Revista
E-ISSN: 1980-3729
ISSN-L: 1415-0549
mídia, cultura e tecnologia
http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2019.1.30966
CRONOTOPOLOGIA DAS IMAGENS INTELIGENTES
CHRONOTOPOLOGY OF SMART IMAGES
CRONOTOPOLOGÍA DE LAS IMÁGENES INTELIGENTES
Icaro Ferraz Vidal Junior 1
Resumo: o presente artigo retoma algumas noções fundamentais da filosofia de
Gilbert Simondon para indagar acerca dos regimes cronotopológicos agenciados pelas
imagens produzidas por câmeras inteligentes. Câmeras inteligentes são sistemas de
visão nos quais um algoritmo opera em paralelo à produção de imagem, analisando-a.
Recentemente a ideia de “imagem embutida” vem sendo utilizada para descrever a
arquitetura de tais dispositivos. Nosso objetivo é cartografar as transformações nas
relações espaciais e temporais instauradas por tais imagens, assim como especular acerca
de possíveis consequências políticas associadas a esta reordenação cronotopológica.
A contiguidade dessas imagens ao mundo e a sua agência inscrita no tempo presente,
à diferença do modelo clássico da perspectiva renascentista, permite-nos reivindicar
uma inflexão performativa neste regime de visualidade.
Palavras-chave: Câmera inteligente. Gilbert Simondon. Teoria da imagem.
Abstract: this article takes up some fundamental notions of Gilbert Simondon’s philosophy to inquire about the chronotopological regimes that are related to the images
produced by smart cameras. Smart cameras are systems of vision in which an algorithm
operates in parallel to the image production, analyzing it. Recently the idea of “embedded image” has been used to describe the architecture of such devices. Our objective
is to map the transformations in the spatial and temporal relations established by such
images, as well as speculate about the possible political consequences associated with
1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Doutor em História, História da Arte e
Arqueologia pelas Université de Perpignan Via Domitia e Università degli studi di Bergamo e em Comunicação
e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Bolsista de Pós-Doutorado PNPD-Capes no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PEPGCOS-PUC-SP. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4907-1267 E-mail:
[email protected]
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative
RECEBIDO EM: 03/06/2018
Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e
APROVADO EM: 23/04/2019
reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente
citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
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this chronotopological reordering. The contiguity of these images to the world and their
agency circumscribed to the present time, unlike the classical model of the Renaissance
perspective, allows us to claim a performative inflection in this regime of visuality.
Keywords: Smart Camera. Gilbert Simondon. Image Theory.
Resumen: el presente artículo retoma algunas nociones fundamentales de la filosofía
de Gilbert Simondon para indagar acerca de los regímenes cronológicos y topológicos
agenciados por las imágenes producidas por cámaras inteligentes. las cámaras inteligentes son sistemas de visión en los que un algoritmo opera en paralelo a la producción de la imagen, analizándola. Recientemente la idea de “imagen incrustada” viene
siendo utilizada para describir la arquitectura de tales dispositivos. Nuestro objetivo es
cartografiar las transformaciones en las relaciones espaciales y temporales instauradas por tales imágenes, así como especular acerca de posibles consecuencias políticas
asociadas a esta reordenación cronotopológica. la contigüidad de estas imágenes al
mundo y su agencia circunscrita al tiempo presente, a la diferencia del modelo clásico
de la perspectiva renacentista, nos permite reivindicar una inflexión performativa en
este régimen de visualidad.
Palabras clave: Cámara inteligente. Gilbert Simondon. Teoría de la imagen.
A imagem embutida
Um termo tem aparecido com frequência na descrição das câmeras inteligentes2.
Trata-se de embedded, cuja melhor tradução ao português é embutido(a). Tal noção
é o ponto de partida deste artigo, que se propõe a investigar as transformações
cronotopológicas relacionadas às imagens produzidas por câmeras inteligentes. Essa
ideia aponta também para uma reconfiguração do dispositivo de visibilidade, que
passa a prescindir de múltiplas unidades interconectadas, passando a existir como
uma unidade que opera, ao mesmo tempo, como sensor, processador e comunicador.
Uma equipe de pesquisadores austríacos introduz o contexto no qual a noção
de embedded aparece nos seguintes termos:
Avanços recentes nas tecnologias de computação, comunicação e
sensores estão impulsionando o desenvolvimento de muitas novas
aplicações. Esta tendência é especialmente evidente em computação
pervasiva, redes de sensores e sistemas embutidos.
Câmeras inteligentes são sistemas de visão nos quais um algoritmo opera em paralelo à produção da imagem, analisando-a.
2
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Câmeras inteligentes [...] são equipadas com uma computação de bordo
de alta performance e infraestrutura de comunicação, combinando vídeo,
sensores, processamento, e comunicações em um único dispositivo embutido
(BRAmBERGER et al., 2006, p. 68, tradução nossa).
Figura 1 – Sistema padrão de visão inteligente (cortesia Atmel Grenoble)
Fonte: SOUSA, 2003, p. 107.
Figura 2 – Sistema de câmera inteligente (cortesia Vision Components)
Fonte: SOUSA, 2003, p. 107.
Dito de outro modo, a “inteligência” das câmeras consiste na convergência, em
um único gadget, de funções que estavam previamente distribuídas em uma pluralidade de aparelhos. A Figura 1 apresenta um circuito padrão de visão inteligente,
nela vemos os vários componentes que o integram, da fonte de luz que viabiliza a
captura da imagem pela câmera ao display de visualização; ao passo que a Figura
2 apresenta uma câmera inteligente, um único dispositivo, de tamanho modesto,
no qual operam todas as funções distribuídas ao longo do sistema apresentado
na Figura 1. No caso das câmeras inteligentes podemos derivar desse processo de
convergência uma reestruturação das arquiteturas do olhar que tais dispositivos
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agenciam. A operatividade de tais imagens vincula-se largamente a este caráter
“embutido”, também estreitamente associado a uma tendência delas à invisibilidade.
