Academia.eduAcademia.edu

Pintescrituras: História(s) e Rasura(s) em Adriana Varejão

Pintescritura , neologismo cunhado para lidar com as complexidades epistemológicas advindas de uma investigação em nível de Mestrado, batiza o texto que aqui se propõe. Investigava-se então a picturalidade no cinema de Peter Greenaway e na literatura de Virginia Woolf. Ali onde a analogia autoriza que a escrita e o pictórico se reúnam na lógica do traço,opera o conceito que lança luz sobre a circularidade significante – uma troca de olhares entre Lacan e Saussure- em que se propõe uma abordagem poético- sincrônica em detrimento de uma perspectiva linear da narratividade. Pintescritura é agora invocado para o Doutoramento em Teoria e História da Arte em torno das apropriações sígnicas do histórico na obra da artista visual Adriana Varejão em que os limites entre Verdade e Ficção se questionam e problematizam a partir das elaborações propostas por Jacques Lacan em que sujeito e linguagem copulam, com reverberações que , sustenta-se aqui, não se confinam aos desdobramentos pós-lacanianos presentes em Damisch e Georges Didi-Huberman, historiadores da arte, mas poderiam igualmente servir a uma reflexão em torno das implicações para a Teoria da História como campo expandido, constituído por espelhamentos e(m) analogias. O entendimento do passado como uma “estrutura em progresso” presente na obra do historiador francês Marc Bloch e dos representantes dos Annales impõe-se aqui. Só uma indagação nascida de uma demanda investigativa presente pode autorizar que o passado se atualize como um campo de desafios interpretativos a serem enfrentados pelo historiador. Eis o que constitui o histórico como um problema digno de um olhar que o disseque à luz do contemporâneo e o possa constituir como um terreno marcado por significações nunca inteiramente dadas mas resultantes de tensões significantes. “Os fenômenos não falam por si sós e pela evidência. É preciso provoca-los . O que equivale a dizer que é preciso construí-los como objetos teóricos” , como nos lembra Calabrese em A Idade Neobarroca. O impacto para a constituição do conhecimento histórico é,acredita-se,indiscutível. Defende-se aqui a legitimação de uma transposição ou um empréstimo, por assim dizer, das elaborações de Bloch para este outro lugar – topos -em que o artista usa os motivos da história como rasura, a seguir-se a lição de Derrida,uma escrita em que a lógica de significação advém de uma operação no significante – aqui tomado para além de sua constituição linguístico-verbal – pois que uma das premissas de nossa visada é a de que a imagem se constitui como um discurso que, invariavelmente, depende de uma elaboração veiculada pela palavra, viabilizada pelas estruturas logofonocêntricas. A História "na" Arte é repensada a partir de uma apropriação em que Varejão se torna alegoria.

Pintescrituras: História(s) e Rasura(s) em Adriana Varejão MARCO ANTÔNIO VIEIRA * Pintescrituras: neologismo cunhado para lidar com as complexidades advindas de uma reflexão de natureza intersemiótica em torno da picturalidade na literatura de Virginia Woolf e no cinema de Peter Greenaway (VIEIRA,2004) . Pintescrituras ressurge aqui por sua qualidade conceitual, que opera numa zona intersticial e , portanto, serve-nos , como no texto em que primeiramente aparece, de mote e alegoria. Pintescrituras , palavra-valise, em que o que se deixa na página como texto é igualmente pensado e percebido à maneira de uma inscrição nipônica, o que a aproxima da tela, ecos de um Japão em que o pictórico e a escrita são traço , risco, marca. Uma também assinatura: caligrafia. A leitura do texto Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta (DIDI-HUBERMAN, 2013) ilumina de maneira exemplar um funcionamento de natureza alegórica (HANSEN,2006). Algo, aqui de cunho teórico, é-nos dito por meio da exposição de uma encenação. Recurso recorrente na maneira como Didi-Huberman estrutura sua argumentação, a alegoria é aqui a encarnação mesma de uma espécie de enxerto sígnico, tão caro a Arcimboldo ou mesmo à lógica do rébus em Freud (FREUD,2001). Palavras-valise e neologismos aproximam-se daquilo que aqui nos fornece um procedimento sígnico que faz as vezes de um caso a ilustrar o que se deseja defender. Vê-se algo a partir de uma manipulação sígnica, um quase-recurso retórico. Objeto, por assim dizer, composto, objeto que existe a partir desta composição, mas cujas emendas , ainda que eficazes, não se podem disfarçar. Sabe-se assim que há uma outra cena , já descortinada, antes desta que ora se apresenta como modelo. E entretanto, há graça , em mais de um sentido, nisto que é o aparente e absurdo artificialismo da alegoria. * Centro Universitário IESB/UnB , Doutorando. 