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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
ANTÓNIO NOBRE E A MEMÓRIA COMO RECONSTRUÇÃO
POÉTICA
Ivani Ferreira Dias Meneses Costa
SÃO PAULO
2006
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
ANTÓNIO NOBRE E A MEMÓRIA COMO RECONSTRUÇÃO POÉTICA
Ivani Ferreira Dias Meneses Costa
DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO
EM
LITERATURA
PORTUGUESA,
DO
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS DA
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO
DE MESTRE EM LETRAS.
Orientador: Profª Drª Annie Gisele Fernandes
SÃO PAULO
2006
3
À Profª Drª Annie Gisele Fernandes, minha eterna gratidão pela inesquecível ajuda nas
orientações e apoio à minha permanência nesse curso.
Ao Profº Drº Horácio Costa e Profª Drª Mônica Simas, pela análise cuidadosa de parte desse
trabalho e por suas importantes sugestões, quando da realização de meu Exame de
Qualificação, meu agradecimento muito especial.
Ao amor dos meus pais, José Ferreira Dias (in memoriam) e Josefa Dias, que sempre
acreditaram em um futuro melhor;
Ao meu esposo, Fabio Meneses Costa, estrela da minha vida, companheiro e pai dos meus
filhos queridos;
A Rose, companheira de viagem, pelo incentivo e amizade;
A Deus, pela permissão da realização desse trabalho,
O meu reconhecimento.
4
RESUMO
No Só de António Nobre consideramos as evocações da memória como importante
fonte de informação não somente sobre o sujeito poético, mas também sobre a cultura
portuguesa do século XIX. Nelas, visualizamos as tradições, o cotidiano de homens que
trabalhavam no mar ou na terra, a religiosidade do povo, a história e a paisagem, sobretudo a
do norte do país, possibilitando a reconstrução poética de parte do Portugal de Oitocentos.
Essa reconstrução poética, obviamente, foi determinada pela memória do sujeito
poético, que ora apresenta imagens da criança doce e querida por amas, envolvido numa
atmosfera de contos de fadas ou de visões paradisíacas do mundo que o cercava, ora dá a
conhecer situações que envolvem o adulto angustiado diante das perdas inevitáveis da vida.
Em ambos os casos, avultam (ou sobressaem) evocações impressionistas por meio de recursos
sensoriais que sugerem o estado de alma de um ser que valorizou o que é ser português.
A análise dos poemas pretende demonstrar como António Nobre constrói e desenvolve
poeticamente as imagens da memória e o que delas decorre, ou seja, como trabalha com as
evocações, enumerações descritivas, hipotiposes, etc., de modo a constituir a imagem de um
sujeito poético apegado à sua terra natal e a imagem da própria terra, representada por aquilo
que julga mais típico dela. É esse o objetivo desse trabalho.
Palavras-chave: Só, António Nobre, memória, reconstrução poética, Portugal.
5
SUMMARY
In the Só de António Nobre we considered the evocations of the memory as important
source of information not only on the poetic subject, but also on the Portuguese culture of the
century XIX. In them, we visualized the traditions, the daily of men that worked in the sea or
in the earth, the religiosity of the people, the history and the landscape, above all the one of
the north of the country, facilitating the poetic reconstruction of part of Portugal Eight
hundred.
That poetic reconstruction, obviously, it was determined by the poetic subject's
memory, that prays it presents the sweet child's images and wanted by owners, involved in an
atmosphere of stories of fairies or of paradisiac visions of the world that it surrounded it, for
now gives to know situations that involve the adult before the inevitable losses of the life. In
both cases, increase (or they stand out) impressionist evocations by means of sensorial
resources that suggest the soul state of a to be that valued what is to be Portuguese.
The analysis of the poems intends to demonstrate as Noble António it builds and it
develops in a poetic way the images of the memory and the one that elapses of them, that is to
say, as its works with the evocations, descriptive enumerations, hipotiposes, etc., in way to
constitute the image of an attached poetic subject to its homeland and the image of the own
earth, represented by that that judges more typical of her. It is that the objective of that work.
Key Words: Só, António Nobre, Memory, poetic reconstruction, Portugal.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................07
A TRAJETÓRIA DA MEMÓRIA.........................................................................................15
ANTÓNIO NOBRE E A MEMÓRIA COMO RECONSTRUÇÃO POÉTICA....................29
“LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”.................................................................................50
“LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: A MEMÓRIA E AS DESILUSÕES
DO
PRESENTE.............................................................................................................................61
“LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: A MEMÓRIA E O PAÍS DE MARINHEIROS...84
“LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”:
UM OLHAR SOBRE
A MEMÓRIA
RELIGIOSA...........................................................................................................................95
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................108
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA......................................................................................110
7
INTRODUÇÃO
“O Só é a história de um menino fadado por amas, entretido por elas na condição de
criança rodeada de dixes, de paisagens mágicas, de comparsas familiares propícios e
pitorescos.”1 Com essa afirmação, Vitorino Nemésio apresenta o pressuposto de que se há
uma história é porque houve alguém para resgatá-la. Esse feito, de resgatar algo, sugere um
mecanismo de reencontro com alguém, com alguma coisa ou mesmo com os acontecimentos
pertencentes ao passado. Para que o acesso a esse tempo aconteça faz-se necessário recorrer
às operações da memória.
Neste trabalho consideramos as evocações da memória como importantes fontes de
informação não somente sobre o sujeito poético, mas também sobre a cultura portuguesa do
século XIX. Nelas visualizamos as tradições, o cotidiano de homens que trabalhavam no mar
ou na terra, a religiosidade do povo, a história e a paisagem, sobretudo a do norte do país.
Igualmente é possível perceber, por meio das evocações da memória individual e coletiva, as
convulsões de um final de século dividido entre o avanço da modernidade e o apego à terra
rural; entre a incompetência política que levou o país à derrocada e o desejo quimérico de
voltar à grandeza imperial. Todos esses aspectos, recuperados pela memória, podem
constituir poeticamente momentos da vida do sujeito poético que correspondem aos da sua
pátria.
Ao longo das oito seções que dividem o Só a partir da 2ª edição, podemos visualizar
momentos marcantes da vida do sujeito poético, como por exemplo, a morte da mãe, a sua
trajetória estudantil e a sua estada em Paris. Durante a narrativa poética desses momentos
podemos perceber o quanto o sujeito poético oscila emocionalmente entre as emoções
positivas da infância e outras que o tornam, por vezes, debilitado e amargurado pelas
ausências que o destino lhe impôs. Dessa oscilação emocional surgem outras como o
aparecimento e revezamento de dois nomes: António e Anto, os quais, em várias passagens,
são referidos como se fossem um outro suficientemente distante do sujeito poético para dar a
este a sensação de proteção diante do presente decepcionante.
Pelo fato do sujeito poético ser denominado a partir dos dois homônimos do poeta
que escreve o Só, devemos aqui fazer a distinção entre eles. Há em todo o Só uma
1
Vitorino Nemésio, “Anto é Só”, in Conhecimento da poesia, Salvador, Aguiar & Souza Ltda, 1958, p.120.
8
proximidade entre o poeta e o seu sujeito poético, para não dizer quase um reflexo, dos
momentos vividos por António Nobre e o percurso do seu sujeito poético. Essa aproximação
no Só é reforçada pela escolha dos nomes “António” e “Anto”, os mesmos do poeta, que na
obra se manifestam livremente percorrendo situações da infância e da vida adulta. Dessa
perspectiva podemos apresentar, por exemplo, António em dois planos, o primeiro pela
infância:
E António crescendo, sãozinho e perfeito,
Feliz que vivia!
(E a Dor, que morava com ele no peito,
Com ele crescia...)2
E o outro voltado para a fase adulta: “Mas a Arte, o Lar, um filho, António? Embora!/
Quimeras, sonhos, bolas de sabão”3. O que nos garante uma diversidade de impressões do
sujeito poético sobre o seu cotidiano.
Sobre os nomes Anto e António, o grande estudioso da biografia de António Nobre,
Guilherme de Castilho confere a Miss Charlote, preceptora de crianças, a responsabilidade
pela redução do nome António para Anto, como carinhosamente ela gostava de chamá-lo.
Para António Nobre o “batismo” de Miss Charlote, em 1887, acrescentou a sua vida muito
mais do que um novo nome, acrescentou uma nova forma de apresentação da sua
personalidade, aceita por ele como bem vinda. Outra mudança ocorreria anos depois quando
durante a sua permanência na Universidade de Coimbra o poeta solicita a troca do seu nome
de batismo (António Pereira Nobre) por outro mais a seu gosto, passando assim, a assinar
António Nobre.
Na obra os nomes são empregados de maneira consciente quanto ao seu efeito, não
somente porque revelam as mudanças de estado de ânimo do sujeito poético, mas também, e
sobretudo, porque explicitam a sua cisão íntima. Para Paula Morão, “Anto é um Antóniooutro, criança que pode desculpabilizar-se, como no início da “Carta a Manoel”: “Manoel,
tens razão. Venho tarde. Desculpa./ Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,/ Foi
Coimbra. [...]”4 Sobre esse lado infantil presente nos poemas, salientamos que Anto sofre
tanto quanto António, mas procura sobreviver à presença da morte que ecoa do momento do
nascimento do sujeito poético: “Ao Mundo vim, em terça-feira/ Um sino ouvia-se dobrar”5
2
António Nobre, Só, 3ª edição, Braga, Editora Ulisseia, 1989, p. 81.
António Nobre, Só, p.208.
4
Paula Morão, O Só de António Nobre. Uma leitura do nome, Lisboa, Ed.Caminho, 1991, p.42.
5
Cf. Só, p. 81.
3
9
até o seu final em “Males de Anto”: “[...] Que miserável sorte!/ Em tudo via a Velha, em tudo
via a morte”6, por meio das imagens do passado que o sustentam.
Embora parecidos “António” com mais freqüência representa o adulto, o poeta por
excelência, como o sujeito poético se apresenta já no poema “Memória”, que abre a 2a edição
do Só7, que põe em cena a sua trajetória de infortúnios e a falência dos seus sonhos. Falência
essa simbolizada pelo envelhecimento do que há de mais íntimo no ser, a sua alma, como
ocorre no poema homônimo “António”:
Fui vendo que as almas não eram no Mundo
Singelas e francas:
A minha, que o era, ficou num segundo
Cheiinha de brancas! 8
A duplicidade na personalidade do sujeito poético garante a passagem de “António”
para “Anto” e desse para o passado, sinalizando o enfraquecimento do nome “António”, que
embora presente não chega a ter a força do diminutivo “Anto”
opção do sujeito poético
para referir-se a si como se fosse um outro. Dessa transfiguração só resta a criança que foi
António e as suas poucas forças que sobrevêm da memória de tempos melhores. No entanto,
nem “Anto” nem “António” são heterônimos, como ocorre na obra de Fernando Pessoa, pois
não há uma ruptura dentro da personalidade.
Para que não haja dúvidas no desenvolver desse trabalho, todas às vezes que
utilizarmos os nomes “António” ou “Anto” estaremos nos referindo ao sujeito poético e não a
seu criador, António Nobre. Outra observação a fazer é que, apesar de idênticos os nomes da
criação e do criador, a construção da obra não poderia ser somente um relato autobiográfico,
já que os episódios vividos pelo poeta são quase todos anacrônicos aos vivenciados pelo seu
sujeito poético. Em particular, podemos citar a tísica vivida por “Anto” (sujeito poético)
exposta com detalhes próprios de quem passa pela experiência de ter uma doença grave, em
todas as suas nuanças, ou seja, o definhamento físico e moral, acentuados pelo preconceito,
como exemplo de capacidade de criação poética. Por outro lado, o poeta que em vida
também foi acometido pela mesma doença, no momento da criação da obra ainda não tinha o
seu mal manifestado, o que ocorreria anos depois da conclusão do Só. Isso já contesta a tese
de obra autobiográfica. No entanto, não podemos desprezar o aproveitamento de algumas
6
Cf. Só, p. 238.
Cf. estes versos: “Sempre é agradável ter um filho Virgílio, / Ouvi estes carmes que eu compus no exílio,” (Só,
p. 79).
8
Cf. Só, p. 89.
7
10
experiências reais dentro do Só, como por exemplo, a viagem feita pelo poeta pelo mar do
Golfo de Biscaia. Observemos as informações contidas na carta de António Nobre a Alberto
de Oliveira, datada de 1-11-1891, na qual descreve a experiência tormentosa do risco do
naufrágio em alto mar naquela viagem: “Quarta-feira começou o drama. O Golfo da Biscaia,
lindo acto em sete quadros. Horrível! Vagalhões, só vagalhões diante de mim. O vento
medonho não se fartava de mar, e eu, aterrado, ao longo do sofá não me podia consolar.”9
É só compararmos o fragmento da carta com o soneto de nº “15” para verificarmos a
coincidência entre fato vivido empiricamente e fato experimentado poeticamente, também
datado de 1891, e com a mesma localização, para comprovarmos a aplicação da experiência
adquirida pelo poeta nesse poema:
Uivam os Ventos! Fumo, bebo vinho.
O Vapor treme! Abraço a Bíblia, aos ais...
Covarde! Que dirão (eu adivinho)
Os Portugueses? Que dirão teus Pais?
Coragem! Considera o que há sofrido,
O que sofres e o que ainda sofrerás,
E vê, depois, se acaso é permitido
Tal medo à Morte, tanto apego ao Mundo:
[...]10
As semelhanças são nítidas, mas não tornam a obra menor. Mesmo porque a
elaboração impecável de forma e conteúdo, as paragens no tempo (passado ou presente) e a
evocação saudosa da paisagem portuguesa, própria de quem se sente exilado, garantem uma
obra de qualidade.
Com segurança podemos agora nos distanciar um pouco da ficção para adentrarmos
no universo biográfico de António Nobre no que diz respeito a sua constituição como pessoa
e das marcas deixadas em sua personalidade pelo exílio em Paris.
António Nobre nasceu no Porto no dia 16 de agosto de 1867 para morrer 33 anos
depois vítima de uma tuberculose que o fez emigrar para diversas partes do mundo em busca
da cura. Cercado por mimos e cuidados familiares na infância, Nobre conhece a rejeição a
partir do seu ingresso na Universidade de Coimbra, na qual foi reprovado por duas vezes no
curso de Direito. Desse período escolar adquiriu a admiração de amigos como Alberto de
9
António Nobre, Correspondência, (Organização, Introdução e Notas de Guilherme de Castilho), Vila da Maia,
Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1982, p. 150.
10
Cf. Só, 205.
11
Oliveira, António Homem de Melo (o Toy), Agostinho de Campos, Manuel Teles, entre
outros, e desse período surge a revista Boêmia Nova da qual António Nobre é um dos seus
principais colaboradores e conseqüentemente o mais atacado por críticas e deboches de toda
espécie. Impossibilitado de obter o seu diploma de bacharel pela Universidade de Coimbra,
parte o nosso poeta no ano de 1891 para Paris, conquistando os diplomas de bacharel em
1894 e o de licenciatura em janeiro de 1895.
É esse período de permanência em Paris que irá nos interessar nesse momento. É pela
sua correspondência com os amigos que deixou em Portugal que podemos identificar os
sofrimentos e as dificuldades encontradas na terra estrangeira. Segundo nota de introdução
deixada no volume da Correspondência de António Nobre, o crítico Guilherme de Castilho
observa que:
Se a biografia de um artista criador só interessa na medida em que nos
ilumina a sua obra, é desta que se impõe partimos para naquela procurarmos
as suas raízes. E se na história literária de António Nobre há uma verdade
que parece não sofrer contestação e que corresponde a um ponto culminante
da sua biografia de artista, é a de que o Só é a tradução de uma crise
psicológica, a erupção veemente de um desequilíbrio gerado pela oposição
irredutível entre o que, de uma maneira simplista, poderemos chamar, o
mundo da realidade e o mundo do sonho.11
Na verdade, a realidade de Nobre estava muito aquém do seu mundo de sonho e de
proteção. Conduzido por um ideal de amizade sincera e exclusiva (principalmente por
Alberto de Oliveira) e de vida que o tornava aos olhos dos outros, diferente, excêntrico,
dândi, o poeta preferiu desde sempre o isolamento. Longe do seu mundo mítico, sem a
“...lendária Coimbra”12 o poeta surpreende-se no exílio como não sendo mais o “Senhor
feudal do mundo”13 e é isso que provoca a sua angústia, por saber, em Paris, destruído o
castelo edificado do seu mundo sentimental. Outro aspecto a ser ressaltado é a valorização de
tudo o que é português por António Nobre. Na sua correspondência, o poeta deixa evidente
que tinha consciência da sua condição de exilado, da sua condição de elemento separado da
sua terra pátria, do lugar onde nasceu e declara: “... a impressão que estou sentindo ao
ausentar-me de lá, ao ver-me perto de Paris é realmente formidável. Tu a experimentarás, um
dia, se alguma vez te expatriares: de nada vale o ódio pela Pátria, sempre no fundo dela há
11
12
13
Cf. António Nobre, Correspondência, p. 16.
Cf. Só, p.121.
Idem, ibidem, p. 235.
12
alguma coisa que nos chama”14, ou em outra carta quando reconhece o engano ao valorizar
supostamente outras culturas, como por exemplo a francesa: “Comecei a amar Portugal
depois que o deixei, se é na ausência que se conhece o amor. Perdida a ilusão do estrangeiro,
voltei-me para a nossa terra e é lá que moram as minhas predileções e para lá vão as minhas
saudades.”15
O passado transforma-se em refúgio e a ausência das coisas pelas quais tinha apreço
logo se transforma em fonte de criação poética. Pouca coisa em Paris o distraiu da sua
ligação com a pátria portuguesa, nem mesmo a dedicação aos estudos para a conclusão do
curso de Direito, motivo do seu distanciamento de Portugal, foi suficiente para o
desprendimento dos bens culturais e morais deixados em Portugal.
Em Paris, busca contato com Eça de Queirós, cônsul na França, para resolver
problemas burocráticos da Universidade. O encontro descrito de forma minuciosa em carta
datada de 25.11.1890 e dirigida a Alberto de Oliveira utiliza de metonímias que substituem o
autor (Eça de Queirós) por seus personagens: Padre Amaro, Fradique, Primo Basílio, entre
outros. O tão esperado encontro, contudo, revela mais do que uma aproximação entre um fã e
o seu ídolo ou tentativa de manter por mais tempo viva as lembranças, a saudade, as
tradições, os valores portugueses, aldeãos – individualmente lembrados por um estrangeiro
longe da sua terra natal. Revela também a frustração pela descoberta de um Eça de Queirós
distante da idealização feita por António Nobre e seus companheiros e o mais grave: um
compatriota que naquele momento mostra-se sem grandes interesses por Portugal, como
demonstra esse trecho da carta:
Mas notando que o seu desprendimento por Coimbra (ao contrário do que
eu imaginava), era absoluto e sincero, notei-lhe que nos seus livros havia
uma contínua sugestão de Coimbra, plena de saudade; murmurou um ‘sim
da vida de rapaz’. Isto de fugida. A verdade é que não se importa nada.
Não admira: é a criatura mais céptica que tenho encontrado. 16
Apesar da efervescência da cidade de Paris, considerada no século XIX como símbolo
da modernidade e da cultura, refugia-se no seu quarto, longe das cervejarias e movimentação
tão ao gosto dos jovens da sua idade, para curtir a sua solidão e aflições, somente amenizadas
pela recordação. Também, poeticamente, Anto passará por essa provação quando no poema
“Ao canto do lume” revela sua oposição à cidade luz: “Que hei-de eu fazer? Calai essas
14
15
16
Cf. António Nobre, Correspondência, p. 117.
Idem, ibidem, p. 174.
Idem, ibidem, p. 129.
13
canções imundas,/ Cervejarias do Quartier! Rezai, rezai!”17 e mostra-se consciente da
distância da terra natal, que logo se amplia e se reflete nos obstáculos naturais, como indica
esse fragmento do poema “Saudade”:
Separam-me dele cem rios, cem pontes,
Mas isso que faz?
Atrás desses montes, ainda há outros montes,
E ainda outros, atrás!18
Só há alívio na evocação saudosa da paisagem e tradições portuguesas, que
promovem a identificação afetiva do sujeito poético com seu lugar de origem, assim como,
possibilitam a reconstrução poética, mesmo fragmentária, do Portugal de Oitocentos
constituindo o objetivo desse trabalho. Importa aqui dizer que o nacionalismo de António
Nobre e do sujeito poético do Só, com suas memórias, tipicamente representaram o povo
português. Percorrendo o Só encontramos referências diretas e indiretas a Portugal, por
exemplo, por meio de perífrases, como estas: “país de marinheiros”, “país de romarias e
procissões”, “país sem esperança”, “país estranho”, “Reino d’Oiro e amores”, “Terra
encantada”, que acrescentam ao texto caracterizações que ora indicam a predileção do sujeito
poético da obra pelo lugar onde nasceu, ora apresentam rejeição pelo mesmo lugar, por
estranhamento ou inconformismo de um sujeito poético sensível e perspicaz com relação as
mudanças políticas e sociais do seu país. Não só nas perífrases encontramos essas
possibilidades de apresentação de Portugal, mas também em passagens como esta, de “Carta
a Manoel”:
Bateu o quarto. Vê! Vêm saindo das jaulas
Os estudantes, sob o olhar pardo dos lentes.
Ao vê-los, quem dirá que são os descendentes
Dos navegadores do século XVI?
Curvam a espinha, como os áulicos aos Reis!
E magros! tristes! De cabeça derreada!
Ah! como hão-de, amanhã, pegar em uma espada! 19
Quando questiona a descendência dos estudantes que, por se portarem encurvados,
tristes, de “cabeça derreada”20 não trazem a coragem e a perseverança dos “Navegadores do
17
Cf. Só, p.168.
Idem, ibidem, p.128.
19
Idem, ibidem, p.122.
20
Idem, ibidem, p.122.
18
14
século XVI”21, o sujeito poético faz clara evocação ao passado glorioso da pátria em
contraponto com o presente. Em outro poema, no tríptico “Lusitânia no Bairro Latino”, as
evocações, na sua primeira parte, são antecedidas pela pergunta: “Onde estais, onde
estais?”22, que indicam a perda de alguma coisa ou alguém; como resposta a esse
questionamento, sucedem-se séries de imagens que minimizam a ausência e a fragmentação
do sujeito poético compondo um universo pessoal e coletivo através das evocações da
memória que nos remetem ao recurso latino do ubi sunt, que acentua a ausência ao indicar a
perda de alguma coisa ou alguém. Como resposta a esse questionamento, sucedem-se séries
de imagens que minimizam a ausência da pátria e a fragmentação do sujeito poético e
compõem um universo pessoal e coletivo através das evocações da memória.
Para compreendermos como ocorrem essas evocações no Só é crucial esclarecer o
conceito de memória, a maneira como ela funciona e apresentar alguns momentos da sua
trajetória dentro da história da humanidade. Partiremos da Grécia antiga, passando por Santo
Agostinho, abordando os conceitos presentes no livro Matéria e Memória, de Henri Bergson
(l896), que procura determinar a relação entre a realidade do espírito e a realidade da matéria
através da memória, conceituando-a e separando-a em dois tipos: a memória hábito e a
memória pura, até chegarmos às considerações de estudiosos do século XX.
Outros autores serão citados ao longo do texto como Maurice Halbwachs, estudioso
da memória social e pública, Proust, com a obra Em busca do tempo perdido, e Ecléa Bosi,
de Memória e sociedade: lembranças de velhos, além de Jaques Le Goff e outros.
Depois de apresentar as questões teóricas sobre a memória e a memória involuntária
de Proust na ficção, deter-nos-emos no poema “Lusitânia no Bairro Latino”. Na sua gênese
podemos observar os elementos que o constituem: as paisagens mágicas, o Portugal marítimo
e rural, o presente duro, cruel em oposição ao passado suavizado, o povo a sofrer, a
religiosidade, entre outros. Elementos mantidos vivos pelo sofrimento, evocados e invocados
no exílio parisiense pela memória do sujeito poético que manteve ativa a lembrança como
forma de preservação da sua trajetória pessoal e dos elementos que dela fazem parte.
A análise do poema pretenderá demonstrar como António Nobre constrói e
desenvolve poeticamente as imagens da memória e o que delas decorre, ou seja, como
trabalha com as evocações, enumerações descritivas, hipotiposes, etc., sem deixar de
considerar que esse é um aspecto fundamental da renovação lírica que ocorre em Oitocentos.
Aproveitaremos a constituição do poema mencionado como tríptico para analisar parte a
21
22
Cf. Só, p.122.
Idem, ibidem, p.96.
15
parte as evocações da memória individual e coletiva que surgem no poema. Além disso, é
importante ressaltar que as memórias individual e coletiva do sujeito poético estão
estreitamente ligadas às outras memórias que aqui definimos como: paisagística, religiosa e
histórico-social. Essa ligação entre as memórias é justificada a partir do ponto de vista de que
cada indivíduo carrega em si a memória pessoal e a coletiva. Por isso, a memória é seletiva e
composta de rememorações e esquecimentos. Nem tudo deve ser lembrado. A recuperação
do passado no Só se apóia nas experiências de vida do sujeito poético e nas observações que
ele faz do grupo a que ele pertence ou deseja pertencer. Sendo assim, se António ou Anto
recupera Portugal pela memória, nesse trabalho procuraremos selecionar esses momentos e
verificar como, através deles, se reconstitui poeticamente o seu país.
