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O racismo e o Direito Internacional dos Direitos Humanos

2020, O Jurista

O entendimento de racismo que é trazido para a centralidade dos debates nas Nações Unidas após 1948 é limitado a violações de direitos humanos produzidas em circunstâncias excepcionais, legitimadas por crenças infundadas de superioridade racial biológica. Assim, o racismo e o genocídio foram inicialmente reconhecidos no contexto do nazismo, mas não no contexto do colonialismo e da escravização racial (Hesse 2004). O questionamento a esse entendimento limitado de racismo evidencia-se na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em 2001, em Durban na África do Sul. Dos debates com ampla participação da sociedade civil, reconheceu-se a escravidão e o tráfico transatlântico como crimes contra a humanidade e o colonialismo como causa das manifestações contemporâneas de racismo contra afrodescendentes e indígenas (§ 12 e 13).

O racismo e o Direito Internacional dos Direitos Humanos1 Luana Xavier Pinto Coelho Integrante do NAC - Núcleo Antirracista de Coimbra, Doutoranda em Direitos Humanos no CES/UC No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o combate ao racismo tem sido objeto de grande debate da comunidade internacional no pós-II Guerra Mundial. Os horrores do holocausto impulsionaram processos para prevenir o genocídio com base racial. Como consequência, a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio é aprovada em 9 de dezembro, um dia antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Anos depois, em 21 de dezembro de 1965, a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD) é adotada, com medidas inovadoras, como a criação do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), para monitorar a implementação da convenção. Por outro lado, o entendimento de racismo que é trazido para a centralidade dos debates nas Nações Unidas após 1948 é limitado a violações de direitos humanos produzidas em circunstâncias excepcionais, legitimadas por crenças infundadas de superioridade racial biológica. Assim, o racismo e o genocídio foram inicialmente reconhecidos no contexto do nazismo, mas não no contexto do colonialismo e da escravização racial (Hesse 2004). O questionamento a esse entendimento limitado de racismo evidencia-se na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em 2001, em Durban na África do Sul. Dos debates com ampla participação da sociedade civil, reconheceu-se a escravidão e o tráfico transatlântico como crimes contra a humanidade e o colonialismo como causa das manifestações contemporâneas de racismo contra afrodescendentes e indígenas (§ 12 e 13). A Declaração de Durban informa a obrigação dos Estados em reparar as consequências danosas advindas desses processos, sendo que seu Plano de Ação enumera várias dessas ações. É por isso que a Declaração de Durban é vista como um avanço nos debates internacionais na luta contra o racismo. Como aponta David Goldberg (2009), o antirracismo requer memória histórica, para que sejam relembradas as condições nas quais as degradações raciais foram forjadas a fim de relacioná-las com processos contemporâneos que ainda perpetuam as mesmas condições. No contexto europeu, e particularmente o português, ao manterem-se inquestionados símbolos e versões da história que fazem apologia ao colonialismo, reproduzem-se os processos de negação da própria humanidade dos povos que denunciam essa violência histórica. A reparação é um direito das vítimas de graves violações de direitos humanos e encontra-se regulada no direito internacional 1 Ensaio publicado na Revista O Jurista. Coimbra. Dez/Jan 2020/2021, p.18-21. (A/RES/60/147 - 2005). Dentre os princípios que orientam o direito à reparação está a garantia de não repetição, o que pressupõe que as condições institucionais, jurídicas e políticas que levaram à violência sejam transformadas. Ainda, o princípio da satisfação dispõe que medidas concretas sejam tomadas para restaurar a verdade dos fatos e impedir que a violência se perpetue. Sobre esse ponto, a Recomendação Geral CERD/C/GC/35 indica expressamente que os Estados devem garantir que a história seja propriamente retratada, e que “devem ser realizados dias de recordação e outros eventos públicos, apropriados no contexto, para recordar tais tragédias humanas” (§35). É por isso que a fórmula da isonomia formal “todos são iguais perante a lei” contém convenientes silenciamentos e apagamentos que perpetua a “inocência do Direito” (Fitzpatrick 1990) por lhe retirar toda a historicidade. Silencia a relação intrínseca entre liberalismo e império colonial, perpetuando o seu universalismo, como se a raça2 não tivesse funcionado como marcador da linha do humano e do não-humano na conformação das relações de poder, inclusive juridicamente regulado (Meneses 2010). Uma reflexão crítica do Direito precisa compreender seu papel como instituição privilegiada (Bertúlio 2019) de reprodução das hierarquias (raciais) sociais, pois dita os padrões de normalidade e de controle sobre os corpos e práticas “fora do padrão”. Somente reconhecendo as continuidades nas diversas instituições modernas/ coloniais que produziram o racismo é que podemos pensar em propostas para superálas. É preciso romper com a manutenção de uma ideia “civilizacional” que ainda cria diferenciações entre o europeu e o não europeu, entre o branco e o não branco, travestidas em ideias que reificam hierarquias raciais como integração ou desenvolvimento. Há caminhos já construídos nos acordos internacionais que nos dão pistas, se quisermos avançar, e o direito à reparação pressupõe reconhecer que uma grave violência foi cometida e indica caminhos para uma justiça de transição. Afinal, como nos ensina Thula Pires, “não se disputa a possibilidade de ser incluído/a (sempre de maneira controlada) na noção de sujeito de direito que está posta, disputa-se a produção do direito, do Estado e da política desde a zona do não-ser e nos seus termos” (2019, 71). Referências Bertúlio, Dora Lúcia. 2019. Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica Ao Racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris. Utilizo raça como uma categoria política que perpassou dimensões “sociais, econômicas, ecológicas, históricas e corpóreas” (Hesse, 2007) para a desumanização de grupos sociais no processo de dominação colonial, cujas práticas e instituições permanecem estruturando o racismo contemporâneo. A dimensão biológica da raça foi enfatizada com o pensamento eugênico do século XIX e XX, mas sua compreensão (e efeitos) nunca se limitou a ela, apesar de orientar até hoje os debates sobre o uso do termo (Lentin, 2017). 2 Fitzpatrick, Peter. 1990. “Racism and the Innocence of Law.” In Anatomy of Racism, edited by David Theo Goldberg, 247–62. Minneapolis: University of Minnesota Press. Goldberg, David Theo. 2009. The Threat of Race: Reflections on Racial Neoliberalism. The Threat of Race: Reflections on Racial Neoliberalism. Malden, Oxford and Carlton: Blackwell Publishers. Hesse, Barnor. 2004. “Discourse on Institutional Racism: The Genealogy of a Concept.” In Institutional Racism in Higher Education, edited by D. Phillips, L. Turney, and Ian Law, 131–47. Stoke on Trent: Trenthan Books. Meneses, Maria Paula G. 2010. “O ‘indígena’ africano e o colono ‘europeu’: a construção da diferença por processos legais.” e-cadernos CES, no. 07 (March). Pires, Thula. 2019. “Direitos Humanos e Améfrica Ladina: Por Uma Crítica Amefricana Ao Colonialismo Jurídico.” LASA FORUM, Dossier el pensamiento de Lélia Gonzalez, un legado y un horizonte, 3 (50): 69–74.