2 Serve-nos , portanto, à perfeição que se possa perceber nos processos de formação e condensação do que se pode chamar conhecimento ou apreensão do histórico, muito do que poderíamos conceber como o exercício de uma escrita e nesta construção argumentativa ver, uma repetida vez, a alegoria. A maneira como se infiltram nos veios das tramas do texto que é uma re-constituição histórica (SALMI,2011) toda uma gama de variáveis que espelham, das mais variadas maneiras, nos e dos campos da Teoria e História da Arte, revela indubitavelmente que o que nos seduz é a circulação mesma na e da teia da qual se desprendem não exatamente os objetos que ali se escolheram mostrar mas sobretudo as relações e as costuras que se dão a ver entre eles, ou melhor , as emendas , enxertos ( rébus e alegoria) que se articulam entre tais objetos à maneira do olhar , mote central do texto de Didi-Huberman (DIDI-HUBERMAN,1992), amplamente influenciado pelo pensamento de Jacques Lacan (LACAN, 2000). É , pois, muito mais em torno das elaborações viabilizadas pelo teorização do olhar em DidiHuberman, na esteira da contribuição lacaniana, que se podem , na contemporaneidade, conceber as condições e configurações que podem , em alguns momentos, presidir à escrita da História. Em Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta , Didi-Huberman recupera o legado , de resto nevrálgico para a estruturação epistemológica de sua leitura da Arte , de Aby Warburg. É em Warburg e em seu Atlas Mnémosine que Didi-Huberman encontra a alegoria warburguiana por excelência, aquela que materializa seu olhar sobre a História da Arte como algo que transcenderia mesmo a trama (texere) , em que o texto e o têxtil copulam etimologicamente, em que mais que às veias textuais, deveríamos evocar uma imagem: paisagens de painéis que se revezam incessantemente sobre uma mesa (mensa) . Imagens dispostas sobre esta tabula para que sejam embaralhadas, sobrepostas, justapostas, imagens que se enraízam numa imbricação entre o que de mais físico pode haver (monstra) , as vísceras que se liam como presságio no passado , e aquilo a que aludiam (astra). Gangorra entre dois mundos: biombos nipônicos que se revezam para mostrar outros mundos a todo instante. Incessante re-costuras de sentidos que se desenham hipertextuais nesta tela movente que é a mesa warburguiana em oposição à tela estática do quadro. Quadros sobre quadros e o que se faz das e nas tramas que neles habitam. 3 Interessa-nos aqui analisar a um só tempo as configurações e condições epistemológicoestruturais da apropriação sígnica encarnada na elaboração do material histórico na obra da artista visual Adriana Varejão e daquilo que se desprende deste escrutínio investigativo no que tange ao esforço de conceber uma perspectiva teórica capaz de iluminar algumas das condicionantes epistêmicas a sustentar e suportar o edifício discursivo encarregado de problematizar os desafios interpretativos apresentados pela (re)elaboração do material histórico em sua produção artística. Que a Arte possa ser o lugar de encenações – colocação em imagens – que, ao apresentar, mais que meramente representar, possa lançar luz sobre aspectos e dimensões do histórico que de outro modo não se dariam a ver, é o que alimenta o desejo de poder compreender os mecanismos que presidem à (re)apresentação do histórico pela Arte , recorrendo a suas manifestações em Varejão como uma espécie de alegoria , um modelo de funcionamento sígnico que descortina, do prisma que aqui se adota, procedimentos