presentes
nos campos, como racismo e tecnologia, já estavam relacionados a outras camadas de exceção e, principalmente, ao
surgimento da estrutura social capitalista. Além disso, nos
deparamos com a necessidade de aprofundar o debate teórico e de estudar a relação e diferenciação entre tempo e
temporalidade, bem como de examinar a relação da exceção
com a ordem no que concerne as relações temporais.
Levando isso em consideração, este livro é fruto da
continuidade de nossas reflexões sobre a temporalidade de
exceção. No primeiro capítulo do livro, abordaremos os aspectos da construção do conceito de tempo na tradição do
pensamento ocidental para compreender como a demarcação temporal tornou-se uma forma de dominação ao longo
da história de nossa estrutura social, por isso nos concentraremos nos aspectos históricos e socioeconômicos. Aqui
também trataremos da conexão que fazemos entre tempo e
temporalidade bem como de seus significados.
Já na segunda parte, abordaremos a relação entre duas
temporalidades que surgem com o maquinário social capita-
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lista-liberal e caminham juntas, a saber, a do progresso e da
destruição. Indicamos as características da destruição, a qual
abarca tanto recursos naturais, como pessoas (em especial,
mulheres e pessoas racializadas) e culturas; a relação entre
acumulação, produção e violência; e a interligação do controle sobre a função reprodutiva das mulheres com a necropolítica. Ainda, tratamos da relação entre passado, presente e
futuro para quem vive na temporalidade de destruição.
Na terceira parte, abordaremos os impactos que os
avanços tecnológicos tiveram na manutenção do nosso sistema econômico contribuindo, reforçando e ampliando o
fato e a quantidade daqueles que permanecem á margem do
nosso mundo.
Oferecemos nossa reflexão registrada neste livro às
leitoras e aos leitores esperando que ela contribua na compreensão de nossa realidade por meio do diálogo acerca do
que estamos fazendo. Também esperamos que possamos
pensar em novas possibilidade de tratar de nosso espaço de
experiência e que melhores expectativas possam surgir no
horizonte.
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Composições do Tempo
e a Temporalidade de Exceção
Oração ao tempo
(Caetano Veloso)
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro em um acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo
[...]
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, tempo, tempo, tempo
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Primeiras considerações
Partindo do diagnóstico das formas temporais de exceção que se estendem para além dos campos de concentração, da vida das pessoas em situação de miséria e das prisões, nossa pesquisa busca refletir e identificar os principais
agentes e os modos de produção dessas temporalidades que,
ironicamente, apesar de serem conceituadas como exceção,
tem se tornado a regra, porém não aparecem como hegemônicas, pois está escondida por uma outra concepção de
temporalidade capitalista que quer nos convencer de que
estamos em tempos de garantias de liberdade individuais,
de aumento da produtividade e de acesso a bens, ou seja,
estamos em uma temporalidade de progresso, de avanço.
Nesse sentido, a temporalidade de exceção caminha junto e
na sombra de uma temporalidade do progresso, ambas produzem a dominação social do tempo que, em poucas palavras, consiste no estabelecimento de uma aparência de uma
temporalidade hegemônica para uma sociedade em um determinado período e local. Como bem observa Henri LeFebvre, as temporalidades podem se manifestar de formas
diversas e podem ter existências simultâneas. O autor descreve três possibilidades: primeiro, uma polirritmia, quando há uma vivência de múltiplos ritmos por uma mesma
pessoa a partir de suas diferentes rotinas e papéis sociais,
isto é, múltiplas temporalidades em convivência não-conflitiva; em seguida, uma euritmia, uma forma que se inicia
com sincronização e controle dos ritmos diferentes e termina por torná-los indistinguíveis, algo como a canibalização
das diversas temporalidades heterônimas, a partir do estabelecimento de uma forma com aparência hegemônica; por
último, a arritmia que consiste na existência de múltiplos
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ritmos de forma conflitante (Lefebvre, 2004, p. 16). Em nossa interpretação o modo de vida capitalista lança a sociedade numa euritima e busca obliterar os ritmos conflitantes
que produz.
A reflexão proposta neste livro, trata de compreender
nossa “civilização” a partir desses fluxos e temporalidades ora
em funcionamento, uma vez que a demarcação temporal se
tornou uma forma de dominação. Nesse capitulo, nosso escopo consiste em tratar das mudanças sofridas pelo conceito
de tempo durante a tradição até chegarmos a nossa visão contemporânea, como este conceito se vincula e se diferencia de
temporalidade e quais as consequências para a nossa estrutura social e nosso modo de vida. Dessa forma, consideraremos as visões mais pertinentes sobre o tempo: abordaremos
o conceito de tempo relacionado a nossa estrutura social, um
tempo histórico e socioeconômico, ao invés de tratar de seu
aspecto físico relacionado à mecânica quântica e à cosmologia, ou mesmo ao seu aspecto metafísico.
Na tradição histórica do conhecimento humano, o
tempo é um dos conceitos mais desafiadores para o ser humano, alvo de nossa curiosidade e temor. Na Grécia Antiga,
antes mesmo do surgimento da filosofia, os poetas já tratavam da concepção de tempo. A poesia de Hesíodo a qual
representa a concepção arcaica sobre o tempo, foi datada
como arcaica tanto no sentido historiográfico – por ser um
período anterior ao pensamento racional – quanto no sentido etimológico, uma vez que se referia à concepção de arkhé
como um princípio inaugural da experiência de formação
do cosmos. A partir dessa concepção arcaica, podemos
perceber que a construção poética do tempo, transmitida
pela oralidade, possuía um aspecto metafísico/cosmológico como podemos observar no trecho “História do Céu e
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de Crono” em Teogonia que trata de Crono como um deus
primordial, filho de Gaia (Terra) e Urano (Céu) que se volta
contra seu pai a pedido de sua mãe:
Quantos da Terra e do Céu nasceram,
filhos os mais temíveis, detestava-os o pai
dês o começo: tão logo cada um deles nascia
a todos ocultava, à luz não os permitindo,
na cova da Terra. Alegrava-se na maligna obra
o Céu. [...]
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Assim falou e a todos reteve o terror, ninguém
vozeou. Ousado o grande Crono de curvo pensar
devolveu logo as palavras à mãe cuidadosa:
“Mãe, isto eu prometo e cumprirei
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a obra, porque nefando não me importa o nosso
pai, pois ele tramou antes obras indignas”. [...]
(Hesíodo, 1995, p. 92-93)
A concepção de tempo arcaico, além de ter esta explicação poética, também esteve ligada aos questionamentos
dos primeiros pensadores considerados filósofos da natureza ou da physis. Eles buscaram compreender de maneira
racional tudo o que os rodeava – a natureza -, ao invés de se
contentarem com uma explicação mitológica da poesia. O
que lhes trazia incômodo não era apenas o aspecto físico da
criação do mundo, mas que a origem e a ordem do kosmos
(mundo natural e ordenado) suscitava questões ontológicas:
Por que as coisas existem? O que é o mundo? O que é o Ser?
Qual a maneira de pensá-lo? Os pensamentos dos primeiros
filósofos gregos, por buscarem explicações racionais sobre a
natureza, adotavam uma ideia de tempo cíclico.
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Os filósofos do período antropológico mesmo tendo se voltado para questões ligadas às atividades humanas,
como a ética, a política e as técnicas, seguiram com esta
concepção cíclica de tempo. O mundo humano estava integrado ao mundo da natureza, por isso os eventos históricos
e políticos foram vistos de maneira circular. Como podemos verificar ao observar as mudanças políticas da Antiguidade – caracterizados pelos termos Πολιτείων (anaciclose)
de Políbio, μεταβολαί dee Platão, στάσις e mutatio rerum da
história romana – indicavam uma concepção de mudança
cíclica de governos, em que a degeneração e a derrubada de
uma forma de governo levavam a substituição por outra, já
conhecida anteriormente.
Além dos filósofos, os historiadores gregos antigos
também adotaram a concepção de tempo cíclica. Na perspectiva tucidideana, a história da Guerra do Peloponeso
consistia no estudo do presente, na pesquisa dos fatos e no
estabelecimento da relação entre eles, de modo a chegar à
interpretação do que foi a guerra e o que ela significou para
os homens que a viveram. Em algum momento do futuro,
outras guerras surgiriam e o conhecimento sobre a guerra
no Peloponeso poderia ajudar gerações futuras a compreender seu presente e saber como agir. O conceito de história
de Tucídides estava fundamentado na ideia de que os seres
humanos, por possuírem uma mesma natureza, recaiam em
situações semelhantes. Cícero, político e filósofo romano,
por afirmar que a história é a maestra da vida levou adiante
a concepção cíclica de história.
É importante destacar que embora na Antiguidade
temos uma uniformidade com relação ao tempo – tanto a
natureza, quanto a história política eram entendidas como
cíclicas – isso não significa que todos e todas as pessoas na
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Grécia e em Roma viviam numa mesma temporalidade.
Os filósofos, poetas e cidadãos ilustres tinham tempo livre
para tratar dos assuntos humanos e poderiam escapar da
mortalidade uma vez que suas obras, feitos e nomes poderiam ser lembrados depois de suas mortes. Já as mulheres,
trabalhadores braçais e os escravizados estavam presos aos
afazeres ligados à manutenção do metabolismo do corpo e
da vida biológica. Nesse sentido, enquanto filósofos, historiadores e cidadãos estavam ligados a uma temporalidade
cíclica propriamente humana e relacionada à vida política e
teorética (bios politikon e vita contemplativa); mulheres, trabalhadores braçais e escravizados estavam aprisionados na
temporalidade cíclica da zoé, na mesma repetição de atividades que os animais também estão sujeitos para garantir a
sobrevivência. Aqui já podemos ver uma primeira relação e
diferenciação entre tempo e temporalidade: a concepção de
marcação de tempo está ligada à teoria e ao conhecimento,
em como se divide em eras e se relaciona a acontecimentos e
fatos, já a temporalidade é como a concepção de tempo afeta o modo de vida e as experiências mundanas e interiores
de cada um e dos grupos sociais.
O tempo em questão e a questão do tempo
Alguns filósofos e historiadores contemporâneos,
como Arendt, retomam e analisam a concepção de tempo
da Antiguidade para compreender as diferenças de concepções temporais na história ocidental e para discutirem sobre a concepção de tempo no presente. Em “O conceito de
história – antiga e moderna” de Entre o Passado e o Futuro
(1965), a autora consegue nos mostrar a relação entre a passagem desse tempo cíclico para o tempo linear a partir da
formação do conceito de história moderna. Para ela, o tem21
po como concebiam os antigos se relacionava com a concepção de imortalidade tanto da natureza quanto dos deuses: ambos existem por si mesmos e, além disso, a natureza
se renovava com o ciclo de nascimento, desenvolvimento e
morte de cada ser, enquanto os deuses não morriam. Nessa
perspectiva, o gênero humano também pertencia à imortalidade da natureza enquanto espécie, mas não enquanto
pessoas. Por esta razão, os seres humanos temem o tempo,
ele devora sua existência enquanto ser singular, só o preserva enquanto pertencente à uma espécie da natureza. O
desconforto está em que o tempo do ciclo repetitivo da vida
biológica não imortalizava os homens enquanto indivíduos, apagando seus feitos e falas, como podemos observar
na prece do herói Aquiles a sua mãe por honra apesar da
sua breve existência (Homero, 2013) Para Arendt, a partir
da constatação desse apagamento, a imortalidade torna-se
uma preocupação grega e os gregos procuram meios para
que a fama pela sabedoria, grandes feitos e discursos pudessem ser preservados pela narrativa histórica.
De acordo com Arendt (2005, p. 73-74), esse processo
de formação da historiografia grega inicia-se com Heródoto, que estabeleceu a tarefa do historiador como aquele que
resguarda as belas ações e palavras humanas do esquecimento. Dessa forma, conscientemente, ele procura escapar
ao tempo cíclico, em busca de uma forma de imortalizar
grandes feitos humanos e que ações e ideias de algumas pessoas pudessem ser lembradas mesmo depois de sua morte.
Isso porque os grandes feitos e discursos não poderiam sobreviver sem o auxílio da recordação, que ao contrário das
coisas fabricadas pelas mãos humanos – são bens duráveis –
e das coisas da natureza – as quais perduram graças ao ciclo
de reprodução- não são apagadas pelo tempo.
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Na visão dos antigos, a narrativa histórica além de
conferir certa imortalidade a nomes, grandes feitos e discursos, também resguardava do esquecimento ações e acontecimentos relevantes que poderiam servir como exemplo
e ensinamento para as próximas gerações. Se o tempo humano também é cíclico, situações semelhantes tornam a
ocorrer no futuro, e, por meio desta semelhança, duas épocas entram em contato de forma que os eventos do passado
podem iluminar os eventos futuros. Ainda, a narrativa histórica indica quais formas de agir foram consagradas pelo
tempo e que devem ser imitadas na vida pública.
Contudo, segundo Arendt, o modo antigo de conceber o tempo e a história foi abandonado. A autora afirma
que a historiografia moderna possui uma outra concepção
de tempo que surgiu por influência da mudança na forma
de produzir conhecimento a partir do século XVII. Para a
autora, a preocupação da investigação científica passou a
ser centrada no conceito de processo: “pensamos e consideramos tudo em termos de processos, não nos interessamos
por entidades singulares ou ocorrências individuais e suas
causas distintas e específicas” (Arendt, 2005, p. 93). Para a
moderna maneira de pensar, nada é significativo em si ou
por si mesmo, a noção de processo engolfa todas as coisas
tangíveis e individuais. Por conseguinte, o processo adquiriu o monopólio da significação. No caso da história, o processo consiste na sequência temporal que confere a significação e o contexto.
Na época moderna a História emergiu como algo
que jamais fora antes. Ela não mais compôs-se dos
feitos e sofrimentos dos homens, e não contou mais
a estória dos eventos que afetaram a vida dos homens; tornou-se um processo feito pelo homem, o
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único processo global cuja existência se deveu exclusivamente à raça humana (Arendt, 2005, p. 89).
A autora mostra que a historiografia grega antiga
tratava da narrativa das ações humanas pontuais e não inseridas em um processo histórico e explicada por relações
causais, isso porque os rumos da história eram provenientes
da deliberação e da iniciativa de seus agentes, ao invés de
uma possibilidade única e necessária.1 Essa concepção de
ação humana como resultado de uma deliberação coletiva
que não está determinada por causas que determinam o que
será feito nem qual será o resultado é apropriada por nossa
filósofa quando trata de uma das atividades da vita activa
que formam a condição humana – a política.
Arendt contrasta a historiografia antiga e moderna,
porém não mostra como a historiografia e a concepção de
tempo sofreram alterações entre um período e outro. Newton Bignotto (1992) faz essa análise no artigo “O círculo e a
linha”, onde o autor também reforça esta concepção circular
de tempo da Antiguidade em que a narrativa dos acontecimentos presentes poderia servir para compreender a na1 Apesar de Arendt e outros pensadores relacionarem Heródoto e Tucídides,
os dois não tratavam a história da mesma forma. Tucídides foi o primeiro a
rechaçar a maneira de investigação histórica de Heródoto: em primeiro lugar,
por este explorar fatos abrangentes e não se restringir ao exame da vida política;
em segundo lugar, pelo fato de Heródoto não deixar claro quais histórias e testemunhos ele considerava como verdadeiros. Nesse sentido, Tucídides acusou
Heródoto de ser leviano por não se responsabilizar por tudo o que registrou.
De acordo com Momigliano, no século XIX, os escritos de Tucídides e Heródoto voltaram a ser estudados. É curioso que naquele contexto eles não foram
considerados historiadores com métodos distintos: admirava-se Tucídides pelas
qualidades que se havia encontrado em Heródoto. Assim, os dois historiadores
gregos foram entendidos na contemporaneidade como modelos complementares: a história da civilização complementava a história política e vice e versa. Ver
em As raízes clássicas da historiografia moderna, p. 83.
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tureza humana e acontecimentos semelhantes no futuro.
Na Antiguidade, a Fortuna (deusa da sorte e do destino)
simbolizava a instabilidade e a circularidade das coisas humanas, representava uma natureza ou leis que afetavam a
vida dos seres humanos. A roda da Fortuna mostrava que
a vida é feita de mudanças que mexem com a vida humana, mas não a definem completamente. Existe um espaço
aberto para que os seres humanos possam vencer o destino.
Nesta perspectiva, aquele que conhecia as histórias do passado sabia lidar melhor com a mudança dos tempos, podia
entender sua dinâmica circular e se portar de modo acertado nas épocas de mudanças, de altos e baixos que a roda da
Fortuna tem. Uma vez que esta roda trazia mudanças, mas
não novidades, era possível usar o passado como referência
e os grandes homens como modelo.
Esta concepção circular de tempo sofreu uma modificação com o surgimento e consolidação do cristianismo. De
acordo com Bignotto (1992), a Bíblia narra uma história linear da criação e da presença humana no mundo como uma
sucessão contínua de acontecimentos. A Criação dá origem
ao mundo e ao homem. A queda e o pecado original introduzem os homens no tempo (que será marcado pela busca
da salvação da alma). A vinda de Cristo a terra traz uma
novidade e indica o caminho para salvação. Ao fim, virá o
Juízo final, o qual representa o fim da história e a chegada da
eternidade – de certo modo a saída do tempo, o responsável por mudar as coisas. No contexto cristão, temos, de um
lado, a história sagrada, que revela a presença de Deus e sua
providência, que se pode conhecer por meio das escrituras
sagradas; e, de outro lado, temos a história secular, das instituições humanas. Agostinho de Hipona (1996, 2000) introduz com sua filosofia esse dualismo dos tempos – um linear
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e outro circular, um ligado à eternidade de Deus e da alma
humana, outro à finitude do corpo e do mundo humano – e
duas histórias: uma sagrada e outra secular. Tal dualidade
de tempo e da história que surgiu na Antiguidade tardia,
será adotada durante a Idade Média. Ainda, com o domínio
da Igreja e da filosofia cristã, a história sagrada será mais
importante, uma vez que ela está relacionada com os desígnios divinos e com a imortalidade da alma.
A partir do século XII, essa desqualificação do tempo
humano, da história das instituições e das ações humanas
começou a ser atacada. Poucos séculos depois, no renascimento, ocorreu uma valorização dos feitos humanos e um
resgate da importância da história secular e do tempo cíclico. As cidades italianas, como Florença e Veneza se colocaram contra a influência da Igreja e contra as monarquias e
impérios. Nesse contexto, os pensadores renascentistas retomaram as ideias antigas parar tratar das leis e das formas
republicanas e junto com o pensamento político retomaram
também a concepção de tempo.
Podemos observar isto no pensamento de Maquiavel.
Este autor retoma a concepção de história expressa por Cícero com o topos Historia magistra vitae, da história como
mestra da vida. Ele se dedicou ao estudo dos relatos históricos com o escopo de servir de inspiração para as pessoas
de seu tempo, uma vez que os regimes políticos do passado poderiam orientar a estratégia de ação dos governos de
sua época. Dessa forma, embora a maior parte dos humanistas tivessem receio da experiência republicana romana,
agarrando-se aos exemplos de Esparta e Veneza, Maquiavel
(2007, I, 6) recomenda tomar a República Romana como
exemplo histórico a ser seguido, uma vez que suas virtudes
políticas foram provenientes da virtù de seus cidadãos, não
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da fortuna ou do acaso. Para Maquiavel, Esparta garantiu a
solidez de suas instituições por um longo tempo por sorte: seu isolamento político e a população homogênea eram
obras de sua posição geográfica isolada.
Embora os pensadores do renascimento tenham
resgatado a concepção de tempo cíclica antiga, eles não
romperam completamente com o pensamento cristão e
não descartaram o tempo linear da história sagrada, eles
aproximaram os valores e concepções temporais antigos e
medievais mesmo que estes tenham surgido em oposição
a aqueles. Bignotto mostra que, desse modo, os renascentistas acabaram por criar fissuras tanto nas teorias do tempo
e da história medieval, quanto nas teorias greco-romanas.
Em outras palavras, os filósofos do renascimento não produziram uma nova historiografia e uma nova concepção de
tempo, mas ao confrontar o pensamento antigo com o medieval criaram a abertura necessária para que, nos séculos
seguintes, fosse elaborada uma nova concepção de tempo e
história para a idade moderna.
Conforme mencionado acima, Arendt aponta que no
século XVII se iniciou uma mudança nos métodos de investigação das ciências naturais que passou a valorizar os
processos. Tal mudança acabou por impactar também a
história de modo que a historiografia moderna, ao invés de
narrar acontecimentos de modo a trazer uma diversidade de
estórias de fatos e feitos significantes por si mesmos, passou
a encadear uma narrativa na outra para encaixar os acontecimentos nessa concepção de processo. Assim, a história
passou a ser uma grande narrativa linear de um processo
feito pela humanidade. Na perspectiva moderna, o significado dos acontecimentos só pode ser entendido enquanto
parte de um processo.
27
No século XVIII, com o projeto iluminista, o processo
histórico foi compreendido como progresso em todas áreas:
na ciência, no conhecimento, na política, na moral (valores e costumes) e na economia. Nelas, havia uma concepção
que na passagem temporal da antiguidade para aquele momento ocorreu um melhoramento de todas estas áreas em
razão do acúmulo de conhecimento e de experiências pela
humanidade que continuaria avançando no futuro. Neste
contexto, a concepção de tempo linear e progressista criava
uma temporalidade que levava as pessoas e grupos sociais
a pensar que sua história individual e coletiva teria que ser
construída por acúmulos e avanços. O ontem foi pior do
que hoje e o amanhã deveria ser melhor, isto é, o ritmo do
progresso deveria ser constante. A partir dessa percepção
e projeto de progresso linear dos conhecimentos, podemos
perceber a formação da concepção de tempo que encadeia
passado, presente e futuro, que direciona a ação da humanidade que deve sempre segui-lo, distinto do que havia antes,
um modelo de ação.
