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Violência e teoria social

2015, Dilemas Revista de Estudos de Conflito e Controle Social

Conferência por ocasião da promoção a Professor Titular de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Violência e teoria social1 Michel Misse Professor titular da UFRJ Recebido em: 22/06/2015 Aprovado em: 30/12/2015 Ao considerar a grande quantidade de referências recentes à ausência da “violência” como tópico específico da teoria social, este artigo propõe-se a mapear e discutir as dificuldades conceituais presentes nessa discussão, assim como a situar a “violência” como problema teórico no eixo de continuidade do trabalho do autor. Após repassar várias contribuições recentes, o texto explora a hipótese de que o conceito vem se alargando, com o avanço da sensibilidade pacifista e a repugnância às soluções de força – inclusive simbólicas – na vida cotidiana, o que torna ainda mais complicada a possibilidade de uma delimitação unilateral do conceito. Palavras-chave: violência, teoria social, dilemas conceituais, representação social, modernidade Considering the large number of recent references to the absence of ‘violence’ as a specific topic of social theory, the article Violence and Social Theory proposes to review and discuss the conceptual difficulties present in this discussion, as well as to situate ‘violence’ as a theoretical issue consistent with the author’s work. After reviewing several recent contributions, the text explores the hypothesis that the concept is being enlarged, because of the growing pacifist sensitivity and the repugnance to uses of force – symbolic force included - in everyday life, which makes even more complicated the possibility of unilaterally delimitate the concept. Keywords: violence, social theory, conceptual issue, social representation, modernity Introdução S uspeito que “violência” seja agora, e cada vez mais, uma palavra moderna. Ela não significava o que significa hoje, em toda a sua extensão semântica, antes de começos do século XX. Os sociólogos, os historiadores, os filósofos contemporâneos, geralmente, procuram no seu sentido etimológico a raiz de seu sentido moderno, exercício que pode se configurar inútil porque anacrônico2. No sentido antigo, violentia tinha significado mais neutro ou menos carregado, seja como vis – força, guerra –, seja como potestas – poder, domínio. Os dois significados andavam juntos sem maiores problemas. Suspeito também que, diferentemente do que pensam esses meus colegas, o sentido da palavra não só não deve ser encontrado antes da modernidade como se acha, na verdade, ainda em plena construção. As questões às quais a palavra, atualmente, faz referência nada mais têm a ver com o sentido antigo. Walter Benjamin (2011[1921]) talvez tenha sido o primeiro a chamar atenção para DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 46 o movimento de ocultação da violência que funda o direito, violência mítica, por meio das violências que o direito quer controlar e punir. A disputa do sentido de violência − se unicamente restrito ao exercício da força ou se abrangente, por exemplo, para alcançar o Estado e a estrutura social, como defendeu Galtung (2004; 2010) − é parte dessa construção moderna e dessa promessa de que a palavra seja entronizada em conceito. Construir um sentido para a violência, na atualidade, é parte inelutável de sua recusa ética. Em uma linha antecipada por Immanuel Kant, é parte da promessa moderna de “paz eterna”. É contra a violência, em qualquer de suas acepções, que se ergue a moderna construção do sentido da palavra. A própria palavra “violência” só aparece nas línguas latinas e anglo-saxãs entre os séculos XIV e XV, inclusive na língua portuguesa. Assim, Pascal pôde dizer, n’As provinciais (1954[1656-1657], p. 805), que as injúrias dirigidas a ele pelos jesuítas são “uma estranha e longa guerra, esta em que a violência tenta oprimir a verdade”. Para Willem Schinkel, autor de um dos mais importantes estudos da violência na atualidade, na linha da intuição de Benjamin, a oposição entre violentia e potestas acompanha a crescente legitimação do exercício da violência pelo Estado, empurrando o sentido negativo de violência para a sociedade civil. É a força da potestas que define crescentemente violentia. A disputa do sentido torna-se também uma disputa de legitimidade. Na língua alemã, a dubiedade da palavra Gewalt mantém-se ora significando “poder” ora significando “violência”, no sentido de forçar, agredir, coagir, impor, mas deixando espaço para que Macht signifique, sem dubiedade, também “poder” (SCHINKEL, 2010). Entretanto, ao definir Macht, já no século XX, Max Weber (1991[1921]) volta a reunir os dois sentidos: “toda probabilidade de impor a própria vontade, em uma relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. Mas, reconhece seu caráter amorfo. Na introdução ao Dictionnaire de la violence publicado em França há três anos (MARZANO, 2011), com mais de 1.500 páginas, Michela Marzano, sua organizadora, reconhece a multiplicidade de sentidos do termo, suas ambiguidades e dificuldades semânticas. Talvez por isso, o único verbete que falta na obra é “violência”: o dicionário inteiro é o próprio verbete. Pretendo examinar neste artigo alguns aspectos teóricos implicados na recente emergência da violência como objeto distinto na literatura sociológica e os problemas que essa distinção coloca para os estudos que, especialmente nos últimos 10 anos, vêm enfrentando o tema como passível de merecer tratamento teórico específico e diferenciado no âmbito da teoria social. Como se sabe, um movimento recente de livros e artigos, nos últimos 10 a 15 anos, vem tentando transformar a violência em tópico distinto e merecedor de investimento próprio, digno da teoria social. Enfrentar as dificuldades analíticas envolvidas tem também interessado a pesquisadores de diferentes áreas. Ainda que admitam as dificuldades conceituais envolvidas, esses estudos continuam a insistir na fecundidade de tomar a violência como passível de DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 47 tratamento teórico. Referi-me, também, há uns 15 anos, em minha tese de doutorado, à escassez teórica