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CRONOTOPOLOGIA DAS IMAGENS INTELIGENTES

2019, Revista Famecos

https://doi.org/10.15448/1980-3729.2019.1.30966

Resumo: o presente artigo retoma algumas noções fundamentais da filosofia de Gilbert Simondon para indagar acerca dos regimes cronotopológicos agenciados pelas imagens produzidas por câmeras inteligentes. Câmeras inteligentes são sistemas de visão nos quais um algoritmo opera em paralelo à produção de imagem, analisando-a. Recentemente a ideia de "imagem embutida" vem sendo utilizada para descrever a arquitetura de tais dispositivos. Nosso objetivo é cartografar as transformações nas relações espaciais e temporais instauradas por tais imagens, assim como especular acerca de possíveis consequências políticas associadas a esta reordenação cronotopológica. A contiguidade dessas imagens ao mundo e a sua agência inscrita no tempo presente, à diferença do modelo clássico da perspectiva renascentista, permite-nos reivindicar uma inflexão performativa neste regime de visualidade. Palavras-chave: Câmera inteligente. Gilbert Simondon. Teoria da imagem. Abstract: this article takes up some fundamental notions of Gilbert Simondon's philosophy to inquire about the chronotopological regimes that are related to the images produced by smart cameras. Smart cameras are systems of vision in which an algorithm operates in parallel to the image production, analyzing it. Recently the idea of "embedded image" has been used to describe the architecture of such devices. Our objective is to map the transformations in the spatial and temporal relations established by such images, as well as speculate about the possible political consequences associated with this chronotopological reordering. The contiguity of these images to the world and their agency circumscribed to the present time, unlike the classical model of the Renaissance perspective, allows us to claim a performative inflection in this regime of visuality.

Revista E-ISSN: 1980-3729 ISSN-L: 1415-0549 mídia, cultura e tecnologia http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2019.1.30966 CRONOTOPOLOGIA DAS IMAGENS INTELIGENTES CHRONOTOPOLOGY OF SMART IMAGES CRONOTOPOLOGÍA DE LAS IMÁGENES INTELIGENTES Icaro Ferraz Vidal Junior 1 Resumo: o presente artigo retoma algumas noções fundamentais da filosofia de Gilbert Simondon para indagar acerca dos regimes cronotopológicos agenciados pelas imagens produzidas por câmeras inteligentes. Câmeras inteligentes são sistemas de visão nos quais um algoritmo opera em paralelo à produção de imagem, analisando-a. Recentemente a ideia de “imagem embutida” vem sendo utilizada para descrever a arquitetura de tais dispositivos. Nosso objetivo é cartografar as transformações nas relações espaciais e temporais instauradas por tais imagens, assim como especular acerca de possíveis consequências políticas associadas a esta reordenação cronotopológica. A contiguidade dessas imagens ao mundo e a sua agência inscrita no tempo presente, à diferença do modelo clássico da perspectiva renascentista, permite-nos reivindicar uma inflexão performativa neste regime de visualidade. Palavras-chave: Câmera inteligente. Gilbert Simondon. Teoria da imagem. Abstract: this article takes up some fundamental notions of Gilbert Simondon’s philosophy to inquire about the chronotopological regimes that are related to the images produced by smart cameras. Smart cameras are systems of vision in which an algorithm operates in parallel to the image production, analyzing it. Recently the idea of “embedded image” has been used to describe the architecture of such devices. Our objective is to map the transformations in the spatial and temporal relations established by such images, as well as speculate about the possible political consequences associated with 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Doutor em História, História da Arte e Arqueologia pelas Université de Perpignan Via Domitia e Università degli studi di Bergamo e em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Bolsista de Pós-Doutorado PNPD-Capes no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PEPGCOS-PUC-SP. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4907-1267 E-mail: [email protected] Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative RECEBIDO EM: 03/06/2018 Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e APROVADO EM: 23/04/2019 reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR 2/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R this chronotopological reordering. The contiguity of these images to the world and their agency circumscribed to the present time, unlike the classical model of the Renaissance perspective, allows us to claim a performative inflection in this regime of visuality. Keywords: Smart Camera. Gilbert Simondon. Image Theory. Resumen: el presente artículo retoma algunas nociones fundamentales de la filosofía de Gilbert Simondon para indagar acerca de los regímenes cronológicos y topológicos agenciados por las imágenes producidas por cámaras inteligentes. las cámaras inteligentes son sistemas de visión en los que un algoritmo opera en paralelo a la producción de la imagen, analizándola. Recientemente la idea de “imagen incrustada” viene siendo utilizada para describir la arquitectura de tales dispositivos. Nuestro objetivo es cartografiar las transformaciones en las relaciones espaciales y temporales instauradas por tales imágenes, así como especular acerca de posibles consecuencias políticas asociadas a esta reordenación cronotopológica. la contigüidad de estas imágenes al mundo y su agencia circunscrita al tiempo presente, a la diferencia del modelo clásico de la perspectiva renacentista, nos permite reivindicar una inflexión performativa en este régimen de visualidad. Palabras clave: Cámara inteligente. Gilbert Simondon. Teoría de la imagen. A imagem embutida Um termo tem aparecido com frequência na descrição das câmeras inteligentes2. Trata-se de embedded, cuja melhor tradução ao português é embutido(a). Tal noção é o ponto de partida