discursivos que , para nós, demonstram como Verdade e Ficção (IANNINI, 2012) se imbricam e confundem no tecido do material artístico para, é o que se defende aqui, uma compreensão talvez mais aguda da História, pois que marcada pelo pathos comumente associado ao poético, ao artístico e ao estético. Ao enxergar na leitura de Varejão feições barroquizantes, já partimos de uma revisão da lógica que privilegia uma visão aprisionadora da periodização da História da Arte, ainda que amparados por uma já extensa fortuna bibliográfica em torno de uma questão fulcral para os impasses que circundam nossa demarcação teórica. As apropriações de Varejão recobrem temas e sintaxes compartilhadas a um só tempo pela História e pela Arte. Por vezes, suas apropriações investem-se de uma abordagem caracterizada pelos cruzamentos intertextuais , como se atesta em Reflexos de sonhos no sonho de outro espelho ( Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo) de 1998, em que expõe fragmentado o corpo do mártir da Inconfidência , como um eco do esquartejamento, o corpo presente no quadro do pintor Pedro Américo , de 1893. 4 O corpo de Tiradentes aqui tem , na potência inerente à lógica especular , uma plataforma em que a sustentação representacional mantém vínculos com sua matriz histórica ( o quadro “original” novecentista) mas igualmente opera uma ruptura sintagmática em que a escolha pela apresentação, aqui pulverizada e disseminada em superfícies especulares que , por encontrarem-se recortadas entre os diversos enquadramentos que se espalham ora circulares , ora retangulares, cria um efeito de mergulho no espelho a que o título da obra de Varejão alude. Esta é uma obra em que título ( uma espécie de legendagem ) espalha-se barroco – informe (LACAN,1978), pictórico (WOLFFLIN,2012), distorcido - em superfícies que evocam a experiência quase alucinatória de uma sala de espelhos que projetam a imagem a ponto de ser-nos impossível o retraçar de sua origem. A imagem aqui se dá no jogo mesmo do especular e do caleidoscópio significantes. Superfície que reflete nada senão a possibilidade mesma do refletir. E cuja estruturação é nada senão uma escrita que se articula em rasura, em torno mesmo de sua configuração lacunar (DERRIDA,1967). Novos sentidos , possibilitados por este encadeamento significante, eclodem e emergem, evitando assim a mera subserviência histórica .O vínculo histórico é pois de natureza essencialmente plástica e invertem-se assim os princípios hierárquicos , não sem uma certa ironia , que por um longo período nortearam as práticas artísticas das Academias de Pintura na Europa , cujos modelos, foram transplantados para o Brasil Colônia, em que os mestres deveriam ser copiados à exaustão para que se obtivesse um trabalho digno de integrar a linhagem estabelecida pela tradição. Varejão escreve assim sobre e não exclusivamente sob a inspiração de Pedro Américo, pois que sua leitura do quadro extrai sua significação deste jogo textual veiculado pela materialidade significante do arranjo que propõe da imagem do Tiradentes esquartejado. Esta obra de Varejão constitui-se, portanto, como uma espécie de comentário pictórico , em que apropriações pertinentes a procedimentos de manipulação contemporâneos , (re)contam histórias em torno de uma obra existente. sígnica nitidamente 5 Parte-se aqui da perspectiva epistemológica viabilizada pelo entendimento do passado como uma “estrutura em progresso” presente na obra do historiador francês Marc Bloch(2002). Só uma indagação nascida de uma demanda investigativa presente pode autorizar que o passado se atualize como um campo de possibilidades e desafios interpretativos a serem enfrentados pelo historiador. Eis o que constitui o histórico como um problema digno de um olhar que o disseque à luz do contemporâneo e o possa constituir como um terreno marcado por significações nunca inteiramente dadas mas resultantes de tensões significantes. “Os fenômenos não falam por si sós e pela evidência. É preciso provoca-los . O que equivale a dizer que é preciso construí-los como objetos teóricos “(CALABRESE, 1999). A História , portanto , para Marc Bloch, um