Violência e teoria social1
Michel Misse
Professor titular da UFRJ
Recebido em: 22/06/2015
Aprovado em: 30/12/2015
Ao considerar a grande quantidade de referências
recentes à ausência da “violência” como tópico
específico da teoria social, este artigo propõe-se a
mapear e discutir as dificuldades conceituais
presentes nessa discussão, assim como a situar a
“violência” como problema teórico no eixo de
continuidade do trabalho do autor. Após repassar
várias contribuições recentes, o texto explora a
hipótese de que o conceito vem se alargando,
com o avanço da sensibilidade pacifista e a
repugnância às soluções de força – inclusive
simbólicas – na vida cotidiana, o que torna ainda
mais complicada a possibilidade de uma
delimitação unilateral do conceito.
Palavras-chave: violência, teoria social, dilemas
conceituais, representação social, modernidade
Considering the large number of recent references
to the absence of ‘violence’ as a specific topic of
social theory, the article Violence and Social
Theory proposes to review and discuss the
conceptual difficulties present in this discussion, as
well as to situate ‘violence’ as a theoretical issue
consistent with the author’s work. After reviewing
several recent contributions, the text explores the
hypothesis that the concept is being enlarged,
because of the growing pacifist sensitivity and the
repugnance to uses of force – symbolic force
included - in everyday life, which makes even more
complicated the possibility of unilaterally
delimitate the concept.
Keywords: violence, social theory, conceptual
issue, social representation, modernity
Introdução
S
uspeito que “violência” seja agora, e cada vez mais, uma palavra moderna. Ela não
significava o que significa hoje, em toda a sua extensão semântica, antes de começos do
século XX. Os sociólogos, os historiadores, os filósofos contemporâneos, geralmente,
procuram no seu sentido etimológico a raiz de seu sentido moderno, exercício que pode se
configurar inútil porque anacrônico2. No sentido antigo, violentia tinha significado mais neutro
ou menos carregado, seja como vis – força, guerra –, seja como potestas – poder, domínio. Os dois
significados andavam juntos sem maiores problemas.
Suspeito também que, diferentemente do que pensam esses meus colegas, o sentido da palavra
não só não deve ser encontrado antes da modernidade como se acha, na verdade, ainda em plena
construção. As questões às quais a palavra, atualmente, faz referência nada mais têm a ver com o
sentido antigo. Walter Benjamin (2011[1921]) talvez tenha sido o primeiro a chamar atenção para
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o movimento de ocultação da violência que funda o direito, violência mítica, por meio das violências
que o direito quer controlar e punir. A disputa do sentido de violência − se unicamente restrito ao
exercício da força ou se abrangente, por exemplo, para alcançar o Estado e a estrutura social, como
defendeu Galtung (2004; 2010) − é parte dessa construção moderna e dessa promessa de que a
palavra seja entronizada em conceito. Construir um sentido para a violência, na atualidade, é parte
inelutável de sua recusa ética. Em uma linha antecipada por Immanuel Kant, é parte da promessa
moderna de “paz eterna”. É contra a violência, em qualquer de suas acepções, que se ergue a
moderna construção do sentido da palavra. A própria palavra “violência” só aparece nas línguas
latinas e anglo-saxãs entre os séculos XIV e XV, inclusive na língua portuguesa. Assim, Pascal pôde
dizer, n’As provinciais (1954[1656-1657], p. 805), que as injúrias dirigidas a ele pelos jesuítas são
“uma estranha e longa guerra, esta em que a violência tenta oprimir a verdade”.
Para Willem Schinkel, autor de um dos mais importantes estudos da violência na atualidade,
na linha da intuição de Benjamin, a oposição entre violentia e potestas acompanha a crescente
legitimação do exercício da violência pelo Estado, empurrando o sentido negativo de violência para
a sociedade civil. É a força da potestas que define crescentemente violentia. A disputa do sentido
torna-se também uma disputa de legitimidade. Na língua alemã, a dubiedade da palavra Gewalt
mantém-se ora significando “poder” ora significando “violência”, no sentido de forçar, agredir,
coagir, impor, mas deixando espaço para que Macht signifique, sem dubiedade, também “poder”
(SCHINKEL, 2010). Entretanto, ao definir Macht, já no século XX, Max Weber (1991[1921]) volta
a reunir os dois sentidos: “toda probabilidade de impor a própria vontade, em uma relação social,
mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. Mas, reconhece seu
caráter amorfo. Na introdução ao Dictionnaire de la violence publicado em França há três anos
(MARZANO, 2011), com mais de 1.500 páginas, Michela Marzano, sua organizadora, reconhece a
multiplicidade de sentidos do termo, suas ambiguidades e dificuldades semânticas. Talvez por isso,
o único verbete que falta na obra é “violência”: o dicionário inteiro é o próprio verbete.
Pretendo examinar neste artigo alguns aspectos teóricos implicados na recente emergência
da violência como objeto distinto na literatura sociológica e os problemas que essa distinção
coloca para os estudos que, especialmente nos últimos 10 anos, vêm enfrentando o tema como
passível de merecer tratamento teórico específico e diferenciado no âmbito da teoria social.
Como se sabe, um movimento recente de livros e artigos, nos últimos 10 a 15 anos, vem
tentando transformar a violência em tópico distinto e merecedor de investimento próprio, digno
da teoria social. Enfrentar as dificuldades analíticas envolvidas tem também interessado a
pesquisadores de diferentes áreas. Ainda que admitam as dificuldades conceituais envolvidas,
esses estudos continuam a insistir na fecundidade de tomar a violência como passível de
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tratamento teórico. Referi-me, também, há uns 15 anos, em minha tese de doutorado, à escassez
teórica nos usos da violência nos discursos sociológicos ao intitular um dos capítulos iniciais com
a expressão: “Conceitos exíguos, objeto pleno” (MISSE, 1999, pp. 25-42). No entanto, como
tratarei mais à frente, não creio que se possa construir o conceito abstraindo todas as suas formas.