A TRAJETÓRIA DA MEMÓRIA
Na Grécia antiga, a memória era uma deusa de nome Mnemosine, filha de Urano (o
Céu) e de Gaia (a Terra) e uma das seis Titanides. Da sua união com Zeus nasceram nove
musas que, com amor, inteligência e encanto, estimulavam a capacidade criadora de quem as
invocava. Mãe das nove musas, Mnemosine é a matriz, a força geradora da arte poética.
Mnemosine é sacralizada pelos Gregos como reconhecimento do valor da conservação do
passado.
O poeta, muitas vezes, pela invocação das musas, recebe o auxílio de Mnemosine que
amplia suas possibilidades de interpretação dos fatos para além do comum, tornando-se um
ser à parte, iniciado na arte da recuperação de um tempo que não mais existe no presente e do
seu registro. Por isso, “A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo
uma ságeza, uma Sophia. O poeta tem o lugar entre os ‘mestres da verdade’ [cf.Detienne,
1967] e, nas origens da poética grega, a palavra poética é uma inscrição viva que se inscreve
na memória como no mármore [cf.Svenbro, 1976].”23
O escritor, integrante desse grupo seleto “[d]os mestres da verdade”, participa por
meio da sua atividade poética como aquele que conserva a memória de um povo, suas paixões
e características particulares que o diferenciam dos demais. É por meio das lembranças (fonte
de imortalidade) que o passado se presentifica, permanece, e não permite que esse mesmo
23
Jaques Le Goff, História e Memória, (Trad. Bernardo Leitão), 2ªed, Campinas, Editora Unicamp, 1992, p.438.
Coleção Repertórios.
16
povo se dissolva no esquecimento do que foi e do que é, pois, pelo “saber” que compete ao
poeta, esse sempre retorna às origens, para o que é essencial.
Ao atentar para o Cristianismo medieval, encontramos o quase monopólio cultural que
a Igreja, na Idade Média, impôs ao integrar religião com memória, o que resultou em forma de
dominação religiosa, pela perpetuação da história dos santos, pela preservação da memória
dos mortos
aqui como sinônimo de preservação da história
e pelos feitos da própria
Igreja. Assim, por temor ou amor a um Deus, recordavam-no para, antes de mais nada, ter o
seu reconhecimento, obter o seu perdão e receber suas graças. No cotidiano cristão é assim
que as coisas funcionam. A memória de Jesus Cristo é invocada e seus ensinamentos
transmitidos pelos apóstolos, seus sucessores, e propagadores da doutrina cristã.
No contexto medieval cristão, encontramos uma importante obra
cristã
a primeira da era
em que a memória explicitamente é evocada: trata-se das Confissões, de Santo
Agostinho. Nela, a busca por Deus em lugares e em imagens da memória por vezes é
frustrada, mesmo assim o espírito avança nas áreas mais profundas da mente humana, como
podemos observar o fragmento do Livro X, intitulado O encontro de Deus, que define a
memória da seguinte maneira:
Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros
de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está
também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo
ou até variando de qualquer modo os objetos que os sentidos atingiram.
Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depôs, se é que o esquecimento
ainda o não absorveu e sepultou.
Quando lá entro mando comparecer diante de mim todas as imagens
que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por
mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos
ainda mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões e, enquanto se pede e
se procura uma outra, saltam para o meio, como que a dizerem: “Não
seremos nós?” Eu então, com a mão do espírito, afasto-as do rosto da
memória, até que se desanuvie o que quero e do seu esconderijo a imagem
apareça à vista. Outras imagens ocorrem-me com facilidade e em série
ordenada, à medida que as chamo. Então as precedentes cedem o lugar às
seguintes, e ao cedê-lo, escondem-se, para de novo avançarem quando eu
quiser. É o que acontece quando digo alguma coisa decorada.24
Essa descrição que tem como subtítulo adequado a denominação O palácio da
memória, nos remete a uma lenda religiosa, segundo Jaques Le Goff, na qual os romanos
apontam para a criação de técnicas de memória: a mnemotecnia. Seu inventor foi o poeta
grego Simônides de Céos compositor de cantos fúnebres e de elogio aos heróis.
24
Santo Agostinho, Confissões, 1ª ed., Editor Victor Civita, 1973, p.200.
17
Conta a lenda, narrada por Cícero em seu De oratore, que Simônides, participando de
uma festa oferecida por Scopa, um nobre da Tessália, foi encarregado de compor um poema
em sua homenagem. Porém, ao fazer o poema esse foi dividido em duas partes: na primeira,
enaltecia o nobre e, na segunda, os deuses Castor e Polux. No momento do pagamento, Scopa
recusou-se a pagar integralmente o poema e sugeriu que a cobrança da outra parte fosse feita
aos deuses homenageados. Passado algum tempo, um mensageiro aproximou-se de Simônides
e disse-lhe que dois jovens o esperavam do lado de fora do palácio. Ao sair, Simônides, não
encontrou ninguém e enquanto os procurava o palácio desabou, matando todos que lá
estavam. Reaparecendo os dois deuses, Castor e Polux, Simônides teve a outra parte do
poema paga. Não havendo sobreviventes entre os convidados e anfitriões, ficou a cargo de
Simônides reconhecer os mortos por meio da lembrança da posição que ocupavam dentro do
palácio e das suas vestimentas. Feito o reconhecimento de todos pelo poeta, os mesmos foram
remetidos às suas respectivas famílias. Assim, se fixavam dois pontos de vista sobre a
memória artificial ou métodos de memorização: a importância da lembrança das imagens e a
organização das mesmas como elementos essenciais para uma boa memória.
O texto de Santo Agostinho e a lembrança do palácio de Simônides mantêm pontos de
contato se considerarmos a memória como um edifício suntuoso, passível de ser visitado, no
qual encontram-se imagens que podem ser evocadas, de forma ordenada, durante o processo
de rememoração. Essa ordenação é vista no texto de Santo Agostinho de maneira figurativa,
quando o escritor atribui movimentos independentes para suas imagens e sugere
compartimentos na memória que se encontram mais próximos ou mais distantes da nossa
consciência, como por exemplo, quando diz:
Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por mais
tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos ainda
mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões e, enquanto se pede e se
procura uma outra, saltam para o meio, como que a dizerem: ‘Não seremos
nós?’25
Justifica-se o procedimento de personificar as imagens pelo fato de que é mais fácil
recordá-las com aspectos humanos, como a fala, do que por meio de idéias; portanto, recordar
o concreto ao invés do abstrato é uma das características do ser humano, como veremos mais
a frente com o filófoso Henri Bergson.
25
Cf. Santo Agostinho, Confissões, p.200.
18
É interessante observarmos, no “Palácio da memória”, a capacidade de divisibilidade
do ser, que deixa o corpo de lado, ou seja a matéria, e, em espírito, visita o próprio ser, dá
ordens e acredita na capacidade da memória de reter o universo dentro de si mesma. Dividido,
esse ser examina a sua consciência e descreve o mecanismo da memória como algo
impulsionado por mecanismos motores, que podem ser acionados de acordo com os nossos
desejos, de acordo com a nossa inteligência, o que permite relação com uma das memórias
classificadas por Henri Bergson: a memória hábito, que torna possível pela repetição das
nossas ações, pela reprodução de atos anteriormente executados, escrevermos, dirigirmos
máquinas, falarmos um outro idioma, etc.
O fragmento do Livro X de Santo Agostinho já citado também nos leva a pensar em
um importante capítulo do livro Matéria e Memória (1896), do filósofo Henri Bergson,
chamado “Da sobrevivência das imagens”26. Nele, Bergson questiona em que lugar se
conserva a lembrança, ou o passado já realizado, e conclui que o ser humano tem como
prática comum pensar no cérebro como um reservatório de imagens, passíveis de serem
selecionadas e resgatadas de acordo com a necessidade presente. Porém, apesar de cômoda,
essa idéia é errônea, pois Bergson confere ao cérebro apenas a posição de imagem estendida
no espaço, não ocupando mais do que o momento presente.
Pensemos nessas características: o corpo é uma imagem e parte da nossa representação
do universo, por isso não pode conter imagens e estar contido nelas. O cérebro, então, não
pode desempenhar a função de depósito, pois é a imagem central no conjunto de outras
imagens que compõem o mundo material. Certamente, de todas as imagens existentes, a
imagem do meu corpo é a única que não varia se o desloco; portanto, se a sua imagem é
invariável, é ela que deve ser o centro das imagens com as quais se relaciona, e é ela que se
manifesta como “limite movente entre o futuro e o passado, como de uma extremidade móvel
que nosso passado estenderia a todo momento em nosso futuro.”27 Colocado no tempo que
flui, o meu corpo sempre está onde precisamente as minhas representações do passado vêm
expirar, consistindo no ponto de contato entre esses dois tempos: o passado e o presente. É
nesse momento, quando mecanismos cerebrais terminam a série de representações do
passado, que nos aproximamos mais do real e conseqüentemente de uma ação. Com relação
às representações do passado, o corpo desempenha apenas o papel de instrumento de seleção,
26
Henri Bergson, Matéria e Memória (Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito), São Paulo, Martins
Fontes, 1990, p.155-208.
27
Henri Bergson, Matéria e Memória, p.85.
19
não mais do que isso. Assim, devemos supor que o passado não se fixa na matéria, somente
passa por ela, e se encontre no espírito. Nesse sentido Bergson declara que:
Todos os fatos e todas as analogias estão a favor de uma teoria que veria no
cérebro apenas um intermediário entre as sensações e os movimentos, que
faria desse conjunto de sensações e movimentos a ponta extrema da vida
mental, ponta incessantemente inserida no tecido dos acontecimentos, e que,
atribuindo assim ao corpo a única função de orientar a memória para o real e
de ligá-la ao presente, consideraria essa própria memória como
absolutamente independente da matéria.28
Nestes dois pólos da natureza humana: matéria e espírito existe uma oposição, pois o
corpo é para o espírito a sua única barreira. Tudo depende das condições físicas e psicológicas
na qual se encontra o indivíduo durante o fenômeno da lembrança; qualquer mudança externa
ou interna para o indivíduo altera a sua percepção do presente e conseqüentemente o fluxo da
memória. Resta concluir que a ação do cérebro, ou do corpo, é apenas condutora, pois sua
imagem se encontra entre objetos que o influenciam e sobre os quais exerce influência,
fazendo então surgir a percepção da matéria, como Bergson assim explica:
[...] perceber consiste em separar, do conjunto dos objetos, a ação possível
de meu corpo sobre eles. A percepção então não é mais que uma seleção. Ela
não cria nada; seu papel, ao contrário, é eliminar do conjunto das imagens
todas aquelas sobre as quais eu não teria nenhuma influência, e depois, de
cada uma das imagens retiradas, tudo aquilo que não interessa as
necessidades da imagem que chamo meu corpo.29
A ação de perceber ocorre do lado externo do corpo, ou seja, a imagem está fora de
nós, por isso, conforme observamos os objetos exteriores os percebemos no lugar onde se
encontram e não dentro do nosso corpo. Mesmo assim, existe uma ação reflexiva do nosso
corpo sobre os outros corpos, se considerarmos o nosso corpo como elemento central de um
sistema e se considerarmos que a sua imagem reflete uma influência virtual sobre outras
imagens e sobre a sua própria. Concluímos, então, segundo a lição de Bergson, que ao
misturarmos a percepção do nosso corpo com a de outros corpos encontraremos a afecção.
Se a imagem do nosso corpo está rodeada de outras imagens, então se deve levar em
consideração a sua distância. Quanto mais longe estiverem esses corpos ou imagens deles de
nós, menos a sua ação tende a se transformar em ação real; inversamente, se a distância entre
28
29
Henri Bergon, Matéria e Memória, p. 208.
Idem, ibidem, p.267-268.
20
eles diminui a ponto de anular esse espaço, então a afecção está em nosso corpo. Com isso,
Bergson conclui que:
A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no
presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da
sua duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato
percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela.30
É necessário entender que é por meio da memória que o ato de lembrar se mistura com
o ato de perceber, ao mesmo tempo que o passado se mistura com o presente. Se admitirmos
que a memória é a conservação do passado e que o passado vem à tona por meio das
percepções que o eu tem no presente, podendo até mesmo substituí-las, então devemos pensar
nas limitações entre um tempo e outro. Ao analisarmos os três tempos: passado, presente e
futuro, devemos notar que é da natureza do tempo escoar, num movimento contínuo para
frente, para o futuro, porém esse que seria o último estágio, a linha de chegada, não passa de
um momento ilusório que tentamos alcançar. Justificamos isso através da duração dos
tempos: ao pensarmos no momento presente, ele já passou e se pensarmos no futuro, ele já é
presente. Por isso, Bergson afirma que se não há um reservatório para o passado é por não
haver um passado da forma como o concebemos, ou seja, um passado acabado, mas sim
outro, que não deixou de existir e continua no presente, ou seja, um passado presentificado.
Por outro lado, Maurice Merleau-Ponty em sua obra Fenomenologia da Percepção
(1994) contrapõe a idéia de que Bergson estava certo em explicar a unidade do tempo por sua
continuidade, pois isso significa confundir os três tempos: presente, passado e futuro sob o
pretexto de que se caminha de um para o outro sucessivamente. Para Merleau-Ponty o tempo
depende de uma visão sobre o tempo, para que isso ocorra, faz-se necessária a presença de um
observador, de um sujeito que muda a concepção de tempo a partir do seu ponto de
observação dos acontecimentos. Diante desse argumento, devemos refletir sobre o consenso
popular de que o tempo passa, escoa, como um rio. Se utilizarmos essa metáfora concebemos
a independência do rio que parte, por exemplo, das montanhas até chegar ao mar onde se
lançará, criando a noção de passagem do passado para o futuro. Contudo, se introduzirmos um
observador, que tanto pode ficar na margem do rio ou seguir o seu fluxo, as relações de tempo
se inverterão. Para aquele que fica, a direção das águas não mantém a mesma simbologia,
outrora definida como: as águas que partem da nascente representam o passado, as que
passam pelas margens o presente e as que caminham para o mar o futuro. Nesse caso, o
30
Cf. Henri Bergson, Matéria e Memória, p.77.
21
observador, que se mantém em um das margens, reconhece as águas que já escoaram como o
passado e o porvir está nas águas que partem da nascente. Portanto, o passado e o futuro
surgem a partir da minha concepção de tempo, “se não estou no instante atual, estou também
na manhã deste dia ou na noite que virá, e meu presente, se se quiser, é este instante, mas
também este dia, este ano, minha vida inteira.”31. Diante desses argumentos, a conclusão a
que chega o filósofo é de que:
[..]o tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria
a registrar. Ele nasce de minha relação com as coisas. Nas próprias coisas, o
porvir e o passado estão em uma espécie de preexistência e de sobrevivência
eternas; a água que passará amanhã está neste momento em sua nascente, a
água que acaba de passar está agora um pouco mais embaixo, no vale.
Aquilo que para mim é passado ou futuro está presente no mundo.32
Acerca da razão de Bergson “em apegar-se à continuidade do tempo como um
fenômeno essencial”33, Merleau Ponty considera que é preciso apenas explicá-la de maneira
que compreendamos a existência dos tempos, não de maneira que não possam ser
diferenciados um dos outros, mas que cada tempo não esteja encerrado em si mesmo. Dessa
forma cada presente “se transcende em direção a um porvir e um passado”34. Essa afirmação
justifica a metáfora do rio como o transcorrer dos tempos, não pelo seu movimento em
direção ao mar, mas por ser ele uma unidade que possibilita ao observador se voltar para
frente ou para trás.
Merleau-Ponty também faz a distinção entre percepção e recordação e afirma que
“perceber não é recordar-se”35. E nos coloca diante do exemplo usual da leitura de um jornal:
diante da rapidez com que vemos as letras impressas na folha de papel, nosso olhar cria
inúmeras lacunas preenchidas simultaneamente pela projeção de recordações. De maneira
que, durante a leitura reconhecemos a palavra a partir de uma pequena unidade semântica e a
nossa mente completa o restante da palavra com o que há dela registrada em nossa memória.
Se dessa maneira simplificada fosse possível explanar (definir) a recordação, como se
explicaria, então, a hipótese de que o mesmo jornal, visto de maneira inversa, com as
31
32
33
34
35
Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p.552.
Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p.552.
Idem, ibidem, p. 563.
Idem, ibidem, p. 564.
Idem, ibidem, p. 48.
22
impressões embaralhadas, impossibilita a nossa capacidade de rememoração? A resposta está
em:
[...] para vir a completar a percepção, as recordações precisam ser tornadas
possíveis pela fisionomia dos dados. Antes de qualquer contribuição da
memória, aquilo que é visto deve presentemente organizar-se de modo a
oferecer-me um quadro em que eu possa reconhecer minhas experiências
anteriores.36
Assim, entendemos que a evocação da memória necessita de uma organização na
imagem ou no som que desperta a lembrança. Ela precisa, por exemplo, reconhecer um objeto
na sua forma e sentido; isto não quer dizer que o mesmo deva ser idêntico àquele do passado.
Basta que alguns traços imitem uma experiência captada pelos sentidos no horizonte do
passado para que outra experiência similar se desenvolva a partir do lugar de origem da
anterior, ou seja, o passado. Conclui-se então que o passado de fato não é importado da
percepção presente por um mecanismo de associação, mas desdobrado pela consciência
presente.
Detendo-nos, novamente, às postulações de Henri Bergson, percebemos que a
conservação dos fatos passados serviria para motivar ações do indivíduo frente a alguma
situação que, pela percepção, resgata um episódio qualquer idêntico que servirá como modelo.
Na verdade, segundo Bergson, é o passado o responsável por sua projeção no presente, é de lá
que parte o chamado, é a nossa experiência adquirida que recebendo um impulso sensorial do
presente corresponderá prontamente com a reprodução dos elementos conservados pelo
espírito.
Basicamente, o passado ressurge sob duas formas extremas: por mecanismos motores
ou por imagens-lembranças. Para defini-las, Henri Bergson revê essas duas formas e ressalta
que o passado atua no presente, conservando-se no inconsciente à espera de um chamado ou
por vezes substituindo o presente de maneira integral. Respectivamente esse filósofo francês
denomina as memórias como: memória-hábito e memória pura. Para complementar esse
pensamento, recorremos à Ecléa Bosi, que, em seu livro Memória e Sociedade (Lembranças
de Velhos), afirma que:
De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale
muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da
memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem
36
Cf. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 44.
23
lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas,
singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado.37
Segundo Bergson, adquirimos a memória-hábito através do nosso esforço cotidiano
em repetir situações até a sua fixação no nosso organismo. Essa memória é composta por um
conjunto de mecanismos motores, inteligentemente estruturados, que asseguram a reprodução
dos detalhes necessários para a repetição de uma ação, que tem como modelo outra, já
ocorrida no passado. Por isso, podemos reproduzir todos os dias mecanicamente ações como
dirigir um automóvel, comprar alimentos, ligar e desligar aparelhos, andar, etc. Esse tipo de
memória é responsável pelo nosso convívio em grupo, pela aquisição de cultura e sua
permanência na sociedade em que vivemos. Sua limitação se resume em não poder evocar
imagens do passado.
Por outro lado, longe do nosso controle, temos a verdadeira memória, ou a memória
pura. Nela, a imagem-lembrança se atualiza de maneira independente, estimulada por
percepções de toda ordem. Quando ela ocorre temos os momentos já vividos reproduzidos de
forma nítida e completa. Isso só é possível porque entramos, durante o processo de
rememoração, num estado de letargia capaz de suprimir a nossa consciência. Por conta disso,
durante a reprodução, somos levados a abandonar o presente para vivenciar “novamente” o
passado com todas as suas cores e com todas as sensações do momento da origem dessas
imagens. Porém, essa lembrança espontânea, oculta em nosso inconsciente ou por detrás das
nossas lembranças adquiridas, é bastante frágil e sensível, se materializa por acaso e escondese novamente ao menor movimento da nossa consciência. É nesse aspecto evocativo da
memória pura que se encontram as imagens do sonho e do devaneio, que funcionam como
uma válvula de escape do mundo real. Está associada ao devaneio e ao sonho a idéia do nãofinito e as inúmeras possibilidades de consolo para a “dor de viver”; segundo Alfredo Bosi “O
devaneio seria a ponte, a janela aberta a toda ficção”38.
Segundo a definição de Nicola Abbagnano, no Dicionário de Filosofia, a memória
“parece ser” constituída por duas condições ou momentos distintos, que são respectivamente a
conservação dos acontecimentos passados e a possibilidade de evocá-los, tornando-os
presente (recordação). A falta de firmeza na definição, indicada na expressão “parece ser”,
confirma o quanto o cérebro humano ainda tem a ser explorado. Algumas pesquisas neste
campo da memória conservam nos dias de hoje os mesmos termos, senão as mesmas idéias, já
37
38
Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, 3ªed., São Paulo, Cia das Letras, 1994, p.48.
Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 27.
24
utilizados antes de Cristo por Platão e Aristóteles. Dos estudos desses dois autores discutidos
por Abbagnano, destaca-se o fato de Platão empregar termos que inspiram os atuais como
“conservação de sensações” e “reminiscências” e o fato de Aristóteles já ter explicado o
processo da memória, seja com relação à memória retentiva ou à recordação. Ao tratar da
recordação, Aristóteles evidencia outra característica fundamental: o “seu caráter ativo de
deliberação ou de escolha.”39 Está patente, portanto, que esses aspectos não mudaram ao
longo da história desses conceitos já que as concepções modernas e contemporâneas também
vêem a memória como conservação. Repare, porém, que à afirmação de Aristóteles – de que o
processo da memória é inteiramente físico – contrapõe-se o que Bergson diz dela, ou seja, que
a memória pertence ao espírito no sentido em que conservamos mais aquilo que age
diretamente – de modo positivo ou negativo – sobre nossas emoções.
Sobre esse questionamento, o estudo científico da memória ganhou impulso no século
XX. Durante muito tempo debateu-se a possibilidade de a memória ser considerada uma
função unitária, não fragmentada em diversos tipos de memória. O reconhecimento da
fragmentação aconteceria no início do século XX, por meio de uma abordagem experimental,
baseada na observação de alguns aspectos do comportamento humano originando a Escola
Behaviorista que estabeleceu associações de estímulo-resposta para explicar o aprendizado.
Porém, o caráter limitado do behaviorismo foi ampliado por Edward Tolman (1886-1959),
mestre da Psicologia Experimental na Universidade de Berkeley (Califórnia), que na década
de 50 comprovou a possibilidade da aquisição de conhecimento e representação de mundo por
animais que aprenderam respostas por meio de um estímulo. A descoberta resultaria na
confirmação da existência de mais de um tipo de memória. Se antes havia a “memória
automática”, resultante de um estímulo resposta, precisou se acrescentar mais uma, a
“memória cognitiva”, que possibilita a resposta inteligente a diversos problemas. Nos anos 60
preferiu-se trabalhar apenas com as idéias de memória de curta e de longa duração. A
memória de curta duração é caracterizada pela capacidade de manter pequenas quantidades de
informações em períodos breves de tempo, já a memória de longa duração tem um
armazenamento de longo prazo e com grandes quantidades de informação.
Mais recentemente, por volta dos últimos vinte anos, descobriu-se a memória de
longa duração polimórfica e a capacidade de adaptação do homem em manter algumas
aptidões mnemônicas intactas após lesões cerebrais. Essas descobertas revelam a evolução do
fenômeno mnemônico que precisou sobrepor módulos ou sistemas cerebrais para processar de
39
Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 1ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.658.
25
forma cada vez mais rápida a quantidade de informações complexas que o mundo moderno
nos impõe. Tão complexa quanto as informações que recebe é a estrutura cerebral. Hoje já
podemos por meio de técnicas de imageamento, que revelam os pontos ativos do cérebro no
ato da recordação, reconhecer como área trabalhada o neocórtex40, quando nos esforçamos
para lembrar um acontecimento com precisão. Essa topografia da memória indica que a
memória é distribuída em redes interconectadas, estruturas responsáveis pela elaboração e
evocação das lembranças.