Não havia ainda ideia de aceleração do tempo, de
ruptura e inauguração do novo. Tais ideias só apareceram
com a Revolução Francesa. Em 1789, a concepção de tempo
circular na esfera política foi suplantada totalmente quando
um acontecimento sem precedentes históricos até o século
XVIII ocorreu, uma vez que os agentes não puderam encontrar situação semelhante no passado para guiar os atores-espectadores das revoluções. O conceito moderno de revolução passou a ser associado a um novo conceito de história
em que o tempo não era mais circular, já que a mudança
na estrutura política não foi por meio da substituição entre
regimes políticos, mas da implementação de uma nova estrutura constitucional, e consequentemente um novo modo
28
de se fazer política. Nesse contexto, a história deixou de ser
entendida como um estoque de experiências exemplares,
não havia modelos de ação para os revolucionários.
De acordo com Koselleck (2014, p.29, 2006, p.69),
esta evidente mudança no conceito de história pode ser observada na língua alemã com a substituição do termo Historie – que significava relato, narrativa histórica – para o
termo Geschichte – o qual consiste em um coletivo singular,
reúne as diversas histórias em uma única – que consistiria
na História em si. Por volta de 1780, o conceito Geschichte
absorve o conceito Histoire, assim a linguagem quotidiana
passa a utilizar apenas um termo tanto para a experiência
da realidade quando para a história enquanto conhecimento científico, como ocorreu também em língua portuguesa-brasileira, o termo “estória” que trata de relatos narrativos
foi absorvido pelo termo “história”, ciência que trata do relato histórico coletivo.
A história entendida como Geschichte deve trazer à
luz motivos ocultos, extrair dos acontecimentos uma ordem causal. Nesse sentido, a história deixa de ensinar a prudência e virtude passadas que poderiam guiar as ações no
presente para se tornar uma ciência que indica as causas e
efeitos dos fenômenos e a tendência do processo histórico.
Nessa perspectiva, o futuro é planejável, ou seja, é possível
que se produza o futuro ao se conhecer o espírito da época, o Zeitgeist, e a dinâmica de causa e efeito. Vale destacar que, de acordo com Koselleck, os conceitos de filosofia
da história e de Geschichte surgiram nas mesmas décadas,
de modo complementares. Assim como Koselleck, Arendt
também reconhece a mudança do olhar para o passado e a
complementariedade entre a filosofia da história e o conceito moderno de história. De acordo com ela, ambos acabam
29
por negligenciar as particularidades dos eventos e explicá-los em uma perspectiva de progresso, especificamente, um
progresso histórico.
Na contemporaneidade, essa concepção de progresso
e de uma tendência histórica passou a ser questionada. Para
Arendt (2005), essa concepção de história progressista lança
ao esquecimento todas as ações que apontariam para possibilidades que não se concretizaram. Ela conta a história da
sociedade como se a vitória da ordem social vigente fosse
inevitável, como se a história fosse a juíza do mundo, pois
o que existe no presente seria a melhor possibilidade, a que
venceu. Ora, no momento em que surgiram os regimes totalitários, como seria possível afirmar que tais regimes eram
necessários e melhores? Que guerras mundiais e totalitarismo são um progresso? A partir dessas considerações, percebe-se que o projeto iluminista estava fadado ao fracasso.
Não queremos aqui aprofundar esta visão sobre a
historiografia e seus métodos. O que queremos ressaltar
é que a concepção de tempo e história mudam, essas mudanças vêm de acontecimentos políticos. Como vimos, as
mudanças das formas de governo na Grécia e em Roma, o
surgimento do cristianismo, a consolidação do cristianismo
e da Igreja, o aparecimento das cidades-estados italianas
que enfrentaram o poder da Igreja e do Império, as revoluções políticas e, posteriormente as guerras mundiais e o
totalitarismo engendraram uma mudança na concepção de
história e de tempo. Nosso objetivo será de pensar como
tais mudanças produziram e produzem uma temporalidade, isto é, uma experiência subjetiva e social com o tempo
e com a história, uma relação com as narrativas históricas
que incidem na mente de cada um, nos afetos e nas relações
sociais e de poder.
30
Movimentos, Temporalidade e Contemporaneidade.
A partir desses elementos históricos, observamos que
há uma mudança nos conceitos de tempo e história em virtude dos acontecimentos políticos, que nos direcionam não
mais a uma concepção apenas circular ou linear. Koselleck (2014, p. 25) aponta uma complexa teoria dos tempos
históricos, na qual não há uma sucessão linear de acontecimentos históricos, mas estratos de tempo que não recaem na escolha ilusória entre tempo linear ou circular como
posto ao longo da tradição filosófica. De acordo com essa
estratografia, existem variadas concepções ou, nos termos
do autor, estratos de tempo em um mesmo período e local.
É dessa forma que observamos concepções de tempo distintas na Idade Média em que havia os tempos – sagrado e
secular. Koselleck (2014, p. 14) fala em estratos ao explicar
que em cada acontecimento político, por mais singular que
seja, sempre há algo do passado, repetido, relembrado, mas
também algum grau de alteração e novidade, depositando
assim sobre o antigo uma nova camada de sedimentação, o
que cria estratos de tempo. Relevos e paisagens diversas vão
se formando com estas sedimentações.
Devemos ratificar a distinção entre tempo, que consiste na demarcação de períodos (passado, presente, futuro,
antigo, moderno, novo, velho, dias, semanas, meses, anos,
eras) que determinam os diferentes ritmos nos quais nos
movimentamos. O tempo é compositor de destinos e tambor de todos os ritmos, como metaforizou Caetano Veloso na epigrafe deste capítulo. Já a temporalidade vincula-se
à experiência com o tempo, como se dá a significação ao
tempo, às eras, e como as atividades, os corpos, as mentes,
afetos e as subjetividades são impactadas por essa divisão e
31
sua significação. Não se trata apenas do encadeamento entre
passado, presente e futuro, mas como ele afeta o espírito, as
percepções, pensamentos, juízos, projetos, afazeres, limita
ou permite certos movimentos corpóreos e mentais.
Koselleck (2006, p. 306) formula duas categorias que
podem nos ajudar a compreender a temporalidade, pois tais
categorias indicam a relação entre passado e futuro, são elas:
“espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”. Para o
autor, tais categorias fundamentam as condições possíveis
da história. Dito de outra forma, todos os momentos históricos seriam constituídos por experiências vividas e expectativas daqueles que agiram ou sofreram. De acordo com
ele, quase todas as categorias formais surgiram do mundo
da vida, manifestamente as categorias “experiência” e “expectativa” têm um grau de generalidade maior, assim como
as categorias de “espaço” e “tempo”. Elas consistem em pares de conceitos que estão intimamente relacionados: não
se pode formar uma expectativa sem experiência e não há
experiência destituída de expectativa. Estas duas categorias
entrelaçam o passado e o futuro. Experiência consiste nos
acontecimentos que são lembrados num presente, ou seja, é
o passado formulado em um momento específico. A história, nesse sentido, é composta por experiências alheias (Koselleck, 2006, p. 309). Já a expectativa consiste em um futuro
como ‘ainda não’, é ao mesmo tempo algo pessoal e interpessoal. A experiência, uma vez vivida, está completa; de forma
diferente, a expectativa se decompõe em uma infinidade de
momentos temporais.
A experiência é, para nós, um repertório de movimentos enquanto a expectativa são as possibilidades desses
movimentos para serem vivenciadas. Quanto mais limitada
a experiência, mais limitada será a projeção para futuro e
32
os movimentos no presente. No entanto, as experiências e
as expectativas não estão diretamente relacionadas, como
podemos perceber quando nos deparamos com a situação
em que o indivíduo, possuindo um espaço de experiência
limitado, sem um horizonte de expectativa amplo, modifica
sua compreensão de presente por meio da experiência de
outras agentes ou de instituições que vivam em outras temporalidades, portanto detenham outros repertórios, estabelecendo uma troca e fazendo com que a expectativa limitada
desse individuo se amplie.
Segundo o autor, as presenças do passado e do futuro
são distintas, razão pela qual se articulou a palavra “espaço”
com experiência e “horizonte” com expectativa. Espaço, na
expressão “espaço de experiência”, significa extratos de tempos anteriores reunidos em um só lugar. Horizonte, no termo “horizonte de expectativa”, alude a uma linha ou plano
no qual se abre o futuro que pode ser contemplado, mas não
delimitado (Koselleck, 2006, p. 311). As expectativas não
podem ser deduzidas completamente da experiência, embora elas sejam baseadas nela, em outras palavras, o futuro
nunca é o resultado puro e simples do passado. A experiência libera e orienta prognósticos, e os prognósticos, por sua
vez, abrem expectativas não contidas na experiência. Com
a nossa discussão sobre temporalidade visaremos a refletir
como a relação entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa na modernidade interferiu em formas de
pensar, querer, julgar, sentir e nas formas de ação humanas,
a partir das temporalidades produzidas pelo capitalismo e o
desenvolvimento da tecnologia.
Koselleck mostra que a coordenação entre espaço de
experiência e horizonte de expectativa se modificou ao longo da história. De acordo com o autor, na Modernidade, as
33
expectativas se distanciaram progressivamente da experiência. No início da Modernidade, quando a maioria ainda
vivia no campo, a história era ligada aos ciclos naturais, as
mudanças eram lentas e por isso não provocavam uma ruptura entre a experiência adquirida e a expectativa que fora
transmitida pela geração precedente. Isso se modificou com
a emergência do conceito de progresso – o qual surgiu no
século XVIII, quando novos fatos e eventos dos três séculos
anteriores foram reunidos em um novo espaço de experiência (Koselleck, 2006 p. 316-319). O conceito de progresso
determina que as coisas humanas, ao contrário dos ciclos
naturais, se desenvolvem com o tempo. Dessa forma, a história adquiriu um caráter processual. O futuro como portador do progresso repercute na forma de ver o passado: se o
presente e o futuro não são mais vistos como semelhantes
ao passado, a história deixa de ser entendida como um estoque de exemplos. Nesse contexto, a experiência se distanciou da expectativa. Para ilustrar este afastamento, Koselleck (2006, p. 324) menciona a ideia de “federação dos povos”
de Kant, conceito de pura expectativa que não correspondia a experiência alguma. A ação no presente se tornou o
instrumento que poderia superar o distanciamento entre
o espaço de experiência e o horizonte de expectativa. Em
outras palavras, com a noção de progresso, o futuro deixou
de ser previsível, mas passou a ser planejável por prognósticos e teorias programáticas. Segundo o autor, expressões
como “liberalismo”, “comunismo” e “fascismo” engendram
conceitos de movimento, os quais procuram influenciar a
ação para acelerar o progresso e atingir o futuro desejado
(Koselleck, 2006, p. 326). Observamos que Koselleck marca
uma especificidade da temporalidade na modernidade. A
emergência do capitalismo impactou nesse tempo e tempo-
34
ralidade modernos e para compreendê-la vamos levar em
consideração a teoria do filósofo húngaro István Mèszáros.
É possível notar que além de uma história e tempo da
humanidade, existe também uma história e tempo pessoal. Devemos destacar também que o corpo social do qual o
indivíduo pertence e contribui para o desenvolvimento histórico da humanidade durante seu tempo de vida, já que o
tempo da humanidade é distinto do tempo dos indivíduos
particulares. Essa ideia de distinção entre tempo da humanidade e tempo dos indivíduos particulares é articulada por
István Mèszáros em “O desafio e o fardo do tempo histórico” ao afirmar que
O tempo histórico da humanidade transcende o
tempo dos indivíduos [...] A humanidade não age
por si mesma, mas por meio da intervenção dos indivíduos particulares no processo histórico, inseparável dos grupos sociais aos quais os indivíduos pertencem como sujeitos sociais (Mèszáros, 2007, p.35).
Para István Mèszáros o tempo histórico humano –
não cosmológico nem metafísico – é proveniente da necessidade humana histórica sem determinações naturalistas –
entre tempo do indivíduo e tempo da humanidade-, ambos
provenientes de uma ordem natural, vinculados a formação
da estrutura social na tradição e a uma concepção linear.
De acordo com Mèszáros, o tempo de vida dos indivíduos
potencialmente significativo é inserido em um projeto humano historicamente articulado, ou seja, o desenvolvimento produtivo da humanidade, “que pouco a pouco liberta os
indivíduos dos constrangimentos brutos de sua remota existência, restrita à mera sobrevivência, e institui para eles o poder de fazer escolhas genuínas” (Mèszáros, 2007, p. 34).
35
Nessa relação entre indivíduos e a humanidade, de
acordo com Mèszáros, podemos perceber a formação e a
atualização de valores além daqueles dos indivíduos particulares. Isso porque há o tempo de sobrevivência do indivíduo particular no passado remoto, também há o tempo livre
disponível aos indivíduos que contribuirá para o desenvolvimento produtivo da humanidade. No entanto, nos cabe ressaltar que essa posição do filósofo não pode ser generalizada
como se todos possuíssem um tempo disponível individualmente para contribuir com um projeto de humanidade, na
verdade isso é realidade para os trabalhadores formais, já os
informais permanecem submetidos a trabalhos análogos à
escravidão e a maioria das mulheres com dupla e por vezes
tripla jornada contribuem para desenvolvimento produtivo dessa humanidade, porém encontram-se excluídos dela,
não usufruindo do que produzem e são submetidas a um
modo de vida que confere pouca possibilidade de modificar
sua história pessoal e os rumos da humanidade. Tal situação
é retratada por Zé Ramalho em sua música “Cidadão”:
Tá vendo aquele edifício, moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Era quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me vem um cidadão
E me diz, desconfiado
Tu tá aí admirado
Ou tá querendo roubar?
36
Dessa relação entre o tempo dos indivíduos e o tempo
da humanidade podemos observar a fundação do valor e
do contravalor. A humanidade possui potencialidades desenvolvidas pelas atividades dos indivíduos (separáveis dos
grupos sociais a que pertencem), no entanto temporalmente há uma distinção entre a atividade dos indivíduos e da
humanidade que formam um processo de progressão histórica na escala temporal, por isso o conflito de valores – afirmação ou contestação – é vital para o autodesenvolvimento
da humanidade. O tempo histórico da humanidade não é o
mesmo do tempo dos indivíduos, vai além.
Essa classificação entre o tempo histórico do indivíduo e da humanidade suscita questões, diversas daquelas da
Antiguidade, uma vez que esse tempo vinculado a estrutura
social nos impõe questões filosóficas sobre um tempo ressignificado pelas relações econômicas. Assim, para compreendermos nossa relação contemporânea com o tempo, não
podemos nos privar de compreender a questão econômica
que permeia nossas relações sociais. Podemos observar que
nossa concepção ordinária de tempo está submetida ao tempo do capital e ao nosso modo de produção. A concepção
linear de tempo vinculou-se a formação da estrutura social
na tradição. No entanto, Mèszáros (2007, p. 34), ao tratar
do tempo histórico, sintetiza essa distinção entre tempo do
indivíduo e tempo da humanidade, considerado por ele um
fardo, a um único tempo submetido à tirania, trata-se do
tempo do capital conforme nosso modo de produção.
Retomando a linha de argumentação de Mèszáros,
concluímos que o tempo do capital subjuga os demais tempos, ditando o ritmo do processo histórico – individual e da
humanidade. Não obstante, devemos nos atentar que esse
tempo carrega contradições em sua estrutura ao ser distri-
37
buído de maneira desigual entre as diferentes classes sociais.
Para compreendermos a relação entre o tempo do indivíduo e da humanidade na atualidade, devemos compreender o tempo do capital. Essa relação entre humanidade e
natureza torna-se um círculo vicioso eternizado, que não
pode fugir a perspectiva do capital graças ao sistema socio
econômico que estamos inseridos. Isso porque, tal qual nos
elucida Mèszáros, o capital é historicamente reproduzido de
maneira socio metabólica: um processo construído a partir
da relação entre natureza e sociedade uma vez que para que
a relação entre capital e homens se mantenha, faz-se necessário que o capital continue sua autoexpansão que se dá pela
exploração da natureza e do tempo de trabalho degradado.
“O capital, portanto, deve tornar-se cego com relação a todas
asdimensõesdotempodiversasrelativaaotrabalhoexcedente explorado ao máximo e o correspondente tempo de trabalho” (Mèszáros, 2007, p. 33).
Quando lidamos com as características do capital, observamos que as relações humanas historicamente criadas
tornam-se significativas ao se tornarem intrínsecas a ele,
isto é, inserindo a acumulação na ordem social, seja relações
pessoais dos indivíduos entre si com vínculos monetários
ou enquanto grupo social direcionado pelo imperativo da
lucrabilidade obtida pela exploração de classe e a dominação estrutural. Todas as relações não inseridas nessa estrutura do capital são destituídas de significado.
De acordo com Mèszáros, a relação entre indivíduos
e humanidade aparece de forma tardia na história, principalmente porque não havia uma noção de indivíduo como
compreendemos atualmente, a relação entre indivíduo e
comunidade era apenas um borrão, de uma maneira geral
a distinção que tratamos aqui a partir de Arendt e Mèszá-
38
ros aparece na forma literária e filosófica apenas no século
XX como uma consciência cotidiana e em um formato não
religioso. No entanto essa consciência não se relaciona a
situação contingente da humanidade, mas ao seu destino
gravemente ameaçado, por colocar em risco a sobrevivência da humanidade em virtude dos desenvolvimentos sociais e económico que trazem uma imposição de contra
valor e no qual o papel da moralidade assume um papel
de luta contra esses riscos inerentes a crise estrutural do
capital, embora haja aqueles que o ignorem ou neguem
(Mèszáros, 2007, p. 33)
Nessa estrutura das relações sociometabólicas do capital, Mèszáros traça uma distinção entre mediações inevitáveis de primeira ordem, definidas como as relações entre a
natureza e a humanidade, e as especificas de segunda ordem
como as relações entre as classes, de dominação e subordinação, ambas inseparáveis entre si. Mèszáros afirma que
os desenvolvimentos sociais atuais passam por deturpações
ao tratar as mediações de segunda ordem do capital como
se fossem de primeira ordem, insubstituíveis na interação
sociometabólica, ou seja, nas premissas práticas vitais da ordem social. Em outras palavras, ao invés das relações de dominação social e de mercado serem tratadas como laterais,
se tornam mais importantes do que as relações entre seres
humanos e natureza que tratam de elementos vitais para a
sobrevivência. De acordo com Mèszáros (2007) na história
do pensamento econômico, houve uma reforma do sistema
do capital para evitar essas deturpações que segundo ele
estavam fadadas ao fracasso, e eram explicadas a partir da
circularidade entre as premissas práticas preconcebidas e as
operações da ordem sociometabólica do capital, tratava-se
de imperativos reprodutivos nas premissas práticas.
39
Essa contradição, inicia-se logo quando o capitalismo
surge, a partir uma mudança entre as mediações de primeira
ordem e de segunda ordem já que “todas as demandas mediadorasprimáriasdevemsermodificadasdemodoadequar-se às necessidades auto-expansivas de um sistema de controle reprodutivo social fetichista e alienante, que subordina
absolutamentetudoaoimperativodaacumulaçãodecapital
(Mèszáros, 2007, p. 41). Nesse modo econômico do sistema
capitalista, para que essas necessidades desse sistema sejam
expandias, realiza-se uma tentativa de redução tanto custos
de produção materiais quanto de custos do trabalho vivo
associado a uma contabilidade do tempo do capital inserido
em uma luta contra a escassez. Por esse motivo, esse sistema é auto contraditório, uma vez que aniquila conquistas
em um plano por meio dos absurdos apetites artificiais de
expansão criados pelo próprio sistema e por outro pela crescente escassez, consequência de seu mecanismo.
Nessa estrutura do capital, observamos a relação
desse sistema econômico não apenas com o valor da sua
produção mas, também, com um valor de uso, existente
a partir da harmonia entre os imperativos apriorísticos
do valor de troca e sua auto-expansão que nos leva a uma
situação irônica, pois ao analisarmos a filosofia marxista
do capital que se considera uma filosofia utilitária a partir de um conceito de utilidade não lucrativo, suprimido e
substituído pela mercantilização universal dos objetos das
relações humanas, observamos que tal estrutura distingue-se daquela em que os meios de produção expropriados juntamente com a distribuição desigual dos meios de
subsistência formam o conflito de classe. A distribuição na
sociedade capitalista é a distribuição dos seres humanos
em classes sociais antagônicas que integram uma hierar-
40
quização social em que há uma dominação da produção
ordenada de forma hierárquica.
Também podemos verificar tal ideia de distribuição
das riquezas nas obras do filósofo alemão Hegel quando
afirma que os meios de produção são os meios de subsistência assim como o trabalho em geral é o trabalho socialmente
dividido, criando o “capital permanente universal” (Mèszáros, 2006, p. 42). Podemos observar como e quem são os
agentes dessa distribuição em A Filosofia do Direito, quando
Hegel divide a eticidade em três momentos: 1. a família é a
parte da estrutura em que desempenhamos as primeiras relações de membro com atribuições de subsistência, cada um
cumprindo um papel, da primeira forma social humana; no
entanto a família não se subsiste por si só e com o tempo a
família se esfacela, uma vez que naturalmente com o passar
do tempo cronológico, os filhos precisam sair da esfera familiar para trabalhar, adentram a 2. sociedade civil formada
por um sistema de carecimentos, em que as pessoas sentem
necessidades, atendidas pelas relações de compra e venda da
força de trabalho, preservação da riqueza e do patrimônio,
além da oferta de produtos e serviços, tais membros passam
a ter relações de membros não mais por meio da estrutura
familiar mas como integrantes de um grupo de trabalho de
uma corporação (que podemos atualizar pelo conceito de
empresa ou de igreja que também é uma corporação) na
sociedade civil, não obstante tal riqueza consegue ser produzida mas não consegue ser distribuída pela estrutura
dessa sociedade, já que observamos que alguns indivíduos
conseguem acumular mais riquezas do que outros, levando algumas pessoas ao estado de miséria, localizando esses
indivíduos a margem da sociedade e sem a percepção que
pertencem a uma sociedade, que Hegel denomina como po-
41
pulaça. A partir desse diagnóstico hegeliano da ausência de
mecanismo de distribuição de riqueza para a população em
geral, ele nos fornece uma solução ao estabelecer que deve
existir uma instituição que ultrapasse os limites da família e
da sociedade civil que possa cumprir essa função denominada por ele como 3. sociedade estatal, o Estado, que universalize as leis, as regras e o direito, podendo concluir que
o Estado é a peça de equilíbrio de uma sociedade.