Quando usamos a palavra “violência”, é o sentido da agressão física o que primeiro nos vem
à cabeça, especialmente o de uma ação unilateral que envolve a possibilidade ou a ameaça de
resultar em ferimentos ou em morte. Não parece haver dúvidas quanto à ligação semântica entre
violência e agressão (física ou moral), e esse é o sentido que parece ser amplamente consensual e
evidente. Mas, para a sociologia, que nasceu discutindo os determinantes sociais dos conflitos,
dos crimes e da guerra, a questão sempre foi como isolar do conceito os determinantes sociais da
interação agressiva ou que produz efeitos opressivos. Como separar, por exemplo, a dominação
de classe ou a coercitividade policial do Estado do conceito de violência? Toda a discussão, aqui,
está contaminada por uma problemática moral, do mesmo tipo daquela que pode recorrer à
violência “justa” se lhe parecer que é o caso de fazê-lo.
Escrevi há 15 anos (MISSE, Idem) que a violência não era um conceito e, dificilmente, viria
a sê-lo, por uma razão que me parece ainda hoje muito clara: é uma categoria que, quando deixa
de ser meramente constatativa (e, neste caso, polissêmica), torna-se necessariamente
performática, normativa e acusatorial. Quase sempre não descrevemos nem explicamos nada
quando recorremos, em nosso cotidiano, à palavra “violência”. O uso da palavra acusa um
acontecimento e no mesmo ato reclama-lhe uma ação contrária. Se o uso propõe a ação violenta,
logo uma justificativa lhe é cobrada. Na modernidade, ninguém pode gostar da violência: é um
anátema para quem a elogia ou para quem busca apenas compreendê-la, sem condená-la. Por
recobrir um sentido negativo, sua polissemia potencializa a impossibilidade de contê-la em um
enunciado do tipo constatativo. O mais das vezes, é usada em enunciados performativos, mesmo
em pesquisas e estudos sociológicos.3
Outra questão importante quando se trata de violência é a de suas diferentes formas e do
problema da equivalência. Todas as formas de violência são equivalentes ou não? Estruturas de
violência equivalem à violência individual? Há violência justa e violência injusta, assim como se
pode discutir se há guerras justas e guerras injustas, como fez Michael Walzer? Mais do que isso: se
o adjetivo “violento” pede um sujeito, o que pede o substantivo “violência”? Como fazer o
substantivo operar analiticamente sem que ele seja tomado, ainda que impensadamente, como
sujeito? “A violência tem tais características”, “a violência é isso”, a “violência é aquilo”, “a violência
tomou conta da cidade”, “a violência chegou ao nosso bairro”... Em todas essas acepções há uma
sugestiva reificação de processos sociais que incorporam agressão física ou moral, opressão, excesso
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de poder, crueldade – enfim, uma pletora de ações negativas que parecem ter em comum o que vem
sendo chamado, atualmente, de desumanização do outro, mas cujo sentido nuclear é a de um
atentado à integridade física ou à dignidade de um ser, e não apenas o ser humano. Ora, é este
mesmo movimento intelectual o que está definindo a violência como uma substância, com suas
múltiplas manifestações ou como uma enteléquia com seus inúmeros avatares, por oposição a uma
outra substância, idealizada como a “boa humanidade” ou o “bem comum”.
Em seu muito bem argumentado livro, Willem Schinkel relaciona os paradoxos contidos nos
variados usos do termo “violência” nas ciências sociais. A lista de dez antinomias é
impressionante:
A violência rompe com a ordem social ou a violência é constitutiva da ordem social? A violência é um
problema social ou a violência é uma solução padronizada para os problemas sociais? A violência é uma
forma puramente destrutiva da socialidade ou a violência é uma forma positiva de socialidade que faz as
pessoas se unirem? Violência é uma forma de lidar com a contingência ou a violência é uma forma
importante e fonte de contingência? Violência rompe com as normas ou a violência reforça as normas?
Violência é uma situação visível ou a violência é um processo oculto? A violência do Estado é reativa em
relação à violência ilegítima ou a violência do Estado é ativa em distinguir violência legítima e ilegítima?
Violência é um processo social significativo, cujo sentido é posto em um referente externo ou a violência é
um processo social caracterizado, exclusivamente, pela autorreferência? A violência repele ou a violência
atrai? A violência é um meio para um fim ou é um fim em si mesmo? (SCHINKEL, 2010, p. 15)
A questão
A questão que vem sendo tratada nos últimos anos em livros e artigos parte de uma
constatação: como pôde a violência não ter se tornado um dos tópicos mais importantes da teoria
social até agora? Como explicar que a violência só veio a merecer tratamento específico por parte
de sociólogos, antropólogos e cientistas políticos nos últimos 10 ou 20 anos, quando sabemos que
Karl Marx, no Manifesto comunista (MARX e ENGELS, 1998[1848]), a havia considerado como
“parteira da história” e Max Weber a tivesse em alta conta em seu conceito do Estado moderno?
