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TESE IVANI FERREIRA DIAS MENESES COSTA

3 À Profª Drª Annie Gisele Fernandes, minha eterna gratidão pela inesquecível ajuda nas orientações e apoio à minha permanência nesse curso. Ao Profº Drº Horácio Costa e Profª Drª Mônica Simas, pela análise cuidadosa de parte desse trabalho e por suas importantes sugestões, quando da realização de meu Exame de Qualificação, meu agradecimento muito especial. Ao amor dos meus pais, José Ferreira Dias (in memoriam) e Josefa Dias, que sempre acreditaram em um futuro melhor; Ao meu esposo, Fabio Meneses Costa, estrela da minha vida, companheiro e pai dos meus filhos queridos; A Rose, companheira de viagem, pelo incentivo e amizade; A Deus, pela permissão da realização desse trabalho, O meu reconhecimento. 4 RESUMO No Só de António Nobre consideramos as evocações da memória como importante fonte de informação não somente sobre o sujeito poético, mas também sobre a cultura portuguesa do século XIX. Nelas, visualizamos as tradições, o cotidiano de homens que trabalhavam no mar ou na terra, a religiosidade do povo, a história e a paisagem, sobretudo a do norte do país, possibilitando a reconstrução poética de parte do Portugal de Oitocentos.

1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA ANTÓNIO NOBRE E A MEMÓRIA COMO RECONSTRUÇÃO POÉTICA Ivani Ferreira Dias Meneses Costa SÃO PAULO 2006 2 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA ANTÓNIO NOBRE E A MEMÓRIA COMO RECONSTRUÇÃO POÉTICA Ivani Ferreira Dias Meneses Costa DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA, DO DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM LETRAS. Orientador: Profª Drª Annie Gisele Fernandes SÃO PAULO 2006 3 À Profª Drª Annie Gisele Fernandes, minha eterna gratidão pela inesquecível ajuda nas orientações e apoio à minha permanência nesse curso. Ao Profº Drº Horácio Costa e Profª Drª Mônica Simas, pela análise cuidadosa de parte desse trabalho e por suas importantes sugestões, quando da realização de meu Exame de Qualificação, meu agradecimento muito especial. Ao amor dos meus pais, José Ferreira Dias (in memoriam) e Josefa Dias, que sempre acreditaram em um futuro melhor; Ao meu esposo, Fabio Meneses Costa, estrela da minha vida, companheiro e pai dos meus filhos queridos; A Rose, companheira de viagem, pelo incentivo e amizade; A Deus, pela permissão da realização desse trabalho, O meu reconhecimento. 4 RESUMO No Só de António Nobre consideramos as evocações da memória como importante fonte de informação não somente sobre o sujeito poético, mas também sobre a cultura portuguesa do século XIX. Nelas, visualizamos as tradições, o cotidiano de homens que trabalhavam no mar ou na terra, a religiosidade do povo, a história e a paisagem, sobretudo a do norte do país, possibilitando a reconstrução poética de parte do Portugal de Oitocentos. Essa reconstrução poética, obviamente, foi determinada pela memória do sujeito poético, que ora apresenta imagens da criança doce e querida por amas, envolvido numa atmosfera de contos de fadas ou de visões paradisíacas do mundo que o cercava, ora dá a conhecer situações que envolvem o adulto angustiado diante das perdas inevitáveis da vida. Em ambos os casos, avultam (ou sobressaem) evocações impressionistas por meio de recursos sensoriais que sugerem o estado de alma de um ser que valorizou o que é ser português. A análise dos poemas pretende demonstrar como António Nobre constrói e desenvolve poeticamente as imagens da memória e o que delas decorre, ou seja, como trabalha com as evocações, enumerações descritivas, hipotiposes, etc., de modo a constituir a imagem de um sujeito poético apegado à sua terra natal e a imagem da própria terra, representada por aquilo que julga mais típico dela. É esse o objetivo desse trabalho. Palavras-chave: Só, António Nobre, memória, reconstrução poética, Portugal. 5 SUMMARY In the Só de António Nobre we considered the evocations of the memory as important source of information not only on the poetic subject, but also on the Portuguese culture of the century XIX. In them, we visualized the traditions, the daily of men that worked in the sea or in the earth, the religiosity of the people, the history and the landscape, above all the one of the north of the country, facilitating the poetic reconstruction of part of Portugal Eight hundred. That poetic reconstruction, obviously, it was determined by the poetic subject's memory, that prays it presents the sweet child's images and wanted by owners, involved in an atmosphere of stories of fairies or of paradisiac visions of the world that it surrounded it, for now gives to know situations that involve the adult before the inevitable losses of the life. In both cases, increase (or they stand out) impressionist evocations by means of sensorial resources that suggest the soul state of a to be that valued what is to be Portuguese. The analysis of the poems intends to demonstrate as Noble António it builds and it develops in a poetic way the images of the memory and the one that elapses of them, that is to say, as its works with the evocations, descriptive enumerations, hipotiposes, etc., in way to constitute the image of an attached poetic subject to its homeland and the image of the own earth, represented by that that judges more typical of her. It is that the objective of that work. Key Words: Só, António Nobre, Memory, poetic reconstruction, Portugal. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................................07 A TRAJETÓRIA DA MEMÓRIA.........................................................................................15 ANTÓNIO NOBRE E A MEMÓRIA COMO RECONSTRUÇÃO POÉTICA....................29 “LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”.................................................................................50 “LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: A MEMÓRIA E AS DESILUSÕES DO PRESENTE.............................................................................................................................61 “LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: A MEMÓRIA E O PAÍS DE MARINHEIROS...84 “LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: UM OLHAR SOBRE A MEMÓRIA RELIGIOSA...........................................................................................................................95 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................108 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA......................................................................................110 7 INTRODUÇÃO “O Só é a história de um menino fadado por amas, entretido por elas na condição de criança rodeada de dixes, de paisagens mágicas, de comparsas familiares propícios e pitorescos.”1 Com essa afirmação, Vitorino Nemésio apresenta o pressuposto de que se há uma história é porque houve alguém para resgatá-la. Esse feito, de resgatar algo, sugere um mecanismo de reencontro com alguém, com alguma coisa ou mesmo com os acontecimentos pertencentes ao passado. Para que o acesso a esse tempo aconteça faz-se necessário recorrer às operações da memória. Neste trabalho consideramos as evocações da memória como importantes fontes de informação não somente sobre o sujeito poético, mas também sobre a cultura portuguesa do século XIX. Nelas visualizamos as tradições, o cotidiano de homens que trabalhavam no mar ou na terra, a religiosidade do povo, a história e a paisagem, sobretudo a do norte do país. Igualmente é possível perceber, por meio das evocações da memória individual e coletiva, as convulsões de um final de século dividido entre o avanço da modernidade e o apego à terra rural; entre a incompetência política que levou o país à derrocada e o desejo quimérico de voltar à grandeza imperial. Todos esses aspectos, recuperados pela memória, podem constituir poeticamente momentos da vida do sujeito poético que correspondem aos da sua pátria. Ao longo das oito seções que dividem o Só a partir da 2ª edição, podemos visualizar momentos marcantes da vida do sujeito poético, como por exemplo, a morte da mãe, a sua trajetória estudantil e a sua estada em Paris. Durante a narrativa poética desses momentos podemos perceber o quanto o sujeito poético oscila emocionalmente entre as emoções positivas da infância e outras que o tornam, por vezes, debilitado e amargurado pelas ausências que o destino lhe impôs. Dessa oscilação emocional surgem outras como o aparecimento e revezamento de dois nomes: António e Anto, os quais, em várias passagens, são referidos como se fossem um outro suficientemente distante do sujeito poético para dar a este a sensação de proteção diante do presente decepcionante. Pelo fato do sujeito poético ser denominado a partir dos dois homônimos do poeta que escreve o Só, devemos aqui fazer a distinção entre eles. Há em todo o Só uma 1 Vitorino Nemésio, “Anto é Só”, in Conhecimento da poesia, Salvador, Aguiar & Souza Ltda, 1958, p.120. 8 proximidade entre o poeta e o seu sujeito poético, para não dizer quase um reflexo, dos momentos vividos por António Nobre e o percurso do seu sujeito poético. Essa aproximação no Só é reforçada pela escolha dos nomes “António” e “Anto”, os mesmos do poeta, que na obra se manifestam livremente percorrendo situações da infância e da vida adulta. Dessa perspectiva podemos apresentar, por exemplo, António em dois planos, o primeiro pela infância: E António crescendo, sãozinho e perfeito, Feliz que vivia! (E a Dor, que morava com ele no peito, Com ele crescia...)2 E o outro voltado para a fase adulta: “Mas a Arte, o Lar, um filho, António? Embora!/ Quimeras, sonhos, bolas de sabão”3. O que nos garante uma diversidade de impressões do sujeito poético sobre o seu cotidiano. Sobre os nomes Anto e António, o grande estudioso da biografia de António Nobre, Guilherme de Castilho confere a Miss Charlote, preceptora de crianças, a responsabilidade pela redução do nome António para Anto, como carinhosamente ela gostava de chamá-lo. Para António Nobre o “batismo” de Miss Charlote, em 1887, acrescentou a sua vida muito mais do que um novo nome, acrescentou uma nova forma de apresentação da sua personalidade, aceita por ele como bem vinda. Outra mudança ocorreria anos depois quando durante a sua permanência na Universidade de Coimbra o poeta solicita a troca do seu nome de batismo (António Pereira Nobre) por outro mais a seu gosto, passando assim, a assinar António Nobre. Na obra os nomes são empregados de maneira consciente quanto ao seu efeito, não somente porque revelam as mudanças de estado de ânimo do sujeito poético, mas também, e sobretudo, porque explicitam a sua cisão íntima. Para Paula Morão, “Anto é um Antóniooutro, criança que pode desculpabilizar-se, como no início da “Carta a Manoel”: “Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa./ Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,/ Foi Coimbra. [...]”4 Sobre esse lado infantil presente nos poemas, salientamos que Anto sofre tanto quanto António, mas procura sobreviver à presença da morte que ecoa do momento do nascimento do sujeito poético: “Ao Mundo vim, em terça-feira/ Um sino ouvia-se dobrar”5 2 António Nobre, Só, 3ª edição, Braga, Editora Ulisseia, 1989, p. 81. António Nobre, Só, p.208. 4 Paula Morão, O Só de António Nobre. Uma leitura do nome, Lisboa, Ed.Caminho, 1991, p.42. 5 Cf. Só, p. 81. 3 9 até o seu final em “Males de Anto”: “[...] Que miserável sorte!/ Em tudo via a Velha, em tudo via a morte”6, por meio das imagens do passado que o sustentam. Embora parecidos “António” com mais freqüência representa o adulto, o poeta por excelência, como o sujeito poético se apresenta já no poema “Memória”, que abre a 2a edição do Só7, que põe em cena a sua trajetória de infortúnios e a falência dos seus sonhos. Falência essa simbolizada pelo envelhecimento do que há de mais íntimo no ser, a sua alma, como ocorre no poema homônimo “António”: Fui vendo que as almas não eram no Mundo Singelas e francas: A minha, que o era, ficou num segundo Cheiinha de brancas! 8 A duplicidade na personalidade do sujeito poético garante a passagem de “António” para “Anto” e desse para o passado, sinalizando o enfraquecimento do nome “António”, que embora presente não chega a ter a força do diminutivo “Anto” opção do sujeito poético para referir-se a si como se fosse um outro. Dessa transfiguração só resta a criança que foi António e as suas poucas forças que sobrevêm da memória de tempos melhores. No entanto, nem “Anto” nem “António” são heterônimos, como ocorre na obra de Fernando Pessoa, pois não há uma ruptura dentro da personalidade. Para que não haja dúvidas no desenvolver desse trabalho, todas às vezes que utilizarmos os nomes “António” ou “Anto” estaremos nos referindo ao sujeito poético e não a seu criador, António Nobre. Outra observação a fazer é que, apesar de idênticos os nomes da criação e do criador, a construção da obra não poderia ser somente um relato autobiográfico, já que os episódios vividos pelo poeta são quase todos anacrônicos aos vivenciados pelo seu sujeito poético. Em particular, podemos citar a tísica vivida por “Anto” (sujeito poético) exposta com detalhes próprios de quem passa pela experiência de ter uma doença grave, em todas as suas nuanças, ou seja, o definhamento físico e moral, acentuados pelo preconceito, como exemplo de capacidade de criação poética. Por outro lado, o poeta que em vida também foi acometido pela mesma doença, no momento da criação da obra ainda não tinha o seu mal manifestado, o que ocorreria anos depois da conclusão do Só. Isso já contesta a tese de obra autobiográfica. No entanto, não podemos desprezar o aproveitamento de algumas 6 Cf. Só, p. 238. Cf. estes versos: “Sempre é agradável ter um filho Virgílio, / Ouvi estes carmes que eu compus no exílio,” (Só, p. 79). 8 Cf. Só, p. 89. 7 10 experiências reais dentro do Só, como por exemplo, a viagem feita pelo poeta pelo mar do Golfo de Biscaia. Observemos as informações contidas na carta de António Nobre a Alberto de Oliveira, datada de 1-11-1891, na qual descreve a experiência tormentosa do risco do naufrágio em alto mar naquela viagem: “Quarta-feira começou o drama. O Golfo da Biscaia, lindo acto em sete quadros. Horrível! Vagalhões, só vagalhões diante de mim. O vento medonho não se fartava de mar, e eu, aterrado, ao longo do sofá não me podia consolar.”9 É só compararmos o fragmento da carta com o soneto de nº “15” para verificarmos a coincidência entre fato vivido empiricamente e fato experimentado poeticamente, também datado de 1891, e com a mesma localização, para comprovarmos a aplicação da experiência adquirida pelo poeta nesse poema: Uivam os Ventos! Fumo, bebo vinho. O Vapor treme! Abraço a Bíblia, aos ais... Covarde! Que dirão (eu adivinho) Os Portugueses? Que dirão teus Pais? Coragem! Considera o que há sofrido, O que sofres e o que ainda sofrerás, E vê, depois, se acaso é permitido Tal medo à Morte, tanto apego ao Mundo: [...]10 As semelhanças são nítidas, mas não tornam a obra menor. Mesmo porque a elaboração impecável de forma e conteúdo, as paragens no tempo (passado ou presente) e a evocação saudosa da paisagem portuguesa, própria de quem se sente exilado, garantem uma obra de qualidade. Com segurança podemos agora nos distanciar um pouco da ficção para adentrarmos no universo biográfico de António Nobre no que diz respeito a sua constituição como pessoa e das marcas deixadas em sua personalidade pelo exílio em Paris. António Nobre nasceu no Porto no dia 16 de agosto de 1867 para morrer 33 anos depois vítima de uma tuberculose que o fez emigrar para diversas partes do mundo em busca da cura. Cercado por mimos e cuidados familiares na infância, Nobre conhece a rejeição a partir do seu ingresso na Universidade de Coimbra, na qual foi reprovado por duas vezes no curso de Direito. Desse período escolar adquiriu a admiração de amigos como Alberto de 9 António Nobre, Correspondência, (Organização, Introdução e Notas de Guilherme de Castilho), Vila da Maia, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1982, p. 150. 10 Cf. Só, 205. 11 Oliveira, António Homem de Melo (o Toy), Agostinho de Campos, Manuel Teles, entre outros, e desse período surge a revista Boêmia Nova da qual António Nobre é um dos seus principais colaboradores e conseqüentemente o mais atacado por críticas e deboches de toda espécie. Impossibilitado de obter o seu diploma de bacharel pela Universidade de Coimbra, parte o nosso poeta no ano de 1891 para Paris, conquistando os diplomas de bacharel em 1894 e o de licenciatura em janeiro de 1895. É esse período de permanência em Paris que irá nos interessar nesse momento. É pela sua correspondência com os amigos que deixou em Portugal que podemos identificar os sofrimentos e as dificuldades encontradas na terra estrangeira. Segundo nota de introdução deixada no volume da Correspondência de António Nobre, o crítico Guilherme de Castilho observa que: Se a biografia de um artista criador só interessa na medida em que nos ilumina a sua obra, é desta que se impõe partimos para naquela procurarmos as suas raízes. E se na história literária de António Nobre há uma verdade que parece não sofrer contestação e que corresponde a um ponto culminante da sua biografia de artista, é a de que o Só é a tradução de uma crise psicológica, a erupção veemente de um desequilíbrio gerado pela oposição irredutível entre o que, de uma maneira simplista, poderemos chamar, o mundo da realidade e o mundo do sonho.11 Na verdade, a realidade de Nobre estava muito aquém do seu mundo de sonho e de proteção. Conduzido por um ideal de amizade sincera e exclusiva (principalmente por Alberto de Oliveira) e de vida que o tornava aos olhos dos outros, diferente, excêntrico, dândi, o poeta preferiu desde sempre o isolamento. Longe do seu mundo mítico, sem a “...lendária Coimbra”12 o poeta surpreende-se no exílio como não sendo mais o “Senhor feudal do mundo”13 e é isso que provoca a sua angústia, por saber, em Paris, destruído o castelo edificado do seu mundo sentimental. Outro aspecto a ser ressaltado é a valorização de tudo o que é português por António Nobre. Na sua correspondência, o poeta deixa evidente que tinha consciência da sua condição de exilado, da sua condição de elemento separado da sua terra pátria, do lugar onde nasceu e declara: “... a impressão que estou sentindo ao ausentar-me de lá, ao ver-me perto de Paris é realmente formidável. Tu a experimentarás, um dia, se alguma vez te expatriares: de nada vale o ódio pela Pátria, sempre no fundo dela há 11 12 13 Cf. António Nobre, Correspondência, p. 16. Cf. Só, p.121. Idem, ibidem, p. 235. 12 alguma coisa que nos chama”14, ou em outra carta quando reconhece o engano ao valorizar supostamente outras culturas, como por exemplo a francesa: “Comecei a amar Portugal depois que o deixei, se é na ausência que se conhece o amor. Perdida a ilusão do estrangeiro, voltei-me para a nossa terra e é lá que moram as minhas predileções e para lá vão as minhas saudades.”15 O passado transforma-se em refúgio e a ausência das coisas pelas quais tinha apreço logo se transforma em fonte de criação poética. Pouca coisa em Paris o distraiu da sua ligação com a pátria portuguesa, nem mesmo a dedicação aos estudos para a conclusão do curso de Direito, motivo do seu distanciamento de Portugal, foi suficiente para o desprendimento dos bens culturais e morais deixados em Portugal. Em Paris, busca contato com Eça de Queirós, cônsul na França, para resolver problemas burocráticos da Universidade. O encontro descrito de forma minuciosa em carta datada de 25.11.1890 e dirigida a Alberto de Oliveira utiliza de metonímias que substituem o autor (Eça de Queirós) por seus personagens: Padre Amaro, Fradique, Primo Basílio, entre outros. O tão esperado encontro, contudo, revela mais do que uma aproximação entre um fã e o seu ídolo ou tentativa de manter por mais tempo viva as lembranças, a saudade, as tradições, os valores portugueses, aldeãos – individualmente lembrados por um estrangeiro longe da sua terra natal. Revela também a frustração pela descoberta de um Eça de Queirós distante da idealização feita por António Nobre e seus companheiros e o mais grave: um compatriota que naquele momento mostra-se sem grandes interesses por Portugal, como demonstra esse trecho da carta: Mas notando que o seu desprendimento por Coimbra (ao contrário do que eu imaginava), era absoluto e sincero, notei-lhe que nos seus livros havia uma contínua sugestão de Coimbra, plena de saudade; murmurou um ‘sim da vida de rapaz’. Isto de fugida. A verdade é que não se importa nada. Não admira: é a criatura mais céptica que tenho encontrado. 16 Apesar da efervescência da cidade de Paris, considerada no século XIX como símbolo da modernidade e da cultura, refugia-se no seu quarto, longe das cervejarias e movimentação tão ao gosto dos jovens da sua idade, para curtir a sua solidão e aflições, somente amenizadas pela recordação. Também, poeticamente, Anto passará por essa provação quando no poema “Ao canto do lume” revela sua oposição à cidade luz: “Que hei-de eu fazer? Calai essas 14 15 16 Cf. António Nobre, Correspondência, p. 117. Idem, ibidem, p. 174. Idem, ibidem, p. 129. 13 canções imundas,/ Cervejarias do Quartier! Rezai, rezai!”17 e mostra-se consciente da distância da terra natal, que logo se amplia e se reflete nos obstáculos naturais, como indica esse fragmento do poema “Saudade”: Separam-me dele cem rios, cem pontes, Mas isso que faz? Atrás desses montes, ainda há outros montes, E ainda outros, atrás!18 Só há alívio na evocação saudosa da paisagem e tradições portuguesas, que promovem a identificação afetiva do sujeito poético com seu lugar de origem, assim como, possibilitam a reconstrução poética, mesmo fragmentária, do Portugal de Oitocentos constituindo o objetivo desse trabalho. Importa aqui dizer que o nacionalismo de António Nobre e do sujeito poético do Só, com suas memórias, tipicamente representaram o povo português. Percorrendo o Só encontramos referências diretas e indiretas a Portugal, por exemplo, por meio de perífrases, como estas: “país de marinheiros”, “país de romarias e procissões”, “país sem esperança”, “país estranho”, “Reino d’Oiro e amores”, “Terra encantada”, que acrescentam ao texto caracterizações que ora indicam a predileção do sujeito poético da obra pelo lugar onde nasceu, ora apresentam rejeição pelo mesmo lugar, por estranhamento ou inconformismo de um sujeito poético sensível e perspicaz com relação as mudanças políticas e sociais do seu país. Não só nas perífrases encontramos essas possibilidades de apresentação de Portugal, mas também em passagens como esta, de “Carta a Manoel”: Bateu o quarto. Vê! Vêm saindo das jaulas Os estudantes, sob o olhar pardo dos lentes. Ao vê-los, quem dirá que são os descendentes Dos navegadores do século XVI? Curvam a espinha, como os áulicos aos Reis! E magros! tristes! De cabeça derreada! Ah! como hão-de, amanhã, pegar em uma espada! 19 Quando questiona a descendência dos estudantes que, por se portarem encurvados, tristes, de “cabeça derreada”20 não trazem a coragem e a perseverança dos “Navegadores do 17 Cf. Só, p.168. Idem, ibidem, p.128. 19 Idem, ibidem, p.122. 20 Idem, ibidem, p.122. 18 14 século XVI”21, o sujeito poético faz clara evocação ao passado glorioso da pátria em contraponto com o presente. Em outro poema, no tríptico “Lusitânia no Bairro Latino”, as evocações, na sua primeira parte, são antecedidas pela pergunta: “Onde estais, onde estais?”22, que indicam a perda de alguma coisa ou alguém; como resposta a esse questionamento, sucedem-se séries de imagens que minimizam a ausência e a fragmentação do sujeito poético compondo um universo pessoal e coletivo através das evocações da memória que nos remetem ao recurso latino do ubi sunt, que acentua a ausência ao indicar a perda de alguma coisa ou alguém. Como resposta a esse questionamento, sucedem-se séries de imagens que minimizam a ausência da pátria e a fragmentação do sujeito poético e compõem um universo pessoal e coletivo através das evocações da memória. Para compreendermos como ocorrem essas evocações no Só é crucial esclarecer o conceito de memória, a maneira como ela funciona e apresentar alguns momentos da sua trajetória dentro da história da humanidade. Partiremos da Grécia antiga, passando por Santo Agostinho, abordando os conceitos presentes no livro Matéria e Memória, de Henri Bergson (l896), que procura determinar a relação entre a realidade do espírito e a realidade da matéria através da memória, conceituando-a e separando-a em dois tipos: a memória hábito e a memória pura, até chegarmos às considerações de estudiosos do século XX. Outros autores serão citados ao longo do texto como Maurice Halbwachs, estudioso da memória social e pública, Proust, com a obra Em busca do tempo perdido, e Ecléa Bosi, de Memória e sociedade: lembranças de velhos, além de Jaques Le Goff e outros. Depois de apresentar as questões teóricas sobre a memória e a memória involuntária de Proust na ficção, deter-nos-emos no poema “Lusitânia no Bairro Latino”. Na sua gênese podemos observar os elementos que o constituem: as paisagens mágicas, o Portugal marítimo e rural, o presente duro, cruel em oposição ao passado suavizado, o povo a sofrer, a religiosidade, entre outros. Elementos mantidos vivos pelo sofrimento, evocados e invocados no exílio parisiense pela memória do sujeito poético que manteve ativa a lembrança como forma de preservação da sua trajetória pessoal e dos elementos que dela fazem parte. A análise do poema pretenderá demonstrar como António Nobre constrói e desenvolve poeticamente as imagens da memória e o que delas decorre, ou seja, como trabalha com as evocações, enumerações descritivas, hipotiposes, etc., sem deixar de considerar que esse é um aspecto fundamental da renovação lírica que ocorre em Oitocentos. Aproveitaremos a constituição do poema mencionado como tríptico para analisar parte a 21 22 Cf. Só, p.122. Idem, ibidem, p.96. 15 parte as evocações da memória individual e coletiva que surgem no poema. Além disso, é importante ressaltar que as memórias individual e coletiva do sujeito poético estão estreitamente ligadas às outras memórias que aqui definimos como: paisagística, religiosa e histórico-social. Essa ligação entre as memórias é justificada a partir do ponto de vista de que cada indivíduo carrega em si a memória pessoal e a coletiva. Por isso, a memória é seletiva e composta de rememorações e esquecimentos. Nem tudo deve ser lembrado. A recuperação do passado no Só se apóia nas experiências de vida do sujeito poético e nas observações que ele faz do grupo a que ele pertence ou deseja pertencer. Sendo assim, se António ou Anto recupera Portugal pela memória, nesse trabalho procuraremos selecionar esses momentos e verificar como, através deles, se reconstitui poeticamente o seu país. A TRAJETÓRIA DA MEMÓRIA Na Grécia antiga, a memória era uma deusa de nome Mnemosine, filha de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra) e uma das seis Titanides. Da sua união com Zeus nasceram nove musas que, com amor, inteligência e encanto, estimulavam a capacidade criadora de quem as invocava. Mãe das nove musas, Mnemosine é a matriz, a força geradora da arte poética. Mnemosine é sacralizada pelos Gregos como reconhecimento do valor da conservação do passado. O poeta, muitas vezes, pela invocação das musas, recebe o auxílio de Mnemosine que amplia suas possibilidades de interpretação dos fatos para além do comum, tornando-se um ser à parte, iniciado na arte da recuperação de um tempo que não mais existe no presente e do seu registro. Por isso, “A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma ságeza, uma Sophia. O poeta tem o lugar entre os ‘mestres da verdade’ [cf.Detienne, 1967] e, nas origens da poética grega, a palavra poética é uma inscrição viva que se inscreve na memória como no mármore [cf.Svenbro, 1976].”23 O escritor, integrante desse grupo seleto “[d]os mestres da verdade”, participa por meio da sua atividade poética como aquele que conserva a memória de um povo, suas paixões e características particulares que o diferenciam dos demais. É por meio das lembranças (fonte de imortalidade) que o passado se presentifica, permanece, e não permite que esse mesmo 23 Jaques Le Goff, História e Memória, (Trad. Bernardo Leitão), 2ªed, Campinas, Editora Unicamp, 1992, p.438. Coleção Repertórios. 