Toda experiência, ou acontecimentos novos, é integrada às redes já existentes,
ativando-as. Assim, as novas experiências incidem nas antigas por se assemelharem a elas, ou
porque a elas se opõem. O novo evoca o antigo, se consolida nele e representa nessa operação
o acúmulo de experiências adaptativas de uma espécie. Quanto à essas redes, ainda não há
total conhecimento sobre o seu mecanismo e sua potencialidade. Pesquisas atuais indicam
uma correspondência entre as funções de registrar, processar e utilizar informações e as
estruturas cerebrais indispensáveis ao seu funcionamento. A classificação atual dos tipos de
memória varia de acordo com essa correspondência e a memória é revista desde os tipos
primitivos, que explicam a habituação e a sensibilização, até às complexas memórias
conscientes do homem. Os tipos são convenientemente divididos em memória não-declarativa
ou reflexiva e memória declarativa. A memória não-declarativa inclui o condicionamento
clássico, habilidades e hábitos, e é em grande parte ou, com freqüência, completamente
inconsciente. A memória declarativa, por outro lado, envolve a recuperação consciente de
eventos ou fatos que tenham ocorrido. Esses tipos de memória são processados de formas
diferentes e em partes diferentes do cérebro.
Apesar da impressão de independência entre os sistemas, sabemos que em certas
manifestações da memória os mesmos interagem e, em alguns casos, entram em conflito.
Exemplo de um conflito observado é o funcionamento da memória declarativa explícita
(memória dos fatos e eventos) ligada ao Lobo Temporal, que pode ter a mesma zona cerebral,
igualmente indispensável, para o condicionamento clássico das respostas musculares,
normalmente relacionadas ao cerebelo. A conversão da memória declarativa em memória
reflexiva pode vir a ocorrer pela repetição constante. Assim, por exemplo, os músicos
40
Conforme Joaquín Fuster. “Arquitetura da Rede”, in Viver Mente & Cérebro, São Paulo, nº 02, p.26-31, 2005.
“Pesquisas realizadas em primatas mostram que a memória é armazenada, principalmente, no neocórtex, isto é,
na região cerebral mais recente do ponto de vista evolutivo e que os diversos tipos de memória são formados por
redes de neurônios do neocórtex: a região posterior do córtex cerebral e a região frontal são essenciais para a
memória. A formação de memórias é acompanhada pela modificação das sinapses, os contatos entre neurônios; a
ativação das sinapses modificadas entre neurônios interconectados faz ressurgir as lembranças aí impressas. As
memórias são guardadas sob a forma de modificações nas relações específicas entre neurônios e não como
alterações em moléculas ou neurônios específicos da memória.”
26
desenvolvem movimentos respostas que, com o treinamento, se tornam "instintivos". De
maneira semelhante, muitos aspectos do comportamento, tão complexos quanto dirigir um
automóvel ou nadar, tornam-se respostas de hábito.
Sendo assim, convém enfatizar que se tratando do funcionamento da memória ainda
não há afirmação absoluta que não possa ser contestada. Inicialmente o estudo da memória
baseou-se nos mecanismos ligados especialmente aos estados emocionais, cujas
manifestações só podiam ser avaliadas em termos psicológicos. Entretanto, nos dias de hoje,
como já observamos, a memória pode ser analisada para além das manifestações do espírito,
como sugeriu Berson nos últimos anos do século XIX , para tornar-se aos poucos tema da
neurobiologia. Esse é o esforço de cientistas ligados à área: a busca da “naturalização” da
memória. Isso quer dizer que algumas questões fundamentais pensadas a mais de um século,
como as formas da memória, a sua consolidação e representação, podem ser explicadas pela
psicologia-cognitiva
pensam a informação
que estuda o modo como as pessoas percebem, aprendem, recordam e
ou pela biologia molecular. Todos esses estudos, evidentemente,
proporcionam um melhor conhecimento dessa função cerebral, possibilitando reconhecer e até
remediar as falhas dessa faculdade em benefício do homem, como por exemplo, a cura do Mal
de Alzheimer.
Dessa perspectiva evolutiva, o homem além de manter a sua capacidade de
armazenamento de informações sobre o meio que o cerca, no sistema nervoso, criou outras
memórias artificiais para auxiliá-lo. Estamos falando aqui de instrumentos capazes de
“simular” a capacidade humana de armazenar e transmitir informações. São eles os livros, as
bibliotecas, fotografias, arquivos sonoros, museus, computadores, etc. Está patente que os
dados contidos em máquinas, como computadores, por exemplo, são muito diferentes da
memória humana, pois para o seu armazenamento são utilizados procedimentos de registro
sistemáticos que dificilmente substituirão as memórias emocionais, contudo essas “memórias
paralelas” evoluem tanto quanto a memória biológica e sinalizam a perpetuação de um tempo
passado.
A preocupação com a passagem do tempo e a análise da memória não é apenas
material de estudo para filósofos, sociólogos ou profissionais na área da saúde; também na
literatura encontramos escritores que se preocuparam com essa questão. Entre eles, não
poderíamos deixar de citar o escritor francês Marcel Proust, de Em busca do tempo perdido,
pela importância das suas considerações sobre a passagem do tempo e a memória.
Proust analisa a passagem do tempo em seus personagens revelando que o “tempo
perdido” pode ser recuperado, não por meio da memória comum (hábito), mas por outra
27
memória, denominada na obra como involuntária, que não depende do nosso esforço
consciente, mas sim, de algum estímulo externo para que ela apareça de forma espontânea,
como a memória pura de Bergson. Cabe aqui ressaltar que a teoria de Bergson que “realça os
laços da memória com o espírito, senão com a alma”41 provavelmente influenciaram o ciclo
narrativo de Proust, pela sua quase obsessão em observar as transformações que o tempo pode
fazer ao homem. Proust revela em sua obra o sentimento de ter apreendido uma fração de
tempo já passado, um desejo de sobreposição ou substituição do passado sobre o presente,
como comprova a passagem a seguir:
E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhada no chá
que me dava minha tia [...], logo a casa cinzenta que dava para a rua, onde
estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno
pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o
lanço truncado que era o único que recordava até então); e com a casa, a
cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me
mandavam antes do almoço, as ruas onde eu ia correr, os caminhos por onde
se passeava quando fazia bom tempo. [...] e a boa gente da aldeia e suas
pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo
isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de
chá.42
De maneira bastante significativa para a obra, o episódio da Madeleine mergulhada no
chá representa o retorno à infância, com todas as sensações adormecidas, e à paisagem da
cidade de Combray, onde o personagem da obra passava suas férias no passado; outros
episódios similares aparecem ao longo dos sete volumes que compõem o ciclo Em busca do
tempo perdido, atestando, com isso, a importância dos processos de memória para a
recuperação de um tempo perdido.
Também António Nobre usou a memória pura e recuperou o passado. Outros como
Gèrard de Nerval, já haviam feito uso dela, mas é Marcel Proust na prosa43 (anos depois da
publicação do Só) e António Nobre na poesia portuguesa que aprofundam a busca pelo tempo
perdido. Aliás, no Só, o autor utiliza a memória pura de forma explícita. Basta que elementos
externos evoquem essa memória para que ocorra o distanciamento do presente e o sujeito
poético retome um outro momento vivido, como nessa estrofe do poema “Ao canto do lume”:
Lá fora o Vento como um gato bufa e mia...
Ó pescadores, vai tão bravo o Mar!
Cautela... Orçai! Largai a escota! Ave Maria!
41
Jaques Le Goff, História e Memória, p.471.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, (Tradução de Fernando Py), Rio de Janeiro, Ediouro, 2002, p.53.
43
No caminho de Swann, primeiro volume da série Em busca do tempo perdido foi escrito em 1913.
42
28
Cheia de Graça... Horror! Mortos! E a água tão fria!...
Que triste ver os Mortos a nadar!44
Por meio de estímulos sensoriais se constrói todo um cenário de apreensão: o vento
do lado de fora evoca os homens do mar, cujas vozes, a pedirem proteção à santa, a dar ordens
de comando são reproduzidas via memória, assim como a sensação da água fria que aproxima
o sujeito poético da iminência da morte desses pescadores no mar agitado – imagem que
evoca o ser português e ser português é estar em contato estreito com o mar, quer como
navegador de Quinhentos, quer como pescador de Oitocentos e, por isso, a percepção do
vento que “bufa e mia” traz tantas apreensões.
Com a publicação do Só (1892), Nobre consegue produzir uma obra cheia de
afetividade, ligada às emoções da infância e adolescência do sujeito poético e capaz de
recuperar o tempo áureo do indivíduo e o da pátria por ele reconstruída poeticamente por
meio de evocações e invocações que fornecem imagens do Portugal, piscatório, rural e
nortenho. As ações de evocar e invocar são freqüentes na obra, por isso é importante aqui
fazer a distinção entre esses dois vocábulos. O significado resumido de evocar é chamar de
algum lugar, trazer à imaginação, à lembrança. Pela evocação identificamos a contínua
utilização dos mecanismos da memória que nos fornecem as imagens de um tempo vivido
pelo sujeito poético e as suas sensações. Já invocar é o pedido de socorro, de proteção,
comum no Só pelo sentimento de melancolia que a obra carrega, por vezes o poeta mantém o
tom de ladainha em alguns poemas, como que a solicitar ajuda de santos importantes da
cultura portuguesa. Passagens como “Senhora dos aflitos!/ Martyr São Sebastião/ Ouvi os
nossos gritos! ”45 revelam o dilaceramento do sujeito poético diante da sua impotência em
transformar o seu próprio destino e o da pátria, já que juntos encontram-se no mesmo
desalento e desesperança. Para amenizar a sua dor o sujeito poético reproduz em suas súplicas
pedidos de ajuda, numa postura comum ao ser humano que se apega à religião ou à
necessidade de uma crença pelo avizinhar-se da morte que tanto medo causa àqueles que
sofrem pelo seu aspecto sobrenatural, desconhecido.
Na trajetória dos poemas do Só, a evocação e a invocação são utilizadas como recurso
de presentificação, ou seja, a ação de evocar ou invocar não só trazem à tona o passado, como
também possibilita ao sujeito poético transitar simultaneamente entre esses dois tempos: o
passado e o presente. Quando isso ocorre, as imagens do passado, com todas as experiências
de vida do sujeito poético, se misturam e se agregam ao presente, comprovando a incessante
44
45
Cf. Só, p.166.
Idem, ibidem, p.99.
29
atividade do passado em atuar no presente como fio condutor entre o que fomos e o que
somos, no intuito de preservar a nossa identidade. Portanto, devemos observar que o voltar ao
passado no Só não é um ato neutro e se constantemente o regresso é acompanhado pela
saudade, é porque António Nobre “profundamente encarnou a tristeza nacional”46. Quem lê o
Só não somente percebe o sofrimento do sujeito poético que logo de início se separa da sua
mãe, para depois se separar da sua pátria, como veremos mais adiante, como também
compartilha a decadência de um povo que no passado teve glórias,
como comprovam Os
Lusíadas, de Camões, obra monumental de elevação dos portugueses
e no final de
Oitocentos não as têm mais.
O Só reproduz poeticamente, entre outras coisas, a história de fracassos e fadigas de
um povo que tem como hábito cultivar o sentimento agridoce conhecido como saudade.
Considerado como fiel representante do Portugal do século XIX, dessa obra podemos retirar o
discurso identidário de um povo que, parafraseando as palavras de Alberto de Oliveira, não
passou de uma geração sonâmbula que fez alas para ver Portugal tombar na cova e precisava
de um poeta como Nobre para cantar “com eloqüência a agonia dos farrapos de alma”47 que
ainda restavam. Por outro lado, a beleza das imagens infantis que compõem o Só, nos dá a
impressão de uma sublimação perpétua do passado precioso da pátria. Vejamos, a seguir,
como o poeta lida com esses dois tipos de imagens e representação e como constrói a sua
memória poética.
ANTÓNIO NOBRE E A MEMÓRIA COMO
RECONSTRUÇÃO POÉTICA
Quando iniciamos a leitura do Só, de António Nobre, deparamo-nos, na 1ª edição, com
o poema “Memória à minha mãe, ao meu pai” e, na 2ª edição, substancialmente modificada
pelo poeta, com o poema “Memória”; são dois poemas diferentes, mas ambos apresentam a
história do sujeito poético e dos seus antepassados. Desse modo, assim que abrimos o Só,
tanto na 1ª quanto na 2ª edição, verificamos a importância que a memória, ou melhor, as
operações da memória têm na obra do poeta. Por meio do poema “Memória”, iniciado em tom
46
J.Pinto Loureiro. et.al, Coimbra e Antônio Nobre (Homenagem ao poeta), Coimbra, Coimbra Editora, 1940.
p. 07.
47
J.Pinto Loureiro. et.al, Coimbra e Antônio Nobre (Homenagem ao poeta), p. 07.
30
oral48 “Ora isto, Senhores, deu-se em Trás-os-Montes,/ Em terras de Borba, com torres e
pontes”49, podemos claramente observar a contínua retomada do passado individual e familiar
e uma quase incompreensão do fado mofino do sujeito poético. Essa incompreensão se dá a
partir da filiação privilegiada do sujeito poético que tem um pai caracterizado como bom,
“egrégio”, e uma mãe com características de santa, como as representações femininas
presentes no Só.
Porém, apesar das qualidades dessas duas figuras apontadas no poema percebemos a
infelicidade do sujeito poético, também porque, do pai, advém o sentimento de exilado:
“Português antigo, do tempo da guerra. / Levou-o o Destino p’ra longe da terra”50, e, da mãe,
o do abandono: “Vou ali à cova, em berlinda, / António e já volto... E não voltou ainda!” 51.
Como o pai também desaparece à procura da mãe, o resultado dessas ações não pode
ser outro senão a solidão e a saudade que acompanham por toda a obra o sujeito poético a
partir de “Memória” até o reencontro com a mãe em “Males de Anto II (Meses depois, num
cemitério)”.
Segundo Paula Morão em O Só de António Nobre: Uma leitura do nome, o poema em
tela
...é simultaneamente programa a realizar e resumo do já vivido; ‘Memória’
pode ler-se como advertência, prevenindo contra ‘o livro mais triste’, ou
como palavra lapidar, instituindo o ‘livro’ como o lugar de perpetuação do
‘Poeta’ – ‘Príncipe’ – ‘Menino’ feito paladino de um ‘fado’ seu, mas que se
transcende para ser também a saga de um Portugal antigo que no tempo se
desfaz, e, paradoxalmente se procura.52
No Só essa busca ou, melhor dizendo, a apresentação de um país outrora glorioso dáse pela memória do sujeito poético que, ao longo da obra, procura recuperar o passado e
reconstruir poeticamente fragmentos de Portugal, a partir de poemas como “Memória”,
“António”, “Lusitânia no Bairro Latino”, entre outros. O processo de rememoração é
48
Pela tradição, a narrativa é uma estória contada, oralmente, a partir da memória. Basicamente, a figura do
rapsodo é a de alguém que conta algo a um público ouvinte. Conforme a Grande Enciclopédia Portuguesa e
Brasileira. (Vol.XXIV, Editoria Enciclopédia Ltda, Lisboa, [195-?].), “Na Grécia deu-se o nome de rapsodos, a
partir de certa época, aos contadores profissionais. Até o fim do século V os Gregos, com poucas exceções, não
conheceram Homero e Hesíodo pela leitura, mas sim pelas recitações dos rapsodos, e algumas partes dos poemas
pelo ditado dos mestres. Os primeiros exemplos seguros de “rapsodos” remontam ao século V, e a própria
palavra é foneticamente recente. Os antigos aedos ou rapsodos eram não só recitadores, mas também poetas. Não
escrupulizaram aliás, em interpretar trechos de obra alheia.” (p.202).
49
Cf. António Nobre, Só, p.78.
50
Cf. Só, p.78.
51
Idem, ibidem, p.79.
52
Paula Morão, O Só de António Nobre. Uma leitura do nome, p.25.
31
constante, o sujeito recupera imagens, sons, sensações e evidencia a sua saudade pela pátria,
como podemos observar nesse fragmento do poema “Poentes de França”:
Sol às Trindades, atrás dos pinheiros,
À hora em que passam branquinhos moleiros,
Levando farinha pra cozer o pão!
— Ó forca do Sol-pôr! ó Inferno de Dante!
Açougue d’astros! ó sabat de feiticeiras!
Ó Sol ensangüentado! ó cabeça-falante,
Que o funâmbulo Poente anda a mostrar nas feiras...
[...]
— Que paz pelo Mundo, nessa hora ditosa!
Quando fecha a lojinha a Srª Rosa,
Quando vem das sachas o Sr.João...
[...]
— Ó hora em que as águas rebentam das minas...
Ó poentes de França! não vos amo, não!
[...]
Ó hora em que passam moças e meninas
Que, em tardes de Maio, vão às Ursulinas,
Com rosas nos seios e um livro na mão!53
Nele o elemento motivador do poema é o sol. Não aquele do meio-dia em todo o seu
esplendor, mas outro, em queda, o do final do dia. Sob esse aspecto ambos os poentes
evocados são iguais; a diferença está na contraposição entre o pôr-do-sol português e o
francês. Há uma nítida diferença na forma de narrar: quando se trata dos poentes da França, a
lembrança é evocada solenemente, com uma linguagem simbólica e ultra-civilizada, o que
não ocorre nas estrofes em contraponto, nas quais a simplicidade ganha contornos domésticos
e de conforto.
É no contraponto que se ressalta a caracterização de um Portugal rural e provinciano.
A valorização dos aspectos rotineiros de um povo que trabalha no comércio e no campo
confirmam o desejo do “exilado” de retorno a casa, à hora do descanso e à paz familiar. Nesse
território composto por pessoas e imagens suaves temos a representação de um ideal de vida
que só se atinge por meio da saudade e das evocações da memória, que fielmente
reconstituem a vida desejada. Contudo, mesmo quando se trata desse tempo da memória,
53
Cf. Só, p.161.
32
existe uma consciência do fim, pois sutilmente por meio do nome da dona da lojinha (Rosa)
ou da flor carregada pelas “moças e meninas” que leva o mesmo nome, recupera-se o
sentimento de efemeridade da vida que apesar de bela passa. Por isso, a dupla negação do
“não vos amo, não!” que rejeita o pôr-do-sol estrangeiro no seu descontrole de “Inferno de
Dante!”, assim como todos os “-ãos” que finalizam as estrofes da segunda voz reforçam a
preferência por Portugal e tudo o que lhe é característico.
Por várias passagens do Só, o sujeito poético procura compor um quadro completo
daquilo que viu e conservou na memória, embora essa completude seja questionável, porque
Henri Bergson ao explicar o funcionamento da memória, afirma que nenhuma rememoração é
completa; ao contrário, é fragmentada e não mais a mesma. Maurice Halbwachs, estudioso
das relações entre memória e história pública, também faz considerações semelhantes quando
diz que:
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado.[...] Se
assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e do
que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem
construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto
de representações que povoam nossa consciência atual.54
Por isso, devemos pensar na memória da pessoa como um pequeno fragmento da
memória do grupo, já que o indivíduo pertence a uma organização social sujeita à tradição, à
linguagem, aos costumes, à cultura em geral. É por meio da memória que o sujeito poético
mistura elementos da natureza com os infortúnios humanos, recupera tradições, descreve os
lugares por que tem apreço, transfere seu mundo interior, triste e desalentado, para o exterior
e retrata a dor agônica de um país a desmantelar-se, assim como sua vida, assim como sua
infância perdida.
No Só, a memória funciona como depósito de imagens paisagísticas, religiosas e
histórico-sociais e ao longo da obra, através das operações de memória, o sujeito poético tenta
recuperar momentos subtraídos pelo passar do tempo e que, se sabe, não retornarão jamais.
Sendo assim, o passado vivido pelo indivíduo ou pelo coletivo é somente resgatado por
algumas frações de tempo, em que constará momentânea e fragmentariamente o já vivido,
que, de forma muito especial, encontra-se extra temporalmente armazenado na memória e
aguardando um estímulo externo para ressurgir durante a evocação.
54
Citado por Ecléa Bosi em Memória e sociedade: Lembranças de velhos (3ªed., Companhia das Letras, São Paulo, 1994,
p.55) .
33
Através da evocação, o momento presente parece desaparecer, não apenas do tempo,
mas do nosso próprio ser. Somos lançados, nesse instante, a uma condição de “objeto de
zombaria do destino” e ficamos à “disposição” do processo de rememoração, pois quando isso
ocorre nos deparamos com a memória pura, não reencontrada pelo esforço de uma repetição
mecânica de palavras ou momentos vividos, mas, sim, pelo afloramento de uma reserva de
imagens-lembranças, ações passadas, de experiências, que no inconsciente do ser
conservaram-se e que vêm à superfície, através de estímulos externos. Isso ocorre no poema
“António”, no qual a rememoração é antecedida pelo ambiente, caracterizado pela noite e pelo
fogo, que propicia o recolhimento íntimo:
Que noite de Inverno! Que frio, que frio!
Gelou meu carvão:
Mas boto-o à lareira, tal qual pelo Estio,
Faz sol de verão!
Nasci, num Reino d’Oiro e amores,
À beira-mar.55
Por vezes, quando o sujeito poético se desloca para outros meios ou entra em contato
com novos grupos evoca lembranças significativas condizentes àquele momento atual. Isso
ocorre, por exemplo, no soneto de nº “14” quando em alto mar “António” é enlevado pelo
luar e passa a rememorar o destino dos marinheiros de Quinhentos. Principalmente no ponto
em que envolvidos pela aventura e pelo dever patriótico atravessavam o mar em busca do
estrangeiro e da glória, como ele agora o faz nessa passagem:
Vou sobre o Oceano (o luar de doce enleva!)
Por este mar de Glória, em plena paz.
Terras da Pátria somem-se na treva,
Águas de Portugal ficam, atrás.
[...]
Onde vou? Meu fado onde me leva?
António, onde vais tu, doido rapaz?
Não sei. [...]
Paquete, meu paquete, anda ligeiro,
Sobre depressa à gávea, Marinheiro,
E grita França! pelo amor de Deus!56
55
56
Cf. Só, p. 80.
Idem, ibidem, p. 204.
34
O estrangeiro complementou a capacidade do sujeito poético de evocar elementos
constituintes da sua pátria. De Paris recupera pela memória a sua terra matricial, o mesmo já
havia feito de Coimbra e de Leça, sua pátria sentimental. Contudo, em Paris a rememoração
ganha força e manifesta toda a angústia de exilado temporal e espacial em evocações que
reconstituem Portugal.
No Só, cada imagem formada pela lembrança traz como elemento principal o próprio
sujeito poético, pois não seria lembrança se aquele não fosse elemento essencial na captação
da imagem selecionada. Sendo assim, é este sujeito poético o responsável pela manutenção
desse mundo rememorado, que toma corpo pela reconstrução poética de lugares por onde
passou, pela experiência de pertencer àqueles arredores, como em “Carta a Manoel” quando
diz:
Manoel, vamos por aí fora
Lavar a alma, furtar beijos, colher flores,
Por esses doces, religiosos arredores,
Que vistos uma vez, ah! não se esquecem mais:
Torres, Condeixa, Santo António de Olivais,
Lorvão, Sernache, Nazaré, Tentúgal, Celas!
Sítios sem par! Onde há paisagens como aquelas?
Santos Lugares, onde jaz meu coração,
Cada um é para mim uma recordação...57
Outro modo de (re)construir o mundo ausente é a descrição da vida dos poveiros,
homens do mar e que vivem dele, seres admirados pelo sujeito poético por terem ligação com
o passado náutico da nação e por integrarem a sua infância encantada. Desse povo retira o
drama da existência, os pormenores de um cotidiano cercado por sacrifícios e perseverança.
Mitifica, faz folclore com o seu cotidiano de sofrimento, com a sua luta pela sobrevivência,
com a simplicidade de pessoas sem sobrenomes importantes, e ao se referir a elas usa
simplesmente, por exemplo: o “Joaquim da Teresa”, o “Francisco da Hora”, o “Zé do
Telhado”, nada mais, porque esse é o modo como eram conhecidos.
Pode-se dizer que “António” ou “Anto” aproximasse mais do povo por reconhecer a
sua força diante dos obstáculos que a vida oferece. Com eles sente-se seguro, integrado,
porque ambos sofrem, mas resistem, como essa descrição do soneto de nº “8”:
Far-me-ia outro, que os vossos interiores,
De há tantos tempos, devem já estar
57
Cf. Só, p. 123.
35
Calafetados pelo breu das Dores,
Como esses pongos em que andais no Mar!
Ó meu Pai, não ser eu dos poveirinhos!
[...]58
No prefácio de João de Barros em O Povo na Literatura Portuguesa, lemos que o
povo é o grande responsável “pela fundação de Portugal, a causa determinante da sua
existência, e será sempre a garantia firme do seu futuro” 59. Por isso, talvez, haja a preferência
no Só em ressaltar as virtudes e os sofrimentos desse povo através de personagens
representativas dele, como pescadores, coveiros, amas, caseiros, homens rudes que
idolatraram “Anto” durante a sua infância e adolescência e conviviam com suas
excentricidades. Exemplifica essa presença e esse apego às pessoas a ama Carlota,
caracterizada como:
Boa velhinha como ela é meiga e devota!
Já estaria bem se me valessem rezas.
E, no Oratório, tem duas velas acesas
Noite e dia, a clamar à Senhora das Dores!
E queima-lhe alecrim, põe-lhe jarras com flores
E sei, até, que prometeu uma novena,
Se eu escapar... Como tudo isso me faz pena!