Esses são temas tão diversos que podem incorporar diferentes modalidades de violência: os
conflitos sociais, os chamados comportamentos desviantes, as criminalidades, as guerras, a
violência política, o terrorismo, a exploração colonial, a opressão nas relações de trabalho ou o
imperialismo ocupam alguns dos principais comitês de pesquisa das associações científicas
internacionais nas ciências sociais, mas jamais a violência, esse substrato presente em todas elas,
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ganhou estatura teórica própria e tratamento diferenciado. É como se a violência tivesse um
significado unívoco ou óbvio, que dispensasse construção conceitual. Mesmo quando se
reconhecia seu caráter polissêmico, a violência continuava a operar como algo taken for granted
nos discursos sociológicos. Quando compareceu em alguns ensaios, ao longo dos últimos 120
anos, a violência foi geralmente tratada de forma “naturalizada” como agressão letal unilateral e
intencional, seja como principal contraponto ao poder ou como excesso de poder (Hannah
ARENDT, 2009[1970]), ora como sua extensão (Max Weber), ora em oposição à linguagem (Paul
RICŒUR, 2008) ou à ação comunicativa (Jürgen HABERMAS, 2012[1981]), seja em contradição
com a civilidade (Norbert ELIAS, 1993[1939]; 2011[1939]), mas sempre sob forma negativa e
contrafactual. Não é surpreendente, por isso mesmo, essa ausência da violência como um dos
tópicos centrais da teoria social no século XX. O que pode haver de sintomático nessa falta?
Examinaremos, a partir das contribuições de alguns autores, o crescente investimento teórico
que, nos últimos anos, vem sendo feito para constituir a violência como objeto digno da teoria social.
Nesse sentido, minha própria contribuição vem juntar-se a esta apresentação, à medida que a tomo
como meu ângulo de leitura e de crítica dessas contribuições. Resumidamente, desenharei alguns
de seus aspectos mais tortuosos, que colidem com as contribuições aqui tratadas.
Se antes não lhe havia um lugar garantido nos tratados e compêndios de sociologia e
antropologia, subsumida a temas como conflito social, anomia e crime ou escandida para outras
disciplinas como a psicologia, a psicanálise e as neurociências, agora começa a tornar-se cada vez
mais difundida a necessidade, para a pesquisa empírica, de uma qualificação conceitual dos usos
da palavra violência ou, mesmo, da possibilidade teórica de uma sociologia ou de uma
antropologia da violência que enfrentem a complexidade conceitual do termo.
Não se pode dizer que, por lhe faltarem teorias sociológicas adequadas, o tema da violência não
seja propriamente sociológico. Os chamados “pais fundadores” referiram-se em vários contextos a
dimensões da violência (embora não necessariamente com esse nome), mas jamais a abordaram
como um tópico a merecer tratamento teórico específico ou mesmo a tomaram como objeto distinto
a ser construído. No mais das vezes, usaram o termo no seu sentido comum, seja para designar o
recurso direto à força física e às suas extensões técnico-sociais (força muscular disciplinada, armas,
exércitos, polícias, forças armadas) ou suas performances sociais (conflitos armados interpessoais,
intergrupais, guerras, rebeliões, revoluções, atentados, genocídios etc.), seja para referir-se a
determinadas formas de configuração da dominação de um indivíduo ou um grupo social por outro
(escravidão, subordinação, exploração etc.), como em Marx, Weber ou Simmel, ou às formas
simbólicas de reprodução da coerção social em diferentes instituições (como em Durkheim).
Nenhum desses clássicos, entretanto, considerou necessário enfrentar, teoricamente, o tema da
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violência para além da esfera normativa de senso comum em que está submerso. É possível que a
sensibilidade teórica para o tema ainda não tivesse alcançado a importância que parece ter ganhado
posteriormente, com a consolidação dos regimes democráticos na Europa ocidental e nos EUA, de
um lado, e, do outro, com a trágica experiência das duas guerras mundiais, do totalitarismo, do
Holocausto e da ameaça nuclear durante a Guerra Fria. Não é exagerado dizer, e é disso que tratarei
aqui, que o sentido da “violência” é uma função da expansão da sensibilidade moral que lhe define
esse mesmo sentido. O que parece ser uma tautologia não o é, pois que a violência se torna, nas
democracias contemporâneas, uma forma central de acusação social.
A expansão do sentido negativo da violência
Se a violência interpessoal passara, principalmente após o século XVII, a ser criminalizada e
processada judicialmente por um Estado que, progressivamente, aumentava o seu monopólio da
violência legítima, por outro lado a violência coletiva, especialmente no caso das guerras, começa
a tornar-se um problema com o movimento pacifista do início do século XX. A repugnância moral
e a rejeição política que se desenvolverá sob a forma moderna da violência começa com a Grande
Guerra, mas, ainda no intervalo entre guerras, o apelo legítimo à violência continuara em pauta,
principalmente nas agendas revolucionárias e contrarrevolucionárias e no chamado patriótico ao
combate. A disputa pelas condições de sua possibilidade como recurso político legítimo continua
até hoje, ainda que perdendo sustentabilidade crescente na chamada opinião pública.
Os livros revolucionários de Engels (2015[1878]; 1979[1888]), Lênin (2007[1917]) e Sorel
(1993[1908]), de tão grande influência, publicados entre o fina do século XIX e a primeira década do
século XX, tratam, do mesmo modo, da violência como recurso para a mudança social com a mesma
naturalidade com que tratam também da via parlamentar. O problema que se colocava não era
exatamente uma problematização moral do uso da força, mas sua oportunidade ou eficácia, sua
necessidade ou não em um contexto em que a via parlamentar aparecia como incapaz de levar às
mudanças sociais preconizadas. No mesmo sentido que Clausewitz (2010[1832]) atribuiu à guerra,
como “a política por outros meios”, também aqui a questão da repugnância moral à violência – o tema
da nossa atualidade – não era a questão principal. A avaliação do recurso à violência era inteiramente
política quando se tratava da luta contra o colonialismo, como na obra de Frantz Fanon (2006[1961]) e
em sua repercussão na obra de Sartre, ou, antes, na luta pelo socialismo, como, aliás, ainda hoje, pelos
Estados e por entidades nascidas de alianças militares, como a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan). O mesmo se deu, inclusive, quando se tratava de criticar o terrorismo anarquista do início
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do século XX, interpretado como ineficaz e contraproducente, mas, raramente, como moralmente
reprovável. O que na violência interpessoal ou intergrupal produzia maior reação moral era o que já
estava sendo criminalizado na lei. O conflito podia (ou até mesmo devia) incorporar o recurso à
violência como decisão racional, sob forte emoção ou justificadamente em defesa da honra, de ideais
ou da própria vida. A lei atenuava, em toda parte, esses casos. Mas, foi o reforço da violência estatal que
permitiu não só a criminalização da violência privada como também um fortalecimento sem
precedentes da capacidade de destruição em massa do Estado Moderno – as duas coisas não podem ser
separadas, embora uma tenda a ocultar a outra, como chamou a atenção Anthony Giddens (1990).