No entanto, na estrutura desse sistema socioeconômico, mesmo inseridos numa sociedade estatal, não observamos que esse projeto hegeliano tenha sido realizado, na
verdade, ao invés da distribuição de um capital permanente
universal entre os membros de uma sociedade civil, verificamos que o ser humano é reduzido a coisa reificada, a uma
“carcaça do tempo” (Mèszáros, 2007, p. 42) em que o valor
inerente e a especificidade humana dos indivíduos é analisada pela atividade produtiva essencial na produção alienante,
uma vez que na lucratividade capitalista não há lugar para a
efetivação do valor específico dos indivíduos e o contravalor
deve prevalecer em situações de dominação como relação
de valor prático. Em contraposição a essa contabilidade de
tempo capitalista, temos a contabilidade socialista contra o
processo capitalista em que o tempo desumanizador do capital reina sob o imperativo fetichista.
Já que trabalhamos com contraposições dicotômicas
até aqui, a contraposição do tempo do trabalho num sistema capitalista, seria o do tempo livre, já mencionado, no
entanto, percebemos que até mesmo ele não é desprovido de
sentido para a estrutura do capital, pelo contrário foi integrado ao tempo capital. Para aqueles que conseguem dispor
desse tempo livre no nosso sistema de produção econômica,
ele é convertido em lazer ocioso com o objetivo de se enqua-
42
drar no imperativo da acumulação de capital, pois apenas
assim passa a fazer sentido, quando é apropriado e inserido
na estrutura desse modo de produção, estabelecendo uma
hierarquização no mundo do entretenimento e modificando nossa relação com o tempo livre.
Não se trata mais de um tempo em que esquecemos
as conturbações do nosso tempo de trabalho na estrutura
do capital, mas esse tempo passa a ser um tempo que deve
ser compartilhado com os demais integrantes da estrutura
social por meio das redes sociais e que pode servir de dados para nos compreender como consumidores de outros
produtos de entretenimento no futuro. Nossos hábitos nesse
tempo de lazer produzem um comportamento no tempo de
lazer que não se encontra estritamente relacionado com o
nosso tempo como indivíduo, mas com uma imagem que
queremos construir para outros, por exemplo, não basta
que estejamos em um momento de fruição em um museu, o
importante é que possamos compartilhar com os demais o
que escolhemos fazer para esse tempo de lazer, produzindo
um valor que produzirá desejos em outros, movimentando
o sistema capitalista.
Já na contabilidade socialista deve-se ter a tarefa de fazer sempre o melhor uso do tempo livre disponível na sociedade para expandir ao máximo o interesse de todos, assim
os indivíduos sociais podem enriquecer pelo processo do
exercício criativo do tempo livre disponível que é negligenciado na sociedade capitalista. No entanto, nessa estrutura
do capital, observamos que a conquista da humanidade do
tempo livre também se encontra incorporado ao trabalho
excedente e produtivamente crescente da sociedade, a mais
valia. Isso porque tudo o que não é lucrativo nesse sistema
deve ser considerado irrelevante, inexistente ou destruído,
43
resistir ao capital parece não ser uma possibilidade. Se o valor humano dos indivíduos é excluído da estrutura como os
objetos são produzidos a partir das necessidades humanas?
Como os valores de uso podem corresponder as necessidades dos seres humanos? Essas necessidades são criadas pelo
capital? E como necessidades criadas pelo sistema interferem nas relações sociais?
Os seres humanos se adequam aos parâmetros produtivos e ao gênero de produção desse sistema em que
tudo é mercadoria lucrativamente comerciável com uma
razão de ser de acordo com a contabilidade do tempo do
capital. Dessa forma não há avaliação sobre as necessidades dos indivíduos sociais e sobre a questão de quais objetos devem ser produzidos com o tempo dedicado a cada
produto, há um mecanismo com base em escolhas que não
partem da necessidade humana. O contravalor lucrativo
determina com a contabilidade do tempo capitalista que
os seres humanos sejam reduzidos a carcaça do tempo,
como afirma Mèszáros.
Na contabilidade capitalista, sua estrutura é direcionada pela mais valia já na contabilidade socialista, a expansão produtiva do capital excedente e o tempo livre de modo
criativo são os direcionadores da sua estrutura. Dito isto,
observamos que a história das sociedades de classe sempre
foi marcada pela extração forçada de trabalho excedente,
seja política ou econômica. Essa extração lucrativa de trabalho do capital, a mais valia, características da ordem social
do capital, não modificou a relação exploratória, tornou dominante a expropriação econômica forçada do capital excedente, fazendo com que os seres humanos se reduzissem a
carcaça do tempo quando a serviço da mais valia para acumular cada vez mais. O desafio histórico é tentar alterar essa
44
extração forçada e determinar tempo livre para propósitos
escolhidos conscientemente pelos indivíduos sociais.
Mèszáros, dialogando diretamente com Hegel e Marx,
defende a posição de que houve uma perda da consciência
do tempo histórico, uma vez que ao observarmos o desenvolvimento teórico ao longo da história, podemos perceber
que a história da tradição filosófica burguesa torna-se cética
e pessimista depois da concepção de progresso da humanidade ao longo da história defendida pelos filósofos alemães
Hegel e Marx, seguindo a toada de pensadores como Alexis
de Tocqueville e Ranke que negavam a concepção de filosofia da história, em específico a defendida por Hegel, já que
de acordo com ele, Hegel não inseria o agente humano na
história. O historiador Sir Lewis Namier também critica a
filosofia da história, considerada anti-histórica e predominante nas ideologias burguesas do século XX.
Essa visão da filosofia da história traçada por Hegel é
um reflexo da tradição iluminista sobre a teoria da história
ao estabelecerem uma linha divisória entre o mundo natural
e o mundo social produzido pelo homem e regido por regras
de desenvolvimento sócio-histórico. O iluminismo estava inserido no período histórico da modernidade que tinha como
um de seus preceitos diretores a razão humana que colocava
o homem em um status hierárquico superior aos demais animais e a natureza, estabelecendo um projeto de progressão
linear não apenas na ciência com o desenvolvimento da técnica e do conhecimento, mas também na política, economia
e ordem social, nos remetendo a uma ideia de porque somos
detentores de razão podemos tudo nesse percurso do desenvolvimento. Inclusive associando o desenvolvimento do conhecimento a um ideal de felicidade já que haveria um melhoramento nas condições de qualidade de vida do homem.
45
Não obstante, na contemporaneidade, compreendemos que o progresso não é um termo neutro como defendem
Marcuse e Hans Jonas, que no caso de Marcuse não se trata
de uma visão determinista de Marx, mas da ênfase de que
não há neutralidade na técnica, na tecnologia e na ciência,
há uma noção de progresso atrelado a elas, e que essa noção
nem sempre será a de melhoria da condição humana que virá
apenas com um comprometimento com a dignidade da vida
humana, por meio de uma consciência humana. Tal visão de
progresso iluminista e moderno que percorre um percurso
linear e nos leva em direção a um fim específico de aprimoramento da condição humana já não cabe na contemporaneidade como o mundo presenciou ao observar o lançamento
das bombas atômicas pelos Estados Unidos nos dias 6 e 9 de
agosto de 1945 nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki com o objetivo de forçar a rendição japonesa e evitar
uma possível invasão durante a II Guerra Mundial.
Marcuse nos alerta sobre essa contradição interna na
sociedade industrial, enquanto a consumação da racionalidade tecnológica é nossa pulsão de desejo, travamos intensos
esforços para conter esse valor de uso negativo desses instrumentos ao usá-los na dominação eficiente do homem sobre a natureza e posteriormente do homem sobre o homem,
denominado por nosso frankfurtiano como “o elemento irracional da racionalidade de nossa civilização” 2. Não é possível organizar esses instrumentos do mesmo modo para a
paz quanto para a guerra, não podem servir a guerra e ao
mesmo tempo a paz? De acordo com Marcuse quando a racionalidade desse progresso vai de encontro a melhora da
condição humana como ele diagnostica ter acontecido com
2 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial, p. 36. Cf. o original MARCUSE, Herbert, One Dimensional Man, p. 19.
46
a sociedade industrial, deveríamos criar uma condição de
vida de emancipação em relação ao labor – aspecto negativo
do trabalho – e essa condição poderia ser a libertação desse
labor ou a “abolição do trabalho” de Marx, o que justificaria
uma subversão do comportamento humano nos dirigindo
para uma nova organização desse progresso dominante. Tal
qual Marcuse declara ao descrever que
Essa fase seria atingida quando a produção material
(incluindo os serviços necessários) se tornasse automatizada a ponto de todas as necessidades vitais
poderem ser atendidas enquanto tempo de trabalho
necessário fosse reduzido a um tempo marginal. Daí
por diante, o progresso técnico transcederia ao reino da necessidade no qual serviria de instrumento
de dominação e exploração, que desse modo limitava sua racionalidade; a tecnologia ficaria sujeita à
livre atuação das faculdades na luta pela pacificação
da natureza e da sociedade.3
No entanto, na atualidade, esse trajeto de pensamento iluminista que retira o homem da natureza como se o
homem estivesse num estágio hierárquico superior a ela é
negado, principalmente porque nos demos conta de que interferimos de modo violento no tempo circular da natureza,
trazendo consequências catastróficas. A historiografia bur3 MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial, p. 35. Cf. o original MARCUSE, Herbert, One Dimensional Man, p. 18: “This stage would be
reachedwhenmaterialproduction(includingthenecessaryservices)becomesautomated to the extent that all vital needs can be satisfied while necessary labor
time is reduced to marginal time. From this point on, technical progress would
transcend the realm of necessity, where it served as the instrument of domination
and exploitation which thereby limited its rationality; technology would become
subject to the free play of faculties in the struggle for the pacification of nature and
of society”.
47
guesa moderna em sua busca pela emancipação da tradição
do Iluminismo, tentam fundamentar o conhecimento histórico com o esclarecimento do poder do sujeito histórico
humano ao “fazer história”.
O desfecho histórico do Iluminismo com a Revolução
Francesa e as Guerras Napoleônicas nos remete a duplos
significados sobre o modo de produção do período que é a
origem das mais promissoras conceitualizações burguesas
como precursoras da lógica do capital e ao mesmo tempo de
apreensões sobre o papel do trabalho no desenvolvimento
histórico; além de ser a origem da expansão da ideologia.
Esses significados sobre o modo de produção foram consolidados com a ordem social estabelecida pela Revolução
Francesa, uma vez que houveram alterações conceituais sobre as questões político e econômica. As questões socio-econômicas e a relevância das lutas de classes conseguiram
reconhecimento dos historiadores burgueses, mesmo que a
estrutura social daquele período ainda fosse conservadora.
No entanto, com o fim do período moderno, essas categorias foram descartadas como conceitos do século, atribuindo a Marx a herança intelectual da qual queriam se desfazer,
assim como fizeram com o Iluminismo.
Com a ordem estabelecida pelo capital, podemos observar que a questão do ponto de vista da economia politica
para compreender que “fazer história” está em harmonia
com os interesses materiais e ideológicos dos dominantes
por meio das classes subordinadas a serviço dessa ordem
social. Mesmo que as forças sociais estejam engadas na
emancipação do domínio do capital, como ficará o projeto
fazer história e a instituição de uma nova ordem social? Alimentação, moradia, saúde, educação básica são inconcebíveis sem desafiar a ordem estabelecida.
48
Derradeiras considerações iniciais
Como observamos a partir do recuo histórico realizado, podemos determinar que em um mesmo tempo ou era,
podemos ter temporalidades diferentes, camadas de temporalidades (ou estratos do tempo no vocabulário de Koselleck). E na era moderna, desde a emergência do capitalismo,
identificamos duas principais temporalidades associadas: a
temporalidade da ordem e a temporalidade de exceção (que
no vocabulário do geógrafo Milton Santos chama-se de
temporalidades hegemônicas e não hegemônica ou não hegemonizadas). Para compreendermos a relação entre elas,
continuaremos com a ideia do homem como criador de
temporalidade também defendida por Walter Benjamin ao
afirmar que aprendemos que a narrativa histórica confere
significação ao tempo, aos acontecimentos, uma dada relação do presente com o passado e o futuro e é inseparável de
certa prática. Diante da ideia de que o homem é um criador
de temporalidades, Jeanne Marrie Gagnebin nos apresenta
Benjamin (1985, p. 7) ao afirmar que “[..] uma reflexão crítica sobre nosso discurso a respeito da história (das histórias), discurso esse inseparável de uma certa prática. Assim,
a questão da escrita da história remete às questões mais amplas da prática política e da atividade de narração”.
Extraímos desta reflexão crítica de Benjamin a descrição da temporalidade da ordem: um tempo homogêneo,
vazio e linear em que passado, presente e futuro formam
um contínuo com uma direção ao futuro, ao progresso,
como se a sociedade capitalista fosse uma evolução lógica
e necessária do tempo e da humanidade. Como se existisse
uma inteligência ou providência que conduzisse a humanidade à evolução científica e cultural. Mas o autor adverte
49
que “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a
cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão de cultura.” (Benjamin, 1985, p. 225).
Em nossa perspectiva, a transmissão da história oficial e a
significação do passado, presente e futuro em nossa sociedade como parte da cultura da sociedade capitalista não está
isenta de barbárie.
De acordo com Benjamin (1985, p. 225), o investigador historicista estabelece uma relação de empatia com o
vencedor, com os dominadores, por isso, a história produzida por ele será “um cortejo triunfal” que afirma que os que
venceram e dominam são os melhores, merecem a posição
social que ocupam. Os que venceram por seu suposto mérito e desenvolvimento deveriam levar a cultura e o progresso
aos outros, povos e grupos sociais atrasados, menos capazes. Desse modo, esta história linear, homogênea e evolutiva
acaba por sufocar outras narrativas, culturas e significações
temporais, bem como por apagar as possibilidades que não
se concretizaram, as alternativas que não permaneceram no
tempo, consideradas como derrotadas.
A conexão de passado, presente e futuro como um
tempo homogêneo que conduz ao progresso é aceita pelas
pessoas que vivem em espaços e condições materiais que
permitem pensar sua história individual dentro do progresso: com acesso a bens de consumo que proporcionam
bem-estar e são cada vez mais avançados (computadores,
tablets, celulares, televisores com tecnologias novas, de última geração; automóvel do ano ou de modelos mais novos,
comidas gourmet diferenciadas, roupas da moda, etc.). Pessoas pertencentes a grupos com algum prestígio social e que
conseguem em certa medida acumular algo (se não for di-
50
nheiro, pode ser viagens internacionais, cirurgias plásticas,
imóveis, etc.), desde que acumule.
No entanto, muitas pessoas vivem uma história decadente, perderam entes queridos, passam por privações de
todo tipo: de educação, emprego, roupa, comida, assistência de saúde, proteção, pois estão expostas à violência. Estas
pessoas não conhecem a melhoria de vida, seu presente não
pode ser considerado melhor que o passado, não possuem
muitas perspectivas de melhora ou mudança no futuro. Elas
vivem em uma outra temporalidade, uma temporalidade de
exceção. Como já nos apontava Benjamin (1985, p. 226), a
ordem capitalista engendra sempre a exceção: “A tradição dos
oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade regra geral.” Entendemos que na exceção o
passado, o presente e o futuro estão desconectados de alguma
forma, assim, as possibilidades de ruptura, de abertura de um
novo tempo, de um novo começo ficam ameaçadas.
Quem vive na temporalidade da ordem e do progresso
não busca um novo começo pois acredita que os problemas
do presente serão solucionados por uma nova invenção, tecnologia que estaria garantida pela evolução que o sentido da
história já comprovou existir. Quem vive na temporalidade
de exceção tem entraves para vislumbrar um futuro diferente do passado e do presente e para agir, porque o espaço
para elas também é limitado e de exceção. Trataremos nesse
livro do modo como estes entraves podem se apresentar. De
todo modo, estas duas temporalidades contribuem para a
permanência e sustentação da sociedade moderna capitalista como podemos observar na conexão que realizamos
entre temporalidade da ordem e da exceção, bem ilustrada
pela interpretação de Benjamin (1985, p. 226) do quadro
Angelus Novos de Paul Klee:
51
Representa um anjo que parece querer afastar-se
de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Onde nos
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os
fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e
prende-se em suas assas com tanta força que ele não
pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas,
enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos de progresso.
A temporalidade do progresso visa a fazer com que
as pessoas não olhem para trás e não vejam os escombros
que a sociedade capitalista produz. Mesmo aqueles que, assim como o anjo da história, conseguem ver o amontoado
de escombros tem como adversário o vento que imobiliza e
empurra para frente, que dificulta que vidas, corpos, afetos,
narrativas e possibilidades sejam resgatadas dos escombros.
Quem está dentre as ruínas, toda sorte de dominados que
vivem na exceção, têm imensa dificuldade de pular para fora
da barbárie uma vez que os escombros dificultam seu movimento. Estas ruínas que a sociedade capitalista deixa para
trás dizem respeito à temporalidade da destruição, uma das
formas de exceção.
52
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54
Temporalidade de Destruição:
Modernidade, capitalismo e temporalidade
de destruição.
Depois de nós já não havia mundo para receber mais
ninguém.
(Mia Couto. Terra Sonâmbula)
Provoca nossa tristeza caminhar entre ruínas, saber que
tanto esplendor e tanta vitalidade tiveram que desaparecer.
(Olgária Matos. A escola de Frankfurt)
Primeiras considerações
Neste capítulo discutiremos o surgimento do capitalismo, mostraremos como o progresso neste sistema econômico e social está relacionado com a destruição a qual acaba
por produzir uma temporalidade de exceção. Para fazer esta
discussão iremos, primeiro, apontar em que medida o capitalismo engendra destruição da natureza, de territórios,
modos de vida, culturas e pessoas. Ao final do capítulo trataremos do modo pelo qual esta destruição engendra uma
temporalidade e como ela se dá, isto é, como passado, presente e futuro ficam desassociados com o par produção/destruição, como isto altera subjetividades, expectativas, afetos
e a atividade política.
Trataremos, primeiro, da destruição da natureza,
mais especificamente sobre o início do antropoceno, uma
nova era geológica em que o homem passa a ser uma das
principais forças de modificação do espaço natural dada a
massiva exploração de recursos naturais para o comércio e
a indústria. Em seguida abordaremos a noção de progresso como acúmulo de capital e expansão que engendra não
só a circulação de mais mercadorias e geração de riqueza,
mas também um ciclo incessante de produção, destruição e
consumo. Nesta discussão mobilizaremos o pensamento de
Hannah Arendt e sua análise sobre a relação entre imperialismo, expansão e aniquilação.
Em seguida traremos o filósofo Achille Mbembe para
indicar que a acumulação capitalista envolveu o racismo, a
destruição e a violência desde o mercantilismo, pois o colonialismo, o racismo e o termo negro fazem parte do maquinário social capitalista. O autor mostra como o capitalismo
produz a morte na vida uma vez que seleciona um grupo
57
de pessoas que são tratadas como meros instrumentos de
trabalho como se não tivessem alma, afeto, razão e cultura
próprias. Tal desumanização se tornou um padrão de segurança no capitalismo: todo aquele que não seja espelho do
homem branco burguês deve ser controlado ou eliminado.
A violência se tornou, portanto, um dos pilares que possibilitaram o comércio no Atlântico e a acumulação para a
industrialização.
Silvia Federici concorda com Mbembe em que o maquinário social capitalista fragmenta a classe trabalhadora e
a explora e a viola de formas diferentes. A autora mostra que
a misoginia e o patriarcado, assim como o racismo, tiveram
um papel central na formação do proletariado moderno e
na acumulação de capital. Para Federici, o ódio e a violência contra as mulheres foi uma estratégia para fragmentar
a classe de trabalhadores, enfraquecer as lutas camponesas
e urbanas na Europa. O rebaixamento das mulheres serviu
para a apropriação do trabalho feminino, mal pago ou mesmo não remunerado no capitalismo e também serviu para o
controle da função reprodutiva das mulheres. Levando em
consideração, argumentamos que para que se tenha uma
política de destruição de pessoas, é necessário o controle
da produção de pessoas, isto é, o controle sobre os corpos,
principalmente, sobre o útero das mulheres.
O que iremos mostrar é que embora os defensores
do capitalismo e a história escrita por homens brancos
afirmem que a modernidade e a emergência de um novo
sistema social e econômico signifique progresso: crescente
liberdade individual, acesso a bens, aumento do bem-estar
e da riqueza. Isso só é verdade para uma parte da população,
pois a produção e a acumulação caminham ao lado da destruição. A maior parte do globo – florestas, rios, solo, ani-
58
mais, mulheres e racializadas – está sujeita à destruição, ou
seja, à violência, que é realizada em nome do capital. Nesse
sentido, uma grande parte do mundo vive em uma forma
de temporalidade de destruição, em que o esplendor e vitalidade da natureza, de culturas e de gente são destroçados,
em que um amontoado de escombros se junta enquanto se
glorifica o progresso de uma minoria e em que a morte se
dá em vida.
Mudança no significado de progresso:
par expansão e destruição
O progresso na historiografia capitalista é ligado a um
progresso na “qualidade de vida” entendida como maior
capacidade de produção e abundância no consumo. Este
progresso está ligado a um conceito corrompido de trabalho, tecnocrático, que destaca os progressos na dominação
da natureza e não olha para os retrocessos na organização
social e para os danos ecológicos causados pelo aumento da
produtividade do trabalho e do consumo.
A ciência e a técnica vêm tratando a natureza como
um objeto manipulável e, assim, tem buscado alterar a vida
em todos os aspectos, incluindo a vida humana, nas palavras de Arendt “produzir seres humanos superiores e lhes
alterar o tamanho, a forma e a função” (Arendt, 2010, p.
3). A autora adverte, entretanto, que o avanço tecnológico
não pode somente melhorar e manipular a vida humana,
mas também pode destruir toda a vida orgânica na Terra.
Podemos notar que isso pode ser feito tanto em poucos segundos, por meio de bombas atômicas e outras armas químicas e biológicas, como gradual e lentamente, por meio da
destruição de recursos naturais que possibilitam a vida no
planeta. Como diz a autora, o ser humano está “livre para
59
consumir o mundo inteiro” (Arendt, 2010, p. 163).