deste artigo, que se propõe a investigar as transformações cronotopológicas relacionadas às imagens produzidas por câmeras inteligentes. Essa ideia aponta também para uma reconfiguração do dispositivo de visibilidade, que passa a prescindir de múltiplas unidades interconectadas, passando a existir como uma unidade que opera, ao mesmo tempo, como sensor, processador e comunicador. Uma equipe de pesquisadores austríacos introduz o contexto no qual a noção de embedded aparece nos seguintes termos: Avanços recentes nas tecnologias de computação, comunicação e sensores estão impulsionando o desenvolvimento de muitas novas aplicações. Esta tendência é especialmente evidente em computação pervasiva, redes de sensores e sistemas embutidos. Câmeras inteligentes são sistemas de visão nos quais um algoritmo opera em paralelo à produção da imagem, analisando-a. 2 R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 Câmeras inteligentes [...] são equipadas com uma computação de bordo de alta performance e infraestrutura de comunicação, combinando vídeo, sensores, processamento, e comunicações em um único dispositivo embutido (BRAmBERGER et al., 2006, p. 68, tradução nossa). Figura 1 – Sistema padrão de visão inteligente (cortesia Atmel Grenoble) Fonte: SOUSA, 2003, p. 107. Figura 2 – Sistema de câmera inteligente (cortesia Vision Components) Fonte: SOUSA, 2003, p. 107. Dito de outro modo, a “inteligência” das câmeras consiste na convergência, em um único gadget, de funções que estavam previamente distribuídas em uma pluralidade de aparelhos. A Figura 1 apresenta um circuito padrão de visão inteligente, nela vemos os vários componentes que o integram, da fonte de luz que viabiliza a captura da imagem pela câmera ao display de visualização; ao passo que a Figura 2 apresenta uma câmera inteligente, um único dispositivo, de tamanho modesto, no qual operam todas as funções distribuídas ao longo do sistema apresentado na Figura 1. No caso das câmeras inteligentes podemos derivar desse processo de convergência uma reestruturação das arquiteturas do olhar que tais dispositivos 3/21 4/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R agenciam. A operatividade de tais imagens vincula-se largamente a este caráter “embutido”, também estreitamente associado a uma tendência delas à invisibilidade. Além disso, precisamos sublinhar que a articulação entre o caráter pervasivo e embutido de tais dispositivos é bastante relevante para a compreensão da topologia destes novos circuitos de imagens. Presentes por todos os lados e, muitas vezes, discretas, as câmeras inteligentes atuam em uma grande quantidade de redes sociotécnicas. Se a distância que separa a imagem do mundo é suprimida quando tais imagens se tornam “embutidas” no dispositivo, podemos dizer que a imagem se interiorizou em uma caixa preta. Podemos reivindicar também que, a agência de tal imagem se dará de um modo mais imediato, uma vez que ela prescindirá de ser visualizada, interpretada e levada em consideração em um processo de tomada de decisão, cuja duração seria marcada pela temporalidade inerente à cognição humana. Tais imagens, definidas por Harun Farocki (2004) como operativas, já não servem a uma representação do mundo. Elas não são produzidas para serem interpretadas, mas para operarem no monitoramento e na execução de determinados procedimentos. Assim, inspirados por alguns contextos de utilização das câmeras inteligentes, pareceu-nos oportuno investigar o estatuto dessas imagens com respeito às relações cronotopológicas que elas estabelecem com o que é diferente delas, seja o contexto que elas monitoram, seja, em um plano mais especulativo, com todas as demais imagens do mundo. Por relações cronotopológicas estamos nos referindo às inscrições “espaço-temporais” de tais imagens. Como desenvolveremos adiante, as relações entre cronologia e topologia no pensamento de Gilbert Simondon sobre a individuação vem responder à impossibilidade de rebatimento de alguns processos ontogenéticos sobre o tempo linear da física e sobre o espaço euclidiano. A concepção da imagem como representação e, neste sentido, como exterior e segunda em relação ao objeto representado parece ser insuficiente para dar conta das imagens inteligentes. Tais imagens são operativas, performativas e pró-ativas. Foi por conta disso que a cronotopologia proposta por Gilbert Simondon (2013) pareceu consistir em um caminho interessante para reivindicarmos, não mais uma exterioridade, mas a contiguidade das imagens inteligentes ao mundo, agora marcado pela relatividade do exterior e do interior como domínios de onde partem as ações e sobre os quais elas se exercem. A fim de fornecer as bases a partir das quais reivindicaremos uma nova estruturação cronotopológica dos regimes de visibilidade a partir da emergência das câmeras inteligentes, faremos uma breve apresentação de algumas noções caras a filosofia de Gilbert Simondon, cruciais para avançarmos em nosso argumen- R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 to. Ao longo desta apresentação, para não perdermos o fio condutor de nossa análise, procuraremos explicitar os vínculos que nos interessa estabelecer entre esta filosofia e as dinâmicas implicadas nas operações das câmeras inteligentes. O problema da individuação Gilbert Simondon (2013) inicia sua tese acerca dos processos de individuação apresentando as duas vias que permitem uma abordagem da realidade do ser individual: a via substancialista e a via hilemórfica. Apesar do monismo substancialista se opor ao dualismo do hilemorfismo, Simondon observa que ambas perspectivas coincidem, na medida em que supõem um princípio de individuação anterior à individuação, que a explicaria e produziria. Tal suposição faz com que ambas perspectivas corram o risco de não inserir o indivíduo no sistema de realidade no qual a individuação mesma se produz. O filósofo francês propõe a necessidade de uma reversão na pesquisa do princípio de individuação, que seria possível ao considerarmos como primordial a operação de individuação a partir da qual o indivíduo vem a existir e