Para Weber, cuja sobriedade teórica é reconhecidamente antinormativa, a violência só se
torna um “problema” com a expansão do mercado e do capitalismo. Para ele, “o princípio do
mercado puro é antagônico ao pragma da violência” − o princípio puro do mercado é, nesse
sentido, justamente o contrário do ethos guerreiro.
Por isso mesmo, é preciso que a violência fique contida no Estado e que o ethos guerreiro
fique reservado e contido, exclusivamente, nas forças armadas. Mas, mesmo quando se
desenvolveu plenamente o monopólio legítimo da violência pelo Estado, o emprego privado da
violência física continuou sendo uma possibilidade de escolha legítima para a resolução de
conflitos interpessoais ou intergrupais, ainda que fora da lei. Já o recurso à violência para fins
políticos passou a buscar justificação ideológica, pleitear a sua legitimidade ou negar ao Estado
que a criminaliza legitimidade última para fazê-lo. Do mesmo modo, a violência estatal e as
guerras tornaram-se também objeto de disputa de legitimidade. Este é o ponto mais conhecido e
mais debatido sobre a violência desde o fim da última Grande Guerra.
Quantum de violências
A emergência do significado da guerra como violência (mesclando dimensões instrumentais
e expressivas) é dependente da emergência do protesto pacifista contra a guerra e do avanço, no
final do século XIX, mas, principalmente, na primeira década do século XX, de uma forma de
humanismo político desconhecida das gerações que lutaram pela afirmação dos Estados nacionais
nos séculos XVIII e XIX. É absolutamente anacrônico estender para antes de meados do século
XIX o significado contemporâneo de violência que as guerras atuais passaram a representar para
a maioria dos povos. Como bem observou Norbert Elias (1993[1939]; 2011[1939]), foi a rejeição
crescente a práticas de coação física e humilhação moral pelas instituições sociais (família, escolas,
quartéis, prisões, asilos etc.) que as construiu, ao mesmo tempo, como práticas violentas, como
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violência em um sentido negativo. O significado de violência não lhes foi anterior, mas foi sendo
produzido à medida que tais práticas foram acompanhando o sentido de uma negatividade
crescente das guerras e do uso até então “natural” e legítimo da guerra e da resolução de conflitos
pela força. A questão moral então disputada não era sobre o emprego da violência: era sobre quem
tomara primeiro a iniciativa de atacar o outro ou sobre a justificativa desse ataque. Era a iniciativa
da ruptura que passava a ganhar sentido negativo, preparando a passagem semântica para uma
definição da violência como agressão unilateral.
A difusão do sentido de “violência” para um número cada vez maior de ações e
comportamentos acompanha o mesmo processo civilizatório que se definiu como de diminuição
da violência. Nesse aspecto, e paradoxalmente, ao contrário do argumento de Elias, hoje, há mais
“violência” que no passado, simplesmente porque hoje há muito mais ações e práticas interpretadas
ou rejeitadas moralmente como violência do que no passado. Como grande parte do que é
considerado socialmente violência passou a ser, na modernidade, criminalizado pelo Estado
(detentor legítimo do monopólio do uso da violência), basta comparar os códigos penais de um ou
dois séculos atrás com os de hoje para se verificar que, hoje, há muito mais “violência” que no
passado. Não é por acaso que as várias “histórias da violência” publicadas até agora, como a de JeanClaude Chesnais (1986), a de Ted Gurr (1989), a de Spierenburg (2008), a de Steven Pinker (2012)
– unânimes em reconhecer o declínio da violência na modernidade − tratam unicamente de
homicídios, e, geralmente, abstraindo-os de guerras, revoluções e regimes totalitários. Sinisa
Malesevic, que publicou, recentemente, um importante livro sobre o tema, Sociology of War and
Violence (2010), chama a atenção para os paradoxos envolvidos nos argumentos e para as evidências
empíricas e historiográficas que contrariam, inclusive, parte das teses sobre o processo civilizatório
defendidas por Elias. Argumentos ainda mais ásperos são sustentados contra a tese do declínio da
violência na modernidade, por sociólogos reconhecidos internacionalmente, como Zygmunt
Bauman (1998) e Michael Mann (2004). Para eles, o genocídio, por exemplo, é um produto direto
de condições que só passaram a existir na modernidade.
Três dossiês publicados nos últimos anos buscam, pela primeira vez de forma sistemática,
enfrentar a questão da possibilidade de uma teoria social da violência, com base em contribuições
de autores que publicaram livros sobre o tema nos anos recentes. Um número especial do
International Journal of Conflict and Violence, de 2009, reúne sete artigos de destacados sociólogos
em torno da questão: “É possível uma teoria geral da violência?”. No mesmo ano de 2013, dois
números especiais, um da Current Sociology, publicação oficial da International Sociological
Association, e outro do European Journal of Social Theory, dedicaram-se a indagar sobre a
possibilidade de a violência vir a ocupar um dos principais tópicos da teoria social contemporânea.