Levando isto em consideração, vemos que na modernidade os seres humanos deixam de se compreender como
parte do mundo natural e que, em certa medida, vivem o
tempo cíclico e de renovação da natureza. Uma vez que os
seres humanos passam a subjugar a natureza, manipular recursos e coisas naturais conforme seus desejos, reproduzir,
acelerar e modificar artificialmente processos ligados a vida
geológica e biológica, foi imposta a natureza, uma outra
temporalidade ligada ao progresso na produção e à destruição, uma vez que a natureza subjugada e atormentada não
possui tempo e condições de se renovar e refazer.
Arendt analisa a relação entre o capitalismo, expansão, progresso e destruição em Origens do Totalitarismo
(1951), especificamente, na parte que trata do Imperialismo
do final do século XIX e início do século XX. Para a autora, a concepção de progresso era precedente, existia desde
o início da modernidade e se referia antes ao avanço nas
ciências – que abandonou os paradigmas e métodos antigos e, a partir do século XVII, adotou novos paradigmas e
métodos – na moral, nos costumes e na política (os quais
desde o Renascimento passaram a se libertar gradualmente
dos ditames religiosos). No entanto, com o Imperialismo, o
progresso foi ligado à expansão territorial e a uma suposta
vocação civilizatória europeia.
Segundo Arendt, a invasão de territórios africanos
e asiáticos promovida por Estados nacionais europeus no
final do século XIX foi motivada pela ganância de investimento de dinheiro supérfluo, o qual não poderia mais ser
investido dentro das fronteiras da Europa. Para continuar a
acumulação de capital – processo interminável de ficar cada
vez mais rico, aumentar riqueza e propriedade – era preciso
60
mais terras, mais recursos naturais, mais mão de obra e mais
consumidores. Nesse contexto, Inglaterra, França entre outros, invadiram terras na África e Ásia para explorar recursos naturais, seres humanos e investir o dinheiro supérfluo.
Para garantir a rentabilidade deste empreendimento e a dominação de terras e povos, expandiram o braço repressor de
seus Estados nacionais. A polícia e o exército asseguravam
o acúmulo de capital por meio da violência e da violação4.
A autora sustenta que a burguesia acredita que é possível um acúmulo interminável de capital, propriedade e
bens. Isto é o que anima sua atuação e empreendimentos e
que, fomentou tanto o acúmulo de poder entendido como a
dominação da máquina estatal e de outras pessoas pelo braço repressor do Estado. “Esse processo de constante acúmulo de poder, necessário à proteção de um constante acúmulo
de capital, criou a ideologia ‘progressista’ de fins do século
XIX e prenunciou o surgimento do imperialismo” (Arendt,
1989, p. 173).
A análise arendtiana aponta que o progresso enquanto
expansão e acumulação acabam por caminhar ao lado e de
mãos dadas com a destruição. Quando a constante acumulação encontra um limite natural, a aniquilação é mobilizada. Em outras palavras, há no mundo um limite natural de
terras, matérias primas, recursos e da capacidade humana
de consumir e trabalhar. A ciência e a tecnologia moderna,
por mais que possibilitem um aumento da produtividade
do trabalho com maquinaria, automação, da extração de recursos naturais e da maximização da capacidade do corpo
e da mente – melhoria artificial da força física, da atenção
por meio de treinamento, suplementos e medicamentos –
4 Isso será um dos elementos imperialistas que prospera até os dias atuais na
forma do capitalismo financeirizado.
61
também possui seu limite, o qual só pode ser ultrapassado por meio da destruição. As mercadorias não podem ser
consumidas cada vez mais sem o desperdício e a obsolescência programada; a produção não pode aumentar sem o
uso predatório de recursos naturais e matérias primas, sem
a obsolescência programada dos próprios instrumentos de
produção; o trabalho não pode ser realizado sem o desgaste
e exaustão de corpo e mente, sem exploração e opressão de
grupos sociais e étnicos; o capital investido não pode ser
valorizado sem violência e violação.
Arendt afirma que este limite ficou claro no início do
século XX, em suas palavras, “a sede de poder só podia ser
saciada pela destruição. [...] substituía a superstição do progresso pela superstição da ruína” (1989, p. 173). De acordo
com a autora, durante o século XIX, o progresso deixa de se
vincular com o avanço da humanidade em direção à autonomia e ao esclarecimento e passa a se vincular ao interminável e crescente ciclo de produção, destruição, consumo.
A aniquilação das coisas não se liga apenas à acumulação
de capital, mas também à posse. “A forma mais radical – e
a única segura de posse – é a destruição, pois só possuímos
para sempre e com certeza aquilo que destruímos” (Arendt, 1989, p. 174). Os donos de propriedade, capital e coisas
que não consomem, gastam e destroem o que possuem, não
podem demonstrar e ostentar suas posses de forma inequívoca. Esta pulsão capitalista por destruição não é apenas
estimulada no indivíduo, o qual deve acumular e destruir
para mostrar que possui excedente, é uma pulsão que deve
se tornar social. A vida humana, por ser mortal, traz um
limite ao consumo e ao uso de bens e dinheiro individual,
por isso, os interesses de acumulação constante devem se
tornar sociais. Como mostramos, o processo de acumula-
62
ção engendra a destruição, deste modo a destruição deve
parecer ser do interesse de toda a sociedade e deve também
parecer progresso, algo que empurra para frente e procura
invisibilizar as ruínas e os escombros que deixa para trás.
Arendt é assertiva ao notar que o imperialismo como
parte do processo de acumulação e expansão precisava da
violação. E que ao lado do investimento e aumento do capital vinha a destruição de territórios, recursos, culturas e
etnias. A autora também acerta ao indicar como esse processo de expansão e acumulação precisavam engendrar o
racismo para justificar a invasão de territórios e a opressão
de diversos povos. Ainda, a dominação de recursos e pessoas no imperialismo precisava de um governo burocrático,
que governa por meio de normas e regras sem se importar
com a opinião, a visão de mundo e a vida dos governados,
mas apenas visa ao rendimento do capital investido.
Nesse sentido, de acordo com Arendt, o século XIX
lança uma visão temporal em que o progresso está ligado
a expansão territorial, de domínio de terras e povos e de
crescente acumulação. Este progresso caminha ao lado da
destruição: se dá também uma acumulação de ruínas de poses que são afirmadas pela aniquilação, de territórios invadidos onde a violência destrói a natureza, culturas, formas
de vida e pessoas. Enquanto para os países europeus está em
curso uma temporalidade de progresso, para os territórios
coloniais está em curso uma temporalidade de destruição:
os escombros de recursos naturais, de culturas, almas humilhadas, corpos feridos e mortos se acumulam por todo
lado. Embora Arendt faça uma análise precisa dos elementos que envolveram a acumulação durante o imperialismo e
a concepção de progresso que surgiu no final do século XIX,
ela não percebeu que a acumulação já envolvia o racismo, a
63
destruição e a violência desde a emergência do capitalismo
em sua versão mercantilista, quando se iniciou o empreendimento colonial.
Mercantilismo, colonialismo, racismo e destruição
Mbembe discute sobre acumulação e racismo em
Crítica da Razão Negra. Segundo o filósofo, o racismo e o
termo negro são produtos indissociáveis do maquinário social e técnico do capitalismo, foram estas categorias que permitiram a transformação do ser humano em mercadoria, a
máxima exploração, a venda não só da força de trabalho,
mas do corpo e da vida. Para ele, a categoria de raça tem sua
origem no estudo do âmbito animal e serviu para nomear
os povos não-europeus, já o termo negro designou diversos
povos africanos como seres com as mesmas características,
supostamente biológicas. De acordo com o autor (Mbembe,
2019, p. 11),
[...] o pensamento europeu sempre tendeu a abordar a identidade não em termos de pertencimento
mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo,
mas antes na relação do mesmo com o mesmo, do
surgimento do ser e da sua manifestação em ser seu
primeiro ou, ainda, em seu próprio espelho.
O pensamento europeu está pautado numa autocontemplação, só vê a si mesmo, produz um modelo de Homem
que corresponde à imagem do homem branco europeu.
Assim, outras formas de ser e existir não são reconhecidas
como propriamente humanas, as pessoas de outras culturas,
com outras formas de viver não são consideradas sujeitos
de direitos, portadores de opiniões, razão, forma de organi-
64
zação e pensamento próprio e válido. Mbembe destaca que
nada se quer compreender destes outros, apenas se busca
controlar e oprimir.
Aqueles que foram racializados pelos europeus no início da modernidade, foram apresentados como seres mais
próximos aos animais, sem ou quase sem consciência e razão, inferiores e menos evoluídos. Esta concepção de que as
pessoas racializadas teriam características mais animalescas
do que humanas perdurou por muito tempo e foi sustentada
até mesmo por cientistas e filósofos, Hegel5, por exemplo,
afirma isto na Fenomenologia do Espírito. Os europeus na
medida em que animalizaram outros povos se colocaram
no papel de tutelar, ajudar e proteger as raças “inferiores
e menos evoluídas”. Esta divisão da humanidade em raças
superiores e inferiores fazia com que o empreendimento
colonial parecesse uma obra “civilizatória” e “humanitária”,
“cujo corolário da violência não era senão moral” (Mbembe,
2019, p. 31).
Contudo, Mbembe sustenta que a invenção da raça foi
e é uma ficção útil. Ficção uma vez que não está fundada no
5 Os autores desse livro não compartilham da mesma interpretação sobre a
obra Fenomenologia do Espírito do filósofo alemão Hegel. Nessa obra, ressaltamos que Hegel não pode ser considerado não racista biológico, mas um racista
cultural, respectivamente, porque: 1. ele se contrapõe a correntes dominante em
sua época que explicavam a inferioridade dos africanos por meio do formato do
crânio – frenologia – e pelas características faciais – fisiognomia – afirmando a
existência de uma capacidade cognitiva desenvolvida; para ele, não possuímos
uma semântica que possa relacionar a existência de algum elemento orgânico
no ser humano que possa determinar seus comportamentos, devemos pautar
nossa explicação dos seres humanos a partir de nossas ações; 2. Quando ele trata
do grau de desenvolvimento dos povos, afirma que ele não foi completo para os
africanos, mas não tece comentários acerca dos europeus, mesmo ciente de que
havia povos na Europa que se encontravam em diferentes graus de desenvolvimento cultural. No entanto, devemos mencionar que Hegel foi racista na obra
Filosofia da História.
65
conhecimento biológico, mas é uma categoria que produz
um tipo de ser humano desumanizado. O negro, como ser
racializado, “[...] não existe enquanto tal. Ele é constantemente produzido. Produzi-lo é gerar um vínculo social de
sujeição e um corpo de extração, isto é, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor e do qual nos esforçamos para obter o máximo de rendimento” (Mbembe,
2019, p. 42). A invenção da raça negra foi útil pois produziu
um ser humano mercadoria, possibilitou a máxima extração
de rendimento do corpo, foi o que viabilizou uma produção
comercial ao longo de enormes distâncias, isto é, a troca
comercial entre os continentes Europeu, Africano e Americano. Foi elemento central para acumulação de riqueza no
período colonial, da integração do capitalismo mercantil e
da subordinação e controle do trabalho por meio da violência ilimitada (Mbembe, 2019, p. 45). O comércio negreiro, a
plantation e o extrativismo não poderiam funcionar sem a
invenção da raça, não seria possível os massacres coloniais,
a extrema violência usada para aprisionar e obrigar ao trabalho povos da África e das Américas sem a existência do
racismo.6
Ser nomeado como negro significou então a exclusão,
6 Para Mbembe, o termo negro operou uma redução do corpo e do ser à cor
da pele. Em outras palavras, com o surgimento do pensamento racista, a cor da
pele passou a conferir características determinantes e foi causa de assombrosos
crimes, massacres, agressões físicas e devastações psíquicas. Como já foi dito, foi
a invenção da raça e do negro que possibilitou o tráfico Atlântico e a escravização – fundamentais para a acumulação no mercantilismo – a transformação de
milhares de homens e mulheres em objeto, mercadoria e instrumento de trabalho. A cor da pele foi usada como motivo de desterro e prisão. Nas palavras do
autor, “Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a outros, hostilmente predispostos contra eles, deixando assim de ter nome ou língua própria” (Mbembe, 2019, p. 14). Mbembe sublinha que embora coisificados
e não autorizados a estabelecer relação com os outros como co-humanos, homens e mulheres originários da África resistiram e se tornaram sujeitos ativos.
66
degradação e embrutecimento em favor da acumulação de
capital. Nas palavras de Mbembe (2019, p. 21): “Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da
modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi
transformada em coisa e o espírito em mercadoria – a cripta
viva do capital”. Nesse sentido, o termo negro nomeia várias
coisas: um modelo de depredação e sujeição assim como
modalidades de superação uma vez que mesmo diante de
tanta violência e exploração de seus corpos e mentes, negros e negras conseguiram resistir e lutar. Não iremos tratar
neste momento das lutas e da resistência negra, vamos nos
deter à vinculação do termo negro e do racismo ao capitalismo, à exploração e à destruição de seres humanos.
A criação da categoria negro produziu nos europeus e
naqueles que se nomeavam brancos uma consciência coletiva neurótica e fóbica, que odeia o outro por não o reconhecer como semelhante e por considerá-lo como inferior. E,
além disso, que possui medo do outro, considera a alteridade
ameaçadora e, por isso, os racializados deveriam ser tutelados e vigiados. Assim, o racismo provocou o medo e o ódio,
um impulso de controlar totalmente ou destruir este outro,
ou seja, produziu o que Mbembe chama de altericídio.
A ficção útil da racialização pode ser compreendida
ao analisar o contexto histórico e econômico europeu no
início da modernidade. A Peste Negra e a Grande Fome (séculos XIV e XV) causaram uma crise populacional na Europa, pois estima-se que até dois terços da população tenha
morrido neste período. A falta de mão-de-obra fez com que
se iniciasse um afluxo de africanos para Portugal e Espanha.
Mbembe aponta que o aprisionamento e a escravização de
pessoas começou nas rotas transaarianas e aumentou a partir de 1440 com as rotas pelo oceano Atlântico até a África
67
Ocidental e Central. O autor indica com isso que o aprisionamento e a escravização foram respostas à necessidade
de mão de obra diante da crise populacional. O escravo na
modernidade é privado de qualquer estatuto humano, os
brancos buscaram transformá-lo em objeto, num corpo gerador de energia e trabalho e numa mercadoria que possui
tem valor de uso e de troca (Mbembe, 2019, p. 145). Para
tanto, era preciso violentar não só o corpo, mas a mente e a
psique também.
A utilização do corpo escravizado na Europa foi apenas o primeiro estágio do processo de destruição e acumulação do início do capitalismo. Logo os europeus buscaram
novas rotas comerciais, novas terras, mais povos para escravizar. A colonização da América e a plantation consolidaram a destruição da natureza e de pessoas a favor de um
processo de acumulação, uma vez que a razão mercantilista considerou o mundo como um comércio ilimitado em
que tudo poderia se transformar em mercadoria. Segundo
Mbembe (2019, p. 145):
A expansão do liberalismo como doutrina econômica e arte específica de governar foi financiada pelo
comércio de escravos, num momento em que, submetidos a uma acirrada concorrência, os Estados
europeus se esforçavam para ampliar seu poder e
consideravam o resto do mundo sua propriedade e
seu domínio econômico.
O filósofo mostra que o liberalismo e o capitalismo,
embora digam se basear na liberdade individual, produz,
ao mesmo tempo, um modelo de homem livre que existe
junto e às custas do escravizado. Nas palavras de Mbembe
(2019, p. 146): “[...] Foucault afirmou que, na origem, o li-
68
beralismo ‘implica em seu cerne uma relação de produção/
destruição [com a] liberdade’, mas se esqueceu de explicar
que, historicamente, a escravidão dos negros representou o
ponto culminante dessa destruição de liberdade”. Levando
em consideração o que foi dito até aqui, podemos ver que
o capitalismo, desde o mercantilismo, necessita de um processo de produção e destruição em vários sentidos: de liberdade, de produtos, de matérias primas, de pessoas e culturas. Nesse sentido, o capitalismo não consegue se manter
sem engendrar uma temporalidade de destruição, sem por
um lado, empurrar para frente a acumulação e a produção
e, por outro, deixar atrás de si uma montanha de destroços,
ruínas e corpos. Não se trata apenas de destruição da posse, como Arendt já nos indicou, a forma de provar que se
possui algo para sempre e com segurança é destruindo essa
posse. Também se trata da destruição do meio ambiente, de
mercadorias pelo consumo incessante e o aniquilamento de
corpos, psiques e vidas. A destruição no que se refere ao
ser humano está relacionada ao poder e à morte. Mbembe (2019, p. 232) nos mostra que a morte não está situada
somente no fim da vida: “No fundo o mistério da vida é ‘a
morte na vida’, ‘a vida na morte’, esse entrelaçamento que é
o próprio nome do poder do saber e da potência”. O sentido que podemos extrair deste entrelaçamento de morte e
vida é o de que o capitalismo não apenas mata gente, coloca
fim à existência, mas que ele também produz uma morte na
vida quando limita um ser humano ao trabalho escravo, ao
processo interminável de trabalho e consumo, ao fazer da
carne e do espírito a cripta viva do capital. Esse poder de
criar formas de existência, de adestrar o corpo e a mente, de
criar vida e morte que Mbembe denomina de necropolítica.
Em nossa interpretação, Foucault caracterizou o po-
69
der soberano como o poder de fazer morrer e deixar viver,
a biopolítica como o poder de fazer viver e deixar morrer, Mbembe ao tratar de necropolítica analisa um poder
que faz viver, faz morrer e que produz a morte em vida.
O escravizado nas colônias foi submetido a uma situação que consistia numa forma de morte em vida. Como
instrumento de trabalho, o escravo tem um preço. Como
propriedade tem um valor. Seu trabalho responde a uma
necessidade e é utilizado. O escravo, por conseguinte, é
mantido vivo, mas em ‘estado de injúria, em um mundo
espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos.
(Mbembe, 2020, p. 28).
O estado de injúria está fundado no tratamento violento, cruel e humilhante destinado aos escravizados. O
mundo parece ser espectral na medida em que estas pessoas
foram reduzidas a ferramenta de trabalho, a instrumento de
produção, foram tratados como se não tivessem alma, razão, afetos e cultura. No entanto, mesmo diante de tamanha
brutalidade, dominação e espoliação, os escravizados foram
capazes de afirmar sua humanidade por diversas formas de
resistência e pela criação de cultura.
Mbembe ao tratar dessa morte em vida que marcou a
existência dos escravizados indica a tripla perda sofrida por
eles: perda de um lar (de seu lugar de origem e de qualquer
lugar que pudesse abrigá-lo), a perda de direito sobre seu
corpo (uma vez que era coisificado, reduzido a uma ferramenta de trabalho) e a perda do estatuto político, o que diziam, pensavam, a sua visão de mundo e opinião não eram
consideradas como importantes. Era uma vida marcada
pela morte por carecer de mundo, direitos e participação
política. Isso coincide com a expulsão da humanidade, o
nascimento e a morte dos escravizados não possuíam sig-
70
nificado social ou importância dentro de uma comunidade.
Ao discutir sobre a vida daqueles que foram racializados nas colônias, Mbembe sustenta que não é possível
compreender o capitalismo e a biopolítica sem analisar a
colonização e o sistema social e de produção imposto pelos europeus em territórios estrangeiros. “Qualquer relato
do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica” (Mbembe, 2020,
p. 27). Segundo o autor, o racismo é central na política de
morte, ele faz a divisão entre os vivos e os mortos, é uma
tecnologia que permite transgredir a proibição de matar.
O filósofo também aponta que além de um racismo ligado
à cor da pele e culturas não europeias, também existe um
racismo de classe, ou seja, negros, indígenas, pobres e trabalhadores são vistos como selvagens. A tradição do pensamento europeu considera que o sujeito racional é aquele
que se afasta do animal e da natureza, que possuem organização social e cultura semelhante às classes abastadas
europeias. Nesta perspectiva, os pobres seriam humanos
animalizados e os racializados seriam completamente
selvagens. Aqueles que não pertencem inteiramente ao
mundo humano europeu não podem gozar de controles e
garantias judiciais. Por este raciocínio, as classes trabalhadoras acabam por ter menos direitos e os colonizados não
precisam ter qualquer direito garantido. Em outras palavras, algumas classes e povos podem viver parcialmente
ou inteiramente em estado de exceção.
No caso das colônias, elas podem ser governadas sem
lei e direitos uma vez que nenhum vínculo humano e comum é reconhecido entre conquistadores europeus – ou melhor, invasores europeus – e nativos. Negros e indígenas por
71
serem entendidos como semelhantes a animais selvagens
poderiam ser violentados, agredidos e mortos pelos brancos
sem que estes pensassem estar cometendo algum crime.
As ações violentas cometidas contra classes trabalhadoras e colonizados, além de não serem entendidas como
criminosas, ainda são consideradas como forma de proteção dos brancos. A mentalidade da branquitude não sabe
lidar pacificamente com a alteridade, o outro visto como perigoso, como ameaça mortal. Nesse sentido, a eliminação do
outro reforça a segurança e o potencial de vida dos brancos
e abastados.
Quando Mbembe discute sobre necropolítica não trata apenas do fazer viver e fazer viver produzido pelo poder
soberano, pelo Estado. Ele também mostra que é dada a liberdade para algumas pessoas usarem seus próprios critérios para definir quando e quem se pode matar. Em nome
da segurança um agente da polícia ou um cidadão pode matar outra pessoa sumariamente. Vemos isso cotidianamente,
chacinas, execuções, agressões, torturas e mortes por “combate à criminalidade”, “legítima defesa”, “defesa da honra
ou da moralidade”, “auto de resistência” toda uma gama de
violências que são legitimadas por não serem consideradas
criminosas e seus autores não serem condenados. Ainda, o
filósofo não trata apenas da colonização das Américas e do
imperialismo. Ele identifica o funcionamento da necropolítica na contemporaneidade, dando como principal exemplo
as ações do Estado de Israel contra os palestinos.
Levando isso em consideração, vemos que a temporalidade de destruição caminha junto com o capitalismo e
a modernidade. Se atualiza e se modifica, mas de uma forma ou de outra sempre engendra destruição da natureza, da
cultura e de pessoas.