nos usos da violência nos discursos sociológicos ao intitular um dos capítulos iniciais com a expressão: “Conceitos exíguos, objeto pleno” (MISSE, 1999, pp. 25-42). No entanto, como tratarei mais à frente, não creio que se possa construir o conceito abstraindo todas as suas formas. Quando usamos a palavra “violência”, é o sentido da agressão física o que primeiro nos vem à cabeça, especialmente o de uma ação unilateral que envolve a possibilidade ou a ameaça de resultar em ferimentos ou em morte. Não parece haver dúvidas quanto à ligação semântica entre violência e agressão (física ou moral), e esse é o sentido que parece ser amplamente consensual e evidente. Mas, para a sociologia, que nasceu discutindo os determinantes sociais dos conflitos, dos crimes e da guerra, a questão sempre foi como isolar do conceito os determinantes sociais da interação agressiva ou que produz efeitos opressivos. Como separar, por exemplo, a dominação de classe ou a coercitividade policial do Estado do conceito de violência? Toda a discussão, aqui, está contaminada por uma problemática moral, do mesmo tipo daquela que pode recorrer à violência “justa” se lhe parecer que é o caso de fazê-lo. Escrevi há 15 anos (MISSE, Idem) que a violência não era um conceito e, dificilmente, viria a sê-lo, por uma razão que me parece ainda hoje muito clara: é uma categoria que, quando deixa de ser meramente constatativa (e, neste caso, polissêmica), torna-se necessariamente performática, normativa e acusatorial. Quase sempre não descrevemos nem explicamos nada quando recorremos, em nosso cotidiano, à palavra “violência”. O uso da palavra acusa um acontecimento e no mesmo ato reclama-lhe uma ação contrária. Se o uso propõe a ação violenta, logo uma justificativa lhe é cobrada. Na modernidade, ninguém pode gostar da violência: é um anátema para quem a elogia ou para quem busca apenas compreendê-la, sem condená-la. Por recobrir um sentido negativo, sua polissemia potencializa a impossibilidade de contê-la em um enunciado do tipo constatativo. O mais das vezes, é usada em enunciados performativos, mesmo em pesquisas e estudos sociológicos.3 Outra questão importante quando se trata de violência é a de suas diferentes formas e do problema da equivalência. Todas as formas de violência são equivalentes ou não? Estruturas de violência equivalem à violência individual? Há violência justa e violência injusta, assim como se pode discutir se há guerras justas e guerras injustas, como fez Michael Walzer? Mais do que isso: se o adjetivo “violento” pede um sujeito, o que pede o substantivo “violência”? Como fazer o substantivo operar analiticamente sem que ele seja tomado, ainda que impensadamente, como sujeito? “A violência tem tais características”, “a violência é isso”, a “violência é aquilo”, “a violência tomou conta da cidade”, “a violência chegou ao nosso bairro”... Em todas essas acepções há uma sugestiva reificação de processos sociais que incorporam agressão física ou moral, opressão, excesso DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 48 de poder, crueldade – enfim, uma pletora de ações negativas que parecem ter em comum o que vem sendo chamado, atualmente, de desumanização do outro, mas cujo sentido nuclear é a de um atentado à integridade física ou à dignidade de um ser, e não apenas o ser humano. Ora, é este mesmo movimento intelectual o que está definindo a violência como uma substância, com suas múltiplas manifestações ou como uma enteléquia com seus inúmeros avatares, por oposição a uma outra substância, idealizada como a “boa humanidade” ou o “bem comum”. Em seu muito bem argumentado livro, Willem Schinkel relaciona os paradoxos contidos nos variados usos do termo “violência” nas ciências sociais. A lista de dez antinomias é impressionante: A violência rompe com a ordem social ou a violência é constitutiva da ordem social? A violência é um problema social ou a violência é uma solução padronizada para os problemas sociais? A violência é uma forma puramente destrutiva da socialidade ou a violência é uma forma positiva de socialidade que faz as pessoas se unirem? Violência é uma forma de lidar com a contingência ou a violência é uma forma importante e fonte de contingência? Violência rompe com as normas ou a violência reforça as normas? Violência é uma situação visível ou a violência é um processo oculto? A violência do Estado é reativa em relação à violência ilegítima ou a violência do Estado é ativa em distinguir violência legítima e ilegítima? Violência é um processo social significativo, cujo sentido é posto em um referente externo ou a violência é um processo social caracterizado, exclusivamente, pela autorreferência? A violência repele ou a violência atrai? A violência é um meio para um fim ou é um fim em si mesmo? (SCHINKEL, 2010, p. 15) A questão A questão que vem sendo tratada nos últimos anos em livros e artigos parte de uma constatação: como pôde a violência não ter se tornado um dos tópicos mais importantes da teoria social até agora? Como explicar que a violência só veio a merecer tratamento específico por parte de sociólogos, antropólogos e cientistas políticos nos últimos 10 ou 20 anos, quando sabemos que Karl Marx, no Manifesto comunista (MARX e ENGELS, 1998[1848]), a havia considerado como “parteira da história” e Max Weber a tivesse em alta conta em seu conceito do Estado moderno? Esses são temas tão diversos que podem incorporar diferentes modalidades de violência: os conflitos sociais, os chamados comportamentos desviantes, as criminalidades, as guerras, a violência política, o terrorismo, a exploração colonial, a opressão nas relações de trabalho ou o imperialismo ocupam alguns dos principais comitês de pesquisa das associações científicas internacionais nas ciências sociais, mas jamais a violência, esse substrato presente em todas elas, DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 49 ganhou estatura teórica própria e tratamento diferenciado. É como se a violência tivesse um significado unívoco ou óbvio, que dispensasse construção conceitual. Mesmo quando se reconhecia seu caráter polissêmico, a violência continuava a operar como algo taken for granted nos discursos sociológicos. Quando compareceu em