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A criminalização da violência
Um primeiro problema que pode ser apontado é a necessidade de separar a discussão
conceitual da violência daquela que se processa há um século na criminologia sobre as “causas”
do crime. O aumento contemporâneo da sensibilidade moral à violência foi responsável pela
criminalização de praticamente tudo que, na interação social, pudesse ser interpretado como
violência, de tal modo que, com exceção da guerra, no seu sentido convencional – e isso é
sintomático e merece atenção conceitual – e do suicídio, hoje praticamente não há violência que
não seja criminalizável, e mesmo crimes não violentos são, muitas vezes, representados
socialmente como violências.
Quando se diz que todas as violências, com exceção da guerra e do suicídio, são, hoje,
criminalizáveis, o sujeito da criminalização, que é o Estado, fica subentendido e oculto porque
é reconhecido amplamente como o detentor legítimo do processo de criminalização. Ocorre
que, para efetivar a criminalização, o Estado terá que usar da violência, uma violência legal, uma
violência que, sendo legítima, é justa ou assim é representada. Nesse sentido, a contenção da
violência só pode ser feita por outra violência. A ideia de que o contrário da violência é a paz (a
pacificação das relações sociais) oculta a enorme necessidade de violência, por parte do Estado,
para conter a “outra” violência − a ilegítima, a ilegal, aquela contra a qual o Estado detém o
monopólio da forma legítima. Há um problema, entretanto, em toda essa construção, que passa
despercebido quase sempre: a paz ou a pacificação depende do exercício de uma violência
contra outra, não importando agora se uma é justa e a outra não, pois é da disputa dessa
legitimidade que se trata quando se discute o conceito de violência. A sua polissemia decorre
de um conflito de legitimação quanto a “qual” violência estamos considerando quando
selecionamos um de seus significados a expensas do outro.
Outro problema que se coloca para um possível conceito de violência e que decorre do
problema anterior é saber se o conceito se refere a uma ação social (e, nesse sentido, pode
ser tão unilateral quanto ao sujeito da ação: um indivíduo ou grupo) ou se refere a uma
interação sem unilateralidade possível, já que não pode ser reduzido ao indivíduo, cujo
comportamento passa a ser seu efeito, seu produto. Na interação, a violência não está no
indivíduo, mas na ruptura de uma expectativa comum aos participantes da interação. E o
problema é acentuado se nos perguntamos se a violência não estaria presente não apenas
na interação face a face, mas nas relações sociais estabilizadas por essas expectativas e que
se reproduzem como uma estrutura de dominação que só se estabiliza porque ganhou
legitimação, isto é, foi capaz de convencer a todos os seus participantes de que é “justa”.
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Aqui, enfrentamos um dos problemas mais árduos da teoria social: saber se todos os
participantes que são competentes na interação o são também no plano das relações sociais
estabilizadas sob dominação legítima. E, finalmente, saber se o fato de ser legítima retira
dessa dominação qualquer conteúdo de violência, tornando-a consensualmente aceita.
O modo pelo qual se lida com esses problemas conceituais que envolvem a violência definirá
o rumo que a teoria irá percorrer, se aceitará conformar-se a um sentido estrito para o termo, no
limite extremo inferior restringindo-o à agressão física intencional (a outros ou a si), tratando-a
como ação social e, portanto, partilhando com o processo de incriminação a busca de seu sujeito
como um indivíduo ou um grupo tomado em si mesmo. Essa direção obrigará a teoria a distinguir
entre conflito e violência e também a distinguir poder e violência, criminalizando todas as formas
de violência, exceto a violência legítima do Estado no controle interno e na defesa externa da
sociedade. Ou se, no outro limite extremo, preferirá pôr a violência nas relações sociais
estruturadas ou estabilizadas, de modo que a própria legitimidade da dominação caia sob o
mesmo influxo argumentativo que envolve e iguala opressão, coerção e agressão – postos como
condição de reprodução da estrutura social – que, por se ocultar na ideologia que fundamenta o
direito e o Estado, exclui qualquer legitimidade aos demais e possíveis e potenciais portadores da
violência. Essa direção obrigará a teoria a recusar a atribuição de um sentido estrito ao termo
violência e a abordá-lo de um modo tão abrangente que o tornará incapaz de ser criminalizado,
seja como estrutura, seja como agência e rebelião. Entre os dois, no plano da interação face a face,
restringe-se o conceito ao sentido da agressão física, contingente ou organizada, mas se atenua a
dificuldade quanto à legitimação da violência, tomando como unidade de análise não mais o
indivíduo, mas as reações interativas sob determinados contextos, retirando dele o seu potencial
polissêmico. Essa direção tratará a coercitividade das relações sociais estruturadas como “suaves”
se comparadas à violência como agressão física na interação face a face.
A disputa do conceito
A disputa do conceito aparece com clareza retórica e argumentativa já no próprio recorte do
objeto. Um exemplo é o esforço de Michel Wieviorka para delimita-lo em seus livros sobre a
violência publicados nos últimos 10 anos (WIEVIORKA, 2004; 2008). Ele insiste que é necessário
tratar a violência no sentido estrito de agressão física intencional, interpessoal ou coletiva (mesmo
em suas extensões técnicas). O Estado fica fora. Restringir a reconhecida polissemia do termo ao
seu sentido mais usual e de senso comum, o mesmo encontrável na literatura em geral, tem a
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vantagem de evitar os percalços que o significado mais abrangente tem representado para a
pesquisa empírica nas ciências sociais. Ao fazê-lo, entretanto, sustenta-se que não há equivalência
entre os conceitos de conflito e de violência. Ora, que o sentido dos dois termos não seja o mesmo,
já se sabia. Mas, aqui, a questão é outra: trata-se de negar a equivalência de grandezas, já que, para
ele, os dois conceitos não só não são equivalentes como até mesmo se opõem, provendo de duas
lógicas distintas, inteiramente contrárias.
Ele afirma que é preciso reconhecer a necessidade de um novo paradigma da violência,
considerando as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais ocorridas mundialmente,
principalmente após os anos 1970 do século XX. O Estado contemporâneo estaria perdendo cada
vez mais (se é que alguma vez o teve completamente) o monopólio legítimo do recurso à violência.