da qual ele reflete o desenvolvimento, o regime e enfim as modalidades, nas suas características. O indivíduo seria então apreendido como uma realidade relativa, uma certa fase do ser que supõe antes dela uma realidade pré-individual, e que, mesmo depois da individuação, não existe sozinho, porque a individuação não esgota de um só golpe os potenciais da realidade pré-individual, e por outro lado, isso que a individuação faz aparecer não é somente o indivíduo mas o par indivíduo-meio. O indivíduo é então relativo em dois sentidos: porque ele não é todo o ser, e porque ele resulta de um estado do ser no qual ele não existia nem como indivíduo nem como princípio de individuação (SImONDON, 2013, p. 24-25). A originalidade da proposição de Simondon deve-se, em grande medida, a sua concepção da individuação como uma resolução parcial e relativa. Os princípios de unidade e identidade aplicam-se, nesta perspectiva, a apenas uma fase do ser: aquela posterior à individuação, de modo que não auxiliam na descoberta do princípio mesmo de individuação, e não se aplicam à ontogênese plenamente entendida, ou seja, “ao devir do ser enquanto ser que se desdobra e se defasa se individuando” (SImONDON, 2013, p. 26). É importante comentar o uso da filosofia da individuação de Gilbert Simondon para pensarmos as câmeras inteligentes quando, de fato, a parcela de sua obra 5/21 6/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R mais utilizada nas pesquisas em comunicação consista em seu trabalho sobre os objetos técnicos, cuja vinculação com a nossa problemática seria mais evidente. Alegaremos que, grande parte do pensamento acerca da produção e circulação de imagens, inteligentes ou não, tem em seu horizonte uma dinâmica que se articula em torno de processos de identificação e reconhecimento3. Tal processo exige que a máquina de visão e o observador assumam como a priori que, do ponto de vista perceptivo, aquilo que se reconhece como um corpo ou um objeto consiste em uma unidade identitária4, passível de ser inscrita no campo da imagem. Neste sentido, iremos reivindicar que, quando vinculados a determinados contextos, um clique fotográfico ou um registro em vídeo podem desempenhar um papel performativo na “solução supersaturada” na qual o indivíduo passa a existir enquanto tal. Uma fotografia na carteira de identidade ou no passaporte, por exemplo, funciona como um catalisador, produzindo uma precipitação – do indivíduo – em um determinado sistema de individuação5. Metaestabilidade, câmera-agulha, câmera suicida O que faltou para uma compreensão e uma descrição adequadas da individuação, segundo Simondon, foi o conhecimento de uma forma de equilíbrio que não fosse o equilíbrio estável, pois embora os antigos intuíssem o equilíbrio metaestável, o filósofo francês atrela grande parte do incremento dessa noção ao desenvolvimento das ciências. Toda a ontologia pensou o ser em estado de equilíbrio estável, que exclui o devir, porque ele [o equilíbrio estável] corresponde ao nível mais baixo de energia potencial; ele é o equilíbrio que é alcançado dentro de um sistema quando todas as transformações possíveis já foram realizadas e que mais nenhuma força existe; todos os potenciais se atualizaram, e o sistema tendo atingido seu mais baixo nível energético não pode se transformar novamente (SImONDON, 2013, p. 26). Vários âmbitos nos permitem fazer esta afirmação: do uso policial da fotografia como meio de identificação de suspeitos (Gunning,1995) à hegemonia da iconologia panofskiana no campo da História da Arte (DIDIHUBERmAN, 2002). 3 Algumas “falhas” técnicas em fotografias como a sobreposição de imagens, por exemplo, inseriram, ao longo da história deste meio, alguns registros em um campo de interpretação marcado pela fantasmagoria e pelo misticismo. A dificuldade de definição dos contornos dos corpos mobilizou todo um vocabulário “do além” para a exegese destas imagens. 4 Podemos pensar esse processo analogamente à dimensão perlocutória da linguagem, tal como formulada por Austin (1962), em sua teoria dos atos de fala. 5 R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 Seria possível pensar as redes das quais as câmeras inteligentes participam como metaestáveis? Em caso afirmativo, podemos especular que as imagens tomariam parte em “processos” de individuação e, em vez de permitirem a simples identificação e reconhecimento de corpos e objetos, elas participariam na própria ontogênese. Não se trata de pensar em uma imagem que dá a ver um processo de transformação que lhe seria exterior e que apreenderíamos cognitivamente. Pensar um sistema metaestável das imagens implicará pensar em casos como o das videolaparoscopias e videocirurgias em geral, nos quais as imagens efetivamente interferem nos processos de individuação de humanos, de órgãos, de tecidos, de células etc. Um dispositivo chamado “agulha inteligente”, atualmente em desenvolvimento na Universidade de Adelaide, Austrália, é emblemático deste novo lugar, metaestável, ocupado pelas imagens inteligentes. O referido dispositivo foi criado a fim de oferecer mais segurança às cirurgias de cérebro e consiste em uma sonda de imagem envolta em uma agulha de biópsia cerebral. “Chamamos isto de uma agulha inteligente. Ela contém uma minúscula câmera de fibra ótica, do tamanho de um fio de cabelo humano, emitindo luz infravermelha para ver os vasos antes que a agulha possa danificá-los” (NEW ‘SmART NEEDlE’..., 2017). Nesse caso, o complexo cérebro-sonda poderia ser pensado nos termos de um sistema em equilíbrio metaestável. Apesar do compromisso com uma intervenção precisa, a plasticidade do cérebro deixa em aberto os resultados de tal interação. Além disso, há uma lógica de mútua configuração entre a imagem e o cérebro na medida em que se encurta a distância entre o dispositivo de produção de imagem e o local onde tal imagem exerce seus efeitos. Em um PET Scan, por exemplo, a imagem também é dinâmica, mas ela só permite assistir de fora a atividade cerebral. A “agulha inteligente” vê o cérebro de dentro e em conexão com a mão do cirurgião. Neste sentido, ela visualiza um cérebro que a envolve. Já aqui, podemos perceber uma complexificação na definição dos limites entre a interioridade e a exterioridade da imagem. A outra ponta desta reconfiguração topológica das imagens pode ser identificada nos mísseis teleguiados que contam com uma câmera na extremidade. Em Eye-machine (2000), Harun Farocki apresenta imagens destas câmeras, por ele chamadas de “câmeras suicidas”, sublinhando as diferenças entre tais imagens e algumas propagandas de guerra. Na esteira da tese de Paul Virilio (1993) acerca das imagens da Guerra do Golfo, Farocki sublinha que essas imagens, capturadas por mísseis, são as únicas a que tivemos acesso através dos meios de comunicação. Diferente das imagens de propaganda, aterrorizantes ou feitas para o entretenimento, as imagens dos mísseis teleguiados são orientadas aos técnicos da guerra. 