Além disso, precisamos sublinhar que a articulação entre o caráter pervasivo e
embutido de tais dispositivos é bastante relevante para a compreensão da topologia destes novos circuitos de imagens. Presentes por todos os lados e, muitas
vezes, discretas, as câmeras inteligentes atuam em uma grande quantidade de
redes sociotécnicas. Se a distância que separa a imagem do mundo é suprimida
quando tais imagens se tornam “embutidas” no dispositivo, podemos dizer que
a imagem se interiorizou em uma caixa preta. Podemos reivindicar também que,
a agência de tal imagem se dará de um modo mais imediato, uma vez que ela
prescindirá de ser visualizada, interpretada e levada em consideração em um
processo de tomada de decisão, cuja duração seria marcada pela temporalidade
inerente à cognição humana. Tais imagens, definidas por Harun Farocki (2004)
como operativas, já não servem a uma representação do mundo. Elas não são
produzidas para serem interpretadas, mas para operarem no monitoramento e
na execução de determinados procedimentos.
Assim, inspirados por alguns contextos de utilização das câmeras inteligentes,
pareceu-nos oportuno investigar o estatuto dessas imagens com respeito às relações cronotopológicas que elas estabelecem com o que é diferente delas, seja o
contexto que elas monitoram, seja, em um plano mais especulativo, com todas as
demais imagens do mundo. Por relações cronotopológicas estamos nos referindo
às inscrições “espaço-temporais” de tais imagens. Como desenvolveremos adiante,
as relações entre cronologia e topologia no pensamento de Gilbert Simondon
sobre a individuação vem responder à impossibilidade de rebatimento de alguns
processos ontogenéticos sobre o tempo linear da física e sobre o espaço euclidiano.
A concepção da imagem como representação e, neste sentido, como exterior
e segunda em relação ao objeto representado parece ser insuficiente para dar
conta das imagens inteligentes. Tais imagens são operativas, performativas e pró-ativas. Foi por conta disso que a cronotopologia proposta por Gilbert Simondon
(2013) pareceu consistir em um caminho interessante para reivindicarmos, não
mais uma exterioridade, mas a contiguidade das imagens inteligentes ao mundo,
agora marcado pela relatividade do exterior e do interior como domínios de onde
partem as ações e sobre os quais elas se exercem.
A fim de fornecer as bases a partir das quais reivindicaremos uma nova estruturação cronotopológica dos regimes de visibilidade a partir da emergência das
câmeras inteligentes, faremos uma breve apresentação de algumas noções caras
a filosofia de Gilbert Simondon, cruciais para avançarmos em nosso argumen-
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to. Ao longo desta apresentação, para não perdermos o fio condutor de nossa
análise, procuraremos explicitar os vínculos que nos interessa estabelecer entre
esta filosofia e as dinâmicas implicadas nas operações das câmeras inteligentes.
O problema da individuação
Gilbert Simondon (2013) inicia sua tese acerca dos processos de individuação apresentando as duas vias que permitem uma abordagem da realidade do ser individual:
a via substancialista e a via hilemórfica. Apesar do monismo substancialista se opor
ao dualismo do hilemorfismo, Simondon observa que ambas perspectivas coincidem,
na medida em que supõem um princípio de individuação anterior à individuação, que
a explicaria e produziria. Tal suposição faz com que ambas perspectivas corram o
risco de não inserir o indivíduo no sistema de realidade no qual a individuação mesma
se produz. O filósofo francês propõe a necessidade de uma reversão na pesquisa do
princípio de individuação, que seria possível ao considerarmos
como primordial a operação de individuação a partir da qual o indivíduo vem a existir e da qual ele reflete o desenvolvimento, o regime
e enfim as modalidades, nas suas características. O indivíduo seria
então apreendido como uma realidade relativa, uma certa fase do
ser que supõe antes dela uma realidade pré-individual, e que, mesmo
depois da individuação, não existe sozinho, porque a individuação não
esgota de um só golpe os potenciais da realidade pré-individual, e
por outro lado, isso que a individuação faz aparecer não é somente o
indivíduo mas o par indivíduo-meio. O indivíduo é então relativo em
dois sentidos: porque ele não é todo o ser, e porque ele resulta de um
estado do ser no qual ele não existia nem como indivíduo nem como
princípio de individuação (SImONDON, 2013, p. 24-25).
A originalidade da proposição de Simondon deve-se, em grande medida, a sua
concepção da individuação como uma resolução parcial e relativa. Os princípios
de unidade e identidade aplicam-se, nesta perspectiva, a apenas uma fase do
ser: aquela posterior à individuação, de modo que não auxiliam na descoberta
do princípio mesmo de individuação, e não se aplicam à ontogênese plenamente
entendida, ou seja, “ao devir do ser enquanto ser que se desdobra e se defasa
se individuando” (SImONDON, 2013, p. 26).
É importante comentar o uso da filosofia da individuação de Gilbert Simondon
para pensarmos as câmeras inteligentes quando, de fato, a parcela de sua obra
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mais utilizada nas pesquisas em comunicação consista em seu trabalho sobre os
objetos técnicos, cuja vinculação com a nossa problemática seria mais evidente.