E trata-me tão bem! como se eu fosse
Seu filho. Dá-me, olhai, pratinhos de arroz doce
Com as iniciais do meu nome em canela, [...] 60
Outro exemplo são as lanchas dos poveiros, os pescadores de Oitocentos relacionados
à grandiosidade dos navegadores da esquadra de Vasco da Gama; vejamos esse trecho de
“Lusitânia no Bairro Latino”:
Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes
“As armas e os barões assinalados...” 61
58
Cf. Só, p. 198.
Fernão Lopes, et al, O povo na Literatura Portuguesa, Seleção e prefácio de João de Barros, Lisboa,
Ed.Guimarães & Cia, [ ca 1908], p.9
60
Cf. Só, p. 240.
61
Idem, ibidem, p. 99.
59
36
Está patente nesses versos que, através dessas pessoas humildes, durante as
rememorações, o sujeito poético também demonstra a saudade do passado glorioso, do tempo
áureo da pátria. E a saudade do império marítimo quinhentista desponta não somente pela
simples relação entre os pescadores de hoje e os grandes marinheiros da nação imperial, mas
sobretudo porque um e outro são, no seu tempo, os desdobramentos possíveis do ser
português, do destino marítimo daquele país, daquele povo. Isso também excede a simples
demonstração da dicotomia passado/presente.
Vale lembrar que é significativa a forma como a saudade se apresenta no Só. Nele a
saudade repercute como expressão de amor: amor pela pátria, pelos amigos, pela natureza,
pela família e, acima de tudo, pelo próprio sujeito poético. Mesmo quando sua origem se dá
pela mais completa solidão ou ausência de algum bem, não há conotação de revolta na obra.
Apenas um esmorecimento com relação ao futuro, por vezes percebemos projeções mais ou
menos positivas em relação ao porvir, mas elas ficam obnubiladas pela reiterada busca pelo
passado. O sujeito simplesmente tenta (re)integrar-se ao passado traçando uma trajetória na
qual funde o seu desejo pessoal, de retorno à infância, com a história passada e gloriosa de
Portugal.
Do presente preserva o convívio com pessoas simples, por vezes miseráveis, que só
podiam compartilhar com ele a sua dor ou quando muito demonstrar admiração por este
sujeito narcisicamente superior, envolvido pelo sentimento de incompreensão e uma inegável
tristeza. O sujeito poético é caracterizado como alguém que na infância teve todos os mimos
das amas e familiares e que no presente sente-se só, numa queixa plangente, quase infantil. Na
verdade, o sujeito poético faz o caminho inverso, sob a perspectiva psicológica do seu
desenvolvimento: quando adulto volta seus olhos para o passado e anseia pela infância que
outrora teve. Para retornar a este passado isola-se em seu mundo, como relata: “...desde então,
não mais saí de casa./ Há muito, que não vejo uma flor, uma asa,/ Há muito já, que não sorvi o
mel dum beijo...”62 e decepcionado reconhece o tempo perdido, a impossibilidade do retorno
completo, porque a vida adulta o aflige, e, por conta disso, tenta por si mesmo desfazer o
engano de crer numa infância infinita, quando diz:
Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
[...]
62
Cf, Só, p. 239.
37
Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, a distância!63
Quase como num refrão da obra, reconheceu que “Menino e moço, tive uma Torre de
leite,/ Torre sem par!”64, evidenciando, numa completa evocação da sua infância feliz,
acompanhada pelo verbo no passado, a sua perda. Ou ainda, quando sente falta dos deleites de
menino, recupera de uma só vez a família, a aia amada, a casa natal. “É nesse ambiente que
vivem os seus protetores”65, são eles que o confortam e são as visões do lar à distância que
reavivam as lembranças de proteção subtraindo o sujeito, por instantes, da dor atual, como
sugerem os versos do soneto “16”:
Ah pudesse eu voltar à minha infância!
Lar adorado, em fumos, a distância,
Ao pé de minha Irmã, vendo-a bordar:
Minha velha Aia! conta-me essa história
Que principiava, tenho-a na memória,
“Era uma vez...”
Ah deixem-me chorar!66
Na sua busca pela “Torre de leite”, símbolo de vida, anseia pelo contato de mãos que o
levem pelo caminho já percorrido do passado, pelo ouvir histórias contadas pela ama, pela
presença da mãe que, ausente até o momento do reencontro, que acontece no poema final da
obra, “Males de Anto II (Meses depois, num cemitério)”, é substituída por outras mulheres,
como Nossa Senhora, Purinha, a avô e Carlota, potencialmente capazes de protegê-lo dos
males do mundo e de satisfazer seus desejos. Aliás, é de um poema da seção “Entre Douro e
Minho” que nos vem a imagem de uma das mais importantes figuras femininas do Só: a
Purinha. O poema que recebe o mesmo nome da sua figura central define metaforicamente a
mulher ideal como aquela que possui características de anjo, de santa, de ermida e a inocência
de uma criança. Predestinada a se casar com o sujeito poético por exprimir uma
espiritualidade elevada, mística, quase etérea, “a noiva ideal” acaba por ser encontrada por
uma fada madrinha que interpelada pelo eu-lírico aponta para um reino ao pé do mar:
Portugal. Trata-se de uma referência aos contos de fadas e à impossibilidade de realização real
63
Cf. Só, p. 187.
Idem, ibidem, p. 92.
65
Gaston Bachelard, A poética do espaço, São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 27.
66
Cf. Só, p. 206.
64
38
de uma cerimônia descrita como um sonho pela fixação de femme fragile da figura da
Purinha , por pertencer ao:
...gênero de beleza feminina que continua, com características próprias muito
significativas, a concepção básica romântica da mulher angelical. Trata-se
geralmente de um tipo de mulher jovem, ou mesmo de acentuados traços
infantis (femme-enfant ou femme-fleur), pálida e esguia, de aspecto cândido
e virginal...67
Justamente os caracteres que definem e idealizam a noiva Purinha, a afastam do
sujeito poético, uma vez que a representam como a mulher virgem e pura, que pode levar o
homem à perfeição pelo seu modelo de pureza, de elevação espiritual. É isso que o sujeito
ama, mais do que a própria mulher, e é essa femme fragile o oposto de todas as Salomés,
recorrentes na poética decadentista e simbolista, que conduzem o homem à perdição. Segundo
José Carlos Seabra Pereira, em “A dúplice exemplaridade do Só”68, não há nenhum tratado de
Tordesilhas entre o Decadentismo e o Neo-Romantismo, com isso devemos considerar que se
a figura feminina da Purinha, aparentemente, é afastada da figura demoníaca, ilustrada por
Salomé, de modelo decadentista ou simbolista, ainda assim ela mantém alguns traços sutis do
decadentismo como a presença do amor fatalmente não consumado.
Há de se notar que “Nobre não cantou muito a saudade pela mulher amada”
69
, o seu
saudosismo é mais profundo, mais subjetivo, prefere o reencontro com o seu eu, distante no
tempo, à realização amorosa. Todas as recordações surgem à medida que lembra a si mesmo,
afirmando, assim, o seu desejo de viver como “grande”. Pela saudade, evoca a lembrança das
pessoas que realmente conviveram com ele no passado, procura nelas algo de si, tenta
afirmar-se, manter-se vivo, continuar sua criação poética, mesmo quando se encontra na mais
fecunda solidão, como nos versos iniciais do poema “Lusitânia no Bairro Latino”:
...............................Só!
Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó,
Que não ama, nem é amado, [...] 70
67
Maria Manuela Gouveia Delille, “A figura da ‘Femme Fragile’ e o mito de Ofélia na lírica juvenil e no ‘Só’
de António Nobre”, in Colóquio de Letras, nº 127/128, p.117, Janeiro-Junho de 1993.
68
José Carlos Seabra Pereira, “A dúplice exemplaridade do Só”, in Colóquio de Letras, nº 127/128, p.39,
Janeiro-Junho de l993.
69
Francisco Casado Gomes, O elemento mar na obra de António Nobre, Porto Alegre, Livraria Globo S/A,
1958, p. 149.
70
Cf. Só, p.91.
39
Por isso, no Só a recuperação do passado e das tradições nacionais se dá pela memória
individual e coletiva do sujeito poético que sente saudades e revive o Portugal nortenho de
Oitocentos e o povo que lá habitava. A memória individual constitui, entre outras coisas, as
reminiscências da infância, a história dos antepassados de “António”/ “Anto” e lugares nos
quais o sujeito poético esteve. Contudo, não é possível falar de uma memória individual pura
ou seja, independente da coletiva, já que ambas mantêm pontos de contato. Exemplo disso são
todos os acontecimentos da nossa vida, envolvidos por uma história geral, naturalmente, mais
ampla do que a nossa história individual. Mesmo porque a amplitude da memória coletiva se
justifica por conter as tradições, a religiosidade e elementos identificadores de um povo,
compondo, desse modo, a representação efetiva, integral, nacional, desse povo. Assim,
também não é difícil de entender o processo pelo qual, no Só, as revivescências individuais
evocam as nacionais, coletivas, sobretudo se, considerando o anteriormente exposto,
atentarmos para a constituição narcísica de “Anto”.
No Só, a memória individual ocorre quando o sujeito poético, numa das operações da
memória, entra em estado de cisma. A cisma é por si um momento de oposição, de
desconforto com o real, de tentativa de composição de uma vida plena, já vivida ou desejada.
Quando ocorre a cisma o sujeito poético deixa de viver o presente, retoma, via rememoração,
momentos já vividos e reconstitui poeticamente ambientes, pessoas e fatos históricos. Dito
isso, é possível propor a classificação da memória na obra de António Nobre em três tipos:
paisagística, religiosa e histórico-social.
Quando a memória é paisagística, o enquadramento dos elementos recuperados se dá
sempre em regiões que possibilitem reconstruir ou conservar elementos, embora geográficos,
constituintes do eu. Sendo assim, podemos iniciar a reconstrução da paisagem portuguesa a
partir do dístico “Nasci, num Reino d’Oiro e amores, / À beira-mar.”, que aparece no segundo
poema do Só, intitulado “António”. Os lugares são importantes referências para o sujeito
poético já que as mudanças empreendidas nesses lugares acarretam mudanças importantes na
vida e na memória quer do indivíduo, quer do grupo/da coletividade. Ao se referir a sua pátria
por meio da palavra “Reino”, por exemplo, o sujeito poético deixa entrever que a
representação do seu país, por vezes, pode ser mítica, se não em forma de conto de fadas,
buscando, assim, no imaginário constituir a pátria com características positivas, como o
dourado do ouro como fonte de luz ou como indicador de riqueza, prosperidade, que não se
encontravam no mundo real. Na memória paisagística temos a reprodução freqüente do
ambiente nortenho de Portugal, contudo devemos esclarecer que essa memória paisagística é
40
importante também para representar o País e que ela não é composta apenas pelas paisagens
do norte de Portugal.
No Só, pouco ou nada se retrata das cidades ou da industrialização iminente,
diferentemente do que acontece na poesia de Cesário Verde, por exemplo, que nos pinta a
Lisboa moderna do século XIX em fragmentos como esses do poema “O Sentimento de um
Ocidental”:
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições países:
Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo!71
Na obra de António Nobre a tecnologia é vista com reserva; é vista também como algo
que divide espaço com a natureza, sem, no entanto, substituí-la, como neste fragmento do
soneto de nº “12”:
Não repararam nunca? Pela aldeia,
Nos fios telegráficos da estrada,
Cantam as aves, desde que o Sol nada,
E, à noite, se faz sol a Lua Cheia.
[...]
E as boas aves, bem se importam elas!
Continuam cantando, tagarelas:
Assim, António! deves ser também. 72
O ambiente rural nortenho é tão importante no Só que não é apenas recorrentemente
evocado e representado em muitos poemas, como também merece uma seção inteira
“dedicada” a sua representação. Na seção “Entre Douro e Minho”, o poeta integra os poemas:
“Purinha”, “Canção da Felicidade (Ideal dum Parisiense)”, “Para as Raparigas de Coimbra”,
“Carta a Manoel”, “Saudade”, “Viagens na Minha Terra”, “Os Figos Pretos” e “Os Sinos”.
Quase todas essas composições são datadas de Paris e constituídas por uma evocação saudosa
da terra natal. A mulher é caracterizada de forma mítica, a paisagem é idealizada, assim como
a alma portuguesa, como observa Maria Ema Tarracha Ferreira73 na Introdução do Só.
71
Vitorino Nemésio. Portugal “A terra e o homem”, Viseu, Arcádia, 1978, p.43.
Cf. Só, p. 202.
73
Maria Ema Tarracha Ferreira, “Só”, in António Nobre, Só, 3ªed. Braga, Ed.Ulisséia, 2001, p. 63.
72
41
Vejamos como a paisagem é idealizada em alguns dos poemas da seção “Entre Douro
e Minho”:
Na “Canção da Felicidade (Ideal dum Parisiense)” fica expressa a vontade do sujeito
poético de ter uma vida simples, longe das aflições das grandes metrópoles como Paris, como
reporta, em contraste, o subtítulo do poema. Descreve a paisagem portuguesa e a maneira
ideal de viver: frente ao mar, em uma casa simples e caiada, sem as tribulações dos estudos,
apenas o saber “ler e contar”74, esposa e filhos, como os poveiros, objeto de sua admiração.
Metonimicamente faz referência a Leça ao citar o “Zé da Ponte”, homem que segundo
Augusto Nobre alugava barcos para passeios no Rio Doce. Ainda em busca da felicidade, o
sujeito poético em outro poema dessa seção, confirma o seu apego às coisas simples ao
discorrer os elementos rurais mais preciosos em “Purinha”. Por meio da evocação saudosa da
sua terra natal faz a fusão entre a “noiva ideal” e o meio ambiente em que ela está inserida. O
que nos leva a acreditar que o desejo quimérico de união entre o sujeito poético e sua “BemAmada”, possa também ser entendido como a sua possibilidade de aproximação de uma
natureza iluminada, pura e livre, como podemos destacar nos versos em que Purinha é
descrita :
E o seu seios serão como dois ninhos,
E os seus sonhos serão os passarinhos,
E será sua boca uma romã,
Seus olhos duas Estrelinhas da Manhã!
Se corpo ligeiro, tão leve, tão leve
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de supor estar a ver, ao vê-la
Cabrinhas-montesas na serra da Estrela...75
Ou mesmo, que esse encontro desempenhe a função de irradiar esperança para o sujeito
poético que tem como cenário as “[..] salas escuras, chorando saudades...”76, distante da
realidade almejada, muitas vezes só encontrada nas imagens da infância.
No poema “Viagens na Minha Terra”, o sujeito poético, estimulado pelas braseiras,
retorna à infância construindo um mundo todo seu, do qual faz parte seres e objetos (como o
livro de Garrett) que testemunharam ou integraram a sua felicidade, numa narrativa
emocionada de reencontro com o passado. Nele, o sujeito poético, transformado em menino, é
conduzido por meio de uma viagem imaginária a uma paisagem perfeita, “Cheia de Cor, de
74
Cf. Só, p.113.
Idem, ibidem, p.105.
76
Idem, ibidem, p.108.
75
42
Luz, de Som”77. Paisagem essa comparada ao ventre da própria mãe, denunciando aqui as
duas filiações do eu-poético: a primeira, a familiar, materna, e a segunda, a pátria. Exprime
com essa atitude um nacionalismo espontâneo, o seu amor pelas pessoas, costumes e
paisagens portuguesas.
Na “Carta a Manoel” encontramos a perfeita comunhão entre os estados de alma do
sujeito poético e a paisagem de Coimbra. Na primeira parte, durante a descrição da cidade
universitária, o sujeito poético está entregue à melancolia e ao arrependimento por lá estar,
quando diz:
Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paisagem triste, triste,
A cuja influência a minha alma não resiste.78
O exemplo acima comprova que a paisagem contida no Só é fruto de uma constante
observação do indivíduo sobre o ambiente em que se encontra e com o qual se relaciona, é
exemplo também de que a paisagem interfere no indivíduo – atitude que a poesia moderna
explora na perspectiva do expressionismo. Isso é muito sutil em Nobre (acontece muito
pontualmente), mas importante em outros – como Cesário Verde. Sobre esse tema Teixeira de
Pascoaes observa que:
[...] a reflexão da paisagem no homem é activa e constante. A paisagem não
é uma coisa inanimada; tem uma alma que actua com amor ou com dor sobre
as nossas idéias ou sentimentos, transmitindo-lhes o quer que é da sua
essência, da sua vaga e remota qualidade que, neles, conquista ação moral e
consciente. 79
Talvez esta afirmação não se aplique totalmente ao nosso poeta, já que muitas vezes o
que acontece no Só é o inverso: a natureza transformada em quadros pelo sujeito poético
recebe uma carga de representatividade daquele que a observa, capaz de adequá-la a sua
“imagem e semelhança”. Por isso, o enquadramento se dá sempre em regiões que possam
reconstruir ou conservar elementos constituintes do eu, como os ambientes familiares (casa
dos pais e da avó), a praia, o mar, lugares onde se cultiva a terra, em meio às procissões e
festas – quase que exclusivamente o ambiente rural e simples de Portugal.
77
Cf. Só, p.131.
Idem, ibidem, 118.
79
Teixeira de Pascoaes, Arte de ser português, Lisboa, Edições Roger Delraux, 1915, p.71.
78
43
Sobre a influência da natureza sobre o indivíduo é interessante destacar um dos textos
de Madame de Staël80: “A poesia do norte e a poesia do sul”, que parte do pressuposto de que
a literatura possa ser dividida a partir de dois pólos: o sul e o norte. Madame de Staël observa
que a ausência do sol afeta a personalidade das pessoas que vivem mais ao norte do planeta,
alterando a sua maneira de encarar o mundo, tornando-as mais pessimistas e ligadas à morte.
Influenciadas por elementos supersticiosos e religiosos; com a ausência de claridade, essas
pessoas criam ambientes ambíguos, passíveis de representar uma realidade equivocada, para a
qual entregam o próprio destino, sem deixar de sonharem com um lugar perfeito, livre das
aflições da alma. Há mesmo um descontentamento com relação à realidade presente e desta se
afastam por meio de ambientes propícios ao intimismo. Freqüentemente o sujeito destas obras
fica frente a frente com o mar, com a neblina, com lareiras ou fogueiras, ou mesmo
permanece em ambientes fechados como torres de castelos, conventos, quartos etc., sempre
entregues à melancolia, pois a ação da natureza promove a transformação do ser, tornando-o
nebuloso como o mundo exterior.
Por outro lado, Mme.de Staël observa que o clima ameno do sul determina o princípio
de servidão e da liberdade dos seres, e curiosamente:
Para ela, os gregos habituavam-se mais facilmente à servidão, devido ao fato
de terem um clima ameno e o amor às artes [...]; já os homens do Norte,
vivendo numa terra ingrata, viam na independência o ideal de felicidade [...].
Desse modo se explica a ânsia de liberdade, a essência individualista e a
força de vontade entre os nórdicos.81
Porém, devemos aqui esclarecer que as emoções vividas pelo povos do norte ou pelos
povos do sul podem se repetir em qualquer parte do mundo, já que a sensibilidade e a
compreensão dos fatos no ser humano resultam em emoções próprias da nossa Natureza.
Na seção “Entre Douro e Minho”, ainda encontramos o convite, que o eu-poético faz
para Manoel em “Carta a Manoel”, para conhecermos os lugares por que tem apreço a partir
do seu recorte de paisagem. Desfila, assim, um rosário de cidades, “Torres, Condeixa, Santo
Antônio de Olivais,/ Lorvão, Sernache, Nazaré, Tentúgal, Celas!”82. Retrata a vida na
Universidade de Coimbra: “Vida claustral, bacharelática, funesta”83, somente para aumentar o
valor desses lugares iluminados pelo sol, assim como a alma do sujeito poético que pede uma
80
Madame de Staël, De la littérature du Nord (Considérée dans ses rapports avec), Tome premier, Paris, 1959.
Madame de Staël. “A Poesia do Norte e a Poesia do Sul”. Apud GOMES, Álvaro Cardoso; VECHI, Carlos
Alberto. A estética Romântica (Textos Doutrinários Comentados). São Paulo, Editora Atlas S.A., 1992, p.61.
82
Cf. Só, p. 123.
83
Idem, ibidem, p.120.
81
44
trégua à tristeza. Num entusiasmo contagiante, de quem precisa contar cada detalhe, recupera,
por meio da memória, visões, sensações e lamenta: “Que pena que não ouças!”84. Porém, o
convite não é só feito a Manoel, também Georges (do poema “Lusitânia no Bairro Latino”, de
outra seção e, no Só, anterior a em tela) é convidado pelo sujeito poético a conhecer o seu
país, que agora é de romarias e de marinheiros – é convidado a conhecê-lo por meio da
descrição minuciosa do trabalho dos poveiros, dos perigos do mar, das festas religiosas,
enfim, do mundo não industrializado que se harmoniza com a natureza, como na descrição:
Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré, [...]85
Com isso, concluímos que a distância é fator primordial para que pessoas e lugares
ganhem importância para o “Pobre moleiro da Saudade”86. Primeiro a sua estada em Coimbra
promove pela memória a reconstrução de Leça e Seixo, mais tarde de Paris promove
Coimbra. Quase se anulam as diferenças entre as cidades, se antes Coimbra era fonte de
decepção, “...triste, em seu aspecto moiro...”, com a ausência da mesma, transforma-se através
da saudade em lugar “...sem par, flor das cidades...”. Por isso, é importante a evocação da
memória na obra, nela encontramos o mecanismo de transformação, pois longe a maioria das
coisas ganha outro aspecto, figura-se melhor: “Era a distância, o além, que me impressionava:
/Tinha o mistério do Sol-pôr, duma esperança,/ Tudo rolou no solo! [...]”87
Porém, apesar de algumas descrições paisagísticas serem amenas, ainda é possível
visualizar um mundo em conflito que pode ser explicado por outro tipo de memória: a
histórico-social, que metaforicamente tem a sociedade como “o Claustro-Pleno dos
Vencidos”88, tornando as imagens mais dolorosas, com uma nota de inutilidade de todos os
esforços, ampliadas pela consciência da decadência nacional:
84
Cf. Só, p. 121.
Idem, ibidem, p. 97.
86
Idem, ibidem, p. 93.
87
Idem, ibidem, p. 121.
88
Idem, ibidem, p.203.
85
45
E, embora eu seja descendente, um ramo
Dessa árvore de Heróis que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo Ideal:
Nada me importas, País! seja meu Amo
O Carlos ou o Zé da T’resa... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!89
Ao tratarmos dessa decadência nacional podemos discorrer sobre um dos fatores que a
desencadearam: de acordo com José Hermano Saraiva, foi a evolução econômica e política
acidentada do século XIX que levou ao acirramento da crise, exemplo disso, são as seqüelas
positivas e negativas do fontismo90: por um lado, deu-se o crescimento da linha férrea e das
estradas utilizadas para o escoamento da produção do campo. No campo, o aproveitamento de
terras antes improdutivas foi intenso, resultado de uma política de desenvolvimento que só
visava o progresso. Porém, justamente por causa desse progresso, houve a ocupação de terras,
antes consideradas de solo comunal, que foram transformadas em propriedades privadas,
modificando os hábitos de subsistência que passaram da produção própria, para a necessidade
de compra de todo gênero, até mesmo de alimentos. Isso resultou no enriquecimento dos
grandes proprietários e no crescimento de miseráveis no campo. As cidades tornaram-se
atrativas e sinônimo de prosperidade, mas não havia emprego para todos, o que resultou na
emigração de milhares de portugueses para países como o Brasil em busca de uma vida
melhor.
Por diversas vezes, o sujeito poético faz referência ao exílio no Só, como sentido de
solidão, de fragmentação do ser, mas uma delas tem como conotação o enriquecimento:
quando, no poema “Memória”, retrata a história do pai que passa anos longe da terra, para
depois voltar ao seu lugar de origem, registrando, intencionalmente, o contexto histórico da
época.
89
Cf. Só, p.192.
“Em 1852 foi publicado o decreto que abria o concurso para a construção de um caminho-de-ferro entre Lisboa e
Santarém. Os trabalhos foram iniciados por técnicos ingleses e o primeiro troço (Lisboa-Carregado, 36 km) foi
inaugurado em 1856. Os trabalhos prosseguiram com determinação. Em 1864 estava feita a ligação Lisboa-Porto; a
linha terminava em Gaia. A ponte foi inaugurada em 1877. Em 1900 existiam 2371 km de linha e foram
transportados 12 milhões de passageiros e 2,7 milhões de toneladas de mercadoria. Com a via construíram-se
centenas de pontes metálicas (as primeiras do País), dezenas de túneis, cerca de quinhentas estações. [...] O mais
activo realizador deste enorme programa de obras públicas foi Fontes Pereira de Melo, um engenheiro formado pela
Escola Politénica de Lisboa. Daí o nome fontismo dado a política de instalação de vias de comunicação.” Citado por
José Hermano Saraiva in História Concisa de Portugal (3ª edição, Publicações Europa-América, 1979, p.304/305).
