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Fenomenologia da Geometria

Alguns problemas que dizem respeito à interpretação geométrica da matemática inquietaram Husserl ao ponto de se tornarem um dos maiores motivos para o filósofo lançar sua filosofia. Se aliada a um complemento técnico, como o formalismo de Hilbert, a fenomenologia é capaz de apresentar uma proposta de fundamentação da geometria. Mas, essa proposta não apresenta os mesmos problemas das demais? Certas observações de Wittgenstein indicam que sim e impõe sérios desafios para tal proposta fenomenológica.

1 FENOMENOLOGIA DA GEOMETRIA Aron Barco UFG / FAN [email protected] RESUMO Alguns problemas que dizem respeito à interpretação geométrica da matemática inquietaram Husserl ao ponto de se tornarem um dos maiores motivos para o filósofo lançar sua filosofia. Se aliada a um complemento técnico, como o formalismo de Hilbert, a fenomenologia é capaz de apresentar uma proposta de fundamentação da geometria. Mas, essa proposta não apresenta os mesmos problemas das demais? Certas observações de Wittgenstein indicam que sim e impõe sérios desafios para tal proposta fenomenológica. Palavras-chave: filosofia da matemática; platonismo; Wittgenstein; Husserl; Hilbert. INTRODUÇÃO Desde o nascimento da geometria analítica, podemos 'traduzir' a geometria em álgebra e vice-versa. Introduzida por Descartes, essa disciplina rompeu os limites gregos entre a noção de número e a noção de magnitude, segundo o qual dois pares de magnitudes são proporcionais segundo uma razão numérica. Quando a noção de número e a noção de magnitude colapsam, torna-se possível resolver problemas aritméticos com geometria e viceversa. Descartes acreditava que, por meio da interpretação geométrica, ele estava dando sentido para as operações da álgebra (MERRZBACH & BOYER, 2011, p. 313). Isso quer dizer que a geometria é dotada de sentido e a álgebra não? Não é raro encontrar na literatura autores que acreditam que a geometria tem sentido e ele é evidente, trivial até. Husserl, por exemplo, classificou a geometria como uma disciplina 'mista', com elementos da álgebra pura (cuja validade ele considera estritamente formal) e com certa capacidade de descrever a experiência (cuja validade ele considera apodítica por fornecer evidências indubitáveis) (HUSSERL, 2001b, pp. 317, nota 3). Entre esses dois polos, a geometria seria ao mesmo tempo formal e descritiva. E Husserl não está sozinho. Muitos outros autores do início do século XX (Einstein, Nicod, Stumpf, Lotze, Carnap) consideraram a geometria um degrau intermediário que conecta a álgebra e a física. Para eles há um fosso entre a matemática pura (com seus enunciados de difícil interpretação às vezes chegando ao cúmulo de indicar estruturas fisicamente 2 impossíveis)1 e a física (cujas teorias explicam a realidade empírica). A interpretação geométrica seria o meio do caminho porque nos permite visualizar enunciados matemáticos. Mas certamente a geometria não é apenas um conjunto de representações gráficas, desenhos um tanto semelhantes com objetos físicos. Com a geometria lançamos as leis fundamentais que regem relações de posição, métricas, projetivas e topológicas. Para sustentar essa concepção 'mista' da geometria, precisamos saber se a interpretação geométrica da álgebra garante a aplicação da mesma. Ou, dito de outra forma, se dependemos da interpretação geométrica para dar sentido à álgebra, o problema passa a ser interpretar a geometria. E como devemos interpretar pontos, linhas e planos? A obra Fundamentos da Geometria (1950) de Hilbert foi um marco contemporâneo entre as tentativas de axiomatizar a antiga disciplina matemática. Nela, Hilbert afirma logo na introdução: "O estabelecimento dos axiomas da geometria e a investigação de suas relações é um problema discutido desde Euclides em vários excelentes ensaios da literatura matemática. Esse problema é equivalente à análise lógica de nossa intuição espacial." (HILBERT, 1950, p. 1). Mas essa "intuição espacial" não é esclarecida pelo matemático. Provavelmente ele nem mesmo se preocupou em esclarecê-la; afinal o programa formalista de Hilbert propunha que devemos nos preocupar apenas com