dos fundadores da escola Annales, jamais seria a ciência do passado, pois que “passado não é objeto da ciência” (BLOCH, Op.cit.). O impacto para a constituição do conhecimento histórico é , pois, indiscutível. O que se pretende com nossa pesquisa é a legitimação de uma transposição ou um empréstimo , por assim dizer , das elaborações de Bloch para este outro lugar – topos- em que o artista usa os motivos da história como rasura (DERRIDA1971) , uma escrita em que a lógica de significação advém de uma operação no significante – aqui tomado para além de sua constituição linguístico-verbal – pois que uma das premissas de nossa perspectiva é a de que a imagem se constitui como um discurso que , invariavelmente , depende de uma elaboração veiculada pela palavra, que faz as vezes de uma espécie de “legendagem”, que , aqui, se percebe como um exercício de feições e contornos subservientes , no sentido de que ecoa a lógica da Metafísica ocidental. Na ausência de outro recurso que não aquele autorizado em última instância pela estrutura da linguagem , por sua vez , encarregada de veicular os conteúdos do pensamento, o que Derrida denomina logocentrismo (DERRIDA, 1967), a visada histórica proposta pelos Annales aproxima-se na leitura que aqui se sustenta como uma espécie de escritura , um campo de tensões cujo sentido nunca se dá por completo mas se (des)constrói incessante e marginalmente. Entre imagem e o discurso que dela pretende falar , dá-se uma repetição desta cena descrita por Derrida em que se busca a origem – sinônimo da Verdade – que aparenta existir e 6 subsistir para além de um sujeito marcado pela incompletude de sua significação(LACAN,1998). Opera-se assim em um espaço marcado por uma (falsa) tensão que , ao pretender revelar (vocábulo marcado por um investimento metafísico) a imagem , nada descortina senão as armadilhas mesmas do aprisionamento que denuncia a filosofia derridiana: a crença em uma precedência que arremeda a estrutura e o lugar da Verdade no pensamento ocidental. Uma História , portanto, que se pretenda calcada exclusivamente no “fato histórico” e não se permita afetar pela instabilidade advinda do jogo de tensões inerente à lógica textual defendida por Derrida aparenta abraçar esta Verdade a um só tempo redentora – utópica - e autoritária. Uma autoridade que se enraíza em uma pretensa origem , marcada por uma “pureza” que lhe conferiria sua superioridade e consequente precedência hierárquicas, como um texto e sua tradução (DERRIDA, 2003) que , em tudo, aparenta replicar o lugar ocupado , por vezes, pelo discurso da História ao legitimar-se pela ancoragem na justificativa do “acontecimento”(texto original, incontestável) , aquilo que , para os representantes da Annales , caracterizava o fazer histórico que antecede os esforços epistemológicos empreendidos por seus representantes. Em outras palavras , a História, ela também ,precisa investir-se da possibilidade dos cruzamentos sincrônicos que lhe exporiam o esqueleto, o arcabouço , a trama , a estrutura mesma em que circulam os sentidos que lhe podem ser construídos , e não (já) dados. O passado e o histórico assim se constituem como uma escrita , superfície em rasura , uma decifração em permanente (des)construção, à semelhança do vestido de crochê que se desfia diante do olhar do público na obra O que fazer nas sobras do tempo (2003/4) da artista brasiliense Valéria Pena-Costa. Uma constituição de sentido que se constrói na lógica do apagamento e de sua (re)constituição perpétua . É no rastro, pois , que se traça o que dela se escreve. Palimpsesto de leitura(s). Ao lidar com a Verdade e suas incontornáveis repercussões filosóficas , pareceu-nos legítimo que à visão da História em Bloch e à lógica da significação em Derrida , se intentasse costurar o tecido teórico lacaniano, que se ocupou primordialmente desta articulação entre Verdade e Saber que , na Psicanálise , assume meandros bastante peculiares e , poder-se ia asseverar, paradoxais diante de como o pensamento ocidental articulara estas categorias antes da leitura 7 de Jacques Lacan do Sujeito (LACAN,1998 pp. 807-842) e de suas consequentes