alguns ensaios, ao longo dos últimos 120 anos, a violência foi geralmente tratada de forma “naturalizada” como agressão letal unilateral e intencional, seja como principal contraponto ao poder ou como excesso de poder (Hannah ARENDT, 2009[1970]), ora como sua extensão (Max Weber), ora em oposição à linguagem (Paul RICŒUR, 2008) ou à ação comunicativa (Jürgen HABERMAS, 2012[1981]), seja em contradição com a civilidade (Norbert ELIAS, 1993[1939]; 2011[1939]), mas sempre sob forma negativa e contrafactual. Não é surpreendente, por isso mesmo, essa ausência da violência como um dos tópicos centrais da teoria social no século XX. O que pode haver de sintomático nessa falta? Examinaremos, a partir das contribuições de alguns autores, o crescente investimento teórico que, nos últimos anos, vem sendo feito para constituir a violência como objeto digno da teoria social. Nesse sentido, minha própria contribuição vem juntar-se a esta apresentação, à medida que a tomo como meu ângulo de leitura e de crítica dessas contribuições. Resumidamente, desenharei alguns de seus aspectos mais tortuosos, que colidem com as contribuições aqui tratadas. Se antes não lhe havia um lugar garantido nos tratados e compêndios de sociologia e antropologia, subsumida a temas como conflito social, anomia e crime ou escandida para outras disciplinas como a psicologia, a psicanálise e as neurociências, agora começa a tornar-se cada vez mais difundida a necessidade, para a pesquisa empírica, de uma qualificação conceitual dos usos da palavra violência ou, mesmo, da possibilidade teórica de uma sociologia ou de uma antropologia da violência que enfrentem a complexidade conceitual do termo. Não se pode dizer que, por lhe faltarem teorias sociológicas adequadas, o tema da violência não seja propriamente sociológico. Os chamados “pais fundadores” referiram-se em vários contextos a dimensões da violência (embora não necessariamente com esse nome), mas jamais a abordaram como um tópico a merecer tratamento teórico específico ou mesmo a tomaram como objeto distinto a ser construído. No mais das vezes, usaram o termo no seu sentido comum, seja para designar o recurso direto à força física e às suas extensões técnico-sociais (força muscular disciplinada, armas, exércitos, polícias, forças armadas) ou suas performances sociais (conflitos armados interpessoais, intergrupais, guerras, rebeliões, revoluções, atentados, genocídios etc.), seja para referir-se a determinadas formas de configuração da dominação de um indivíduo ou um grupo social por outro (escravidão, subordinação, exploração etc.), como em Marx, Weber ou Simmel, ou às formas simbólicas de reprodução da coerção social em diferentes instituições (como em Durkheim). Nenhum desses clássicos, entretanto, considerou necessário enfrentar, teoricamente, o tema da DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 50 violência para além da esfera normativa de senso comum em que está submerso. É possível que a sensibilidade teórica para o tema ainda não tivesse alcançado a importância que parece ter ganhado posteriormente, com a consolidação dos regimes democráticos na Europa ocidental e nos EUA, de um lado, e, do outro, com a trágica experiência das duas guerras mundiais, do totalitarismo, do Holocausto e da ameaça nuclear durante a Guerra Fria. Não é exagerado dizer, e é disso que tratarei aqui, que o sentido da “violência” é uma função da expansão da sensibilidade moral que lhe define esse mesmo sentido. O que parece ser uma tautologia não o é, pois que a violência se torna, nas democracias contemporâneas, uma forma central de acusação social. A expansão do sentido negativo da violência Se a violência interpessoal passara, principalmente após o século XVII, a ser criminalizada e processada judicialmente por um Estado que, progressivamente, aumentava o seu monopólio da violência legítima, por outro lado a violência coletiva, especialmente no caso das guerras, começa a tornar-se um problema com o movimento pacifista do início do século XX. A repugnância moral e a rejeição política que se desenvolverá sob a forma moderna da violência começa com a Grande Guerra, mas, ainda no intervalo entre guerras, o apelo legítimo à violência continuara em pauta, principalmente nas agendas revolucionárias e contrarrevolucionárias e no chamado patriótico ao combate. A disputa pelas condições de sua possibilidade como recurso político legítimo continua até hoje, ainda que perdendo sustentabilidade crescente na chamada opinião pública. Os livros revolucionários de Engels (2015[1878]; 1979[1888]), Lênin (2007[1917]) e Sorel (1993[1908]), de tão grande influência, publicados entre o fina do século XIX e a primeira década do século XX, tratam, do mesmo modo, da violência como recurso para a mudança social com a mesma naturalidade com que tratam também da via parlamentar. O problema que se colocava não era exatamente uma problematização moral do uso da força, mas sua oportunidade ou eficácia, sua necessidade ou não em um contexto em que a via parlamentar aparecia como incapaz de levar às mudanças sociais preconizadas. No mesmo sentido que Clausewitz (2010[1832]) atribuiu à guerra, como “a política por outros meios”, também aqui a questão da repugnância moral à violência – o tema da nossa atualidade – não era a questão principal. A avaliação do recurso à violência era inteiramente política quando se tratava da luta contra o colonialismo, como na obra de Frantz Fanon (2006[1961]) e em sua repercussão na obra de Sartre, ou, antes, na luta pelo socialismo, como, aliás, ainda hoje, pelos Estados e por entidades nascidas de alianças militares, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). O mesmo se deu, inclusive, quando se tratava de criticar o terrorismo anarquista do início DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 51 do século XX, interpretado como ineficaz e contraproducente, mas, raramente, como moralmente reprovável. O que na violência interpessoal ou intergrupal produzia maior reação moral era o que já estava sendo criminalizado na lei. O conflito podia (ou até mesmo devia) incorporar o recurso à violência como decisão racional, sob forte emoção ou justificadamente em defesa da honra, de ideais ou