a consistência dos sistemas formais. Para o formalista, se há um domínio onde os axiomas de sua teoria são válidos, então os teoremas que seguem são válidos. Mas talvez Hilbert tenha dado uma pista do que ele entende por intuição espacial. Diversos livros sobre filosofia da matemática alegam que em 1892, durante uma palestra de Hermann Wiener, Hilbert propôs que "devemos ser capazes de nos referir sempre – ao invés de pontos, linhas e planos – a mesas, cadeiras e canecas de cerveja" (apud EPSTEIN & CARNIELLI, 2009, p. 372). Qual a pertinência dessa asserção? Devemos acreditar que a geometria trata de idealizações que expressam a essência da forma espacial dos componentes de nossa experiência visual?i No atual modelo padrão de matemática a resposta é 'sim, a geometria trata de essências' (o que alguns filósofos chamariam de objetos abstratos), mas há variações interpretativas quanto ao que seriam essas essências. As interpretações variam quanto a serem idealizações de objetos físicos ou formais ideais. 1 A saber, na Teoria dos Conjuntos o espaço-tempo é considerado um conjunto de pontos de cardinalidade não maior que (mesma cardinalidade suposta para o conjunto dos números reais ℝ na hipótese do contínuo), mas algumas estruturas aceitas na teoria dos conjuntos podem ter cardinalidade maior que essa (cf. PORTO, 2002, p. 12) e, portanto, não 'caberiam' no espaço-tempo. 3 Para aqueles que entendem a geometria como um conjunto de sentenças sobre idealizações, a resposta afirmativa não é necessária, é contingente. Isto é, geometria e experiência visual se encontram em nossa situação local e delimitada; quando pensamos em escala global, elas já se desencontram. E quando pensamos no universo, a geometria euclidiana já está longe de ser a melhor candidata para explicar sua estrutura espacial. É por isso que, mesmo não explicando o universo, até hoje a geometria euclidiana (e sua companheira, a física de Newton) continua(m) a serem ensinadas como teorias que explicam o que nos rodeia. Já do outro lado, para aqueles que acreditam que a geometria trata de formas ideais, o que há de essencial na forma de uma mesa quadrada é idêntico a forma de um quadrado desenhado em um quadro negro. Nessa intepretação, a mesa e o desenho são possíveis interpretações de uma mesma forma ideal: o quadrado. Para eles pouco importa se a geometria euclidiana não se aplica ao universo – o importante é geometria mostrar as propriedades internas de estruturas e objetos considerados ideais. O que há em comum às duas interpretações configura o atual modelo padrão de matemática, denominado pelo historiador José Fereirrós como a tradição postulacional (FERREIRÓS, 2006, p. 6). Nessa tradição, definições e provas matemáticas são baseadas em postulados livremente criados mas logicamente consistentes. A filosofia dominante entre os matemáticos dessa tradição é o realismo platônico. Ter o platonismo como filosofia da matemática dominante significa que o grupo dominante de matemáticos costuma falar em quadrado como um objeto abstrato e atemporal. Para esse grupo, a atividade do matemático consiste em 'descobrir' os objetos matemáticos, de modo análogo a como descobrimos um objeto físico. Por exemplo, para um platonista, nossos algoritmos descobrem as casas decimais de π – é como se só depois do algoritmo jogar luz pudéssemos ver aqueles números antes escondidos na relação entre o raio e a circunferência de todos os círculos. Se essa fila infinita de números existe (todos eles), diríamos que o algoritmo utilizado por Archimedes para calcular π só obteve uma aproximação de π, porque depois de certa casa decimal ele não encontrou o número correto. A oposição é composta por grupos defendem o construtivismo na matemática, mas esses grupos divergem quanto ao tipo de construtivismo a ser adotado. Alguns construtivistas radicais poderiam, por exemplo, perguntar pelo critério de correção dos algoritmos para calcular π. Se no tempo de Archimedes o seu algoritmo não era apenas o único mas era o melhor disponível, então como alguém poderia afirmar que não era exato? O que Archimedes 4 calculou não chegava perto de π, mas sim era π naquele tempo. Para um construtivista só há casas