Outro dado importante: pelas estradas de ferro chegaram a Coimbra, vindos de França e em caixotes, os livros que
formaram a Geração de 70, como Eça de Queirós destacou.
90
46
Da memória histórico-social obtemos indiretamente a consciência das dificuldades
pelas quais passou a pátria portuguesa em fins do séc XIX e da impotência das ações do
sujeito poético, que reconhece o fracasso pessoal e o coletivo, quando diz:
Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos!
Torres por terra! As árvores sem ramos!
Ó meus amigos! todos nos falhamos...
Nada nos resta. Somos uns perdidos.91
O tom melancólico que perpassa os poemas se acentua quando em alguns momentos o
sujeito poético, surpreendido pelo fracasso nacional, convoca os portugueses para olharem
para o seu País, como nos versos: “Qu’é dos Pintores do meu país estranho,/ Onde estão eles
que não vêm pintar?”92 ou, em outras passagens, nas quais ressalta a penúria dos homens do
campo e do mar, em citações como: “Esmolas distribuindo a este e àquele: e aos ceguinhos/ E
mais aos aleijadinhos”93 ou “Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas,/ Mas de outras
que chorou, de lágrimas salgadas!”94, entre outros exemplos, revelando uma insatisfação, um
inconformismo e até mesmo desgosto pela decadência moral do país, que um dia pelo mar foi
“...Senhor feudal do Mundo!”95
Essa decadência moral de Portugal, em todo o Só, acentua a vibração entusiástica nas
exclamações que conferem a poemas como “A vida” maior agilidade. O passar rapidamente
de um momento para outro, por meio de observações por vezes inusitadas, como essa:
“Quantos suores sem proveito! Quantas taças/ A transbordar veneno em espumantes
bocas!”96, do mesmo poema, faz com que o leitor seja guiado para imagens que variam à
medida que o sujeito poético aumenta a sua aflição em demonstrar o seu mundo em ruínas. A
freqüência com que o poeta utiliza o verbo ver, por exemplo, nos orienta a seguir o caminho
da realidade. Realidade diferente da praticada pelo Realismo, pois agora há uma nova
concepção do mundo visto através da evocação e da memória, por isso questiona: “o que
vês?”97
Para simplesmente responder o “Tédio”, mas como poderia haver tédio se há uma
infinidade de olhares? Há olhares ofélicos, olhares “negros como Noites”, “fontes de luar”,
91
Cf. Só, p. 203.
Idem, ibidem, p. 103.
93
Idem, ibidem, p. 110.
94
Idem, ibidem, p. 177.
95
Idem, ibidem, p. 235.
96
Idem, ibidem, p. 176.
97
Idem, ibidem, p. 175.
92
47
“silenciosos”, “milagrosos”, “Cristãos”, enfim, todos passíveis de enxergar uma nova
realidade, mas não, preferem enxergar “Ódios, Ambições, Faltas de Honra, Vaidade”98, o que
todos têm num país em ruínas.
Depois, como se as injustiças estivessem diante dos nossos olhos, o sujeito poético
desfila uma série de imagens retratando a vida dos menos afortunados e as diferenças sociais,
como nesse exemplo:
Jesus! Jesus! Quantos doentinhos sem botica!
Quantos lares sem lume e quanta gente rica!
Quantos Reis em palácio e quanta alma sem férias!
Quantas torturas! Quantas Londres de misérias!
Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças! 99
Considerando o Só de forma panorâmica, podemos dizer que o sujeito poético é aquele
que vê e descreve nitidamente imagens, com cores vivas, capazes de presentificar o ausente,
capazes de trazer por meio da memória todas as sensações de espanto diante da inutilidade
dos esforços.
E por último a memória religiosa substituindo “a mística ocultista, metapsíquica ou
sumptuariamente ritualizada dos decadentes da escola francesa ou portuguesa por um
catolicismo supersticiosamente católico”100 intensificado pela aproximação do sujeito poético
com homens simples, incultos, que envolvidos pelo mistério entregam suas vidas às orações e
aos rituais católicos, com apelos por proteção:
Senhora dos aflitos!
Martyr São Sebastião!
Ouvi os nosso gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!101
Alberto de Oliveira em um artigo de memórias no volume Pombos Correios, de 1913,
justifica a escolha pelo catolicismo por ele e por seus amigos, dentre os quais António Nobre,
e declara que:
98
Cf. Só, p. 175.
Idem, ibidem, p. 176.
100
Óscar Lopes, “O Simbolismo no Porto”, in Revista Nova Renascença, Vol.IX, p.166, Porto, 1989.
101
Cf. Só, p. 99.
99
48
Éramos pois todos neomísticos e hieráticos. Os nossos livros chamava-lhe
bíblias ou livros de horas, os nossos poemas de amor soavam e exprimiam-se
como ladainhas, a hóstia e incenso tinham o seu lugar marcado nos nossos
ofícios líricos e panteístas. O aspecto exterior desses volumes era de missais,
e mesmo de antigos missais, impressos em papel de linho a que um banho de
imersão de chá preto dava nódoas e a cor da velhice, e para cuja
encadernações recorríamos de preferência às rijas carneiras dos infólios dos
nossos avós.102
Porém, no Só, podemos observar algumas “crendices e superstições”103 que mancham
esse catolicismo castiço, uma vez que o sujeito poético recorre aos santos e reproduz os rituais
católicos em alguns dos seus poemas. Como no poema “Purinha” com versos que reproduzem
os ensinamentos de Cristo (contidos no Evangelho): “Dar de comer a quem tem fome/ Dar de
beber a quem tem sede...”104. Ou na magia dos mistérios que ninguém sabe explicar, como
nesses versos do “Lusitânia do Bairro Latino”:
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mão invisíveis levam-nos de rastros
Que eles mal sabem andar. 105
Ou ainda recuperando tradições:
Com uma Cruz de pau, braços ao Sul e ao Norte,
Para mostrar que, ali, se fizera uma morte:
Ora (é um costume) quando alguém vai de longada,
Ao ver aquela Cruz, que parece uma espada,
Deita uma pedra: cada pedra é uma oração.106
Em outros momentos, o sujeito poético identifica-se como o médio, o diabo, o lua, e,
mais tarde, no final da sua trajetória, em “Males de Anto I”, confessa que “Não tinha fé
nenhuma ‘em um doutor humano’/ Que só a tinha no Sr. Dr. Oceano”107 esquecendo-se de
toda proteção pedida à Virgem, seja para si:
102
Óscar Lopes, “António Nobre e o neogarrettismo de Alberto de Oliveira”, in Entre Fialho e Nemésio, Maia,
Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1987, p.68.
103
No poema “António” o sujeito poético menciona que as almas saem à meia-noite ou que o sujeito evoca as
almas. (Só, p.85)
104
Cf. Só, p.110.
105
Idem, ibidem, p.101.
106
Idem, ibidem, p.237.
107
Idem, ibidem p.244.
49
Lá vem a carlota que embala uma aurora
Nos braços e diz:
“Meu Lindo Menino, que Nossa Senhora
O faça feliz!”108
seja para os outros:
Que noite! ó minha irmã Maria
Acende um círio à Virgem Pia,
Pelos que andam no alto mar...109
Devemos considerar as imagens selecionadas pelas memórias paisagística, religiosa e
histórico-social, no Só, como elementos de reconstrução de um momento ideal, como reservas
matriciais de um tempo de ouro para o indivíduo e de uma pátria gloriosa no passado e que,
ambos, sujeito e nação, a partir daquele modelo ainda podem se reerguer. Imagens que
possam justificar a dor do sujeito poético que absorveu e refletiu a dor do povo, por excesso
de amor próprio e por amor ao seu país.
Para complementar, citamos o trecho abaixo de Boris Schnaiderman, que delimita a
função da poesia que reconhecemos nas composições de Nobre:
[...]A poesia serve à sociedade testemunhando-a, interpretando-a, registrando
as diversas fases espaciais e temporais de sua expansão e evolução. Nisso, a
poesia é como toda arte: um documento vivo, expressivo, do estado de
espírito de certo povo, em dada região, numa época determinada. A poesia,
aliás, é incomparável quando registra – com a capacidade condensadora e
mnemônica de que só ela é capaz – certas nuanças de ponto de vista, de
atitude, de sentimento e de pensamento, individuais como coletivos, nuanças
essas que, muitas vezes, são bem mais expressivas de um povo e de uma
época do que os grandes acontecimentos. 110
Passemos, então, ao estudo do poema “Lusitânia no Bairro Latino”, no qual
consideramos presente os três tipos de memória apresentadas. Como se trata de uma
composição relativamente longa, a transcrevemos integralmente na seqüência, mas
consideraremos, em cada um dos capítulos seguintes, cada uma das partes que integram o
tríptico “Lusitânia no Bairro Latino”.
108
Cf. Só, p.81.
Idem, ibidem, p.81.
110
Boris Schnaiderman, “Tempo, Literatura, História, Algumas Variações”, in Literatura e sociedade, São
Paulo, USP/FFLCH/DTLLC, 1996, p.33.
109
50
“LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”
.........................Só!
Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó,
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês de Abril!
Que triste foi o seu Fado!
Antes fosse pra soldado,
Antes fosse prò Brasil...
Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar...
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram de sua lã.
António era o pastor desse rebanho:
Com elas ia para os Montes, a pastar,
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e todas puras
E só lhes minguava a fala
Pra serem perfeitas criaturas...
51
E quando na Igreja das Alvas Saudades
Que era da minha Torre a freguesia)
Batiam as Trindades,
Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava «Ave-Maria...»
E as doces ovelhinhas imitavam-me.
Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite...
Um dia, os castelos caíram do Ar!
As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rotas e velhas!
Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antes doido, antes cego...
Ai do Lusíada, coitado!
Veio da terra, mailo seu moinho:
Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
Hoje, fazem-no andar águas do Sena.,.
É negra a sua farinha!
Orai por ele! tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade...
Ó minha
Terra encantada, cheia de Sol,
Ó campanário, ó Luas Cheias,
Lavadeira que lavas o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
Ó ceifeira que segas cantando,
52
Ó moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando,..
Flores dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, ó regas de Verão!
Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?
Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca de fiar,
Cabelo todo em caracóis!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzóis!
Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! ó Sol! foguetes! ó toirada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões d’ água fresca e limonada!
Ó romaria do Senhor do Viandante!
Procissões com música e anjinhos!
Srs. Abades d’Amarante,
Com três ninhadas de sobrinhos!
Onde estais? onde estais?
Ó minha capa de estudante, às ventanias!
Cidade triste agasalhada entre choupais!
Ó dobres dos poentes às Ave-Marias!
Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia1
Estrada de Santiago! Sete-Estrelo!
Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...
Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo,
Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como esposos e lagartas!
Sr. Governador a podar as roseiras!
Ó Bruxa do Padre, que botas as cartas!
53
Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!
Que é feito de vós?
Faláveis aos barcos que andavam, lá fora,
Pelo porta-voz...
Arrabalde! marítimo da França,
Conta-me a história da Formosa Magalona,
E do Senhor de Calais,
Mais o naufrágio do vapor Perseverança,
Cujos cadáveres ainda vejo à tona...
Ó farolim da Barra, lindo, de bandeiras,
Para os vapores a fazer sinais,
Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,
Dicionário magnífico de Cores!
Alvas espumas, espumando a frágua,
Ou rebentando à noite, como flores!
Ondas do Mar! Serras da Estrela d’ água,
Cheias de brigues como pinhais...
Morenos mareantes, trigueiros pastores!
Onde estais? onde estais?
Convento d’águas do Mar, ó verde Convento,
Cuja Abadessa secular é a Lua
E cujo Padre-capelão é o Vento...
Água salgada desses verdes poços,
Que nenhum balde, por maior, escua!
Ó Mar jazigo de paquetes, de ossos,
Que o Sul, às vezes, arrola à praia:
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos!
Corpo de Virgem, que ainda veste a saia,
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadáver ainda com véu...
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
54
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta...
Bocas abertas que ainda soltam ais...
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...)
Ó defuntos do Mar! Ó roxos arrolados!
Onde estais? onde estais?
O Boa Nova, ermida à beira-mar,
Única flor, nessa viv’alma de areias!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da Senhora, coberto de luzes!
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios...
Ó Sant’ana, ao luar, cheia de cruzes!
Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita...
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pela areia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. Dom Pedro, Rei soldado,
Atracou, diz a História,
No dia,.. não estou lembrado;
Ó capelinha do Senhor d’ Areia,
Onde o senhor apareceu a uma velhinha...
Algas! farrapos do vestido da Sereia!
Lanchas da Póvoa, que ides à sardinha,
Poveiros, que ides para as vinte braças.
Sol-pôr, entre pinhais...
Capelas onde o Sol faz morte, nas vidraças!
Onde estais?
55
2
Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!
Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda hi, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força,
Clamam todas à uma: «Agora! agora! agora!»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:
Snra Nagonia!
Olha, acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!
Senhora Da guarda!
(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!
56
Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Calluda!
Sêmos probes!
Snr dos ramos
Istrella do mar!
Cá bamos!
Parecem Nossa Senhora, a andar.
Snra da Luz!
Parece o Farol...
Maim de Jesus!
É tal e qual ela, se lhe dá o sol!
Snr dos Passos!
Sinhora da Ora!
Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...
Snr dos Navegantes!
Senhor de Matuzinhos!
Os mestres ainda são os mesmos d’antes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar...
Senhora dos aflitos!
Martyr São Sebastião!
57
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!
Ó lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!
Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
«As armas e os barões assinalados...»
Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ela corre! com que força o Vento a impele:
Bamos com Deus!
Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com ele
Por esse mar de Cristo...
Adeus! adeus! adeus!
3
Georges! anda ver meu país de romarias
E procissões!
Olha estas moças, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis!
Têm nas orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
58
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito.
Que hão-de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão
Estralejam foguetes e morteiros.
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem Torres de David, na amplidão!
Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos no vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis levam-nos de rastros
Que eles mal sabem andar.
Esta que passa é a Noite cheia de astros!
(Assim estava, em certo dia, na Judeia!
Aquele é o Sol! (Que bom o sol de olhos pintados!)
E aquela é a Lua Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
(Vê! d’entre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
59
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
Criança em flor que ainda não os tem.
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mas ela sabe, a inocentinha,
Nas suas mãos, a Esponja deita mel:
Abelhas d’oiro tomam-lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha
Traz ainda o sangue de Sexta-Feira...
Passa o último, o Sudário!
O corpo de Jesus, Nosso Senhor...
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o sol-pôr...
Que pena faz vê-lo passar em Portugal!
Ai que feridas! e não cheiram mal...
E a procissão passa. Preamar de povo!
Maré-cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su'alma beata.
Trazem imagens da Função nos seus chapéus.
Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro,
O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!
Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.
Passam as chocas, boas mães! passam capinhas.
Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca de Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!
60
À porta dum casal, um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro Mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas do moribundo.
Dança de roda mailas moças o coveiro,
Clama um ceguinho:
«Não há maior desgraça nesta vida,
Que ser ceguinho!»
Outro moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...»
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o Sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...
Que lindos cravos para pôr na botoeira!
Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobs! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Delíriums-tremens! Quistos!
Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam «uma esmolinha p’las alminhas
Das suas obrigações!»
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar...
Qu'é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão eles que não vêm pintar?
61
Paris, 1891-1892
“LUSITÂNIA
NO BAIRRO LATINO”: A MEMÓRIA E AS
DESILUSÕES DO PRESENTE
Completamente só, o sujeito poético do poema “Lusitânia no Bairro Latino” inicia o
seu percurso de exilado com um infinito desânimo da vida evidenciado pelo significativo e
enigmático primeiro verso da primeira parte do tríptico: a palavra “só” antecedida por
reticências. Aparentemente o poema já inicia com uma conclusão: a condição solitária do eupoético. Para E.M. de Melo e Castro, em seu artigo “António Nobre, poeta do texto”111, a
posição do vocábulo no final do verso garante a possibilidade de interpretações variadas, não
explícitas, deixadas à imaginação do leitor. Por outro lado, para quem utiliza o exemplar que
pertenceu ao poeta (exemplar da 1ª edição) descobre uma posição inversa para a palavra “só”.
Nele a palavra encontra-se no início do verso seguida por reticências; em ambos os casos,
devemos considerar o estado de solidão de Anto e as emoções não declaradas, sinalizadas pela
pontuação. Contudo, na primeira edição, a intenção de apresentar o texto, aparentemente, é
mais solta do que a da edição revisada, uma vez que o fato de não encerrar as idéias (com o
emprego das reticências) tem um impacto menor do que um primeiro verso já antecipando
taxativamente a condição de solidão do sujeito poético (“................................Só!”), que se
confirma no percurso dos poemas.
Independentemente da maneira como é interpretado, o primeiro verso do “Lusitânia no
Bairro Latino” revela que António Nobre sempre se preocupou com as disposições das
palavras em suas composições: mais do que a simples representação de sentimentos ou
objetos, a palavra é algo que sobre a página em branco ganha mais um significado. Exemplos
disso são a diversidade das formas dos diversos poemas que compõem o Só, o uso freqüente
de reticências, de pontos de exclamação, de repetidos vocábulos (“ver”, “ainda”), das
metáforas inusitadas, da opção formal derivada das camadas significativas das palavras, como
ocorre nessa estrofe do soneto de nº “12” que ganha aspecto de linguagem telegráfica:
Revolução!
111
Inútil.
Cem feridos,
E.M. de Melo e Castro. “António Nobre, poeta do texto”, in Marli Fantini Scarpelli; Paulo Motta Oliveira, Os
Centenários: Eça, Freyre, Nobre, Belo Horizonte, Fale/ UFMG, 2001, p. 90.
62
Setenta mortos.
Enfim, feliz!
Beijo-te! Perdidos!
? ! Desesperado.
Vem112
Voltemos ao “Lusitânia”. Na seqüência da análise do primeiro painel do tríptico, os
versos:
Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó,
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês de Abril!113
retratam a condição daquele que é solitário, digno de dó e sugerem a ausência de ligações
amorosas do sujeito poético que, mesmo durante os meses da primavera quando
simbolicamente o amor floresce nos corações humanos, para ele não ocorrem os ciclos das
estações, os ciclos de vida, e os meses continuam tristonhos como o outono. Se observarmos
melhor o verso “Que não ama, nem é amado” percebemos que o resultado das duas ações: não
amar e não ser amado cria um vazio na vida do sujeito poético, afinal se não há a quem se
dedicar e se não há quem se preocupe com esse ser, então não há motivos também para ele
continuar a viver; assim quando no soneto “18” o sujeito poético é interpelado sobre a
importância de uma família para se manter vivo, o mesmo responde que tudo são “Quimeras,
sonhos, bolas de sabão.”114
A ausência de relações afetivas do sujeito poético se justifica a partir da necessidade
quase masoquista de sofrer, por considerar o seu fado o mais triste, a sua predestinação a mais
trágica (lembremos que no poema “António” o sujeito poético tem como dia de nascimento
um dia aziago: uma terça-feira). Por isso, não poderia realmente haver a realização no amor,
mesmo porque, no Só, a única mulher passível de amar amorosamente o sujeito poético e por
ele ser amada é Purinha, ser perfeito, modelo de mulher ideal, porém quase etérea. As outras,
como Santa Iria que tem como atributos traços sacralizantes, de caráter mariano e virginal e
Aninhas da Eira, prima de António por parte de pai também não apresentam a possibilidade
da realização amorosa. Conclui-se então que, com a mulheres no Só caracterizadas dessa
maneira o sujeito poético elimina qualquer ameaça à sua solidão narcísica.
Falando de si como se fosse um outro, o sujeito poético reconhece a infelicidade do
seu fado e exaltando a sua condição de exilado português, “Que vem de tão longe, coberto de
113
114
Cf. Só, p.91.
Idem, ibidem, p.208.
63
pó”, lamenta ter sorte ainda pior que a daqueles que eram soldado ou iam para o Brasil –
destino considerado de “seres inferiores”: e “Antes fosse pra soldado,/ Antes fosse pro
Brasil...”. Utilizando um pouco da história para compreendermos esses dois versos, temos os
seguintes conceitos: ser soldado, no passado, na época das grandes navegações, era uma
posição importante na sociedade portuguesa. Camões tinha sido soldado, a grandeza da pátria
tinha se dado a partir das ações de homens como ele; ser soldado tinha um sentido elevado de
coragem, de possibilidade de se morrer por um ideal. No século XIX, porém, após a vinda da
família real para o Brasil (em 1807), em decorrência da invasão das tropas napoleônicas, ou
após o Ultimato Inglês (em 1890), que confirmaram a fraqueza dos homens que regiam e
protegiam o país, ser soldado deixou de representar a coragem dos navegadores de
Quinhentos e passou a indicar a impotência da pátria diante dos perigos externos. Mantendo a
idéia negativa para sobressaltar a sua dor como maior, o sujeito poético lamenta não ser como
os milhares de degredados que, em Oitocentos, deixaram Portugal para tentar enriquecer no
Brasil – ação de quem não havia feito fortuna na própria pátria, uma forma de enriquecimento
pouco elevada que exigia o distanciamento da terra natal e concomitantemente o sofrimento
pela separação dos entes queridos.
Direta ou indiretamente encontramos nessa primeira
estrofe elementos que nos fornecem episódios importantes da História do Portugal de
Oitocentos.
É importante aqui dizer que a análise do poema “Lusitânia no Bairro Latino” não se
dará apenas pela sua contextualização em sua data de criação (Paris, 1891-1892), mas também
pela perspectiva de o referido poema ser
... uma trama já em si mesma multidimensional; uma trama em que o eu
lírico vive ora experiências novas, ora lembranças da infância, ora valores
tradicionais, ora anseios de mudança, ora suspensão desoladora de crenças e
esperanças. A poesia pertence à História Geral, mas é preciso conhecer qual
é a história peculiar imanente e operante em cada poema.115
O movimento da segunda estrofe nos leva a tomar um novo rumo na análise de
“Lusitânia no Bairro Latino”. É aqui que se inicia o processo de rememoração do sujeito
poético, que não mais se dirige a si, através da terceira pessoa, como se falasse a um outro,
mas sim pela pessoalíssima primeira pessoa do singular, e maneira a tornar o que será exposto
mais íntimo, numa espécie de relato resgatado pela memória de alguém que tem algo a contar.
115
Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia, São Paulo, Ed. Cultrix, s.d., p. 13.
64
Ainda, os versos da segunda estrofe principiam como uma retrospectiva de vida, delimitando
o período que vai da infância (“Menino”) até a juventude (“moço”), assim temos:
Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite 116
Já de início temos a referência a um dos romances pastoris mais conhecidos da
literatura portuguesa: o Menina e moça, de Bernardim Ribeiro que nos permite pensar na
saudade portuguesa e na vida saudável do campo. Daí a necessidade de definir esse
sentimento, tão comum ao Só, como sendo a mistura da tristeza, da alegria, da melancolia, da
esperança e do orgulho que, somados, transformam-se na parte imaterial do homem português
e fornecem à sua alma uma caracterização especial. Ter saudade é conviver com o passado
pacificamente, é saber recuperar pela memória um momento já vivido e aperfeiçoá-lo e
envolvê-lo em novas nuanças. Em contraposição a esse aspecto positivo da saudade temos o
soneto de nome “Menino e moço” que não permite a ilusão do sonho ou a nostalgia do
passado. A infância chega ao fim e as lembranças cedem lugar ao pessimismo e desencanto
presentes, vejamos os dois últimos tercetos do poema:
Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, a distância!
Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais:
Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...117
Também podemos a partir dessa obra de Bernardim refletir sobre outras leituras feitas
pelo sujeito poético do Só e que provavelmente o influenciaram ou o completaram pelo
conteúdo significativo que cada uma somou ao seu caráter. Leituras sem títulos, embora
sutilmente esses sejam sugeridos a partir da citação do nome de seus escritores: “No seio, um
livro e lia, lia,/ Garrett da minha paixão...”118 ou por passagens como essa: “Que são em preto
os Olhos Verdes de Joaninha...”119, numa referência a obra Viagens na minha terra do escritor
Almeida Garrett que fez a viagem real por Portugal para depois transpô-la para a ficção. Em
sua homenagem no Só encontramos um poema com o título homônimo de “Viagens na minha
116
Cf. Só, p. 91.
Idem, ibidem, p.187.
118
Idem, ibidem, p. 136.
119
Idem, ibidem, p.175.
117
65
terra”. Esse poema segundo Álvaro Cardoso Gomes, em seu texto “Memória e evocação em
António Nobre”, é um importante exemplo da “perene escavação da memória e a constante
postura evocativa, para, através de estímulos puramente sensoriais, mergulhar num tempo
virginal”120, como podemos visualizar nessa reprodução da memória paisagística do poema
acima citado:
Às vezes, passo horas inteiras
Olhos fitos nestas braseiras,
Sonhando o tempo que lá vai;
E jornadeio em fantasia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pai. 121
Sobre Garrett, sabemos que era um dos autores de predileção de António Nobre por
terem a mesma ideologia sobre a pátria portuguesa. Ambos sonhavam com a ascensão do
país, com a preservação dos mitos, do popular em função da recuperação de uma sociedade
estagnada e decadente, viam o tempo de Quinhentos como o momento em que Portugal foi
grande e, por isso, modelo para o Portugal decadente de Oitocentos.