72
Capitalismo, destruição e controle das mulheres
Silvia Federici, assim como Mbembe, identifica uma
mudança importante no poder e na ideologia a partir da crise populacional e social gerada pela Peste Negra. A autora,
contudo, foca na questão das mulheres. De acordo com ela,
as mulheres na Idade Média buscavam controlar sua função reprodutiva: existem numerosas referências ao aborto
ou contraceptivos, poções para esterilidade (chamadas de
maleficia). Para Federici (2017, p. 84): “Na Alta idade Média, a Igreja ainda via estas práticas com certa indulgência,
impulsionada pelo reconhecimento de que por razões econômicas, as mulheres podiam estabelecer um limite para
suas gestações”.
A Peste Negra mudou isso drasticamente em razão da
crise demográfica que produziu: mais de um terço da população europeia morreu entre 1347 e 1352 (menos de uma
década). Nesse contexto, o controle das mulheres sobre sua
função reprodutiva começou a ser entendido como um risco para ordem social e econômica. “As hierarquias sociais
foram viradas de cabeça para baixo, devido ao efeito nivelador da mortandade generalizada” (Federici, 2017, p. 96).
A autora explica que diante da possibilidade repentina de
morte as pessoas colocaram em questionamento regulações
sociais, sexuais e de trabalho.
Ainda, a crise demográfica provocada pela Peste Negra gerou uma crise de acumulação pois tornou a mão de
obra escassa. Com pouco trabalhadores, os empregadores
pagavam mais pelos serviços prestados, tinham que aceitar as condições de trabalho exigidas pelos trabalhadores.
Ou seja, a luta dos trabalhadores se fortaleceu uma vez
que não havia trabalhadores sobrando, desempregados
73
ou passando necessidade. Nesse período foram registrados aumentos de greves de inquilinos, aldeias organizadas
exigindo que multas, impostos e talhas fossem diminuídos
ou extintos, ameaça de êxodo em massa para outras terras
ou para a cidade. Isso acabou com o sistema de servidão
na Europa, elevou o nível de vida do campesinato e dos
trabalhadores urbanos e diminui bastante a diferença de
renda masculina e feminina:7
Na baixa Idade Média, ante a crise de acumulação
que se prolongou por mais de um século, a economia feudal estava condenada. Entre 1350 e 1500
houve uma mudança muito importante na relação
de poder entre trabalhadores e mestres. O salário
real cresceu em torno de 100%, os preços caíram por
volta de 33%, os aluguéis também caíram, a jornada
de trabalho diminuiu e surgiu uma tendência à autossuficiência local (Federici, 2017, p. 115).
Diante disto, a classe dominante se viu ameaçada e,
segundo Federici, respondeu à crise do fim da Idade Média com a escravização de povos africanos, a degradação
e controle sexual das mulheres no período entre 1450 e
1650 e a expropriação de terras dos camponeses e povos
ameríndios. Mbembe mostra bem como a reação da classe
dominante a este quadro veio torna o corpo das e dos africanos escravizados mercadoria e instrumento de trabalho.
Já Federici (2017, p. 104 e 105) aponta a degradação das
mulheres como estratégia para dividir a classe operária na
Europa por meio de uma política sexual fragmentadora:
7 Conferir sobre a relação entre crise demográfica e fortalecimento das lutas
dos trabalhadores e melhoria do nível de vida da população no campo e nas
cidades em Federici, 2017, p. 96, 97 e 102.
74
uma série de leis foram feitas para degradar as mulheres,
tais como a legalização do estupro e a prostituição gerida
pelo Estado.8 A degradação feminina e a fragmentação da
classe dominada eram estratégias para enfraquecer as lutas
camponesas e urbanas.
Além disso, se buscou um controle sobre o corpo feminino e a capacidade reprodutiva. Como já foi mencionado, durante a Idade Média as mulheres conheciam muitos
métodos contraceptivos (poções e pessários – supositórios
vaginais) que poderiam estimular a menstruação, provocar
aborto, ou criar uma condição de esterilidade. A criminalização da contracepção que começou após a crise demográfica tirou este saber das mulheres.
Aqui, quero apenas ressaltar que, ao negar às mulheres o controle sobre seus corpos, o Estado privou-as
da condição fundamental de sua integridade física e
psicológica, degradando a maternidade à condição
de trabalho forçado, além de confinar as mulheres
à atividade reprodutiva de um modo desconhecido
por sociedades anteriores (Federici, 2017, p. 181).
Dito de maneira direta, as mulheres foram forçadas a
produzir filhas e filhos para o Estado. Na lógica mercantilista, a qual emergiu no século XV, uma população numerosa significava geração de riqueza e de poder para o Estado.
Esta lógica entendia que a grande oferta de trabalhadores
faria cair o preço da mão de obra e aumentar o acúmulo de
riqueza para a classe mercantil e para os Estados nacionais.
Nessa perspectiva forçar as mulheres a produzir mais mão
de obra se tornou uma questão de Estado e de mercado.
8 A autora cita que governos de cidades criaram e mantiveram casas de
prostituição.
75
Outra medida para baratear a mão de obra foi a desvalorização simbólica e material do trabalho feminino, confinando as mulheres a um trabalho sem remuneração ou mal
pago. As mulheres perderam espaço em profissões que tradicionalmente haviam ocupado como a fabricação de cervejas e a realização de partos, elas ficaram restritas ao trabalho doméstico, rural, de fiandeiras, bordadeiras ou amas
de leite. Embora tais funções sejam vitais para a economia,
elas não eram reconhecidas como dignas de valor. Federici
mostra que essa desvalorização do trabalho feminino não
foi natural, foi uma política de Estado: os governos das cidades, por exemplo, ordenaram que as guildas ignorassem os
trabalhos que as mulheres realizavam em casa.9 Rapidamente as mulheres, sem acesso à terra e com seu trabalho ignorado, passaram a ter o casamento e ou a prostituição como
carreira. Uma vez que o salário feminino não era o suficiente para que as mulheres se sustentassem, elas tinham que se
submeter aos homens ou como esposas ou como prostitutas
(Federici, 2017, p. 183 e 184). Nas palavras da autora, “Tal
política que impossibilitava que as mulheres tivessem seu
próprio dinheiro, criou condições materiais para sua sujeição aos homens e para a apropriação de seu trabalho por
parte dos trabalhadores homens. É nesse sentido que eu falo
do patriarcado do salário” (Federici, 2017, p. 195).
9 Federici critica Marx pois afirma que os livros de O Capital não levaram
em consideração o papel do trabalho doméstico e escravo para a formação e a
sustentação do capitalismo. Muitos dos bens consumidos na Europa do século
XV em diante foram produzidos por trabalho escravo – açúcar, café, algodão,
metais preciosos etc. As mulheres que trabalhavam em casa foram consideradas
como pessoas que estavam fora das relações capitalistas por não serem assalariadas. Federici mostra, contudo, que o trabalho doméstico produziu e continua
a produzir força de trabalho: não só coloca no mundo novos operários como
garante os cuidados com a alimentação, limpeza e moradia os quais necessários
para que o trabalho remunerado seja realizado.
76
Antes desta emergência do mercantilismo, as mulheres tinham acesso a terra e, por esta razão, desfrutavam
de mais independência. Elas não precisavam dos homens
para conseguir o mínimo para sua sobrevivência. Com o
cercamento e a privatização de campos abertos e terras comunais, as mulheres passaram a ter dificuldades materiais
e os homens eram forçados a trabalhar por comida e salário. Cercamentos e privatização consistiu num conjunto de
estratégias para eliminar o uso comum da terra e expandir
as posses de propriedade da nobreza e da burguesia (Federici, 2017, p. 133).10 Esta estratégia se iniciou nas Américas
no século XV e na Europa no século XVI (Federici, 2017,
p. 130 e 133). A perda do acesso à terra significou ficar a
mercê dos dominantes, pois as pessoas não podiam mais
produzir o necessário para sobreviver. Também significou
a perda da cooperação e da solidariedade que o uso comum
das terras estimulava (Federici, 2017, p. 138 e 139). O resultado disso foi que o trabalho agrícola coletivo foi destruído
para forçar aos contratos individuais de trabalho. Ainda,
isso provocou uma decomposição de laços sociais de solidariedade e desenraizamento. As mulheres que tinham
mais dificuldade de serem proprietárias de terra foram as
que mais sofreram com o cercamento, por isso elas lutaram
contra esta estratégia.
Sabemos que este processo de cercamento e privatização foi violento, implicou expulsar as pessoas de seus territórios, privá-las dos seus meios tradicionais de subsistência,
reprimir revoltas e lutas ameríndia e camponesas, isto é,
10 Com os cercamentos os camponeses e camponesas europeus perderam
acesso aos campos abertos, onde o trabalho agrícola coletivo dava autonomia
e segurança alimentar a eles, e também perderam as terras comunais, onde se
fazia extrativismo e festas.
77
prender, torturar e matar gente. A caça às bruxas foi um dos
meios usados para reprimir revoltas, uma vez que a acusação, tortura e queima de “bruxas” foi maior em regiões que
a resistência à expropriação de terras foi mais intensa. Mais
uma vez vemos que a acumulação desde o início do capitalismo vem acompanhada de violência e destruição.
Federici (2017, p. 326) sustenta que a caça as bruxas,
além de ser um modo de repressão em regiões onde havia
resistência camponesa aos cercamentos ou revoltas urbanas
contra as condições de trabalho, também foi uma criminalização do controle de natalidade para colocar o corpo feminino – o útero – a serviço do Estado e do capital – e para
acumular força de trabalho. De acordo com a autora (Federici, 2017, p. 334), o efeito da caça às bruxas foi a destruição
do direito das mulheres ao controle de seu próprio corpo e
da natalidade “[...] foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras onde se forjaram os ideais burgueses de
feminilidade e domesticidade”. Em resumo, foi o terror e a
violação que forçaram às mulheres ao trabalho reprodutivo
e à submissão aos homens.
A desvalorização do trabalho das mulheres somada
com a alienação do corpo (o corpo feminino governado
pelo Estado, pela Igreja e pelos homens) e a caça às bruxas produziu a figura da dona de casa – trabalhadoras não
assalariadas do lar, dependentes e submissas. Na perspectiva de Federici, a família burguesa emergiu no período de
acumulação primitiva e foi responsável pela apropriação e
ocultamento do trabalho das mulheres. E, para autora, por
mais que as lutas feministas tenham avançado, a degradação
feminina e a apropriação de corpos persistem. Numa entrevista de 2019 ela declarou:
78
Nós somos as fábricas de trabalhadores. Da comida
às roupas e o trabalho emocional. E o sexo também
é parte do trabalho doméstico.
Não importa o quão cansada esteja, se é casada e seu
marido quer fazer sexo, muitas de nós faremos sexo.
Se dissermos não, muitas vezes eles nos obrigam.
[...] O sexo é parte do trabalho, ele se torna uma tarefa. Dar prazer ao homem, fazê-lo feliz. O que eles
chamam de amor, nós chamamos de trabalho não
pago” (entrevista de Silvia Federici no site: https://
www.geledes.org.br/o-que-eles-chamam-de-amor-nos-chamamos-de-trabalho-nao-pago-diz-silvia-federici/)
E esta degradação e apropriação do corpo das mulheres não foi imposta somente na Europa, foi espalhada pelo
mundo durante a colonização e o imperialismo. “Enquanto
a resposta à crise populacional na Europa foi a subjugação
das mulheres à reprodução, na América, onde a colonização
destruiu 95% da população nativa, a resposta foi o tráfico de
escravos, capaz de prover à classe dominante europeia uma
quantidade imensa de mão de obra” (Federici, 2017, p. 206).
Os europeus provocaram uma crise demográfica também
nas Américas, que alguns autores chamam de holocausto americano: a violência usada na colonização e as doenças que os colonizadores levaram ao novo mundo reduziu
brutalmente a população originária na América do Sul que
chegou a perder de 90 a 95% de sua população (Federici,
2017, p. 167). O extermínio de povos originários das Américas e a escravização de povos africanos foi lucrativo. De
acordo com Federici, o sistema escravocrata, a plantation e
a extração de metais preciosos nas Américas alimentaram a
Revolução Industrial. Para o capitalismo, o sangue e o suor
79
que fluíram das plantations foram essenciais. A acumulação primitiva foi um processo de colonização, cercamento
de terras e apropriação dos corpos femininos, africanos e
ameríndios em grande escala (Federici, 2017, p. 207).
A apropriação de corpos nas colônias não foi feita do
mesmo modo para homens e mulheres, isto é, a colonização mesclou racismo e misoginia. As mulheres escravizadas
além de instrumentos de trabalho eram também produtoras
de trabalhadores escravizados: seus corpos foram forçados a
funcionar como máquina para a reprodução e acumulação
(Federici, 2017, p. 34). Federici mostra que a caça às bruxas
foi levada para o novo mundo. A acusação de adoração ao
demônio permitiu o extermínio em massa de populações
inteiras e foi vastamente usada como pretexto para acabar
com as resistências locais ao domínio colonial e ao trabalho escravo. Nesse contexto, houve um intercâmbio entre
a ideologia da bruxaria e a ideologia racista: cultos, ritos e
crenças africanas e indígenas foram etiquetadas como demoníacas e, a partir daí, o diabo passou a ser representado
com pele negra. Este intercâmbio possibilitou técnicas de
imposição religiosa e culturais europeias às culturas africanas e ameríndias. A autora enfatiza que a escravização,
a violência e o assassinato em massa foram justificados por
modelos “etnográficos” pejorativos tais como o do canibal,
do infiel, do bárbaro e dos adoradores do diabo (Federici,
2017, p. 383).
Segundo a autora (Federici, 2017, p. 37), o capitalismo
precisa difamar a “natureza” daqueles que são explorados:
indígenas, negros, mulheres, pobres, imigrantes deslocados
pela globalização. Assim, faz com que as condições de vulnerabilidade e de sofrimento impostos a estes grupos humanos apareça como característica natural e intrínseca destas
80
pessoas, como se elas fossem as responsáveis pela situação
degradante e sofrida em que estão.
Ainda, ao difamar certos grupos o capitalismo produz
uma fragmentação dentro da classe trabalhadora. Aqui vale
lembrar que La Boétie (1577) mostra que quem tiraniza só
pode ser forte na medida em que outras pessoas lhe emprestam sua inteligência, braços, pernas, olhos, ouvidos e
bocas. Em outras palavras, o tirano parece ser extraordinário e poderoso por contar com a força corporal e mental de
outros. O autor também afirma que quem sustenta o tirano,
retira proveito da tirania, se associa ao dominador para obter privilégios. Articulando o pensamento de La Boétie com
o de Federici podemos concluir que o capitalismo ao criar
políticas de fragmentação sexual e racial, confere privilégios
aos trabalhadores brancos e classes médias que em troca
emprestam sua força corporal e mental à classe dominante.
Desse modo, um grupo da classe trabalhadora – as classes
médias e brancas – ganha uma parte do espólio que a classe
burguesa adquire com a exploração e a dominação: salários
maiores, capacidade de consumo e alguns privilégios. Além
disso, possuem também poder sobre mulheres, negros, asiáticos, africanos e ameríndios, podendo sujeitá-los ao seu
arbítrio. Com isso, emprestam olhos, ouvidos, inteligência
e força corporal à classe dominante e ajudam a manter o
sistema capitalista em pé. A exploração sofrida pelas classes médias e brancos se torna mais suave e doce, por obter
certa satisfação por meio do consumo e por viver mais na
temporalidade da ordem do que na de exceção: conseguem
ter mais acesso ao progresso e escapar mais da destruição.
Levando em consideração o estudo rigoroso e potente de Silvia Federici, podemos compreender que racismo e
misoginia constituíram a resposta para uma crise demográ-
81
fica e econômica que surgiu na baixa Idade Média após a
Peste Negra. Esta resposta gerou riquezas para os Estados
nacionais europeus e para a classe mercantil, colocando a
violência e a degradação de mulheres, pessoas africanas e
ameríndias em favor da acumulação de capital. Ainda, tomando como base o estudo da autora podemos concluir que
a temporalidade de destruição só pode ser estabelecida com
a apropriação dos corpos femininos e da função reprodutiva. Em outras palavras, só se pode matar e destruir gente
quando se tem o controle da reprodução de seres humanos.
Federici (2017, p. 170), afirma que o surgimento da
biopolítica ocorreu com o início do capitalismo. Em suas
palavras:
o que coloco em discussão é que tenha sido a crise
populacional dos séculos XVI e XVII, e não a fome
na Europa durante o século XVIII (tal como defendido por Foucault), que transformou a reprodução
e o crescimento populacional em assuntos do Estado e objetos dos principais discursos intelectuais.
Sustento, ademais, que a intensificação da perseguição às ‘bruxas’ e os novos métodos disciplinares
que o Estado adotou nesse período, com a finalidade de regular a procriação e quebrar o controle das
mulheres sobre a reprodução, têm também origem
nessa crise.11
Conforme foi mencionado acima, no mercantilismo
a riqueza de uma nação estava ligada ao número de sua população, nesse sentido, o estímulo à reprodução humana, a
11 Federici (2017, p. 19) critica Foucault pois, para ela, em seu estudo sobre
técnicas de poder e disciplina do corpo o autor ignorou o controle reprodutivo
e o disciplinamento dos corpos das mulheres.
82
proibição de aborto e de métodos contraceptivos foi uma
política estatal que fez parte da implementação do capitalismo. Esta perseguição das mulheres demonizou e puniu
qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade
não reprodutiva – incluindo as práticas homoafetivas (Federici, 2017, p. 174).
A biopolítica, isto é, a administração e promoção das
forças vitais, precisa estimular a produtividade de uma população, contabilizar e gerir o número de nascimentos e
mortes. Para tanto é fundamental o biopoder disciplinar
os corpos dos trabalhadores para que produzam e também
regular a sexualidade, principalmente sujeitando os corpos femininos, a função reprodutiva, as técnicas e saberes
de aborto, contracepção, gestação e parto. Federici mostra
como o saber e controle destas técnicas foi extraída a força
das mulheres e passou para o Estado, a Igreja e os homens
brancos – maridos, pais e senhores de escravizados. Além
de não ser possível um biopoder sem controle dos corpos
femininos e da sua capacidade de reprodução, também não
é possível a necropolítica e a temporalidade da destruição
sem o controle reprodutivo: só se poder fazer uma política
de morte quando se produz excedente de pessoas. Nas palavras de Federici (2017, p. 35), “[...] a promoção do crescimento populacional por parte do Estado pode andar de
mãos dadas com uma destruição massiva de vidas”.
Ao relacionar o pensamento de Federici e Mbembe
podemos compreender que tanto o discurso civilizatório
europeu quanto o discurso antiaborto e contrário ao uso de
contraceptivos buscaram esconder a exploração brutal de
pessoas racializadas e a necropolítica em favor da acumulação. Tais discursos visam a produzir uma ideia de temporalidade da ordem, em que a colonização parece levar o
83
progresso a outros povos e a apropriação dos saberes reprodutivos e corpos femininos parece ser uma questão moral
de defesa da vida. Isso porque a história escrita de um ponto
de vista universal, abstrato e assexuado é na verdade uma
história escrita por homens brancos, europeus que focam
no progresso do capitalismo uma vez que eles são os que
mais se beneficiam desta ordem econômica e social. Já as
histórias escritas do ponto de vista dos africanos, indígenas
e mulheres são capazes de revelar a violência, a violação e
a exceção. São estas as histórias que apontam a articulação
entre o progresso no sentido capitalista e a destruição.
Federici (2017, p. 44) é enfática ao afirmar que o capitalismo não foi consequência de um movimento evolutivo,
da superação das relações feudais que seriam piores e mais
cruéis que as capitalistas. Para a autora, o capitalismo foi
a resposta dos senhores feudais, mercadores, do alto clero
e de governantes a um conflito social e econômico, foi o
modo de minar a luta campesina e da cidade por melhores
condições de vida e por autonomia e liberdade. “As lutas sociais da Idade Média também devem ser lembradas porque
escreveram um novo capítulo na história da libertação. Em
seu melhor momento, exigiram uma ordem social igualitária baseada na riqueza compartilhada e na recusa a hierarquias e ao autoritarismo” (Federici, 2017, p. 45).
A autora ao refletir sobre a emergência do capitalismo
critica Marx por compreender o capitalismo com produto
de progresso histórico e por não levar em consideração a
apropriação dos corpos femininos e racializados. Para falar
de maneira resumida, Federici (2017, p. 119) afirma que:
i. A expropriação dos meios de subsistência dos
trabalhadores europeus, e a escravização dos povos
originários da América e da África nas minas e nas
84
plantações do Novo Mundo não foram os únicos
meios pelos quais um proletariado mundial foi formado e ‘acumulado’;
ii. este processo demandou a transformação do corpo em uma máquina de trabalho e a sujeição das
mulheres para a reprodução da força de trabalho.
Principalmente, exigiu a destruição do poder das
mulheres, que, tanto na Europa como na América,
foi alcançada por meio do extermínio das ‘bruxas’;
iii. A acumulação primitiva não foi, então, simplesmente uma acumulação e uma concentração de trabalhadores exploráveis de capital. Foi também uma
acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que as hierarquias constituídas
sobre o gênero, assim como sobre a raça e a idade, se
tornaram constitutivas da dominação de classe e da
formação do proletariado.
Desse modo, para a autora, o capitalismo instaurou
formas de dominação mais brutais e traiçoeiras, pois intensificaram e ocultaram a exploração e a violência. Este uso da
violência e da política de fragmentação de classe por meio
de criação de hierarquias de gênero e de raça não foi mobilizado somente no início do capitalismo, pois para haver
acumulação é preciso recorrer constantemente à violência, à
violação, ao racismo e ao sexismo. Nesse sentido, não existe
progresso, pois a exploração e a devastação de vidas seguem
ocorrendo em todos os cantos do mundo. Segundo Federici, (2017, p. 27):
Marx acreditava que o desenvolvimento do capitalista acabava com a propriedade em pequena esca-
85
la e incrementava (até um grau não alcançado por
nenhum outro sistema econômico) a capacidade
produtiva do trabalho criando condições materiais
para libertar a humanidade da escassez e da necessidade. Também supunha que a violência que havia
dominado as primeiras fases da expansão capitalista
retrocederia com a maturação das relações capitalistas; a partir desse momento, a exploração e o disciplinamento do trabalho seriam alcançados fundamentalmente por meio do funcionamento das leis
econômicas. Nisso, estava profundamente equivocado. cada fase da globalização capitalista, incluindo
a atual, vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que
mostra que a contínua expulsão dos camponeses da
terra, a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a
existência do capitalismo em qualquer época.