reverberações para as questões que inspiram esta investigação. Para Lacan, “o significante representa o Sujeito para outro significante”(LACAN, Op.cit.496536) , o que equivale a afirmar , para um pensamento em que Freud e Saussure trocam olhares, que o sujeito é “efeito de linguagem” e , portanto , dela depende para que se veicule , ainda que eclipsado, cindido e dividido. Este Sujeito clivado da linguagem , que não é transparente para si mesmo e de quem só se recebem reflexos que se infiltram nos lapsos , nos chistes (Witz) e no sonho, um Sujeito que se identifica com o sintoma , uma metáfora , cuja impossibilidade de revelação última faz a cadeia significante insistir motivada pelos mecanismos metonímicos do desejo, é essencialmente o Sujeito de que se ocupa a Psicanálise. No contexto da subversão do sujeito e da dialética do desejo, Lacan elabora uma espécie de estilística do objeto (IANNINI, 2012). Para Lacan , o objeto de desejo do sujeito não é passível de representação possível , o qual é tomado em sua radical contingência e singularidade . Paralelamente a essa constatação, afirma-se que o sexual é tampouco representável , não apenas porque o simbólico não recobriria a totalidade do real , mas sobretudo pelo fato de que a linguagem , para Lacan , não é pensada a partir do paradigma da representação mas sim da mera estrutura que viabiliza que conteúdos circulem à revelia do saber e do desejo conscientes do sujeito. É a essa “estilística do objeto” em suas singularidades que muito de nosso trabalho se remeterá ao justificar como se articulam História, Sujeito, Verdade e suas implicações para a argumentação que ora se propõe. Lacan assevera que “não há metalinguagem”, o que significa dizer que não há garantia da Verdade para além da estrutura. Não há uma instância metalinguística para além dos domínios da linguagem capaz de legitimar a veracidade de um enunciado. É , portanto, na gangorra entre enunciado e enunciação que se detecta o jogo de esconde-esconde autorizado pelos mecanismos estruturais da linguagem. E é nesta oscilação que operam igualmente muitas das textualidades da História como lida por Varejão. À impossibilidade desta garantia ultima e apaziguadora da Verdade, deseja-se aqui propor o caminho de estruturação significante que se encontra na Arte, para além do discurso totalitário e totalizante da Ciência e do positivismo(LACAN, op.cit. pp. 869-892). 8 Assim , deparamo-nos com uma cena que o sujeito não é senhor da linguagem mas sim a ela sujeitado. Daí os desdobramentos lógicos para este entrelaçamento que aqui se propõe entre Bloch e sua apreensão da História, Derrida e sua lógica da escrita que , assim como Lacan e sua subversão do sujeito cartesiano , no intuito de propor uma visão de como o histórico se apresenta e se desprende das malhas tramadas por Adriana Varejão em obras como Éden (1992) , Quadro Ferido (1992) , Testemunhas Oculares X,Y e Z (1997) , Reflexos de sonhos no sonho de outro espelho ( Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo) ( 1998) brevemente analisado na introdução desse projeto - Mapa do Lopo Homem II (2004) e sua série de azulejos de inspiração colonial portuguesa. A leitura do livro Pérola imperfeita : a História e as Histórias na Obra de Adriana Varejão ( SCHWARCZ & VAREJÃO, 2014) e do artigo A arte diante do mal radical ( DE DUVE, 2009) encontram-se, ao lado de uma inspiração oriunda da obra de Georges Didi-Huberman como um todo mas sobretudo do texto de Images malgré tout (2003), como motes que inspiram a proposta de pesquisa em nível de Doutorado. No livro escrito a quatro mãos por Schwarcz e Varejão há esse cotejamento entre o passado histórico e sua aparição ou aparições – submetidas ao tratamento léxico-sintagmático - nas malhas textuais propostas pela artista visual carioca. Em que pese a exploração bastante detalhada do material histórico ressignificado por Varejão , o que mais interessou ali foi a possibilidade de explorar uma outra perspectiva teórica da emergência do passado em uma obra de Arte. Instigou-nos a possibilidade de enxergar no sígnico ( o funcionamento dos eixos sintático e paradigmático transpostos para o plano de análise imagética , assim como as tensões da lógica textual em Derrida) da elaboração do passado em Varejão um modelo que faria as vezes de uma parábola a guiar outros modelos analíticos derivados. Paralelamente à leitura desse texto, deparamo-nos com o artigo de Thierry De Duve em que se analisam as condições do uso de imagens “não artísticas” pelas instâncias de institucionalização da Arte Contemporânea. De Duve toma como objeto as fotografias de prisioneiros que seriam executados pelo regime genocida de Pol Pot no Camboja. 