Depois desse percurso pelos autores citados por Nobre voltamos para os três primeiros
versos da segunda estrofe (“Menino e moço, tive uma Torre de leite,/ Torre sem par!/
Oliveiras que davam azeite”
122
) que funcionarão quase como um refrão, que ora antecedem
as alegrias da infância, ora as desilusões do presente e que marcam o momento a partir do
qual o sujeito olha para trás e vê uma época muito melhor, denominada como a infância.
Nessa época de inconsciência ou de engano (a infância), o indivíduo não se vê ameaçado pelo
cruzamento do inconsciente coletivo com a sua individualidade, ainda não percebe o conflito
entre a sua intimidade e o mundo ao redor, talvez por esse motivo a criança permaneça
inconsciente da sua dor, apesar dela já existir. Só a reconhece no momento em que se dá a
transição da infância para a vida adulta, quando o trajeto do engano para o desengano
finalmente acontece. Nessa trajetória do desengano se descortina toda a intimidade do sujeito
poético misturada ao conteúdo histórico e cultural do seu povo e inesperadamente o que se
considerava particular, individual, passa a ser na verdade parte do o coletivo, o reflexo de
multidões inteiras, com suas características singulares, suas angústias e frustrações. Daí a
escolha de António Nobre por temas ligados à cultura e história portuguesas. O próprio poema
120
Álvaro Cardoso Gomes, “Memória e Evocação em António Nobre”, in Voz Lusíada (Revista da Academia
Lusíada de Ciências, Letras e Artes), nº 17, p.127, São Paulo, 2002.
121
Cf. Só, p. 131.
122
Idem, ibidem, p. 91.
66
“Lusitânia no Bairro Latino” é prova dessa poesia panorâmica que fala ao mesmo tempo do
mar, da terra, das mazelas do povo, da religiosidade milenar como se tratasse do próprio
sujeito poético como porta-voz do passado e do presente dos portugueses.
Por conta dessa dicotomia entre o presente que decepciona e o passado que acalenta é
que compreendemos a preferência no Só pelo símbolo da “Torre de leite”. Preferência
justificada pela possível associação feita entre esses dois elementos: a torre e o leite com o
percurso de vida do sujeito poético. Se pensarmos que o momento vivido mais positivo de
“António” foi a infância e que o leite representa nessa fase o alimento que nutre o corpo,
podemos então considerar o ato do aleitamento como fonte de vida, pois o símbolo do leite é
estritamente ligado à criança, que depende desse líquido vivificador para continuar a se
desenvolver, e à sua mãe que o fornece. Dessa relação entre a criança e a mulher que o gerou,
deduzimos que o ato de amamentar conduz ao equilíbrio psicológico e físico pelo contato do
filhote com a sua mãe. No Só esse contato é rompido pelo desaparecimento da mãe de
“António” em “Memória”, talvez por isso em algumas passagens da obra encontramos um
sujeito poético em desequilíbrio consigo e com a natureza que o circunda, como em “...Mas
que me deixe em paz! Ah tu não imaginas/ Quanto isso me faz mal! [...] Histeriza-me o
Vento, absorve-me a alma toda...”123 Também encontraremos nessa suposição motivos para
crer na representação no símbolo da “Torre de leite” como sendo a própria vida do sujeito
poético nas suas características mais relevantes: o retorno à infância e a representação da
visão interior do que vai na sua alma.
Sobre esse contexto de retorno à infância, a torre pode ser comparada ao ventre
materno, lugar ideal de proteção e aconchego almejados por “António” desde o poema
“Memória”, no qual perde a mãe, que também pode ser considerada como “torre” de apoio e
segurança, até o final da sua trajetória em “Males de Anto II” quando simbolicamente
encontra esse aconchego na cova. Se pensarmos nessas construções fechadas: caixão, cova,
torre, que freqüentemente aparecem no Só, encontraremos lugares ideais para o reencontro do
sujeito poético, por meio da cisma ou da rememoração, com o seu mundo “sem par” e
mágico, já que eles simbolizam a proteção contra o mundo exterior, ou ainda, usando de
medidas temporais, contra o presente.
Da representação do mundo interior podemos considerar a vida de “António” como
um acúmulo de experiências, por vezes, amargas e uma busca incessante de tranqüilidade, só
encontrada nos momentos já vivenciados no passado. É essa correspondência de sensações
123
Cf. “Carta a Manoel”, in Só, p. 118.
67
entre o sujeito poético e Portugal que nos faz crer na representação da infância na obra como a
representação do passado histórico do país. Ambos sofrem, mas a ação é praticada pelo
sujeito poético que, diante da possibilidade de afastar-se dos momentos de dor, se fecha em
uma torre, seja ela de leite ou mais palpável a “torre de Anto”, para encontrar-se de novo
consigo. Consideremos esse trecho do poema “Meu cachimbo” como índice dessa intenção de
isolamento e busca por algo perdido:
Ó meu cachimbo! Amo-te imenso!
Tu, meu turíbulo sagrado!
Com que, Sr. Abade, incenso
A Abadia do meu passado
Fumo? E ocorre-me à lembrança
Todo esse tempo que lá vai,
Quando fumava, ainda criança,
Às escondidas do meu Pai.
[...]
Por alta noite, às horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para falar contigo a sós.
E a noite perde-se em cavaco,
Na Torre d’ Anto, aonde eu moro! 124
Mais uma vez, não devemos esquecer que a torre d’ “Anto” ou de leite é “sem par” e
solitária como o próprio sujeito poético que quando volta para si enxerga tão longe quanto a
sentinela que defende o castelo dos perigos (a torre é o local mais alto do castelo; é o local de
onde se vê ao longe. Simbolicamente, portanto, pode ser o lugar privilegiado para o sujeito
poético olhar para si, seja pela amplitude do olhar, seja pelo isolamento). Evidentemente esse
ato de enxergar concentra-se mais no interior do ser, que vê a si mesmo e o Portugal da sua
infância em todas as suas tonalidades. Contudo, a “Torre de leite” é mais acessível do que a
“Torre de marfim” dos simbolistas. Esta última tem o hermetismo e a obscuridade apenas
compreendida por poucos iniciados, o que não acontece no Só, que já na primeira edição do
livro nos diz: “António é vosso”125 fazendo com que compartilhemos a sua dor e a sua solidão
como se fossem nossa.
124
125
Cf. Só, p. 153.
Idem, ibidem, p. 77.
68
Mesmo assim, ambas as torres têm em comum o sentimento de medievalismo e
misticismo do poeta (António Nobre dizia sofrer de Medievalite) e com isso a possibilidade
de retorno aos espaços mais primitivos, com visões paradisíacas, bastante ligadas a motivos
bíblicos, conferem à infância a credencial para entrar nesse reino de magia e claridade, como
nessa seqüência ainda da segunda estrofe:
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar...
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram da sua lã.126
Uma característica interessante é o aspecto cromático do trecho citado, pois chama à
atenção para a luminosidade que acompanha a descrição paisagística da infância: As vacas
são loiras, as ovelhas são brancas, assim como o leite, denotando, assim, uma quase obsessão
por essa cor que para os simbolistas denotava a pureza, a vaguidão, o mistério, ou mesmo a
fonte de luz que sempre está presente nas imagens do paraíso cristão.
Ainda sobre esse aspecto das cores nesse fragmento da “Lusitânia”, surge
concomitantemente à visão do paraíso cristão, com suas cores claras, a sua oposição nos mitos
do fim do mundo quando ocorre o escurecimento das cores. O rito da queda que transforma o
“Menino e moço” em “Pobre Moleiro da Saudade” com a sua farinha negra, tem paralelo com
o gênero literário apocalíptico caracterizado por uma linguagem de queda e ascensão marcada
pela simbologia. Nesse tipo de texto há uma vasta lista de
Símbolos animais, vegetais e humanos, assim como numéricos e cromáticos,
[que] opõem-se e complementam-se em pares antitéticos que ilustram a luta
entre as forças do Bem e do Mal (crentes/ pecadores; oprimidos/ opressores)
traduzida, de uma forma geral, pela oposição luz versus trevas.127
Um livro bastante significativo sobre essa temática é o Apocalipse segundo São João
(datado dos finais do século II a.C.). O Apocalipse é uma revelação feita por Deus a um
visionário, para que esse transmita aos homens coisas ocultas entre o céu e a terra. Apesar da
estranheza que nos causa algumas das suas revelações, justificadas por estarem estritamente
126
Cf. Só, p. 92.
Maria Teresa Pinto Coelho, Apocalipse e regeneração (O Ultimatum e a mitologia da Pátria na literatura
finissecular), Lisboa, Edições Cosmos, 1996, p.32.
127
69
ligadas aos acontecimentos do seu tempo, como por exemplo, a perseguição dos cristãos por
Nero e Domiciano,
forças do mal
que causaram abalo no valor da morte de Cristo e o seu triunfo sobre as
, o texto nos fornece reflexões históricas e teológicas que podem ser válidas
na atualidade.
Segundo Maria Teresa Pinto Coelho há nessa obra símbolos de ascensão, de
superioridade, ligados a aspectos positivos, representados por cores claras e certos animais,
como o cordeiro, e outros de esferas inferiores, negativos, esquematizando a descida,
representados com cores mais escuras, como o Dragão do Apocalipse. Nos exemplos citados,
o cordeiro manterá relações benignas de significado com a cidade ligada ao mundo espiritual
ou superior: Jerusalém; e o dragão participará do reino humano da luxúria e da perdição:
Babilônia.
Vejamos como esses trechos da Bíblia recuperam o simbolismo cromático na visão
joanina do Apocalipse, quando a grande prostituta ou Babilônia, a capital do reino anticristão,
é assim descrita:
Vi uma mulher sentada numa besta cor de escarlate, cheia de nomes de
blasfêmia, com sete cabeças e dez chifres. A mulher se vestia de púrpura e
escarlate, estava adornada de ouro e pedras preciosas e pérolas, e tinha na
mão uma taça de ouro cheia de abominação e imundície de sua prostituição.
Na fronte trazia escrito um nome — mistério — : “Babilônia, a grande, a
mãe das prostitutas e das abominações da terra”128
E em oposição à descrição da prostituta, a do cordeiro:
Ao virar-me vi sete candelabros de ouro. No meio, alguém
semelhante a um filho de homem, vestido de túnica longa até os pés e com o
peito cingido por um cinturão de ouro. A cabeça e os cabelos eram brancos
como lã branca e como a neve. Os olhos eram como chamas de fogo. Os pés,
semelhantes ao bronze incandescente no forno, e a voz de muitas águas. Na
mão direita tinha sete estrelas e da boca saía uma espada afiada de dois
gumes. O aspecto do rosto era como o sol, quando resplandece em toda sua
plenitude129.
É nítida a oposição entre essas imagens a partir do significado dado às cores no livro
de Apocalipse. Reconhecemos o vermelho como símbolo da violência, o branco da vitória, o
preto da morte etc., sendo assim, os aspectos positivos e negativos se destacam em ambos os
textos. Na última descrição, a plenitude da imagem de um homem ligado ao céu, por meio da
128
129
Bíblia Sagrada, 7ª edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1982, p. 1453.
Cf. Bíblia Sagrada, p.1465.
70
luz que emana do seu próprio corpo, ilumina como o sol a vida daqueles que crêem que
mesmo em grande sofrimento podem alcançar a paz e vida eterna.
O livro interpretado por muitos apenas como o fim dos tempos é na verdade uma
mensagem de esperança para aqueles que sofrem perseguições e um grande martírio, já que
esses, segundo suas obras, serão eleitos a participar de um reino de fato feito por Deus, do
qual um dia o homem foi expulso, de acordo com a teologia cristã.
Como no Apocalipse, o Só também compartilha desse sentimento de queda. Em
momentos de profunda desesperança política e social, há passagens nas quais nem a vida tem
mais valor, nelas Portugal ganha aspectos de Babilônia e o país se transforma em uma visão
do purgatório, de sofrimentos e de renúncia a um futuro melhor, como sugere o soneto “13”:
Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos!
Torres por terra! As árvores sem ramos!
Ó meus Amigos! todos nós falhamos...
Nada nos resta. Somos uns perdidos.
Choremos, abracemo-nos, unidos!
Que fazer? Porque não nos suicidamos?
Jesus! Jesus! Resignação... Formamos
No Mundo, o Claustro-Pleno dos Vencidos.130
Por outro lado, se o Apocalipse pode ser visto como passagem para um futuro
próspero, resultado da escolha feita pelo homem sobre o caminho a seguir, então também
podemos entender o retorno ao passado no Só como caminho escolhido para o reencontro do
país ideal e da paz desejada pelo sujeito poético.
Podemos observar isso nas imagens evocadas que inspiram a fecundidade e a
abundância no “Lusitânia no Bairro Latino”. Os animais como a vaca e a cabra substituem a
figura materna criando um ambiente de aconchego e de perfeita sintonia entre o homem e a
natureza (lembremos que essa harmonia também ocorreu no paraíso cristão). A imagem
evocada pela memória é serena e a natureza funciona perfeitamente na sua tarefa de dar o
alimento e a proteção da lã, além do mais, existe a parceria com a entidade religiosa São
Lourenço que ajuda aqueles que andam pelo mar, numa referência direta às crenças religiosas
do sujeito poético. Essa junção homem e natureza com a esfera religiosa é mais facilmente
percebida nesse trecho da terceira estrofe do poema “Lusitânia no Bairro Latino”:
António era o Pastor desse rebanho:
130
Cf. Só, p. 203.
71
Com elas ia para os Montes, a pastar.
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e todas puras
E só lhes minguava a fala
Para serem perfeitas criaturas...
E quando na Igreja das Alvas Saudades
(Que era da minha Torre a freguesia)
Batiam as Trindades,
Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava “Ave-Maria...”
E as doces ovelhinhas imitavam-me.” 131
Sobre o tema da religiosidade, José Carlos Seabra Pereira, na sua obra O essencial
sobre António Nobre, considera:
O Só chama a si com freqüência figuras, preces e práticas de religião
católica; e não sofre dúvida que, sem embargo de golpes de erosão céptica, a
atmosfera que, a par desse imaginário, gera no Só várias asserções ou
insinuações opinativas, pode ser tida como a de uma mundividência religiosa
de uma ética de piedade cristã. Mas também se pode colocar tudo isso sob a
suspeita de conjuntural concessão do sujeito de enunciação a valores e
vivências dos seres evocados na dramatização da sua lírica.” 132
Já Agustina Bessa-Luís percebe a paisagem do Só como teológica no sentido em que
aproxima as coisas da terra com as coisas de Deus, possibilitando a “identificação final do
mistério das coisas com as pessoas que as incorporam” 133.
Também podemos considerar que a voz que revela o mundo mágico do “Menino e
moço” seja consciente da passagem do tempo e de que o momento ideal está no passado. É a
partir da narração, que já principia com o verbo no passado, que o contexto de vida desse
“Pastor” flui com a naturalidade e a magia inerentes ao homem do Jardim do Éden antes da
sua expulsão. Prova disso é que o “Pastor” de condutor de um rebanho passa a ser a imagem
que se irmana com os animais, por serem essas criaturas “puras” e dignas de apreço. A
plenitude da imagem evocada completa-se com a ação de se alimentar do sujeito poético. No
poema há alimento para o corpo (o pasto) e alimento para a alma (a prece) que somados
culminam na reprodução de ritos religiosos, como a persignação que os animais imitavam.
131
Cf. Só, p. 92.
José Carlos Seabra Pereira, O essencial sobre António Nobre, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2001, p.37.
133
Cf. Os Centenários: Eça, Freyre, Nobre. Belo Horizonte, p.22.
132
72
Temos nesse momento no poema o adensamento da espiritualidade do sujeito poético e a
certeza de que só no passado ele encontrou a paz tão desejada. Sobre António Nobre, João
Gaspar Simões destaca que “O futuro não lhe inspirava poemas. O presente não lhe dava
emoções. Para Nobre tudo era passado. Eis como a sua obra é uma evocação melancólica
daquilo que ele imagina ter sido belo, ter sido amável, ter sido digno de ser vivido e
lembrado.”134
E se é verdade que o sujeito poético se reflete nas figuras que evoca, fatalmente
durante esse período de evocação do passado haverá uma trégua entre o mundo ideal e o
presente, entre a necessidade de rodear-se por todos os lados das sensações outrora vividas na
infância e a percepção das aflições que esgotam as suas forças no presente. Por isso, a
rememoração dos momentos vividos representa muito mais do que uma fuga dos problemas
atuais, ela representa a própria tentativa de continuidade de vida do sujeito poético que se
submete à imaginária exclusão dos tempos presente e futuro para concentrar-se nas suas
lembranças e delas tirar o sustentáculo para continuar vivo. Essa é uma das originalidades de
António Nobre, que viria a ser repetida na prosa anos depois pelo escritor francês Marcel
Proust.
A seqüência que vai agora iniciar o trajeto do desengano e da queda retoma o refrão
“Menino e moço...” e numa reviravolta denuncia a perda do paraíso:
[...]
Um dia, os castelos caíram do Ar!
As Oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rotas e velhas!
Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antes doido, antes cego...
Ai do Lusíada, coitado! 135
Se antes havia o tempo da edificação constituído pelos aspectos positivos da vida no
campo, agora o que resta ao sujeito poético é a certeza do desmoronamento desse momento
ideal. É diante de toda essa perda, dessa conotação de violência empregada, que a felicidade
134
João Gaspar Simões, António Nobre (Precursor da poesia moderna), 2ª edição, Lisboa, Ed.Inquérito, 1939,
p.33.
135
Cf. Só, p. 93.
73
da infância é bruscamente substituída por outro momento mais negativo, com conceitos de
morte e de falência individual dos sonhos, que contêm em si a falência nacional. Mais uma
vez a voz do poema reconhece o seu destino fatal, a sua predestinação à angústia ou a algo
pior é ampliada pelo advérbio “Antes”, três vezes empregado nessa passagem do engano para
o desengano, como sugestão para outros males como: a imobilidade do aleijado, a falta de
domínio da própria mente pelo “doido” e a escuridão do “cego”. Todos esses males surgem
agora como contraste ao momento anterior que continha o movimento de quem “... ia para os
Montes, a pastar”136 sob a luz alva da fé, da natureza e do sentimento de plenitude alcançada
pela evocação da Idade de Ouro. Todos esses males reunidos encontram o seu auge no desejo
de inconsciência do presente. Encontrar-se depauperado, com poucas chances de recomeço,
pois só restaram “As velas do moinho... mas rotas e velhas!”137, causa uma grande dor ao
“Lusíada” que transformado em coitado pode ser metaforicamente visto como a nação
portuguesa após a crise histórica de 1890, quando o Ultimato Inglês lançou sobre o país uma
onda de desalento e de consciência dolorosa da perda da soberania, outrora conquistada pelo
mar em meados de Quinhentos.
O Ultimato Inglês foi de extrema importância para a história de Portugal no século
XIX, visto que as questões políticas portuguesas na África desafiavam grandes potências,
como Inglaterra, França e Alemanha. Durante os acordos entre esses países, o Ministro Barros
Gomes, buscando manter os domínios africanos, apresenta em 1887 à Câmara dos Deputados
um mapa, resultado das negociações com os países citados acima, no qual os territórios
portugueses, que se estendiam do Atlântico ao Índico, eram pintados com a cor rosa, os
domínios da Inglaterra coloridos com azul, os da França com verde e, por último, o da
Alemanha com castanho.
Conhecido como o Mapa Cor-de-Rosa, o que equivale dizer, sonho português de
pretensões imperiais, o mapa reforçava na sua apresentação o passado dos portugueses como
conquistadores.
Isso não convenceu as demais nações européias e questões como a da
Maxolândia e a zona do Niassa, descoberta segundo os portugueses em 1616 por Gaspar
Bocarro, não bastaram para convencer, principalmente, os britânicos dos direitos adquiridos
pelos portugueses. Esbarrando nos interesses da Inglaterra, as relações entre esses antigos
aliados começaram a deteriorar-se. Ainda mais quando Salisbury, “refutando aos argumentos
de Barros Gomes e acusando-o de não basear as suas afirmações numa prova em como os
portugueses haviam ocupado, colonizado ou governado os territórios que reclamavam como
136
137
Cf. Só, p.92.
Idem, ibidem, p. 93.
74
seus”138, insistiu na declaração portuguesa de que não interfeririam no Niassa, nem no Chire,
nem nas áreas protegidas pelos ingleses. Como o governo português não cedeu
espontaneamente à pressão estrangeira, em 11 de janeiro de 1890, por meio da força física, o
binômio superioridade versus inferioridade teve como resultado o conhecido Ultimato Inglês
que afastava os portugueses dos territórios pretendidos pela Inglaterra e punha fim ao sonho
de Portugal outra vez se reerguer pela colonização de terras conquistadas durante a época da
expansão ultramarina.
Da apaixonada questão que envolveu a opinião pública no final dos Oitocentos vemnos à memória um povo que motivado pela imprensa e líderes políticos defendeu seus legados
na África confiantes num passado glorioso e na vitória no presente. Por isso, a notícia do
Ultimato é recebida como um grande ultraje, uma catástrofe de proporções de final de mundo,
resultando até em violência em manifestações populares. Aflorado o sentimento patriótico, a
nação portuguesa passa então a reconstruir os seus valores nacionais. A imprensa contribui
como força regeneradora e expõe a opinião de intelectuais como Antero de Quental que de
forma realista lembra que não é clamando contra a Inglaterra que a nação tornará a crescer,
mas sim com investimento na indústria e na educação. Aliás, ao contrário do que a literatura
decadentista fazia crer, a sociedade portuguesa nunca deixou de crescer, nem antes, nem
depois do Ultimato – embora crescesse de modo bem mais lento, se comparado às potências
Alemanha, França e Inglaterra.
De qualquer modo, o Ultimato repercutiu de forma traumática na psicologia coletiva e
continuou a refletir as desilusões da pátria em temas literários, por exemplo, o exílio. No
percurso do “Lusíada” que:
Veio da terra, mailo seu moinho:
Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
Hoje, fazem-no andar as águas do Sena...
É negra a sua farinha!
Orai por ele! tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade...139
Encontramos duas referências geográficas que marcam o exílio do sujeito poético por
meio da distância física entre dois rios importantes: o Mondego, de Portugal, e o Sena, que
atravessa a cidade de Paris. O rio português representa dentro da obra a afinidade do poeta por
138
Cf. Maria Teresa Pinto Coelho, Apocalipse e regeneração (O Ultimatum e a mitologia da Pátria na literatura
finissecular), p. 55.
75
sua terra natal. Está ligado às saudades das raparigas, ao amor e aos tempos idos como
estudante; nessa perspectiva traz o desejo de retorno à pátria. Por outro lado, segundo as
considerações de Maria Ema Tarracha Ferreira, na Introdução apensa a uma edição mais ou
menos recente do Só, que aqui estamos utilizando, o rio também tem a função de recuperar a
tradição lírica portuguesa, quando no poema “Saudade”, por exemplo, apresenta
características da cantiga de amigo e é invocado pela personagem “Irene” para dar notícias do
noivo ausente:
Meu St.º Mondego, que voas e corres,
Não tenhas vagares!
Mondego dos Choupos, Mondegos das Torres,
Mondego dos Mares!
Mas ai! o Mondego (Senhora da Graça,
Sou tão infeliz)
Já foi e já volta, lá passa que passa,
E nada me diz... 140
Apenas para complementar, podemos dizer que há outro aspecto mais sombrio, mais
triste, sobre o Mondego, é o que repassa como num jogo de espelhos a natureza personificada
que sofre e se reflete no sujeito poético, aumentando a sua histeria nervosa, como no poema
“Carta a Manoel”:
Vá! dize aos choupos do Mondego que se calem
E pede ao Vento que não uive e gema tanto:
Que, enfim, se sofre, abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! [...] 141
Sobre o Sena, o que importa dizer é que a partir do exílio ele é a paisagem que convive
com o sujeito poético por cortar a capital da França, a cidade de Paris. Cidade que no século
XIX era o centro irradiador cultural e artístico, atraente aos jovens de todas as partes do
mundo por oferecer a expectativa de uma vida agitada e divertida. Sobre o nosso poeta que
viveu em um dos mais tradicionais bairros boêmios da França, o Bairro Latino, sabemos por
meio da sua correspondência e pela sua poesia que esse bairro não o seduziu e em passagens
como: “Bairro Latino! Dorme um pouco,/ Faze, meu Deus, por sossegar!”142, do poema
140
Cf. Só, p. 130.
Idem, ibidem, p. 118.
142
Cf. Só, p. 86.
141
76
“António”, ou “... se soubesse a impressão que faz um livro português lido e cismado, neste
banal Paris embirrento de civilização”143, da carta endereçada a Manuel da Silva Gaio,
podemos considerar que o Bairro Latino e a própria cidade de Paris, na verdade,
representavam o oposto do que havia no seu interior totalmente preenchido pela dor da
saudade e que Paris nada mais era do que a quimera do progresso. Assim, também como
quimera podemos considerar a época do “Menino e moço”, agora transformada em sofrimento
pelo “Pobre Moleiro da Saudade”, que merece pena.