16 povo se dissolva no esquecimento do que foi e do que é, pois, pelo “saber” que compete ao poeta, esse sempre retorna às origens, para o que é essencial. Ao atentar para o Cristianismo medieval, encontramos o quase monopólio cultural que a Igreja, na Idade Média, impôs ao integrar religião com memória, o que resultou em forma de dominação religiosa, pela perpetuação da história dos santos, pela preservação da memória dos mortos aqui como sinônimo de preservação da história e pelos feitos da própria Igreja. Assim, por temor ou amor a um Deus, recordavam-no para, antes de mais nada, ter o seu reconhecimento, obter o seu perdão e receber suas graças. No cotidiano cristão é assim que as coisas funcionam. A memória de Jesus Cristo é invocada e seus ensinamentos transmitidos pelos apóstolos, seus sucessores, e propagadores da doutrina cristã. No contexto medieval cristão, encontramos uma importante obra cristã a primeira da era em que a memória explicitamente é evocada: trata-se das Confissões, de Santo Agostinho. Nela, a busca por Deus em lugares e em imagens da memória por vezes é frustrada, mesmo assim o espírito avança nas áreas mais profundas da mente humana, como podemos observar o fragmento do Livro X, intitulado O encontro de Deus, que define a memória da seguinte maneira: Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo os objetos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depôs, se é que o esquecimento ainda o não absorveu e sepultou. Quando lá entro mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para o meio, como que a dizerem: “Não seremos nós?” Eu então, com a mão do espírito, afasto-as do rosto da memória, até que se desanuvie o que quero e do seu esconderijo a imagem apareça à vista. Outras imagens ocorrem-me com facilidade e em série ordenada, à medida que as chamo. Então as precedentes cedem o lugar às seguintes, e ao cedê-lo, escondem-se, para de novo avançarem quando eu quiser. É o que acontece quando digo alguma coisa decorada.24 Essa descrição que tem como subtítulo adequado a denominação O palácio da memória, nos remete a uma lenda religiosa, segundo Jaques Le Goff, na qual os romanos apontam para a criação de técnicas de memória: a mnemotecnia. Seu inventor foi o poeta grego Simônides de Céos compositor de cantos fúnebres e de elogio aos heróis. 24 Santo Agostinho, Confissões, 1ª ed., Editor Victor Civita, 1973, p.200. 17 Conta a lenda, narrada por Cícero em seu De oratore, que Simônides, participando de uma festa oferecida por Scopa, um nobre da Tessália, foi encarregado de compor um poema em sua homenagem. Porém, ao fazer o poema esse foi dividido em duas partes: na primeira, enaltecia o nobre e, na segunda, os deuses Castor e Polux. No momento do pagamento, Scopa recusou-se a pagar integralmente o poema e sugeriu que a cobrança da outra parte fosse feita aos deuses homenageados. Passado algum tempo, um mensageiro aproximou-se de Simônides e disse-lhe que dois jovens o esperavam do lado de fora do palácio. Ao sair, Simônides, não encontrou ninguém e enquanto os procurava o palácio desabou, matando todos que lá estavam. Reaparecendo os dois deuses, Castor e Polux, Simônides teve a outra parte do poema paga. Não havendo sobreviventes entre os convidados e anfitriões, ficou a cargo de Simônides reconhecer os mortos por meio da lembrança da posição que ocupavam dentro do palácio e das suas vestimentas. Feito o reconhecimento de todos pelo poeta, os mesmos foram remetidos às suas respectivas famílias. Assim, se fixavam dois pontos de vista sobre a memória artificial ou métodos de memorização: a importância da lembrança das imagens e a organização das mesmas como elementos essenciais para uma boa memória. O texto de Santo Agostinho e a lembrança do palácio de Simônides mantêm pontos de contato se considerarmos a memória como um edifício suntuoso, passível de ser visitado, no qual encontram-se imagens que podem ser evocadas, de forma ordenada, durante o processo de rememoração. Essa ordenação é vista no texto de Santo Agostinho de maneira figurativa, quando o escritor atribui movimentos independentes para suas imagens e sugere compartimentos na memória que se encontram mais próximos ou mais distantes da nossa consciência, como por exemplo, quando diz: Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para o meio, como que a dizerem: ‘Não seremos nós?’25 Justifica-se o procedimento de personificar as imagens pelo fato de que é mais fácil recordá-las com aspectos humanos, como a fala, do que por meio de idéias; portanto, recordar o concreto ao invés do abstrato é uma das características do ser humano, como veremos mais a frente com o filófoso Henri Bergson. 25 Cf. Santo Agostinho, Confissões, p.200. 18 É interessante observarmos, no “Palácio da memória”, a capacidade de divisibilidade do ser, que deixa o corpo de lado, ou seja a matéria, e, em espírito, visita o próprio ser, dá ordens e acredita na capacidade da memória de reter o universo dentro de si mesma. Dividido, esse ser examina a sua consciência e descreve o mecanismo da memória como algo impulsionado por mecanismos motores, que podem ser acionados de acordo com os nossos desejos, de acordo com a nossa inteligência, o que permite relação com uma das memórias classificadas por Henri Bergson: a memória hábito, que torna possível pela repetição das nossas ações, pela reprodução de atos anteriormente executados, escrevermos, dirigirmos máquinas, falarmos um outro idioma, etc. O fragmento do Livro X de Santo Agostinho já citado também nos leva a pensar em um importante capítulo do livro Matéria e Memória (1896), do filósofo Henri Bergson, chamado “Da sobrevivência das imagens”26. Nele, Bergson questiona em que lugar se conserva a lembrança, ou o passado já realizado, e conclui que o ser humano tem como prática comum pensar no cérebro como um reservatório de imagens, passíveis de serem selecionadas e resgatadas de acordo com a necessidade presente. Porém, apesar de cômoda, essa idéia é errônea, pois Bergson confere ao cérebro apenas a posição de imagem estendida no espaço, não ocupando mais do que o momento presente. Pensemos nessas características: o corpo é uma imagem e parte da nossa representação do universo, por isso não pode conter imagens e estar contido nelas. O cérebro, então, não pode desempenhar a função de depósito, pois é a imagem central no conjunto de outras imagens que compõem o mundo material. Certamente, de todas as imagens existentes, a imagem do meu corpo é a única que não varia se o desloco; portanto, se a sua imagem é invariável, é ela que deve ser o centro das imagens com as quais se relaciona, e é ela que se manifesta como “limite movente entre o futuro e o passado, como de uma extremidade móvel que nosso passado estenderia a todo momento em nosso futuro.”27 Colocado no tempo que flui, o meu corpo sempre está onde precisamente as minhas representações do passado vêm expirar, consistindo no ponto de contato entre esses dois tempos: o passado e o presente. É nesse momento, quando mecanismos cerebrais terminam a série de representações do passado, que nos aproximamos mais do real e conseqüentemente de uma ação. Com relação às representações do passado, o corpo desempenha apenas o papel de instrumento de seleção, 26 Henri Bergson, Matéria e Memória (Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito), São Paulo, Martins Fontes, 1990, p.155-208. 27 Henri Bergson, Matéria e Memória, p.85. 19 não mais do que isso. Assim, devemos supor que o passado não se fixa na matéria, somente passa por ela, e se encontre no espírito. Nesse sentido Bergson declara que: Todos os fatos e todas as analogias estão a favor de uma teoria que veria no cérebro apenas um intermediário entre as sensações e os movimentos, que faria desse conjunto de sensações e movimentos a ponta extrema da vida mental, ponta incessantemente inserida no tecido dos acontecimentos, e que, atribuindo assim ao corpo a única função de orientar a memória para o real e de ligá-la ao presente, consideraria essa própria memória como absolutamente independente da matéria.28 Nestes dois pólos da natureza humana: matéria e espírito existe uma oposição, pois o corpo é para o espírito a sua única barreira. Tudo depende das condições físicas e psicológicas na qual se encontra o indivíduo durante o fenômeno da lembrança; qualquer mudança externa ou interna para o indivíduo altera a sua percepção do presente e conseqüentemente o fluxo da memória. Resta concluir que a ação do cérebro, ou do corpo, é apenas condutora, pois sua imagem se encontra entre objetos que o influenciam e sobre os quais exerce influência, fazendo então surgir a percepção da matéria, como Bergson assim explica: [...] perceber consiste em separar, do conjunto dos objetos, a ação possível de meu corpo sobre eles. A percepção então não é mais que uma seleção. Ela não cria nada; seu papel, ao contrário, é eliminar do conjunto das imagens todas aquelas sobre as quais eu não teria nenhuma influência, e depois, de cada uma das imagens retiradas, tudo aquilo que não interessa as necessidades da imagem que chamo meu corpo.29 A ação de perceber ocorre do lado externo do corpo, ou seja, a imagem está fora de nós, por isso, conforme observamos os objetos exteriores os percebemos no lugar onde se encontram e não dentro do nosso corpo. Mesmo assim, existe uma ação reflexiva do nosso corpo sobre os outros corpos, se considerarmos o nosso corpo como elemento central de um sistema e se considerarmos que a sua imagem reflete uma influência virtual sobre outras imagens e sobre a sua própria. Concluímos, então, segundo a lição de Bergson, que ao misturarmos a percepção do nosso corpo com a de outros corpos encontraremos a afecção. Se a imagem do nosso corpo está rodeada de outras imagens, então se deve levar em consideração a sua distância. Quanto mais longe estiverem esses corpos ou imagens deles de nós, menos a sua ação tende a se transformar em ação real; inversamente, se a distância entre 28 29 Henri Bergon, Matéria e Memória, p. 208. Idem, ibidem, p.267-268. 20 eles diminui a ponto de anular esse espaço, então a afecção está em nosso corpo. Com isso, Bergson conclui que: A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da sua duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela.30 É necessário entender que é por meio da memória que o ato de lembrar se mistura com o ato de perceber, ao mesmo tempo que o passado se mistura com o presente. Se admitirmos que a memória é a conservação do passado e que o passado vem à tona por meio das percepções que o eu tem no presente, podendo até mesmo substituí-las, então devemos pensar nas limitações entre um tempo e outro. Ao analisarmos os três tempos: passado, presente e futuro, devemos notar que é da natureza do tempo escoar, num movimento contínuo para frente, para o futuro, porém esse que seria o último estágio, a linha de chegada, não passa de um momento ilusório que tentamos alcançar. Justificamos isso através da duração dos tempos: ao pensarmos no momento presente, ele já passou e se pensarmos no futuro, ele já é presente. Por isso, Bergson afirma que se não há um reservatório para o passado é por não haver um passado da forma como o concebemos, ou seja, um passado acabado, mas sim outro, que não deixou de existir e continua no presente, ou seja, um passado presentificado. Por outro lado, Maurice Merleau-Ponty em sua obra Fenomenologia da Percepção (1994) contrapõe a idéia de que Bergson estava certo em explicar a unidade do tempo por sua continuidade, pois isso significa confundir os três tempos: presente, passado e futuro sob o pretexto de que se caminha de um para o outro sucessivamente. Para Merleau-Ponty o tempo depende de uma visão sobre o tempo, para que isso ocorra, faz-se necessária a presença de um observador, de um sujeito que muda a concepção de tempo a partir do seu ponto de observação dos acontecimentos. Diante desse argumento, devemos refletir sobre o consenso popular de que o tempo passa, escoa, como um rio. Se utilizarmos essa metáfora concebemos a independência do rio que parte, por exemplo, das montanhas até chegar ao mar onde se lançará, criando a noção de passagem do passado para o futuro. Contudo, se introduzirmos um observador, que tanto pode ficar na margem do rio ou seguir o seu fluxo, as relações de tempo se inverterão. Para aquele que fica, a direção das águas não mantém a mesma simbologia, outrora definida como: as águas que partem da nascente representam o passado, as que passam pelas margens o presente e as que caminham para o mar o futuro. Nesse caso, o 30 Cf. Henri Bergson, Matéria e Memória, p.77. 21 observador, que se mantém em um das margens, reconhece as águas que já escoaram como o passado e o porvir está nas águas que partem da nascente. Portanto, o passado e o futuro surgem a partir da minha concepção de tempo, “se não estou no instante atual, estou também na manhã deste dia ou na noite que virá, e meu presente, se se quiser, é este instante, mas também este dia, este ano, minha vida inteira.”31. Diante desses argumentos, a conclusão a que chega o filósofo é de que: [..]o tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha relação com as coisas. Nas próprias coisas, o porvir e o passado estão em uma espécie de preexistência e de sobrevivência eternas; a água que passará amanhã está neste momento em sua nascente, a água que acaba de passar está agora um pouco mais embaixo, no vale. Aquilo que para mim é passado ou futuro está presente no mundo.32 Acerca da razão de Bergson “em apegar-se à continuidade do tempo como um fenômeno essencial”33, Merleau Ponty considera que é preciso apenas explicá-la de maneira que compreendamos a existência dos tempos, não de maneira que não possam ser diferenciados um dos outros, mas que cada tempo não esteja encerrado em si mesmo. Dessa forma cada presente “se transcende em direção a um porvir e um passado”34. Essa afirmação justifica a metáfora do rio como o transcorrer dos tempos, não pelo seu movimento em direção ao mar, mas por ser ele uma unidade que possibilita ao observador se voltar para frente ou para trás. Merleau-Ponty também faz a distinção entre percepção e recordação e afirma que “perceber não é recordar-se”35. E nos coloca diante do exemplo usual da leitura de um jornal: diante da rapidez com que vemos as letras impressas na folha de papel, nosso olhar cria inúmeras lacunas preenchidas simultaneamente pela projeção de recordações. De maneira que, durante a leitura reconhecemos a palavra a partir de uma pequena unidade semântica e a nossa mente completa o restante da palavra com o que há dela registrada em nossa memória. Se dessa maneira simplificada fosse possível explanar (definir) a recordação, como se explicaria, então, a hipótese de que o mesmo jornal, visto de maneira inversa, com as 31 32 33 34 35 Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p.552. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p.552. Idem, ibidem, p. 563. Idem, ibidem, p. 564. Idem, ibidem, p. 48. 22 impressões embaralhadas, impossibilita a nossa capacidade de rememoração? A resposta está em: [...] para vir a completar a percepção, as recordações precisam ser tornadas possíveis pela fisionomia dos dados. Antes de qualquer contribuição da memória, aquilo que é visto deve presentemente organizar-se de modo a oferecer-me um quadro em que eu possa reconhecer minhas experiências anteriores.36 Assim, entendemos que a evocação da memória necessita de uma organização na imagem ou no som que desperta a lembrança. Ela precisa, por exemplo, reconhecer um objeto na sua forma e sentido; isto não quer dizer que o mesmo deva ser idêntico àquele do passado. Basta que alguns traços imitem uma experiência captada pelos sentidos no horizonte do passado para que outra experiência similar se desenvolva a partir do lugar de origem da anterior, ou seja, o passado. Conclui-se então que o passado de fato não é importado da percepção presente por um mecanismo de associação, mas desdobrado pela consciência presente. Detendo-nos, novamente, às postulações de Henri Bergson, percebemos que a conservação dos fatos passados serviria para motivar ações do indivíduo frente a alguma situação que, pela percepção, resgata um episódio qualquer idêntico que servirá como modelo. Na verdade, segundo Bergson, é o passado o responsável por sua projeção no presente, é de lá que parte o chamado, é a nossa experiência adquirida que recebendo um impulso sensorial do presente corresponderá prontamente com a reprodução dos elementos conservados pelo espírito. Basicamente, o passado ressurge sob duas formas extremas: por mecanismos motores ou por imagens-lembranças. Para defini-las, Henri Bergson revê essas duas formas e ressalta que o passado atua no presente, conservando-se no inconsciente à espera de um chamado ou por vezes substituindo o presente de maneira integral. Respectivamente esse filósofo francês denomina as memórias como: memória-hábito e memória pura. Para complementar esse pensamento, recorremos à Ecléa Bosi, que, em seu livro Memória e Sociedade (Lembranças de Velhos), afirma que: De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem 36 Cf. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 44. 23 lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado.37 Segundo Bergson, adquirimos a memória-hábito através do nosso esforço cotidiano em repetir situações até a sua fixação no nosso organismo. Essa memória é composta por um conjunto de mecanismos motores, inteligentemente estruturados, que asseguram a reprodução dos detalhes necessários para a repetição de uma ação, que tem como modelo outra, já ocorrida no passado. Por isso, podemos reproduzir todos os dias mecanicamente ações como dirigir um automóvel, comprar alimentos, ligar e desligar aparelhos, andar, etc. Esse tipo de memória é responsável pelo nosso convívio em grupo, pela aquisição de cultura e sua permanência na sociedade em que vivemos. Sua limitação se resume em não poder evocar imagens do passado. Por outro lado, longe do nosso controle, temos a verdadeira memória, ou a memória pura. Nela, a imagem-lembrança se atualiza de maneira independente, estimulada por percepções de toda ordem. Quando ela ocorre temos os momentos já vividos reproduzidos de forma nítida e completa. Isso só é possível porque entramos, durante o processo de rememoração, num estado de letargia capaz de suprimir a nossa consciência. Por conta disso, durante a reprodução, somos levados a abandonar o presente para vivenciar “novamente” o passado com todas as suas cores e com todas as sensações do momento da origem dessas imagens. Porém, essa lembrança espontânea, oculta em nosso inconsciente ou por detrás das nossas lembranças adquiridas, é bastante frágil e sensível, se materializa por acaso e escondese novamente ao menor movimento da nossa consciência. É nesse aspecto evocativo da memória pura que se encontram as imagens do sonho e do devaneio, que funcionam como uma válvula de escape do mundo real. Está associada ao devaneio e ao sonho a idéia do nãofinito e as inúmeras possibilidades de consolo para a “dor de viver”; segundo Alfredo Bosi “O devaneio seria a ponte, a janela aberta a toda ficção”38. Segundo a definição de Nicola Abbagnano, no Dicionário de Filosofia, a memória “parece ser” constituída por duas condições ou momentos distintos, que são respectivamente a conservação dos acontecimentos passados e a possibilidade de evocá-los, tornando-os presente (recordação). A falta de firmeza na definição, indicada na expressão “parece ser”, confirma o quanto o cérebro humano ainda tem a ser explorado. Algumas pesquisas neste campo da memória conservam nos dias de hoje os mesmos termos, senão as mesmas idéias, já 37 38 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, 3ªed., São Paulo, Cia das Letras, 1994, p.48. Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 27. 24 utilizados antes de Cristo por Platão e Aristóteles. Dos estudos desses dois autores discutidos por Abbagnano, destaca-se o fato de Platão empregar termos que inspiram os atuais como “conservação de sensações” e “reminiscências” e o fato de Aristóteles já ter explicado o processo da memória, seja com relação à memória retentiva ou à recordação. Ao tratar da recordação, Aristóteles evidencia outra característica fundamental: o “seu caráter ativo de deliberação ou de escolha.”39 Está patente, portanto, que esses aspectos não mudaram ao longo da história desses conceitos já que as concepções modernas e contemporâneas também vêem a memória como conservação. Repare, porém, que à afirmação de Aristóteles – de que o processo da memória é inteiramente físico – contrapõe-se o que Bergson diz dela, ou seja, que a memória pertence ao espírito no sentido em que conservamos mais aquilo que age diretamente – de modo positivo ou negativo – sobre nossas emoções. Sobre esse questionamento, o estudo científico da memória ganhou impulso no século XX. Durante muito tempo debateu-se a possibilidade de a memória ser considerada uma função unitária, não fragmentada em diversos tipos de memória. O reconhecimento da fragmentação aconteceria no início do século XX, por meio de uma abordagem experimental, baseada na observação de alguns aspectos do comportamento humano originando a Escola Behaviorista que estabeleceu associações de estímulo-resposta para explicar o aprendizado. Porém, o caráter limitado do behaviorismo foi ampliado por Edward Tolman (1886-1959), mestre da Psicologia Experimental na Universidade de Berkeley (Califórnia), que na década de 50 comprovou a possibilidade da aquisição de conhecimento e representação de mundo por animais que aprenderam respostas por meio de um estímulo. A descoberta resultaria na confirmação da existência de mais de um tipo de memória. Se antes havia a “memória automática”, resultante de um estímulo resposta, precisou se acrescentar mais uma, a “memória cognitiva”, que possibilita a resposta inteligente a diversos problemas. Nos anos 60 preferiu-se trabalhar apenas com as idéias de memória de curta e de longa duração. A memória de curta duração é caracterizada pela capacidade de manter pequenas quantidades de informações em períodos breves de tempo, já a memória de longa duração tem um armazenamento de longo prazo e com grandes quantidades de informação. Mais recentemente, por volta dos últimos vinte anos, descobriu-se a memória de longa duração polimórfica e a capacidade de adaptação do homem em manter algumas aptidões mnemônicas intactas após lesões cerebrais. Essas descobertas revelam a evolução do fenômeno mnemônico que precisou sobrepor módulos ou sistemas cerebrais para processar de 39 Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 1ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.658. 25 forma cada vez mais rápida a quantidade de informações complexas que o mundo moderno nos impõe. Tão complexa quanto as informações que recebe é a estrutura cerebral. Hoje já podemos por meio de técnicas de imageamento, que revelam os pontos ativos do cérebro no ato da recordação, reconhecer como área trabalhada o neocórtex40, quando nos esforçamos para lembrar um acontecimento com precisão. Essa topografia da memória indica que a memória é distribuída em redes interconectadas, estruturas responsáveis pela elaboração e evocação das lembranças. Toda experiência, ou acontecimentos novos, é integrada às redes já existentes, ativando-as. Assim, as novas experiências incidem nas antigas por se assemelharem a elas, ou porque a elas se opõem. O novo evoca o antigo, se consolida nele e representa nessa operação o acúmulo de experiências adaptativas de uma espécie. Quanto à essas redes, ainda não há total conhecimento sobre o seu mecanismo e sua potencialidade. Pesquisas atuais indicam uma correspondência entre as funções de registrar, processar e utilizar informações e as estruturas cerebrais indispensáveis ao seu funcionamento. A classificação atual dos tipos de memória varia de acordo com essa correspondência e a memória é revista desde os tipos primitivos, que explicam a habituação e a sensibilização, até às complexas memórias conscientes do homem. Os tipos são convenientemente divididos em memória não-declarativa ou reflexiva e memória declarativa. A memória não-declarativa inclui o condicionamento clássico, habilidades e hábitos, e é em grande parte ou, com freqüência, completamente inconsciente. A memória declarativa, por outro lado, envolve a recuperação consciente de eventos ou fatos que tenham ocorrido. Esses tipos de memória são processados de formas diferentes e em partes diferentes do cérebro. Apesar da impressão de independência entre os sistemas, sabemos que em certas manifestações da memória os mesmos interagem e, em alguns casos, entram em conflito. Exemplo de um conflito observado é o funcionamento da memória declarativa explícita (memória dos fatos e eventos) ligada ao Lobo Temporal, que pode ter a mesma zona cerebral, igualmente indispensável, para o condicionamento clássico das respostas musculares, normalmente relacionadas ao cerebelo. A conversão da memória declarativa em memória reflexiva pode vir a ocorrer pela repetição constante. Assim, por exemplo, os músicos 40 Conforme Joaquín Fuster. “Arquitetura da Rede”, in Viver Mente & Cérebro, São Paulo, nº 02, p.26-31, 2005. “Pesquisas realizadas em primatas mostram que a memória é armazenada, principalmente, no neocórtex, isto é, na região cerebral mais recente do ponto de vista evolutivo e que os diversos tipos de memória são formados por redes de neurônios do neocórtex: a região posterior do córtex cerebral e a região frontal são essenciais para a memória. A formação de memórias é acompanhada pela modificação das sinapses, os contatos entre neurônios; a ativação das sinapses modificadas entre neurônios interconectados faz ressurgir as lembranças aí impressas. As memórias são guardadas sob a forma de modificações nas relações específicas entre neurônios e não como alterações em moléculas ou neurônios específicos da memória.” 26 desenvolvem movimentos respostas que, com o treinamento, se tornam "instintivos". De maneira semelhante, muitos aspectos do comportamento, tão complexos quanto dirigir um automóvel ou nadar, tornam-se respostas de hábito. Sendo assim, convém enfatizar que se tratando do funcionamento da memória ainda não há afirmação absoluta que não possa ser contestada. Inicialmente o estudo da memória baseou-se nos mecanismos ligados especialmente aos estados emocionais, cujas manifestações só podiam ser avaliadas em termos psicológicos. Entretanto, nos dias de hoje, como já observamos, a memória pode ser analisada para além das manifestações do espírito, como sugeriu Berson nos últimos anos do século XIX , para tornar-se aos poucos tema da neurobiologia. Esse é o esforço de cientistas ligados à área: a busca da “naturalização” da memória. Isso quer dizer que algumas questões fundamentais pensadas a mais de um século, como as formas da memória, a sua consolidação e representação, podem ser explicadas pela psicologia-cognitiva pensam a informação que estuda o modo como as pessoas percebem, aprendem, recordam e ou pela biologia molecular. Todos esses estudos, evidentemente, proporcionam um melhor conhecimento dessa função cerebral, possibilitando reconhecer e até remediar as falhas dessa faculdade em benefício do homem, como por exemplo, a cura do Mal de Alzheimer. Dessa perspectiva evolutiva, o homem além de manter a sua capacidade de armazenamento de informações sobre o meio que o cerca, no sistema nervoso, criou outras memórias artificiais para auxiliá-lo. Estamos falando aqui de instrumentos capazes de “simular” a capacidade humana de armazenar e transmitir informações. São eles os livros, as bibliotecas, fotografias, arquivos sonoros, museus, computadores, etc. Está patente que os dados contidos em máquinas, como computadores, por exemplo, são muito diferentes da memória humana, pois para o seu armazenamento são utilizados procedimentos de registro sistemáticos que dificilmente substituirão as memórias emocionais, contudo essas “memórias paralelas” evoluem tanto quanto a memória biológica e sinalizam a perpetuação de um tempo passado. A preocupação com a passagem do tempo e a análise da memória não é apenas material de estudo para filósofos, sociólogos ou profissionais na área da saúde; também na literatura encontramos escritores que se preocuparam com essa questão. Entre eles, não poderíamos deixar de citar o escritor francês Marcel Proust, de Em busca do tempo perdido, pela importância das suas considerações sobre a passagem do tempo e a memória. Proust analisa a passagem do tempo em seus personagens revelando que o “tempo perdido” pode ser recuperado, não por meio da memória comum (hábito), mas por outra 27 memória, denominada na obra como involuntária, que não depende do nosso esforço consciente, mas sim, de algum estímulo externo para que ela apareça de forma espontânea, como a memória pura de Bergson. Cabe aqui ressaltar que a teoria de Bergson que “realça os laços da memória com o espírito, senão com a alma”41 provavelmente influenciaram o ciclo narrativo de Proust, pela sua quase obsessão em observar as transformações que o tempo pode fazer ao homem. Proust revela em sua obra o sentimento de ter apreendido uma fração de tempo já passado, um desejo de sobreposição ou substituição do passado sobre o presente, como comprova a passagem a seguir: E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhada no chá que me dava minha tia [...], logo a casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o lanço truncado que era o único que recordava até então); e com a casa, a cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas onde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. [...] e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.42 De maneira bastante significativa para a obra, o episódio da Madeleine mergulhada no chá representa o retorno à infância, com todas as sensações adormecidas, e à paisagem da cidade de Combray, onde o personagem da obra passava suas férias no passado; outros episódios similares aparecem ao longo dos sete volumes que compõem o ciclo Em busca do tempo perdido, atestando, com isso, a importância dos processos de memória para a recuperação de um tempo perdido. Também António Nobre usou a memória pura e recuperou o passado. Outros como Gèrard de Nerval, já haviam feito uso dela, mas é Marcel Proust na prosa43 (anos depois da publicação do Só) e António Nobre na poesia portuguesa que aprofundam a busca pelo tempo perdido. Aliás, no Só, o autor utiliza a memória pura de forma explícita. Basta que elementos externos evoquem essa memória para que ocorra o distanciamento do presente e o sujeito poético retome um outro momento vivido, como nessa estrofe do poema “Ao canto do lume”: Lá fora o Vento como um gato bufa e mia... Ó pescadores, vai tão bravo o Mar! Cautela... Orçai! Largai a escota! Ave Maria! 