9 As meras inscrição e circunscrição espaciais destas fotografias desencadeiam um surto de significações que se articulam a partir desta inserção legitimada e instantaneamente responsável pela ressignificação destas imagens de cunho documental mas , em sua origem , inteiramente desvinculadas do fazer artístico , ao menos naquilo que concerne à intencionalidade. Os questionamentos suscitados pelo uso dessas imagens concentram-se sobretudo em suas repercussões éticas mas abarcam ou tangenciam igualmente questões que alimentam essa pesquisa, a saber, qual o teor das relações de sentido que se estabelecem ao recorrer-se a imagens que não foram confeccionadas para a Arte mas são posteriormente por ela apropriadas para um uso que se pretende estético , ao pensar-se o estético para além da categoria do Belo. A apropriação do não “essencialmente” artístico e , eis que o próprio vocábulo “essencialmente artístico” delata sua filiação metafísica, remete a uma série de procedimentos , ligados à lógica da apropriação e assim vinculados à práxis da Arte Contemporânea. Desde Duchamp, que se vale de “objetos encontrados”, à apropriação do fotográfico em Rosangela Rennó (RENNÓ, 2013), percebe-se um fio condutor que subjaz ao uso das fotografias das vítimas do genocídio cambojano pela Mostra de Arles descrito pelo texto de De Duve. Para nós, a Arte Contemporânea estrutura-se explicitamente como um conjunto de práticas discursivas em que o sentido advém de uma lógica do deslocamento , da possibilidade de surpreender ao designar ou nomear algo “como arte”, para além dos vínculos do “belo”. No ato da nomeação – autorizada pelas mais diversas instâncias discursivas- reside o poder de instituir e instaurar o lugar deste algo “como Arte”. Ao compreender como se erigira o edifício de sustentação da Arte dentro de sua perspectiva histórica , estes artistas decidem conscientemente explorar as condições do dizer artístico e implodem este edifício de sustentação metafísica que enceta , por exemplo, a noção de Belo na Arte. Basta que nos remetamos a Platão para que se enxergue no Belo a tradução – outra 10 condição metafísica (DERRIDA,2003) – do Bem e do Bom. O signo , para Platão, é rememoração (NOTH, 1999) e ali já se estruturavam todas as premissas metafísicas que se apresentam problematizadas em nossa pesquisa: a Verdade em Lacan que se articula ao Saber na Psicanálise e seus desdobramentos para a constituição do sujeito lacaniano. Em Images malgré tout , Georges Didi-Huberman escreve ao redor do impacto e das críticas que lhe foram desferidas por ter revelado que as únicas quatro imagens sobreviventes do horror de Auschwitz haviam sido obtidas por meio dos Sonderkommando , o “comando especial” , judeus responsáveis pelo extermínio de seus pares e tidos como o receptáculo do segredo do massacre judeu nos campos de extermínio alemães. Entre o silêncio a que se condenaram as vítimas de Auschwitz e o retumbante e pungente alarde destas imagens clandestinas, subsiste a catarse que pode , por vezes, ser partilhada entre Arte e Vida. E aqui , portanto, se apresenta uma outra questão que ronda insistente nosso olhar perquiridor : a potência catártica , o pathos que se menciona na Introdução desse projeto pode encontrar-se para além de um fato histórico cuja ressonância ultrapassa o mero acontecimento e se expande escandido para além de sua fisicalidade? As fotos de Auschwitz ou aquelas do genocídio no Camboja podem ser exibidas como arte? Haveria , por fim, uma Arte capaz de , por meio de uma manipulação sígnica consciente – como é o caso de