7/21 8/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R Diante de tais imagens, nenhum dos recursos mobilizados pelas propagandas para produzir empatia ou ódio será eficaz já que a figura humana se encontra ausente. Figura 3 – Frames de Eye-Machine (2000, versão monocanal), de Harun Farocki Fonte: Capturas de tela de frames do filme Eye-Machine (Farocki, 2000). Como a sequência de frames na figura 3permite observar, as ditas “câmeras suicidas” possuem os alvos que devem atingir inscritos, com precisão, em sua própria programação algorítmica. Em função deste caráter vidente, o míssil passa a poder orientar-se autonomamente. Os três quadros acima compõem uma sequência na qual vemos a destruição total de uma ponte. O terceiro frame mostra e esconde o resultado da operação: uma vez que o míssil foi detonado, não vemos o resultado figurativo da destruição, mas apenas o índice técnico da interrupção da transmissão. Tais imagens guardam muito pouco das imagens representacionais clássicas no que diz respeito a sua cronotopologia. Nenhuma distância em relação a um objeto representado pode ser reivindicada aqui pois, literalmente, a imagem possui uma agência radical e letal, que não pode ser compreendida em termos imaginários ou simbólicos. Ela, efetivamente, interfere em um “processo” de individuação (ou no aniquilamento de todo potencial pré-individual do sistema) e as duas extremidades desta relação – a ponte alvejada e o “míssil-vidente-suicida” – desaparecem para que daí emerjam as ruínas de uma cidade devastada pela guerra. Uma vez que a individuação não esgota toda a realidade pré-individual, “o indivíduo constituído transporta consigo uma certa carga associada de realidade pré-individual, animado por todos os potenciais que a caracterizam” (SImONDON, 2013, p. 28). R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 Desse modo, o estatuto da relação na filosofia simondoniana será profundamente abalado, pois seus termos já não são indivíduos plenamente constituídos. A relação é, então, formulada como ressonância interna ao sistema de individuação. Tendo como horizonte esta formulação, e sem perder de vista o exemplo mais radical de reconfiguração cronotopológica levada a cabo pelas imagens inteligentes através dos mísseis suicidas, ficamos tentados a especular acerca do estatuto do equilíbrio em uma cidade bombardeada. Após o processo de individuação que culmina em um bombardeio, esgotamos todos os potenciais de transformação (equilíbrio estável) ou uma carga de energia pré-individual seguirá presente viabilizando novas transformações no sistema (equilíbrio metaestável)? Para responder a esta questão será preciso instalar-se em uma determinada ordem de grandeza. mesmo em um caso desta magnitude, parece-nos que o sistema ainda preserva certo potencial para se transformar posteriormente. Isto não significa, evidentemente, uma relativização do potencial destrutivo de tais mísseis. Nosso objetivo aqui é simplesmente indicar quão rara é a existência de um ser plenamente individuado, no qual todos os potenciais de transformação estariam esgotados. A questão do esgotamento ou não dos potenciais de transformação de um sistema parece vincular-se, sobretudo, à ordem de grandeza a partir da qual se formula o problema. Do ponto de vista psíquico, a noção de resiliência, tal como a encontramos em Boris Cyrulnik (2003), como consistindo na capacidade de encadear narrativamente e dar sentido a grandes adversidades sofridas por um determinado sujeito que pode, não sem traumas, seguir apostando na vida, dá conta da existência dos “sobreviventes de guerra” como seres que prosseguem individuando-se, ou seja, como seres nos quais a carga de energia pré-individual não foi aniquilada de todo. Do ponto de vista coletivo, a história contemporânea apresenta-se como uma complexa rede de articulações, que se polariza em novos atores políticos – refugiados, por um lado e, por outro, grupos terroristas que parecem disputar com os agentes da guerra quem dá o último passo no esgotamento dos devires do sistema-mundo de individuação. Com base no conceito de relação de Simondon, segundo o qual uma relação não se dá entre dois seres plenamente constituídos, a individuação psíquica e a coletiva serão pensadas como processos recíprocos que permitem definir a categoria do transindividual. O coletivo intervém como resolução da problemática individual, uma vez que o psiquismo não pode ser apreendido no nível do ser individual, já que este não é, quase nunca, plenamente realizado. Neste sentido, o salto entre as ordens de grandeza psíquica e coletiva adquire uma complexidade que, a partir de nosso exemplo, poderíamos, assumindo os riscos 9/21 10/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R de um excessivo esquematismo, colocar nos seguintes termos: o terrorista e o refugiado serão duas fases desta solução supersaturada que é um país arruinado pela guerra; os diferentes potenciais pré-individuais irão orientar a precipitação dos sujeitos em direção a uma fase ou à outra. Informação, transdução, indeterminação A mudança de perspectiva que a filosofia de Simondon opera, está em larga medida sustentada por uma reformulação da noção de informação, que nos interessa