41 Jaques Le Goff, História e Memória, p.471. Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, (Tradução de Fernando Py), Rio de Janeiro, Ediouro, 2002, p.53. 43 No caminho de Swann, primeiro volume da série Em busca do tempo perdido foi escrito em 1913. 42 28 Cheia de Graça... Horror! Mortos! E a água tão fria!... Que triste ver os Mortos a nadar!44 Por meio de estímulos sensoriais se constrói todo um cenário de apreensão: o vento do lado de fora evoca os homens do mar, cujas vozes, a pedirem proteção à santa, a dar ordens de comando são reproduzidas via memória, assim como a sensação da água fria que aproxima o sujeito poético da iminência da morte desses pescadores no mar agitado – imagem que evoca o ser português e ser português é estar em contato estreito com o mar, quer como navegador de Quinhentos, quer como pescador de Oitocentos e, por isso, a percepção do vento que “bufa e mia” traz tantas apreensões. Com a publicação do Só (1892), Nobre consegue produzir uma obra cheia de afetividade, ligada às emoções da infância e adolescência do sujeito poético e capaz de recuperar o tempo áureo do indivíduo e o da pátria por ele reconstruída poeticamente por meio de evocações e invocações que fornecem imagens do Portugal, piscatório, rural e nortenho. As ações de evocar e invocar são freqüentes na obra, por isso é importante aqui fazer a distinção entre esses dois vocábulos. O significado resumido de evocar é chamar de algum lugar, trazer à imaginação, à lembrança. Pela evocação identificamos a contínua utilização dos mecanismos da memória que nos fornecem as imagens de um tempo vivido pelo sujeito poético e as suas sensações. Já invocar é o pedido de socorro, de proteção, comum no Só pelo sentimento de melancolia que a obra carrega, por vezes o poeta mantém o tom de ladainha em alguns poemas, como que a solicitar ajuda de santos importantes da cultura portuguesa. Passagens como “Senhora dos aflitos!/ Martyr São Sebastião/ Ouvi os nossos gritos! ”45 revelam o dilaceramento do sujeito poético diante da sua impotência em transformar o seu próprio destino e o da pátria, já que juntos encontram-se no mesmo desalento e desesperança. Para amenizar a sua dor o sujeito poético reproduz em suas súplicas pedidos de ajuda, numa postura comum ao ser humano que se apega à religião ou à necessidade de uma crença pelo avizinhar-se da morte que tanto medo causa àqueles que sofrem pelo seu aspecto sobrenatural, desconhecido. Na trajetória dos poemas do Só, a evocação e a invocação são utilizadas como recurso de presentificação, ou seja, a ação de evocar ou invocar não só trazem à tona o passado, como também possibilita ao sujeito poético transitar simultaneamente entre esses dois tempos: o passado e o presente. Quando isso ocorre, as imagens do passado, com todas as experiências de vida do sujeito poético, se misturam e se agregam ao presente, comprovando a incessante 44 45 Cf. Só, p.166. Idem, ibidem, p.99. 29 atividade do passado em atuar no presente como fio condutor entre o que fomos e o que somos, no intuito de preservar a nossa identidade. Portanto, devemos observar que o voltar ao passado no Só não é um ato neutro e se constantemente o regresso é acompanhado pela saudade, é porque António Nobre “profundamente encarnou a tristeza nacional”46. Quem lê o Só não somente percebe o sofrimento do sujeito poético que logo de início se separa da sua mãe, para depois se separar da sua pátria, como veremos mais adiante, como também compartilha a decadência de um povo que no passado teve glórias, como comprovam Os Lusíadas, de Camões, obra monumental de elevação dos portugueses e no final de Oitocentos não as têm mais. O Só reproduz poeticamente, entre outras coisas, a história de fracassos e fadigas de um povo que tem como hábito cultivar o sentimento agridoce conhecido como saudade. Considerado como fiel representante do Portugal do século XIX, dessa obra podemos retirar o discurso identidário de um povo que, parafraseando as palavras de Alberto de Oliveira, não passou de uma geração sonâmbula que fez alas para ver Portugal tombar na cova e precisava de um poeta como Nobre para cantar “com eloqüência a agonia dos farrapos de alma”47 que ainda restavam. Por outro lado, a beleza das imagens infantis que compõem o Só, nos dá a impressão de uma sublimação perpétua do passado precioso da pátria. Vejamos, a seguir, como o poeta lida com esses dois tipos de imagens e representação e como constrói a sua memória poética. ANTÓNIO NOBRE E A MEMÓRIA COMO RECONSTRUÇÃO POÉTICA Quando iniciamos a leitura do Só, de António Nobre, deparamo-nos, na 1ª edição, com o poema “Memória à minha mãe, ao meu pai” e, na 2ª edição, substancialmente modificada pelo poeta, com o poema “Memória”; são dois poemas diferentes, mas ambos apresentam a história do sujeito poético e dos seus antepassados. Desse modo, assim que abrimos o Só, tanto na 1ª quanto na 2ª edição, verificamos a importância que a memória, ou melhor, as operações da memória têm na obra do poeta. Por meio do poema “Memória”, iniciado em tom 46 J.Pinto Loureiro. et.al, Coimbra e Antônio Nobre (Homenagem ao poeta), Coimbra, Coimbra Editora, 1940. p. 07. 47 J.Pinto Loureiro. et.al, Coimbra e Antônio Nobre (Homenagem ao poeta), p. 07. 30 oral48 “Ora isto, Senhores, deu-se em Trás-os-Montes,/ Em terras de Borba, com torres e pontes”49, podemos claramente observar a contínua retomada do passado individual e familiar e uma quase incompreensão do fado mofino do sujeito poético. Essa incompreensão se dá a partir da filiação privilegiada do sujeito poético que tem um pai caracterizado como bom, “egrégio”, e uma mãe com características de santa, como as representações femininas presentes no Só. Porém, apesar das qualidades dessas duas figuras apontadas no poema percebemos a infelicidade do sujeito poético, também porque, do pai, advém o sentimento de exilado: “Português antigo, do tempo da guerra. / Levou-o o Destino p’ra longe da terra”50, e, da mãe, o do abandono: “Vou ali à cova, em berlinda, / António e já volto... E não voltou ainda!” 51. Como o pai também desaparece à procura da mãe, o resultado dessas ações não pode ser outro senão a solidão e a saudade que acompanham por toda a obra o sujeito poético a partir de “Memória” até o reencontro com a mãe em “Males de Anto II (Meses depois, num cemitério)”. Segundo Paula Morão em O Só de António Nobre: Uma leitura do nome, o poema em tela ...é simultaneamente programa a realizar e resumo do já vivido; ‘Memória’ pode ler-se como advertência, prevenindo contra ‘o livro mais triste’, ou como palavra lapidar, instituindo o ‘livro’ como o lugar de perpetuação do ‘Poeta’ – ‘Príncipe’ – ‘Menino’ feito paladino de um ‘fado’ seu, mas que se transcende para ser também a saga de um Portugal antigo que no tempo se desfaz, e, paradoxalmente se procura.52 No Só essa busca ou, melhor dizendo, a apresentação de um país outrora glorioso dáse pela memória do sujeito poético que, ao longo da obra, procura recuperar o passado e reconstruir poeticamente fragmentos de Portugal, a partir de poemas como “Memória”, “António”, “Lusitânia no Bairro Latino”, entre outros. O processo de rememoração é 48 Pela tradição, a narrativa é uma estória contada, oralmente, a partir da memória. Basicamente, a figura do rapsodo é a de alguém que conta algo a um público ouvinte. Conforme a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. (Vol.XXIV, Editoria Enciclopédia Ltda, Lisboa, [195-?].), “Na Grécia deu-se o nome de rapsodos, a partir de certa época, aos contadores profissionais. Até o fim do século V os Gregos, com poucas exceções, não conheceram Homero e Hesíodo pela leitura, mas sim pelas recitações dos rapsodos, e algumas partes dos poemas pelo ditado dos mestres. Os primeiros exemplos seguros de “rapsodos” remontam ao século V, e a própria palavra é foneticamente recente. Os antigos aedos ou rapsodos eram não só recitadores, mas também poetas. Não escrupulizaram aliás, em interpretar trechos de obra alheia.” (p.202). 49 Cf. António Nobre, Só, p.78. 50 Cf. Só, p.78. 51 Idem, ibidem, p.79. 52 Paula Morão, O Só de António Nobre. Uma leitura do nome, p.25. 31 constante, o sujeito recupera imagens, sons, sensações e evidencia a sua saudade pela pátria, como podemos observar nesse fragmento do poema “Poentes de França”: Sol às Trindades, atrás dos pinheiros, À hora em que passam branquinhos moleiros, Levando farinha pra cozer o pão! — Ó forca do Sol-pôr! ó Inferno de Dante! Açougue d’astros! ó sabat de feiticeiras! Ó Sol ensangüentado! ó cabeça-falante, Que o funâmbulo Poente anda a mostrar nas feiras... [...] — Que paz pelo Mundo, nessa hora ditosa! Quando fecha a lojinha a Srª Rosa, Quando vem das sachas o Sr.João... [...] — Ó hora em que as águas rebentam das minas... Ó poentes de França! não vos amo, não! [...] Ó hora em que passam moças e meninas Que, em tardes de Maio, vão às Ursulinas, Com rosas nos seios e um livro na mão!53 Nele o elemento motivador do poema é o sol. Não aquele do meio-dia em todo o seu esplendor, mas outro, em queda, o do final do dia. Sob esse aspecto ambos os poentes evocados são iguais; a diferença está na contraposição entre o pôr-do-sol português e o francês. Há uma nítida diferença na forma de narrar: quando se trata dos poentes da França, a lembrança é evocada solenemente, com uma linguagem simbólica e ultra-civilizada, o que não ocorre nas estrofes em contraponto, nas quais a simplicidade ganha contornos domésticos e de conforto. É no contraponto que se ressalta a caracterização de um Portugal rural e provinciano. A valorização dos aspectos rotineiros de um povo que trabalha no comércio e no campo confirmam o desejo do “exilado” de retorno a casa, à hora do descanso e à paz familiar. Nesse território composto por pessoas e imagens suaves temos a representação de um ideal de vida que só se atinge por meio da saudade e das evocações da memória, que fielmente reconstituem a vida desejada. Contudo, mesmo quando se trata desse tempo da memória, 53 Cf. Só, p.161. 32 existe uma consciência do fim, pois sutilmente por meio do nome da dona da lojinha (Rosa) ou da flor carregada pelas “moças e meninas” que leva o mesmo nome, recupera-se o sentimento de efemeridade da vida que apesar de bela passa. Por isso, a dupla negação do “não vos amo, não!” que rejeita o pôr-do-sol estrangeiro no seu descontrole de “Inferno de Dante!”, assim como todos os “-ãos” que finalizam as estrofes da segunda voz reforçam a preferência por Portugal e tudo o que lhe é característico. Por várias passagens do Só, o sujeito poético procura compor um quadro completo daquilo que viu e conservou na memória, embora essa completude seja questionável, porque Henri Bergson ao explicar o funcionamento da memória, afirma que nenhuma rememoração é completa; ao contrário, é fragmentada e não mais a mesma. Maurice Halbwachs, estudioso das relações entre memória e história pública, também faz considerações semelhantes quando diz que: Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado.[...] Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e do que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.54 Por isso, devemos pensar na memória da pessoa como um pequeno fragmento da memória do grupo, já que o indivíduo pertence a uma organização social sujeita à tradição, à linguagem, aos costumes, à cultura em geral. É por meio da memória que o sujeito poético mistura elementos da natureza com os infortúnios humanos, recupera tradições, descreve os lugares por que tem apreço, transfere seu mundo interior, triste e desalentado, para o exterior e retrata a dor agônica de um país a desmantelar-se, assim como sua vida, assim como sua infância perdida. No Só, a memória funciona como depósito de imagens paisagísticas, religiosas e histórico-sociais e ao longo da obra, através das operações de memória, o sujeito poético tenta recuperar momentos subtraídos pelo passar do tempo e que, se sabe, não retornarão jamais. Sendo assim, o passado vivido pelo indivíduo ou pelo coletivo é somente resgatado por algumas frações de tempo, em que constará momentânea e fragmentariamente o já vivido, que, de forma muito especial, encontra-se extra temporalmente armazenado na memória e aguardando um estímulo externo para ressurgir durante a evocação. 54 Citado por Ecléa Bosi em Memória e sociedade: Lembranças de velhos (3ªed., Companhia das Letras, São Paulo, 1994, p.55) . 33 Através da evocação, o momento presente parece desaparecer, não apenas do tempo, mas do nosso próprio ser. Somos lançados, nesse instante, a uma condição de “objeto de zombaria do destino” e ficamos à “disposição” do processo de rememoração, pois quando isso ocorre nos deparamos com a memória pura, não reencontrada pelo esforço de uma repetição mecânica de palavras ou momentos vividos, mas, sim, pelo afloramento de uma reserva de imagens-lembranças, ações passadas, de experiências, que no inconsciente do ser conservaram-se e que vêm à superfície, através de estímulos externos. Isso ocorre no poema “António”, no qual a rememoração é antecedida pelo ambiente, caracterizado pela noite e pelo fogo, que propicia o recolhimento íntimo: Que noite de Inverno! Que frio, que frio! Gelou meu carvão: Mas boto-o à lareira, tal qual pelo Estio, Faz sol de verão! Nasci, num Reino d’Oiro e amores, À beira-mar.55 Por vezes, quando o sujeito poético se desloca para outros meios ou entra em contato com novos grupos evoca lembranças significativas condizentes àquele momento atual. Isso ocorre, por exemplo, no soneto de nº “14” quando em alto mar “António” é enlevado pelo luar e passa a rememorar o destino dos marinheiros de Quinhentos. Principalmente no ponto em que envolvidos pela aventura e pelo dever patriótico atravessavam o mar em busca do estrangeiro e da glória, como ele agora o faz nessa passagem: Vou sobre o Oceano (o luar de doce enleva!) Por este mar de Glória, em plena paz. Terras da Pátria somem-se na treva, Águas de Portugal ficam, atrás. [...] Onde vou? Meu fado onde me leva? António, onde vais tu, doido rapaz? Não sei. [...] Paquete, meu paquete, anda ligeiro, Sobre depressa à gávea, Marinheiro, E grita França! pelo amor de Deus!56 55 56 Cf. Só, p. 80. Idem, ibidem, p. 204. 34 O estrangeiro complementou a capacidade do sujeito poético de evocar elementos constituintes da sua pátria. De Paris recupera pela memória a sua terra matricial, o mesmo já havia feito de Coimbra e de Leça, sua pátria sentimental. Contudo, em Paris a rememoração ganha força e manifesta toda a angústia de exilado temporal e espacial em evocações que reconstituem Portugal. No Só, cada imagem formada pela lembrança traz como elemento principal o próprio sujeito poético, pois não seria lembrança se aquele não fosse elemento essencial na captação da imagem selecionada. Sendo assim, é este sujeito poético o responsável pela manutenção desse mundo rememorado, que toma corpo pela reconstrução poética de lugares por onde passou, pela experiência de pertencer àqueles arredores, como em “Carta a Manoel” quando diz: Manoel, vamos por aí fora Lavar a alma, furtar beijos, colher flores, Por esses doces, religiosos arredores, Que vistos uma vez, ah! não se esquecem mais: Torres, Condeixa, Santo António de Olivais, Lorvão, Sernache, Nazaré, Tentúgal, Celas! Sítios sem par! Onde há paisagens como aquelas? Santos Lugares, onde jaz meu coração, Cada um é para mim uma recordação...57 Outro modo de (re)construir o mundo ausente é a descrição da vida dos poveiros, homens do mar e que vivem dele, seres admirados pelo sujeito poético por terem ligação com o passado náutico da nação e por integrarem a sua infância encantada. Desse povo retira o drama da existência, os pormenores de um cotidiano cercado por sacrifícios e perseverança. Mitifica, faz folclore com o seu cotidiano de sofrimento, com a sua luta pela sobrevivência, com a simplicidade de pessoas sem sobrenomes importantes, e ao se referir a elas usa simplesmente, por exemplo: o “Joaquim da Teresa”, o “Francisco da Hora”, o “Zé do Telhado”, nada mais, porque esse é o modo como eram conhecidos. Pode-se dizer que “António” ou “Anto” aproximasse mais do povo por reconhecer a sua força diante dos obstáculos que a vida oferece. Com eles sente-se seguro, integrado, porque ambos sofrem, mas resistem, como essa descrição do soneto de nº “8”: Far-me-ia outro, que os vossos interiores, De há tantos tempos, devem já estar 57 Cf. Só, p. 123. 35 Calafetados pelo breu das Dores, Como esses pongos em que andais no Mar! Ó meu Pai, não ser eu dos poveirinhos! [...]58 No prefácio de João de Barros em O Povo na Literatura Portuguesa, lemos que o povo é o grande responsável “pela fundação de Portugal, a causa determinante da sua existência, e será sempre a garantia firme do seu futuro” 59. Por isso, talvez, haja a preferência no Só em ressaltar as virtudes e os sofrimentos desse povo através de personagens representativas dele, como pescadores, coveiros, amas, caseiros, homens rudes que idolatraram “Anto” durante a sua infância e adolescência e conviviam com suas excentricidades. Exemplifica essa presença e esse apego às pessoas a ama Carlota, caracterizada como: Boa velhinha como ela é meiga e devota! Já estaria bem se me valessem rezas. E, no Oratório, tem duas velas acesas Noite e dia, a clamar à Senhora das Dores! E queima-lhe alecrim, põe-lhe jarras com flores E sei, até, que prometeu uma novena, Se eu escapar... Como tudo isso me faz pena! E trata-me tão bem! como se eu fosse Seu filho. Dá-me, olhai, pratinhos de arroz doce Com as iniciais do meu nome em canela, [...] 60 Outro exemplo são as lanchas dos poveiros, os pescadores de Oitocentos relacionados à grandiosidade dos navegadores da esquadra de Vasco da Gama; vejamos esse trecho de “Lusitânia no Bairro Latino”: Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados, O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes, E das vagas, aos ritmos cadenciados, As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes “As armas e os barões assinalados...” 61 58 Cf. Só, p. 198. Fernão Lopes, et al, O povo na Literatura Portuguesa, Seleção e prefácio de João de Barros, Lisboa, Ed.Guimarães & Cia, [ ca 1908], p.9 60 Cf. Só, p. 240. 61 Idem, ibidem, p. 99. 59 36 Está patente nesses versos que, através dessas pessoas humildes, durante as rememorações, o sujeito poético também demonstra a saudade do passado glorioso, do tempo áureo da pátria. E a saudade do império marítimo quinhentista desponta não somente pela simples relação entre os pescadores de hoje e os grandes marinheiros da nação imperial, mas sobretudo porque um e outro são, no seu tempo, os desdobramentos possíveis do ser português, do destino marítimo daquele país, daquele povo. Isso também excede a simples demonstração da dicotomia passado/presente. Vale lembrar que é significativa a forma como a saudade se apresenta no Só. Nele a saudade repercute como expressão de amor: amor pela pátria, pelos amigos, pela natureza, pela família e, acima de tudo, pelo próprio sujeito poético. Mesmo quando sua origem se dá pela mais completa solidão ou ausência de algum bem, não há conotação de revolta na obra. Apenas um esmorecimento com relação ao futuro, por vezes percebemos projeções mais ou menos positivas em relação ao porvir, mas elas ficam obnubiladas pela reiterada busca pelo passado. O sujeito simplesmente tenta (re)integrar-se ao passado traçando uma trajetória na qual funde o seu desejo pessoal, de retorno à infância, com a história passada e gloriosa de Portugal. Do presente preserva o convívio com pessoas simples, por vezes miseráveis, que só podiam compartilhar com ele a sua dor ou quando muito demonstrar admiração por este sujeito narcisicamente superior, envolvido pelo sentimento de incompreensão e uma inegável tristeza. O sujeito poético é caracterizado como alguém que na infância teve todos os mimos das amas e familiares e que no presente sente-se só, numa queixa plangente, quase infantil. Na verdade, o sujeito poético faz o caminho inverso, sob a perspectiva psicológica do seu desenvolvimento: quando adulto volta seus olhos para o passado e anseia pela infância que outrora teve. Para retornar a este passado isola-se em seu mundo, como relata: “...desde então, não mais saí de casa./ Há muito, que não vejo uma flor, uma asa,/ Há muito já, que não sorvi o mel dum beijo...”62 e decepcionado reconhece o tempo perdido, a impossibilidade do retorno completo, porque a vida adulta o aflige, e, por conta disso, tenta por si mesmo desfazer o engano de crer numa infância infinita, quando diz: Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada, E que era sempre dia, e nunca tinha fim [...] 62 Cf, Só, p. 239. 37 Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância, Que me enchiam de Lua o coração, outrora, Partiram e no Céu evolam-se, a distância!63 Quase como num refrão da obra, reconheceu que “Menino e moço, tive uma Torre de leite,/ Torre sem par!”64, evidenciando, numa completa evocação da sua infância feliz, acompanhada pelo verbo no passado, a sua perda. Ou ainda, quando sente falta dos deleites de menino, recupera de uma só vez a família, a aia amada, a casa natal. “É nesse ambiente que vivem os seus protetores”65, são eles que o confortam e são as visões do lar à distância que reavivam as lembranças de proteção subtraindo o sujeito, por instantes, da dor atual, como sugerem os versos do soneto “16”: Ah pudesse eu voltar à minha infância! Lar adorado, em fumos, a distância, Ao pé de minha Irmã, vendo-a bordar: Minha velha Aia! conta-me essa história Que principiava, tenho-a na memória, “Era uma vez...” Ah deixem-me chorar!66 Na sua busca pela “Torre de leite”, símbolo de vida, anseia pelo contato de mãos que o levem pelo caminho já percorrido do passado, pelo ouvir histórias contadas pela ama, pela presença da mãe que, ausente até o momento do reencontro, que acontece no poema final da obra, “Males de Anto II (Meses depois, num cemitério)”, é substituída por outras mulheres, como Nossa Senhora, Purinha, a avô e Carlota, potencialmente capazes de protegê-lo dos males do mundo e de satisfazer seus desejos. Aliás, é de um poema da seção “Entre Douro e Minho” que nos vem a imagem de uma das mais importantes figuras femininas do Só: a Purinha. O poema que recebe o mesmo nome da sua figura central define metaforicamente a mulher ideal como aquela que possui características de anjo, de santa, de ermida e a inocência de uma criança. Predestinada a se casar com o sujeito poético por exprimir uma espiritualidade elevada, mística, quase etérea, “a noiva ideal” acaba por ser encontrada por uma fada madrinha que interpelada pelo eu-lírico aponta para um reino ao pé do mar: Portugal. Trata-se de uma referência aos contos de fadas e à impossibilidade de realização real 63 Cf. Só, p. 187. Idem, ibidem, p. 92. 65 Gaston Bachelard, A poética do espaço, São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 27. 66 Cf. Só, p. 206. 64 38 de uma cerimônia descrita como um sonho pela fixação de femme fragile da figura da Purinha , por pertencer ao: ...gênero de beleza feminina que continua, com características próprias muito significativas, a concepção básica romântica da mulher angelical. Trata-se geralmente de um tipo de mulher jovem, ou mesmo de acentuados traços infantis (femme-enfant ou femme-fleur), pálida e esguia, de aspecto cândido e virginal...67 Justamente os caracteres que definem e idealizam a noiva Purinha, a afastam do sujeito poético, uma vez que a representam como a mulher virgem e pura, que pode levar o homem à perfeição pelo seu modelo de pureza, de elevação espiritual. É isso que o sujeito ama, mais do que a própria mulher, e é essa femme fragile o oposto de todas as Salomés, recorrentes na poética decadentista e simbolista, que conduzem o homem à perdição. Segundo José Carlos Seabra Pereira, em “A dúplice exemplaridade do Só”68, não há nenhum tratado de Tordesilhas entre o Decadentismo e o Neo-Romantismo, com isso devemos considerar que se a figura feminina da Purinha, aparentemente, é afastada da figura demoníaca, ilustrada por Salomé, de modelo decadentista ou simbolista, ainda assim ela mantém alguns traços sutis do decadentismo como a presença do amor fatalmente não consumado. Há de se notar que “Nobre não cantou muito a saudade pela mulher amada” 69 , o seu saudosismo é mais profundo, mais subjetivo, prefere o reencontro com o seu eu, distante no tempo, à realização amorosa. Todas as recordações surgem à medida que lembra a si mesmo, afirmando, assim, o seu desejo de viver como “grande”. Pela saudade, evoca a lembrança das pessoas que realmente conviveram com ele no passado, procura nelas algo de si, tenta afirmar-se, manter-se vivo, continuar sua criação poética, mesmo quando se encontra na mais fecunda solidão, como nos versos iniciais do poema “Lusitânia no Bairro Latino”: ...............................Só! Ai do Lusíada, coitado, Que vem de tão longe, coberto de pó, Que não ama, nem é amado, [...] 70 67 Maria Manuela Gouveia Delille, “A figura da ‘Femme Fragile’ e o mito de Ofélia na lírica juvenil e no ‘Só’ de António Nobre”, in Colóquio de Letras, nº 127/128, p.117, Janeiro-Junho de 1993. 68 José Carlos Seabra Pereira, “A dúplice exemplaridade do Só”, in Colóquio de Letras, nº 127/128, p.39, Janeiro-Junho de l993. 69 Francisco Casado Gomes, O elemento mar na obra de António Nobre, Porto Alegre, Livraria Globo S/A, 1958, p. 149. 70 Cf. Só, p.91. 39 Por isso, no Só a recuperação do passado e das tradições nacionais se dá pela memória individual e coletiva do sujeito poético que sente saudades e revive o Portugal nortenho de Oitocentos e o povo que lá habitava. A memória individual constitui, entre outras coisas, as reminiscências da infância, a história dos antepassados de “António”/ “Anto” e lugares nos quais o sujeito poético esteve. Contudo, não é possível falar de uma memória individual pura ou seja, independente da coletiva, já que ambas mantêm pontos de contato. Exemplo disso são todos os acontecimentos da nossa vida, envolvidos por uma história geral, naturalmente, mais ampla do que a nossa história individual. Mesmo porque a amplitude da memória coletiva se justifica por conter as tradições, a religiosidade e elementos identificadores de um povo, compondo, desse modo, a representação efetiva, integral, nacional, desse povo. Assim, também não é difícil de entender o processo pelo qual, no Só, as revivescências individuais evocam as nacionais, coletivas, sobretudo se, considerando o anteriormente exposto, atentarmos para a constituição narcísica de “Anto”. No Só, a memória individual ocorre quando o sujeito poético, numa das operações da memória, entra em estado de cisma. A cisma é por si um momento de oposição, de desconforto com o real, de tentativa de composição de uma vida plena, já vivida ou desejada. Quando ocorre a cisma o sujeito poético deixa de viver o presente, retoma, via rememoração, momentos já vividos e reconstitui poeticamente ambientes, pessoas e fatos históricos. Dito isso, é possível propor a classificação da memória na obra de António Nobre em três tipos: paisagística, religiosa e histórico-social. Quando a memória é paisagística, o enquadramento dos elementos recuperados se dá sempre em regiões que possibilitem reconstruir ou conservar elementos, embora geográficos, constituintes do eu. Sendo assim, podemos iniciar a reconstrução da paisagem portuguesa a partir do dístico “Nasci, num Reino d’Oiro e amores, / À beira-mar.”, que aparece no segundo poema do Só, intitulado “António”. Os lugares são importantes referências para o sujeito poético já que as mudanças empreendidas nesses lugares acarretam mudanças importantes na vida e na memória quer do indivíduo, quer do grupo/da coletividade. Ao se referir a sua pátria por meio da palavra “Reino”, por exemplo, o sujeito poético deixa entrever que a representação do seu país, por vezes, pode ser mítica, se não em forma de conto de fadas, buscando, assim, no imaginário constituir a pátria com características positivas, como o dourado do ouro como fonte de luz ou como indicador de riqueza, prosperidade, que não se encontravam no mundo real. Na memória paisagística temos a reprodução freqüente do ambiente nortenho de Portugal, contudo devemos esclarecer que essa memória paisagística é 40 importante também para representar o País e que ela não é composta apenas pelas paisagens do norte de Portugal. No Só, pouco ou nada se retrata das cidades ou da industrialização iminente, diferentemente do que acontece na poesia de Cesário Verde, por exemplo, que nos pinta a Lisboa moderna do século XIX em fragmentos como esses do poema “O Sentimento de um Ocidental”: Batem os carros de aluguer, ao fundo, Levando à via férrea os que se vão. Felizes! Ocorrem-me em revista exposições países: Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo!71 Na obra de António Nobre a tecnologia é vista com reserva; é vista também como algo que divide espaço com a natureza, sem, no entanto, substituí-la, como neste fragmento do soneto de nº “12”: Não repararam nunca? Pela aldeia, Nos fios telegráficos da estrada, Cantam as aves, desde que o Sol nada, E, à noite, se faz sol a Lua Cheia. [...] E as boas aves, bem se importam elas! Continuam cantando, tagarelas: Assim, António! deves ser também. 