Varejão – iluminar aspectos que se equiparam em termos de força imagética aqueles encerrados por esta outra manipulação discursiva , qual seja , a exibição do documental como Arte? Por fim, cabe ressaltar e reconhecer a contribuição espistêmico-metodológica contida em A Idade Neobarroca (CALABRESE, 1999). Esse texto propõe uma reflexão em torno dos princípios a presidirem a lógica da periodização na História. Que espécie de espelhamentos discursivos se refletem , legitimam e autorizam a operação dos conceitos de “época”, “idade”, “período” encontra-se na origem de uma argumentação em que o motivo do “Barroco” apresenta-se como o significante-mestre a conduzir o fio narrativo de um conjunto em tese heteróclito de fenômenos e manifestações sígnicas que se agrupariam dentro de uma perspectiva de enquadramento sincrônico em que se respeita uma ordem de natureza estrutural mais que uma interpretação essencialmente causal ou diacrônica da História , uma vez que aqui Barroco não se confina a seu enraizamento, chamemo-lo classicamente histórico, mas , e nisto segue balizado por uma vasta fortuna crítica , constitui-se como uma espécie de 11 princípio formal ( morfológico ) a operar para além de sua primeira aparição histórica. As considerações presentes no texto tangenciam ainda a leitura da História da Arte empreendida por Hubert Damisch e , uma repetida vez, Georges Didi-Huberman , em que se privilegiam aspectos sincrônicos da História e , portanto, autorizam muitas de nossas investidas e apostas aqui contidas. Estes espelhamentos , inflados pelo sopro contido na análise da obra de Adriana Varejão , assim como os textos mencionados nessa seção do Projeto que ora se apresenta , encontramse na origem das perguntas que estruturam o fio condutor de nossa pesquisa em nível de Doutorado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: 70, 1999. DE DUVE, Thierry. “ A arte diante do mal radical”. ARS, São Paulo , v.7 , n.13 , Junho de 2009, pp.64-87. DAMISCH, Hubert. Le jugement de Pâris. Paris: Flammarion, 1992. DERRIDA, Jacques. A Escritura e Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2001. ________________De la grammatologie. Paris: Minuit,1980. ________________Torres de Babel. Belo Horizonte: UFMG, 2003. DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris:Minuit, 2003. ________________________Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta. Lisboa: KKYM , 2013. ________________________Ce que nous voyons, ce qui nous regarde.Paris: Mimuit,1992. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001. IANNINI, Gilson. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. LACAN, Jacques. “O estadio do espelho como formador da função do eu” IN: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 96-103. ______________ “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” IN: Op.Cit. 1998. pp. 496- 536. 12 ________________”Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” IN: Op.cit. 1998, pp.807- 842. _______________Le séminaire livre II: le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1978. _____________ “A ciência e a verdade” IN: Op.cit. 1998. pp. 869-892. _____________ Le séminaire livre XX: encore. Paris: Seuil, 1975. LOPES, Edward. A identidade e a diferença. São Paulo: EDUSP, 2000. MARIN, Louis. Détruire la peinture. Paris: Galilée, 1977. ____________ .Études semiologiques: écritures, peintures. Paris: Klinksieck,2005. NOTH,Winfred. A semiótica no século XX. São Paulo: Annablume, 1999. RENNÓ, Rosângela. Menos-Valia. São Paulo: Cosac & Naify, 2013. SALMI,Hannu. “Cultural History: The possible and the Principle of Plenitude” . History and Theory .v. 50. Wesleyan University, 2011.p. 171-187. SCHWARCZ, Lilian & VAREJÃO, Adriana. Pérola imperfeita: a história e as histórias na obra de Adriana Varejão. São Paulo: Cobogó & Cia das Letras, 2014. VIEIRA, Marco Antônio. De um Lacan em lituraterra: pintescritura em W(o)olf e Green(a)way. Brasília, 2004. Dissertação de Mestrado em Teoria Literária. TEL, IL, UnB. WOLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1984. ___________________. Renascença e Barroco. São Paulo: Perspectiva,2012.