decimais de π na medida em que elas são construídas. HUSSERL E A TESE DE ORIGEM DA GEOMETRIA A posição de Husserl sobre matemática continua em debate na literatura secundária (cf. HARTIMO, 2012), mas algumas características são tidas como claras para todos os comentadores. Na concepção de Husserl, a atividade matemática elementar pressupõe objetos extra-matemáticos doados antes da atividade, na esfera passiva da experiência. Assim Husserl evita o platonismo ingênuo: não se trata de encontrar objetos abstratos que existem de alguma forma indefinida, mas sim de perceber as propriedades abstratas dos objetos através de um tipo de percepção análoga à percepção sensorial denominada intuição de essência (Wesensschau). Nessa intuição a intencionalidade não está direcionada aos objetos enquanto corpos materiais, mas às propriedades desses objetos e, especialmente, às suas possibilidades (mudança, uso, movimento, combinação com outros objetos, etc.). Essa intuição é um dos conceitos mais importantes para a fenomenologia de Husserl, pois compõe um das duas suposições fundamentais dessa filosofia. A primeira é de que todo o conhecimento simbólico-formal ou prático tem origem na experiência consciente. A segunda é de que o filósofo pode e deve descrever a construção desse conhecimento como um arqueólogo conceitual, empreendendo uma espécie de escavação que encontre a origem do sentido intersubjetivamente construído dia após dia. Descrições de vários conceitos acabariam se encontrando e com o tempo os fenomenólogos poderiam formar uma espécie de árvore genealógica do conhecimento humano, onde mesmo os conceitos mais especializados seriam traçados a algum ramo com origem definível em uma intuição nítida (HUSSERL, 2006, p. 69). A fenomenologia seria, dessa forma, a solução definitiva para a crise dos fundamentos que, para Husserl, não estava restrita à matemática, mas afetava todas as ciências formais. A crise foi especialmente severa na geometria, disciplina que viu seus axiomas seculares questionados com o surgimento das geometrias não euclidianas. Por quase toda sua carreira, Husserl considerou isso inadmissível. Para ele, a geometria euclidiana é "uma ciência de 'puras idealidades' [...] constantemente aplicadas praticamente ao mundo da experiência sensível" (HUSSERL, 1970, p. 24). Como tal, a geometria euclidiana seria a única capaz de descrever a estrutura espacial da experiência. 5 A possibilidade de aplicação da geometria existiria precisamente por causa da sua origem na experiência sensível, pois ela é composta de "conceitos que exprimem imediatamente essências tiradas da simples intuição" (HUSSERL, 2006, p. 160). Essa conexão com a experiência é o que daria valor cognitivo à geometria euclidiana, pois assegura que todos os andares superiores do edifício simbólico-formal (como a geometria analítica e a geometria diferencial) têm origem em uma intuição de essência. No ensaio A Origem da Geometria (em 1970), o filósofo deixa claro que a idealização é o ato fundamental de passagem da espacialidade sensível para a geometria. Essa idealização é um processo pelo qual a apreensão do modo como certo corpo ocupa um espaço determinado passa a ser intencionalmente concebida como uma figura espacial. Para Husserl, a figura espacial é propriedade intrínseca dos objetos que aparecem, assim como as qualidades sensíveis (cores, qualidades táteis, etc.). Se a intencionalidade estiver direcionada para a espacialidade do objeto, então a variação eidética pode separar o essencial do não essencial, resultando em uma forma ideal, como uma constante que se mantém invariante após a abstração de todos seus predicados possíveis (HUSSERL, 2006, pp. 35-36). De acordo com o texto de Análise das Sínteses Passivas, isso seria suficiente para justificar os axiomas necessários para fundamentar uma geometria e uma topologia das multiplicidades formadas pelos estímulos sensoriais, o que nos daria uma interpretação fenomenológica dos elementos básicos da geometria e da topologia, como "figura, linha, ponto, distância, segmento, direção, tamanho" (HUSSERL, 2001a, p. 193). Esses são precisamente os elementos indefinidos que Hilbert relegava à análise lógica de