Alegaremos que, grande parte do pensamento acerca da produção e circulação
de imagens, inteligentes ou não, tem em seu horizonte uma dinâmica que se
articula em torno de processos de identificação e reconhecimento3. Tal processo
exige que a máquina de visão e o observador assumam como a priori que, do
ponto de vista perceptivo, aquilo que se reconhece como um corpo ou um objeto
consiste em uma unidade identitária4, passível de ser inscrita no campo da imagem. Neste sentido, iremos reivindicar que, quando vinculados a determinados
contextos, um clique fotográfico ou um registro em vídeo podem desempenhar
um papel performativo na “solução supersaturada” na qual o indivíduo passa a
existir enquanto tal. Uma fotografia na carteira de identidade ou no passaporte,
por exemplo, funciona como um catalisador, produzindo uma precipitação – do
indivíduo – em um determinado sistema de individuação5.
Metaestabilidade, câmera-agulha, câmera suicida
O que faltou para uma compreensão e uma descrição adequadas da individuação, segundo Simondon, foi o conhecimento de uma forma de equilíbrio
que não fosse o equilíbrio estável, pois embora os antigos intuíssem o equilíbrio
metaestável, o filósofo francês atrela grande parte do incremento dessa noção
ao desenvolvimento das ciências. Toda a ontologia pensou o ser em estado de
equilíbrio estável, que exclui o devir,
porque ele [o equilíbrio estável] corresponde ao nível mais baixo de
energia potencial; ele é o equilíbrio que é alcançado dentro de um
sistema quando todas as transformações possíveis já foram realizadas
e que mais nenhuma força existe; todos os potenciais se atualizaram,
e o sistema tendo atingido seu mais baixo nível energético não pode
se transformar novamente (SImONDON, 2013, p. 26).
Vários âmbitos nos permitem fazer esta afirmação: do uso policial da fotografia como meio de identificação
de suspeitos (Gunning,1995) à hegemonia da iconologia panofskiana no campo da História da Arte (DIDIHUBERmAN, 2002).
3
Algumas “falhas” técnicas em fotografias como a sobreposição de imagens, por exemplo, inseriram, ao
longo da história deste meio, alguns registros em um campo de interpretação marcado pela fantasmagoria
e pelo misticismo. A dificuldade de definição dos contornos dos corpos mobilizou todo um vocabulário “do
além” para a exegese destas imagens.
4
Podemos pensar esse processo analogamente à dimensão perlocutória da linguagem, tal como formulada
por Austin (1962), em sua teoria dos atos de fala.
5
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Seria possível pensar as redes das quais as câmeras inteligentes participam como
metaestáveis? Em caso afirmativo, podemos especular que as imagens tomariam
parte em “processos” de individuação e, em vez de permitirem a simples identificação
e reconhecimento de corpos e objetos, elas participariam na própria ontogênese.
Não se trata de pensar em uma imagem que dá a ver um processo de transformação
que lhe seria exterior e que apreenderíamos cognitivamente. Pensar um sistema
metaestável das imagens implicará pensar em casos como o das videolaparoscopias e videocirurgias em geral, nos quais as imagens efetivamente interferem nos
processos de individuação de humanos, de órgãos, de tecidos, de células etc.
Um dispositivo chamado “agulha inteligente”, atualmente em desenvolvimento
na Universidade de Adelaide, Austrália, é emblemático deste novo lugar, metaestável,
ocupado pelas imagens inteligentes. O referido dispositivo foi criado a fim de oferecer
mais segurança às cirurgias de cérebro e consiste em uma sonda de imagem envolta em uma agulha de biópsia cerebral. “Chamamos isto de uma agulha inteligente.
Ela contém uma minúscula câmera de fibra ótica, do tamanho de um fio de cabelo
humano, emitindo luz infravermelha para ver os vasos antes que a agulha possa danificá-los” (NEW ‘SmART NEEDlE’..., 2017). Nesse caso, o complexo cérebro-sonda
poderia ser pensado nos termos de um sistema em equilíbrio metaestável. Apesar
do compromisso com uma intervenção precisa, a plasticidade do cérebro deixa em
aberto os resultados de tal interação. Além disso, há uma lógica de mútua configuração entre a imagem e o cérebro na medida em que se encurta a distância entre o
dispositivo de produção de imagem e o local onde tal imagem exerce seus efeitos.
Em um PET Scan, por exemplo, a imagem também é dinâmica, mas ela só permite
assistir de fora a atividade cerebral. A “agulha inteligente” vê o cérebro de dentro e
em conexão com a mão do cirurgião. Neste sentido, ela visualiza um cérebro que a
envolve. Já aqui, podemos perceber uma complexificação na definição dos limites
entre a interioridade e a exterioridade da imagem.
A outra ponta desta reconfiguração topológica das imagens pode ser identificada nos mísseis teleguiados que contam com uma câmera na extremidade. Em
Eye-machine (2000), Harun Farocki apresenta imagens destas câmeras, por ele
chamadas de “câmeras suicidas”, sublinhando as diferenças entre tais imagens e
algumas propagandas de guerra. Na esteira da tese de Paul Virilio (1993) acerca
das imagens da Guerra do Golfo, Farocki sublinha que essas imagens, capturadas
por mísseis, são as únicas a que tivemos acesso através dos meios de comunicação.
Diferente das imagens de propaganda, aterrorizantes ou feitas para o entretenimento, as imagens dos mísseis teleguiados são orientadas aos técnicos da guerra.
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Diante de tais imagens, nenhum dos recursos mobilizados pelas propagandas para
produzir empatia ou ódio será eficaz já que a figura humana se encontra ausente.
Figura 3 – Frames de Eye-Machine (2000, versão monocanal), de Harun Farocki
Fonte: Capturas de tela de frames do filme Eye-Machine (Farocki, 2000).