para explorarmos a promessa de monitoramento em “tempo real” presente nas câmeras inteligentes. A informação é postulada pelo filósofo nos seguintes termos: uma informação não é jamais relativa a uma realidade única e homogênea, mas a duas ordens em estado de desaparição: a informação [...] não é jamais depositada em uma forma podendo ser já dada; ela é a tensão entre dois reais disparatados, ela é a significação que surgirá quando uma operação de individuação descobrir a dimensão segundo a qual dois reais disparatados podem devir sistema; a informação é então uma isca de individuação, uma exigência de individuação, ela não é jamais coisa dada; não há unidade e identidade da informação, porque a informação não é um termo; ela supõe tensão de um sistema do ser; ela não pode ser senão inerente a uma problemática; a informação é isso pelo que a incompatibilidade não resolvida de um sistema devém dimensão organizadora na resolução; [...] a informação é a fórmula da individuação, fórmula que não pode pré-existir a esta individuação; podemos dizer que a informação está sempre no presente, atual, porque ela é o sentido segundo o qual um sistema se individua (SImONDON, 2013, p. 31). Simondon abala as teorias quantitativas da informação, inserindo a sua noção de informação em um regime dinâmico cujo funcionamento entra em conflito com as “economias da informação” que, a fim de formularem sistemas eficazes de armazenamento e transmissão (regime marcado por fronteiras claramente estabelecidas entre interior – o arquivo – e exterior – o meio de transmissão), necessitam assumir a informação como unidade prévia. No caso da extração algorítmica de dados das imagens produzidas por câmeras inteligentes parece que nos encontramos diante de uma tentativa de conciliação entre as referidas “economias da informação” e a dinâmica informacional postulada pelo filósofo francês. Uma vez que a noção de “tempo real” no caso R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 dos dispositivos inteligentes de visibilidade não corresponde mais a uma simultaneidade entre a produção e a visualização da imagem, mas se inscreve entre o presente e o futuro próximo (BRUNO, 2012), podemos dizer que a informação “inteligentemente” tratada por tais dispositivos poderá ser lida, ao menos parcialmente, à luz da proposição simondoniana. As câmeras inteligentes herdam das “economias da informação” seu compromisso com uma certa eficácia e a capacidade de mobilizar e analisar grandes massas de dados armazenados no contexto do big data. mas o caráter embutido de tais dispositivos, a supressão da distância entre a câmera e o agente de intervenção, conferem à informação por eles processada esta função de direcionar “o sentido segundo o qual um sistema se individua”. A informação no sistema metaestável simondoniano funciona como “fórmula da individuação”, mas tal fórmula tampouco opera segundo uma lógica de programação, na qual um comando é inserido e pauta os processos para os quais está designado no interior do sistema, determinando-os. A informação é a resolução “temporária” dos processos de individuação, ela só existe no presente, não podendo ser anterior aos processos que modula e pelos quais é, simultaneamente, modulada. Este segundo aspecto do conceito de informação talvez indique o limite à leitura simondoniana das câmeras inteligentes pois, embora tais aparelhos tenham adquirido uma elevada capacidade de lidar com um certo nível de “indeterminação”, o que confere a eles alguma plasticidade, o caráter “temporário” da ação algorítmica ainda depende de uma reprogramação do dispositivo. E tal reprogramação ainda é dependente da intervenção de um agente humano exterior à máquina. Diante da necessidade de redirecionamento dos processos de individuação, a máquina não opera uma transição automática e autônoma na direção de um outro algoritmo ou, se o faz, limita-se a uma quantidade finita de sequências previamente estabelecidas. Assim, se podemos, em um plano fenomenológico, reconhecer um estatuto para a informação processada pelas câmeras inteligentes que se inscreve no presente, não podemos desta “presença” derivar a lógica “temporária” uma vez que, a menos que haja uma intervenção exterior, no sentido de uma reprogramação, esta presença tenderá à repetição automática. Desta lógica “temporária” da informação, Simondon deriva seu conceito de transdução. O ser para Simondon não possui uma identidade unitária, tal como foi preciso pensar a partir dos sistemas de equilíbrio estável. O ser possui uma unidade transdutiva, “o que quer dizer que ele pode se defasar em relação a si mesmo” (SImONDON, 2013, p. 31). Através da noção de unidade transdutiva, o filósofo insere o devir como elemento constituinte do ser. 11/21 12/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R Precisamos ser rigorosos na análise das câmeras inteligentes a fim de evitar uma confusão entre o monitoramento e análise de processos que se desenrolam no tempo e a noção de devir. Isto é importante pois podemos ficar com a impressão de que a imagem algorítmica apresenta um ganho ontológico, na medida em que desvincula o olhar de um esquema excessivamente estático, emblematizado pela perspectiva renascentista. Ora, o monitoramento algorítmico de cenas dinâmicas é baseado em uma sequência finita de instruções previamente estabelecidas, ao passo que o devir é, por definição, indefinido, não consistindo em um processo de transformação de A em B ou de deslocamento entre dois pontos. A fim de operar estas transformações nos modos de apreensão do ser individuado, Simondon reconhece a necessidade de um método e de uma noção novos. O método proposto por Simondon está relacionado a como as relações devem ser apreendidas, já que as relações entre termos extremos coloca o problema da suposição de duas existências independentes entre si. Esta suposta independência deve-se, sobretudo, à concepção dos termos da relação como anteriores aos processos de individuação. Simondon vislumbra assim a possibilidade “de conceber a relação como não identidade do ser com relação a si