Considerações finais: temporalidade de destruição
Levando em conta o que mostramos até aqui vemos
que o par produção/destruição envolve diversos aspectos e,
além de criar espaços de exceção – em que não há progresso, mas violação da natureza, de culturas e pessoas -, também gera uma temporalidade de exceção. A destruição de
recursos naturais para produção de mercadoria gera áreas
devastadas, onde as águas, solos e vegetação foram devastados predatoriamente. Nestas áreas encontramos também
dificuldade de sobrevivência: a alimentação e a moradia se
tornam precárias, isso atinge não só a vida biológica, ataca
também a cultura local. dado que as práticas e manifestações
culturais tornam-se inviáveis. Essa situação expõe como o
capitalismo não apenas precariza o presente e impede o fu-
86
turo, também o passado vai sendo apagado e são os povos
tradicionais que sempre em maior grau são afetados. Não
faltam exemplos deste tipo de destruição. Terras indígenas
invadidas por madeireiras, mineradoras ou agronegócio,
como ocorreu na Amazônia brasileira. Locais onde existe extração de petróleo, como o delta do rio Niger. Barragens para construção de hidroelétricas (por exemplo, Belo
Monte) ou barragens com detritos de extração de minérios
(vale lembrar do rompimento da barragem da Samarco em
Mariana). Nestes territórios o modo de vida tradicional foi
arrasado. A população nativa quando não tem de mudar de
casa e de ocupação, fica exposta à contaminação de água,
solo ou ar, e geralmente tem sua cultura afetada. Isso porque a cultura não é construída e experienciada de forma
abstrata, fora de um território e sem atribuir significado a
coisas naturais, como rios, montanhas, animais etc. Nessa
perspectiva, a destruição da natureza implica exposição de
certas populações à poluição e contaminação que não só
afetam sua saúde, mas a vida como um todo, incluindo hábitos, cultura e tradições.
Geralmente, populações nativas não se beneficiam
com os lucros e produtos provenientes da destruição de
seu território original. Eles ficam mais expostos à destruição. Nesse contexto, o passado se torna irrepetível: não é
possível voltar a ocupar o mesmo espaço do mesmo modo,
não é possível ter o modo de vida tradicional. O presente se
torna um viver entre ruínas, uma busca de sobreviver em
outro território ou em terra arrasada. O presente é luto: estar enlutado pelo que foi violentado e aniquilado, lutar pela
sobrevivência num ambiente em que se tem risco de sofrer
violência, ser contaminado, em que alimentação, moradia
e a cultura se tornam precárias, sempre ameaçadas. A ex-
87
pectativa de futuro é continuar em luto, esforçando-se para
sobreviver em meio a ruína e à destruição que segue o curso
do progresso. Resistir a mais violência e destruição.
Vimos que a categoria de raça divide a humanidade
entre os brancos que são superiores e os outros grupos humanos que devem ser controlados ou eliminados. Mostramos também que o termo negro transformou seres humanos em mercadoria de modo que não só a força de trabalho
fosse explorada, mas o corpo, a alma e a vida como um todo.
O negro é produzido socialmente pelo maquinário capitalista o qual nega a razão, os afetos humanos dos que são
denominados negros. Seus corpos e mentes são violados
incessantemente para sujeitá-los. Mbembe nos indica que,
desde o surgimento do mercantilismo, o passado significa
para os racializados sujeição, degradação e humilhação, mas
também resistência e superação. A narrativa histórica do
progresso busca ocultar as lutas e os grandes feitos dos negros. Isto é ao mesmo tempo um modo de afetar sua consciência, degradar sua existência e esconder a exceção que
surgiu junto com a ordem capitalista. Em outras palavras, a
história que tenta apagar os pares civilização e degradação
do negro, liberdade liberal e escravidão, expansão e invasão,
sujeição e superação visa a tornar a violência sutil ao nomeá-la de obra civilizatória e humanitária, ainda, procura
apagar os exemplos de resistências e os feitos e ações que
apontam para alternativas ao modelo social capitalista.
Assim, o passado ao invés de ser um tempo vergonhoso para os que se nomeiam brancos, torna-se glorioso para
os europeus e os que se entendem como seus descendentes,
ao contrário, torna-se humilhante para as outras “raças”. As
culturas, corpos, mentes e vidas violadas no passado são
transformados em um amontoado de escombros inútil. Pois
88
a história branca do progresso não deixa abertura na consciência social para a reparação, para que dos escombros se
construa algo novo, para que das resistências do passado,
das culturas e das vidas perdidas seja possível extrair inspiração para agir no presente e buscar outros modos de vida e
outros arranjos sociais.
Walter Benjamin já tratava disso ao afirmar que na
concepção de história do progresso nem os mortos estão salvos. Para ele, é preciso encontrar um modo de ver o passado
que seja capaz de acordar os mortos e juntar os fragmentos,
somente assim será possível abrir novas perspectivas para
o futuro. O autor afirma que isso só pode ser feito quando
citamos o passado. A citação consiste em selecionar um pedaço de um todo, isto é, separar algo de seu contexto. Em
outras palavras, citar significa dissolver uma imagem fixa,
contínua e completa do passado. Segundo Arendt, o olhar
benjaminiano para o passado deve construir uma reflexão
sobre os fragmentos que sobraram dos eventos históricos:
[...] esse pensar sonda as profundezas do passado –
mas não para ressuscitá-lo tal como era e contribuir
para a renovação de eras extintas. O que guia esse
pensar é a convicção de que, embora o vivo esteja
sujeito à ruína do tempo, o processo de decadência é
ao mesmo tempo um processo de cristalização, que
nas profundezas do mar, onde afunda e se dissolve
aquilo que outrora era vivo, algumas coisas sofrem
uma ‘transformação marinha’ e sobrevivem em novas formas e contornos cristalizados que se mantêm
imunes aos elementos, como se apenas esperassem
o pescador de pérolas que um dia descerá até elas e
as trará ao mundo dos vivos – como ‘fragmentos de
pensamentos’, como algo ‘rico e estranho’ [...] (Arendt, 1987, p. 176).
89
Estas pérolas e corais não revelam o passado enquanto
tal, uma vez que sofreram uma transformação marinha. Em
nossa perspectiva esta transformação está ligada ao processo de acumulação e destruição. Os modos de vida, culturas
e feitos que foram violados para que o capitalismo pudesse
se instalar e se manter foram quebrados e jogados ao mar
como resíduos de algo sem valor, lixo. Portanto, não poderiam ser recuperados intactos, mas apenas como fragmentos valiosos os quais podem ser reparados. O que os que
vivem na temporalidade de progresso chamam de passado
inferior e atrasado, as pessoas que vivem na temporalidade
da destruição chamam de ruínas. Aqueles que lutam e resistem buscam pérolas e corais dentro das ruínas por entenderem que há algo de valor ali que pode iluminar o presente,
ser reparado e abrir novas perspectivas para o futuro. Para
exemplificar, aqueles que citam os casos de rebelião de escravizados e de quilombos, que mantém vivos a capoeira,
o samba, a umbanda e o candomblé pescam pérolas e não
deixam nas ruínas as táticas de resistência e luta dos afro-americanos no Brasil.
Ao contrário, quem entende que o passado é um
amontoado de escombros inútil do qual não se pode tirar
nenhuma pérola, defende a história do progresso e do avanço da civilização, atualiza a sujeição e a humilhação para
grupos humanos racializados, contribui para que o presente se torne o prolongamento do processo de acumulação e
destruição, uma contínua degradação e exploração humana
para produzir mais riqueza.
Além da criação da categoria de raça e da degradação de pessoas racializadas, vimos que o capitalismo também engendrou a degradação, o controle das mulheres e da
função reprodutiva quando a questão demográfica se tor-
90
nou importante para a acumulação de capital. O Estado e a
Igreja passaram a controlar o útero e a sexualidade. Ainda,
as mulheres na Europa foram confinadas no trabalho sem
remuneração, isto é, a figura da dona de casa obediente se
tornou o modelo de mulher branca. Já as mulheres negras e
ameríndias tiveram seu corpo apropriado como instrumento de trabalho e como produtoras de trabalhadores escravizados. A figura da bruxa demoníaca, que deveria sofrer
castigos severos e ou morte foi destinada às mulheres que
buscaram resistir à degradação e à exploração.
A diferenciação entre mulheres brancas e racializadas
fez com que surgisse um paradoxo na divisão entre trabalho
reprodutivo doméstico e trabalho remunerado. O trabalho
doméstico para mulheres brancas significou exclusão do espaço público, de fontes de renda, de independência e degradação. Já para mulheres racializadas e escravizadas ocorria
o contrário: enquanto o trabalho produtivo significava desumanização e degradação, pois visava ao benefício do senhor e era extraído por meio de violência física e simbólica,
o trabalho doméstico era a atividade que permitia a recuperação da humanidade, era o trabalho que fazia sentido por
estar voltado à vida dos escravizados (Davis, 2016, p. 6 e 7).
Levando isso em consideração, vemos que enquanto
para as mulheres classificadas como brancas foram degradadas ao serem confinadas ao trabalho reprodutivo e ao
espaço doméstico, de modo que sofriam com isolamento,
pois não podiam ter laços sociais e políticos e ficaram presas dentro de um tempo cíclico característico das tarefas repetitivas do ciclo vital; as mulheres que foram racializadas
podiam escapar da destruição nas atividades que não eram
produtivas: estas que preservavam sua vida e sua cultura,
isto é, as atividades reprodutivas eram uma maneira de re-
91
sistir à degradação. As mulheres brancas, assim, não tinham
uma percepção temporal que permitia uma diferenciação
entre passado, presente e futuro, a temporalidade é repetitiva como as tarefas domésticas e o isolamento encurtavam
extremamente o espaço de experiência e o horizonte de expectativas. A resistência destas mulheres e a possibilidade
de acessar outra temporalidade se dava sempre que elas ousassem sair do espaço doméstico e constituir outras relações
para além dos familiares. Com isso se abria um novo horizonte de expectativas e se descobria que a figura da dona de
casa recatada e obediente foi forjada com violência e que os
grandes feitos de mulheres do passado poderiam inspirar
ações no presente.
As mulheres negras e indígenas escravizadas ou obrigadas a uma condição servil, quanto tinham de fazer o trabalho produtivo eram tratadas como mercadoria e instrumento de trabalho, numa temporalidade em que corpo e
mente se desgastam pela humilhação e violação der serem
degradas a coisas. Enquanto faziam o trabalho produtivo
exaustivo e degradante são jogadas numa temporalidade da
deterioração, em que cada dia os senhores sugam mais de
sua força vital para acumular riquezas e uma suposta superioridade. Cada dia os corpos e mentes de escravizados
eram deteriorados de modo que passado e presente são sentidos como aviltamento e esgotamento e a expectativa do
futuro era de morte precoce e indigna. Enquanto faziam o
trabalho reprodutivo, em geral, coletivamente em senzalas,
cuidavam da vida, resistiam ao criar músicas, cultivar ritos,
crenças e saberes, e ao planejarem e executarem levantes,
sabotagens e fugas. Nestes momentos se preservava, mesmo
que precariamente, traços dos modos de vida e da cultura
do passado e abria-se novo horizontes para um futuro an-
92
tiescravagista e antirracista. Para atualizar essa discussão é
preciso dizer que hoje a sociedade ocidental não defende
mais a escravidão, no entanto, os trabalhos mais mal pagos,
exaustivos e insalubres são destinados a mulheres e homens
negros de modo que uma das heranças da escravidão e do
racismo é a extrema exploração e degradação impostas a
pessoas racializadas. O maior exemplo disso é o desrespeito
e a precarização sofrido pelas empregadas domésticas. Estas trabalhadoras provavelmente encontram mais dignidade
em casa do que no trabalho.
Esta situação das mulheres fica mais complexa quando pensamos que o trabalho reprodutivo de gerar filhos e
filhas para o Estado e para o mercado está atrelado a uma
política de morte. Corpos que são obrigados a carregar nova
vidas num maquinário social que produz morte. Principalmente problemático para as mães de crianças e jovens negros, indígenas e ou pobres. Crianças e jovens mais expostos à violência e à morte por fome, doenças e assassinato.
Mulheres além de terem dificuldade de escapar ao controle
de seu corpo e útero – as mulheres que procuram métodos
contraceptivos definitivos, abortivos e as que têm práticas
sexuais homoafetivas são as que sentem mais isso – ainda,
as que se tornam mães têm dificuldade de se desvencilhar
da temporalidade da destruição.
É corriqueiro os movimentos de mulheres serem
atacados pela defesa de acesso a métodos contraceptivos e
abortivos, dizem que estes movimentos são contra a vida e
a família. Ao mesmo tempo, os movimentos de mães que
perderam seus filhos em razão da violência do Estado nas
periferias e comunidades – como as mães de maio de São
Paulo e as mães de Manguinhos do Rio de Janeiro – são
criminalizados e aviltados. A defesa do direito à vida é usa-
93
da e jogada fora de acordo com a conveniência do Estado e
do mercado. Conforme mostramos acima, a necropolítica
e o necroliberalismo só pode ser colocado em prática com
o controle da sexualidade em geral e dos corpos femininos
em particular. O crescimento populacional e a acumulação
andam junto com a destruição massiva de pessoas. Desse
modo, as mulheres são forçadas a viver uma temporalidade parecida com a de Prometeu, o titã que teve seu corpo
acorrentado no alto do monte Cáucaso onde todos os dias
um abutre comia seu fígado, que se regenerava para sofrer o
mesmo suplício no dia seguinte. As mulheres também tem
correntes impostas pelo patriarcado de proteger seu próprio
corpo e tem como abutre o Estado e a religião que atacam
seu útero e também eventuais filhos e filhas. Nesse contexto,
o passado, presente e futuro são entendidos como a exposição a um ciclo de aviltamento e violação do qual se tem
dificuldade de escapar.
Diante desta destruição, morte, aviltamento e violação os afetos que surgem entre as pessoas que vivem na temporalidade de destruição são tristeza, medo, desesperança,
luto, humilhação e ódio. A tristeza e o luto surgem da experiência de presenciar um território, pessoas e culturas arrasadas. O medo e a desesperança, por sua vez, estão ligados
à expectativa de que a destruição continue. Nesse sentido,
estes afetos estão ligados com o passado de violência e aniquilação, com o presente vivido entre escombros e ruínas
e com um horizonte de expectativas de mais destruição. A
humilhação surge da percepção de que certos territórios e
grupos humanos têm sua natureza e importância desprezadas, rebaixadas e violentadas. O ódio emerge, por um lado,
como fúria dos ataques e violências sofridas, e impulsiona
um desejo de atacar de volta, vingar-se no sentido de causar
94
o mesmo dano a outros, devolver a violência sofrida. Por
outro lado, ele emerge como percepção de injustiça, de que
o desprezo e a destruição de biomas, pessoas e culturas não
são naturais, mas socialmente construídos. Este ódio anda
junto com a indignação e leva a um desejo de vingar no sentido de resistir e escapar da temporalidade de destruição.
Nesta perspectiva, embora o espaço de experiência seja de
destruição, abre-se um horizonte de expectativa em que seja
possível viver outra temporalidade individualmente ou coletivamente.
Levando isso em consideração, notamos algumas maneiras de lidar com os afetos e com a relação entre espaço de
experiência e horizonte de expectativa. Uma é de desesperança e apatia: dado que seu passado foi presenciar aniquilação, seu presente consiste em habitar entre ruínas e mortos,
o futuro fatalmente será de violência e morte. A outra é de
fúria e vingança, que faz uma ampliação da destruição na
medida em que procura espalhar a violência e destruição
para os territórios e grupos sociais que estão na temporalidade do progresso, os quais obtém ganhos e vantagens com
a humilhação e violação de outros. Nesse contexto o presente é um esforço de equalização: que todos tenham que
lidar com ruínas e mortos, com o medo, a tristeza e o luto.
Também pode ser uma tentativa dos explorados e aviltados
de obter alguma vantagem ou ganho por meios violentos,
abrindo uma possibilidade de um futuro mais favorável.
Por fim, um outro modo de lidar com os afetos gerados na
temporalidade da destruição é ver que o ódio aponta para o
injusto e que, portanto, deveria ser diferente; que a tristeza
e o luto mostram algo importantíssimo que foi violado ou
perdido. Este ódio e indignação têm a capacidade de impelir
para a resistência entendida como perseverar a existência,
95
reparar os danos e reconstruir a partir das pérolas e corais
encontrados nas ruínas. Em nossa perspectiva este último
modo de lidar com a temporalidade da destruição é o mais
promissor uma vez que é o esforço de fazer outros movimentos corporais e espirituais, os quais, embora marcados pela
violência e aniquilação, não são determinados pelo ritmo da
destruição. Mais do que isso, são estes outros movimentos
que abrem um novo horizonte de expectativa e podem fazer
surgir uma outra sociedade e outras temporalidades.
96
Bibliografia
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
__________. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. Em: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense,
1985.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
LA BOÈTIE, Etienne. Discurso sobre a servidão voluntária,
São Paulo, Brasiliense, 1982.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1
edições, 2019.
97
A Tecnologia e o tempo programável
Não é inútil lembrar que o tempo da criação artística ou
do pensamento também exige algo dessa ordem. Do dar
tempo e paciência para que o tempo e a forma brotem a
partir do informe e do indecidido. O desafio é propiciar as
condições para o tempo não controlável, não programável, que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em neutralizar. Pois importa, tanto no caso
do pensamento como no da criação, mas também no da
loucura, guardadas as diferenças, de poder acolher o que
não estamos preparados para acolher, porque este novo
não pôde ser previsto nem programado, pois é da ordem
do tempo em sua vinda, e não em sua antecipação.
(Peter Pál Pelbart, A NAU DO TEMPO-REI, p. 36)
Toda civilização é definida pela experiência que faz do
tempo, uma experiência que oferece o horizonte a partir do qual torna-se compreensível o modo de pensar e o
sentido do agir dessa determinada civilização. Pela mesma razão, toda passagem de civilização comporta uma
mudança fundamental na intuição do tempo, pela qual
o tempo pode ser pensado como esse fundo simbólico
a partir do qual toda civilização se torna compreensível.
(Galimberti, 2006, p. 571)
As ilusões da aceleração sem referente fixo
O trecho acima de Umberto Galimberti é, afinal, o
mote assumido neste livro para pensarmos as temporalidades: compreender nossa “civilização” a partir dos fluxos de
temporalidades ora em funcionamento, que envolvem diferentes sujeitos em diferentes locais do mundo globalizado,
ainda que encontrem resistências e dissonâncias a uma temporalidade hegemônica. Esse contexto de fluxos de temporalidades na contemporaneidade opera com uma acelerada
transformação das experiências de vida (em sua compreensão biológica) e de “estar no mundo”. De modo que a aceleração da técnica (Rosa, 2019, p. 189) passou a ser o principal
mecanismo condicionante dos corpos, das subjetividades,
das sociedades e mesmo de toda a natureza.
Outro teórico a partir o qual podemos pensar as implicações da relação entre a aceleração entre e o tempo é o
geógrafo Milton Santos (2013, p. 28), para quem, na verdade, as acelerações temporais que se encontram em diversos
ritmos, sejam superpostas ou concomitantes. Isso porque
estamos diante de uma fase em que a economia capitalista
foi mundializada e impetrou a adoção de um modelo técnico único que sobrepõe, quando não silencia e apaga, as
múltiplas formas de recursos naturais e humanos (Santos,
2013, p. 18). Tais considerações se aproximam de Mèszáros que também apontou que as relações de primeira ordem (relações dos homens com a natureza) e as de segunda ordem (relações sociais) se subordinavam a um tempo
do capital que tem por objetivo a acumulação e expansão
desse capital que encontrou na tecnologia sua grande aliada como já mostrava Marx ao tratar do conceito de mais
valia relativa.
101
Embora Único e mundializado, esse modelo técnico
está multiplicado em suas formas de operação e com objetivos diferentes de acordo com a região em que se encontra,
o que o torna ainda mais poderoso e penetrante mesmo nas
mínimas práticas e formas de subjetivação resilientes à cooptação. Vide movimentos como o de proteção à natureza
e de defesa de minorias que acabam virando estratégias de
marketing nas grandes corporações e slogans de campanhas
políticas.
Antes de compreendermos como a tecnologia estabeleceu uma relação entre os indivíduos e o tempo, diversa daquela concepção de tempo existente antes de sua
exponencial transformação, devemos perceber que a modernidade, como caracteriza David Harvey, realizou uma
mudança no modo como nos “localizamos” no espaço e no
tempo, de modo que agora a experiência que parece prevalecer entre nós é a de um “confuso vagar de um lugar para
o outro” (Harvey, 2016, p. 256). Vagar, também confirmado
por Hartmut Rosa, no sentido de que “o tempo começa a
perder seu caráter orientacional e unilinear, pois o conjunto
de sequências e cronologias parece se dissolver progressivamente.” (Rosa, 2019, p. 199).
Com o desenvolvimento da tecnologia, agente determinante dessa aceleração, não conseguimos nos relacionar
com o tempo do mesmo modo como aqueles que estabeleceram as primeiras formas de medir o tempo a partir de
fenômenos naturais, como o amanhecer e o entardecer, as
estações e mesmo o ciclo lunar. Isso porque aqueles que
estabeleceram as primeiras formas de mensurar o tempo,
eram capazes de ordenar as atividades laborais, religiosas
ou culturais ao ligar os sujeitos a valores e objetivos comuns,
isto é, a um mundo compartilhado.
102
Hodiernamente, apesar de estarmos sincronizados a
fuso horários globais, medir o tempo já não é algo que nos
liga e nos referencia a um lugar no mundo, isto porque os
processos de individualização levam a uma introspecção de
valores e experiências. Nesse modo de mensuração contemporânea do tempo, percebemos que a tecnologia funciona
mais como uma forma de gestão das atividades repetitivas e
burocráticas da vida social, especialmente quando se tratam
de cidades grandes e de atividades ligadas e dependentes do
comércio internacional e à internet, do que como uma ferramenta que nos auxilia na construção de laços e soluções
compartilhadas.