Como a sequência de frames na figura 3permite observar, as ditas “câmeras suicidas” possuem os alvos que devem atingir inscritos, com precisão, em sua própria
programação algorítmica. Em função deste caráter vidente, o míssil passa a poder
orientar-se autonomamente. Os três quadros acima compõem uma sequência na
qual vemos a destruição total de uma ponte. O terceiro frame mostra e esconde o
resultado da operação: uma vez que o míssil foi detonado, não vemos o resultado
figurativo da destruição, mas apenas o índice técnico da interrupção da transmissão.
Tais imagens guardam muito pouco das imagens representacionais clássicas no
que diz respeito a sua cronotopologia. Nenhuma distância em relação a um objeto
representado pode ser reivindicada aqui pois, literalmente, a imagem possui uma
agência radical e letal, que não pode ser compreendida em termos imaginários ou
simbólicos. Ela, efetivamente, interfere em um “processo” de individuação (ou no
aniquilamento de todo potencial pré-individual do sistema) e as duas extremidades
desta relação – a ponte alvejada e o “míssil-vidente-suicida” – desaparecem para
que daí emerjam as ruínas de uma cidade devastada pela guerra.
Uma vez que a individuação não esgota toda a realidade pré-individual, “o indivíduo
constituído transporta consigo uma certa carga associada de realidade pré-individual,
animado por todos os potenciais que a caracterizam” (SImONDON, 2013, p. 28).
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Desse modo, o estatuto da relação na filosofia simondoniana será profundamente
abalado, pois seus termos já não são indivíduos plenamente constituídos. A relação
é, então, formulada como ressonância interna ao sistema de individuação.
Tendo como horizonte esta formulação, e sem perder de vista o exemplo mais
radical de reconfiguração cronotopológica levada a cabo pelas imagens inteligentes
através dos mísseis suicidas, ficamos tentados a especular acerca do estatuto do
equilíbrio em uma cidade bombardeada. Após o processo de individuação que
culmina em um bombardeio, esgotamos todos os potenciais de transformação
(equilíbrio estável) ou uma carga de energia pré-individual seguirá presente viabilizando novas transformações no sistema (equilíbrio metaestável)? Para responder
a esta questão será preciso instalar-se em uma determinada ordem de grandeza.
mesmo em um caso desta magnitude, parece-nos que o sistema ainda
preserva certo potencial para se transformar posteriormente. Isto não significa, evidentemente, uma relativização do potencial destrutivo de tais mísseis.
Nosso objetivo aqui é simplesmente indicar quão rara é a existência de um ser
plenamente individuado, no qual todos os potenciais de transformação estariam
esgotados. A questão do esgotamento ou não dos potenciais de transformação
de um sistema parece vincular-se, sobretudo, à ordem de grandeza a partir da
qual se formula o problema. Do ponto de vista psíquico, a noção de resiliência,
tal como a encontramos em Boris Cyrulnik (2003), como consistindo na capacidade de encadear narrativamente e dar sentido a grandes adversidades sofridas por um determinado sujeito que pode, não sem traumas, seguir apostando
na vida, dá conta da existência dos “sobreviventes de guerra” como seres que
prosseguem individuando-se, ou seja, como seres nos quais a carga de energia
pré-individual não foi aniquilada de todo. Do ponto de vista coletivo, a história
contemporânea apresenta-se como uma complexa rede de articulações, que
se polariza em novos atores políticos – refugiados, por um lado e, por outro,
grupos terroristas que parecem disputar com os agentes da guerra quem dá o
último passo no esgotamento dos devires do sistema-mundo de individuação.
Com base no conceito de relação de Simondon, segundo o qual uma relação
não se dá entre dois seres plenamente constituídos, a individuação psíquica e
a coletiva serão pensadas como processos recíprocos que permitem definir a
categoria do transindividual. O coletivo intervém como resolução da problemática individual, uma vez que o psiquismo não pode ser apreendido no nível
do ser individual, já que este não é, quase nunca, plenamente realizado. Neste
sentido, o salto entre as ordens de grandeza psíquica e coletiva adquire uma
complexidade que, a partir de nosso exemplo, poderíamos, assumindo os riscos
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de um excessivo esquematismo, colocar nos seguintes termos: o terrorista e o
refugiado serão duas fases desta solução supersaturada que é um país arruinado
pela guerra; os diferentes potenciais pré-individuais irão orientar a precipitação
dos sujeitos em direção a uma fase ou à outra.
Informação, transdução, indeterminação
A mudança de perspectiva que a filosofia de Simondon opera, está em larga medida sustentada por uma reformulação da noção de informação, que nos interessa
para explorarmos a promessa de monitoramento em “tempo real” presente nas
câmeras inteligentes. A informação é postulada pelo filósofo nos seguintes termos:
uma informação não é jamais relativa a uma realidade única e homogênea, mas a duas ordens em estado de desaparição: a informação
[...] não é jamais depositada em uma forma podendo ser já dada; ela é
a tensão entre dois reais disparatados, ela é a significação que surgirá
quando uma operação de individuação descobrir a dimensão segundo
a qual dois reais disparatados podem devir sistema; a informação é
então uma isca de individuação, uma exigência de individuação, ela
não é jamais coisa dada; não há unidade e identidade da informação,
porque a informação não é um termo; ela supõe tensão de um sistema do ser; ela não pode ser senão inerente a uma problemática; a
informação é isso pelo que a incompatibilidade não resolvida de um
sistema devém dimensão organizadora na resolução; [...] a informação é a fórmula da individuação, fórmula que não pode pré-existir a
esta individuação; podemos dizer que a informação está sempre no
presente, atual, porque ela é o sentido segundo o qual um sistema
se individua (SImONDON, 2013, p. 31).