Acerca da poesia do Só escrita em Paris, Guilherme de Castilho afirma que é uma
poesia de crise. Essa observação é importante na medida em que entendemos que o processo
de criação da obra ocorreu durante um momento de conflito entre o sujeito e o ambiente em
que esse estava inserido. Devemos aqui salientar que o desconforto em relação ao mundo
sempre existiu, porém, é durante o exílio voluntário em Paris que a crise toma proporções
desmedidas. Das cinqüenta e três composições do Só na segunda edição deduz-se que vinte e
cinco foram criadas ou refeitas em Paris. Dessas composições, “Lusitânia no Bairro Latino” é
o exemplo perfeito das operações da memória que permitiram ao poeta afastar-se da realidade
hostil. Nele fica evidente a mistura do indivíduo com o coletivo, da ligação desse com a terra
natal na ação afirmativa de usar, por exemplo, o pronome possessivo “minha” e nas
referências ao ambiente rural, por meio de profissões mais simples, como a lavadeira, a
ceifeira, o moleiro. Todos esses elementos agrupados denunciam a angústia do sujeito
poético, consciente de um tempo perdido, que não retorna, mas cuja beleza ainda se conserva
na memória. Reconstruindo poeticamente partes de Portugal, dá-se a presentificação do
ausente a partir de evocações como essas:
Ó minha
Terra encantada, cheia de Sol,
Ó campanários, ó Luas Cheias,
Lavadeira que lavas o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
O ceifeira que segas cantando,
Ó moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando...
Flores dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, ó regas de Verão!
Que é feito de vocês? Onde estais,onde estais?144
143
144
António Nobre, Correspondência, p. 173.
Cf.Só, p. 93.
77
A partir dessa estrofe que recomeça com “Ó minha/ Terra encantada, cheia de Sol”
retornamos ao passado e percebemos o fluir irremediável do tempo que oscila entre o passado
desejado e o presente de desilusões. A impressão que temos é que o momento em que a
condição como estrangeiro começa a sufocar o sujeito poético, esse faz o corte na realidade e
passa a reconstruir poeticamente o seu território imaginário e essencialmente rural. Território
composto por pessoas e seres inanimados, representantes de um ideal de vida que só se atinge
por meio da saudade e das evocações da memória que reconstituem fielmente a vida desejada.
Por isso, o questionamento “Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?” no
“Lusitânia no Bairro Latino” nos remete ao topos do ubi sunt, que pode diminuir o mal estar
do homem que sente-se desconcertado diante do desmoronamento do seu mundo atingido
pelo passar do tempo e pela inconstância da fortuna. Os questionamentos são acompanhados
por uma série de imagens de lugares e pessoas comuns, fundamentais, na compreensão de que
tudo é efêmero, mas para sempre conservado na memória.
Se o topos do ubi sunt denota a angústia do tempo perdido, daquilo que foi e já não é,
do ausente, os elementos que compõem a memória paisagística de António Nobre, por outro
lado, servem como bálsamo e confirmam a sua ligação afetiva com o Portugal rural e
nortenho através das invocações em forma de ladainha que criam efeitos sonoros e visuais,
como os “sinos das aldeias” que se misturam com a voz da “ceifeira que cegas cantando” e
acrescenta ao imaginário um mundo em movimento e completo. Aliás, o passado é sempre
revestido de movimento, de atividade, a “Lavadeira que lavas o lençol”, os “Carros de bois”
que pelas estradas passam chiando, todos são incluídos num cenário de vida humilde e
glorificada pela seqüência de “ós” que aparecem no poema.
Na seqüência que segue, o poeta com enorme sensibilidade dedica-se aos profissionais
mais simples do seu país como prova de reconhecimento das contribuições anônimas para o
desenvolvimento de Portugal:
Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca a fiar,
Cabelo todo em caracóis!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzóis!
Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! ó Sol! foguetes! ó toirada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões d’água fresca e limonada!
Ó romaria do Senhor do Viandante!
Procissão com música e anjinhos!
78
Srs. Abades d’Amarante,
Com três ninhadas de sobrinhos!
Onde estais? onde estais? 145
Maria Helena Nery Garcez, em seu artigo “O Jogo da Berlinda” trata da temática do
herói nacional e faz questionamentos que convém reproduzir na íntegra:
Será que nestes magníficos carmes de Só, criados em 1891-92, em Paris, não
há bucolismo e heroísmo mesclados? Mais: será que, ao ver com
distanciamento o Portugal rural e dos pescadores, não está ele exaltando não
os que por mares nunca dantes navegados/ Passaram ainda além da
Taprobana mas sim aqueles que em terra ficaram e por velhos caminhos
tantas vezes percorridos deram continuidade ao velho reino, povoando-o e
edificando-o com seu trabalho, ao extrair alimento da terra e do mar? Não é
o heroísmo oculto dos que ficaram e dos que foram e voltaram – tal seu Pai –
que ele celebra e engrandece? 146
Provavelmente, para todos esses questionamentos a resposta seja “sim”; se pensarmos
em apenas um deles, o que muda o foco dos heróis reconhecidos da pátria para aqueles que na
“terra ficaram” e que silenciosamente mantiveram o país de marinheiros, encontraremos uma
legião de humildes no Só que cooperaram com o desenvolvimento da pátria e apenas uma
minoria, quase raridade, apresentada como representantes de profissionais de classes sociais
mais elevadas, que quando surgem estão em atividades simples como o “Sr. Governador a
podar as roseiras”147 .
Depois da representação do trabalho nas aldeias, o poema entra em um ritmo mais
acentuado no qual as vibrações sinestésicas misturam um emaranhado de sensações tácteis
com som, luzes e cores fortes e vibrantes numa listagem convulsiva de tudo o que está ausente
e reproduz um ambiente no qual não há solidão. O sujeito poético rememora a intensidade da
luz do seu país que, durante as romarias e festas populares, tem suas mulheres vestidas com
todas as suas jóias a resplandecer. É o mundo das devoções e da diversão chamando para a
vida que teima em fugir e se mostrar ausente todas as vezes que o topos do ubi sunt retorna
como testemunha direta do tempo perdido, dos males que afligem o indivíduo, como para
deixar claro que tudo não passa de uma ilusão e que as alegrias das imagens recuperadas pela
memória não voltarão jamais.
A seqüência a seguir é longa e baseia-se na memória histórica do sujeito poético:
145
Cf. Só, p. 94.
Maria Helena Nery Garcez, “O Jogo da Berlinda”, in Voz Lusíada (Revista da Academia Lusíada de Ciências,
Letras e Artes), nº 15, p. 6, São Paulo, 2000.
147
Cf. Só, p. 94.
146
79
Ó minha capa de estudante, às ventanias!
Cidade triste agasalhada entre choupais!
Ó dobres dos poentes, às Aves-Marias!
Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia!
Estrada de Santiago! Sete-Estrelo!
Casa dos pobres que o luar, à noite, caia...
Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo,
Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como esposos as lagartas!
Sr. Governador a podar as roseiras!
Ó Bruxa do Padre, que bota as cartas!
Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!
Que é feito de vós?
Faláveis aos barcos que andavam, lá fora,
Pelo porta-voz...
Arrabalde! Marítimo da França,
Conta-me a história da Formosa Magalona,
E do Senhor de Calais,
Mais o naufrágio do vapor Perseverança,
Cujos cadáveres ainda vejo à tona...
Ó farolim da Barra, lindo, de bandeiras,
Para os vapores a fazer sinais,
Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,
Dicionário magnífico de Cores!
Alvas espumas, espumando a frágua,
Ou rebentando, à noite, como flores!
Ondas do Mar! Serras da Estrela d’água,
Cheias de brigues como pinhais...
Morenos mareantes, trigueiros pastores!
Onde estais, onde estais? 148
Num primeiro momento, há a localização geográfica de Coimbra, indelevelmente
associada aos tempos de estudante. No Só, a cidade de Coimbra é na maior parte das vezes
considerada como uma cidade triste, talvez por isso ela seja tantas vezes lembrada pela voz do
poema que por ser também nostálgica e cheia de enganos sofre influência direta da paisagem
ao seu redor. A seguir surge uma série de topônimos e antropônimos que Fernando J.B.
Martinho149 considera essenciais para a presentificação de tudo o que está irremediavelmente
perdido. Dos lugares citados, temos localidades próximas de Leça da Palmeira, como as
“Fortalezas de Lipp”, “Cabo do Mundo” e “Moreira da Maia”, que tinham especial atenção
do poeta por estarem ligados à sua infância e juventude,
as “Fortalezas de Lipp”, por
exemplo, era o lugar para brincadeiras com os filhos do governador António Pinto Leão da
Silva que mantinha o fosso do castelo como um jardim. Também são citadas pessoas do
convívio do poeta como “Joaquim da Teresa!”, “Francisco da Hora” e Maria Cuca, a “Bruxa
148
Cf. Só, p. 95.
Fernando J.B. Martinho, “Metamorfoses de um ‘Topos’ em ‘Lusitânia no Bairro Latino”, in Colóquio de
Letras, nº 127/128, p. 142, Janeiro-Junho de 1993.
149
80
do Padre”. Pela crendice popular, essa mulher botava cartas e segundo diziam, incorporou a
alma do padre depois que esse morreu. Para Annie Gisele Fernandes
... o mundo religioso do Só, no qual o sujeito poético parece estar integrado e
que se manifesta através de imagens e práticas do catolicismo [...] parece ser
manchado, por exemplo, pela crendice e pelo paganismo, patentes em
Espíritos! em vão, debalde por vós clamo/ Hoje, delícias do abandono!/ Vivo
na Paz, vivo no limbo ou pelo panteísmo do Ai Oxalá! Que Pã me
despachasse/ Adido à vossa estranha Legação!150
ou por figuras populares como o “Astrônomo” em “Males de Anto I” e “Ana Coruja”, do
mesmo poema, conhecida também por ler o destino nas cartas.
Se a religiosidade é manchada pela superstição do povo, também o poema que até
agora apresentava configuração bucólica passa a falar do mar, daqueles que viviam dele e de
suas tragédias. Com isso, histórias como a da Formosa Magalona e do Senhor de Calaïs são
relembradas como narrativas populares que gostosamente são recontadas e preservadas pela
memória do povo. Outra história traz um momento mais próximo a necrofilia do sujeito
poético: o naufrágio do vapor “Perseverança”, vapor espanhol que ao colidir com os
rochedos de Leixões teve quase toda a tripulação dizimada. Dessa história, o que vive no
imaginário do povo é a passagem em que a filha do capitão, ao chegar viva à praia, acabou
sendo assaltada e seus dedos cortados para que seus anéis fossem retirados.
Depois, como para encerrar a lembrança dessas histórias, o poeta retoma o cromatismo
anteriormente vivido pelas romarias e festas populares agora com o mar. As bandeiras do
“farolim da Barra” fazem sinais coloridos e significativos para aqueles que navegam, num
ritual de beleza e harmonia entre o homem e o mar. A partir desse trecho, a transposição, no
poema, da terra, do elemento rural, para o cenário líquido do mar, iguala em condição os
“Morenos mareantes” com os “trigueiros pastores”. Por fim, mais uma vez o grito saudoso,
lamentoso, choroso, desesperado, “Onde estais, onde estais?” abre espaço para outro
movimento que agora se ocupa com o gosto mórbido de tornar presentes cadáveres, numa
seqüência horrenda e totalmente oposta às imagens paradisíacas do começo das evocações:
Convento d’águas do Mar, ó verde Convento,
Cuja Abadessa secular é a Lua,
E cujo Padre-capelão é o Vento.
150
Annie Gisele Fernandes, A estrutura dialógica em poemas do Só de António Nobre, Dissertação de mestrado,
São Paulo, UNICAMP, 1996, p. 43.
81
Água salgada desses verdes poços,
Que nenhum balde, por maior, escua!
Ó Mar jazigo de paquetes, de ossos,
Que o Sul, às vezes, arrola à praia:
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos!
Corpo de virgem, que ainda veste a saia,
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadáver ainda com véu...
Ossadas ainda com os mesmo fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta...
Bocas abertas que ainda soltam ais!
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...)
Ó defuntos do Mar! ó roxos arrolados!
Onde estais, onde estais? 151
Nos primeiros cinco versos dessa passagem ocorrem a divinização da natureza. O mar
passa a ser regido pela lua, símbolo do inacessível, do quimérico, do idealizado, e pelo vento,
causador de transformações, nem sempre positivas. Com isso entendemos que o mar
transforma-se num imenso leito mortuário capaz de reter de forma mórbida não apenas os
restos mortais daqueles que morreram no mar, como também reter algo da vida dessas
pessoas. Por isso, os mortos presentes nessa passagem chocam o leitor pela sua ligação com
as vestes, com o poder da fala ou por manter, apesar de imobilizados, os olhos ainda a brilhar.
São essas imagens que fazem coexistir o locus horrendus da realidade vivida por
António com o locus amoenus do retorno ao passado pelas evocações da memória. Desses
dois paradigmas, o locus horrendus consegue, apesar da estranheza que causam as suas
imagens, recriar o belo e o erótico a partir de passagens como essas: “Noivos em núpcias,
ainda, aos beijos, abraçados” ou “Noiva cadáver ainda com véu...”. É preciso observar que
nesses versos e em outros dessa passagem existe uma carga de sensualidade associada à
mulher que, mesmo diante de um cenário grotesco de morte, não diminui. Aliás, o advérbio
“ainda” é duramente empregado como a incapacidade de se concluir a própria morte. Por isso,
a estranheza nas imagens que revelam “Ossadas ainda com os mesmo fatos” ou “Pés de
defunto que ainda traz sapatos!”, já que a morte sugere o despojamento de tudo. Assim, o
leitor passa, no desfilar dessas desgraças, a participar dessa angústia, dessa sugestão de vida
precária como se visualizasse a pátria portuguesa do final de Oitocentos agonizando, com seu
gosto decadentista que permite a aceitação da decomposição do corpo e do seu mundo.
151
Cf. Só, p. 95-96.
82
Por fim, a última parte do primeiro painel do tríptico retorna à vida aldeã e diminui a
intensidade da temática da morte tão empregada na estrofe anterior. Essa estrofe, pelo
contrário, é composta quase na sua totalidade por topônimos que, de forma metonímica,
aproximam-se do tempo da infância pela reapresentação de um cenário de luz e frescor
somente encontrados na rememoração do passado:
Ó Boa Nova, ermida à beira-mar,
Única flor, nessa viv’alma de areais!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios.
Ó altar da Senhora, coberto de luzes!
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios...
Ó Santa’Ana, ao luar, cheia de cruzes!
Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita...
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pelas areia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. Dom Pedro, Rei soldado,
Atracou, diz a História,
No dia... não estou lembrado;
Ó capelinha do Senhor d’Areia,
Onde o Senhor apareceu a uma velhinha...
Algas! Farrapos do vestido da Sereia!
Lanchas da Povoa que ides à sardinha,
Poveiros, que ides para as vinte braças,
Sol-pôr, entre pinhais...
Capelas onde o Sol faz mortes, nas vidraças!
Onde estais? 152
O apego à enumeração de lugares freqüentados pelo sujeito poético em um outro
momento da sua vida demonstra o desejo de preservação da sua história e da sua identidade
que diferentemente da história política do seu país faz questão de esquecer, retirando toda a
solenidade de momentos, como o desembarque de D. Pedro IV na praia de Pampelido ou
Arenosa, ao norte de Leça, usando a irreverência na pontuação e em frases que não
apresentam informações seguras sobre os fatos. O que interessa ao sujeito poético é se manter
firme como a escrita na cal que sobreviveu a todos os infortúnios da natureza.
É importante apontar aqui que a seleção das palavras feita por um poeta como António
Nobre não pode ser vista apenas como simples espontaneidade, justificada por se tratar de um
texto aparentemente simples, no qual a representação do provincianismo de uma aldeia de
pescadores ou de um povo é enfocada nas suas particularidades mais rotineiras. Pelo
152
Cf. Só, p. 96.
83
contrário, segundo o crítico João Gaspar Simões “António Nobre nada tem daqueles poetas
intelectuais [...] nada tem de Fernando Pessoa. Não sei de poeta menos intelectual na poesia
portuguesa. E no entanto não se pode dizer que seja um poeta espontâneo. Nisto está em
grande parte, a sua sedução.”153
No Só, aparentemente, não há a preocupação com a eloqüência ou retórica poéticas.
As palavras fluem de acordo com a quase narração oral dos acontecimentos, com a mesma
naturalidade de uma conversa entre amigos; por isso, ler o Só é fazer-se de ouvinte de um
sujeito poético que se “confessa”, por meio da sua obra, preso a um passado e longe de
algumas das convenções que a literatura da época pregavam. Prova disso são os traços
humanitários da poesia nobreana, responsáveis pela aproximação do leitor desse mundo
íntimo, de tom pessoal e quase trivial. Poucos escritores das literaturas portuguesa e brasileira
deixaram exposta a sua natureza humana, as suas mágoas, anseios e medos como António
Nobre no século XIX. Alguns contemporâneos desse poeta trouxeram para a poesia o tom
quase confessional, mas só mesmo anos depois do aparecimento do Só é que essa tendência à
transparência do ser veio à tona definitivamente com poetas como Mário de Sá-Carneiro,
Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros, que
“narraram” suas vidas em forma de poesia. Vejamos alguns exemplos de versos desses
poetas:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que a vida é porosidade e comunicação. [...]
(Carlos Drummond de Andrade, “Confidência do Itabirano”, )154
ou
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
153
João Gaspar Simões, António Nobre (Precursor da poesia moderna), p. 56.
Italo Moriconi (organizador), Os cem melhores poemas brasileiros do século, Rio de Janeiro, Objetiva, 200l,
p.97.
154
84
no vento [...]
(Cecília Meireles, “Motivo”)155
ou nesse exemplo da literatura portuguesa:
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
[...]
(Mário de Sá-Carneiro, “Dispersão”)156
Por falarem abertamente de temas populares, da dor e da satisfação em existir, da
metalinguagem, dos lugares da infância e por pertencerem à chamada poesia moderna é que
esses poetas mais crédito acrescentam, quando comparados, a originalidade de um poeta
como António Nobre.
Resta salientar que o topos do ubi sunt empregado no poema por diversas vezes tem,
no final da estrofe que encerra o primeiro painel, apenas uma questão: é como se, repetindo a
pergunta e concluindo o poema, nos desse a conhecer que, depois da insistência em encontrar
o lugar e momento ideais, em evocar o ausente, o sujeito poético já cansado, desiste de tentar.
“LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: A MEMÓRIA E O PAÍS DE
MARINHEIROS
“Georges! anda ver meu país de Marinheiros,/ O meu país das Naus, de esquadras e de
frotas!”. É assim que se inicia a segunda parte do tríptico, como um convite, carregado de
entusiasmo juvenil e de urgência, num anseio em apresentar por meio das imagens marítimas
e do ritmo dos versos, subseqüentes a essa introdução, aquilo que o sujeito poético poderia
dar a conhecer como o seu mundo, (re)criado pela memória e pela imaginação.
155
Italo Moriconi (organizador), Os cem melhores poemas brasileiros do século, p.99.
Samira Youssef Campedelli; Jésus Barbosa Souza, Português – Literatura, Produção de Textos &
Gramática, São Paulo, Editora Saraiva, 2000, p.224.
156
85
Através dessas duas faculdades: a imaginação e a memória, podemos dizer que o
sujeito poético foi capaz de reinar onipotentemente no seu mundo, voltando-se para si e para o
passado, acrescentando às palavras empregadas no Só muito mais do que o seu sentido real.
Afinal, a possibilidade de conhecermos a realidade do sujeito poético a partir da sua
linguagem é de uma riqueza infinita, como também é passível de exploração a possibilidade
do sujeito poético servir-se do seu mundo como conteúdo e dele retirar o que há de mais
profundo e pintá-lo como ele é, mostrando as belezas do mundo rural, mas também os
problemas que assolam o aldeão; mostrando as belezas da nação marítima, mas também os
riscos e perigos por que passam os homens ligados ao mar, como sugere algumas das imagens
contidas no Só, como exemplo, o dístico final de “Lusitânia no Bairro Latino”: “Qu' é dos
Pintores do meu país estranhos,/ Onde estão eles que não vêm pintar?”157.
Outro aspecto da poesia do Só é que a preferência pelas coisas simples e a valorização
das mesmas, freqüentemente, se dá de maneira pouco convencional, como é o caso da
“Lusitânia no Bairro Latino” - parte dois, quando a valorização do popular acontece por via
indireta ou por contraste com elementos “mais nobres”, “mais adequados” à literatura.
Exemplo disso é quando a presença do mar por toda a extensão desse poema faz com que as
pequenas lanchas ao saírem “...a barra, entre ondas e gaivotas”, lembrem o leitor um outro
momento histórico: as grandes navegações dos séculos XV e XVI. Porém, apesar da citação
de Vasco da Gama ou dos barões assinalados e de reconhecermos que centenas de
portugueses enfrentaram o mar e o desconhecido para o fortalecimento do império, essa
lembrança dos “grandes” não consegue se destacar pela sua importância histórica, e por fim
sobrepõe, coloca em primeiro plano a ação dos navegadores atuais que, agora, modestamente,
utilizam o mar como forma de subsistência, numa manifestação de força humana embelezada
pela construção da imagem da saída das lanchas (“Que vista admirável! Que lindo! que
lindo!”) e pelo som dos gritos dos poveiros. Isso é poesia moderna; é rebaixar o assunto; é
tornar o trivial, o comum, digno de se tornar poesia.
Impregnado de recursos imagéticos, o poema nos leva a considerar, de acordo com a
explicação de Alfredo Bosi em sua obra O ser e o tempo da poesia, que “a experiência da
imagem, anterior à da palavra, vem enraizar-se no corpo. A imagem é afim à sensação visual.
O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu.”158 Sendo assim, não é mais
necessária a presença real do objeto para que o mesmo possa estar diante de nós. O ato de ver
é muito mais complexo do que um simples registro de formas, ele é também um registro da
157
158
Cf.Só, p. 103.
Alfredo Bosi, O ser e o tempo da poesia, p.19.
86
nossa relação com aquele objeto, por isso, a importância da imagem para o processo da
memória. Sem ela a memória perderia a função de co-existência dos tempos. É somente com a
imagem que a memória retém e convive com o passado, sobrepondo-o muitas vezes ao
presente. Se as imagens do “Lusitânia no Bairro Latino” resultam de um retorno a outros
tempos, essas mesmas imagens também podem apresentar alguma deformação pela ação do
tempo, porém, a sua essência, as sensações e o significados adquiridos durante o contato do
ser com a imagem real mantêm-se representativos e fiéis à emoção vivida naquele momento,
como se o momento passado ressurgisse como presente.
No poema a palavra isolada e decodificada não pode transmitir outro sentido que não
seja o sentido denotativo dela própria, a imagem ganha força quando palavras como mar,
lancha, céu, são vistos como um conjunto e considerados na sua interdependência de idéias
ou sensações. Quando isso ocorre adquirem outro contexto, outra imagem. Observemos por
exemplo, o verso: “A saírem a barra, entre ondas e gaivotas”, nele ocorre a valorização da
percepção do olho que em algum momento no passado registrou na memória a posição
intermediária de uma embarcação, localizada entre o céu e o mar. Aberta a evocação, os
registros da memória fornecem uma nova imagem, semelhante à original, porém distante
daquela, já que a imagem resulta de um complexo processo de percepção e de ligação afetiva.
Para compreendermos melhor como o recorte de mundo feito pelo sujeito poético adquiriu
mais expressividade, a partir das imagens suscitadas e do ritmo do poema, é importante
observarmos o trecho a seguir, que reproduz por meio da memória a saída das lanchas:
Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda hi, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o a toda força,
Clamam todos à uma: 'Agora! Agora! Agora!'
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas[...]159
159
Cf.Só, p. 97.
87
Há duas vias de acesso para se compreender esse trecho do tríptico: a primeira seria a
unidade sonora do poema ou o seu ritmo, a outra seria a imagem nele reproduzida.
Geralmente o movimento das imagens circula apenas pelos limites da visão; contudo quando
alcança o nível das palavras, e no caso desse poema o som se une à representação da ação dos
poveiros, esse movimento cria um novo significado, um novo “corpo”, quase irreal, desse
recorte do cotidiano dos homens que viviam do mar. Sendo assim, o som das palavras e o
ritmo escolhido (ora lento, ora rápido) em conjunto com a imagem, que tem a função mestra
de apoio sensorial, variam de acordo com o expresso no interior do poema, ou seja, dependem
da emoção empregada pelo sujeito poético.
Luís Filipe Lindley Cintra considera que “num estudo sobre o ritmo é sempre
necessário contar com uma margem de subjetivismo na análise”160. O autor confirma isso ao
reconhecer que mesmo utilizando métodos rigorosos na determinação dos esquemas rítmicos,
devemos considerar a interpretação pessoal de quem lê o poema, pois nem todos fazem a
leitura de maneira equivalente.