da própria vida. A lei atenuava, em toda parte, esses casos. Mas, foi o reforço da violência estatal que permitiu não só a criminalização da violência privada como também um fortalecimento sem precedentes da capacidade de destruição em massa do Estado Moderno – as duas coisas não podem ser separadas, embora uma tenda a ocultar a outra, como chamou a atenção Anthony Giddens (1990). Para Weber, cuja sobriedade teórica é reconhecidamente antinormativa, a violência só se torna um “problema” com a expansão do mercado e do capitalismo. Para ele, “o princípio do mercado puro é antagônico ao pragma da violência” − o princípio puro do mercado é, nesse sentido, justamente o contrário do ethos guerreiro. Por isso mesmo, é preciso que a violência fique contida no Estado e que o ethos guerreiro fique reservado e contido, exclusivamente, nas forças armadas. Mas, mesmo quando se desenvolveu plenamente o monopólio legítimo da violência pelo Estado, o emprego privado da violência física continuou sendo uma possibilidade de escolha legítima para a resolução de conflitos interpessoais ou intergrupais, ainda que fora da lei. Já o recurso à violência para fins políticos passou a buscar justificação ideológica, pleitear a sua legitimidade ou negar ao Estado que a criminaliza legitimidade última para fazê-lo. Do mesmo modo, a violência estatal e as guerras tornaram-se também objeto de disputa de legitimidade. Este é o ponto mais conhecido e mais debatido sobre a violência desde o fim da última Grande Guerra. Quantum de violências A emergência do significado da guerra como violência (mesclando dimensões instrumentais e expressivas) é dependente da emergência do protesto pacifista contra a guerra e do avanço, no final do século XIX, mas, principalmente, na primeira década do século XX, de uma forma de humanismo político desconhecida das gerações que lutaram pela afirmação dos Estados nacionais nos séculos XVIII e XIX. É absolutamente anacrônico estender para antes de meados do século XIX o significado contemporâneo de violência que as guerras atuais passaram a representar para a maioria dos povos. Como bem observou Norbert Elias (1993[1939]; 2011[1939]), foi a rejeição crescente a práticas de coação física e humilhação moral pelas instituições sociais (família, escolas, quartéis, prisões, asilos etc.) que as construiu, ao mesmo tempo, como práticas violentas, como DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 52 violência em um sentido negativo. O significado de violência não lhes foi anterior, mas foi sendo produzido à medida que tais práticas foram acompanhando o sentido de uma negatividade crescente das guerras e do uso até então “natural” e legítimo da guerra e da resolução de conflitos pela força. A questão moral então disputada não era sobre o emprego da violência: era sobre quem tomara primeiro a iniciativa de atacar o outro ou sobre a justificativa desse ataque. Era a iniciativa da ruptura que passava a ganhar sentido negativo, preparando a passagem semântica para uma definição da violência como agressão unilateral. A difusão do sentido de “violência” para um número cada vez maior de ações e comportamentos acompanha o mesmo processo civilizatório que se definiu como de diminuição da violência. Nesse aspecto, e paradoxalmente, ao contrário do argumento de Elias, hoje, há mais “violência” que no passado, simplesmente porque hoje há muito mais ações e práticas interpretadas ou rejeitadas moralmente como violência do que no passado. Como grande parte do que é considerado socialmente violência passou a ser, na modernidade, criminalizado pelo Estado (detentor legítimo do monopólio do uso da violência), basta comparar os códigos penais de um ou dois séculos atrás com os de hoje para se verificar que, hoje, há muito mais “violência” que no passado. Não é por acaso que as várias “histórias da violência” publicadas até agora, como a de JeanClaude Chesnais (1986), a de Ted Gurr (1989), a de Spierenburg (2008), a de Steven Pinker (2012) – unânimes em reconhecer o declínio da violência na modernidade − tratam unicamente de homicídios, e, geralmente, abstraindo-os de guerras, revoluções e regimes totalitários. Sinisa Malesevic, que publicou, recentemente, um importante livro sobre o tema, Sociology of War and Violence (2010), chama a atenção para os paradoxos envolvidos nos argumentos e para as evidências empíricas e historiográficas que contrariam, inclusive, parte das teses sobre o processo civilizatório defendidas por Elias. Argumentos ainda mais ásperos são sustentados contra a tese do declínio da violência na modernidade, por sociólogos reconhecidos internacionalmente, como Zygmunt Bauman (1998) e Michael Mann (2004). Para eles, o genocídio, por exemplo, é um produto direto de condições que só passaram a existir na modernidade. Três dossiês publicados nos últimos anos buscam, pela primeira vez de forma sistemática, enfrentar a questão da possibilidade de uma teoria social da violência, com base em contribuições de autores que publicaram livros sobre o tema nos anos recentes. Um número especial do International Journal of Conflict and Violence, de 2009, reúne sete artigos de destacados sociólogos em torno da questão: “É possível uma teoria geral da violência?”. No mesmo ano de 2013, dois números especiais, um da Current Sociology, publicação oficial da International Sociological Association, e outro do European Journal of Social Theory, dedicaram-se a indagar sobre a possibilidade de a violência vir a ocupar um dos principais tópicos da teoria social contemporânea. DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 53 A criminalização da violência Um primeiro problema que pode ser apontado é a necessidade de separar a discussão conceitual da violência daquela que se processa há um século na criminologia sobre as “causas” do crime. O aumento contemporâneo da sensibilidade moral à violência foi responsável pela criminalização de praticamente tudo que, na interação social, pudesse ser interpretado como violência, de tal modo que, com exceção da guerra, no seu sentido convencional – e isso é sintomático e merece atenção conceitual – e do suicídio, hoje praticamente não há violência que não seja criminalizável, e mesmo crimes