Podemos observar essa gestão burocrática da vida
social a partir do avanço das técnicas de iluminação artificial, quando foi possível aumentar e padronizar o tempo
de trabalho, que passou não depender mais dos períodos
de incidência solar, o tempo do trabalho superou o tempo
natural. Isto chegou a alterar o ciclo de sono de seres humanos e animais em favor das atividades produtivas. De modo
semelhante, as técnicas de controle de temperatura de ambientes fechados permitiram escapar de algumas características climáticas típicas das estações do ano, o que, além de
contribuir para a padronizar as horas de trabalho diárias,
também permitiu que a “produtividade” de algumas plantas
deixasse de ser sazonal. Os avanços científico e da técnica
também mudaram a relação cultural com o corpo e com
elementos naturais – como rios, montanhas, arvores etc. –
por meio de um desencantamento. As tradições religiosas,
ritualísticas e culturais que, ao mesmo tempo sacralizavam
corpo e elementos naturais, também interditavam algumas
atividades em certos períodos ou a modificação de ciclos
biológicos e naturais, foram atacadas e transformadas quan-
103
do se tornam um entrave para a acelerada acumulação de
capital. Crenças, tradições e ritos só são mantidos se puderem ser absorvidos pelo tempo do capital.
Essa desorientação espaço-temporal dos indivíduos
é um dos resultados mais visíveis e determinantes da presença tecnológica que impactou o modo como concebemos
e nos relacionamos: a aceleração das temporalidades e seu
consequente encurtamento do espaço. O tempo acelerado
acaba por encurtar o espaço, ou melhor, comprimi-lo. O
que até pouco tempo atrás considerávamos distante e medido temporalmente em dias, como os 44 dias que a embarcação de Pedro Alvares de Cabral com sua tripulação levou
em sua incursão imperialista de Portugal ao Brasil, torna-se
alcançável em poucas horas com os meios de transportes
contemporâneos, como as pouco mais de 9 horas de viagem de avião do Porto a São Paulo. Esse impacto no tempo
em virtude dos avanços tecnológicos nos leva à impressão
de que nada mais parece ser inalcançável, dado que hoje já
existem tecnologias em uso que permitem “alcançar e ver”
até mesmo o universo em seus primeiros momentos de desenvolvimento, isto é, seus primeiros milhões de anos.
Essa aceleração modificadora da nossa compreensão
do tempo e, consequentemente, do modo como compreendemos e vivenciamos o espaço nos levam a outras questões
além do encurtamento espaço-temporal, dentre elas, é visível o fato de que quem nasce em meio a essa compressão
do espaço-tempo, passa a ser condicionado por ela, por isso
esses indivíduos tornam-se incapazes de identificar os avanços tecnológicos ou as catástrofes ambientais como eventos
grandiosos e espantosos. De fato, até mesmo a magnitude
dos fenômenos astronômicos parece tornar-se diminuta
para quem experiência a temporalidade desde essas pri-
104
meiras décadas do século XX. Esse encurtamento espaço-temporal, entendido como normal para as novas gerações,
é tratado com estranhamento por Gilberto Gil na música
Parabolicamará:
“Antes mundo era pequeno
Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
Do tamanho da antena
Parabolicamará [...]
De jangada leva uma eternidade
De saveiro leva uma encarnação
De avião o tempo de uma saudade”
Na letra, percebemos como a tecnologia transforma a percepção do mundo, a relação entre as pessoas e os
afetos, isto é, a subjetividade como um todo: o mundo se
tornou grande, a eternidade foi transposta e a saudade surge com a possibilidade de manter vínculos com pessoas,
mesmo distantes.
Ainda que a tecnologia siga afetando as pessoas de
diferentes formas, seu poder destaca-se por varrer terra,
céus e mares com seus fios e ondas de modo a finalmente dar sentido a conceitos como onisciência e onipresença,
atributos anteriormente dos entes divinos e que também
determinavam uma concepção de tempo, bem como veio a
permitir a superação de parâmetros para velocidade e quantidade de informações manipuláveis e cambiáveis. Por isso,
os exemplos e princípios, aqui analisados, serão retirados
das tecnologias de comunicação digitais, isto é, das tecnologias que permitem o funcionamento da internet ao mesmo
105
tempo em que dela são dependentes. Utilizando um termo
do historiador alemão Reinhart Koselleck (2014, p. 306), a
internet tem se tornando o espaço de experiência globalizado par excellence, ou seja, abrimos uma outra concepção de
temporalidade, aquela que se dá nas redes sociais, mas que
repercute na nossa realidade fora delas.
O fato é que vivenciamos um tipo de aceleração jamais imaginável, por exemplo, dentro dos paradigmas da
física clássica e de uma organização social pautada em instituições seculares e relacionáveis como víamos poucas décadas atrás. Uma simples compra de um livro em uma livraria
de outro estado ou país, que, antigamente poderia levar dias
ou semanas para seu envio, estava regida por um parâmetro de velocidade. Para as empresas possuíssem eficiência
nas entregas, além da logística, deveriam investir e defender
políticas de infra-estrtura que melhorassem as estradas. No
entanto, hoje o envio de livros segue um outro parâmetro de
velocidade em que a entrega é realizada instantaneamente
graças à possibilidade da transferência de dados pela internet, ou seja, está pautada na velocidade da luz por meio de
cabos de fibra ótica que ligam continentes. Assim, a logística envolvida no transporte de informações não segue mais
padrões de velocidade mecânicos da física clássica. Trata-se
de um momento em que somos impelidos a avançar, não
em relação aos parâmetros recentemente alcançados, mas
em relação a um valor abstrato qualquer, instituído artificialmente e de forma arbitrária. Isso porque os símbolos,
normas e padrões para nossa orientação, ainda que fruto de
convenções sociais e científicas, são, por princípio, um tipo
de ponto arquimediano que pode facilmente ser deslocado.
Mesmo analisando as contradições da modernidade
citadas por autores como Hartmut Rosa e David Harvey,
106
observamos o fato de que ainda que existam experiências
aceleradoras, também persistem exemplos de experiências
que resistem à aceleração as quais podem ser chamadas de
desaceleratórias. Essas experiências aceleratórias e desaceleratórias em nosso sistema de produção acabam fazendo
parte de uma contabilidade capitalista que são vivenciadas
de maneira diversa dependendo da classe social a que cada
um de nós pertencemos. Por exemplo, quando Rosa (2019,
p. 248) menciona a diminuição do tempo dedicado às tarefas e experiências que vivenciamos dada a vasta disponibilidade de objetos para usar e coisas para fazer (o que só
cresce exponencialmente graças ao fetichismo consumista
influenciado pelos mercados), observamos aqui uma experiência aceleratória. Dito de outro modo, esse exemplo de
experiência aceleradora está relacionado à capacidade de
uma determinada classe conseguir diminuir o tempo despendido em suas atividades quotidianas em virtude dos privilégios da classe a que pertence no nosso sistema de modo
de produção, com o objetivo de melhorar sua qualidade de
vida ou aumentar a acumulação e expansão do capital. Este
último, pode ser melhor observado por meio do exemplo de
indivíduos que possuem o privilegio de morar em um bairro autossustentável perto do trabalho, da escola das crianças
e dos bens e serviços que necessitam como bancos, supermercados e locais de lazer.
Isto permite a formação de uma contabilidade do
tempo: quem possui dinheiro pode contratar serviços ou
comprar bens que permitem poupar tempo com certas coisas e investi-lo. Por exemplo, alguém pode pagar uma empregada doméstica para limpar a casa, máquinas para lavar
roupa e louças e gastar esse tempo economizado em um
curso de especialização para conseguir um cargo e salário
107
melhor, ou mesmo ir para uma academia fazer a atividade
física da moda e postar em suas redes e com isso aumentar
seu prestígio social. Postar nas redes algo que obtém muitos
“likes” é rentável, não só para quem se torna influencer e
passa a receber dinheiro e produtos, mas também estimula
consumo de serviços e mercadorias, bem como pode proporcionar melhoria no network e das relações pessoais que
podem resultar em ascensão econômica e social. Essa é a
contabilidade que permite o intercambio entre aceleração e
desaceleração para grupos socias abastados.
A aceleração é experienciada não apenas nas esferas
privada e social, a esfera pública também tem sido esmagada
por eventos, discursos e tantas variáveis que a participação
numa discussão política tende a ser um diálogo aporético
uma vez que não chegamos a uma solução. Ao contrário do
modelo socrático-platônico, não há um avanço na compreensão de mundo por meio da argumentação, temos apenas
a difusão veloz de informações, por vezes não verdadeiras,
sem espaço para troca e reflexão sobre os temas. Esse processo de debate público ampliado, em que é possível verificar informações, depurar opiniões, aprofundar ideias e
encontrar respostas compartilhadas é lento, o que vai contra a aceleração exigida pelo capital. Diante, então, de uma
imensa dificuldade em chegarmos a acordos rapidamente e,
assim, encontrarmos formas de autodirecionamento e organização, as soluções mercadológicas e técnicas são apresentadas como mais eficientes para as questões públicas. Desse
modo, o debate democrático e ampliado parece ser inadequado, declara-se incompetente os processos participativos
e ignorante a população enquanto o mercado e seus gestores
se mostram competentes e detentores soluções rápidas e eficientes, por conseguinte decidem os rumos de nossas vidas.
108
Enfatizamos que essa situação só ocorre por valorizarmos a
aceleração como um elemento imprescindível para a temporalidade em que estamos inseridos.
A obsolescência programada parece ter sido o principal arquétipo da atual lógica de transição estética e de
valores que orienta e conforma os comportamentos dos
usuários no ambiente virtual e também na vida ordinária offline (cada vez mais apenas o sono tem permanecido
realmente offline)12. Conseguimos observar essa obsolescência programada em produtos quando percebemos que
os aparelhos eletrônicos que compramos, poucos meses
depois tornam-se obsoletos em relação aos lançamentos
daquele mesmo produto no mercado (algo que parece seguir uma progressão geométrica em suas funções e significados). Ainda observamos que ideias também ficam rapidamente ultrapassas na mass media, uma vez que a lógica
que orienta as trends, hashtags e memes, sé é que é possível
chamá-la de lógica, é tão passageira quanto contraditória.
Essa lógica da obsolescência também passou a ser aplicada
a pessoas e relações: ao invés de se buscar laços duradouros e confiar na capacidade humana de atualizar e manter relações, acordos e parcerias, passou a se entender que
pessoas e vínculos envelhecem13 e deveriam ser descartadas e substituídas por novas mercadorias e círculos sociais
num clique.
12 Isso porque temos saído de um modo de produção-consumo orientado
para objetos caros e duráveis para nos voltarmos para produtos descartáveis e
massificados de diversos pontos de vista. O acesso ao consumo de bens antes
considerados elitizados é, inclusive, utilizado como mote para a aceleração do
desejo consumista, sendo, por isso, necessária essa descartabilidade em prol de
sua contínua satisfação
13 Aqui não se trata de um envelhecimento natural caracterizado pela fase
que se atinge ao final da vida biológica.
109
Diante dessa realidade em que há uma obsolescência
de ideias também na construção de valores, a produção dos
conteúdos nas mídias, orientada pelos ideólogos ou “criadores de conteúdo” da vez, mudam constantemente sempre em decorrência de algo acidental ou aleatório. A partir
dessa fugacidade própria dos conteúdos produzidos pelas
atuais mídias, não é possível desenhar uma linha entre os
conteúdos ou mesmo explicar alguma coerência entre os
assuntos. Quanto a essa fugacidade própria dos conteúdos
produzidos pelas atuais mídias, a organização dos conteúdos na internet não permite uma cronologia e, assim, um
tipo de orientação em relação às transformações ocorridas e
aos sujeitos envolvidos, de forma a inviabilizar qualquer estabilidade temporal ou, mais evidentemente, espacial (dada
ao topos invisível de seus usuários e dos servidores que operam as conexões). O fato é que há uma relação circular entre
a obsolescência de produtos e as ideias e pessoas no sistema
capitalista: o mercado vê nessa troca constante de interesses
e assuntos um meio pelo qual pode ofertar novos objetos
de desejo e programar novos comportamentos para vender
seus produtos.
Práticas como a personalização de estratégias de
venda, bem como o monitoramento e controle de trabalhadores via dispositivos como o GPS, revelam a pressão
operada pela racionalidade neoliberal que, em sua procura por eficiência e lucro, vê nas tecnologias de controle do
espaço e do tempo, a realização de seu fetiche de uma governamentalidade ubíqua, isto é, desenvolvendo formas de
controle e cooptação do tempo dos trabalhadores. Retornando à concepção de Lefebvre sobre a variação dos ritmos
de vida percebemos que essas práticas neoliberais passam
despercebidas pela maior parte da população, uma vez que
110
as tecnologias produzem uma falsa sensação de diversificação social e pluralidade política quanto às formas de nos
organizarmos, quando na verdade o que estamos vivendo
é uma aglutinação de ritmos e temporalidades de modo a
permitir que alguns poucos sujeitos e instituições tenham o
controle sobre presente e futuro de todos. Para corroborar
isso, acrescenta Jonathan Crary:
O alinhamento temporal do indivíduo com o funcionamento dos mercados, em desenvolvimento há
dois séculos, tornou irrelevantes as distinções entre
trabalho e não trabalho, público e privado, vida cotidiana e meios institucionais organizados. (Crary,
2014, p. 84)
Essa irrelevância entre público e privado já havia
sido problematizada por Hannah Arendt ao longo de muitos
de seus textos. A filósofa destacava que o desaparecimento
da linha separando o público do privado, com a consequente aparição da esfera social durante a modernidade, tratava-se de um evento pernicioso, sobretudo, para a política,
dada a “invasão” de questões do âmbito privado na esfera
pública. Essa invasão ocorrida nas primeiras etapas de crescimento do capitalismo global, em nada se compara com
a atual impossibilidade de distinção espaço-temporal de
nossas atividades, independentemente de qual âmbito elas
sejam primordialmente oriundas. A presença, literalmente
espetacular, de dispositivos de monitoramento e interação
digital, bem como a massificação dos serviços de internet
de alta velocidade, têm permitido a aparição de múltiplas
temporalidades que operam de forma simultânea.
Em casa, na frente de um computador, os chamados youtubers promovem a transmissão, por exemplo, de
111
partidas online de jogos de computador, nas quais além de
compartilharem seu desempenho com milhares de espectadores (seus seguidores), aparecem, graças às suas câmeras e
microfones, como figuras e ícones formadores de opinião.
E esse processo de formar opinião nada mais é que uma
jornada retórica em busca da massificação de determinadas
ideias cujos fins são o lucro ou a mobilização ideológica, por
vezes ambos.
Vale a pena ressaltar que esses youtubers não são admirados apenas pela habilidade que possuem num determinado campo: como jogar bem certos games, ou se maquiar
bem. Tudo relacionado a eles passa a ser admirado (consequentemente transformado em mercadorias – produtos e
ideias) e muitos vezes imitado: o modo de falar, as roupas
usadas, o corte de cabelo, a decoração do ambiente e, até
mesmo, sua opinião sobre todos os assuntos (mesmo aquelas em que a pessoa sabe pouco e não é especialista).
É importante ressaltar que a manifestação de opinião
sobre um assunto que mal se conhece em um diálogo não
é um problema, pois a forma dialógica tem a potência de
levar a um maior conhecimento sobre um assunto por meio
da troca de ideias e do surgimento de questões que colocam
em dúvidas o que se pensava saber e, ainda, incentivam a
busca por informação e conhecimento. O problema encontra-se no fato de que lives e vídeos de yotubers e influencers,
em geral, não abrem um diálogo com troca de ideias entre
espectadores de modo a ter um desenvolvimento na argumentação e um aumento de saberes, por fim, uma apuração
de opiniões, na verdade trata-se de um simples propagar de
opiniões.
Além disso, youtubers e influencers nem sempre expressam opiniões ou falam de temas espontaneamente, às
112
vezes o que dizem é imposto pela lógica das trends e hashtags: eles devem falar do assunto do momento e devem emitir
opiniões que atraiam mais likes ou as que evitem a perda
de fãs uma vez que a monetização de seus canais e perfis
está ligada ao número de seguidores e likes. Antes da internet e das redes sociais, outros meios como jornais, rádios
e televisão eram os principais meios de comunicação que
por vezes também eram formadores de opinião. No entanto,
nesses meios, os comunicadores deveriam ser especialistas
do tema que tratavam.
O tubo de raios catódicos foi um exemplo decisivo e
vívido de como o brilho e a tagarelice de um mundo público de transações penetraram mesmo o mais
privado dos espaços e contaminaram o silêncio e a
solidão – para Arendt, elementos essenciais à subsistência de indivíduos políticos. A televisão redefiniu
rapidamente o significado de pertencimento a uma
sociedade. Esgotou-se até mesmo o projeto de valorizar a educação e a participação cívica, na medida
em que a cidadania foi suplantada pela condição de
espectador. (Crary, 2014, p. 89)
Essas mídias tradicionais eram distintas das que interagimos atualmente, uma vez que eram monológicas, aqueles que as consumiam não podiam opinar como fazemos
hoje em dia nos comentários do Facebook, Instagram e
Twitter. Com a internet e a popularização das redes sociais,
a necessidade de opinar sobre tudo tornou-se mais que um
direito, uma regra. E mais, os falsos defensores da liberdade
de expressão têm se servido dessa tagarelice generalizada
para suplantar direitos e difundir desde campanhas políticas difamatórias e baseadas em notícias falsas até ideias fascistas como podemos observar nas palavras de Crary:
113
O regime 24/7 [24 horas por dia, 7 dias na semana] oferece a ilusão de um tempo sem espera, de um
atendimento instantâneo, do isolamento – mesmo
em presença do outro. Agora, a responsabilidade
pelo outro que a proximidade implica pode ser facilmente contornada pelo gerenciamento eletrônico de
nossas rotinas e contatos diários. O mais importante
talvez consista no fato de o 24/7 causar a atrofia da
paciência e da deferência individual – essenciais a
qualquer forma de democracia direta: a paciência
de escutar os outros, de esperar nossa vez de falar.
(Crary, 2014, p. 133)
Observamos uma progressão dos meios de comunicação como capturadores do nosso tempo, corpo e mente. No
início, as transmissões de rádio conseguiram aglomerar pessoas em seu entorno para ouvir notícias, músicas e novelas,
influenciando suas subjetividades – emoções criadas pela comoção das estórias, formação de opiniões e gostos musicais.
Em seguida, com a televisão há um aumento da potência de
captura, uma vez que a transmissão é sonora e imagética, o
que faz com que não se precise de um grau maior de imaginação para preencher as lacunas deixadas pelo rádio. Na
televisão, não há margem para pensarmos se um personagem é alto ou baixo, gordo ou magro, branco ou negro, assim
os estereótipos são completamente determinados, deixando
pouco para nossa imaginação, o que aumentou o poder da
televisão na formação de nossas subjetividades e numa busca para conseguir alcançá-los, ou seja, devemos nos encaixar nos padrões que são difundidos por aquela caixa de som
e imagens. Como dito na composição da banda Titãs: “que
tudo que a antena captar meu coração captura”.
Vale ressaltar que no início a televisão tinha uma programação restrita, nos treinava a assistir noticiários e no114
velas apenas 19:00 às 22:00. Com o seu desenvolvimento
técnico, a programação passou a ser estendida e ela passou
a estar conosco 24/7 e mesmo quando estamos com a tv ligada, o que se assistiu nela se tornou assunto durante o dia,
por exemplo em 1989, todos comentavam sobre a personagem de Beatriz Segal na novela “Vale tudo”: quem matou
Odete Roitman? Hoje, diante dos diversos tipos de aparelhos ligados à rede mundial de computadores, nosso tempo
é programado e atualizado 24/7 e nossas atividades, desde
aquelas compartilhadas e públicas, até o mais íntimo desejo
ou o mais utópico sonho, tornam-se o resultado dos códigos
que nos programam objetiva e subjetivamente. Conforme
mencionamos no inicio do nosso argumento, as redes sociais fazem parte dessa evolução dos meios de comunicação
na captura do nosso tempo cotidiano, corpos e mentes, pois
há uma interatividade já que não somos mais apenas espectadores estáticos, mas também produtores de conteúdo.
À medida que o mercado financeiro avança desterritorializando subjetividades e o próprio entendimento comum do que seja trabalho, classe, economia e política, a ciência, cooptada pela máquina capitalista, elabora e entrega,
aos donos do mercado e aos governos que não abrem mão
totalmente do jogo de exploração social, tecnologias capazes de programar e controlar os fluxos temporais das massas
e dos próprios mercados. Os sujeitos e, principalmente, as
grandes corporações agem como se não houvessem outras
formas de nos relacionarmos com o tempo que não sejam
aquelas produzidas pelas ciências naturais, hodiernamente
guiadas pela informática e pela microeletrônica. Tal postura
se deve pelo controle que os CEOs das corporações tecnológicas sentem em relação a seus funcionários, produtos ou
serviços, bem como pelos usuários que deles dependem, li-
115
teralmente, para realizar mesmo as mais simples tarefas do
dia a dia.
Esse tempo programável superou sua antiga forma de
operação, promovida pela sociedade industrial fordista, a
qual mensurava os valores econômicos a partir do tempo de
trabalho, rumo a uma forma volátil e caótica, na qual o tempo é vivenciado de forma aleatória e se torna um elemento
individual, impulsionado pela financeirização da economia
global e também pela produção flexível em pequenos lotes com uma maior variedade, capaz de atender uma gama
mais ampla do mercado ao produzir pequenas quantidades
de produtos, mas personalizados para cada grupo social.
Ainda podemos falar de um tempo programável, mas agora
os algoritmos que o regem são elaborados por pessoas que
não podemos identificar claramente e as variáveis com as
quais operam são mais numerosas e pautadas na precarização das massas e na exploração dos afetos e dos imaginários
coletivos. Essa programação também passou por um processo de progressão, se hoje temos essa realidade programável com as redes, antes, também tínhamos um gérmen dela
com as rádios, como podemos observar no seguinte trecho
de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector:
Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por
uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem
baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava a “hora
certa e cultura”, e nenhuma música, só pingava um
som de gotas que caem – cada gota de minuto que
passava [...] E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para
dar anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era
a rádio perfeita pois também entre os pintos do tem-
116
po dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum
dia viesse precisar saber (Lispector, 2020, p.33).