Simondon abala as teorias quantitativas da informação, inserindo a sua noção
de informação em um regime dinâmico cujo funcionamento entra em conflito
com as “economias da informação” que, a fim de formularem sistemas eficazes
de armazenamento e transmissão (regime marcado por fronteiras claramente
estabelecidas entre interior – o arquivo – e exterior – o meio de transmissão),
necessitam assumir a informação como unidade prévia.
No caso da extração algorítmica de dados das imagens produzidas por câmeras
inteligentes parece que nos encontramos diante de uma tentativa de conciliação entre as referidas “economias da informação” e a dinâmica informacional
postulada pelo filósofo francês. Uma vez que a noção de “tempo real” no caso
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dos dispositivos inteligentes de visibilidade não corresponde mais a uma simultaneidade entre a produção e a visualização da imagem, mas se inscreve entre
o presente e o futuro próximo (BRUNO, 2012), podemos dizer que a informação
“inteligentemente” tratada por tais dispositivos poderá ser lida, ao menos parcialmente, à luz da proposição simondoniana.
As câmeras inteligentes herdam das “economias da informação” seu compromisso com uma certa eficácia e a capacidade de mobilizar e analisar grandes
massas de dados armazenados no contexto do big data. mas o caráter embutido
de tais dispositivos, a supressão da distância entre a câmera e o agente de intervenção, conferem à informação por eles processada esta função de direcionar
“o sentido segundo o qual um sistema se individua”.
A informação no sistema metaestável simondoniano funciona como “fórmula
da individuação”, mas tal fórmula tampouco opera segundo uma lógica de programação, na qual um comando é inserido e pauta os processos para os quais está
designado no interior do sistema, determinando-os. A informação é a resolução
“temporária” dos processos de individuação, ela só existe no presente, não podendo
ser anterior aos processos que modula e pelos quais é, simultaneamente, modulada.
Este segundo aspecto do conceito de informação talvez indique o limite à leitura
simondoniana das câmeras inteligentes pois, embora tais aparelhos tenham adquirido uma elevada capacidade de lidar com um certo nível de “indeterminação”, o
que confere a eles alguma plasticidade, o caráter “temporário” da ação algorítmica
ainda depende de uma reprogramação do dispositivo. E tal reprogramação ainda é
dependente da intervenção de um agente humano exterior à máquina. Diante da
necessidade de redirecionamento dos processos de individuação, a máquina não
opera uma transição automática e autônoma na direção de um outro algoritmo ou,
se o faz, limita-se a uma quantidade finita de sequências previamente estabelecidas.
Assim, se podemos, em um plano fenomenológico, reconhecer um estatuto para
a informação processada pelas câmeras inteligentes que se inscreve no presente,
não podemos desta “presença” derivar a lógica “temporária” uma vez que, a menos que haja uma intervenção exterior, no sentido de uma reprogramação, esta
presença tenderá à repetição automática.
Desta lógica “temporária” da informação, Simondon deriva seu conceito de
transdução. O ser para Simondon não possui uma identidade unitária, tal como
foi preciso pensar a partir dos sistemas de equilíbrio estável. O ser possui uma
unidade transdutiva, “o que quer dizer que ele pode se defasar em relação a si
mesmo” (SImONDON, 2013, p. 31). Através da noção de unidade transdutiva, o
filósofo insere o devir como elemento constituinte do ser.
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Precisamos ser rigorosos na análise das câmeras inteligentes a fim de evitar uma
confusão entre o monitoramento e análise de processos que se desenrolam no
tempo e a noção de devir. Isto é importante pois podemos ficar com a impressão
de que a imagem algorítmica apresenta um ganho ontológico, na medida em que
desvincula o olhar de um esquema excessivamente estático, emblematizado pela
perspectiva renascentista. Ora, o monitoramento algorítmico de cenas dinâmicas
é baseado em uma sequência finita de instruções previamente estabelecidas, ao
passo que o devir é, por definição, indefinido, não consistindo em um processo de
transformação de A em B ou de deslocamento entre dois pontos.
A fim de operar estas transformações nos modos de apreensão do ser individuado, Simondon reconhece a necessidade de um método e de uma noção novos.
O método proposto por Simondon está relacionado a como as relações devem
ser apreendidas, já que as relações entre termos extremos coloca o problema
da suposição de duas existências independentes entre si. Esta suposta independência deve-se, sobretudo, à concepção dos termos da relação como anteriores
aos processos de individuação. Simondon vislumbra assim a possibilidade “de
conceber a relação como não identidade do ser com relação a si próprio, inclusão
no ser de uma realidade que não é somente idêntica a ele, de modo que o ser
enquanto ser, anteriormente a toda individuação, pode ser apreendido como
mais que unidade e mais que identidade” (SImONDON, 2013, p. 32).
A noção incrementada pela filosofia de Simondon que permite pensar em relações
para além da dualidade de termos estanques é justamente a noção de transdução:
Entendemos por transdução uma operação física, biológica, mental,
social, pela qual uma atividade se propaga passo a passo no interior de
um domínio, fundando esta propagação sobre uma estruturação do
domínio operado a cada ponto: cada região de estrutura constituída
serve a região seguinte de princípio de constituição, de modo que uma
mudança se estende progressivamente ao mesmo tempo que esta
operação estruturante [...] A transdução corresponde a esta existência
de relações emergentes quando o ser pré-individual se individua; ela
exprime a individuação e permite pensá-la; é portanto uma noção
ao mesmo tempo metafísica e lógica; ela se aplica à ontogênese e é a
própria ontogênese (SIMONDON, 2013, p. 32-33).