não violentos são, muitas vezes, representados socialmente como violências. Quando se diz que todas as violências, com exceção da guerra e do suicídio, são, hoje, criminalizáveis, o sujeito da criminalização, que é o Estado, fica subentendido e oculto porque é reconhecido amplamente como o detentor legítimo do processo de criminalização. Ocorre que, para efetivar a criminalização, o Estado terá que usar da violência, uma violência legal, uma violência que, sendo legítima, é justa ou assim é representada. Nesse sentido, a contenção da violência só pode ser feita por outra violência. A ideia de que o contrário da violência é a paz (a pacificação das relações sociais) oculta a enorme necessidade de violência, por parte do Estado, para conter a “outra” violência − a ilegítima, a ilegal, aquela contra a qual o Estado detém o monopólio da forma legítima. Há um problema, entretanto, em toda essa construção, que passa despercebido quase sempre: a paz ou a pacificação depende do exercício de uma violência contra outra, não importando agora se uma é justa e a outra não, pois é da disputa dessa legitimidade que se trata quando se discute o conceito de violência. A sua polissemia decorre de um conflito de legitimação quanto a “qual” violência estamos considerando quando selecionamos um de seus significados a expensas do outro. Outro problema que se coloca para um possível conceito de violência e que decorre do problema anterior é saber se o conceito se refere a uma ação social (e, nesse sentido, pode ser tão unilateral quanto ao sujeito da ação: um indivíduo ou grupo) ou se refere a uma interação sem unilateralidade possível, já que não pode ser reduzido ao indivíduo, cujo comportamento passa a ser seu efeito, seu produto. Na interação, a violência não está no indivíduo, mas na ruptura de uma expectativa comum aos participantes da interação. E o problema é acentuado se nos perguntamos se a violência não estaria presente não apenas na interação face a face, mas nas relações sociais estabilizadas por essas expectativas e que se reproduzem como uma estrutura de dominação que só se estabiliza porque ganhou legitimação, isto é, foi capaz de convencer a todos os seus participantes de que é “justa”. DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 54 Aqui, enfrentamos um dos problemas mais árduos da teoria social: saber se todos os participantes que são competentes na interação o são também no plano das relações sociais estabilizadas sob dominação legítima. E, finalmente, saber se o fato de ser legítima retira dessa dominação qualquer conteúdo de violência, tornando-a consensualmente aceita. O modo pelo qual se lida com esses problemas conceituais que envolvem a violência definirá o rumo que a teoria irá percorrer, se aceitará conformar-se a um sentido estrito para o termo, no limite extremo inferior restringindo-o à agressão física intencional (a outros ou a si), tratando-a como ação social e, portanto, partilhando com o processo de incriminação a busca de seu sujeito como um indivíduo ou um grupo tomado em si mesmo. Essa direção obrigará a teoria a distinguir entre conflito e violência e também a distinguir poder e violência, criminalizando todas as formas de violência, exceto a violência legítima do Estado no controle interno e na defesa externa da sociedade. Ou se, no outro limite extremo, preferirá pôr a violência nas relações sociais estruturadas ou estabilizadas, de modo que a própria legitimidade da dominação caia sob o mesmo influxo argumentativo que envolve e iguala opressão, coerção e agressão – postos como condição de reprodução da estrutura social – que, por se ocultar na ideologia que fundamenta o direito e o Estado, exclui qualquer legitimidade aos demais e possíveis e potenciais portadores da violência. Essa direção obrigará a teoria a recusar a atribuição de um sentido estrito ao termo violência e a abordá-lo de um modo tão abrangente que o tornará incapaz de ser criminalizado, seja como estrutura, seja como agência e rebelião. Entre os dois, no plano da interação face a face, restringe-se o conceito ao sentido da agressão física, contingente ou organizada, mas se atenua a dificuldade quanto à legitimação da violência, tomando como unidade de análise não mais o indivíduo, mas as reações interativas sob determinados contextos, retirando dele o seu potencial polissêmico. Essa direção tratará a coercitividade das relações sociais estruturadas como “suaves” se comparadas à violência como agressão física na interação face a face. A disputa do conceito A disputa do conceito aparece com clareza retórica e argumentativa já no próprio recorte do objeto. Um exemplo é o esforço de Michel Wieviorka para delimita-lo em seus livros sobre a violência publicados nos últimos 10 anos (WIEVIORKA, 2004; 2008). Ele insiste que é necessário tratar a violência no sentido estrito de agressão física intencional, interpessoal ou coletiva (mesmo em suas extensões técnicas). O Estado fica fora. Restringir a reconhecida polissemia do termo ao seu sentido mais usual e de senso comum, o mesmo encontrável na literatura em geral, tem a DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 55 vantagem de evitar os percalços que o significado mais abrangente tem representado para a pesquisa empírica nas ciências sociais. Ao fazê-lo, entretanto, sustenta-se que não há equivalência entre os conceitos de conflito e de violência. Ora, que o sentido dos dois termos não seja o mesmo, já se sabia. Mas, aqui, a questão é outra: trata-se de negar a equivalência de grandezas, já que, para ele, os dois conceitos não só não são equivalentes como até mesmo se opõem, provendo de duas lógicas distintas, inteiramente contrárias. Ele afirma que é preciso reconhecer a necessidade de um novo paradigma da violência, considerando as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais ocorridas mundialmente, principalmente após os anos 1970 do século XX. O Estado contemporâneo estaria perdendo cada vez mais (se é que alguma vez o teve completamente) o monopólio legítimo do recurso à violência. A violência como recurso político, que, para ele, já havia perdido legitimidade na experiência social democrática, estaria refluindo, agora, em seu sentido extremo, para