72 O ambiente rural nortenho é tão importante no Só que não é apenas recorrentemente evocado e representado em muitos poemas, como também merece uma seção inteira “dedicada” a sua representação. Na seção “Entre Douro e Minho”, o poeta integra os poemas: “Purinha”, “Canção da Felicidade (Ideal dum Parisiense)”, “Para as Raparigas de Coimbra”, “Carta a Manoel”, “Saudade”, “Viagens na Minha Terra”, “Os Figos Pretos” e “Os Sinos”. Quase todas essas composições são datadas de Paris e constituídas por uma evocação saudosa da terra natal. A mulher é caracterizada de forma mítica, a paisagem é idealizada, assim como a alma portuguesa, como observa Maria Ema Tarracha Ferreira73 na Introdução do Só. 71 Vitorino Nemésio. Portugal “A terra e o homem”, Viseu, Arcádia, 1978, p.43. Cf. Só, p. 202. 73 Maria Ema Tarracha Ferreira, “Só”, in António Nobre, Só, 3ªed. Braga, Ed.Ulisséia, 2001, p. 63. 72 41 Vejamos como a paisagem é idealizada em alguns dos poemas da seção “Entre Douro e Minho”: Na “Canção da Felicidade (Ideal dum Parisiense)” fica expressa a vontade do sujeito poético de ter uma vida simples, longe das aflições das grandes metrópoles como Paris, como reporta, em contraste, o subtítulo do poema. Descreve a paisagem portuguesa e a maneira ideal de viver: frente ao mar, em uma casa simples e caiada, sem as tribulações dos estudos, apenas o saber “ler e contar”74, esposa e filhos, como os poveiros, objeto de sua admiração. Metonimicamente faz referência a Leça ao citar o “Zé da Ponte”, homem que segundo Augusto Nobre alugava barcos para passeios no Rio Doce. Ainda em busca da felicidade, o sujeito poético em outro poema dessa seção, confirma o seu apego às coisas simples ao discorrer os elementos rurais mais preciosos em “Purinha”. Por meio da evocação saudosa da sua terra natal faz a fusão entre a “noiva ideal” e o meio ambiente em que ela está inserida. O que nos leva a acreditar que o desejo quimérico de união entre o sujeito poético e sua “BemAmada”, possa também ser entendido como a sua possibilidade de aproximação de uma natureza iluminada, pura e livre, como podemos destacar nos versos em que Purinha é descrita : E o seu seios serão como dois ninhos, E os seus sonhos serão os passarinhos, E será sua boca uma romã, Seus olhos duas Estrelinhas da Manhã! Se corpo ligeiro, tão leve, tão leve Como um sonho, como a neve, Que hei-de supor estar a ver, ao vê-la Cabrinhas-montesas na serra da Estrela...75 Ou mesmo, que esse encontro desempenhe a função de irradiar esperança para o sujeito poético que tem como cenário as “[..] salas escuras, chorando saudades...”76, distante da realidade almejada, muitas vezes só encontrada nas imagens da infância. No poema “Viagens na Minha Terra”, o sujeito poético, estimulado pelas braseiras, retorna à infância construindo um mundo todo seu, do qual faz parte seres e objetos (como o livro de Garrett) que testemunharam ou integraram a sua felicidade, numa narrativa emocionada de reencontro com o passado. Nele, o sujeito poético, transformado em menino, é conduzido por meio de uma viagem imaginária a uma paisagem perfeita, “Cheia de Cor, de 74 Cf. Só, p.113. Idem, ibidem, p.105. 76 Idem, ibidem, p.108. 75 42 Luz, de Som”77. Paisagem essa comparada ao ventre da própria mãe, denunciando aqui as duas filiações do eu-poético: a primeira, a familiar, materna, e a segunda, a pátria. Exprime com essa atitude um nacionalismo espontâneo, o seu amor pelas pessoas, costumes e paisagens portuguesas. Na “Carta a Manoel” encontramos a perfeita comunhão entre os estados de alma do sujeito poético e a paisagem de Coimbra. Na primeira parte, durante a descrição da cidade universitária, o sujeito poético está entregue à melancolia e ao arrependimento por lá estar, quando diz: Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa. Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa, Foi Coimbra. Foi esta paisagem triste, triste, A cuja influência a minha alma não resiste.78 O exemplo acima comprova que a paisagem contida no Só é fruto de uma constante observação do indivíduo sobre o ambiente em que se encontra e com o qual se relaciona, é exemplo também de que a paisagem interfere no indivíduo – atitude que a poesia moderna explora na perspectiva do expressionismo. Isso é muito sutil em Nobre (acontece muito pontualmente), mas importante em outros – como Cesário Verde. Sobre esse tema Teixeira de Pascoaes observa que: [...] a reflexão da paisagem no homem é activa e constante. A paisagem não é uma coisa inanimada; tem uma alma que actua com amor ou com dor sobre as nossas idéias ou sentimentos, transmitindo-lhes o quer que é da sua essência, da sua vaga e remota qualidade que, neles, conquista ação moral e consciente. 79 Talvez esta afirmação não se aplique totalmente ao nosso poeta, já que muitas vezes o que acontece no Só é o inverso: a natureza transformada em quadros pelo sujeito poético recebe uma carga de representatividade daquele que a observa, capaz de adequá-la a sua “imagem e semelhança”. Por isso, o enquadramento se dá sempre em regiões que possam reconstruir ou conservar elementos constituintes do eu, como os ambientes familiares (casa dos pais e da avó), a praia, o mar, lugares onde se cultiva a terra, em meio às procissões e festas – quase que exclusivamente o ambiente rural e simples de Portugal. 77 Cf. Só, p.131. Idem, ibidem, 118. 79 Teixeira de Pascoaes, Arte de ser português, Lisboa, Edições Roger Delraux, 1915, p.71. 78 43 Sobre a influência da natureza sobre o indivíduo é interessante destacar um dos textos de Madame de Staël80: “A poesia do norte e a poesia do sul”, que parte do pressuposto de que a literatura possa ser dividida a partir de dois pólos: o sul e o norte. Madame de Staël observa que a ausência do sol afeta a personalidade das pessoas que vivem mais ao norte do planeta, alterando a sua maneira de encarar o mundo, tornando-as mais pessimistas e ligadas à morte. Influenciadas por elementos supersticiosos e religiosos; com a ausência de claridade, essas pessoas criam ambientes ambíguos, passíveis de representar uma realidade equivocada, para a qual entregam o próprio destino, sem deixar de sonharem com um lugar perfeito, livre das aflições da alma. Há mesmo um descontentamento com relação à realidade presente e desta se afastam por meio de ambientes propícios ao intimismo. Freqüentemente o sujeito destas obras fica frente a frente com o mar, com a neblina, com lareiras ou fogueiras, ou mesmo permanece em ambientes fechados como torres de castelos, conventos, quartos etc., sempre entregues à melancolia, pois a ação da natureza promove a transformação do ser, tornando-o nebuloso como o mundo exterior. Por outro lado, Mme.de Staël observa que o clima ameno do sul determina o princípio de servidão e da liberdade dos seres, e curiosamente: Para ela, os gregos habituavam-se mais facilmente à servidão, devido ao fato de terem um clima ameno e o amor às artes [...]; já os homens do Norte, vivendo numa terra ingrata, viam na independência o ideal de felicidade [...]. Desse modo se explica a ânsia de liberdade, a essência individualista e a força de vontade entre os nórdicos.81 Porém, devemos aqui esclarecer que as emoções vividas pelo povos do norte ou pelos povos do sul podem se repetir em qualquer parte do mundo, já que a sensibilidade e a compreensão dos fatos no ser humano resultam em emoções próprias da nossa Natureza. Na seção “Entre Douro e Minho”, ainda encontramos o convite, que o eu-poético faz para Manoel em “Carta a Manoel”, para conhecermos os lugares por que tem apreço a partir do seu recorte de paisagem. Desfila, assim, um rosário de cidades, “Torres, Condeixa, Santo Antônio de Olivais,/ Lorvão, Sernache, Nazaré, Tentúgal, Celas!”82. Retrata a vida na Universidade de Coimbra: “Vida claustral, bacharelática, funesta”83, somente para aumentar o valor desses lugares iluminados pelo sol, assim como a alma do sujeito poético que pede uma 80 Madame de Staël, De la littérature du Nord (Considérée dans ses rapports avec), Tome premier, Paris, 1959. Madame de Staël. “A Poesia do Norte e a Poesia do Sul”. Apud GOMES, Álvaro Cardoso; VECHI, Carlos Alberto. A estética Romântica (Textos Doutrinários Comentados). São Paulo, Editora Atlas S.A., 1992, p.61. 82 Cf. Só, p. 123. 83 Idem, ibidem, p.120. 81 44 trégua à tristeza. Num entusiasmo contagiante, de quem precisa contar cada detalhe, recupera, por meio da memória, visões, sensações e lamenta: “Que pena que não ouças!”84. Porém, o convite não é só feito a Manoel, também Georges (do poema “Lusitânia no Bairro Latino”, de outra seção e, no Só, anterior a em tela) é convidado pelo sujeito poético a conhecer o seu país, que agora é de romarias e de marinheiros – é convidado a conhecê-lo por meio da descrição minuciosa do trabalho dos poveiros, dos perigos do mar, das festas religiosas, enfim, do mundo não industrializado que se harmoniza com a natureza, como na descrição: Oh as lanchas dos poveiros A saírem a barra, entre ondas e gaivotas! Que estranho é! Fincam o remo na água, até que o remo torça, À espera da maré, [...]85 Com isso, concluímos que a distância é fator primordial para que pessoas e lugares ganhem importância para o “Pobre moleiro da Saudade”86. Primeiro a sua estada em Coimbra promove pela memória a reconstrução de Leça e Seixo, mais tarde de Paris promove Coimbra. Quase se anulam as diferenças entre as cidades, se antes Coimbra era fonte de decepção, “...triste, em seu aspecto moiro...”, com a ausência da mesma, transforma-se através da saudade em lugar “...sem par, flor das cidades...”. Por isso, é importante a evocação da memória na obra, nela encontramos o mecanismo de transformação, pois longe a maioria das coisas ganha outro aspecto, figura-se melhor: “Era a distância, o além, que me impressionava: /Tinha o mistério do Sol-pôr, duma esperança,/ Tudo rolou no solo! [...]”87 Porém, apesar de algumas descrições paisagísticas serem amenas, ainda é possível visualizar um mundo em conflito que pode ser explicado por outro tipo de memória: a histórico-social, que metaforicamente tem a sociedade como “o Claustro-Pleno dos Vencidos”88, tornando as imagens mais dolorosas, com uma nota de inutilidade de todos os esforços, ampliadas pela consciência da decadência nacional: 84 Cf. Só, p. 121. Idem, ibidem, p. 97. 86 Idem, ibidem, p. 93. 87 Idem, ibidem, p. 121. 88 Idem, ibidem, p.203. 85 45 E, embora eu seja descendente, um ramo Dessa árvore de Heróis que, entre perigos E guerras, se esforçaram pelo Ideal: Nada me importas, País! seja meu Amo O Carlos ou o Zé da T’resa... Amigos, Que desgraça nascer em Portugal!89 Ao tratarmos dessa decadência nacional podemos discorrer sobre um dos fatores que a desencadearam: de acordo com José Hermano Saraiva, foi a evolução econômica e política acidentada do século XIX que levou ao acirramento da crise, exemplo disso, são as seqüelas positivas e negativas do fontismo90: por um lado, deu-se o crescimento da linha férrea e das estradas utilizadas para o escoamento da produção do campo. No campo, o aproveitamento de terras antes improdutivas foi intenso, resultado de uma política de desenvolvimento que só visava o progresso. Porém, justamente por causa desse progresso, houve a ocupação de terras, antes consideradas de solo comunal, que foram transformadas em propriedades privadas, modificando os hábitos de subsistência que passaram da produção própria, para a necessidade de compra de todo gênero, até mesmo de alimentos. Isso resultou no enriquecimento dos grandes proprietários e no crescimento de miseráveis no campo. As cidades tornaram-se atrativas e sinônimo de prosperidade, mas não havia emprego para todos, o que resultou na emigração de milhares de portugueses para países como o Brasil em busca de uma vida melhor. Por diversas vezes, o sujeito poético faz referência ao exílio no Só, como sentido de solidão, de fragmentação do ser, mas uma delas tem como conotação o enriquecimento: quando, no poema “Memória”, retrata a história do pai que passa anos longe da terra, para depois voltar ao seu lugar de origem, registrando, intencionalmente, o contexto histórico da época. 89 Cf. Só, p.192. “Em 1852 foi publicado o decreto que abria o concurso para a construção de um caminho-de-ferro entre Lisboa e Santarém. Os trabalhos foram iniciados por técnicos ingleses e o primeiro troço (Lisboa-Carregado, 36 km) foi inaugurado em 1856. Os trabalhos prosseguiram com determinação. Em 1864 estava feita a ligação Lisboa-Porto; a linha terminava em Gaia. A ponte foi inaugurada em 1877. Em 1900 existiam 2371 km de linha e foram transportados 12 milhões de passageiros e 2,7 milhões de toneladas de mercadoria. Com a via construíram-se centenas de pontes metálicas (as primeiras do País), dezenas de túneis, cerca de quinhentas estações. [...] O mais activo realizador deste enorme programa de obras públicas foi Fontes Pereira de Melo, um engenheiro formado pela Escola Politénica de Lisboa. Daí o nome fontismo dado a política de instalação de vias de comunicação.” Citado por José Hermano Saraiva in História Concisa de Portugal (3ª edição, Publicações Europa-América, 1979, p.304/305). Outro dado importante: pelas estradas de ferro chegaram a Coimbra, vindos de França e em caixotes, os livros que formaram a Geração de 70, como Eça de Queirós destacou. 90 46 Da memória histórico-social obtemos indiretamente a consciência das dificuldades pelas quais passou a pátria portuguesa em fins do séc XIX e da impotência das ações do sujeito poético, que reconhece o fracasso pessoal e o coletivo, quando diz: Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos! Torres por terra! As árvores sem ramos! Ó meus amigos! todos nos falhamos... Nada nos resta. Somos uns perdidos.91 O tom melancólico que perpassa os poemas se acentua quando em alguns momentos o sujeito poético, surpreendido pelo fracasso nacional, convoca os portugueses para olharem para o seu País, como nos versos: “Qu’é dos Pintores do meu país estranho,/ Onde estão eles que não vêm pintar?”92 ou, em outras passagens, nas quais ressalta a penúria dos homens do campo e do mar, em citações como: “Esmolas distribuindo a este e àquele: e aos ceguinhos/ E mais aos aleijadinhos”93 ou “Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas,/ Mas de outras que chorou, de lágrimas salgadas!”94, entre outros exemplos, revelando uma insatisfação, um inconformismo e até mesmo desgosto pela decadência moral do país, que um dia pelo mar foi “...Senhor feudal do Mundo!”95 Essa decadência moral de Portugal, em todo o Só, acentua a vibração entusiástica nas exclamações que conferem a poemas como “A vida” maior agilidade. O passar rapidamente de um momento para outro, por meio de observações por vezes inusitadas, como essa: “Quantos suores sem proveito! Quantas taças/ A transbordar veneno em espumantes bocas!”96, do mesmo poema, faz com que o leitor seja guiado para imagens que variam à medida que o sujeito poético aumenta a sua aflição em demonstrar o seu mundo em ruínas. A freqüência com que o poeta utiliza o verbo ver, por exemplo, nos orienta a seguir o caminho da realidade. Realidade diferente da praticada pelo Realismo, pois agora há uma nova concepção do mundo visto através da evocação e da memória, por isso questiona: “o que vês?”97 Para simplesmente responder o “Tédio”, mas como poderia haver tédio se há uma infinidade de olhares? Há olhares ofélicos, olhares “negros como Noites”, “fontes de luar”, 91 Cf. Só, p. 203. Idem, ibidem, p. 103. 93 Idem, ibidem, p. 110. 94 Idem, ibidem, p. 177. 95 Idem, ibidem, p. 235. 96 Idem, ibidem, p. 176. 97 Idem, ibidem, p. 175. 92 47 “silenciosos”, “milagrosos”, “Cristãos”, enfim, todos passíveis de enxergar uma nova realidade, mas não, preferem enxergar “Ódios, Ambições, Faltas de Honra, Vaidade”98, o que todos têm num país em ruínas. Depois, como se as injustiças estivessem diante dos nossos olhos, o sujeito poético desfila uma série de imagens retratando a vida dos menos afortunados e as diferenças sociais, como nesse exemplo: Jesus! Jesus! Quantos doentinhos sem botica! Quantos lares sem lume e quanta gente rica! Quantos Reis em palácio e quanta alma sem férias! Quantas torturas! Quantas Londres de misérias! Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças! 99 Considerando o Só de forma panorâmica, podemos dizer que o sujeito poético é aquele que vê e descreve nitidamente imagens, com cores vivas, capazes de presentificar o ausente, capazes de trazer por meio da memória todas as sensações de espanto diante da inutilidade dos esforços. E por último a memória religiosa substituindo “a mística ocultista, metapsíquica ou sumptuariamente ritualizada dos decadentes da escola francesa ou portuguesa por um catolicismo supersticiosamente católico”100 intensificado pela aproximação do sujeito poético com homens simples, incultos, que envolvidos pelo mistério entregam suas vidas às orações e aos rituais católicos, com apelos por proteção: Senhora dos aflitos! Martyr São Sebastião! Ouvi os nosso gritos! Deus nos leve pela mão! Bamos em paz!101 Alberto de Oliveira em um artigo de memórias no volume Pombos Correios, de 1913, justifica a escolha pelo catolicismo por ele e por seus amigos, dentre os quais António Nobre, e declara que: 98 Cf. Só, p. 175. Idem, ibidem, p. 176. 100 Óscar Lopes, “O Simbolismo no Porto”, in Revista Nova Renascença, Vol.IX, p.166, Porto, 1989. 101 Cf. Só, p. 99. 99 48 Éramos pois todos neomísticos e hieráticos. Os nossos livros chamava-lhe bíblias ou livros de horas, os nossos poemas de amor soavam e exprimiam-se como ladainhas, a hóstia e incenso tinham o seu lugar marcado nos nossos ofícios líricos e panteístas. O aspecto exterior desses volumes era de missais, e mesmo de antigos missais, impressos em papel de linho a que um banho de imersão de chá preto dava nódoas e a cor da velhice, e para cuja encadernações recorríamos de preferência às rijas carneiras dos infólios dos nossos avós.102 Porém, no Só, podemos observar algumas “crendices e superstições”103 que mancham esse catolicismo castiço, uma vez que o sujeito poético recorre aos santos e reproduz os rituais católicos em alguns dos seus poemas. Como no poema “Purinha” com versos que reproduzem os ensinamentos de Cristo (contidos no Evangelho): “Dar de comer a quem tem fome/ Dar de beber a quem tem sede...”104. Ou na magia dos mistérios que ninguém sabe explicar, como nesses versos do “Lusitânia do Bairro Latino”: Os anjinhos! Vêm a suar: Infantes de três anos, coitadinhos! Mão invisíveis levam-nos de rastros Que eles mal sabem andar. 105 Ou ainda recuperando tradições: Com uma Cruz de pau, braços ao Sul e ao Norte, Para mostrar que, ali, se fizera uma morte: Ora (é um costume) quando alguém vai de longada, Ao ver aquela Cruz, que parece uma espada, Deita uma pedra: cada pedra é uma oração.106 Em outros momentos, o sujeito poético identifica-se como o médio, o diabo, o lua, e, mais tarde, no final da sua trajetória, em “Males de Anto I”, confessa que “Não tinha fé nenhuma ‘em um doutor humano’/ Que só a tinha no Sr. Dr. Oceano”107 esquecendo-se de toda proteção pedida à Virgem, seja para si: 102 Óscar Lopes, “António Nobre e o neogarrettismo de Alberto de Oliveira”, in Entre Fialho e Nemésio, Maia, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1987, p.68. 103 No poema “António” o sujeito poético menciona que as almas saem à meia-noite ou que o sujeito evoca as almas. (Só, p.85) 104 Cf. Só, p.110. 105 Idem, ibidem, p.101. 106 Idem, ibidem, p.237. 107 Idem, ibidem p.244. 49 Lá vem a carlota que embala uma aurora Nos braços e diz: “Meu Lindo Menino, que Nossa Senhora O faça feliz!”108 seja para os outros: Que noite! ó minha irmã Maria Acende um círio à Virgem Pia, Pelos que andam no alto mar...109 Devemos considerar as imagens selecionadas pelas memórias paisagística, religiosa e histórico-social, no Só, como elementos de reconstrução de um momento ideal, como reservas matriciais de um tempo de ouro para o indivíduo e de uma pátria gloriosa no passado e que, ambos, sujeito e nação, a partir daquele modelo ainda podem se reerguer. Imagens que possam justificar a dor do sujeito poético que absorveu e refletiu a dor do povo, por excesso de amor próprio e por amor ao seu país. Para complementar, citamos o trecho abaixo de Boris Schnaiderman, que delimita a função da poesia que reconhecemos nas composições de Nobre: [...]A poesia serve à sociedade testemunhando-a, interpretando-a, registrando as diversas fases espaciais e temporais de sua expansão e evolução. Nisso, a poesia é como toda arte: um documento vivo, expressivo, do estado de espírito de certo povo, em dada região, numa época determinada. A poesia, aliás, é incomparável quando registra – com a capacidade condensadora e mnemônica de que só ela é capaz – certas nuanças de ponto de vista, de atitude, de sentimento e de pensamento, individuais como coletivos, nuanças essas que, muitas vezes, são bem mais expressivas de um povo e de uma época do que os grandes acontecimentos. 110 Passemos, então, ao estudo do poema “Lusitânia no Bairro Latino”, no qual consideramos presente os três tipos de memória apresentadas. Como se trata de uma composição relativamente longa, a transcrevemos integralmente na seqüência, mas consideraremos, em cada um dos capítulos seguintes, cada uma das partes que integram o tríptico “Lusitânia no Bairro Latino”. 108 Cf. Só, p.81. Idem, ibidem, p.81. 110 Boris Schnaiderman, “Tempo, Literatura, História, Algumas Variações”, in Literatura e sociedade, São Paulo, USP/FFLCH/DTLLC, 1996, p.33. 109 50 “LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO” .........................Só! Ai do Lusíada, coitado, Que vem de tão longe, coberto de pó, Que não ama, nem é amado, Lúgubre Outono, no mês de Abril! Que triste foi o seu Fado! Antes fosse pra soldado, Antes fosse prò Brasil... Menino e moço, tive uma Torre de leite, Torre sem par! Oliveiras que davam azeite, Searas que davam linho de fiar, Moinhos de velas, como latinas, Que São Lourenço fazia andar... Formosas cabras, ainda pequeninas, E loiras vacas de maternas ancas Que me davam o leite de manhã, Lindo rebanho de ovelhas brancas; Meus bibes eram de sua lã. António era o pastor desse rebanho: Com elas ia para os Montes, a pastar, E tinha pouco mais ou menos seu tamanho, E o pasto delas era o meu jantar... E a serra a toalha, o covilhete e a sala. Passava a noite, passava o dia Naquela doce companhia. Eram minhas Irmãs e todas puras E só lhes minguava a fala Pra serem perfeitas criaturas... 51 E quando na Igreja das Alvas Saudades Que era da minha Torre a freguesia) Batiam as Trindades, Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me, Eu persignava-me, rezava «Ave-Maria...» E as doces ovelhinhas imitavam-me. Menino e moço, tive uma Torre de leite, Torre sem par! Oliveiras que davam azeite... Um dia, os castelos caíram do Ar! As oliveiras secaram, Morreram as vacas, perdi as ovelhas, Saíram-me os Ladrões, só me deixaram As velas do moinho... mas rotas e velhas! Que triste fado! Antes fosse aleijadinho, Antes doido, antes cego... Ai do Lusíada, coitado! Veio da terra, mailo seu moinho: Lá, faziam-no andar as águas do Mondego, Hoje, fazem-no andar águas do Sena.,. É negra a sua farinha! Orai por ele! tende pena! Pobre Moleiro da Saudade... Ó minha Terra encantada, cheia de Sol, Ó campanário, ó Luas Cheias, Lavadeira que lavas o lençol, Ermidas, sinos das aldeias, Ó ceifeira que segas cantando, 52 Ó moleiro das estradas, Carros de bois, chiando,.. Flores dos campos, beiços de fadas, Poentes de Julho, poentes minerais, Ó choupos, ó luar, ó regas de Verão! Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais? Ó padeirinhas a amassar o pão, Velhinhas na roca de fiar, Cabelo todo em caracóis! Pescadores a pescar Com a linha cheia de anzóis! Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas, Ó bandeiras! ó Sol! foguetes! ó toirada! Ó boi negro entre as capas vermelhas! Ó pregões d’ água fresca e limonada! Ó romaria do Senhor do Viandante! Procissões com música e anjinhos! Srs. Abades d’Amarante, Com três ninhadas de sobrinhos! Onde estais? onde estais? Ó minha capa de estudante, às ventanias! Cidade triste agasalhada entre choupais! Ó dobres dos poentes às Ave-Marias! Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia1 Estrada de Santiago! Sete-Estrelo! Casas dos pobres que o luar, à noite, caia... Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo, Amortalhado em perrexil e trepadeiras, Onde se enroscam como esposos e lagartas! Sr. Governador a podar as roseiras! Ó Bruxa do Padre, que botas as cartas! 53 Joaquim da Teresa! Francisco da Hora! Que é feito de vós? Faláveis aos barcos que andavam, lá fora, Pelo porta-voz... Arrabalde! marítimo da França, Conta-me a história da Formosa Magalona, E do Senhor de Calais, Mais o naufrágio do vapor Perseverança, Cujos cadáveres ainda vejo à tona... Ó farolim da Barra, lindo, de bandeiras, Para os vapores a fazer sinais, Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras, Dicionário magnífico de Cores! Alvas espumas, espumando a frágua, Ou rebentando à noite, como flores! Ondas do Mar! Serras da Estrela d’ água, Cheias de brigues como pinhais... Morenos mareantes, trigueiros pastores! Onde estais? onde estais? Convento d’águas do Mar, ó verde Convento, Cuja Abadessa secular é a Lua E cujo Padre-capelão é o Vento... Água salgada desses verdes poços, Que nenhum balde, por maior, escua! Ó Mar jazigo de paquetes, de ossos, Que o Sul, às vezes, arrola à praia: Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos! Corpo de Virgem, que ainda veste a saia, Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos! Noiva cadáver ainda com véu... Ossadas ainda com os mesmos fatos! Cabeça roxa ainda de chapéu! 54 Pés de defunto que ainda traz sapatos! Boquinha linda que já não canta... Bocas abertas que ainda soltam ais... Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados! Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...) Ó defuntos do Mar! Ó roxos arrolados! Onde estais? onde estais? O Boa Nova, ermida à beira-mar, Única flor, nessa viv’alma de areias! Na cal, meu nome ainda lá deve estar, À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios! Ó altar da Senhora, coberto de luzes! Ó poentes da Barra, que fazem desmaios... Ó Sant’ana, ao luar, cheia de cruzes! Ó lugar de Roldão! vila de Perafita! Aldeia de Gonçalves! Mesticosa! Engenheiros, medindo a estrada com a fita... Água fresquinha da Amorosa! Rebolos pela areia! Ó praia da Memória! Onde o Sr. Dom Pedro, Rei soldado, Atracou, diz a História, No dia,.. não estou lembrado; Ó capelinha do Senhor d’ Areia, Onde o senhor apareceu a uma velhinha... Algas! farrapos do vestido da Sereia! Lanchas da Póvoa, que ides à sardinha, Poveiros, que ides para as vinte braças. Sol-pôr, entre pinhais... Capelas onde o Sol faz morte, nas vidraças! Onde estais? 55 2 Georges! anda ver meu país de Marinheiros, O meu país das Naus, de esquadras e de frotas! Oh as lanchas dos poveiros A saírem a barra, entre ondas e gaivotas! Que estranho é! Fincam o remo na água, até que o remo torça, À espera da maré, Que não tarda hi, avista-se lá fora! E quando a onda vem, fincando-o a toda a força, Clamam todas à uma: «Agora! agora! agora!» E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo (Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...) Que vista admirável! Que lindo! que lindo! Içam a vela, quando já têm mar: Dá-lhes o Vento e todas, à porfia, Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas, Rosário de velas, que o vento desfia, A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas: Snra Nagonia! Olha, acolá! Que linda vai com seu erro de ortografia... Quem me dera ir lá! Senhora Da guarda! (Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor) Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda O caçador! 56 Senhora d'ajuda! Ora pro nobis! Calluda! Sêmos probes! Snr dos ramos Istrella do mar! Cá bamos! Parecem Nossa Senhora, a andar. Snra da Luz! Parece o Farol... Maim de Jesus! É tal e qual ela, se lhe dá o sol! Snr dos Passos! Sinhora da Ora! Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços Parecem ermidas caiadas por fora... Snr dos Navegantes! Senhor de Matuzinhos! Os mestres ainda são os mesmos d’antes: Lá vai o Bernardo da Silva do Mar, A mailos quatro filhinhos, Vascos da Gama, que andam a ensaiar... Senhora dos aflitos! Martyr São Sebastião! 57 Ouvi os nossos gritos! Deus nos leve pela mão! Bamos em paz! Ó lanchas, Deus vos leve pela mão! Ide em paz! Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados, O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes, E das vagas, aos ritmos cadenciados, As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes, «As armas e os barões assinalados...» Lá sai a derradeira! Ainda agarra as que vão na dianteira... Como ela corre! com que força o Vento a impele: Bamos com Deus! Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com ele Por esse mar de Cristo... Adeus! adeus! adeus! 3 Georges! anda ver meu país de romarias E procissões! Olha estas moças, olha estas Marias! Caramba! dá-lhes beliscões! Os corpos delas, vê! são ourivesarias, Gula e luxúria dos Manéis! Têm nas orelhas grossas arrecadas, Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis, 58 Ao pescoço serpentes de cordões, E sobre os seios entre cruzes, como espadas, Além dos seus, mais trinta corações! Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito, Toca a bailar! Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito. Que hão-de gostar! Tira o chapéu, silêncio! Passa a procissão Estralejam foguetes e morteiros. Lá vem o Pálio e pegam ao cordão Honestos e morenos cavalheiros. Altos, tão altos e enfeitados, os andores, Parecem Torres de David, na amplidão! Que linda e asseada vem a Senhora das Dores! Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde. Contempla! Que tristes os Nossos Senhores, Olhos leais fitos no vago... não sei onde! Os anjinhos! Vêm a suar: Infantes de três anos, coitadinhos! Mãos invisíveis levam-nos de rastros Que eles mal sabem andar. Esta que passa é a Noite cheia de astros! (Assim estava, em certo dia, na Judeia! Aquele é o Sol! (Que bom o sol de olhos pintados!) E aquela é a Lua Cheia! Seus doces olhos fazem luar... Essa, acolá, leva na mão os Dados, Mas perde tudo se vai jogar. E esta que passa, toda de arminhos, (Vê! d’entre o povo em êxtase, olha-a a Mãe) 59 Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos, Criança em flor que ainda não os tem. E que bonita vai a Esponja de Fel! Mas ela sabe, a inocentinha, Nas suas mãos, a Esponja deita mel: Abelhas d’oiro tomam-lhe a dianteira. Lá vem a Lança! A bainha Traz ainda o sangue de Sexta-Feira... Passa o último, o Sudário! O corpo de Jesus, Nosso Senhor... Oh que vermelho extraordinário! Parece o sol-pôr... Que pena faz vê-lo passar em Portugal! Ai que feridas! e não cheiram mal... E a procissão passa. Preamar de povo! Maré-cheia do Oceano Atlântico! O bom povinho de fato novo, Nas violas de arame soluça, romântico, Fadinhos chorosos da su'alma beata. Trazem imagens da Função nos seus chapéus. Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro, O Sol em glória brilha olímpico, e de prata, Como a velha cabeça aureolada de Deus! Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro. Passam as chocas, boas mães! passam capinhas. Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas! Pão-de-ló de Margaride! Aguinha fresca de Moirama! Vinho verde a escorrer da vide! 60 À porta dum casal, um tísico na cama, Olha tudo isto com seus olhos de Outro Mundo, E uma netinha com um ramo de loireiro Enxota as moscas do moribundo. Dança de roda mailas moças o coveiro, Clama um ceguinho: «Não há maior desgraça nesta vida, Que ser ceguinho!» Outro moreno, mostra uma perna partida! Mas fede tanto, coitadinho... Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...» E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga, Labareda de cancros em fogueira, Que o Sol atiça e que a gangrena apaga, Ó Georges, vê! que excepcional cravina... Que lindos cravos para pôr na botoeira! Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina! Etnas de carne! Jobs! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados! Reumáticos! Anões! Delíriums-tremens! Quistos! Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados, Talvez lá dentro com perfeitos corações: Todos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, uivam «uma esmolinha p’las alminhas Das suas obrigações!» Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho! E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar... Qu'é dos Pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não vêm pintar? 61 Paris, 1891-1892 “LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: A MEMÓRIA E AS DESILUSÕES DO PRESENTE Completamente só, o sujeito poético do poema “Lusitânia no Bairro Latino” inicia o seu percurso de exilado com um infinito desânimo da vida evidenciado pelo significativo e enigmático primeiro verso da primeira parte do tríptico: a palavra “só” antecedida por reticências. Aparentemente o poema já inicia com uma conclusão: a condição solitária do eupoético. Para E.M. de Melo e Castro, em seu artigo “António Nobre, poeta do texto”111, a posição do vocábulo no final do verso garante a possibilidade de interpretações variadas, não explícitas, deixadas à imaginação do leitor. Por outro lado, para quem utiliza o exemplar que pertenceu ao poeta (exemplar da 1ª edição) descobre uma posição inversa para a palavra “só”. Nele a palavra encontra-se no início do verso seguida por reticências; em ambos os casos, devemos considerar o estado de solidão de Anto e as emoções não declaradas, sinalizadas pela pontuação. Contudo, na primeira edição, a intenção de apresentar o texto, aparentemente, é mais solta do que a da edição revisada, uma vez que o fato de não encerrar as idéias (com o emprego das reticências) tem um impacto menor do que um primeiro verso já antecipando taxativamente a condição de solidão do sujeito poético (“................................Só!”), que se confirma no percurso dos poemas. Independentemente da maneira como é interpretado, o primeiro verso do “Lusitânia no Bairro Latino” revela que António Nobre sempre se preocupou com as disposições das palavras em suas composições: mais do que a simples representação de sentimentos ou objetos, a palavra é algo que sobre a página em branco ganha mais um significado. Exemplos disso são a diversidade das formas dos diversos poemas que compõem o Só, o uso freqüente de reticências, de pontos de exclamação, de repetidos vocábulos (“ver”, “ainda”), das metáforas inusitadas, da opção formal derivada das camadas significativas das palavras, como ocorre nessa estrofe do soneto de nº “12” que ganha aspecto de linguagem telegráfica: Revolução! 111 Inútil. Cem feridos, E.M. de Melo e Castro. “António Nobre, poeta do texto”, in Marli Fantini Scarpelli; Paulo Motta Oliveira, Os Centenários: Eça, Freyre, Nobre, Belo Horizonte, Fale/ UFMG, 2001, p. 90. 62 Setenta mortos. Enfim, feliz! Beijo-te! Perdidos! ? ! Desesperado. Vem112 Voltemos ao “Lusitânia”. Na seqüência da análise do primeiro painel do tríptico, os versos: Ai do Lusíada, coitado, Que vem de tão longe, coberto de pó, Que não ama, nem é amado, Lúgubre Outono, no mês de Abril!113 retratam a condição daquele que é solitário, digno de dó e sugerem a ausência de ligações amorosas do sujeito poético que, mesmo durante os meses da primavera quando simbolicamente o amor floresce nos corações humanos, para ele não ocorrem os ciclos das estações, os ciclos de vida, e os meses continuam tristonhos como o outono. Se observarmos melhor o verso “Que não ama, nem é amado” percebemos que o resultado das duas ações: não amar e não ser amado cria um vazio na vida do sujeito poético, afinal se não há a quem se dedicar e se não há quem se preocupe com esse ser, então não há motivos também para ele continuar a viver; assim quando no soneto “18” o sujeito poético é interpelado sobre a importância de uma família para se manter vivo, o mesmo responde que tudo são “Quimeras, sonhos, bolas de sabão.”114 A ausência de relações afetivas do sujeito poético se justifica a partir da necessidade quase masoquista de sofrer, por considerar o seu fado o mais triste, a sua predestinação a mais trágica (lembremos que no poema “António” o sujeito poético tem como dia de nascimento um dia aziago: uma terça-feira). Por isso, não poderia realmente haver a realização no amor, mesmo porque, no Só, a única mulher passível de amar amorosamente o sujeito poético e por ele ser amada é Purinha, ser perfeito, modelo de mulher ideal, porém quase etérea. As outras, como Santa Iria que tem como atributos traços sacralizantes, de caráter mariano e virginal e Aninhas da Eira, prima de António por parte de pai também não apresentam a possibilidade da realização amorosa. Conclui-se então que, com a mulheres no Só caracterizadas dessa maneira o sujeito poético elimina qualquer ameaça à sua solidão narcísica. Falando de si como se fosse um outro, o sujeito poético reconhece a infelicidade do seu fado e exaltando a sua condição de exilado português, “Que vem de tão longe, coberto de 113 114 Cf. Só, p.91. Idem, ibidem, p.208. 63 pó”, lamenta ter sorte ainda pior que a daqueles que eram soldado ou iam para o Brasil – destino considerado de “seres inferiores”: e “Antes fosse pra soldado,/ Antes fosse pro Brasil...”. Utilizando um pouco da história para compreendermos esses dois versos, temos os seguintes conceitos: ser soldado, no passado, na época das grandes navegações, era uma posição importante na sociedade portuguesa. Camões tinha sido soldado, a grandeza da pátria tinha se dado a partir das ações de homens como ele; ser soldado tinha um sentido elevado de coragem, de possibilidade de se morrer por um ideal. No século XIX, porém, após a vinda da família real para o Brasil (em 1807), em decorrência da invasão das tropas napoleônicas, ou após o Ultimato Inglês (em 1890), que confirmaram a fraqueza dos homens que regiam e protegiam o país, ser soldado deixou de representar a coragem dos navegadores de Quinhentos e passou a indicar a impotência da pátria diante dos perigos externos. Mantendo a idéia negativa para sobressaltar a sua dor como maior, o sujeito poético lamenta não ser como os milhares de degredados que, em Oitocentos, deixaram Portugal para tentar enriquecer no Brasil – ação de quem não havia feito fortuna na própria pátria, uma forma de enriquecimento pouco elevada que exigia o distanciamento da terra natal e concomitantemente o sofrimento pela separação dos entes queridos. Direta ou indiretamente encontramos nessa primeira estrofe elementos que nos fornecem episódios importantes da História do Portugal de Oitocentos. É importante aqui dizer que a análise do poema “Lusitânia no Bairro Latino” não se dará apenas pela sua contextualização em sua data de criação (Paris, 1891-1892), mas também pela perspectiva de o referido poema ser ... uma trama já em si mesma multidimensional; uma trama em que o eu lírico vive ora experiências novas, ora lembranças da infância, ora valores tradicionais, ora anseios de mudança, ora suspensão desoladora de crenças e esperanças. A poesia pertence à História Geral, mas é preciso conhecer qual é a história peculiar imanente e operante em cada poema.115 O movimento da segunda estrofe nos leva a tomar um novo rumo na análise de “Lusitânia no Bairro Latino”. É aqui que se inicia o processo de rememoração do sujeito poético, que não mais se dirige a si, através da terceira pessoa, como se falasse a um outro, mas sim pela pessoalíssima primeira pessoa do singular, e maneira a tornar o que será exposto mais íntimo, numa espécie de relato resgatado pela memória de alguém que tem algo a contar. 115 Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia, São Paulo, Ed. Cultrix, s.d., p. 13. 64 Ainda, os versos da segunda estrofe principiam como uma retrospectiva de vida, delimitando o período que vai da infância (“Menino”) até a juventude (“moço”), assim temos: Menino e moço, tive uma Torre de leite, Torre sem par! Oliveiras que davam azeite 116 Já de início temos a referência a um dos romances pastoris mais conhecidos da literatura portuguesa: o Menina e moça, de Bernardim Ribeiro que nos permite pensar na saudade portuguesa e na vida saudável do campo. Daí a necessidade de definir esse sentimento, tão comum ao Só, como sendo a mistura da tristeza, da alegria, da melancolia, da esperança e do orgulho que, somados, transformam-se na parte imaterial do homem português e fornecem à sua alma uma caracterização especial. Ter saudade é conviver com o passado pacificamente, é saber recuperar pela memória um momento já vivido e aperfeiçoá-lo e envolvê-lo em novas nuanças. Em contraposição a esse aspecto positivo da saudade temos o soneto de nome “Menino e moço” que não permite a ilusão do sonho ou a nostalgia do passado. A infância chega ao fim e as lembranças cedem lugar ao pessimismo e desencanto presentes, vejamos os dois últimos tercetos do poema: Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância, Que me enchiam de Lua o coração, outrora, Partiram e no Céu evolam-se, a distância! Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais: Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora, Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...117 Também podemos a partir dessa obra de Bernardim refletir sobre outras leituras feitas pelo sujeito poético do Só e que provavelmente o influenciaram ou o completaram pelo conteúdo significativo que cada uma somou ao seu caráter. Leituras sem títulos, embora sutilmente esses sejam sugeridos a partir da citação do nome de seus escritores: “No seio, um livro e lia, lia,/ Garrett da minha paixão...”118 ou por passagens como essa: “Que são em preto os Olhos Verdes de Joaninha...”119, numa referência a obra Viagens na minha terra do escritor Almeida Garrett que fez a viagem real por Portugal para depois transpô-la para a ficção. Em sua homenagem no Só encontramos um poema com o título homônimo de “Viagens na minha 116 Cf. Só, p. 91. Idem, ibidem, p.187. 118 Idem, ibidem, p. 136. 119 Idem, ibidem, p.175. 117 65 terra”. Esse poema segundo Álvaro Cardoso Gomes, em seu texto “Memória e evocação em António Nobre”, é um importante exemplo da “perene escavação da memória e a constante postura evocativa, para, através de estímulos puramente sensoriais, mergulhar num tempo virginal”120, como podemos visualizar nessa reprodução da memória paisagística do poema acima citado: Às vezes, passo horas inteiras Olhos fitos nestas braseiras, Sonhando o tempo que lá vai; E jornadeio em fantasia Essas jornadas que eu fazia Ao velho Douro, mais meu Pai. 121 Sobre Garrett, sabemos que era um dos autores de predileção de António Nobre por terem a mesma ideologia sobre a pátria portuguesa. Ambos sonhavam com a ascensão do país, com a preservação dos mitos, do popular em função da recuperação de uma sociedade estagnada e decadente, viam o tempo de Quinhentos como o momento em que Portugal foi grande e, por isso, modelo para o Portugal decadente de Oitocentos. Depois desse percurso pelos autores citados por Nobre voltamos para os três primeiros versos da segunda estrofe (“Menino e moço, tive uma Torre de leite,/ Torre sem par!/ Oliveiras que davam azeite” 122 ) que funcionarão quase como um refrão, que ora antecedem as alegrias da infância, ora as desilusões do presente e que marcam o momento a partir do qual o sujeito olha para trás e vê uma época muito melhor, denominada como a infância. Nessa época de inconsciência ou de engano (a infância), o indivíduo não se vê ameaçado pelo cruzamento do inconsciente coletivo com a sua individualidade, ainda não percebe o conflito entre a sua intimidade e o mundo ao redor, talvez por esse motivo a criança permaneça inconsciente da sua dor, apesar dela já existir. Só a reconhece no momento em que se dá a transição da infância para a vida adulta, quando o trajeto do engano para o desengano finalmente acontece. Nessa trajetória do desengano se descortina toda a intimidade do sujeito poético misturada ao conteúdo histórico e cultural do seu povo e inesperadamente o que se considerava particular, individual, passa a ser na verdade parte do o coletivo, o reflexo de multidões inteiras, com suas características singulares, suas angústias e frustrações. Daí a escolha de António Nobre por temas ligados à cultura e história portuguesas. O próprio poema 120 Álvaro Cardoso Gomes, “Memória e Evocação em António Nobre”, in Voz Lusíada (Revista da Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes), nº 17, p.127, São Paulo, 2002. 121 Cf. Só, p. 131. 122 Idem, ibidem, p. 91. 66 “Lusitânia no Bairro Latino” é prova dessa poesia panorâmica que fala ao mesmo tempo do mar, da terra, das mazelas do povo, da religiosidade milenar como se tratasse do próprio sujeito poético como porta-voz do passado e do presente dos portugueses. Por conta dessa dicotomia entre o presente que decepciona e o passado que acalenta é que compreendemos a preferência no Só pelo símbolo da “Torre de leite”. Preferência justificada pela possível associação feita entre esses dois elementos: a torre e o leite com o percurso de vida do sujeito poético. Se pensarmos que o momento vivido mais positivo de “António” foi a infância e que o leite representa nessa fase o alimento que nutre o corpo, podemos então considerar o ato do aleitamento como fonte de vida, pois o símbolo do leite é estritamente ligado à criança, que depende desse líquido vivificador para continuar a se desenvolver, e à sua mãe que o fornece. Dessa relação entre a criança e a mulher que o gerou, deduzimos que o ato de amamentar conduz ao equilíbrio psicológico e físico pelo contato do filhote com a sua mãe. No Só esse contato é rompido pelo desaparecimento da mãe de “António” em “Memória”, talvez por isso em algumas passagens da obra encontramos um sujeito poético em desequilíbrio consigo e com a natureza que o circunda, como em “...Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas/ Quanto isso me faz mal! [...] Histeriza-me o Vento, absorve-me a alma toda...”123 Também encontraremos nessa suposição motivos para crer na representação no símbolo da “Torre de leite” como sendo a própria vida do sujeito poético nas suas características mais relevantes: o retorno à infância e a representação da visão interior do que vai na sua alma. Sobre esse contexto de retorno à infância, a torre pode ser comparada ao ventre materno, lugar ideal de proteção e aconchego almejados por “António” desde o poema “Memória”, no qual perde a mãe, que também pode ser considerada como “torre” de apoio e segurança, até o final da sua trajetória em “Males de Anto II” quando simbolicamente encontra esse aconchego na cova. Se pensarmos nessas construções fechadas: caixão, cova, torre, que freqüentemente aparecem no Só, encontraremos lugares ideais para o reencontro do sujeito poético, por meio da cisma ou da rememoração, com o seu mundo “sem par” e mágico, já que eles simbolizam a proteção contra o mundo exterior, ou ainda, usando de medidas temporais, contra o presente. Da representação do mundo interior podemos considerar a vida de “António” como um acúmulo de experiências, por vezes, amargas e uma busca incessante de tranqüilidade, só encontrada nos momentos já vivenciados no passado. É essa correspondência de sensações 123 Cf. “Carta a Manoel”, in Só, p. 118. 67 entre o sujeito poético e Portugal que nos faz crer na representação da infância na obra como a representação do passado histórico do país. Ambos sofrem, mas a ação é praticada pelo sujeito poético que, diante da possibilidade de afastar-se dos momentos de dor, se fecha em uma torre, seja ela de leite ou mais palpável a “torre de Anto”, para encontrar-se de novo consigo. Consideremos esse trecho do poema “Meu cachimbo” como índice dessa intenção de isolamento e busca por algo perdido: Ó meu cachimbo! Amo-te imenso! Tu, meu turíbulo sagrado! Com que, Sr. Abade, incenso A Abadia do meu passado Fumo? E ocorre-me à lembrança Todo esse tempo que lá vai, Quando fumava, ainda criança, Às escondidas do meu Pai. [...] Por alta noite, às horas mortas, Quando não se ouve pio, ou voz, Fecho os meus livros, fecho as portas Para falar contigo a sós. E a noite perde-se em cavaco, Na Torre d’ Anto, aonde eu moro! 124 Mais uma vez, não devemos esquecer que a torre d’ “Anto” ou de leite é “sem par” e solitária como o próprio sujeito poético que quando volta para si enxerga tão longe quanto a sentinela que defende o castelo dos perigos (a torre é o local mais alto do castelo; é o local de onde se vê ao longe. Simbolicamente, portanto, pode ser o lugar privilegiado para o sujeito poético olhar para si, seja pela amplitude do olhar, seja pelo isolamento). Evidentemente esse ato de enxergar concentra-se mais no interior do ser, que vê a si mesmo e o Portugal da sua infância em todas as suas tonalidades. Contudo, a “Torre de leite” é mais acessível do que a “Torre de marfim” dos simbolistas. Esta última tem o hermetismo e a obscuridade apenas compreendida por poucos iniciados, o que não acontece no Só, que já na primeira edição do livro nos diz: “António é vosso”125 fazendo com que compartilhemos a sua dor e a sua solidão como se fossem nossa. 124 125 Cf. Só, p. 153. Idem, ibidem, p. 77. 68 Mesmo assim, ambas as torres têm em comum o sentimento de medievalismo e misticismo do poeta (António Nobre dizia sofrer de Medievalite) e com isso a possibilidade de retorno aos espaços mais primitivos, com visões paradisíacas, bastante ligadas a motivos bíblicos, conferem à infância a credencial para entrar nesse reino de magia e claridade, como nessa seqüência ainda da segunda estrofe: Searas que davam linho de fiar, Moinhos de velas, como latinas, Que São Lourenço fazia andar... Formosas cabras, ainda pequeninas, E loiras vacas de maternas ancas Que me davam leite de manhã, Lindo rebanho de ovelhas brancas; Meus bibes eram da sua lã.126 Uma característica interessante é o aspecto cromático do trecho citado, pois chama à atenção para a luminosidade que acompanha a descrição paisagística da infância: As vacas são loiras, as ovelhas são brancas, assim como o leite, denotando, assim, uma quase obsessão por essa cor que para os simbolistas denotava a pureza, a vaguidão, o mistério, ou mesmo a fonte de luz que sempre está presente nas imagens do paraíso cristão. Ainda sobre esse aspecto das cores nesse fragmento da “Lusitânia”, surge concomitantemente à visão do paraíso cristão, com suas cores claras, a sua oposição nos mitos do fim do mundo quando ocorre o escurecimento das cores. O rito da queda que transforma o “Menino e moço” em “Pobre Moleiro da Saudade” com a sua farinha negra, tem paralelo com o gênero literário apocalíptico caracterizado por uma linguagem de queda e ascensão marcada pela simbologia. Nesse tipo de texto há uma vasta lista de Símbolos animais, vegetais e humanos, assim como numéricos e cromáticos, [que] opõem-se e complementam-se em pares antitéticos que ilustram a luta entre as forças do Bem e do Mal (crentes/ pecadores; oprimidos/ opressores) traduzida, de uma forma geral, pela oposição luz versus trevas.127 Um livro bastante significativo sobre essa temática é o Apocalipse segundo São João (datado dos finais do século II a.C.). O Apocalipse é uma revelação feita por Deus a um visionário, para que esse transmita aos homens coisas ocultas entre o céu e a terra. Apesar da estranheza que nos causa algumas das suas revelações, justificadas por estarem estritamente 126 Cf. Só, p. 92. Maria Teresa Pinto Coelho, Apocalipse e regeneração (O Ultimatum e a mitologia da Pátria na literatura finissecular), Lisboa, Edições Cosmos, 1996, p.32. 127 69 ligadas aos acontecimentos do seu tempo, como por exemplo, a perseguição dos cristãos por Nero e Domiciano, forças do mal que causaram abalo no valor da morte de Cristo e o seu triunfo sobre as , o texto nos fornece reflexões históricas e teológicas que podem ser válidas na atualidade. Segundo Maria Teresa Pinto Coelho há nessa obra símbolos de ascensão, de superioridade, ligados a aspectos positivos, representados por cores claras e certos animais, como o cordeiro, e outros de esferas inferiores, negativos, esquematizando a descida, representados com cores mais escuras, como o Dragão do Apocalipse. Nos exemplos citados, o cordeiro manterá relações benignas de significado com a cidade ligada ao mundo espiritual ou superior: Jerusalém; e o dragão participará do reino humano da luxúria e da perdição: Babilônia. Vejamos como esses trechos da Bíblia recuperam o simbolismo cromático na visão joanina do Apocalipse, quando a grande prostituta ou Babilônia, a capital do reino anticristão, é assim descrita: Vi uma mulher sentada numa besta cor de escarlate, cheia de nomes de blasfêmia, com sete cabeças e dez chifres. A mulher se vestia de púrpura e escarlate, estava adornada de ouro e pedras preciosas e pérolas, e tinha na mão uma taça de ouro cheia de abominação e imundície de sua prostituição. Na fronte trazia escrito um nome — mistério — : “Babilônia, a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da terra”128 E em oposição à descrição da prostituta, a do cordeiro: Ao virar-me vi sete candelabros de ouro. No meio, alguém semelhante a um filho de homem, vestido de túnica longa até os pés e com o peito cingido por um cinturão de ouro. A cabeça e os cabelos eram brancos como lã branca e como a neve. Os olhos eram como chamas de fogo. Os pés, semelhantes ao bronze incandescente no forno, e a voz de muitas águas. Na mão direita tinha sete estrelas e da boca saía uma espada afiada de dois gumes. O aspecto do rosto era como o sol, quando resplandece em toda sua plenitude129. É nítida a oposição entre essas imagens a partir do significado dado às cores no livro de Apocalipse. Reconhecemos o vermelho como símbolo da violência, o branco da vitória, o preto da morte etc., sendo assim, os aspectos positivos e negativos se destacam em ambos os textos. Na última descrição, a plenitude da imagem de um homem ligado ao céu, por meio da 128 129 Bíblia Sagrada, 7ª edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1982, p. 1453. Cf. Bíblia Sagrada, p.1465. 70 luz que emana do seu próprio corpo, ilumina como o sol a vida daqueles que crêem que mesmo em grande sofrimento podem alcançar a paz e vida eterna. O livro interpretado por muitos apenas como o fim dos tempos é na verdade uma mensagem de esperança para aqueles que sofrem perseguições e um grande martírio, já que esses, segundo suas obras, serão eleitos a participar de um reino de fato feito por Deus, do qual um dia o homem foi expulso, de acordo com a teologia cristã. Como no Apocalipse, o Só também compartilha desse sentimento de queda. Em momentos de profunda desesperança política e social, há passagens nas quais nem a vida tem mais valor, nelas Portugal ganha aspectos de Babilônia e o país se transforma em uma visão do purgatório, de sofrimentos e de renúncia a um futuro melhor, como sugere o soneto “13”: Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos! Torres por terra! As árvores sem ramos! Ó meus Amigos! todos nós falhamos... Nada nos resta. Somos uns perdidos. Choremos, abracemo-nos, unidos! Que fazer? Porque não nos suicidamos? Jesus! Jesus! Resignação... Formamos No Mundo, o Claustro-Pleno dos Vencidos.130 Por outro lado, se o Apocalipse pode ser visto como passagem para um futuro próspero, resultado da escolha feita pelo homem sobre o caminho a seguir, então também podemos entender o retorno ao passado no Só como caminho escolhido para o reencontro do país ideal e da paz desejada pelo sujeito poético. Podemos observar isso nas imagens evocadas que inspiram a fecundidade e a abundância no “Lusitânia no Bairro Latino”. Os animais como a vaca e a cabra substituem a figura materna criando um ambiente de aconchego e de perfeita sintonia entre o homem e a natureza (lembremos que essa harmonia também ocorreu no paraíso cristão). A imagem evocada pela memória é serena e a natureza funciona perfeitamente na sua tarefa de dar o alimento e a proteção da lã, além do mais, existe a parceria com a entidade religiosa São Lourenço que ajuda aqueles que andam pelo mar, numa referência direta às crenças religiosas do sujeito poético. Essa junção homem e natureza com a esfera religiosa é mais facilmente percebida nesse trecho da terceira estrofe do poema “Lusitânia no Bairro Latino”: António era o Pastor desse rebanho: 130 Cf. Só, p. 203. 71 Com elas ia para os Montes, a pastar. E tinha pouco mais ou menos seu tamanho, E o pasto delas era o meu jantar... E a serra a toalha, o covilhete e a sala. Passava a noite, passava o dia Naquela doce companhia. Eram minhas Irmãs e todas puras E só lhes minguava a fala Para serem perfeitas criaturas... E quando na Igreja das Alvas Saudades (Que era da minha Torre a freguesia) Batiam as Trindades, Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me, Eu persignava-me, rezava “Ave-Maria...” E as doces ovelhinhas imitavam-me.” 131 Sobre o tema da religiosidade, José Carlos Seabra Pereira, na sua obra O essencial sobre António Nobre, considera: O Só chama a si com freqüência figuras, preces e práticas de religião católica; e não sofre dúvida que, sem embargo de golpes de erosão céptica, a atmosfera que, a par desse imaginário, gera no Só várias asserções ou insinuações opinativas, pode ser tida como a de uma mundividência religiosa de uma ética de piedade cristã. Mas também se pode colocar tudo isso sob a suspeita de conjuntural concessão do sujeito de enunciação a valores e vivências dos seres evocados na dramatização da sua lírica.” 132 Já Agustina Bessa-Luís percebe a paisagem do Só como teológica no sentido em que aproxima as coisas da terra com as coisas de Deus, possibilitando a “identificação final do mistério das coisas com as pessoas que as incorporam” 133. Também podemos considerar que a voz que revela o mundo mágico do “Menino e moço” seja consciente da passagem do tempo e de que o momento ideal está no passado. É a partir da narração, que já principia com o verbo no passado, que o contexto de vida desse “Pastor” flui com a naturalidade e a magia inerentes ao homem do Jardim do Éden antes da sua expulsão. Prova disso é que o “Pastor” de condutor de um rebanho passa a ser a imagem que se irmana com os animais, por serem essas criaturas “puras” e dignas de apreço. A plenitude da imagem evocada completa-se com a ação de se alimentar do sujeito poético. No poema há alimento para o corpo (o pasto) e alimento para a alma (a prece) que somados culminam na reprodução de ritos religiosos, como a persignação que os animais imitavam. 131 Cf. Só, p. 92. José Carlos Seabra Pereira, O essencial sobre António Nobre, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p.37. 