A concepção de transdução parece ter permitido a Simondon instalar-se em
uma dobra antevista em outros sistemas filosóficos. Bergson (1999), por exemplo, nos fez perceber esta brecha entre o mundo percebido enquanto corpos
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de contornos bem delimitados e a totalidade da matéria, entendida enquanto
fluxo inter-relacionado de imagens. Tal desenvolvimento teórico introduziu
necessariamente uma dimensão de indeterminação nos modos de apreensão e
interpretação do mundo, uma vez que, no interior de um sistema em equilíbrio
metaestável, variadas configurações podem irromper no devir.
As câmeras inteligentes parecem emergir justamente em um contexto reativo
a esta margem de indeterminação. Ao mesmo tempo em que são proclamadas
inteligentes por seus desenvolvedores, tais câmeras são frequentemente inseridas em contextos nos quais desempenham a função de controle do espaço e
dos corpos. As câmeras inteligentes parecem retraçar e reforçar as arestas já
estabilizadas do mundo. Paradoxalmente, tais dispositivos são promovidos como
sendo capazes de captar, monitorar e reagir a uma vasta gama de eventos; mas
atuam afunilando a abertura prevista por esta margem de indeterminação, de
modo a manter os contextos monitorados longe de quaisquer acidentes e acasos.
Gilbert Simondon definiu transdução como uma “operação física, biológica,
mental e social”. Causa um certo estranhamento – sobretudo se pensarmos nos
transdutores e na produção do filósofo no campo da filosofia da técnica – que
tal noção não seja também concebida nos termos de uma “operação técnica”.
Em Do modo de existência dos objetos técnicos, o filósofo afirma que o grau de
aperfeiçoamento técnico de determinado objeto não coincide com seu grau de
automatismo. O grau de tecnicidade estaria vinculado, justamente, a uma capacidade do objeto de operar preservando uma margem de indeterminação. A
questão que nos resta consiste em saber se uma ampliação nos parâmetros que
organizam o funcionamento algorítmico das câmeras inteligentes, consistiria em
um incremento de tecnicidade ou em um simples incremento de automatismo.
E, desdobrando tal questão, se as imagens inteligentes podem ser concebidas
como transdutivas ou se, de fato, preservam o regime da unidade identitária.
Cronotopologia
Amparado pelos conceitos que apresentamos, Simondon chega às formulações das correlações entre topologia e cronologia, alegando que esta indeterminação cara à transdução apenas existiria em estado puro caso não houvesse
correlação entre topologia e cronologia, o que não se verifica. Uma absoluta
indeterminação ou um total determinismo só são abstratamente pensáveis. O
indivíduo físico pode ser entendido como um agrupamento cronotopológico
cujo devir é constituído de sucessivas crises de individuação.
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O filósofo recusa uma topologia que suponha um interior e um exterior absolutos e propõe, no domínio da individuação do organismo vivo, diversas camadas
de interioridade e de exterioridade:
[...] o espaço das cavidades digestivas é uma exterioridade em relação
ao sangue que irriga as paredes intestinais; mas o sangue é por sua
vez um meio de exterioridade em relação às glândulas de secreção
interna que derramam os produtos de sua atividade no sangue
SImONDON, 2013, p. 225).
Insiramos a “agulha inteligente” no interior deste organismo e o estatuto cronotopológico da imagem por ela produzida tende a ser vertiginosamente relativo e
relacional. Se a membrana polarizada atua, no presente, filtrando em meio a múltiplas possibilidades que se apresentam no meio exterior aquilo que será interiorizado
pela célula e que, após incorporado, consistirá em uma incorporação passada; as
imagens da “agulha inteligente” parecem duplicar tal membrana, inscrevendo um
presente suplementar no organismo, na medida em que se desloca de um passado
no qual tudo “correu bem” em direção a um futuro incerto. O dentro e o fora são
forjados através de uma “mediação transdutiva de interioridades e exterioridades”
(SImONDON, 2013, p. 225). Esta topologia inscreve no vivo isto que podemos
chamar de uma heterocronia (lEVIN, 2006), que não coincide com a experiência
linear do tempo subjacente às abordagens substancialistas e hilemórficas.
Enquanto o espaço euclidiano e o tempo físico não podem coincidir,
os esquemas cronológicos e topológicos aplicam-se uns sobre os outros; eles não são distintos, e formam a dimensionalidade primeira do
vivo: toda característica topológica tem um correlativo cronológico,
e inversamente [...] No nível da membrana polarizada afrontam-se o
passado interior e o futuro exterior: este afrontamento na operação de
assimilação seletiva é o presente do vivo, que é feito desta polaridade
da passagem e da recusa, entre substâncias passadas e substâncias
que advêm, apresentadas umas às outras através da operação de
individuação; o presente é esta metaestabilidade da relação entre
interior e exterior, passado e futuro; é em relação a esta atividade
de presença mútua, allagmatique, que o exterior é exterior e o interior
interior. Topologia e cronologia coincidem na individuação do vivo
[...] não são formas a priori da sensibilidade, mas a dimensionalidade
mesma do vivo se individuando (SIMONDON, 2013, p. 227).
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A máquina, a figura e o fundo
Para formularmos nosso problema cronotopológico ancorados na filosofia
de Gilbert Simondon, evocaremos Do modo de existência dos objetos técnicos,
notadamente a passagem na qual Simondon traça uma genealogia da tecnicidade
que parece inserir os objetos técnicos no contexto das densas relações estabelecidas, em O indivíduo e sua gênese físico-biológica, entre cronologia e topologia.