nossa intuição espacial. Portanto, a chave para resolver o problema, segundo Husserl, seria descrever como as sensações formam multiplicidades e qual é a estrutura dessas multiplicidades. O conceito de multiplicidade (Mannigfaltigkeit), introduzido na geometria por Bernhard Riemann, foi decisivo para a criação da geometria diferencial. De acordo com Riemann, os casos estudados pela geometria métrica (euclidiana) e a geometria projetiva são casos particulares onde há magnitudes. Ele diz: "Noções de magnitude apenas são possíveis onde há uma noção geral antecedente que admite diferentes especializações" (RIEMANN, 1998, p. 2) e essa noção geral é a noção de multiplicidade. Mas se o que a geometria tradicionalmente trata como magnitude é um caso especial de multiplicidade, então há outros casos de relações de posição que não são estudadas por essas geometrias. A multiplicidade, de acordo com Riemann, é uma estrutura composta de pontos (que podem representar qualquer unidade) e cada ponto é identificado por suas vizinhanças. A única constante na multiplicidade é a 6 generalização de uma função de distância entre os pontos; como ela permanece invariante sobre transformações, então ficam preservadas as relações de vizinhança entre os pontos (MESERVE, 1983, pp. 257-258). Quando Husserl adotou esse conceito, ele o fez com algumas adaptações. No lugar de pontos como elementos indefinidos, Husserl propôs o uso de uma multiplicidade definida. Nela, os pontos são unidades sensoriais que satisfazem os critérios de um domínio específico de objetos. Cada domínio, por sua vez, é definido por um sistema de axiomas; um sistema que rege todas as configurações possíveis e matematicamente definíveis da multiplicidade (HUSSERL, 2006, pp. 157-158). A tarefa da fenomenologia seria justificar esses axiomas e os critérios para cada domínio regional através da descrição da experiência que deu origem ao ramo do conhecimento respectivo a esse domínio de objetos. Se aliarmos esse trabalho da fenomenologia (de esclarecer axiomas) com o sistema formal de Hilbert (que cuidaria da consistência do sistema) nós obtemos uma proposta de fundamentação da geometria que provê definição para os elementos básicos e constrói um sistema onde todos os teoremas da geometria euclidiana podem ser deduzidos. Como sugeriu Da Silva, [...] os pontos de vista de Husserl parecem talhados com o propósito de tornar a matemática puramente simbólica e formal uma forma de conhecimento, e o projeto formalista de Hilbert uma aceitável teoria da natureza da matemática, mais que um projeto lógico-fundacional. (DA SILVA, 2007, p. 218). Afinal, como o próprio Husserl afirma em Lógica Formal e Transcendental (1969), só podemos evitar que a matemática se perca “em um simbolismo excessivo” se “a ideia desta matemática for construída [...] de dentro do complexo total da ideia de lógica” (HUSSERL, 1969, p. 86). Só assim podemos construir uma “matemática formal que não flutua no ar, mas que se ergue de suas fundações e é inseparável delas” (HUSSERL, 1969, p. 87). A INVESTIGAÇÃO GRAMATICAL DE WITTGENSTEIN Husserl e Hilbert não são as únicas fontes relevantes para o assunto. Wittgenstein, outro autor angustiado com a matemática do início ao fim de sua carreira, também deixou uma série de observações críticas sobre a análise fenomenológica do campo visual e a interpretação fenomenológica da geometria. Além disso, suas observações criticam duramente diversas noções amplamente aceitas no atual modelo padrão de matemática. Ao contrário de Husserl, Wittgenstein vê várias dificuldades na hipótese de que a geometria se fundamenta na experiência visual. Contra isso, a análise de Wittgenstein revela 7 um contraste crucial entre o que nós chamamos de 'espaço visual' e a 'geometria euclidiana': o critério de correção para os testemunhos da experiência visual é totalmente distinto do critério de correção para enunciados da geometria euclidiana. Termos como "igualdade", "precisão" e "indefinição" têm significados completamente diferentes para a visão e para a geometria, e isso mostra que estes espaços não são isomórficos (cf. WITTGENSTEIN, 2005b, pp. 325326). O que dá sentido a uma igualdade em um testemunho