A violência como recurso político, que, para ele, já havia perdido legitimidade na experiência social
democrática, estaria refluindo, agora, em seu sentido extremo, para o terrorismo, o crime
organizado, as rebeliões juvenis impulsionadas pelo ódio difuso e pelo ressentimento e para a
delinquência cotidiana. Uma violência sem sujeito ou aniquiladora do sujeito.
Para sustentar sua posição, ele carrega a mão em uma definição universalista e típico-ideal
de violência como uma violência sem limites e sem fim, violência pura, incompreensível, violência
excessiva, incapaz de justificação para melhor contrapor a um conceito de conflito – que é, ao
contrário, matizado, neutralizado e atenuado típico-idealmente, muito próximo da noção de
competição como processo social. É evidente que assim como o assassinato encerra uma relação
social, ao lhe pôr fim, também a violência que aniquila o outro extermina o conflito. Mas, e a
violência que não põe fim ao outro ou que não extermina o conflito? Essa violência se opõe ao
conflito ou é apenas uma de suas formas? Por que a violência dissolveria necessariamente o
conflito se muitos conflitos dependem de algum grau de violência para se desenvolverem? Nem
todo conflito manifesta-se como violência, mas são muitas as formas de violência que cabem no
conceito sociológico de conflito, já que a violência não é apenas ação, ou ação unilateral, mas
relação social, na qual são construídas as posições de perpetrador e vítima, o que vem a constituílas em uma unidade de análise. Isolar completamente a violência do conflito só é possível se
fixarmos a violência em seu extremo, no terror absolutamente unilateral e incompreensível. Por
que fixar o conceito aí, por que torná-lo tão extraordinário?
Toda a originalidade da argumentação de Wieviorka está baseada na oposição entre a
violência coletiva própria à sociedade industrial, que poderia emergir do conflito social
estruturado (a luta de classes, por exemplo), e a violência urbana, que nasce da desestruturação
do conflito coletivo entre capital e trabalho a partir do processo de desindustrialização dos anos
1970, dando margem ao surgimento do terrorismo de extrema esquerda e, depois, às rebeliões
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juvenis e à delinquência difusa dos anos 1980 e 1990, bem como ao reforço direitista do racismo.
É esta segunda forma de violência, difusa e radical, que desconhece a negociação ou o acordo que
interessa ao autor e o faz propor as hipóteses que desenvolve em seu livro, sob o desafio de um
novo paradigma da violência. É também este novo tipo de violência, e as novas formas de
terrorismo que crescem no século XXI, que parecem interessar à atual emergência de estudos
teóricos sobre a violência nos últimos anos.
Para desenvolver a análise da violência sob o novo paradigma, Wieviorka vê-se obrigado a
abstrair a violência das relações sociais estruturadas ou da interação social face a face para situála nesses indivíduos extremados, nessas subjetividades antissociais, tratadas típico-idealmente
como antissujeitos, não sujeitos, sujeitos inacabados. Será essa a melhor forma de compreender
quem não é, ou não pôde ser, ou não quer ser sujeito desse tipo de mundo? A unilateralidade fica
evidente quando se pergunta se não haveria violência na produção do sujeito violento ou, para
usar o meu termo, se é possível pensar sujeitos violentos como não sujeitos ou antissujeitos sem
recair no mesmo processo social que produz a sujeição criminal (MISSE, 1999). A dose normativa,
nesse caso, a meu ver, ficou muito alta.
Em conferência recente na Universidade de Brasília, publicada no mais recente número de
Sociedade e Estado, Wieviorka (2015) reconhece o perigo essencialista de sua tipologia de sujeitos
e antissujeitos e se move em uma direção atenuadora ao enfatizar os processos de subjetivação e
dessubjetivação. Ao fazê-lo, entretanto, não cuida de abandonar alguns de seus pressupostos,
obrigando-se a permanecer no mesmo circuito argumentativo de prós e contras que levou Randall
Collins a criticá-lo em artigo publicado há alguns anos (2011).
Coincidentemente ou não, mais ou menos pela mesma época, começaram a aparecer vários
estudos, no mundo anglo-saxão, propondo abordagens teóricas para a incorporação da violência
na agenda de tópicos de tratamento sistemático da teoria social. Alguns deles se inspiram em Carl
Schmitt e mantêm vivo o debate sobre o caráter essencialmente político das relações entre conflito
social e violência, de uma maneira que se afasta bastante das teses de Wieviorka, especialmente
sobre a centralidade da subjetividade na definição da violência para a teoria social. Outros
buscam, como é o caso de Randall Collins (2008), desenvolver sua abordagem no plano da
microssociologia e da interação face a face.
Collins, como Wieviorka, tem por objeto a violência física, direta, interpessoal. Também
a distingue do conflito, que é um conceito mais abrangente, mas considera que toda violência
é uma forma de conflito, e haveria gradações de situação que levariam o conflito a se tornar
um confronto violento, embora não necessária ou automaticamente. Diferentemente de
Wieviorka, entretanto, sua abordagem não parte do sujeito ou do ator, mas da interação, que
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ganha, assim, autonomia frente aos determinismos sociais e culturais que produziriam um
indivíduo violento. Critica, assim, o que chama de “mitos sobre a violência”, geralmente,
reproduzidos pela mídia de entretenimento, como pensar que a luta é contagiosa, envolvendo
crescentemente outras pessoas. Seu principal argumento é que, ao contrário, escolher a
violência não é algo fácil, mas difícil, e as pessoas tendem a se afastar quando ocorre uma luta
ao invés de entrar nela, todos lutando contra todos. A exceção seria somente quando, na
multidão, há dois grupos de identidade antagonistas, como nas torcidas de futebol.