É preciso reter do argumento de Simondon o postulado de que a tecnicidade resulta de uma defasagem de um “modo único, central e original de ser no
mundo, o modo mágico” (SImONDON, 1989, p. 160). Desse processo de defasagem, emergem o modo técnico e o modo religioso. mas a evocação desse
processo genealógico não tem outro propósito aqui senão o de contextualizar
a inscrição, pelo filósofo, dos objetos técnicos na separação, que este recupera
da Gestalttheorie, entre figura e fundo, fazendo uma retificação à Gestalt a partir
da distinção entre o equilíbrio estável e o equilíbrio metaestável.
Se eliminamos a ideia de uma relação dialética entre etapas sucessivas
da relação do homem e do mundo, qual pode ser o motor dos desdobramentos sucessivos no curso dos quais aparece a tecnicidade? É
possível convocar a teoria da Forma, e generalizar a relação que ela
estabelece entre figura e fundo. A Gestalttheorie retira seu princípio
de base do esquema hilemórfico da filosofia antiga, apoiada sobre as
considerações modernas da morfogênese física: a estruturação de um
sistema dependeria de modificações espontâneas tendendo a um estado
de equilíbrio estável. Em realidade, parece bem que se distinga entre
equilíbrio estável e equilíbrio metaestável. A aparição da distinção entre
figura e fundo provém de um estado de tensão, de incompatibilidade
do sistema em relação a ele mesmo, disso que poderíamos nomear a
supersaturação do sistema; mas a estruturação não é a descoberta do
nível mais baixo de equilíbrio: o equilíbrio estável, no qual todo potencial
ter-se-ia atualizado, corresponderia à morte de toda possibilidade de
transformação ulterior; contudo, os sistemas vivos, os que manifestam
precisamente a maior espontaneidade de organização, são os sistemas de equilíbrio metaestável; a descoberta de uma estrutura é uma
resolução ao menos provisória das incompatibilidades, mas ela não é
a destruição dos potenciais; o sistema continua a viver e a evoluir; ele
não é degradado pela aparição da estrutura; ele resta tenso e capaz
de se modificar (SIMONDON, 1989, p. 163).
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Em vez de pensar o modo técnico como uma das etapas de um desenvolvimento dialético, Simondon recupera a Gestalt, introduzindo a noção de metaestabilidade para reivindicar que a estruturação de relações entre figura e fundo
– que reverbera, por analogia, as relações entre interior e exterior –, não terão um
caráter estático e definitivo. Deste modo, a delimitação de relações entre figura
e fundo não teria mais como o seu ponto de chegada uma estruturação estável
da imagem. A estruturação entre figura e fundo, que resulta de um estado de
tensão do sistema, não será mais concebida nos termos de um esgotamento de
todos os seus potenciais, mas nos termos de uma condição da forma, transitória
e contingente, em relação às tensões do sistema. As fases que emergem a partir
da “unidade mágica primitiva” serão concebidas nos termos de processos de objetivação (técnica) e subjetivação (religião). A evocação deste corte na gênese
do objeto técnico deve-se ao fato de que, além das câmeras inteligentes serem
objetos técnicos, seu desempenho é explicitamente vinculado a tal gesto.
A reivindicação de uma metaestabilidade para o modo de operação da Gestalt
irá resvalar aqui em uma indagação acerca de existência ou não de uma metaestabilidade nas redes das quais tais imagens participam. Se Simondon enfatiza o
caráter múltiplo e parcelar do pensamento técnico, assim como a sua progressão
vinculada à multiplicação dos objetos técnicos, condenada, de todo modo, a
jamais abarcar a unidade primitiva, o atual processo de convergência dos quais
as câmeras inteligentes fazem parte em seu aspecto “embutido” talvez indique
uma tentativa de reencontro com o mundo nesta “unidade mágica” originária.
Esta suspeita se dá na medida em que o programa de tais dispositivos frequentemente promove sua capacidade multiparamétrica de análise como resposta a um
contexto de elevada complexidade e alto grau de indeterminação, diante do qual
a capacidade de intervenção humana parece apresentar limites intransponíveis.
mas, talvez estejamos apenas diante de um novo corte. Embora as câmeras
inteligentes tenham passado a abrigar uma série de funções que antes estavam
distribuídas em vários aparatos, reduzindo, deste modo, o número de objetos
técnicos heterogêneos envolvidos no funcionamento de sua rede sociotécnica,
as câmeras inteligentes “embutidas” proliferam-se e se articulam em redes cada
vez mais complexas. A já citada equipe de pesquisadores e desenvolvedores
austríacos é bastante otimista diante desta multiplicação:
Providenciando acesso a muitas imagens através da cooperação
entre câmeras individuais, redes de câmeras embutidas podem
potencialmente dar suporte a aplicações mais complexas e desafia-
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doras – incluindo quartos inteligentes, vigilância, rastreamento e
análise de movimento – do que uma única câmera (BRAmBERGER
et al., 2006, p. 68).
O que é central nesta redistribuição funcional é o “lugar” que passará a ser
ocupado pela imagem. Os objetos técnicos são definidos, por Simondon, a partir
desta operação de corte ou de separação entre objeto e mundo. A retomada
deste argumento para explorar o programa das câmeras inteligentes tem a
ver com o fato de que, se fôssemos capazes de visualizar as imagens por elas
produzidas e analisadas, seríamos capazes de compreender precisamente as
linhas de corte propostas pelo dispositivo.