próprio, inclusão no ser de uma realidade que não é somente idêntica a ele, de modo que o ser enquanto ser, anteriormente a toda individuação, pode ser apreendido como mais que unidade e mais que identidade” (SImONDON, 2013, p. 32). A noção incrementada pela filosofia de Simondon que permite pensar em relações para além da dualidade de termos estanques é justamente a noção de transdução: Entendemos por transdução uma operação física, biológica, mental, social, pela qual uma atividade se propaga passo a passo no interior de um domínio, fundando esta propagação sobre uma estruturação do domínio operado a cada ponto: cada região de estrutura constituída serve a região seguinte de princípio de constituição, de modo que uma mudança se estende progressivamente ao mesmo tempo que esta operação estruturante [...] A transdução corresponde a esta existência de relações emergentes quando o ser pré-individual se individua; ela exprime a individuação e permite pensá-la; é portanto uma noção ao mesmo tempo metafísica e lógica; ela se aplica à ontogênese e é a própria ontogênese (SIMONDON, 2013, p. 32-33). A concepção de transdução parece ter permitido a Simondon instalar-se em uma dobra antevista em outros sistemas filosóficos. Bergson (1999), por exemplo, nos fez perceber esta brecha entre o mundo percebido enquanto corpos R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 de contornos bem delimitados e a totalidade da matéria, entendida enquanto fluxo inter-relacionado de imagens. Tal desenvolvimento teórico introduziu necessariamente uma dimensão de indeterminação nos modos de apreensão e interpretação do mundo, uma vez que, no interior de um sistema em equilíbrio metaestável, variadas configurações podem irromper no devir. As câmeras inteligentes parecem emergir justamente em um contexto reativo a esta margem de indeterminação. Ao mesmo tempo em que são proclamadas inteligentes por seus desenvolvedores, tais câmeras são frequentemente inseridas em contextos nos quais desempenham a função de controle do espaço e dos corpos. As câmeras inteligentes parecem retraçar e reforçar as arestas já estabilizadas do mundo. Paradoxalmente, tais dispositivos são promovidos como sendo capazes de captar, monitorar e reagir a uma vasta gama de eventos; mas atuam afunilando a abertura prevista por esta margem de indeterminação, de modo a manter os contextos monitorados longe de quaisquer acidentes e acasos. Gilbert Simondon definiu transdução como uma “operação física, biológica, mental e social”. Causa um certo estranhamento – sobretudo se pensarmos nos transdutores e na produção do filósofo no campo da filosofia da técnica – que tal noção não seja também concebida nos termos de uma “operação técnica”. Em Do modo de existência dos objetos técnicos, o filósofo afirma que o grau de aperfeiçoamento técnico de determinado objeto não coincide com seu grau de automatismo. O grau de tecnicidade estaria vinculado, justamente, a uma capacidade do objeto de operar preservando uma margem de indeterminação. A questão que nos resta consiste em saber se uma ampliação nos parâmetros que organizam o funcionamento algorítmico das câmeras inteligentes, consistiria em um incremento de tecnicidade ou em um simples incremento de automatismo. E, desdobrando tal questão, se as imagens inteligentes podem ser concebidas como transdutivas ou se, de fato, preservam o regime da unidade identitária. Cronotopologia Amparado pelos conceitos que apresentamos, Simondon chega às formulações das correlações entre topologia e cronologia, alegando que esta indeterminação cara à transdução apenas existiria em estado puro caso não houvesse correlação entre topologia e cronologia, o que não se verifica. Uma absoluta indeterminação ou um total determinismo só são abstratamente pensáveis. O indivíduo físico pode ser entendido como um agrupamento cronotopológico cujo devir é constituído de sucessivas crises de individuação. 13/21 14/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R O filósofo recusa uma topologia que suponha um interior e um exterior absolutos e propõe, no domínio da individuação do organismo vivo, diversas camadas de interioridade e de exterioridade: [...] o espaço das cavidades digestivas é uma exterioridade em relação ao sangue que irriga as paredes intestinais; mas o sangue é por sua vez um meio de exterioridade em relação às glândulas de secreção interna que derramam os produtos de sua atividade no sangue SImONDON, 2013, p. 225). Insiramos a “agulha inteligente” no interior deste organismo e o estatuto cronotopológico da imagem por ela produzida tende a ser vertiginosamente relativo e relacional. Se a membrana polarizada atua, no presente, filtrando em meio a múltiplas possibilidades que se apresentam no meio exterior aquilo que será interiorizado pela célula e que, após incorporado, consistirá em uma incorporação passada; as imagens da “agulha inteligente” parecem duplicar tal membrana, inscrevendo um presente suplementar no organismo, na medida em que se desloca de um passado no qual tudo “correu bem” em direção a um futuro incerto. O dentro e o fora são forjados através de uma “mediação transdutiva de interioridades e exterioridades” (SImONDON, 2013, p. 225). Esta topologia inscreve no vivo isto que podemos chamar de uma heterocronia (lEVIN, 2006), que não coincide com a experiência linear do tempo subjacente às abordagens substancialistas e hilemórficas. Enquanto o espaço euclidiano e o tempo físico não podem coincidir, os esquemas cronológicos e topológicos aplicam-se uns sobre os outros; eles não são distintos, e formam a dimensionalidade primeira do vivo: toda característica topológica tem um correlativo cronológico, e inversamente [...] No nível da membrana polarizada afrontam-se o passado interior e o futuro exterior: este afrontamento na operação de assimilação seletiva é o presente do vivo, que é feito desta polaridade da passagem e da recusa, entre substâncias passadas e substâncias que advêm, apresentadas umas às outras através da operação de individuação; o presente é esta metaestabilidade da relação entre