133 Cf. Os Centenários: Eça, Freyre, Nobre. Belo Horizonte, p.22. 132 72 Temos nesse momento no poema o adensamento da espiritualidade do sujeito poético e a certeza de que só no passado ele encontrou a paz tão desejada. Sobre António Nobre, João Gaspar Simões destaca que “O futuro não lhe inspirava poemas. O presente não lhe dava emoções. Para Nobre tudo era passado. Eis como a sua obra é uma evocação melancólica daquilo que ele imagina ter sido belo, ter sido amável, ter sido digno de ser vivido e lembrado.”134 E se é verdade que o sujeito poético se reflete nas figuras que evoca, fatalmente durante esse período de evocação do passado haverá uma trégua entre o mundo ideal e o presente, entre a necessidade de rodear-se por todos os lados das sensações outrora vividas na infância e a percepção das aflições que esgotam as suas forças no presente. Por isso, a rememoração dos momentos vividos representa muito mais do que uma fuga dos problemas atuais, ela representa a própria tentativa de continuidade de vida do sujeito poético que se submete à imaginária exclusão dos tempos presente e futuro para concentrar-se nas suas lembranças e delas tirar o sustentáculo para continuar vivo. Essa é uma das originalidades de António Nobre, que viria a ser repetida na prosa anos depois pelo escritor francês Marcel Proust. A seqüência que vai agora iniciar o trajeto do desengano e da queda retoma o refrão “Menino e moço...” e numa reviravolta denuncia a perda do paraíso: [...] Um dia, os castelos caíram do Ar! As Oliveiras secaram, Morreram as vacas, perdi as ovelhas, Saíram-me os Ladrões, só me deixaram As velas do moinho... mas rotas e velhas! Que triste fado! Antes fosse aleijadinho, Antes doido, antes cego... Ai do Lusíada, coitado! 135 Se antes havia o tempo da edificação constituído pelos aspectos positivos da vida no campo, agora o que resta ao sujeito poético é a certeza do desmoronamento desse momento ideal. É diante de toda essa perda, dessa conotação de violência empregada, que a felicidade 134 João Gaspar Simões, António Nobre (Precursor da poesia moderna), 2ª edição, Lisboa, Ed.Inquérito, 1939, p.33. 135 Cf. Só, p. 93. 73 da infância é bruscamente substituída por outro momento mais negativo, com conceitos de morte e de falência individual dos sonhos, que contêm em si a falência nacional. Mais uma vez a voz do poema reconhece o seu destino fatal, a sua predestinação à angústia ou a algo pior é ampliada pelo advérbio “Antes”, três vezes empregado nessa passagem do engano para o desengano, como sugestão para outros males como: a imobilidade do aleijado, a falta de domínio da própria mente pelo “doido” e a escuridão do “cego”. Todos esses males surgem agora como contraste ao momento anterior que continha o movimento de quem “... ia para os Montes, a pastar”136 sob a luz alva da fé, da natureza e do sentimento de plenitude alcançada pela evocação da Idade de Ouro. Todos esses males reunidos encontram o seu auge no desejo de inconsciência do presente. Encontrar-se depauperado, com poucas chances de recomeço, pois só restaram “As velas do moinho... mas rotas e velhas!”137, causa uma grande dor ao “Lusíada” que transformado em coitado pode ser metaforicamente visto como a nação portuguesa após a crise histórica de 1890, quando o Ultimato Inglês lançou sobre o país uma onda de desalento e de consciência dolorosa da perda da soberania, outrora conquistada pelo mar em meados de Quinhentos. O Ultimato Inglês foi de extrema importância para a história de Portugal no século XIX, visto que as questões políticas portuguesas na África desafiavam grandes potências, como Inglaterra, França e Alemanha. Durante os acordos entre esses países, o Ministro Barros Gomes, buscando manter os domínios africanos, apresenta em 1887 à Câmara dos Deputados um mapa, resultado das negociações com os países citados acima, no qual os territórios portugueses, que se estendiam do Atlântico ao Índico, eram pintados com a cor rosa, os domínios da Inglaterra coloridos com azul, os da França com verde e, por último, o da Alemanha com castanho. Conhecido como o Mapa Cor-de-Rosa, o que equivale dizer, sonho português de pretensões imperiais, o mapa reforçava na sua apresentação o passado dos portugueses como conquistadores. Isso não convenceu as demais nações européias e questões como a da Maxolândia e a zona do Niassa, descoberta segundo os portugueses em 1616 por Gaspar Bocarro, não bastaram para convencer, principalmente, os britânicos dos direitos adquiridos pelos portugueses. Esbarrando nos interesses da Inglaterra, as relações entre esses antigos aliados começaram a deteriorar-se. Ainda mais quando Salisbury, “refutando aos argumentos de Barros Gomes e acusando-o de não basear as suas afirmações numa prova em como os portugueses haviam ocupado, colonizado ou governado os territórios que reclamavam como 136 137 Cf. Só, p.92. Idem, ibidem, p. 93. 74 seus”138, insistiu na declaração portuguesa de que não interfeririam no Niassa, nem no Chire, nem nas áreas protegidas pelos ingleses. Como o governo português não cedeu espontaneamente à pressão estrangeira, em 11 de janeiro de 1890, por meio da força física, o binômio superioridade versus inferioridade teve como resultado o conhecido Ultimato Inglês que afastava os portugueses dos territórios pretendidos pela Inglaterra e punha fim ao sonho de Portugal outra vez se reerguer pela colonização de terras conquistadas durante a época da expansão ultramarina. Da apaixonada questão que envolveu a opinião pública no final dos Oitocentos vemnos à memória um povo que motivado pela imprensa e líderes políticos defendeu seus legados na África confiantes num passado glorioso e na vitória no presente. Por isso, a notícia do Ultimato é recebida como um grande ultraje, uma catástrofe de proporções de final de mundo, resultando até em violência em manifestações populares. Aflorado o sentimento patriótico, a nação portuguesa passa então a reconstruir os seus valores nacionais. A imprensa contribui como força regeneradora e expõe a opinião de intelectuais como Antero de Quental que de forma realista lembra que não é clamando contra a Inglaterra que a nação tornará a crescer, mas sim com investimento na indústria e na educação. Aliás, ao contrário do que a literatura decadentista fazia crer, a sociedade portuguesa nunca deixou de crescer, nem antes, nem depois do Ultimato – embora crescesse de modo bem mais lento, se comparado às potências Alemanha, França e Inglaterra. De qualquer modo, o Ultimato repercutiu de forma traumática na psicologia coletiva e continuou a refletir as desilusões da pátria em temas literários, por exemplo, o exílio. No percurso do “Lusíada” que: Veio da terra, mailo seu moinho: Lá, faziam-no andar as águas do Mondego, Hoje, fazem-no andar as águas do Sena... É negra a sua farinha! Orai por ele! tende pena! Pobre Moleiro da Saudade...139 Encontramos duas referências geográficas que marcam o exílio do sujeito poético por meio da distância física entre dois rios importantes: o Mondego, de Portugal, e o Sena, que atravessa a cidade de Paris. O rio português representa dentro da obra a afinidade do poeta por 138 Cf. Maria Teresa Pinto Coelho, Apocalipse e regeneração (O Ultimatum e a mitologia da Pátria na literatura finissecular), p. 55. 75 sua terra natal. Está ligado às saudades das raparigas, ao amor e aos tempos idos como estudante; nessa perspectiva traz o desejo de retorno à pátria. Por outro lado, segundo as considerações de Maria Ema Tarracha Ferreira, na Introdução apensa a uma edição mais ou menos recente do Só, que aqui estamos utilizando, o rio também tem a função de recuperar a tradição lírica portuguesa, quando no poema “Saudade”, por exemplo, apresenta características da cantiga de amigo e é invocado pela personagem “Irene” para dar notícias do noivo ausente: Meu St.º Mondego, que voas e corres, Não tenhas vagares! Mondego dos Choupos, Mondegos das Torres, Mondego dos Mares! Mas ai! o Mondego (Senhora da Graça, Sou tão infeliz) Já foi e já volta, lá passa que passa, E nada me diz... 140 Apenas para complementar, podemos dizer que há outro aspecto mais sombrio, mais triste, sobre o Mondego, é o que repassa como num jogo de espelhos a natureza personificada que sofre e se reflete no sujeito poético, aumentando a sua histeria nervosa, como no poema “Carta a Manoel”: Vá! dize aos choupos do Mondego que se calem E pede ao Vento que não uive e gema tanto: Que, enfim, se sofre, abafe as torturas em pranto, Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas Quanto isto me faz mal! [...] 141 Sobre o Sena, o que importa dizer é que a partir do exílio ele é a paisagem que convive com o sujeito poético por cortar a capital da França, a cidade de Paris. Cidade que no século XIX era o centro irradiador cultural e artístico, atraente aos jovens de todas as partes do mundo por oferecer a expectativa de uma vida agitada e divertida. Sobre o nosso poeta que viveu em um dos mais tradicionais bairros boêmios da França, o Bairro Latino, sabemos por meio da sua correspondência e pela sua poesia que esse bairro não o seduziu e em passagens como: “Bairro Latino! Dorme um pouco,/ Faze, meu Deus, por sossegar!”142, do poema 140 Cf. Só, p. 130. Idem, ibidem, p. 118. 142 Cf. Só, p. 86. 141 76 “António”, ou “... se soubesse a impressão que faz um livro português lido e cismado, neste banal Paris embirrento de civilização”143, da carta endereçada a Manuel da Silva Gaio, podemos considerar que o Bairro Latino e a própria cidade de Paris, na verdade, representavam o oposto do que havia no seu interior totalmente preenchido pela dor da saudade e que Paris nada mais era do que a quimera do progresso. Assim, também como quimera podemos considerar a época do “Menino e moço”, agora transformada em sofrimento pelo “Pobre Moleiro da Saudade”, que merece pena. Acerca da poesia do Só escrita em Paris, Guilherme de Castilho afirma que é uma poesia de crise. Essa observação é importante na medida em que entendemos que o processo de criação da obra ocorreu durante um momento de conflito entre o sujeito e o ambiente em que esse estava inserido. Devemos aqui salientar que o desconforto em relação ao mundo sempre existiu, porém, é durante o exílio voluntário em Paris que a crise toma proporções desmedidas. Das cinqüenta e três composições do Só na segunda edição deduz-se que vinte e cinco foram criadas ou refeitas em Paris. Dessas composições, “Lusitânia no Bairro Latino” é o exemplo perfeito das operações da memória que permitiram ao poeta afastar-se da realidade hostil. Nele fica evidente a mistura do indivíduo com o coletivo, da ligação desse com a terra natal na ação afirmativa de usar, por exemplo, o pronome possessivo “minha” e nas referências ao ambiente rural, por meio de profissões mais simples, como a lavadeira, a ceifeira, o moleiro. Todos esses elementos agrupados denunciam a angústia do sujeito poético, consciente de um tempo perdido, que não retorna, mas cuja beleza ainda se conserva na memória. Reconstruindo poeticamente partes de Portugal, dá-se a presentificação do ausente a partir de evocações como essas: Ó minha Terra encantada, cheia de Sol, Ó campanários, ó Luas Cheias, Lavadeira que lavas o lençol, Ermidas, sinos das aldeias, O ceifeira que segas cantando, Ó moleiro das estradas, Carros de bois, chiando... Flores dos campos, beiços de fadas, Poentes de Julho, poentes minerais, Ó choupos, ó luar, ó regas de Verão! Que é feito de vocês? Onde estais,onde estais?144 143 144 António Nobre, Correspondência, p. 173. Cf.Só, p. 93. 77 A partir dessa estrofe que recomeça com “Ó minha/ Terra encantada, cheia de Sol” retornamos ao passado e percebemos o fluir irremediável do tempo que oscila entre o passado desejado e o presente de desilusões. A impressão que temos é que o momento em que a condição como estrangeiro começa a sufocar o sujeito poético, esse faz o corte na realidade e passa a reconstruir poeticamente o seu território imaginário e essencialmente rural. Território composto por pessoas e seres inanimados, representantes de um ideal de vida que só se atinge por meio da saudade e das evocações da memória que reconstituem fielmente a vida desejada. Por isso, o questionamento “Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?” no “Lusitânia no Bairro Latino” nos remete ao topos do ubi sunt, que pode diminuir o mal estar do homem que sente-se desconcertado diante do desmoronamento do seu mundo atingido pelo passar do tempo e pela inconstância da fortuna. Os questionamentos são acompanhados por uma série de imagens de lugares e pessoas comuns, fundamentais, na compreensão de que tudo é efêmero, mas para sempre conservado na memória. Se o topos do ubi sunt denota a angústia do tempo perdido, daquilo que foi e já não é, do ausente, os elementos que compõem a memória paisagística de António Nobre, por outro lado, servem como bálsamo e confirmam a sua ligação afetiva com o Portugal rural e nortenho através das invocações em forma de ladainha que criam efeitos sonoros e visuais, como os “sinos das aldeias” que se misturam com a voz da “ceifeira que cegas cantando” e acrescenta ao imaginário um mundo em movimento e completo. Aliás, o passado é sempre revestido de movimento, de atividade, a “Lavadeira que lavas o lençol”, os “Carros de bois” que pelas estradas passam chiando, todos são incluídos num cenário de vida humilde e glorificada pela seqüência de “ós” que aparecem no poema. Na seqüência que segue, o poeta com enorme sensibilidade dedica-se aos profissionais mais simples do seu país como prova de reconhecimento das contribuições anônimas para o desenvolvimento de Portugal: Ó padeirinhas a amassar o pão, Velhinhas na roca a fiar, Cabelo todo em caracóis! Pescadores a pescar Com a linha cheia de anzóis! Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas, Ó bandeiras! ó Sol! foguetes! ó toirada! Ó boi negro entre as capas vermelhas! Ó pregões d’água fresca e limonada! Ó romaria do Senhor do Viandante! Procissão com música e anjinhos! 78 Srs. Abades d’Amarante, Com três ninhadas de sobrinhos! Onde estais? onde estais? 145 Maria Helena Nery Garcez, em seu artigo “O Jogo da Berlinda” trata da temática do herói nacional e faz questionamentos que convém reproduzir na íntegra: Será que nestes magníficos carmes de Só, criados em 1891-92, em Paris, não há bucolismo e heroísmo mesclados? Mais: será que, ao ver com distanciamento o Portugal rural e dos pescadores, não está ele exaltando não os que por mares nunca dantes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana mas sim aqueles que em terra ficaram e por velhos caminhos tantas vezes percorridos deram continuidade ao velho reino, povoando-o e edificando-o com seu trabalho, ao extrair alimento da terra e do mar? Não é o heroísmo oculto dos que ficaram e dos que foram e voltaram – tal seu Pai – que ele celebra e engrandece? 146 Provavelmente, para todos esses questionamentos a resposta seja “sim”; se pensarmos em apenas um deles, o que muda o foco dos heróis reconhecidos da pátria para aqueles que na “terra ficaram” e que silenciosamente mantiveram o país de marinheiros, encontraremos uma legião de humildes no Só que cooperaram com o desenvolvimento da pátria e apenas uma minoria, quase raridade, apresentada como representantes de profissionais de classes sociais mais elevadas, que quando surgem estão em atividades simples como o “Sr. Governador a podar as roseiras”147 . Depois da representação do trabalho nas aldeias, o poema entra em um ritmo mais acentuado no qual as vibrações sinestésicas misturam um emaranhado de sensações tácteis com som, luzes e cores fortes e vibrantes numa listagem convulsiva de tudo o que está ausente e reproduz um ambiente no qual não há solidão. O sujeito poético rememora a intensidade da luz do seu país que, durante as romarias e festas populares, tem suas mulheres vestidas com todas as suas jóias a resplandecer. É o mundo das devoções e da diversão chamando para a vida que teima em fugir e se mostrar ausente todas as vezes que o topos do ubi sunt retorna como testemunha direta do tempo perdido, dos males que afligem o indivíduo, como para deixar claro que tudo não passa de uma ilusão e que as alegrias das imagens recuperadas pela memória não voltarão jamais. A seqüência a seguir é longa e baseia-se na memória histórica do sujeito poético: 145 Cf. Só, p. 94. Maria Helena Nery Garcez, “O Jogo da Berlinda”, in Voz Lusíada (Revista da Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes), nº 15, p. 6, São Paulo, 2000. 147 Cf. Só, p. 94. 146 79 Ó minha capa de estudante, às ventanias! Cidade triste agasalhada entre choupais! Ó dobres dos poentes, às Aves-Marias! Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia! Estrada de Santiago! Sete-Estrelo! Casa dos pobres que o luar, à noite, caia... Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo, Amortalhado em perrexil e trepadeiras, Onde se enroscam como esposos as lagartas! Sr. Governador a podar as roseiras! Ó Bruxa do Padre, que bota as cartas! Joaquim da Teresa! Francisco da Hora! Que é feito de vós? Faláveis aos barcos que andavam, lá fora, Pelo porta-voz... Arrabalde! Marítimo da França, Conta-me a história da Formosa Magalona, E do Senhor de Calais, Mais o naufrágio do vapor Perseverança, Cujos cadáveres ainda vejo à tona... Ó farolim da Barra, lindo, de bandeiras, Para os vapores a fazer sinais, Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras, Dicionário magnífico de Cores! Alvas espumas, espumando a frágua, Ou rebentando, à noite, como flores! Ondas do Mar! Serras da Estrela d’água, Cheias de brigues como pinhais... Morenos mareantes, trigueiros pastores! Onde estais, onde estais? 148 Num primeiro momento, há a localização geográfica de Coimbra, indelevelmente associada aos tempos de estudante. No Só, a cidade de Coimbra é na maior parte das vezes considerada como uma cidade triste, talvez por isso ela seja tantas vezes lembrada pela voz do poema que por ser também nostálgica e cheia de enganos sofre influência direta da paisagem ao seu redor. A seguir surge uma série de topônimos e antropônimos que Fernando J.B. Martinho149 considera essenciais para a presentificação de tudo o que está irremediavelmente perdido. Dos lugares citados, temos localidades próximas de Leça da Palmeira, como as “Fortalezas de Lipp”, “Cabo do Mundo” e “Moreira da Maia”, que tinham especial atenção do poeta por estarem ligados à sua infância e juventude, as “Fortalezas de Lipp”, por exemplo, era o lugar para brincadeiras com os filhos do governador António Pinto Leão da Silva que mantinha o fosso do castelo como um jardim. Também são citadas pessoas do convívio do poeta como “Joaquim da Teresa!”, “Francisco da Hora” e Maria Cuca, a “Bruxa 148 Cf. Só, p. 95. Fernando J.B. Martinho, “Metamorfoses de um ‘Topos’ em ‘Lusitânia no Bairro Latino”, in Colóquio de Letras, nº 127/128, p. 142, Janeiro-Junho de 1993. 149 80 do Padre”. Pela crendice popular, essa mulher botava cartas e segundo diziam, incorporou a alma do padre depois que esse morreu. Para Annie Gisele Fernandes ... o mundo religioso do Só, no qual o sujeito poético parece estar integrado e que se manifesta através de imagens e práticas do catolicismo [...] parece ser manchado, por exemplo, pela crendice e pelo paganismo, patentes em Espíritos! em vão, debalde por vós clamo/ Hoje, delícias do abandono!/ Vivo na Paz, vivo no limbo ou pelo panteísmo do Ai Oxalá! Que Pã me despachasse/ Adido à vossa estranha Legação!150 ou por figuras populares como o “Astrônomo” em “Males de Anto I” e “Ana Coruja”, do mesmo poema, conhecida também por ler o destino nas cartas. Se a religiosidade é manchada pela superstição do povo, também o poema que até agora apresentava configuração bucólica passa a falar do mar, daqueles que viviam dele e de suas tragédias. Com isso, histórias como a da Formosa Magalona e do Senhor de Calaïs são relembradas como narrativas populares que gostosamente são recontadas e preservadas pela memória do povo. Outra história traz um momento mais próximo a necrofilia do sujeito poético: o naufrágio do vapor “Perseverança”, vapor espanhol que ao colidir com os rochedos de Leixões teve quase toda a tripulação dizimada. Dessa história, o que vive no imaginário do povo é a passagem em que a filha do capitão, ao chegar viva à praia, acabou sendo assaltada e seus dedos cortados para que seus anéis fossem retirados. Depois, como para encerrar a lembrança dessas histórias, o poeta retoma o cromatismo anteriormente vivido pelas romarias e festas populares agora com o mar. As bandeiras do “farolim da Barra” fazem sinais coloridos e significativos para aqueles que navegam, num ritual de beleza e harmonia entre o homem e o mar. A partir desse trecho, a transposição, no poema, da terra, do elemento rural, para o cenário líquido do mar, iguala em condição os “Morenos mareantes” com os “trigueiros pastores”. Por fim, mais uma vez o grito saudoso, lamentoso, choroso, desesperado, “Onde estais, onde estais?” abre espaço para outro movimento que agora se ocupa com o gosto mórbido de tornar presentes cadáveres, numa seqüência horrenda e totalmente oposta às imagens paradisíacas do começo das evocações: Convento d’águas do Mar, ó verde Convento, Cuja Abadessa secular é a Lua, E cujo Padre-capelão é o Vento. 150 Annie Gisele Fernandes, A estrutura dialógica em poemas do Só de António Nobre, Dissertação de mestrado, São Paulo, UNICAMP, 1996, p. 43. 81 Água salgada desses verdes poços, Que nenhum balde, por maior, escua! Ó Mar jazigo de paquetes, de ossos, Que o Sul, às vezes, arrola à praia: Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos! Corpo de virgem, que ainda veste a saia, Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos! Noiva cadáver ainda com véu... Ossadas ainda com os mesmo fatos! Cabeça roxa ainda de chapéu! Pés de defunto que ainda traz sapatos! Boquinha linda que já não canta... Bocas abertas que ainda soltam ais! Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados! Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...) Ó defuntos do Mar! ó roxos arrolados! Onde estais, onde estais? 151 Nos primeiros cinco versos dessa passagem ocorrem a divinização da natureza. O mar passa a ser regido pela lua, símbolo do inacessível, do quimérico, do idealizado, e pelo vento, causador de transformações, nem sempre positivas. Com isso entendemos que o mar transforma-se num imenso leito mortuário capaz de reter de forma mórbida não apenas os restos mortais daqueles que morreram no mar, como também reter algo da vida dessas pessoas. Por isso, os mortos presentes nessa passagem chocam o leitor pela sua ligação com as vestes, com o poder da fala ou por manter, apesar de imobilizados, os olhos ainda a brilhar. São essas imagens que fazem coexistir o locus horrendus da realidade vivida por António com o locus amoenus do retorno ao passado pelas evocações da memória. Desses dois paradigmas, o locus horrendus consegue, apesar da estranheza que causam as suas imagens, recriar o belo e o erótico a partir de passagens como essas: “Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados” ou “Noiva cadáver ainda com véu...”. É preciso observar que nesses versos e em outros dessa passagem existe uma carga de sensualidade associada à mulher que, mesmo diante de um cenário grotesco de morte, não diminui. Aliás, o advérbio “ainda” é duramente empregado como a incapacidade de se concluir a própria morte. Por isso, a estranheza nas imagens que revelam “Ossadas ainda com os mesmo fatos” ou “Pés de defunto que ainda traz sapatos!”, já que a morte sugere o despojamento de tudo. Assim, o leitor passa, no desfilar dessas desgraças, a participar dessa angústia, dessa sugestão de vida precária como se visualizasse a pátria portuguesa do final de Oitocentos agonizando, com seu gosto decadentista que permite a aceitação da decomposição do corpo e do seu mundo. 151 Cf. Só, p. 95-96. 82 Por fim, a última parte do primeiro painel do tríptico retorna à vida aldeã e diminui a intensidade da temática da morte tão empregada na estrofe anterior. Essa estrofe, pelo contrário, é composta quase na sua totalidade por topônimos que, de forma metonímica, aproximam-se do tempo da infância pela reapresentação de um cenário de luz e frescor somente encontrados na rememoração do passado: Ó Boa Nova, ermida à beira-mar, Única flor, nessa viv’alma de areais! Na cal, meu nome ainda lá deve estar, À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios. Ó altar da Senhora, coberto de luzes! Ó poentes da Barra, que fazem desmaios... Ó Santa’Ana, ao luar, cheia de cruzes! Ó lugar de Roldão! vila de Perafita! Aldeia de Gonçalves! Mesticosa! Engenheiros, medindo a estrada com a fita... Água fresquinha da Amorosa! Rebolos pelas areia! Ó praia da Memória! Onde o Sr. Dom Pedro, Rei soldado, Atracou, diz a História, No dia... não estou lembrado; Ó capelinha do Senhor d’Areia, Onde o Senhor apareceu a uma velhinha... Algas! Farrapos do vestido da Sereia! Lanchas da Povoa que ides à sardinha, Poveiros, que ides para as vinte braças, Sol-pôr, entre pinhais... Capelas onde o Sol faz mortes, nas vidraças! Onde estais? 152 O apego à enumeração de lugares freqüentados pelo sujeito poético em um outro momento da sua vida demonstra o desejo de preservação da sua história e da sua identidade que diferentemente da história política do seu país faz questão de esquecer, retirando toda a solenidade de momentos, como o desembarque de D. Pedro IV na praia de Pampelido ou Arenosa, ao norte de Leça, usando a irreverência na pontuação e em frases que não apresentam informações seguras sobre os fatos. O que interessa ao sujeito poético é se manter firme como a escrita na cal que sobreviveu a todos os infortúnios da natureza. É importante apontar aqui que a seleção das palavras feita por um poeta como António Nobre não pode ser vista apenas como simples espontaneidade, justificada por se tratar de um texto aparentemente simples, no qual a representação do provincianismo de uma aldeia de pescadores ou de um povo é enfocada nas suas particularidades mais rotineiras. Pelo 152 Cf. Só, p. 96. 83 contrário, segundo o crítico João Gaspar Simões “António Nobre nada tem daqueles poetas intelectuais [...] nada tem de Fernando Pessoa. Não sei de poeta menos intelectual na poesia portuguesa. E no entanto não se pode dizer que seja um poeta espontâneo. Nisto está em grande parte, a sua sedução.”153 No Só, aparentemente, não há a preocupação com a eloqüência ou retórica poéticas. As palavras fluem de acordo com a quase narração oral dos acontecimentos, com a mesma naturalidade de uma conversa entre amigos; por isso, ler o Só é fazer-se de ouvinte de um sujeito poético que se “confessa”, por meio da sua obra, preso a um passado e longe de algumas das convenções que a literatura da época pregavam. Prova disso são os traços humanitários da poesia nobreana, responsáveis pela aproximação do leitor desse mundo íntimo, de tom pessoal e quase trivial. Poucos escritores das literaturas portuguesa e brasileira deixaram exposta a sua natureza humana, as suas mágoas, anseios e medos como António Nobre no século XIX. Alguns contemporâneos desse poeta trouxeram para a poesia o tom quase confessional, mas só mesmo anos depois do aparecimento do Só é que essa tendência à transparência do ser veio à tona definitivamente com poetas como Mário de Sá-Carneiro, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros, que “narraram” suas vidas em forma de poesia. Vejamos alguns exemplos de versos desses poetas: Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que a vida é porosidade e comunicação. [...] (Carlos Drummond de Andrade, “Confidência do Itabirano”, )154 ou Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias 153 João Gaspar Simões, António Nobre (Precursor da poesia moderna), p. 56. Italo Moriconi (organizador), Os cem melhores poemas brasileiros do século, Rio de Janeiro, Objetiva, 200l, p.97. 154 84 no vento [...] (Cecília Meireles, “Motivo”)155 ou nesse exemplo da literatura portuguesa: Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto, E hoje, quando me sinto, É com saudades de mim. Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar. Na ânsia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida... [...] (Mário de Sá-Carneiro, “Dispersão”)156 Por falarem abertamente de temas populares, da dor e da satisfação em existir, da metalinguagem, dos lugares da infância e por pertencerem à chamada poesia moderna é que esses poetas mais crédito acrescentam, quando comparados, a originalidade de um poeta como António Nobre. Resta salientar que o topos do ubi sunt empregado no poema por diversas vezes tem, no final da estrofe que encerra o primeiro painel, apenas uma questão: é como se, repetindo a pergunta e concluindo o poema, nos desse a conhecer que, depois da insistência em encontrar o lugar e momento ideais, em evocar o ausente, o sujeito poético já cansado, desiste de tentar. “LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: A MEMÓRIA E O PAÍS DE MARINHEIROS “Georges! anda ver meu país de Marinheiros,/ O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!”. É assim que se inicia a segunda parte do tríptico, como um convite, carregado de entusiasmo juvenil e de urgência, num anseio em apresentar por meio das imagens marítimas e do ritmo dos versos, subseqüentes a essa introdução, aquilo que o sujeito poético poderia dar a conhecer como o seu mundo, (re)criado pela memória e pela imaginação. 