Esta ideia da máquina como um sistema de cortes repercute na definição de
máquina que aparece em O anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia 1. Tanto em
Simondon quanto em Gilles Deleuze e Félix Guattari é clara a contiguidade da
máquina ao mundo. Nesses últimos, temos a seguinte definição de “máquina”,
apresentada no contexto de um aprofundamento da noção de “máquina desejante”:
Uma máquina define-se como um sistema de cortes. Não se trata
absolutamente do corte considerado como uma separação da realidade; os cortes operam nas dimensões variáveis seguindo o caráter
considerado. Toda máquina, em primeiro lugar, está em relação com
um fluxo material contínuo (hylè) no qual ela corta. Ela funciona como
a máquina de cortar o presunto: os cortes operam retiradas sobre o
fluxo associativo (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p. 45-46).
Considerações finais
Em que sentido este repertório filosófico ajuda-nos a pensar nas máquinas de
visão inteligentes? O aspecto que enfatizamos neste artigo como sendo parte
do programa das câmeras inteligentes consiste no fato de que suas imagens já
não ocupariam uma posição de exterioridade em relação ao mundo, uma ideia
profundamente dependente do regime óptico e epistemológico da câmera escura, tal como encontramos formulado em Crary (1992). Contíguas ao mundo
e ativas sobre ele, as imagens inteligentes inauguram um contexto que deixaria
Platão de cabelo em pé. Nem absolutamente falsas em relação a uma realidade,
nem ideologicamente manipuladas, as imagens inteligentes, operativas, serão
frequentemente compreendidas como pharmakon – remédio e veneno, modu-
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lados por seus usos. Quem de nós irá se opor à “agulha inteligente” que pode
dissipar, com precisão e segurança, um eventual aneurisma? Quem de nós irá
defender uma guerra covarde como a Guerra do Golfo de 1991?
Figura 4 – Passos iniciais em reconhecimento de gestos: (a) imagem original, (b) extração
da região, (c) contorno, (d) adequação da elipse
Fonte: WOlF et al., 2002, p. 49.
Não se trata, portanto, de fazer aqui uma valoração dogmática das câmeras
inteligentes, mas não se trata tampouco de reapresentar uma teoria dos “usos”,
negligenciando aquilo que nas máquinas não é bom nem mau, mas também não
é neutro (Castells, 1999). O que parece ser fundamental é “abrir a caixa preta“
das câmeras inteligentes de modo a compreender o que está em jogo nestas
novas imagens, como elas funcionam e que descontinuidades instauram em
relação aos regimes escópicos com os quais convivem.
Buscamos pensar tais imagens como parte de uma nova cronotopologia
e, para isso, a ideia de corte, vinculada à natureza maquínica adjacente ao
fluxo material do mundo, mostrou-se fundamental. Na Figura 4, vemos como
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esse corte opera em um dispositivo dotado da função de monitoramento e
reconhecimento de gestos. A despeito de um programa que tende a promover uma capacidade de captura e análise total da imagem-mundo a partir da
multiplicação de dispositivos inteligentes, fica patente nesta imagem o caráter
parcelar da máquina de visão. Orientada a reconhecer gestos a partir do posicionamento de zonas elípticas de pixels na imagem, o esquema acima não
parece nos entregar a inteligência prometida pelas câmeras ditas inteligentes.
Se do ponto de vista de certas operações, a leitura gestual baseada em elipses
pode ser “eficiente”, podemos reivindicar que toda uma modulação das mãos
e do rosto, as pequenas percepções de que fala José Gil (2005), tende a ser
negligenciada por esta análise algorítmica.
A adjacência das imagens inteligentes ao mundo, os cortes que elas operam
e os contornos que elas desenham precisam ser encarados a partir daquilo
que eles efetivamente já são, mas também daquilo que os desenvolvedores
nos prometem. Evidentemente, o cenário prometido é o de uma progressiva
sofisticação na capacidade analítica de tais máquinas de visão mas, por ora,
encontramo-nos diante de um dispositivo ao qual parece faltar a metaestabilidade necessária para operar os cortes, traçar os contornos levando em
consideração os campos afetivos, moleculares, que atravessam e constituem
uma parcela importante – incapturável? até quando? – da vida.
A questão com a qual encerramos este artigo consiste em pensar se a supressão da distância cara à representação clássica e a interiorização da imagem
por dispositivos contíguos ao mundo material ultrapassa efetivamente a estabilidade dos modos de ver aos quais tendemos a opor as imagens inteligentes.
Parece-nos que tais imagens oferecem numerosos avanços do ponto de vista
operativo; mas tais avanços não esgotam estas imagens. Sua “invisibilidade
ativa” limita os potenciais prolongamentos da vida destas imagens na direção
do imaginário, ao mesmo tempo em que modula uma crescente gama de ações
maquínicas. Evocando novamente Farocki (2004), tais imagens estariam mais
próximas de um “inconsciente ótico coletivo” do que quaisquer outras. Acessar
este inconsciente irá requerer muito trabalho pois, nem nos mísseis videntes e
suicidas de Eye-Machine, nem na “agulha inteligente” dos pesquisadores australianos, a figura humana, na qual enraizamos nossa capacidade de empatia
e compreensão, está presente.
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Dados do autor
Icaro Ferraz Vidal Junior –
[email protected]
Bolsista de Pós-Doutorado PNPD-Capes no Programa de Estudos Pós-Graduados
em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PEPGCOS-PUC-SP. Doutor em História, História da Arte e Arqueologia pelas
Université de Perpignan Via Domitia e Università degli studi di Bergamo e em
Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Endereço do autor: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pró-Reitoria de
Pós-Graduação da PUC/SP, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação
e Semiótica. Rua ministro Godói, 969, 4º. andar- Sala 4E-08, Perdizes, 05.015000 – São Paulo (SP) – Brasil
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