o terrorismo, o crime organizado, as rebeliões juvenis impulsionadas pelo ódio difuso e pelo ressentimento e para a delinquência cotidiana. Uma violência sem sujeito ou aniquiladora do sujeito. Para sustentar sua posição, ele carrega a mão em uma definição universalista e típico-ideal de violência como uma violência sem limites e sem fim, violência pura, incompreensível, violência excessiva, incapaz de justificação para melhor contrapor a um conceito de conflito – que é, ao contrário, matizado, neutralizado e atenuado típico-idealmente, muito próximo da noção de competição como processo social. É evidente que assim como o assassinato encerra uma relação social, ao lhe pôr fim, também a violência que aniquila o outro extermina o conflito. Mas, e a violência que não põe fim ao outro ou que não extermina o conflito? Essa violência se opõe ao conflito ou é apenas uma de suas formas? Por que a violência dissolveria necessariamente o conflito se muitos conflitos dependem de algum grau de violência para se desenvolverem? Nem todo conflito manifesta-se como violência, mas são muitas as formas de violência que cabem no conceito sociológico de conflito, já que a violência não é apenas ação, ou ação unilateral, mas relação social, na qual são construídas as posições de perpetrador e vítima, o que vem a constituílas em uma unidade de análise. Isolar completamente a violência do conflito só é possível se fixarmos a violência em seu extremo, no terror absolutamente unilateral e incompreensível. Por que fixar o conceito aí, por que torná-lo tão extraordinário? Toda a originalidade da argumentação de Wieviorka está baseada na oposição entre a violência coletiva própria à sociedade industrial, que poderia emergir do conflito social estruturado (a luta de classes, por exemplo), e a violência urbana, que nasce da desestruturação do conflito coletivo entre capital e trabalho a partir do processo de desindustrialização dos anos 1970, dando margem ao surgimento do terrorismo de extrema esquerda e, depois, às rebeliões DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 56 juvenis e à delinquência difusa dos anos 1980 e 1990, bem como ao reforço direitista do racismo. É esta segunda forma de violência, difusa e radical, que desconhece a negociação ou o acordo que interessa ao autor e o faz propor as hipóteses que desenvolve em seu livro, sob o desafio de um novo paradigma da violência. É também este novo tipo de violência, e as novas formas de terrorismo que crescem no século XXI, que parecem interessar à atual emergência de estudos teóricos sobre a violência nos últimos anos. Para desenvolver a análise da violência sob o novo paradigma, Wieviorka vê-se obrigado a abstrair a violência das relações sociais estruturadas ou da interação social face a face para situála nesses indivíduos extremados, nessas subjetividades antissociais, tratadas típico-idealmente como antissujeitos, não sujeitos, sujeitos inacabados. Será essa a melhor forma de compreender quem não é, ou não pôde ser, ou não quer ser sujeito desse tipo de mundo? A unilateralidade fica evidente quando se pergunta se não haveria violência na produção do sujeito violento ou, para usar o meu termo, se é possível pensar sujeitos violentos como não sujeitos ou antissujeitos sem recair no mesmo processo social que produz a sujeição criminal (MISSE, 1999). A dose normativa, nesse caso, a meu ver, ficou muito alta. Em conferência recente na Universidade de Brasília, publicada no mais recente número de Sociedade e Estado, Wieviorka (2015) reconhece o perigo essencialista de sua tipologia de sujeitos e antissujeitos e se move em uma direção atenuadora ao enfatizar os processos de subjetivação e dessubjetivação. Ao fazê-lo, entretanto, não cuida de abandonar alguns de seus pressupostos, obrigando-se a permanecer no mesmo circuito argumentativo de prós e contras que levou Randall Collins a criticá-lo em artigo publicado há alguns anos (2011). Coincidentemente ou não, mais ou menos pela mesma época, começaram a aparecer vários estudos, no mundo anglo-saxão, propondo abordagens teóricas para a incorporação da violência na agenda de tópicos de tratamento sistemático da teoria social. Alguns deles se inspiram em Carl Schmitt e mantêm vivo o debate sobre o caráter essencialmente político das relações entre conflito social e violência, de uma maneira que se afasta bastante das teses de Wieviorka, especialmente sobre a centralidade da subjetividade na definição da violência para a teoria social. Outros buscam, como é o caso de Randall Collins (2008), desenvolver sua abordagem no plano da microssociologia e da interação face a face. Collins, como Wieviorka, tem por objeto a violência física, direta, interpessoal. Também a distingue do conflito, que é um conceito mais abrangente, mas considera que toda violência é uma forma de conflito, e haveria gradações de situação que levariam o conflito a se tornar um confronto violento, embora não necessária ou automaticamente. Diferentemente de Wieviorka, entretanto, sua abordagem não parte do sujeito ou do ator, mas da interação, que DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 57 ganha, assim, autonomia frente aos determinismos sociais e culturais que produziriam um indivíduo violento. Critica, assim, o que chama de “mitos sobre a violência”, geralmente, reproduzidos pela mídia de entretenimento, como pensar que a luta é contagiosa, envolvendo crescentemente outras pessoas. Seu principal argumento é que, ao contrário, escolher a violência não é algo fácil, mas difícil, e as pessoas tendem a se afastar quando ocorre uma luta ao invés de entrar nela, todos lutando contra todos. A exceção seria somente quando, na multidão, há dois grupos de identidade antagonistas, como nas torcidas de futebol. Outro mito é o de que lutas ou combates demoram a acabar, duram muito. Ao contrário, elas duram pouco, são curtas, duram segundos − no máximo poucos minutos − ao contrário do que aparece em filmes, com lutas intermináveis. A imensa maioria de assassinatos e assaltos com armas letais consiste de uma ou mais pessoas atacando rapidamente uma pessoa desarmada. As exceções ocorrem quando a luta é circunscrita, não chega a ser séria ou se sabe que há