155 Italo Moriconi (organizador), Os cem melhores poemas brasileiros do século, p.99. Samira Youssef Campedelli; Jésus Barbosa Souza, Português – Literatura, Produção de Textos & Gramática, São Paulo, Editora Saraiva, 2000, p.224. 156 85 Através dessas duas faculdades: a imaginação e a memória, podemos dizer que o sujeito poético foi capaz de reinar onipotentemente no seu mundo, voltando-se para si e para o passado, acrescentando às palavras empregadas no Só muito mais do que o seu sentido real. Afinal, a possibilidade de conhecermos a realidade do sujeito poético a partir da sua linguagem é de uma riqueza infinita, como também é passível de exploração a possibilidade do sujeito poético servir-se do seu mundo como conteúdo e dele retirar o que há de mais profundo e pintá-lo como ele é, mostrando as belezas do mundo rural, mas também os problemas que assolam o aldeão; mostrando as belezas da nação marítima, mas também os riscos e perigos por que passam os homens ligados ao mar, como sugere algumas das imagens contidas no Só, como exemplo, o dístico final de “Lusitânia no Bairro Latino”: “Qu' é dos Pintores do meu país estranhos,/ Onde estão eles que não vêm pintar?”157. Outro aspecto da poesia do Só é que a preferência pelas coisas simples e a valorização das mesmas, freqüentemente, se dá de maneira pouco convencional, como é o caso da “Lusitânia no Bairro Latino” - parte dois, quando a valorização do popular acontece por via indireta ou por contraste com elementos “mais nobres”, “mais adequados” à literatura. Exemplo disso é quando a presença do mar por toda a extensão desse poema faz com que as pequenas lanchas ao saírem “...a barra, entre ondas e gaivotas”, lembrem o leitor um outro momento histórico: as grandes navegações dos séculos XV e XVI. Porém, apesar da citação de Vasco da Gama ou dos barões assinalados e de reconhecermos que centenas de portugueses enfrentaram o mar e o desconhecido para o fortalecimento do império, essa lembrança dos “grandes” não consegue se destacar pela sua importância histórica, e por fim sobrepõe, coloca em primeiro plano a ação dos navegadores atuais que, agora, modestamente, utilizam o mar como forma de subsistência, numa manifestação de força humana embelezada pela construção da imagem da saída das lanchas (“Que vista admirável! Que lindo! que lindo!”) e pelo som dos gritos dos poveiros. Isso é poesia moderna; é rebaixar o assunto; é tornar o trivial, o comum, digno de se tornar poesia. Impregnado de recursos imagéticos, o poema nos leva a considerar, de acordo com a explicação de Alfredo Bosi em sua obra O ser e o tempo da poesia, que “a experiência da imagem, anterior à da palavra, vem enraizar-se no corpo. A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu.”158 Sendo assim, não é mais necessária a presença real do objeto para que o mesmo possa estar diante de nós. O ato de ver é muito mais complexo do que um simples registro de formas, ele é também um registro da 157 158 Cf.Só, p. 103. Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia, p.19. 86 nossa relação com aquele objeto, por isso, a importância da imagem para o processo da memória. Sem ela a memória perderia a função de co-existência dos tempos. É somente com a imagem que a memória retém e convive com o passado, sobrepondo-o muitas vezes ao presente. Se as imagens do “Lusitânia no Bairro Latino” resultam de um retorno a outros tempos, essas mesmas imagens também podem apresentar alguma deformação pela ação do tempo, porém, a sua essência, as sensações e o significados adquiridos durante o contato do ser com a imagem real mantêm-se representativos e fiéis à emoção vivida naquele momento, como se o momento passado ressurgisse como presente. No poema a palavra isolada e decodificada não pode transmitir outro sentido que não seja o sentido denotativo dela própria, a imagem ganha força quando palavras como mar, lancha, céu, são vistos como um conjunto e considerados na sua interdependência de idéias ou sensações. Quando isso ocorre adquirem outro contexto, outra imagem. Observemos por exemplo, o verso: “A saírem a barra, entre ondas e gaivotas”, nele ocorre a valorização da percepção do olho que em algum momento no passado registrou na memória a posição intermediária de uma embarcação, localizada entre o céu e o mar. Aberta a evocação, os registros da memória fornecem uma nova imagem, semelhante à original, porém distante daquela, já que a imagem resulta de um complexo processo de percepção e de ligação afetiva. Para compreendermos melhor como o recorte de mundo feito pelo sujeito poético adquiriu mais expressividade, a partir das imagens suscitadas e do ritmo do poema, é importante observarmos o trecho a seguir, que reproduz por meio da memória a saída das lanchas: Oh as lanchas dos poveiros A saírem a barra, entre ondas e gaivotas! Que estranho é! Fincam o remo na água, até que o remo torça, À espera da maré, Que não tarda hi, avista-se lá fora! E quando a onda vem, fincando-o a toda força, Clamam todos à uma: 'Agora! Agora! Agora!' E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo (Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...) Que vista admirável! Que lindo! que lindo! Içam a vela, quando já têm mar: Dá-lhes o Vento e todas, à porfia, Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas, Rosário de velas, que o vento desfia, A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas[...]159 159 Cf.Só, p. 97. 87 Há duas vias de acesso para se compreender esse trecho do tríptico: a primeira seria a unidade sonora do poema ou o seu ritmo, a outra seria a imagem nele reproduzida. Geralmente o movimento das imagens circula apenas pelos limites da visão; contudo quando alcança o nível das palavras, e no caso desse poema o som se une à representação da ação dos poveiros, esse movimento cria um novo significado, um novo “corpo”, quase irreal, desse recorte do cotidiano dos homens que viviam do mar. Sendo assim, o som das palavras e o ritmo escolhido (ora lento, ora rápido) em conjunto com a imagem, que tem a função mestra de apoio sensorial, variam de acordo com o expresso no interior do poema, ou seja, dependem da emoção empregada pelo sujeito poético. Luís Filipe Lindley Cintra considera que “num estudo sobre o ritmo é sempre necessário contar com uma margem de subjetivismo na análise”160. O autor confirma isso ao reconhecer que mesmo utilizando métodos rigorosos na determinação dos esquemas rítmicos, devemos considerar a interpretação pessoal de quem lê o poema, pois nem todos fazem a leitura de maneira equivalente. Sendo assim, se tratarmos de forma isolada o ritmo na poesia de António Nobre podemos notar que o poeta emprega versos de três a doze sílabas poéticas, não mais do que doze. Todavia o que chama à atenção não é o tamanho dos versos, mas a liberdade na acentuação dos versos tradicionais é evidente: o decassílado, que nos moldes tradicionais, é heróico (acentuado na 6ª e 10ª) ou sáfico (acentuado nas 4ª, 8ª e 10ª), passa a ter acentuação variável em Nobre, assim como o alexandrino que deixa de ter apenas os acentos na 6a e 12a e passa a ser trímetro (acento nas 4a, 8a e 12a) e passa, no caso do decassílabo, a ter variantes pela introdução de acentos secundários. Alguns escritores, como Julio Brandão, no prefácio de Primeiros Versos161, enfatizam a evolução da técnica na obra de Nobre, observando que na sua iniciação literária o poeta utilizava os padrões rítmicos do seu tempo, sem alterar os alexandrinos, porém, com o passar do tempo surgiram alterações fora do usual, os versos passaram a ter suas cesuras desarticuladas e apresentavam maior liberdade interna. Na concepção de Julio Brandão, essas alterações no ritmo dos versos proporcionaram à poesia da época o verso livre. Devemos, no entanto, complementar a possível confusão pelo emprego da expressão “verso livre” que nos remeta à liberdade formal e à não obrigatoriedade em respeitar a métrica ou de usar rimas. Salientamos que há limites nas medidas na obra de António Nobre em dois poemas: 160 Luís Filipe Lindley Cintra, O ritmo na poesia de António Nobre, Dissertação de Licenciatura em Filologia Românica, Lisboa, Faculdade de Letras, 1946, p.02. 161 António Nobre, Primeiros Versos, Braga, Augusto Costa, 1945. 88 “Purinha” e no “Lusitânia no Bairro Latino”, ambos de 1891, o poeta emprega aparentemente o verso livre. Essa impressão decorre do formato visual desses poemas que se compõem por versos com três, quatro, seis sílabas poéticas, decassílabos e alexandrinos, porém a medida máxima é o alexandrino. Além do que, se todas as poesias do Só são rimadas podemos entender isso como um processo de limitação do verso, o que impede a classificação dos dois poemas acima citados como versos livres. Essa variedade de esquemas rítmicos nos conduz para o espírito da poesia moderna, libertadora; ao longo de todo poema “Lusitânia no Bairro Latino”, podemos comprovar isso através das inúmeras combinações métricas, de versos curtos e longos, por vezes intercalados, numa irreverência à métrica tradicional, que mais combina com o estilo coloquial da poesia de António Nobre. Dos 54 poemas que constituem a obra, 35 são escritos na forma de decassílabos ou dodecassílabos, decididamente afirmando a tendência do poeta para versos mais longos, que se aproximam da prosa. Formalmente o que separa um texto em prosa de um texto em verso é que no primeiro há a ausência de ritmo ou a sua presença é irregular. O que nos leva a considerar que, sendo o Só um livro que mantém em boa parte das suas composições a irregularidade rítmica, a sua aproximação com a prosa torna-se evidente; porém os excessos são raros e o ritmo permanece mesmo quando é totalmente irregular. Como exemplo dessa aproximação com a prosa encontramos em “Carta a Manoel” quando o sujeito poético narra o encontro dos estudantes com os aldeões: Velhos aldeões que tudo vêem, mas não implicam, Porque, em suma, que mal pode fazer um beijo? Vêm até nós, sorrindo, aproveitando o ensejo, Com o chapéu na mão, simples e bons e honrados; Vêm consultar-nos, porque “somos advogados E sabemos as leis...” [...]162 Percebamos que a força desse trecho move-se pela intenção de aparentar naturalidade. Há um ritmo calmo nessa parte do poema encadeado pelo respeito dos aldeões e pela percepção histórica das classes sociais pelos estudantes. Contudo, devemos alertar que com a mudança nos acentos rítmicos há uma intencionalidade nos movimentos que ora adquirem maior velocidade, ora maior lentidão, como exemplo de velocidade rítmica, temos o verso do poema “Ladainha”: “Dorme menino! Dorme, dorme, dorme![...]”163 ou o soneto “18”: “Mas a 162 163 Cf.Só, p.124. Idem, ibidem, p.184. 89 arte, o Lar, um filho, António? Embora![...]”164, ambos com quatro acentos, num movimento mais agitado. Voltemos a segunda parte do tríptico. Basta que observemos que os verbos de ação do trecho citado acima do “Lusitânia no Bairro Latino” sugerem movimento: sair, fincar, clamar, rimar, dar, ir, rezar, içar para reconhecer que acrescentam ao poema uma velocidade. O ritmo é mais rápido. A impressão de uma batalha que se trava entre o homem e a natureza sugere a necessidade de unidade entre aqueles que enfrentam o mar, por isso quando “Clamam todos à uma: 'Agora! agora! agora!” ganham força, ganham energia na troca da terra pelo elemento mar, assim podem ultrapassar os obstáculos. A ação desses homens, pescadores das aldeias, representa vigor de quem luta pela vida, não há aqui espaço para os sussurros dos fracos, antes o brado, antes o “Vento” a empurrar já em alto mar as embarcações. Por isso, o orgulho, a admiração pela imagem soberba das lanchas a se afastarem da praia, semelhante ao mesmo orgulho encontrado no Canto V de Os Lusíadas: Assi fomos abrindo aqueles mares, Que geração alguma não abriu, As novas ilhas vendo e os novos ares, Que o generoso Henrique descobriu;165 Percorrendo os poemas do Só também encontramos versos com três, quatro ou cinco sílabas poéticas intercalados por versos de outras medidas. Por conta dessa variedade de ritmos passamos pelas várias cadências e tons que adquire a voz do sujeito poético, às vezes ela rompe em exclamações, em lamentos, invocando ajuda para os seus males em constante diálogo com vários interlocutores entre eles amigos, familiares ou elementos da natureza. Evoco a Coimbra triste, em seu aspecto moiro: Entro, chapéu na mão, em tua Casa d’ Oiro, Em frente a um canavial, cheio de rouxinóis, Que era nervoso de mistério, ao pôr-dos-sóis, Vejo o teu Lar e a ti, tão pura, tão singela, E vejo-te a sorrir, e vejo-te à janela, Quando eu seguia para as aulas, manhã cedo, Ansiosa, olhando dentre as folhas do arvoredo, Olhando sempre até eu me sumir, a olhar, Que às vezes não me fosse um carro atropelar166 Ou em 164 Cf. Só, p.208. Luís de Camões, Os Lusíadas, São Paulo, Editora Brasileira Ltda, 1952, p.164 166 Cf. “Na estrada da beira” in Só, p. 218. 165 90 Saía, apenas, à tardinha, pela calma, Sorvendo aos haustos a resina dos pinheiros. Tomava quase sempre a estrada dos Malheiros. A nossa casa é ao virar mesmo da estrada, Onde perpassam os aldeões na caminhada E a mala-posta a rir, cheia de campainhas!167 Geralmente esses poemas feitos num ritmo mais calmo, com poucos cortes, apresentam características confessionais sublinhando a intimidade na fala de quem descreve paisagens familiares, tendo em vista sempre a si mesmo, ou seja, o sujeito poético no centro de um quadro que reflete a sua histeria no presente ou a sua harmonia com acontecimentos ou paisagens do passado. Essa realidade evocada condiz com o momento íntimo vivido pelo sujeito, o que reforça a idéia de que no Só o ritmo é regulado pela voz de um sujeito poético que “quebra” os esquemas tradicionais da métrica para manifestar o seu encanto ou desencanto por si mesmo ou por sua terra natal: Portugal. Outra inovação no Só é o aproveitamento da fala com erros ortográficos como elemento importante na representação do povo; neste trecho da “Ladainha das Lanchas” do “Lusitânia”, podemos observar alguns deles: Snra Nagonia! Olha, acolá! Que linda vai com seu erro de ortografia... Quem me dera ir lá! Senhora Da guarda! (Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor) Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda O caçador! Senhora d' ajuda! Ora pro nobis! Calluda! Sêmos probes! Snr dos ramos! Istrella do mar! Cá bamos Parecem Nossa Senhora, a andar. Snra da Luz! 167 Cf. “Males de Anto I” in Só, p. 236. 91 Parece o Farol... Maim de Jesus! É tal qual ela, se lhe dá o Sol! Snr dos Passos! Sinhora da Ora! Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços Parecem ermidas caiadas por fora... Snr dos Navegantes! Senhor de Matuzinhos!168 Nos erros ortográficos podemos reconhecer o aspecto sensorial e afetivo atuando conjuntamente na seleção dos sons ouvidos. Essa observação da oralidade do povo se dá a partir do desejo de aproximação de um sujeito poético, caracterizado como dandi e de cultura elevada, com pescadores e pessoas humildes que o cercam. Sendo assim, as diferenças na forma de falar do povo e de “Anto” baseiam-se na cultura em que cada um está inserido. Contudo, não há intenção de inferiorizar os mais humildes reproduzindo os erros da fala. O que ocorre é a reprodução dos erros ortográficos por um sujeito poético vinculado aos humildes por processos psicológicos que determinam o ambiente e as palavras que chamam a sua atenção; dessa maneira se equipara a essa parcela da população que reconhece como “probes”, sofredores e amparados apenas pela “Maim de Jesus!”. Conciliando os erros de ortografia com a melodia do poema em forma de reza, o sujeito recupera aqui não só a memória religiosa desse povo, que respeita o desconhecido batizando seus barcos com nomes de santos, como preserva também, por meio dessa nomeação, a tradição secular de pedidos de proteção para suas vidas e pedidos de garantia de retorno para aqueles que andam pelo mar. Considerando o conhecimento cultural e histórico que o sujeito poético aparenta ter, é nesses trechos, em que a musicalidade, o canto da ladainha se faz presente, que mais podemos sentir a presença do “ser” que vê e registra na memória essas situações rotineiras, mesmo porque estão elas impregnadas do estado sensível do sujeito poético. Talvez seja por isso que nesse trecho do “Lusitânia no Bairro Latino” encontramos a construção de um cenário formado por fragmentos da memória com invocações intercaladas entre reflexões pouco firmes. O sujeito não afirma que a imagem “é”, ele sugere, diz 168 Cf.Só, p.97/98. 92 assemelhar-se a alguma coisa ou a alguém, em versos como “Parece uma gaivota...”, “Parecem Nossa Senhora” ou “É tal qual ela, se lhe dá o Sol!”, a impressão que temos é de que o sujeito poético encontra-se em devaneio, num estágio não finito de possibilidades. Por isso, o desfilar de elementos evocados e invocados na segunda parte desse poema, aparentemente descontínuos, exigem do leitor uma tomada de consciência que agrupe os elementos dispersos. Juntos esses elementos produzem o efeito de um todo, um único significado, resultado da ação proposital do sujeito poético de apresentar as lanchas em procissão como as contas de um rosário, unidas por um único elemento: o mar. Em outro momento, a apresentação das lanchas sugere imagens que se aproximam das do céu e as embarcações ganham o aspecto de águias ou gaivotas, numa visível recuperação de imagens detidas pela memória, já que, ao vê-las no mar, as lanchas com sua cor e seu aspecto fazem lembrar esses animais a voar: “Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços”169, que ora invocam santos do catolicismo “Senhora Da guarda!”, “Senhora d’ajuda!”, “Sinhora da Ora!”, “Senhor de Matuzinhos!”, ora rememoram pessoas comuns como o “Bernardo da Silva do Mar” ou o “Zé da Clara – sem, no entanto, deixar de pedir a proteção divina, pois “... a morte, / Que sempre aos nautas ante os olhos anda.”170 só pode ser afastada por meio da fé, das orações. É indispensável chamar a atenção, como já o fizemos antes, para o fato de que no Só o sujeito poético revela o seu lado espiritual por meio da intersecção dos rituais católicos com a crença no mistério, nas superstições, revelando a inconstância da sua personalidade, ora eufórica com as imagens que surgem da infância, ora deprimida diante dos infortúnios da vida, como o primeiro verso do soneto “13”: “Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos!”171. Pela constituição do poema obtemos a audição de uma ladainha na série de evocações, como: Senhora dos aflitos!/ Martyr São Sebastião!/ Ouvi os nossos gritos!/ Deus nos leve pela mão!, encontramos a manutenção de uma tradição secular que envolve a vida dos poveiros que dependem do mar, com o uso das palavras na forma oral e popular, como: mailos, e à lembrança aos heróis nacionais, que aparecem no encerramento da saída das lanchas: Os mestres ainda são os mesmos d' antes: Lá vai o Bernardo da Silva do Mar, A mailos quatro filhinhos, Vascos da Gama, que andam a ensaiar... 169 Cf. Só, p. 98. Luís de Camões, Os Lusíadas, p.155. 171 Cf. Só, p.203. 170 93 Senhora dos aflitos! Martyr São Sebastião! Ouvi os nossos gritos! Deus nos leve pela mão! Bamos em paz! Ó lanchas, Deus vos leve pela mão! Ide em paz! Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados, O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes, E das vagas, aos ritmos cadenciados, As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes “As armas e os barões assinalados...” Lá sai a derradeira! Ainda agarra as que vão na dianteira... Como ela corre! com que força o Vento a impele: Bamos com Deus! Lanchas, ide com Deus! Ide e voltai com ele Por esse mar de Cristo... Adeus! adeus! adeus!172 Mais de uma vez encontramos referências no “Lusitânia” aos navegadores do século XVI ou a obra Os Lusíadas. As crianças são Vascos da Gama a ensaiar, os homens barões assinalados. Retornando a esse ponto da rememoração, o sujeito poético afirma que “Os mestres ainda são os mesmos d' antes” e celebra concomitantemente o heroísmo daqueles que partiram “Por mares nunca de antes navegados”173 e o heroísmo anônimo daqueles que ficaram, que edificaram a terra natal por meio do seu trabalho no mar ou na terra , unificando o homem simples do mar com os heróis nacionais, ambos assinalados pelo destino para enfrentarem os perigos. Sobre essa imagem poética criada no poema, devemos considerar, apoiando-nos em Bachelard que A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta.174 172 Cf. Só, 98/99. Luís de Camões, Os Lusíadas, p.5. 174 Gaston Bachelard, A poética do espaço in Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1978. 173 94 Sob essa perspectiva, a imagem poética recupera do passado e das ações sociais e culturais realizadas pelo homem ao longo dos tempos o direito à existência. Diante da presença de uma imagem, os tempos se dissolvem e o sujeito poético, responsável por sua criação, determina os valores históricos a serem apresentados de acordo com a sua personalidade. Deixa transparecer o que lhe agrada ou não, e pode por vezes direcionar a consciência histórica do leitor para um determinado momento. Fica claro nesse segundo trecho da “Lusitânia” o apego do sujeito poético pela paisagem e gente portuguesas. Essa tendência também é percebida em outros poemas, como por exemplo, o soneto de nº “8”: Poveirinhos! meus velhos Pescadores! Na Água quisera com Vocês morar: Trazer o grande gorro de três cores, Mestre da lancha Deixem-nos passar! [...] Ó meu Pai, não ser eu dos poveirinhos! Não seres tu, para eu o ser, poveiro, Mailo irmão do “Senhor de Matosinhos!”175 É interessante finalizar notando que o convite feito a “George” no início desse poema resumisse a ver. O sujeito poético mostra as cenas que quer que o amigo francês veja, assim a visão alcançada por ele nos coloca diante da realidade a qual pertence o sujeito poético. Para o escritor Simon Shama “...o próprio ato de identificar (para não dizer fotografar) o local pressupõe nossa presença e, conosco, toda a pesada bagagem cultural que carregamos.”176 Com isso obtemos a possibilidade de reconstrução de momentos da cultura portuguesa através do indivíduo. “LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: UM OLHAR SOBRE A MEMÓRIA RELIGIOSA É na última parte do tríptico que a figura de Georges novamente aparece como interlocutor e ouvinte do sujeito poético. Nessa parte do poema “Lusitânia no Bairro Latino”, a ênfase está na natureza religiosa do ser português, particularizada por meio de uma descrição minuciosa de eventos populares como as romarias e as procissões. A construção de 175 176 Cf.Só, p.198. Simon Shama, Paisagem e Memória, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p.17. 95 um cenário social e religioso composto por cores, expressões, vestuário, réplicas de comportamento e fragmentos de problemas sócio-econômicos é significativa quando cada um desses elementos reproduz o conhecimento externo ou interno humano preservado pela memória. Conhecimento perpetuado pela insistência em repetir ano após ano as mesmas ações nas festas populares, pela audição dos mesmos pregões, pela visão dos pedintes — chaga aberta da sociedade. Por isso, a presença de Georges é de efetiva importância, ela serve para interpelar, chamar a atenção do povo português para a sua religiosidade, para as suas mazelas, para a sua criatividade e não somente pela presentificação de um amigo estrangeiro em visita, como uma leitura mais descuidada pode sugerir. Observemos o trecho a seguir: Georges! anda ver meu país de romarias E procissões! Olha essas moças, olha estas Marias! Caramba! dá-lhes beliscões! Os corpos delas, vê! são ourivesarias, Gula e luxúria dos Manéis! Têm nas orelhas grossas arrecadas, Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis, Ao pescoço serpentes de cordões, E sobre os seios entre cruzes, como espadas, Além dos seus, mais trinta corações! Vá! Georges, faze-te Manel! viola ao peito, Toca a bailar! Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito, Que hão de gostar!177 Sem dúvida, a presença de Georges na procissão é a responsável pela aproximação do leitor com o cotidiano português. Sua presença se destaca a partir de um nome de origem grega, estrangeira, e por estar introduzido num cenário tipicamente dos “Manéis” e das “Marias”. Convidado a interferir e a participar como parte integrante desse povo, Georges indiretamente nos coloca dentro da mesma cena em que ele está inserido. A partir da verossimilhança que ela tem/ apresenta, somos levados a não interferir, mas apenas a ver e ouvir o que o sujeito poético tem a nos oferecer através do seu amigo. A espontaneidade nas ações e o discurso poético, entre o sujeito poético e Georges, que se misturam ao discurso oral (“Caramba! dá-lhes beliscões!”), imprimem realidade na fala daquele que descreve os acontecimentos com a prontidão de quem os vê. Aliás, tudo ao redor do sujeito poético é observado. Não com o olhar comum que apenas traduz imagens, sem 177 Cf. Só, p. 100. 96 relacioná-las com outras já passadas, mas com impressões sensoriais que ultrapassam a barreira da matéria e chegam à intuição. É com muita sensibilidade que a obra reconstrói poeticamente o universo masculino. A ocorrência desse enfoque faz com que a voz presente no poema apresente-se otimista e jovial quando estimula Georges a transformar-se em “Manel”, aportuguesando-o. Assim, o mesmo pode se satisfazer da companhia das moças portuguesas que também participam das romarias e procissões. O registro dos acontecimentos da vida é feito de forma bastante autêntica e vai além do superficial, exemplo disso é a participação das moças nas procissões com finalidades nem sempre religiosas, como a maioria dos jovens, mas para enamorarem-se pelos rapazes presentes. Devemos observar que a descrição dessas moças, vestidas com suas melhores roupas e jóias não é totalmente positiva, apesar do tom jovial e quase erótico. A sensualidade é reforçada quando na descrição das moças se utiliza partes do corpo feminino como o pescoço, seios, orelhas e nádegas (subentendidas na intenção dos “beliscões”), de maneira a encantar, a atrair o sexo oposto, porém o que se sobressai é a generalização dessas mulheres, são todas elas “Marias”, “corpos”, transparecendo os sentimentos que não são sublimados, por isso os riscos de um relacionamento amoroso tornam-se evidentes. Ao contrário da noiva ideal que é a “Purinha” de Anto, mulher-criança e espiritual, a descrição dessas mulheres mais serve de alerta por estabelecer relação com os pecados capitais da “Gula” e da “luxúria”, com as “trinta moedas” causadoras do sofrimento de Cristo ou com a serpente, sinal da traição e da deslealdade de Eva. Para a escritora Agustina BessaLuís Purinha é a forma narcísica do próprio Nobre, que pisa com os próprios pés a serpente que descreve em 'o nosso amor será honesto e sem beijos' e lê em Nobre o impulso erótico apartado da atividade sexual e integrado no social. Isso se revela, segundo ela na “infantilização da linguagem, um recorrer ao estreito caminho da normalidade, mas uma normalidade castrada, fria, convertida num milagre absurdo de infância mística”178 Diante do perigo de corromper o seu espírito, o sujeito poético utiliza Georges como uma extensão do comportamento masculino considerado “normal” e o incentiva, em seu lugar, a dar beliscões nas Marias, a dar-lhes beijos e apertos contra o peito. Observemos que em nenhum momento o sujeito poético tem a intenção de participar desse jogo de sedução. Os 178 Cf. Os Centenários: Eça, Freyre, Nobre, p.17. 97 riscos pela corrupção do corpo são delegados a Georges, somente a ele, apesar dos sinais de alerta de pecado iminente. Na seqüência do poema chega a hora de deixar de lado “os jogos amorosos” para concentrar-se na fé, como nesses três versos: Tira o chapéu, silêncio! Passa a procissão. Estralejam foguetes e morteiros.179 Neles, devemos destacar a disposição das palavras no texto. Mais uma vez a disposição das palavras acrescenta ao significado uma nova feição. Exemplo disso é a forma como a primeira e a terceira estrofes abrem espaço para o verso: “Passa a procissão”, num apelo visual da parte III do “Lusitânia no Bairro Latino”, como se realmente a procissão estivesse a passar. Como se a sua passagem solicitasse a pausa e o respeito sinalizados pelo gesto simples de se tirar o chapéu e permanecer em silêncio. Numa leitura um pouco mais ousada podemos até visualizar os três versos como a metáfora da multidão que assiste ao cortejo religioso e se afasta para que ele passe. De um lado teremos a introspecção daqueles que vêem o mistério, do outro a festividade, o retorno ao barulho, ao falatório daqueles que querem o desfile. É por essa oposição que passa a procissão: Lá vem o Pálio e pegam ao cordão Honestos e morenos cavalheiros. Altos, tão altos e enfeitados, os andores, Parecem Torres de David, na amplidão! Que linda e asseada vem a Senhora das Dores! Olha o Mordomo, a frente, o Sr.Conde. Contempla! Que tristes os Nossos Senhores, Olhos leais fitos no vago... não sei onde! Os anjinhos! Vêm a suar: Infantes de três anos, coitadinhos! Mão invisíveis levam-nos de rastros Que eles mal sabem andar.180 É a partir desse trecho que se contempla a chegada de imagens, os objetos de fé. Revelação do oculto através das figuras religiosas de santos e de entes espirituais, como os 179 180 Cf. Só, p.100. Idem, ibidem, p.100/101. 