da experiência visual não é o mesmo critério que dá sentido a uma igualdade no cálculo geométrico. Isso nos impede de interpretar os termos não puramente lógicos do calculo geométrico com 'elementos' do espaço visual. Tomar pontos, linhas e planos como "mesas, cadeiras e canecas de cerveja" não é uma interpretação óbvia nem evidentemente justificada. Mas, o que é o critério de correção e porque o critério dos enunciados geométricos seria diferente de testemunhos sobre o espaço visual? Segundo Wittgenstein, o enunciado matemático é uma regra e, como tal, se distingue das proposições empíricas. "Wittgenstein claramente diferencia entre proposições empíricas (envolvendo agentes e intervalos de tempo) e regras (metalinguísticas). Estas últimas não falam sobre o mundo, sobre eventos físicos, mas meramente estabelecem o critério para a aceitação de tais relatórios." (PORTO, 2012, p. 27). Por exemplo, a proposição empírica 'está chovendo' tem uma estrutura bivalente; para cada situação em que eu a utilizar, ela poderá ser verdadeira ou falsa. O que não é o caso para ; isso é tautológico, necessariamente verdadeiro para todos os valores de suas variáveis. Por isso não faz sentido pedir pela verdade ou falsidade de enunciados matemáticos, deles não podemos extrair hipóteses – cuja validade pode ser verificada – sobre como se encontra certo estado de coisas localizável espaço-temporalmente. Logo, o enunciado matemático deve ser de ordem superior à proposição empírica: ele dita o uso correto de certos termos, como 'linha' ou 'ângulo', dita como tratar de quantidades, graus, proporções – tudo em situações empíricas ordinárias. Se alguém mede os ângulos de um triângulo em uma superfície plana e afirma que a soma não dá 180º, diríamos que ele fez algo errado no processo ou que seus instrumentos de medição estão com defeito. É sabido por todos onde a medição deveria chegar. Diríamos isso porque o critério de correção do calculo geométrico é o próprio resultado do calculo – não há outro meio de julgar se alguém seguiu a regra matemática (WITTGENSTEIN, 1978, p. 16). Toda operação matemática é assim: seu resultado não está oculto. Se alguém soma 1 objeto com outro 1 objeto igual e nos diz que encontrou 3 objetos iguais, diríamos que ele nem sequer realizou a operação ou mesmo que não sabe o que os símbolos evocados significam. 8 Entendida assim, a geometria euclidiana não poderia ser um corpo de enunciados tratando de quadrados, triângulos e círculos abstratos, como os enunciados empíricos tratam de pregos e mesas. Na filosofia da matemática de Wittgenstein, "a matemática não descreve coisa alguma. Ela não fala de entidades ideais e abstratas. Ela é puramente prescritiva" (PORTO, 2012, p. 21). Como alternativa, Wittgenstein propõe uma interpretação gramatical: a geometria é como uma gramática (WITTGENSTEIN, 2005a, p. 180). Assim, pensando a geometria como uma gramática, podemos entender a observação de Wittgenstein de que "o espaço não é uma reunião de pontos mas a realização de uma regra" (WITTGENSTEIN, 2005a, p. 179). Se isso que chamamos 'espaço' (raum) é a realização de uma regra, o espaço euclidiano é o campo de possibilidade (spielraum) formado pelas regras que ditam como construir espaços circulares, triangulares, quadriculares, etc., na situação em que medidas, linhas, ângulos e vizinhanças são mantidos invariantes em um grupo de transformações. Isso também significa que, trocando a gramática, trocamos o espaço formado. Se nossos testemunhos sobre o que vemos e o que podemos ver não são isonômicos com a geometria, mas mesmo assim podemos diferenciar nesse contexto quais proposições têm e quais não têm sentido, então elas têm a sua própria gramática. Essa gramática, assim como a geometria o faz, também delimita o que faz sentido dizer, só que não sobre o uso dos termos 'linha', 'ângulo', etc., e sim sobre a experiência visual humana. Um dos melhores exemplos de Wittgenstein para explicitar essa diferença gramatical é a do céu estrelado: para um observador que observa o céu à noite, "não faz absolutamente nenhum sentido falar de um número definido [de estrelas]; [...] estranho como possa soar, a única descrição precisa teria a forma: 