interior e exterior, passado e futuro; é em relação a esta atividade de presença mútua, allagmatique, que o exterior é exterior e o interior interior. Topologia e cronologia coincidem na individuação do vivo [...] não são formas a priori da sensibilidade, mas a dimensionalidade mesma do vivo se individuando (SIMONDON, 2013, p. 227). R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 A máquina, a figura e o fundo Para formularmos nosso problema cronotopológico ancorados na filosofia de Gilbert Simondon, evocaremos Do modo de existência dos objetos técnicos, notadamente a passagem na qual Simondon traça uma genealogia da tecnicidade que parece inserir os objetos técnicos no contexto das densas relações estabelecidas, em O indivíduo e sua gênese físico-biológica, entre cronologia e topologia. É preciso reter do argumento de Simondon o postulado de que a tecnicidade resulta de uma defasagem de um “modo único, central e original de ser no mundo, o modo mágico” (SImONDON, 1989, p. 160). Desse processo de defasagem, emergem o modo técnico e o modo religioso. mas a evocação desse processo genealógico não tem outro propósito aqui senão o de contextualizar a inscrição, pelo filósofo, dos objetos técnicos na separação, que este recupera da Gestalttheorie, entre figura e fundo, fazendo uma retificação à Gestalt a partir da distinção entre o equilíbrio estável e o equilíbrio metaestável. Se eliminamos a ideia de uma relação dialética entre etapas sucessivas da relação do homem e do mundo, qual pode ser o motor dos desdobramentos sucessivos no curso dos quais aparece a tecnicidade? É possível convocar a teoria da Forma, e generalizar a relação que ela estabelece entre figura e fundo. A Gestalttheorie retira seu princípio de base do esquema hilemórfico da filosofia antiga, apoiada sobre as considerações modernas da morfogênese física: a estruturação de um sistema dependeria de modificações espontâneas tendendo a um estado de equilíbrio estável. Em realidade, parece bem que se distinga entre equilíbrio estável e equilíbrio metaestável. A aparição da distinção entre figura e fundo provém de um estado de tensão, de incompatibilidade do sistema em relação a ele mesmo, disso que poderíamos nomear a supersaturação do sistema; mas a estruturação não é a descoberta do nível mais baixo de equilíbrio: o equilíbrio estável, no qual todo potencial ter-se-ia atualizado, corresponderia à morte de toda possibilidade de transformação ulterior; contudo, os sistemas vivos, os que manifestam precisamente a maior espontaneidade de organização, são os sistemas de equilíbrio metaestável; a descoberta de uma estrutura é uma resolução ao menos provisória das incompatibilidades, mas ela não é a destruição dos potenciais; o sistema continua a viver e a evoluir; ele não é degradado pela aparição da estrutura; ele resta tenso e capaz de se modificar (SIMONDON, 1989, p. 163). 15/21 16/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R Em vez de pensar o modo técnico como uma das etapas de um desenvolvimento dialético, Simondon recupera a Gestalt, introduzindo a noção de metaestabilidade para reivindicar que a estruturação de relações entre figura e fundo – que reverbera, por analogia, as relações entre interior e exterior –, não terão um caráter estático e definitivo. Deste modo, a delimitação de relações entre figura e fundo não teria mais como o seu ponto de chegada uma estruturação estável da imagem. A estruturação entre figura e fundo, que resulta de um estado de tensão do sistema, não será mais concebida nos termos de um esgotamento de todos os seus potenciais, mas nos termos de uma condição da forma, transitória e contingente, em relação às tensões do sistema. As fases que emergem a partir da “unidade mágica primitiva” serão concebidas nos termos de processos de objetivação (técnica) e subjetivação (religião). A evocação deste corte na gênese do objeto técnico deve-se ao fato de que, além das câmeras inteligentes serem objetos técnicos, seu desempenho é explicitamente vinculado a tal gesto. A reivindicação de uma metaestabilidade para o modo de operação da Gestalt irá resvalar aqui em uma indagação acerca de existência ou não de uma metaestabilidade nas redes das quais tais imagens participam. Se Simondon enfatiza o caráter múltiplo e parcelar do pensamento técnico, assim como a sua progressão vinculada à multiplicação dos objetos técnicos, condenada, de todo modo, a jamais abarcar a unidade primitiva, o atual processo de convergência dos quais as câmeras inteligentes fazem parte em seu aspecto “embutido” talvez indique uma tentativa de reencontro com o mundo nesta “unidade mágica” originária. Esta suspeita se dá na medida em que o programa de tais dispositivos frequentemente promove sua capacidade multiparamétrica de análise como resposta a um contexto de elevada complexidade e alto grau de indeterminação, diante do qual a capacidade de intervenção humana parece apresentar limites intransponíveis. mas, talvez estejamos apenas diante de um novo corte. Embora as câmeras inteligentes tenham passado a abrigar uma série de funções que antes estavam distribuídas em vários aparatos, reduzindo, deste modo, o número de objetos técnicos heterogêneos envolvidos no funcionamento de sua rede sociotécnica, as câmeras inteligentes “embutidas” proliferam-se e se articulam em redes cada vez mais complexas. A já citada equipe de pesquisadores e desenvolvedores austríacos é bastante otimista diante desta multiplicação: Providenciando acesso a muitas imagens através da cooperação entre câmeras individuais, redes de câmeras embutidas podem potencialmente dar suporte a aplicações mais complexas e desafia- R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 doras – incluindo quartos inteligentes, vigilância, rastreamento e análise de movimento – do que uma única câmera (BRAmBERGER et al., 2006, p. 68). O que é central nesta redistribuição funcional é o “lugar” que passará a ser ocupado pela imagem. Os objetos técnicos são definidos, por Simondon, a partir desta operação de corte ou de separação entre objeto e mundo. A retomada