salvaguardas que limitam seu agravamento, como nas brigas entre crianças ou quando há grande disparidade de forças entre os lados, mas, nesses casos, não há luta, e sim massacre ou punição. E ainda também como Wieviorka, Collins não aceita incluir nem o Estado nem a “violência simbólica” de Bourdieu em seu objeto, considerando-o um recurso retórico para tratar de um outro universo de questões. Critica Bourdieu por não distinguir o que é próprio das situações violentas (que são raras) que envolvem medo, tensão e até a emergência de pânico, das que envolvem “violência simbólica”, que são moderadas, livres de medo, sem confronto, altamente repetitivas, sem contingências situacionais e que nada têm de similar com a dinâmica dos confrontos violentos. Aqui, mais uma vez, o recorte do objeto define o viés da construção conceitual. Dizer que a violência é difícil e não fácil de acontecer só tem sentido quando se trata da violência no conflito interpessoal. Mesmo assim, entra em conflito com o que vem acontecendo na América Latina desde os anos 1980 ou com o que a África vem experimentando antes e depois do processo de descolonização. Nesse sentido, parece que a abordagem microssociológica de Collins, ao abstrair a dimensão cultural da violência e os processos de aprendizagem que atenuam, agravam ou justificam o recurso à violência seja em conflitos interpessoais, seja em conflitos coletivos, parece estar etnocentricamente construída para sociedades “pacificadas” no sentido eliasiano, isto é, aquelas em que a internalização do autocontrole foi um processo, em geral, bem-sucedido e complementado plenamente, para as exceções, pelo monopólio legítimo da violência pelo Estado. No entanto, são essas mesmas sociedades as que empreenderam no passado ou empreendem, atualmente, os principais conflitos violentos, as guerras em escala global. DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 58 Como se uma coisa não dependesse da outra, como se a potestas do Estado não dependesse do controle da violentia civil, o argumento de Collins é válido, mesmo para essas sociedades, apenas na condição de se abstrair o conflito coletivo, a violência estatal e a violência da estrutura social. O que fazer com as 13 milhões de vítimas da Primeira Guerra ou as 55 milhões de vítimas da Segunda Grande Guerra? As 120 milhões de vítimas de guerras do século XX constituem cerca de dois terços de todas as baixas em guerra dos últimos 500 anos. Elas entram em qual conceito de violência? Como lidar conceitualmente com isso? O argumento de Collins de que os soldados participam de toda essa violência forçados, ou com medo, e que se beneficiam da distância social em relação ao inimigo para matar me parece válido, mas não suficiente para resolver o quantum de violência em sociedades relativamente civilizadas, no sentido de Elias. Se a violência é, normalmente, evitada no cotidiano, por que os seus números são tão altos? Só há perpetradores especializados em violência no balanço desses números? A insistência de alguns autores sobre o caráter abrangente e não restrito que uma teoria da violência deve ter não partilha sempre os mesmos argumentos, mas, geralmente, enfrenta uma larga oposição. O melhor exemplo é a reação que o conceito de “violência simbólica”, de Pierre Bourdieu, despertou em muitos setores. Para estes, a violência física sempre será aquela que oferece o modelo extremo e o ponto de referência a partir do qual é possível pensar as demais formas de violência e sua relação com o poder. O mesmo tipo de reação verifica-se em relação às postulações de Michel Foucault quando este busca afirmar a dimensão criativa e positiva, e não apenas negativa, do poder e da violência. Em Il Faut Défendre la Société, seu curso de 1976 no Collège de France (FOUCAULT, 2010[1977]), ele retifica sua hipótese de uma sociedade disciplinar generalizada para reconhecer, na biopolítica, a articulação das técnicas de disciplina com os dispositivos de regulação social que têm por objeto as populações através da governamentalidade. Ao buscar a genealogia da conexão moderna entre violentia e potestas, Foucault abre um horizonte completamente novo de questões que envolvem as “formas de violência” e que deixarão para trás qualquer possibilidade de isolar conceitualmente a violência apenas nos conflitos interpessoais ou na agressão intencional interindividual sem que isso tenha maiores consequências teóricas. É no bojo da crescente produção sobre o conceito de violência que uma contrarreação ao que é percebido como uma sociologia da ordem, uma sociologia aliada do Estado capitalista, vem ganhando terreno nos últimos anos, como, por exemplo, no livro de Slavoj Žižek Violence: Six Sideways Reflections, de 2008. Para ele, uma extensão do conceito de violência baseia-se, fundamentalmente, no argumento de que há um vínculo inextrincável entre poder (dominação), violência e estrutura social. Abstrair desse vínculo a violência física intencional, interpessoal ou DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 59 coletiva teria o efeito de ocultá-lo e, por conseguinte, de produzir na análise um viés ideológico, cujo efeito poderia também ser interpretado como uma forma de violência. Esse argumento, que vincula a própria ciência social com a violência, é desenvolvido, principalmente, pelo sociólogo holandês Willem Schinkel em seu importante – e aqui já citado – livro Aspects of Violence: A Critical Theory, publicado em 2010. Após examinar com cuidadosa erudição e embasamento teórico o conjunto de problemas que a construção de um conceito de violência impõe à teoria social, Schinkel propõe-se a oferecer uma alternativa. Primeiramente, defende que a violência, como o pato/lebre de Wittgenstein, não tem uma única dimensão, mas várias. Esses vários aspectos ou formas da violência ocultam-se mutuamente; quando um emerge, os outros se escondem, e não é possível ver todos os aspectos da violência ao mesmo tempo. Por isso, propõe o conceito de trias violentia para abordar aquilo que ele vê como sendo o único horizonte ontológico comum a todos esses aspectos: a violência como redução do ser. Mesmo assim, não aceita que essa construção se apoie em pressupostos humanistas-iluministas