'eu vi inúmeras estrelas' e não: 'eu vi n estrelas'" (WAISMANN & WITTGENSTEIN, 2003, p. 319). Não é o caso haver "apenas uma dificuldade técnica aqui, a dificuldade de lembrar-se de algo ou de estabelecer como a experiência foi" (ibidem). Com uma foto, talvez pudéssemos dar um tratamento matemático, usando algum critério para contar as estrelas naquele trecho registrado. Mas, como estamos falando da experiência imediata e fugidia da contemplação do céu estrelado, tudo que temos é a impressão do momento e nenhum critério de correção para calcular. O significado de 'precisão' é completamente distinto em cada uma dessas gramáticas: no contexto fenomenológico há maior precisão em afirmar 'vimos uma multidão de estrelas' em vez de 'vimos 18.543.092 estrelas'. 9 CONCLUSÃO Se a experiência visual e a geometria euclidiana são incomensuráveis, porque deveríamos considerar uma circunferência feita com um barbante um 'aproximação grosseira' da 'perfeita' circunferência descrita por ? Em ambos os casos um espaço equivalente foi realizado por diferentes regras de construção. Porque a regra de um contexto tiraria a validade do outro? Afinal, se não "posso ver um circulo perfeito nesse sentido, tampouco posso ver aproximações de um círculo perfeito" (WITTGENSTEIN, 2005a, p. 219). Só precisamos aceitar que no contexto da experiência visual não há padrão para a precisão. Nós não precisamos inventar objetos abstratos só para manter uma forçosa relação entre esses dois círculos. Não é preciso especular sobre uma realidade platônica, um 'céu euclidiano', onde moraria a perfeição formal, para explicar o desencaixe entre a geometria e a realidade brusca. Há apenas diferentes modos de se falar da realidade, a única que temos. Quando separamos espaço visual do espaço geométrico, fazemos nada mais do que separar "uma seção da gramática de nossa linguagem" (WITTGENSTEIN, 2005b, p. 334). Não há necessidade de dar uma conotação epistemológica ou ontológica para tal separação. A análise gramatical de Wittgenstein traz um sério desafio não só para uma fenomenologia da geometria, mas para toda teorização filosófica que suponha um reino intermediário ou aquém entre a matemática e a realidade. Tanto interpretar os elementos da geometria euclidiana com testemunhos sobre a experiência visual como estabelecer que a geometria euclidiana é extraída de tais testemunhos por um processo de idealização seria, em ambos os casos, equivalente a confundir as regras de jogos diferentes. Na concepção de Wittgenstein, não seria absurdo propor uma geometria cuja realização forma um espaço que não parece 'intuitivo'. As geometrias não euclidianas não são mais 'meros jogos formais' do que a própria geometria euclidiana2. Considerar a geometria euclidiana a verdadeira por causa de alguma hipótese filosófica (como quer Husserl) é uma decisão arbitrária cujo único embasamento vem de algumas poucas semelhanças entre espaço 2 É importante mencionar que Poincaré, Klein e Beltrami provaram que a consistência da geometria euclidiana se fundamenta da mesma forma que a dessas geometrias (cf. EPSTEIN & CARNIELLI, 2009, p. 75). A geometria euclidiana é, na verdade, um caso especial da geometria afim, que por sua vez é um caso especial da geometria projetiva, assim como as variações não euclidianas (MESERVE, 1983). Se a geometria euclidiana fosse livre de contradições, também seriam as geometrias não euclidianas. 10 euclidiano e espaço visual. Mesmo que a verdadeira extensão dessas semelhanças ainda esteja mal definida, certamente não se trata de um isomorfismo nem de uma isonomia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DA SILVA, J., 2007. Filosofias da matemática. São Paulo: Editora UNESP. EPSTEIN, R. & CARNIELLI, W., 2009. Computabilidade, funções computáveis, lógica e os fundamentos da matemática. 2 ed. São Paulo: Editora UNESP. FERREIRÓS, J., 2006. The received picture in philosophy of mathematics. In:: The Architeture of Modern Mathematics. Oxford: Oxford University Press, pp. 1-45. HARTIMO, M., 2012. Husserl's pluralistic phenomenology of mathematics. Philosophia Mathematica, 20(III), pp. 86-110. HILBERT, D., 1950. 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