Outro mito é o de que lutas ou combates demoram a acabar, duram muito. Ao contrário,
elas duram pouco, são curtas, duram segundos − no máximo poucos minutos − ao contrário do
que aparece em filmes, com lutas intermináveis. A imensa maioria de assassinatos e assaltos com
armas letais consiste de uma ou mais pessoas atacando rapidamente uma pessoa desarmada. As
exceções ocorrem quando a luta é circunscrita, não chega a ser séria ou se sabe que há salvaguardas
que limitam seu agravamento, como nas brigas entre crianças ou quando há grande disparidade
de forças entre os lados, mas, nesses casos, não há luta, e sim massacre ou punição.
E ainda também como Wieviorka, Collins não aceita incluir nem o Estado nem a “violência
simbólica” de Bourdieu em seu objeto, considerando-o um recurso retórico para tratar de um outro
universo de questões. Critica Bourdieu por não distinguir o que é próprio das situações violentas
(que são raras) que envolvem medo, tensão e até a emergência de pânico, das que envolvem
“violência simbólica”, que são moderadas, livres de medo, sem confronto, altamente repetitivas, sem
contingências situacionais e que nada têm de similar com a dinâmica dos confrontos violentos.
Aqui, mais uma vez, o recorte do objeto define o viés da construção conceitual.
Dizer que a violência é difícil e não fácil de acontecer só tem sentido quando se trata
da violência no conflito interpessoal. Mesmo assim, entra em conflito com o que vem
acontecendo na América Latina desde os anos 1980 ou com o que a África vem
experimentando antes e depois do processo de descolonização. Nesse sentido, parece que a
abordagem microssociológica de Collins, ao abstrair a dimensão cultural da violência e os
processos de aprendizagem que atenuam, agravam ou justificam o recurso à violência seja
em conflitos interpessoais, seja em conflitos coletivos, parece estar etnocentricamente
construída para sociedades “pacificadas” no sentido eliasiano, isto é, aquelas em que a
internalização do autocontrole foi um processo, em geral, bem-sucedido e complementado
plenamente, para as exceções, pelo monopólio legítimo da violência pelo Estado. No
entanto, são essas mesmas sociedades as que empreenderam no passado ou empreendem,
atualmente, os principais conflitos violentos, as guerras em escala global.
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Como se uma coisa não dependesse da outra, como se a potestas do Estado não dependesse
do controle da violentia civil, o argumento de Collins é válido, mesmo para essas sociedades,
apenas na condição de se abstrair o conflito coletivo, a violência estatal e a violência da estrutura
social. O que fazer com as 13 milhões de vítimas da Primeira Guerra ou as 55 milhões de vítimas
da Segunda Grande Guerra? As 120 milhões de vítimas de guerras do século XX constituem cerca
de dois terços de todas as baixas em guerra dos últimos 500 anos. Elas entram em qual conceito
de violência? Como lidar conceitualmente com isso? O argumento de Collins de que os soldados
participam de toda essa violência forçados, ou com medo, e que se beneficiam da distância social
em relação ao inimigo para matar me parece válido, mas não suficiente para resolver o quantum
de violência em sociedades relativamente civilizadas, no sentido de Elias. Se a violência é,
normalmente, evitada no cotidiano, por que os seus números são tão altos? Só há perpetradores
especializados em violência no balanço desses números?
A insistência de alguns autores sobre o caráter abrangente e não restrito que uma teoria
da violência deve ter não partilha sempre os mesmos argumentos, mas, geralmente, enfrenta
uma larga oposição. O melhor exemplo é a reação que o conceito de “violência simbólica”, de
Pierre Bourdieu, despertou em muitos setores. Para estes, a violência física sempre será aquela
que oferece o modelo extremo e o ponto de referência a partir do qual é possível pensar as
demais formas de violência e sua relação com o poder. O mesmo tipo de reação verifica-se em
relação às postulações de Michel Foucault quando este busca afirmar a dimensão criativa e
positiva, e não apenas negativa, do poder e da violência. Em Il Faut Défendre la Société, seu
curso de 1976 no Collège de France (FOUCAULT, 2010[1977]), ele retifica sua hipótese de
uma sociedade disciplinar generalizada para reconhecer, na biopolítica, a articulação das
técnicas de disciplina com os dispositivos de regulação social que têm por objeto as
populações através da governamentalidade. Ao buscar a genealogia da conexão moderna
entre violentia e potestas, Foucault abre um horizonte completamente novo de questões que
envolvem as “formas de violência” e que deixarão para trás qualquer possibilidade de isolar
conceitualmente a violência apenas nos conflitos interpessoais ou na agressão intencional
interindividual sem que isso tenha maiores consequências teóricas.
É no bojo da crescente produção sobre o conceito de violência que uma contrarreação ao que
é percebido como uma sociologia da ordem, uma sociologia aliada do Estado capitalista, vem
ganhando terreno nos últimos anos, como, por exemplo, no livro de Slavoj Žižek Violence: Six
Sideways Reflections, de 2008. Para ele, uma extensão do conceito de violência baseia-se,
fundamentalmente, no argumento de que há um vínculo inextrincável entre poder (dominação),
violência e estrutura social. Abstrair desse vínculo a violência física intencional, interpessoal ou
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coletiva teria o efeito de ocultá-lo e, por conseguinte, de produzir na análise um viés ideológico,
cujo efeito poderia também ser interpretado como uma forma de violência. Esse argumento, que
vincula a própria ciência social com a violência, é desenvolvido, principalmente, pelo sociólogo
holandês Willem Schinkel em seu importante – e aqui já citado – livro Aspects of Violence: A
Critical Theory, publicado em 2010.