que, a seu ver, ilusionam a análise com o compromisso implícito de que a violência possa um dia ter fim. Não é possível resumir aqui a original contribuição de Shinkel. Entretanto, o que fica patente de qualquer modo em seu extraordinário esforço teórico-crítico é que ele reconhece que o conceito de violência na teoria social incorpora, necessariamente, além de um significado estendido, que abarca a violência do Estado e a estrutura social – a potestas –, tal como já antecipara Johann Galtung (2004) há muitos anos, a questão de a ciência social estar a performar também a violência na linguagem e nas opções conceituais e de pesquisa que pratica. Seja como for, não creio que nós, aqui no Brasil, estejamos efetivamente engajados nessa conjuntura teórica que procura entronizar a violência como um dos principais tópicos da teoria social contemporânea. Os poucos trabalhos teóricos produzidos entre nós nessa área temática estão, de modo geral, sob a influência de Bourdieu, Elias e Foucault, mas as pesquisas empíricas seguem tratando a violência no seu sentido de senso comum, sem maiores problematizações e quase sem referências a essa literatura mais recente, que está problematizando o campo. Autores como Machado da Silva (1993), Maria Stela Grossi Porto (1999) e eu mesmo temos preferido – cada um à sua maneira – tratar a violência não como um conceito, mas como representação social, como parte do objeto. É uma solução pragmática, sem dúvida, mas que tem a vantagem de não buscar fechar em um significado unívoco ou naturalizado os usos da violência na pesquisa empírica. No entanto, a enorme presença da violência no cotidiano das cidades brasileiras tende a carrear o sentido de volta ao senso comum, obrigando, muitas vezes, o pesquisador a ginásticas pouco teóricas para se fazer entender. DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 60 Em uma linha que pode encontrar afinidade com as questões de Willem Schinkel, tenho sustentado não um conceito de violência, que acho que não será, de qualquer modo, muito útil para a pesquisa empírica, mas o reconhecimento do caráter mais performático que constatativo dos usos que dela são feitos. Prefiro insistir no conceito de “acumulação social da violência” por meio do qual a violência, sem deixar de ser uma representação social, comparece em seu triplo sentido de práticas representadas e acusadas como de violência interpessoal, de violência estatal e de coercitividade da estrutura social, podendo vir a constituir uma causalidade circular acumulativa, pelos agentes sociais e práticas que desempenham, de tempos em tempos, como procurei mostrar em meus estudos sobre o Rio de Janeiro no século XX. Evidentemente, as práticas sociais representadas univocamente como violência podem ser desdobradas em escalas de gravidade e em conceitos menos polissêmicos, como conflito social, controle social, desigualdade social, agressão física, guerra e assim por diante, sem terem que, necessariamente, submeter-se a uma concepção única e consensual do que seja violência. Quando disse, na abertura deste texto, que suspeitava que a violência é um conceito moderno e ainda em construção e que não fazia sentido buscar o seu significado no passado clássico, quis chamar a atenção para o que há de inacabado e ideológico nas tentativas de se capturar um sentido unívoco ou universal para a violência, especialmente quando esse sentido é fundamentado normativamente. Entretanto, pode-se constatar que o processo pelo qual vem sendo discutida nos últimos anos a questão da violência na teoria social aponta para uma radicalização do conceito, seja como a feita por Wieviorka ou Collins, seja tal como na proposta, por exemplo, de Schinkel. Seguindo, até certo ponto, uma linha filosófica pragmática contemporânea, que busca interligar Wittgenstein e Heidegger, ele propõe um conceito forte e abrangente de violência como “redução do ser”, o que lhe dá a forma de uma escala que vai da coerção positiva e inevitável própria ao processo de socialização à interação social e à ruptura de resistências à mudança social até, no limite, aos aspectos mais negativos e “incompreensíveis” da crueldade humana. A seleção de uma dimensão, como em qualquer interação social, deixa todas as outras dimensões possíveis nos bastidores. O risco que corre a ciência social, ao preferir uma dimensão a outra do conceito nessa escala, é o de participar da violência seja no plano normativo da escolha, seja nos efeitos de violência que pode produzir ou justificar. Encerro este artigo advertindo que nele procurei, exclusivamente, apresentar os profundos dilemas envolvidos na temática contemporânea da violência e os desafios que se impõem ao seu tratamento na teoria social contemporânea. Pretendo prosseguir o exame dessas questões em meus próximos trabalhos. DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 61 Notas 1 Uma versão prévia deste artigo foi apresentada como conferência para promoção do autor a professor titular do Departamento de Sociologia da UFRJ em 12 de junho de 2015. 2 O primeiro a chamar a atenção para os paradoxos envolvidos nesse exercício foi, seguramente, Yves Michaud, em vários de seus livros. Ver Michaud (2012). 3 Sobre a diferença entre enunciados constatativos e performativos, ver Austin (1990). DILEMAS – Vol.9 – no 1 – JAN-ABR 2016 – pp. 45-63 Michel Misse 62 Referências ARENDT, Hannah. (2009[1970), Sobre a violência. São Paulo, Companhia das Letras. AUSTIN, John L. (1990), Quando dizer é fazer: Palavras e ação. Porto Alegre, Artes Médicas. BAUMAN, Zygmunt. (1998), Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro, Zahar. BENJAMIN, Walter. (2011[1921]), “Para uma crítica da violência”. Em: Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). São Paulo, 34, pp. 121-156. CHESNAIS, Jean-Claude. (1996), Histoire de la violence: En occident de 1800 à nos jours. Paris, Hachette. COLLINS, Randall. (2008), Violence: A Microsociological Theory. Princenton, Princenton University Press. ________. (2011), “Reply to Kalyvas, Wieviorka, and Magaudda”. Sociologica, no 2-2011, pp. 1-7. CLAUSEWITZ, Carl von. (2010[1832]), Da guerra. São Paulo, Martins Fontes. ELIAS, Norbert. 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