Além da programação, esse trecho nos remete à massificação e idiotificação da população mais carente diante
desses meios de comunicação, a personagem vê-se hipnotizada pelo ritmo dos pingos, que não possuem qualquer
significado para além da marcação de tempo vazio. Mesmo
sendo um artefato tecnológico, característico de uma grande
cidade, talvez essa contemplação dos “valiosos” ensinamentos culturais representem para a personagem uma forma de
vida e de experenciar o tempo diferente daquela vivenciada
diariamente na grande metrópole do Rio de Janeiro na qual
ela é apenas um grão da massa de gente.
Programar o tempo, inevitavelmente, passa pela formatação do espaço e, por conseguinte, dos sujeitos que
nele vivem. Tal programação consiste, afinal, em uma das
formas mais violentas de cooptação total dos indivíduos,
daquilo que Reinhart Koselleck chamou de espaços de experiências e de horizontes de expectativas. Por espaço de
experiência devemos entender os elementos concernentes
ao passado que utilizamos para compreender e agir no presente, por sua vez, horizonte de expectativa é o campo de
possibilidades que estamos desenhando no presente a fim
de tornar-se nossas experiências futuras. Quando dizemos
que estas duas categorias de interpretação da história e de
nossa própria existência encontram-se condicionadas pelas
formas de dominação social do tempo programável, queremos dizer que este se tornou a temporalidade hegemônica
que opera sob a forma de uma produção euritmica. Restando-nos justamente o dever de compreender os modos pelos
os quais o tempo hegemônico da tecnologia é programado.
117
Programando o tempo
A temporalidade do progresso, reforçada pela guinada tecnológica das últimas quatro décadas, especialmente
no campo da informática e das bioengenharias, possibilitou
à globalização chegar a um horizonte inimaginável. Não por
sua extensão sobre os países ou por sua velocidade de comunicação e transporte, mas por sua ubiquidade que tornou
mesmo as mais rotineiras e naturais atividades em eventos
condicionados pelo espectro do progresso informático.
Quanto aos processos corporais, por exemplo, a intervenção tecnológica na temporalidade da vida biológica vai
muito além da adequação das diversas atividades humanas
a uma rotina cronometrada, trata-se agora até mesmo de
uma busca por viabilizar a superação de “limitações” metabólicas tais como a maternidade em idade avançada, a
modificação corporal estética ou aquelas com vistas a melhoramento de performance. De modo que sua inserção
dentre os condicionantes da vida humana torna-se radical e
firma-se como uma máquina simbólica que acelera todas as
demais máquinas, sejam elas físicas, abstratas-virtuais, psicológicas-sociais, etc.
Sem um valor de referência, essa aceleração absurda
que vivenciamos ocorre num mundo cuja materialidade é,
majoritariamente, informatizada, ou pelo menos, dependente de aparatos tecno-digitais, e assim, a forma com a
qual os sistemas operam seus processos pode nos esclarecer
seus funcionamentos. Isto é, compreendendo a arquitetura
e funcionamento das máquinas e daquilo que lhes permite
operar, estaremos em melhor posição de igualmente compreender essa temporalidade programável em que temos
vivido nas últimas décadas. É via programação (ausência de
118
referentes que não os produzidos pelos próprios códigos).
Inserido no mercado capitalista global, cujo principal produto de venda e troca é o sentido, o tempo torna-se uma das
mais importantes “tecnologias” que, se dominadas, permite
o condicionamento e manipulação de instituições e pessoas
e, consequentemente, a produção e venda de mais sentidos.
A marca primordial da temporalidade moderna, generalizando suas possibilidades de manifestação, é a aceleração. Isso porque não importa se se trata de um trabalhador de uma metalúrgica ou de uma artista que se apresenta
ao vivo no metrô de uma grande cidade, as configurações
sociais, tecnológicas, políticas e econômicas os levarão a
experienciar o tempo de forma acelerada. De forma bem
abrangente, podemos dizer que a tecnologia captura, organiza e programa o tempo das pessoas em pelo menos três
estágios. O primeiro, e mais superficial, trata-se do tempo
despendido com a manipulação de ferramentas simples em
vistas da execução de uma tarefa igualmente simples. Este
é o tempo superficial do homo faber, como chama Hannah
Arendt ao ser humano enquanto fabricador de objetos e
construtor do mundo, aquele é determinado pela manipulação de objetos e reificação da matéria natural. Trata-se de
uma temporalidade com vistas a um fim. Tão logo seja executada a tarefa, a ferramenta pode ser posta de lado por um
tempo e ela só voltará a condicionar nossa rotina e nossas
atividades quando novamente precisarmos executar uma
determinada tarefa. Utilizando um exemplo que perpassará as próximas formas de vivenciar o tempo em relação à
tecnologia, podemos mencionar aqui o caso do telégrafo,
da comunicação postal ou dos primeiros telefones públicos.
A presença de tais tecnologias era bastante pontual durante
o dia de uma pessoa e seu uso tinha objetivo específico e
119
não se estendia para além da comunicação em si. Tão logo
alguém deixasse a cabine telefônica ou entregasse uma carta em uma agência postal, estaria ali finalizada, ainda que
momentaneamente, o uso de tal serviço ou tecnologia. Isso,
porém, se alterou com a invasão persuasiva de aparelhos e
serviços mais sofisticados.
A segunda forma, mais profunda e invasiva que a anterior, começa quando os objetos e técnicas de organização
do tempo penetram e articulam a vida íntima e social das
pessoas. Os relógios, calendários, agendas e as instituições
que os manipulam (escolas, trabalho, televisão, etc.), tornam impossível até mesmo pequenos ajustes nas rotinas em
prol de alguma demanda de bem-estar dos sujeitos. Como
exemplo, podemos citar a difusão do sistema telefônico para
as residências e a aparição dos primeiros sites e serviços de
comunicação instantânea via internet. A presença do telefone nas residências disponibilizava uma comunicação rápida
e simples vinte e quatro horas por dia ao longo de todos
os dias do ano, isso inspirava o sentimento de controle de
um poder comunicativo sofisticado e sempre à disposição.
Assim como os primeiros mensageiros eletrônicos dos computadores pessoais também levavam essa sofisticação a um
outro patamar, abrindo canais comunicativos entre usuários
da internet de qualquer lugar do mundo, de forma instantânea e progressivamente mais barata. Essas tecnologias, porém, podem ser vistas como uma das primeiras formas de
vivenciar o tempo em que a ansiedade e o imediatismo são
prerrogativas para todas as atividades. Além disso, também
perdemos o senso de prioridade nas comunicações e de tratar um assunto de cada vez. O acesso a mensagens instantâneas que podem ser enviadas e recebidas a qualquer tempo
nos faz falar de vários assuntos simultaneamente, nossas
120
conversas se tornam cada vez mais fragmentadas sem qualquer organização de quais mensagens são mais relevantes e
quando um assunto começou ou foi terminado.
A terceira forma de condicionamento e programação
de nosso tempo pela tecnologia consiste na completa captura afetiva e psicológica dos sujeitos, de modo que estes,
mesmo na ausência de dispositivos ou redes de comunicação, passam a pensar e desejar em prol de alimentar suas
plataformas ou suas relações. Qualquer reunião com amigos ou férias familiares torna-se conteúdo semiótico capaz
de dar-lhes a sensação de pertencimento ao abstrato (ao
mesmo tempo extremamente real) meio virtual no qual habitam majoritariamente. Finalizando então com o exemplo
relativo à comunicação, com o barateamento e consequente
difusão dos dispositivos eletrônicos conectados à internet
e com suas incríveis capacidades de comunicação e facilitação de prestação de serviços, passamos a viver sob uma
temporalidade tecnologicamente mediada e ubíqua. Não é
mais em um canto de nossas casas que estará a ferramenta comunicativa acessível e instantânea, mas ao alcance de
nossos olhos e mãos, de uma forma quase já aglutinada a
nossos corpos14.
Os aparelhos eletrônicos, individuais ou aqueles que
funcionam em redes, são o arranjo de uma parte física
(composta por chips, baterias, circuitos, etc.), um código
que os faz funcionar e uma máquina sócio-psíquica que lhes
condiciona aos princípios das empresas e sistemas nos quais
são concebidos, a única lógica que reconhecem é a repetição
14 Mencionar a concepção de Donna Haraway que diz que o ser humano contemporâneo já pode ser considerado como ciborgue dado que o celular, assim
como outros dispositivos, já está ligado ao nosso corpo de maneira quase cirúrgica.
121
e, quando muito, permitem uma atualização dos códigos
quando diante de alguma mudança nos objetivos das corporações ou uma transformação dos sistemas em que operam. A parte física, visível e palpável é aquela mais fácil de
ser interpretada e de ter seu design compreendido do ponto
de vista técnico, isto é, de ter suas funções e manuseios expostos de forma clara; enquanto a parte lógica, em especial
quando se trata de programas de computador e de serviços
eletrônicos, permanece escondida e de difícil compreensão
semiótica, ainda mais quando estão inseridos em um ciclo
acelerado de tarefas que não apenas afastam o interesse dos
usuários em compreender aquilo que operam, mas os impedem completamente de ter tempo para tal fim, minando
seu tempo livre. Ainda que saibamos como os aplicativos e
sistemas podem ser operados, e mesmo que alguns de nós
tenham “sucesso” no compartilhamento de conteúdo e venda de produtos, devemos assumir que não compreender seu
real funcionamento e, principalmente, quais e como nossos dados estão sendo compartilhados e manipulados e até
mesmo por quem.
Os códigos a partir dos quais a tecnologia opera são
construídos com base em uma gramática específica, isto é,
baseiam-se em uma linguagem de programação que consiste em um conjunto de palavras que operam tais quais os
verbos e regras que condicionam a sintaxe nas quais esses
verbos são encaixados. A partir dos dados oferecidos pelos
usuários esses códigos são capazes de fazer quase tudo, desde a exibição de vídeos e a reprodução de sons, até o processamento dos cálculos mais complexos e mesmo da exploração e estudo do comportamento humano. Ocorre que,
apesar de semelhantes às linguagens naturais com as quais
lidamos no nosso cotidiano entre nossos semelhantes hu-
122
manos, as linguagens de programação são em geral muito
engessadas e acabam por matematicizar tudo aquilo com o
que operam.
Loop: o tempo dos códigos
As linguagens de programação possuem, em suas sintaxes, recursos lógicos e aritméticos que estruturam todo
o funcionamento dos softwares. Entre eles, o loop que engendra os comandos de repetição e integra, além do código
fonte em si, uma das principais características de tudo que
é produzido digitalmente: os softwares são pensados para a
execução contínua ou repetitiva. Essa repetição, conforme
veremos, invade nossa vida à medida que nos sujeitamos
aos códigos e sistemas cuja temporalidade nos impede de
genuinamente compartilhar afetos e valores.
Só é possível revelar a singularidade, isto é, quem
alguém é, por meio da narrativa de sua história de vida,
contar o que foi vivido, feito e sofrido. Dessa maneira, as
experiências ganham sentido, pode-se suportar os afetos
e comunicá-los. Nas redes sociais, não contamos nossas
histórias, criamos perfis: postamos frases e imagens onde
reificamos um tipo de personalidade em loop, contínua e
repetitivamente, conforme nos exige o algoritmo. Essa tipologia só surge porque as redes sociais apenas permitem
customizar os perfis dentro de um esquema de apresentação de si mesmo que é padronizado. Os comentários e likes
dos seguidores não são compartilhamento de experiências,
afetos, nem a criação de espaços comuns entre os usuários,
mas aclamação ou reprovação ao que foi postado.
Os primeiros programas de computador, ainda no momento em que estes estavam restritos aos departamentos mi-
123
litares de poucos países e às corporações tecnológicas então
em emergência, e cujos programas eram escritos em cartões
perfurados ou fitas magnéticas com o objetivo de resolver
equações ou problemas individuais, eram descartados após
sua execução. Ao contrário, as atuais linguagens de programação permitem não apenas o desenvolvimento de programas que conseguem funcionar por anos a fio, como podem se
atualizar quando diante de novas variáveis e se associar a programas distintos, bem como incentivam a disponibilização
de partes dos códigos na forma de repositórios que serão utilizados em outros projetos e até por outros desenvolvedores.
Ainda que desconhecidos das maiorias dos usuários
de equipamentos eletrônicos e sistemas digitais, os códigos
fontes são a orientação de comandos lógicos e matemáticos escritos em uma linguagem específica. Assim como as
diversas mensagens que recebemos e emitimos ao longo
de nossas vidas, esses códigos respondem a certas normas
“gramaticais”. Ocorre que, se no plano comunicacional ordinário escapam-nos as valorações e diretrizes comportamentais que por vezes mesmo os sujeitos mais críticos, seja
por sua rotina acelerada ou pela deliberada e dissimulada
semiótica das mensagens, não conseguem perceber seu real
significado, na operação, ou melhor, na navegação cotidiana
pela internet as camuflagens semânticas e os artifícios psicoestimulantes são tantos que acabamos não tendo condições e tempo para conhecê-los e evitá-los. Mesmo quando
usamos signos e gramáticas bem conhecidas, usando nossa
língua materna e presencialmente, ainda persistem dificuldades e desentendimentos, isso se agrava ainda mais quando usamos os signos e gramáticas digitais.
A exceção engendrada por essas formas de produção
do tempo, assim como a ausência de ponteiros e de eventos
124
que nos orientem, baseia-se, ao fim, em uma generalizada
indisposição para a vagarosidade do pensar, para a escuta
atenta do outro e para o respeito durante o exercício político
compartilhado. Isto é, quando assumimos que não nos interessamos mais pelo comum, resta-nos simplesmente a possibilidade de viver e habitar entre formas espaço-temporais
privadas ou sociais, mas que são completamente condicionadas por movimentos ideológicos ou princípios mercadológicos nos quais não temos parte e os quais não podemos
realmente compreender.
Lazzarato descreve as ações da indústria tecnológica
e das grandes corporações que operam mundialmente da
seguinte forma:
As mídias e as indústrias culturais agem sobre os
“módulos” da subjetividade, enquanto outros enormes conglomerados industriais, explorando as
pesquisas da ciência e as inovações da tecnologia,
intervêm sobre os elementos químicos, genéticos e
neuronais do corpo. A desterritorialização do indivíduo fornece os elementos de base para reconstruir
não os “sujeitos”, mas os consumidores, os eleitores e
os comunicadores, e para fabricar identidades sexuais, comportamentos, condutas conformes e novas
corporeidades. (Lazzarato, 2017, p. 183)
Trata-se, portanto, de uma intervenção sobre todos os
sujeitos e sobre tudo o que é sujeitável. Aquilo que buscamos entender na forma de uma biopolítica e, mais recentemente, também denominado de psicopolítica, tem se tornado, na verdade, uma política totalizante. Mesmo que muitos
insistam em chamá-lo pelo termo neoliberalismo, nos distanciamos cada vez mais de qualquer referência à liberdade
dos liberais modernos e nos aproximamos de sistemas tota125
litários do século XX, apenas mascarados de democráticos.
Este mascaramento se dá pela possibilidade de customizar a
sujeição e o controle, por serem descentralizados, estabelecendo uma padronização (e não uma homogeneização) que
comporta grupos diferentes.
Essas políticas totalizantes encontram nos dispositivos digitais seus mais profícuos estimulantes, isso porque
lhes permitem operar desde o controle da produção de mercadorias e serviços, passando pelo mercado e pelas ideologias operadas pelas mídias, até a exacerbação do controle
psicossocial das massas. Sobre isso diz Lazzarato:
As máquinas cibernéticas organizam um funcionamento modular, distribuído e descentrado, e uma
microfísica “tecnológica” da produção, do consumo
e da governamentalidade. Elas não se limitam a registrar, estocar e transmitir informação. Elas constituem plataformas de autorregulação e de retroação
sobre o social, o econômico e a subjetividade, mas é
sempre a axiomática – a máquina social capitalista
– que as enquadra e limita. (Lazzarato, 2004, p. 191)
A axiomática citada por Lazzarato anteriormente,
essa “máquina social capitalista”, trata-se de um sistema de
condicionamento dos sentidos e, principalmente, do espaço e do tempo, que elabora não só a lógica que orienta o
trabalho, o consumo e a governamentalidade, mas que produz também os adoecimentos, físicos e psicológicos, e ainda
oferece inúmeras “escapes” que, ao fim, são apenas formas
de manutenção dessa mesma lógica. Tais adoecimentos
ocorrem porque ainda não temos nem uma teoria filosófica de uma educação para a tecnologia e nem uma prática
educacional interventiva sobre o assunto que possam fazer
126
com que lidemos com todas as questões apontadas sobre o
impacto da tecnologia no tempo e nos espaços, sejam eles
públicos ou privados, online ou offline. Essa axiomática,
vale lembrar, não opera sobre cada indivíduo, isoladamente,
mas socialmente. Ainda que nem todos nós façamos uso da
tecnologia, ou por escolha, ou por falta de acesso, alguns
poucos nos controlam por meio dos aparatos tecnológicos.
Como vimos, o funcionamento dessa máquina axiomática do capitalismo que impõe um ritmo de aceleração
sem referente, reconfigura o conhecido sentido de progresso. Não se trata de um sentido qualitativo de melhoria de
nossas atividades sociais e econômicas, mas um simples
avançar processual que, no máximo, pode ser comparado
a valores anteriores em termos de aumento ou diminuição,
isto é, termos quantitativos, mas que se isenta de juízos de
valor e análises quanto a seu sentido. (cf. Galimberti, 2006,
p. 592). A ausência de referência de juízos de valor para
orientar o processo de acúmulo do capital não significa que
este não realize seus próprios julgamentos e os considere
para justificar a violência de suas atividades. As consequências para nossa relação com o tempo é que:
O tempo perde o seu traço qualitativo: o futuro não é mais o tempo da esperança, no qual está o
remédio para os males do passado, mas se torna só
o tempo que vem depois do presente, naquela sucessão serial do tempo visualizado só sob o perfil da
quantidade. (Galimberti, 2006, p. 592)
Concordamos com Galimberti quanto à perda de um
traço qualitativo do tempo. Temos, porém, que lembrar que
essa perda ocorre de maneiras diversas, tal como a própria
vivência do tempo acumula variáveis que fazem mesmo a
127
mais geral forma de temporalidade de exceção ser sentida
de diferentes maneiras. Se, do ponto de vista individual, a
etapa em que a tecnologia passa a controlar nossa rotina e
formatar nossa condição exclui em nós aquilo que poderíamos chamar de singular, aquele elemento que nos identifica
como únicos em meio aos bilhões de outros seres de nossa espécie; do ponto de vista histórico, a massificação promovida pela técnica conduz movimentos, corpos e ideias à
passividade que nos exige esperar e acreditar nos códigos e
técnicas formatadas pelas grandes corporações e seus programadores. Como diz Galimberti (2006, p. 593), dessa forma a história na era da tecnologia digital passa a orientar-se
pelo ritmo do funcionamento dos mercados e dos algoritmos, abandonando qualquer conotação valorativa, o que
tem levado a uma violenta precarização dos trabalhadores e
trabalhadoras. Ao que acrescenta Franco Berardi:
Um fluxo contínuo de infotrabalho fractalizado e
passível de recombinação circula na rede global
como fator de valorização universal, mas esse fluxo
não é capaz de se transformar em sujeito, não consegue consolidar comportamentos organizacionais,
formas de defesa política ou sindical, devido às características técnicas do processo de trabalho celularizado. Conectividade e precariedade são as duas
faces da mesma moeda. O sistema conectivo captura
e conecta fragmentos celulares de tempo despersonalizado. O capital compra fractais de tempo humano e os recombina na rede. (Berardi, 2019, p. 136).
Os dispositivos digitais operam um papel fundamental nessa fragmentação do tempo dos trabalhadores. Isso
porque o tempo de trabalho passa a ser divisível em partes
pequenas que podem ser alocadas em qualquer posição ao
128
longo das vinte e quatro horas que o trabalhador dispõe,
assim, o capital opera também minimizando o valor do trabalho. Os computadores e algoritmos preparam não apenas as rotinas para o trabalho, para a diversão e até para o
sono, como passam também a calcular os menores valores
que podem ser pagos para o máximo de trabalho que conseguem estimular. Enquanto, por meio das contrarreformas
políticas e econômicas, vão sendo eliminados também os
direitos trabalhistas e sociais até então assegurados juridicamente. Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, retrata
metaforicamente a forma de viver das pessoas pobres e sujeitáveis dentro da máquina tecnocrática. Na obra o narrador da estória diz o seguinte sobre a personagem Macabéa:
“Pois que vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só
que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava
conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um
parafuso dispensável.” (Lispector, 2020, p. 26)
A razão que move a criação e organização dos dispositivos tecnológicos não busca trazer felicidade e bem estar às
massas, dado que não se encontra nenhuma real iniciativa
que trate de mitigar a imensa desigualdade social ou mesmo
diminuir o imperativo econômico por imensa quantidade
de horas de trabalho para cada pessoa. Antes, trata-se justamente de organizar as massas de trabalhadores rumo à mais
lucrativa forma de exploração de sua força de trabalho, seu
tempo de vida e suas energias libidinais. Transformando,
por exemplo, ócio em ócio produtivo, cuidados com saúde
em melhoramento de suas performances graças às tecnologias que disciplinam e sujeitam as pessoas aos mais diversos
projetos mercadológicos e políticos.
Como pode haver futuro quando tudo já está escrito? A técnica, divindade benéfica da qual o futu129
rismo esperava a beleza, a velocidade, a riqueza e,
sobretudo, o futuro, revelou-se uma divindade despótica que anula o futuro, transformando o tempo
em repetição, em ilimitada geração de fragmentos
idênticos. (Berardi, 2019, p. 99)
Esse progresso, esse loop de repetição, a favor da manutenção do tempo do capital e acumulação, parece ser uma
temporalidade da ordem, mas engendra exceção. Isso porque esse progresso que vem junto com a destruição, ligado a
tecnologia, e se há a possibilidade de surgir uma nova temporalidade, nos parece razoável que seja uma temporalidade de reparação – natureza, singularidades, culturas e afetos
– por meio da luta social. Dessa forma, precisamos buscar
uma união de trabalhadores cognitivos do vale do silício,
povos tradicionais, proletariado em geral, na construção de
uma alternativa temporal, econômica e afetiva pautada num
mundo compartilhado.
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Esta obra foi composta em tipografia Minion Pro
e impressa em offset sobre papel pólen bold.