98 anjos. É essa religiosidade presente no “Lusitânia” e em outros poemas, que marca o Só como uma obra de elevado senso espiritual. Haveria uma falha de intenção na reconstrução poética, mesmo fragmentária, de Portugal se não houvesse na obra essa característica inerente ao seu povo. No Só estão presentes não só a religiosidade, mas também a mística e o sobrenatural. A certeza dessa afirmação parte de poemas sugestivos de além como “A sombra”, em trechos como: Não tarda a sombra, aí. Vai alto o Sete-Estrelo São horas d' ela vir. Minha alma, atende! Que já a Lua, a sentinela, rende Na esplanada do Céu, às portas do Castelo...181 ou em “Certa velhinha”: Contava-me Aquela que a tumba já cerra, Que Nossa Senhora, quando a chama alguém, Escolhe estas noites pra descer à Terra, Porque em noites destas não anda ninguém...182 ou ainda em “Os cavaleiros”: ¯ Vais ver a tua Mãezinha? Coitada! vi-a expirar: Tinha a alma tão levezinha, Que voou sem eu lhe tocar!...183 Além desses, há outros poemas que, a partir de “Memória”, também são associados à religiosidade e ao mistério da morte. Com efeito, a mãe de “Antônio” que “...toucou-se de flores”, como Ofélia e “Vestiu-se de Nossa Senhora das Dores” é a figura mais mística do Só. É ela que proporciona o sentido de viagem transcendental da morte e do possível reencontro após ela, talvez seja esse o motivo da aceitação do sujeito poético de uma vida entregue ao destino, mesmo que essa entrega acrescente a ela a sensação de inutilidade de todos os esforços como confirma os versos do soneto “18”: “... a Vida foi, e é assim, e não melhora” ou “Na estrada da Beira” quando consciente da passagem do tempo observa que a memória é o que garante a identidade, mas também a permanência da dor por meio das lembranças: 181 Cf. Só, p.209. Idem, ibidem, p.228. 183 Idem, ibidem, p.171. 182 99 “Mas tudo passa neste Mundo transitório./ E tudo passa e tudo fica! A Vida é assim/ E sê-lo-á sempre pelos séculos sem fim!”184 Por isso, temos a impressão de percorrer, através dos poemas, caminhos sinuosos como uma penitência. Caminhos de um sujeito poético cheio de angústia por não conhecer tudo, ao mesmo tempo em que tem a consciência de pertencer a algo maior, misterioso e superior. Percebemos na obra a aspiração ao absoluto, à espiritualidade, e a iminência do desconhecido, “...dos olhos leais fitos no vago...”, do sofrimento que não poupa nem os “...Infantes de três anos, coitadinhos!...”, o que torna o Só a expressão da interioridade, tanto do ser individual quanto do ser nacional. Não temos dúvida que os sentidos corporais externos: visão, audição, tato, paladar e olfato têm em certa proporção uma analogia com a alma. Parte deles o conhecimento do externo que adquirimos ao longo da vida. Porém, devemos dar destaque ao sentido da visão por ser ele o que mais se relaciona com o interior de cada ser. Popularmente, a visão está para o corpo como está para a alma, “enxergar com os olhos da alma” é a expressão utilizada quando nossa impressão do mundo se mistura com o afeto que delegamos a alguma imagem. Combinar ou separar essas imagens, sejam elas formadas a partir de um estímulo interno ou externo, torna possível a representação de um mundo paralelo que de maneira complexa habita a nossa mente, a nossa memória. Essa consciência interna de mundo é bastante explorada no Só. O convite a Georges vai além da apresentação de um país, ou do conhecimento das formas externas dos objetos, das formas distinguidas pelo instinto, da separação grosseira de sons ou cores. O que se oferece a Georges é a possibilidade de se enxergar o invisível, de se tocar o mistério que ninguém sabe explicar, como nos versos “Mãos invisíveis levam-nos de rastros/ Que eles mal sabem andar.” Nos espaços do mundo real que o sujeito poético percorre não encontra sentido, por isso a busca pelo mistério, a correspondência entre o visível e o invisível. Examinemos o trecho a seguir: Esta que passa é a Noite cheia de astros! (Assim estava, em certo dia, na Judeia) Aquele é o Sol! (Que bom o sol de olhos pintados!) E aquela outra é a Lua Cheia! Seus doces olhos fazem luar... Essa, acolá, leva na mão os Dados, Mas perde tudo se vai jogar. E esta que passa, toda de arminhos, Vê! d' entre o povo em êxtase, olha-a a Mãe) Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos, 184 Cf. Só, p.220. 100 Criança em flor que ainda não os tem. E que bonita vai a Esponja de Fel! Mal ela sabe, a inocentinha, Nas sua mãos, a Esponja deita mel: Abelhas d' oiro tomam-lhe a dianteira. Lá vem a Lança! A bainha Traz ainda o sangue de Sexta-feira... Passa o último, o Sudário! O corpo de Jesus, Nosso Senhor... Oh que vermelho extraordinário! Parece o Sol-pôr... Que pena faz vê-lo passar em Portugal! Ai que feridas! e não cheiram mal...185 Nessa parte do “Lusitânia” podemos encontrar a revelação do mundo oculto a partir da figura sagrada de Jesus e de todos os elementos que participaram do seu martírio, como a coroa de espinhos, sinal do escárnio humano pelo filho de Deus, os dados utilizados pelos soldados romanos, a esponja, a lança, o sudário; paradoxalmente essa composição representa a “boa distância” com o sagrado e nos obriga a participar da narrativa como os apóstolos de Cristo que em “...certo dia, na Judeia” ouviram os seus ensinamentos e foram convidados a “ver” o mistério. Uma das características das festas populares religiosas é exatamente a reprodução metódica dos acontecimentos que envolvem os mistérios da fé. O processo de rememoração desses rituais religiosos, que acontecem periodicamente, é compartilhado pela memória coletiva de um povo, que reconhece na materialização da sua crença, a perpetuação de uma tradição antiga. Essa materialização ocorre quando um grupo de pessoas vestidas como anjos ou santos passa a representar os princípios, as idéias ou o modo de ser de uma personagem da história. Cada participante da procissão faz parte de um conjunto de informações que reunidas garantem a formação da imagem desejada. Cada um toma o seu lugar na construção do cenário que reproduz o passado e de maneira ideal perpetuam as ações de sofrimentos e de glórias. É nesse momento da transfiguração das pessoas que “... o povo em êxtase...” incorpora o passado e se liga a algo superior. As criações de Deus: o “Sol” e a “Lua Cheia” aparecem como indícios da energia irradiante do poder supremo, nessas duas obras a cor predominante é o branco, que para os ocidentais representa a vida; no mesmo trecho, em contraposição a essa idéia surge a “Noite”, a ausência de cor, ausência de luz, de vida, assim como o “Sol-pôr” sugestivamente relacionado ao “...vermelho extraordinário” do “...sangue de Sexta-feira” 185 Cf. Só, p.101. 101 remetendo evidentemente a morte, que não poderia faltar diante da representação do calvário de Cristo. O peso da dor nesse momento é minimizado pela presença das crianças, que da “Esponja de Fel!”, por suas mãos, como num milagre, a “Esponja deita mel”. São elas as porta-vozes da inocência. Nos versos em que participam, o sofrimento cede lugar aos doces olhos que fazem luar, aos diminutivos portadores de carinho e às “Abelhas d' oiro” a guiar seus passos. Porém, apesar do aspecto singelo da passagem das crianças, a presença delas causa dor ao sujeito poético que visualiza a sua infância perdida, aumentando o desejo de ser como elas, de participar da sua ignorância, porque também ele tem a “Coroa dos Espinhos”. E em meio a essa multidão arrebatada pela alma é ele, o sujeito poético, quem consegue como observador perspicaz superar o encanto e revelar momentos de compaixão por si mesmo, quando, por exemplo, sente em si as dores de Cristo como se fossem suas: “Ai que feridas!”, e ao mesmo tempo percebe que é por Portugal que essa tristeza passa e que talvez não deixe de existir quando a procissão passar. Assim como também não passará a sua angústia, a sua tísica d'alma, carregada de sentido sobrenatural. Esses momentos de angústia podem por hipótese justificar-se dentro de um quadro evolutivo da sociedade e da literatura no que diz respeito às idéias transformadoras de filósofos e poetas como Augusto Comte, Darwin, Baudelaire, entre outros, e de raízes mais antigas, por uma evolução literária a partir dos séculos XI e XV, quando a fé cristã predominava com a sua visão teocêntrica do mundo subjugando a razão, até o momento do Simbolismo que nos interessa. Da época realista poderíamos citar diversos nomes de pensadores e cientistas que contribuíram com mudanças na mentalidade social e estética do século XIX, mas destacaremos apenas dois: Augusto Comte (1798/1857) fundador do Positivismo Filosófico e Darwin (1809/1882) com a Teoria Evolucionista. Comte procurou “reorganizar a moral e a sociedade segundo os princípios cientificistas, substituindo a religião e a metafísica pelas respostas obtidas com a experimentação racional e científica”186. Darwin inicia o processo de destruição do pensamento divino sobre a criação do homem, para ele a criação humana faz parte de um processo natural de evolução das espécies, eliminando com esse pensamento a verdade pregada pelas Escrituras Sagradas. Sobre a teoria de Darwin houve uma aversão por parte da Igreja e de alguns grupos sociais, o que gerou um conflito não solucionado até os dias de hoje. Fato é que não pode haver equilíbrio na rejeição de Deus pela ciência, ou vice-versa. 186 Nelly Novaes Coelho, Literatura & Linguagem: a obra literária e a expressão lingüística, 5ªed., Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes, 1993, p.122. 102 No que se refere à tentativa de suprimir o mistério da existência humana, por parte dessas duas teorias do Realismo, concordamos com a utilização desses pensamentos como instrumento para análise e compreensão da sociedade, como o fez de modo exemplar Eça de Queirós, contudo de maneira geral, as pessoas mostravam-se descontentes como o excesso de realidade na arte, em meio à visão pessimista de mundo em que viviam, com os problemas político-sociais e a proximidade da virada do século. Partiu do homem então, a necessidade de pertencer ao cosmo, a tentativa de representar, por meio da arte, a transcendência humana sobre os aspectos materiais, de não querer sentir-se fragmentado, sendo assim a busca por si mesmo através da arte foi uma alternativa para o encontro das respostas que permanecem na causas ocultas da vida humana. Por isso, o Simbolismo (última década do século XIX) supera a visão objetiva do mundo por meio da busca de uma linguagem capaz de sugerir a realidade e não retratá-la objetivamente. Em Portugal essas duas últimas poéticas, a Realista e a Simbolista, conviveram de modo significativo com o cientificismo e o materialismo do final do século XIX; contudo, apesar de haver uma ideologia predominante por parte dos realistas, essa não era globalizante, e um grupo de artistas colocou em dúvida a capacidade científica de se explicar todos os fenômenos relacionados ao homem, dando início a estética simbolista que valorizava entre outras coisas a intuição e os sentidos humanos. Álvaro Cardoso Gomes em seu livro A estética simbolista considera que: A fusão, portanto, de diferentes sensações, as chamadas sinestesias, é um esforço para recuperar a linguagem original, aquela em que a palavra, mais do que uma simples representação dos objetos, é também coisa ela própria. Trabalhando com imagens sinestésicas, o poeta deseja representar o instante da percepção de um objeto, de um movimento, sem a incômoda intervenção da inteligência, que tende a separar as sensações em blocos distintos.187 Em Portugal buscou-se por volta de 1890, um novo traço de espiritualidade, de mistério. Havia a necessidade do irracional, da entrega do eu para o subconsciente, e para alcançar esses níveis de pureza dentro da criação, os poetas simbolistas não deixaram se envolver pelo “emocionalismo” dos poetas românticos, sobressaíram-se antes pela sua capacidade sugestiva, pela emoção contida e pela noção de correspondência entre todas as coisas que existem no mundo natural com o mundo espiritual. Com algumas variantes encontramos em António Nobre também o ineditismo das associações, as sinestesias e as metáforas inusitadas. Há nesse poeta uma preocupação com a essência das coisas. Verifica-se 187 Álvaro Cardoso Gomes, A estética simbolista, São Paulo, Cultrix, 1985, p.17. 103 em inúmeras passagens do Só a tentativa de se chegar ao cerne da vida, que por sua vez é envolvida por um mistério indecifrável, sugerindo pouco a pouco os objetos e as sensações alcançadas a partir deles, como nessa seqüência do “Lusitânia”: E a procissão passa. Preamar de povo! Maré cheia do oceano Atlântico! O bom povinho de fato novo, Nas violas de arame soluça, romântico, Fadinhos chorosos da su' alma beata. Trazem imagens da Função nos seus chapéus. Poeira opaca. Abafa-se. E, no Céu ferro-e-oiro, O Sol em glória brilha olímpico, e de prata, Como a velha cabeça aureolada de Deus! Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro. Passam as chocas, boas mães! passam capinhas.188 Essa tentativa de chegar ao que há de mais profundo na existência humana é representada pela mistura dos elementos naturais: mar, Deus, ferro, ouro, prata, povo, sol, poeira, animais (“toiros” e vacas) e o próprio homem, vestido de “fato novo”. Juntos eles criam um ambiente de sonho, quase irreal, pela sua correspondência entre as coisas do céu e as coisas da terra. Observemos como as informações do poema se fecham numa massa metafórica, de modo que a alma possa se manifestar através do som de “Fadinhos chorosos” e a vida simbolicamente recomeçar com a passagem das vacas chocas. Assim como é importante dizer que a utilização de cada um dos elementos descritos acima não pode ser feita de maneira a ter um fim em si mesmo, é importante ressaltar que unidos eles servem como sugestão de uma imagem de alcance mais elevado, “... um estado de espírito que somente tais objetos poderiam criar dentro da memória. Em síntese, o que se pretende recuperar é um estado de Graça.”189 Podemos considerar, a partir de uma seleção de elementos dentro do Só, uma série de palavras-estímulo propulsoras de imagens. A natureza da imagem evocada pelo sujeito poético dependerá da relação que esse sujeito teve com o objeto escolhido no passado. É possível mesmo sustentar que algumas das imagens do Só são construções feitas de recordações de experiências sensoriais , já que o passado pode ser recuperado através de um estímulo capaz de desencadear imagens esquecidas pelo tempo. Basta um momento propício, 188 189 Cf. Só, p.102. Álvaro Cardoso Gomes, A estética simbolista, p.18. 104 de intimidade, como no poema “António” para que isso ocorra; vejamos o momento em que o sujeito poético aciona a memória: Que noite de Inverno! Que frio, que frio! Gelou meu carvão: Mas boto-o à lareira, tal qual pelo Estio, Faz sol de Verão!190 E na estrofe dialogante, já recordando: “Nasci, num Reino d' Oiro e amores,/ À beira-mar.191” Segundo Annie Gisele Fernandes, “... a primeira estrofe é construída, na sua totalidade, por linguagem metafórica, através da qual a 'noite de Inverno', representativa do espaço externo e do momento presente, pode referenciar todos os males que assolam o sujeito poético. No entanto, ao ser aquecida e iluminada pelo fogo da 'lareira', a 'noite de Inverno' dá lugar à rememoração, à vivência dos acontecimentos do passado, à interiorização e se transforma na panacéia que traz de volta 'o sol de Verão' ”192. Isso demonstra que informações armazenadas no cérebro podem vir à tona e conduzir o ser a reviver experiências passadas, basta empregar o necessário estímulo para a sua recuperação. Quando isso ocorre, participamos novamente das sensações sentidas ou aspiradas no instante da percepção dos objetos. Essas imagens recuperadas pela memória adquirem consistência quase material, mesmo quando sabemos que a sua base é espectral e que não passam de uma manifestação dessa memória. Fato é que António Nobre empregava com ousadia a sua imaginação e os recursos mnemônicos, o que lhe permitia escolhas raras para expressar o que de mais íntimo estava no seu ser. Assim como o poeta que, tocado pela sua sensibilidade, ora entrega-se ao passado, e nesses momentos busca os sonhos da infância, ora entrega-se ao presente, tormento do real. Em ambos os tempos existe a possibilidade de corte no processo das idéias e retorno a tempo anterior aquele como a chamada dos “pregões” antecedendo o momento de dor que finaliza o poema “Lusitânia no Bairro Latino”: Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas! Pão-de-ló de Margaride! Aguinha fresca da Moirama! Vinho verde a escorrer da vide!193 190 Cf. Só, p.80. Idem, ibidem, p.80. 192 Annie Gisele Fernandes, A estrutura dialógica em poemas do Só de Antônio Nobre, p. 94. 193 Cf. Só, p.102. 191 105 Envolvido em um momento de pessimismo, o sujeito poético a partir dos pregões de ricos alimentos em meio a pedintes, começa a descrever o Portugal em crise, com tons melancólicos e decadentes próximos à morte: À porta dum casal, um tísico na cama, Olha tudo isto com seus olhos de Outro Mundo, E uma netinha com um ramo de loireiro Enxota as moscas, do moribundo. Dança de roda mailas moças o coveiro. Clama um ceguinho: 'Não há maior desgraça nesta vida Que ser ceguinho!' Outro, moreno, mostra uma perna partida! Mas fede tanto, coitadinho... Este, sem braços, diz 'que os deixou na pedreira...' E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga, Labareda de cancros em fogueira, Que o Sol atiça e que a gangrena apaga, Ó Georges, vê! que excepcional cravina... Que lindos cravos para pôr na botoeira! Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina! Etnas de carne! Jobs! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados! Reumáticos! Anões! Deliriums-tremens! Quistos! Monstros, fenômenos, aflitos, aleijados, Talvez lá dentro com perfeitos corações: Todos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, uivam 'uma esmola p'las alminhas Das suas obrigações!' Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho! E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar... Qu'é dos Pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não vêm pintar?194 É importante perceber a irreverência com que “Anto” trata a morte. Muitas vezes a morte é personificada na “velhinha” que passa “Além, na tapada das Catorze Cruzes,”195 para buscar alguém, outras vezes sua presença é sentida pela figura máxima do coveiro, sempre presente nas festas e nas cerimônias próprias da passagem da vida para a morte, como os cortejos de anjinhos. Aparentemente há uma obsessão da parte de Anto pelos aspectos práticos dessa profissão, às vezes é Anto quem toma o lugar do coveiro e ele próprio cava 194 195 Cf. Só, p.102/103. Idem, ibidem, p. 231. 106 sepulturas e se preocupa com a confecção do próprio caixão, com o material a ser utilizado e etc. Maria Ema Tarracha Ferreira afirma que essa ansiedade pelo sono eterno é um reflexo da peregrinação do sujeito poético em busca do espaço primordial, a cova, “Por isso, ‘António’ permanece sempre menino, mitificando-se infantilmente em ‘Anto’, olhando o mundo com a ternura nostálgica própria de quem vive em exílio”196. Simultaneamente “Anto” vê a morte como a velha e como a mãe desaparecida, desejando-a como alívio para os seus males. Há mesmo no Só um diálogo amigável entre “Anto” e o coveiro, em “Males de Anto II”, sobre as acomodações pós morte e é cantando que o coveiro as descreve: “Colchão de raízes e de folhas, liso,/ Lençóis de terra brandos como espuma,/ Dá-los-ei ao rol, no Dia de Juízo...”197. Esse modo informal de se lidar com o tema da morte destaca imagens contraditórias, como a “dança de roda mailas moças o coveiro”. Esse fenômeno da dança na poesia do Só contém aspectos macabros por sugerirem, por exemplo, a permanente presença da morte independentemente da ocasião, ou ainda, a vida ceifada na mais tenra idade, o que é comemorado pelo final do seu sofrimento, como se vê quando as crianças à caminho da cova estão a bailar, como nesse trecho do poema “Os sinos”: “Ó ricos sapatos de solinha nova,/ Bailai! bailai!/ Nas eiras que rodam debaixo da cova.../ Bailai! bailai!”198. Em outro trecho, o do moribundo “À porta dum casal”, encontramos a dualidade do ser que tem no momento da morte o corpo paralisado pela doença e imóvel para a ação. Em contraposição, no mesmo corpo, temos os olhos abertos, a observar tudo por serem eles “olhos de Outro Mundo”, numa dolorosa consciência das desordens sociais. São esses olhos, que vêem os infortúnios a passar pela sua porta, a garantia de conexão com o presente cruel, registrado na apresentação de pedintes, doentes ou de pessoas mutiladas no ambiente de trabalho (“Este, sem braços, diz 'que os deixou na pedreira...'”). Narcisicamente, o sujeito poético revela-se como senhor de um mundo no qual é permitida a entrada prioritariamente de seus pares: pobres, doentes e crianças. São eles que apresentam uma vida ora cercada pela inocência, pelos sonhos, ora cercada pela ausência de algo que os complete. Pelo seu sofrimento, são considerados metaforicamente como “lindos cravos”, propícios a fazer parte da sua “botoeira”, ou seja, da sua existência ligada ao transcendental. Por isso, ouvimos as vozes daqueles que sofrem a maldizer suas vidas ou porque nasceram cegos, ou por terem perdido os braços, sem se esquecerem do além que exige de todos “uma esmola p' las alminhas/ Das suas obrigações!”. 196 Cf. “Introdução” in Só, p. 73. Cf. Só, p. 247. 198 Idem, ibidem, p. 143. 197 107 Ainda continuando com o sentido da visão apresentado nesse trecho, recordamos que também o sujeito poético vê tudo com olhos de compaixão. Compaixão por sua própria sina, por sua dor, refletida na sina do outro que tem a tísica do corpo a corromper seus pulmões tirando-lhe o ar vital. Contudo, a dor do corpo não pode se equiparar à dor de quem tem uma tísica de alma, e em “Males de Anto I – A ares numa aldeia”, declara: “Ah quanto foi bem pior que a tua a minha cruz!/ Quanto sofri, meu Deus! Ah quanto eu sofro ainda!”199 Diante desse desfilar de sofrimento, no meio da visão apocalíptica que enumera a decadência humana a partir de “Tísicos!” até “Quistos”, nos deparamos com figura passível de Jó, aqui ampliada em Jobs. No Antigo Testamento, encontramos a história desse homem bom e virtuoso atingido por grande sofrimento ao perder seus dez filhos, sua mulher, sua fortuna e toda a sua saúde ao transformar-se em uma chaga repelente. É interessante notar que apesar das dificuldades e tristezas enviadas por um ser superior, não compreendido em sua sabedoria por Jó, este em nenhum momento emite qualquer sinal de revolta e aceita tudo como desígnio de Deus. Como recompensa, pela sua paciência, Jó recupera seus bens, sua saúde e constitui uma nova família. Não encontramos no sujeito poético a passividade de Jó, pelo contrário, ele deseja a mudança, ocorra ela através do retorno ao passado, para que seja novamente feliz na plenitude da infância, ou através do reencontro com a mãe desaparecida e supostamente morta em “Memória”. Em ambas as situações, encontramos o sujeito poético deslocado no presente e diante de uma massa disforme de pessoas que mais se parecem com animais por “mugir” e “uivar” suas dores. Por fim, encerra o poema com o dístico “Qu'é dos Pintores do meu país estranho,/ Onde estão eles que não vêm pintar?”, qualificando mais uma vez a sua terra natal que durante o tríptico caracterizou-se por “...país de Marinheiros”, “...das Naus, de esquadras e de frotas!”, além de ser também de “romarias/ E procissões”, mas apesar da intimidade com que descreveu as imagens, a impressão que fica ao qualificar o país como estranho é que o sujeito poético comunga intimamente com Portugal, a ponto de poder pintá-lo, já que outros autores não fazem por permanecerem alheios ao que o País realmente é. Nesse diálogo entre a poesia e a pintura é que confirmamos, mais uma vez, a modernidade de um autor como António Nobre. No seu tríptico regressamos num primeiro momento a um reino totalmente seu, de onde surgem locais encantados e as histórias que vêm pelo mar são recuperadas pela memória do povo, como a da “Formosa Magalona”, sem deixar 199 Cf. Só, p. 236. 108 de citar que nos colocamos diante do seu tempo de felicidade: a infância; depois, com virtuosa saudade, entramos por aldeias piscatórias, observamos a força de seus homens, sua linguagem e a fé fortalecedora, instrumento de defesa para aqueles que enfrentam o mar; e, na última parte do painel, temos a reconstituição de festas populares, como as procissões e as romarias. Os três painéis unidos descrevem fielmente o que é ser português a partir da idealização de uma paisagem tipicamente rural e da alma portuguesa em todas as suas nuanças. CONSIDERAÇÕES FINAIS Entre todas as funções do corpo humano, a memória é sem dúvida a mais fascinante. É ela que define o que somos e nos faz compreender o mundo que nos cerca. Por isso, devemos considerar que ao longo desse trabalho tentamos mostrar o aproveitamento de um tempo passado, ordenado e refeito pela memória do sujeito poético, como fonte de informações, características e sensações sobre a cultura portuguesa do final dos Oitocentos. Essa reconstrução poética, obviamente, foi determinada pela identidade do sujeito poético, que ora se apresenta como a criança doce e querida por amas, envolvido numa atmosfera de contos de fadas ou de visões paradisíacas do mundo que o cercava, ora se reconhece como o adulto angustiado diante das perdas inevitáveis da vida. De ambos, obtivemos evocações impressionistas por meio de recursos sensoriais que sugeriram o estado de alma de um ser que valorizou tudo o que é português. A partir constituição do sujeito poético, e isso ocorre já no primeiro poema da obra, intitulado “Memória”, encontramos um conjunto de memórias (paisagística, religiosa, histórico-social) que não distinguem o erudito do popular. A presença do “Zé do Telhado”, por exemplo, não diminui a lembrança dos feitos de um Virgílio, de Camões, de Shakespeare, entre tantos outros. Esse nivelamento das camadas sociais e culturais é próprio do discurso de um sujeito poético que respeita os erros ortográficos dos poveiros e a crença pagã em fadas, bruxas, magos, sem apagar a caracterização cristã das procissões e romarias. Independentemente do aspecto apresentado, seja ele cultural, histórico ou religioso, as evocações da memória funcionam como expressão pura de um povo visto e idealizado como sofredor, assim como Anto. Contudo, devemos deixar claro que a aproximação de Anto com esse mundo provinciano não o fez um deles. As aldeias, os pescadores, o povo pedinte, cheio de gangrenas, a paisagem nortenha de Portugal, a beatice ou o mistério que ninguém sabe 109 explicar, sempre resgatados pela memória, são em vários poemas, entre eles “O Lusitânia no Bairro Latino”, “formas de ancoragem”. “Anto” precisou rever os valores do seu povo, sua religião, os problemas sociais e as paisagens familiares para impedir a sua total fragmentação. Detalhe como a acentuada aparição dos topônimos ou antropônimos na obra faz com que “cavalguemos” pela seleção feita pela sua memória como se também fossem nossas as paisagens e pessoas apresentadas. Essa intimidade que nos oferece a obra proporciona o reconhecimento de ser o Só um drama que apresenta um sujeito poético desajustado no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que, por meio da sua dor somos “convidados” a ver o seu mundo reconstruído pela memória. Concluiu-se então que há nas poesias dessa obra uma visão multicolorida de um Portugal que se apresenta de maneira popular e agradavelmente eloqüente através do ritmo modelado pela emoção e das inúmeras imagens proporcionadas pela memória de “Anto”. A memória épica avulta em alguns poemas e o retorno a modelos nacionais: navegadores, heróis da terra e do mar, Camões, faz com que venha à memória a pátria gloriosa. Nesses momentos, o sujeito poético aponta a grandeza já passada de um país e novamente recorre às cores para um suposto diálogo entre as artes da pintura e da literatura. Assim, por meio de versos como “Qu’ é dos Pintores do meu país estranho,/ Onde estão eles que não vêm pintar?”200 sutilmente percebemos a possibilidade de um levante, de uma ação a favor da ascensão da pátria portuguesa, mas logo o colorido se perde nas trevas da decadência nacional e o presente ressurge com o sentimento de fracasso, de estar vencido na vida. Nessa perspectiva, a utilização da memória nesse trabalho não só visualizou uma fatia do tempo passado, mas, sobretudo, proporcionou a reconstrução de um momento singular da pátria portuguesa de acordo com a ambiência mental pessimista do fim do século XIX. 200 Cf. “Lusitânia no Bairro Latino” in Só, p. 103. 110 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA Obras de António Nobre: NOBRE, António. Correspondência. (Organização, Introdução e Notas de Guilherme de Castilho). Vila da Maia: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1982. _____. Despedidas. Prefácio de José Pereira de Sampaio. 3ªed. Porto: Imprensa Moderna, 1945. _____. Primeiros Versos. Braga: Augusto Costa, 1945. _____. Só. Introdução de Maria Ema Tarracha Ferreira. 3ªed. Braga: Ed.Ulisséia, 2001. Estudos sobre António Nobre: ALVES, Ida Maria Santos Ferreira. “Deambulações de António Nobre”, in SCARPELLI, Marli Fantini; OLIVEIRA, Paulo Motta. Os Centenários: Eça, Freyre, Nobre. Belo Horizonte: Fale/ UFMG, 2001, p. 47- 61. ASSIS E SANTOS, Rui. 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