deste argumento para explorar o programa das câmeras inteligentes tem a ver com o fato de que, se fôssemos capazes de visualizar as imagens por elas produzidas e analisadas, seríamos capazes de compreender precisamente as linhas de corte propostas pelo dispositivo. Esta ideia da máquina como um sistema de cortes repercute na definição de máquina que aparece em O anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia 1. Tanto em Simondon quanto em Gilles Deleuze e Félix Guattari é clara a contiguidade da máquina ao mundo. Nesses últimos, temos a seguinte definição de “máquina”, apresentada no contexto de um aprofundamento da noção de “máquina desejante”: Uma máquina define-se como um sistema de cortes. Não se trata absolutamente do corte considerado como uma separação da realidade; os cortes operam nas dimensões variáveis seguindo o caráter considerado. Toda máquina, em primeiro lugar, está em relação com um fluxo material contínuo (hylè) no qual ela corta. Ela funciona como a máquina de cortar o presunto: os cortes operam retiradas sobre o fluxo associativo (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p. 45-46). Considerações finais Em que sentido este repertório filosófico ajuda-nos a pensar nas máquinas de visão inteligentes? O aspecto que enfatizamos neste artigo como sendo parte do programa das câmeras inteligentes consiste no fato de que suas imagens já não ocupariam uma posição de exterioridade em relação ao mundo, uma ideia profundamente dependente do regime óptico e epistemológico da câmera escura, tal como encontramos formulado em Crary (1992). Contíguas ao mundo e ativas sobre ele, as imagens inteligentes inauguram um contexto que deixaria Platão de cabelo em pé. Nem absolutamente falsas em relação a uma realidade, nem ideologicamente manipuladas, as imagens inteligentes, operativas, serão frequentemente compreendidas como pharmakon – remédio e veneno, modu- 17/21 18/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R lados por seus usos. Quem de nós irá se opor à “agulha inteligente” que pode dissipar, com precisão e segurança, um eventual aneurisma? Quem de nós irá defender uma guerra covarde como a Guerra do Golfo de 1991? Figura 4 – Passos iniciais em reconhecimento de gestos: (a) imagem original, (b) extração da região, (c) contorno, (d) adequação da elipse Fonte: WOlF et al., 2002, p. 49. Não se trata, portanto, de fazer aqui uma valoração dogmática das câmeras inteligentes, mas não se trata tampouco de reapresentar uma teoria dos “usos”, negligenciando aquilo que nas máquinas não é bom nem mau, mas também não é neutro (Castells, 1999). O que parece ser fundamental é “abrir a caixa preta“ das câmeras inteligentes de modo a compreender o que está em jogo nestas novas imagens, como elas funcionam e que descontinuidades instauram em relação aos regimes escópicos com os quais convivem. Buscamos pensar tais imagens como parte de uma nova cronotopologia e, para isso, a ideia de corte, vinculada à natureza maquínica adjacente ao fluxo material do mundo, mostrou-se fundamental. Na Figura 4, vemos como R E V I S TA FA m ECO S | P O RTO A l EG R E | V. 2 6 , N . 1, J A N . - A B R . 2 0 19 | E - 30966 esse corte opera em um dispositivo dotado da função de monitoramento e reconhecimento de gestos. A despeito de um programa que tende a promover uma capacidade de captura e análise total da imagem-mundo a partir da multiplicação de dispositivos inteligentes, fica patente nesta imagem o caráter parcelar da máquina de visão. Orientada a reconhecer gestos a partir do posicionamento de zonas elípticas de pixels na imagem, o esquema acima não parece nos entregar a inteligência prometida pelas câmeras ditas inteligentes. Se do ponto de vista de certas operações, a leitura gestual baseada em elipses pode ser “eficiente”, podemos reivindicar que toda uma modulação das mãos e do rosto, as pequenas percepções de que fala José Gil (2005), tende a ser negligenciada por esta análise algorítmica. A adjacência das imagens inteligentes ao mundo, os cortes que elas operam e os contornos que elas desenham precisam ser encarados a partir daquilo que eles efetivamente já são, mas também daquilo que os desenvolvedores nos prometem. Evidentemente, o cenário prometido é o de uma progressiva sofisticação na capacidade analítica de tais máquinas de visão mas, por ora, encontramo-nos diante de um dispositivo ao qual parece faltar a metaestabilidade necessária para operar os cortes, traçar os contornos levando em consideração os campos afetivos, moleculares, que atravessam e constituem uma parcela importante – incapturável? até quando? – da vida. A questão com a qual encerramos este artigo consiste em pensar se a supressão da distância cara à representação clássica e a interiorização da imagem por dispositivos contíguos ao mundo material ultrapassa efetivamente a estabilidade dos modos de ver aos quais tendemos a opor as imagens inteligentes. Parece-nos que tais imagens oferecem numerosos avanços do ponto de vista operativo; mas tais avanços não esgotam estas imagens. Sua “invisibilidade ativa” limita os potenciais prolongamentos da vida destas imagens na direção do imaginário, ao mesmo tempo em que modula uma crescente gama de ações maquínicas. Evocando novamente Farocki (2004), tais imagens estariam mais próximas de um “inconsciente ótico coletivo” do que quaisquer outras. Acessar este inconsciente irá requerer muito trabalho pois, nem nos mísseis videntes e suicidas de Eye-Machine, nem na “agulha inteligente” dos pesquisadores australianos, a figura humana, na qual enraizamos nossa capacidade de empatia e compreensão, está presente. 19/21 20/21 C R O N OTO P O lO G I A DA S I m AG E N S . . . | I C A R O F E R R A z V I DA l J U N I O R Referências AUSTIN, J. l. How to do things with words: The William James lectures delivered at Harvard University in 1955. londres: Oxford University Press, 1962. https://doi.org/10.1111/j.1468-0149.1963.tb00768.x BRUNO, Fernanda. “Contramanual para câmeras inteligentes: vigilância, tecnologia e percepção”. 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