Após examinar com cuidadosa erudição e embasamento teórico o conjunto de problemas
que a construção de um conceito de violência impõe à teoria social, Schinkel propõe-se a oferecer
uma alternativa. Primeiramente, defende que a violência, como o pato/lebre de Wittgenstein, não
tem uma única dimensão, mas várias. Esses vários aspectos ou formas da violência ocultam-se
mutuamente; quando um emerge, os outros se escondem, e não é possível ver todos os aspectos
da violência ao mesmo tempo. Por isso, propõe o conceito de trias violentia para abordar aquilo
que ele vê como sendo o único horizonte ontológico comum a todos esses aspectos: a violência
como redução do ser. Mesmo assim, não aceita que essa construção se apoie em pressupostos
humanistas-iluministas que, a seu ver, ilusionam a análise com o compromisso implícito de que
a violência possa um dia ter fim. Não é possível resumir aqui a original contribuição de Shinkel.
Entretanto, o que fica patente de qualquer modo em seu extraordinário esforço teórico-crítico é
que ele reconhece que o conceito de violência na teoria social incorpora, necessariamente, além
de um significado estendido, que abarca a violência do Estado e a estrutura social – a potestas –,
tal como já antecipara Johann Galtung (2004) há muitos anos, a questão de a ciência social estar
a performar também a violência na linguagem e nas opções conceituais e de pesquisa que pratica.
Seja como for, não creio que nós, aqui no Brasil, estejamos efetivamente engajados nessa
conjuntura teórica que procura entronizar a violência como um dos principais tópicos da teoria
social contemporânea. Os poucos trabalhos teóricos produzidos entre nós nessa área temática
estão, de modo geral, sob a influência de Bourdieu, Elias e Foucault, mas as pesquisas empíricas
seguem tratando a violência no seu sentido de senso comum, sem maiores problematizações e
quase sem referências a essa literatura mais recente, que está problematizando o campo. Autores
como Machado da Silva (1993), Maria Stela Grossi Porto (1999) e eu mesmo temos preferido –
cada um à sua maneira – tratar a violência não como um conceito, mas como representação
social, como parte do objeto. É uma solução pragmática, sem dúvida, mas que tem a vantagem
de não buscar fechar em um significado unívoco ou naturalizado os usos da violência na
pesquisa empírica. No entanto, a enorme presença da violência no cotidiano das cidades
brasileiras tende a carrear o sentido de volta ao senso comum, obrigando, muitas vezes, o
pesquisador a ginásticas pouco teóricas para se fazer entender.
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Em uma linha que pode encontrar afinidade com as questões de Willem Schinkel, tenho
sustentado não um conceito de violência, que acho que não será, de qualquer modo, muito útil
para a pesquisa empírica, mas o reconhecimento do caráter mais performático que constatativo
dos usos que dela são feitos. Prefiro insistir no conceito de “acumulação social da violência” por
meio do qual a violência, sem deixar de ser uma representação social, comparece em seu triplo
sentido de práticas representadas e acusadas como de violência interpessoal, de violência estatal e
de coercitividade da estrutura social, podendo vir a constituir uma causalidade circular
acumulativa, pelos agentes sociais e práticas que desempenham, de tempos em tempos, como
procurei mostrar em meus estudos sobre o Rio de Janeiro no século XX. Evidentemente, as
práticas sociais representadas univocamente como violência podem ser desdobradas em escalas
de gravidade e em conceitos menos polissêmicos, como conflito social, controle social,
desigualdade social, agressão física, guerra e assim por diante, sem terem que, necessariamente,
submeter-se a uma concepção única e consensual do que seja violência.
Quando disse, na abertura deste texto, que suspeitava que a violência é um conceito moderno
e ainda em construção e que não fazia sentido buscar o seu significado no passado clássico, quis
chamar a atenção para o que há de inacabado e ideológico nas tentativas de se capturar um sentido
unívoco ou universal para a violência, especialmente quando esse sentido é fundamentado
normativamente. Entretanto, pode-se constatar que o processo pelo qual vem sendo discutida nos
últimos anos a questão da violência na teoria social aponta para uma radicalização do conceito,
seja como a feita por Wieviorka ou Collins, seja tal como na proposta, por exemplo, de Schinkel.
Seguindo, até certo ponto, uma linha filosófica pragmática contemporânea, que busca interligar
Wittgenstein e Heidegger, ele propõe um conceito forte e abrangente de violência como “redução
do ser”, o que lhe dá a forma de uma escala que vai da coerção positiva e inevitável própria ao
processo de socialização à interação social e à ruptura de resistências à mudança social até, no
limite, aos aspectos mais negativos e “incompreensíveis” da crueldade humana. A seleção de uma
dimensão, como em qualquer interação social, deixa todas as outras dimensões possíveis nos
bastidores. O risco que corre a ciência social, ao preferir uma dimensão a outra do conceito nessa
escala, é o de participar da violência seja no plano normativo da escolha, seja nos efeitos de
violência que pode produzir ou justificar.
Encerro este artigo advertindo que nele procurei, exclusivamente, apresentar os profundos
dilemas envolvidos na temática contemporânea da violência e os desafios que se impõem ao seu
tratamento na teoria social contemporânea. Pretendo prosseguir o exame dessas questões em
meus próximos trabalhos.
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Notas
1
Uma versão prévia deste artigo foi apresentada como conferência para promoção do autor a professor titular do
Departamento de Sociologia da UFRJ em 12 de junho de 2015.
2
O primeiro a chamar a atenção para os paradoxos envolvidos nesse exercício foi, seguramente, Yves Michaud, em vários
de seus livros. Ver Michaud (2012).
3
Sobre a diferença entre enunciados constatativos e performativos, ver Austin (1990).
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MICHEL MISSE (
[email protected]) é professor
titular do Departamento de Sociologia e do Programa
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(PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ, Brasil) e editor de Dilemas. É doutor e mestre em
sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro (Iuperj, Brasil, 1999) e tem graduação em
ciências sociais pela UFRJ.
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