Sendo assim, se tratarmos de forma isolada o ritmo na poesia de António Nobre podemos
notar que o poeta emprega versos de três a doze sílabas poéticas, não mais do que doze.
Todavia o que chama à atenção não é o tamanho dos versos, mas a liberdade na acentuação
dos versos tradicionais é evidente: o decassílado, que nos moldes tradicionais, é heróico
(acentuado na 6ª e 10ª) ou sáfico (acentuado nas 4ª, 8ª e 10ª), passa a ter acentuação variável
em Nobre, assim como o alexandrino que deixa de ter apenas os acentos na 6a e 12a e passa a
ser trímetro (acento nas 4a, 8a e 12a) e passa, no caso do decassílabo, a ter variantes pela
introdução de acentos secundários.
Alguns escritores, como Julio Brandão, no prefácio de Primeiros Versos161, enfatizam
a evolução da técnica na obra de Nobre, observando que na sua iniciação literária o poeta
utilizava os padrões rítmicos do seu tempo, sem alterar os alexandrinos, porém, com o passar
do tempo surgiram alterações fora do usual, os versos passaram a ter suas cesuras
desarticuladas e apresentavam maior liberdade interna. Na concepção de Julio Brandão, essas
alterações no ritmo dos versos proporcionaram à poesia da época o verso livre. Devemos, no
entanto, complementar a possível confusão pelo emprego da expressão “verso livre” que nos
remeta à liberdade formal e à não obrigatoriedade em respeitar a métrica ou de usar rimas.
Salientamos que há limites nas medidas na obra de António Nobre em dois poemas:
160
Luís Filipe Lindley Cintra, O ritmo na poesia de António Nobre, Dissertação de Licenciatura em Filologia
Românica, Lisboa, Faculdade de Letras, 1946, p.02.
161
António Nobre, Primeiros Versos, Braga, Augusto Costa, 1945.
88
“Purinha” e no “Lusitânia no Bairro Latino”, ambos de 1891, o poeta emprega aparentemente
o verso livre. Essa impressão decorre do formato visual desses poemas que se compõem por
versos com três, quatro, seis sílabas poéticas, decassílabos e alexandrinos, porém a medida
máxima é o alexandrino. Além do que, se todas as poesias do Só são rimadas podemos
entender isso como um processo de limitação do verso, o que impede a classificação dos dois
poemas acima citados como versos livres.
Essa variedade de esquemas rítmicos nos conduz para o espírito da poesia moderna,
libertadora; ao longo de todo poema “Lusitânia no Bairro Latino”, podemos comprovar isso
através das inúmeras combinações métricas, de versos curtos e longos, por vezes intercalados,
numa irreverência à métrica tradicional, que mais combina com o estilo coloquial da poesia de
António Nobre.
Dos 54 poemas que constituem a obra, 35 são escritos na forma de decassílabos ou
dodecassílabos, decididamente afirmando a tendência do poeta para versos mais longos, que
se aproximam da prosa. Formalmente o que separa um texto em prosa de um texto em verso é
que no primeiro há a ausência de ritmo ou a sua presença é irregular. O que nos leva a
considerar que, sendo o Só um livro que mantém em boa parte das suas composições a
irregularidade rítmica, a sua aproximação com a prosa torna-se evidente; porém os excessos
são raros e o ritmo permanece mesmo quando é totalmente irregular. Como exemplo dessa
aproximação com a prosa encontramos em “Carta a Manoel” quando o sujeito poético narra o
encontro dos estudantes com os aldeões:
Velhos aldeões que tudo vêem, mas não implicam,
Porque, em suma, que mal pode fazer um beijo?
Vêm até nós, sorrindo, aproveitando o ensejo,
Com o chapéu na mão, simples e bons e honrados;
Vêm consultar-nos, porque “somos advogados
E sabemos as leis...” [...]162
Percebamos que a força desse trecho move-se pela intenção de aparentar naturalidade.
Há um ritmo calmo nessa parte do poema encadeado pelo respeito dos aldeões e pela
percepção histórica das classes sociais pelos estudantes. Contudo, devemos alertar que com a
mudança nos acentos rítmicos há uma intencionalidade nos movimentos que ora adquirem
maior velocidade, ora maior lentidão, como exemplo de velocidade rítmica, temos o verso do
poema “Ladainha”: “Dorme menino! Dorme, dorme, dorme![...]”163 ou o soneto “18”: “Mas a
162
163
Cf.Só, p.124.
Idem, ibidem, p.184.
89
arte, o Lar, um filho, António? Embora![...]”164, ambos com quatro acentos, num movimento
mais agitado.
Voltemos a segunda parte do tríptico. Basta que observemos que os verbos de ação do
trecho citado acima do “Lusitânia no Bairro Latino” sugerem movimento: sair, fincar, clamar,
rimar, dar, ir, rezar, içar para reconhecer que acrescentam ao poema uma velocidade. O ritmo
é mais rápido. A impressão de uma batalha que se trava entre o homem e a natureza sugere a
necessidade de unidade entre aqueles que enfrentam o mar, por isso quando “Clamam todos à
uma: 'Agora! agora! agora!” ganham força, ganham energia na troca da terra pelo elemento
mar, assim podem ultrapassar os obstáculos. A ação desses homens, pescadores das aldeias,
representa vigor de quem luta pela vida, não há aqui espaço para os sussurros dos fracos,
antes o brado, antes o “Vento” a empurrar já em alto mar as embarcações. Por isso, o orgulho,
a admiração pela imagem soberba das lanchas a se afastarem da praia, semelhante ao mesmo
orgulho encontrado no Canto V de Os Lusíadas:
Assi fomos abrindo aqueles mares,
Que geração alguma não abriu,
As novas ilhas vendo e os novos ares,
Que o generoso Henrique descobriu;165
Percorrendo os poemas do Só também encontramos versos com três, quatro ou cinco
sílabas poéticas intercalados por versos de outras medidas. Por conta dessa variedade de
ritmos passamos pelas várias cadências e tons que adquire a voz do sujeito poético, às vezes
ela rompe em exclamações, em lamentos, invocando ajuda para os seus males em constante
diálogo com vários interlocutores entre eles amigos, familiares ou elementos da natureza.
Evoco a Coimbra triste, em seu aspecto moiro:
Entro, chapéu na mão, em tua Casa d’ Oiro,
Em frente a um canavial, cheio de rouxinóis,
Que era nervoso de mistério, ao pôr-dos-sóis,
Vejo o teu Lar e a ti, tão pura, tão singela,
E vejo-te a sorrir, e vejo-te à janela,
Quando eu seguia para as aulas, manhã cedo,
Ansiosa, olhando dentre as folhas do arvoredo,
Olhando sempre até eu me sumir, a olhar,
Que às vezes não me fosse um carro atropelar166
Ou em
164
Cf. Só, p.208.
Luís de Camões, Os Lusíadas, São Paulo, Editora Brasileira Ltda, 1952, p.164
166
Cf. “Na estrada da beira” in Só, p. 218.
165
90
Saía, apenas, à tardinha, pela calma,
Sorvendo aos haustos a resina dos pinheiros.
Tomava quase sempre a estrada dos Malheiros.
A nossa casa é ao virar mesmo da estrada,
Onde perpassam os aldeões na caminhada
E a mala-posta a rir, cheia de campainhas!167
Geralmente esses poemas feitos num ritmo mais calmo, com poucos cortes,
apresentam características confessionais sublinhando a intimidade na fala de quem descreve
paisagens familiares, tendo em vista sempre a si mesmo, ou seja, o sujeito poético no centro
de um quadro que reflete a sua histeria no presente ou a sua harmonia com acontecimentos ou
paisagens do passado. Essa realidade evocada condiz com o momento íntimo vivido pelo
sujeito, o que reforça a idéia de que no Só o ritmo é regulado pela voz de um sujeito poético
que “quebra” os esquemas tradicionais da métrica para manifestar o seu encanto ou
desencanto por si mesmo ou por sua terra natal: Portugal.
Outra inovação no Só é o aproveitamento da fala com erros ortográficos como
elemento importante na representação do povo; neste trecho da “Ladainha das Lanchas” do
“Lusitânia”, podemos observar alguns deles:
Snra Nagonia!
Olha, acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!
Senhora Da guarda!
(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!
Senhora d' ajuda!
Ora pro nobis!
Calluda!
Sêmos probes!
Snr dos ramos!
Istrella do mar!
Cá bamos
Parecem Nossa Senhora, a andar.
Snra da Luz!
167
Cf. “Males de Anto I” in Só, p. 236.
91
Parece o Farol...
Maim de Jesus!
É tal qual ela, se lhe dá o Sol!
Snr dos Passos!
Sinhora da Ora!
Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...
Snr dos Navegantes!
Senhor de Matuzinhos!168
Nos erros ortográficos podemos reconhecer o aspecto sensorial e afetivo atuando
conjuntamente na seleção dos sons ouvidos. Essa observação da oralidade do povo se dá a
partir do desejo de aproximação de um sujeito poético, caracterizado como dandi e de cultura
elevada, com pescadores e pessoas humildes que o cercam. Sendo assim, as diferenças na
forma de falar do povo e de “Anto” baseiam-se na cultura em que cada um está inserido.
Contudo, não há intenção de inferiorizar os mais humildes reproduzindo os erros da fala. O
que ocorre é a reprodução dos erros ortográficos por um sujeito poético vinculado aos
humildes por processos psicológicos que determinam o ambiente e as palavras que chamam a
sua atenção; dessa maneira se equipara a essa parcela da população que reconhece como
“probes”, sofredores e amparados apenas pela “Maim de Jesus!”.
Conciliando os erros de ortografia com a melodia do poema em forma de reza, o
sujeito recupera aqui não só a memória religiosa desse povo, que respeita o desconhecido
batizando seus barcos com nomes de santos, como preserva também, por meio dessa
nomeação, a tradição secular de pedidos de proteção para suas vidas e pedidos de garantia de
retorno para aqueles que andam pelo mar. Considerando o conhecimento cultural e histórico
que o sujeito poético aparenta ter, é nesses trechos, em que a musicalidade, o canto da
ladainha se faz presente, que mais podemos sentir a presença do “ser” que vê e registra na
memória essas situações rotineiras, mesmo porque estão elas impregnadas do estado sensível
do sujeito poético.
Talvez seja por isso que nesse trecho do “Lusitânia no Bairro Latino” encontramos a
construção de um cenário formado por fragmentos da memória com invocações intercaladas
entre reflexões pouco firmes. O sujeito não afirma que a imagem “é”, ele sugere, diz
168
Cf.Só, p.97/98.
92
assemelhar-se a alguma coisa ou a alguém, em versos como “Parece uma gaivota...”,
“Parecem Nossa Senhora” ou “É tal qual ela, se lhe dá o Sol!”, a impressão que temos é de
que o sujeito poético encontra-se em devaneio, num estágio não finito de possibilidades.
Por isso, o desfilar de elementos evocados e invocados na segunda parte desse poema,
aparentemente descontínuos, exigem do leitor uma tomada de consciência que agrupe os
elementos dispersos. Juntos esses elementos produzem o efeito de um todo, um único
significado, resultado da ação proposital do sujeito poético de apresentar as lanchas em
procissão como as contas de um rosário, unidas por um único elemento: o mar.
Em outro momento, a apresentação das lanchas sugere imagens que se aproximam das
do céu e as embarcações ganham o aspecto de águias ou gaivotas, numa visível recuperação
de imagens detidas pela memória, já que, ao vê-las no mar, as lanchas com sua cor e seu
aspecto fazem lembrar esses animais a voar: “Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços”169,
que ora invocam santos do catolicismo “Senhora Da guarda!”, “Senhora d’ajuda!”, “Sinhora
da Ora!”, “Senhor de Matuzinhos!”, ora rememoram pessoas comuns como o “Bernardo da
Silva do Mar” ou o “Zé da Clara – sem, no entanto, deixar de pedir a proteção divina, pois “...
a morte, / Que sempre aos nautas ante os olhos anda.”170 só pode ser afastada por meio da fé,
das orações. É indispensável chamar a atenção, como já o fizemos antes, para o fato de que no
Só o sujeito poético revela o seu lado espiritual por meio da intersecção dos rituais católicos
com a crença no mistério, nas superstições, revelando a inconstância da sua personalidade, ora
eufórica com as imagens que surgem da infância, ora deprimida diante dos infortúnios da
vida, como o primeiro verso do soneto “13”: “Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos!”171.
Pela constituição do poema obtemos a audição de uma ladainha na série de evocações,
como: Senhora dos aflitos!/ Martyr São Sebastião!/ Ouvi os nossos gritos!/ Deus nos leve
pela mão!, encontramos a manutenção de uma tradição secular que envolve a vida dos
poveiros que dependem do mar, com o uso das palavras na forma oral e popular, como:
mailos, e à lembrança aos heróis nacionais, que aparecem no encerramento da saída das
lanchas:
Os mestres ainda são os mesmos d' antes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar...
169
Cf. Só, p. 98.
Luís de Camões, Os Lusíadas, p.155.
171
Cf. Só, p.203.
170
93
Senhora dos aflitos!
Martyr São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!
Ó lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!
Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes
“As armas e os barões assinalados...”
Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ela corre! com que força o Vento a impele:
Bamos com Deus!
Lanchas, ide com Deus! Ide e voltai com ele
Por esse mar de Cristo...
Adeus! adeus! adeus!172
Mais de uma vez encontramos referências no “Lusitânia” aos navegadores do século
XVI ou a obra Os Lusíadas. As crianças são Vascos da Gama a ensaiar, os homens barões
assinalados. Retornando a esse ponto da rememoração, o sujeito poético afirma que “Os
mestres ainda são os mesmos d' antes” e celebra concomitantemente o heroísmo daqueles que
partiram “Por mares nunca de antes navegados”173 e o heroísmo anônimo daqueles que
ficaram, que edificaram a terra natal por meio do seu trabalho no mar ou na terra , unificando
o homem simples do mar com os heróis nacionais, ambos assinalados pelo destino para
enfrentarem os perigos. Sobre essa imagem poética criada no poema, devemos considerar,
apoiando-nos em Bachelard que
A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um
passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado
longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos
vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem
poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma
ontologia direta.174
172
Cf. Só, 98/99.
Luís de Camões, Os Lusíadas, p.5.
174
Gaston Bachelard, A poética do espaço in Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1978.
173
94
Sob essa perspectiva, a imagem poética recupera do passado e das ações sociais e
culturais realizadas pelo homem ao longo dos tempos o direito à existência. Diante da
presença de uma imagem, os tempos se dissolvem e o sujeito poético, responsável por sua
criação, determina os valores históricos a serem apresentados de acordo com a sua
personalidade. Deixa transparecer o que lhe agrada ou não, e pode por vezes direcionar a
consciência histórica do leitor para um determinado momento. Fica claro nesse segundo
trecho da “Lusitânia” o apego do sujeito poético pela paisagem e gente portuguesas. Essa
tendência também é percebida em outros poemas, como por exemplo, o soneto de nº “8”:
Poveirinhos! meus velhos Pescadores!
Na Água quisera com Vocês morar:
Trazer o grande gorro de três cores,
Mestre da lancha Deixem-nos passar!
[...]
Ó meu Pai, não ser eu dos poveirinhos!
Não seres tu, para eu o ser, poveiro,
Mailo irmão do “Senhor de Matosinhos!”175
É interessante finalizar notando que o convite feito a “George” no início desse poema
resumisse a ver. O sujeito poético mostra as cenas que quer que o amigo francês veja, assim a
visão alcançada por ele nos coloca diante da realidade a qual pertence o sujeito poético. Para o
escritor Simon Shama “...o próprio ato de identificar (para não dizer fotografar) o local
pressupõe nossa presença e, conosco, toda a pesada bagagem cultural que carregamos.”176
Com isso obtemos a possibilidade de reconstrução de momentos da cultura portuguesa através
do indivíduo.
“LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO”: UM OLHAR SOBRE A
MEMÓRIA RELIGIOSA
É na última parte do tríptico que a figura de Georges novamente aparece como
interlocutor e ouvinte do sujeito poético. Nessa parte do poema “Lusitânia no Bairro Latino”,
a ênfase está na natureza religiosa do ser português, particularizada por meio de uma
descrição minuciosa de eventos populares como as romarias e as procissões. A construção de
175
176
Cf.Só, p.198.
Simon Shama, Paisagem e Memória, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p.17.
95
um cenário social e religioso composto por cores, expressões, vestuário, réplicas de
comportamento e fragmentos de problemas sócio-econômicos é significativa quando cada um
desses elementos reproduz o conhecimento externo ou interno humano preservado pela
memória. Conhecimento perpetuado pela insistência em repetir ano após ano as mesmas ações
nas festas populares, pela audição dos mesmos pregões, pela visão dos pedintes — chaga
aberta da sociedade. Por isso, a presença de Georges é de efetiva importância, ela serve para
interpelar, chamar a atenção do povo português para a sua religiosidade, para as suas mazelas,
para a sua criatividade e não somente pela presentificação de um amigo estrangeiro em visita,
como uma leitura mais descuidada pode sugerir. Observemos o trecho a seguir:
Georges! anda ver meu país de romarias
E procissões!
Olha essas moças, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis!
Têm nas orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faze-te Manel! viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito,
Que hão de gostar!177
Sem dúvida, a presença de Georges na procissão é a responsável pela aproximação do
leitor com o cotidiano português. Sua presença se destaca a partir de um nome de origem
grega, estrangeira, e por estar introduzido num cenário tipicamente dos “Manéis” e das
“Marias”. Convidado a interferir e a participar como parte integrante desse povo, Georges
indiretamente nos coloca dentro da mesma cena em que ele está inserido. A partir da
verossimilhança que ela tem/ apresenta, somos levados a não interferir, mas apenas a ver e
ouvir o que o sujeito poético tem a nos oferecer através do seu amigo.
A espontaneidade nas ações e o discurso poético, entre o sujeito poético e Georges,
que se misturam ao discurso oral (“Caramba! dá-lhes beliscões!”), imprimem realidade na fala
daquele que descreve os acontecimentos com a prontidão de quem os vê. Aliás, tudo ao redor
do sujeito poético é observado. Não com o olhar comum que apenas traduz imagens, sem
177
Cf. Só, p. 100.
96
relacioná-las com outras já passadas, mas com impressões sensoriais que ultrapassam a
barreira da matéria e chegam à intuição.
É com muita sensibilidade que a obra reconstrói poeticamente o universo masculino.
A ocorrência desse enfoque faz com que a voz presente no poema apresente-se otimista e
jovial quando estimula Georges a transformar-se em “Manel”, aportuguesando-o. Assim, o
mesmo pode se satisfazer da companhia das moças portuguesas que também participam das
romarias e procissões.
O registro dos acontecimentos da vida é feito de forma bastante autêntica e vai além
do superficial, exemplo disso é a participação das moças nas procissões com finalidades nem
sempre religiosas, como a maioria dos jovens, mas para enamorarem-se pelos rapazes
presentes. Devemos observar que a descrição dessas moças, vestidas com suas melhores
roupas e jóias não é totalmente positiva, apesar do tom jovial e quase erótico. A sensualidade
é reforçada quando na descrição das moças se utiliza partes do corpo feminino como o
pescoço, seios, orelhas e nádegas (subentendidas na intenção dos “beliscões”), de maneira a
encantar, a atrair o sexo oposto, porém o que se sobressai é a generalização dessas mulheres,
são todas elas “Marias”, “corpos”, transparecendo os sentimentos que não são sublimados, por
isso os riscos de um relacionamento amoroso tornam-se evidentes.
Ao contrário da noiva ideal que é a “Purinha” de Anto, mulher-criança e espiritual, a
descrição dessas mulheres mais serve de alerta por estabelecer relação com os pecados
capitais da “Gula” e da “luxúria”, com as “trinta moedas” causadoras do sofrimento de Cristo
ou com a serpente, sinal da traição e da deslealdade de Eva. Para a escritora Agustina BessaLuís
Purinha é a forma narcísica do próprio Nobre, que pisa com os próprios pés a
serpente que descreve em 'o nosso amor será honesto e sem beijos' e lê em
Nobre o impulso erótico apartado da atividade sexual e integrado no social.
Isso se revela, segundo ela na “infantilização da linguagem, um recorrer ao
estreito caminho da normalidade, mas uma normalidade castrada, fria,
convertida num milagre absurdo de infância mística”178
Diante do perigo de corromper o seu espírito, o sujeito poético utiliza Georges como
uma extensão do comportamento masculino considerado “normal” e o incentiva, em seu
lugar, a dar beliscões nas Marias, a dar-lhes beijos e apertos contra o peito. Observemos que
em nenhum momento o sujeito poético tem a intenção de participar desse jogo de sedução. Os
178
Cf. Os Centenários: Eça, Freyre, Nobre, p.17.
97
riscos pela corrupção do corpo são delegados a Georges, somente a ele, apesar dos sinais de
alerta de pecado iminente.
Na seqüência do poema chega a hora de deixar de lado “os jogos amorosos” para
concentrar-se na fé, como nesses três versos:
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão.
Estralejam foguetes e morteiros.179
Neles, devemos destacar a disposição das palavras no texto. Mais uma vez a
disposição das palavras acrescenta ao significado uma nova feição. Exemplo disso é a forma
como a primeira e a terceira estrofes abrem espaço para o verso: “Passa a procissão”, num
apelo visual da parte III do “Lusitânia no Bairro Latino”, como se realmente a procissão
estivesse a passar. Como se a sua passagem solicitasse a pausa e o respeito sinalizados pelo
gesto simples de se tirar o chapéu e permanecer em silêncio. Numa leitura um pouco mais
ousada podemos até visualizar os três versos como a metáfora da multidão que assiste ao
cortejo religioso e se afasta para que ele passe. De um lado teremos a introspecção daqueles
que vêem o mistério, do outro a festividade, o retorno ao barulho, ao falatório daqueles que
querem o desfile. É por essa oposição que passa a procissão:
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem Torres de David, na amplidão!
Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo, a frente, o Sr.Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos no vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mão invisíveis levam-nos de rastros
Que eles mal sabem andar.180
É a partir desse trecho que se contempla a chegada de imagens, os objetos de fé.
Revelação do oculto através das figuras religiosas de santos e de entes espirituais, como os
179
180
Cf. Só, p.100.
Idem, ibidem, p.100/101.
98
anjos. É essa religiosidade presente no “Lusitânia” e em outros poemas, que marca o Só como
uma obra de elevado senso espiritual. Haveria uma falha de intenção na reconstrução poética,
mesmo fragmentária, de Portugal se não houvesse na obra essa característica inerente ao seu
povo. No Só estão presentes não só a religiosidade, mas também a mística e o sobrenatural. A
certeza dessa afirmação parte de poemas sugestivos de além como “A sombra”, em trechos
como:
Não tarda a sombra, aí. Vai alto o Sete-Estrelo
São horas d' ela vir. Minha alma, atende!
Que já a Lua, a sentinela, rende
Na esplanada do Céu, às portas do Castelo...181
ou em “Certa velhinha”:
Contava-me Aquela que a tumba já cerra,
Que Nossa Senhora, quando a chama alguém,
Escolhe estas noites pra descer à Terra,
Porque em noites destas não anda ninguém...182
ou ainda em “Os cavaleiros”:
¯ Vais ver a tua Mãezinha?
Coitada! vi-a expirar:
Tinha a alma tão levezinha,
Que voou sem eu lhe tocar!...183
Além desses, há outros poemas que, a partir de “Memória”, também são associados à
religiosidade e ao mistério da morte. Com efeito, a mãe de “Antônio” que “...toucou-se de
flores”, como Ofélia e “Vestiu-se de Nossa Senhora das Dores” é a figura mais mística do Só.
É ela que proporciona o sentido de viagem transcendental da morte e do possível reencontro
após ela, talvez seja esse o motivo da aceitação do sujeito poético de uma vida entregue ao
destino, mesmo que essa entrega acrescente a ela a sensação de inutilidade de todos os
esforços como confirma os versos do soneto “18”: “... a Vida foi, e é assim, e não melhora”
ou “Na estrada da Beira” quando consciente da passagem do tempo observa que a memória é
o que garante a identidade, mas também a permanência da dor por meio das lembranças:
181
Cf. Só, p.209.
Idem, ibidem, p.228.
183
Idem, ibidem, p.171.
182
99
“Mas tudo passa neste Mundo transitório./ E tudo passa e tudo fica! A Vida é assim/ E sê-lo-á
sempre pelos séculos sem fim!”184
Por isso, temos a impressão de percorrer, através dos poemas, caminhos sinuosos
como uma penitência. Caminhos de um sujeito poético cheio de angústia por não conhecer
tudo, ao mesmo tempo em que tem a consciência de pertencer a algo maior, misterioso e
superior. Percebemos na obra a aspiração ao absoluto, à espiritualidade, e a iminência do
desconhecido, “...dos olhos leais fitos no vago...”, do sofrimento que não poupa nem os
“...Infantes de três anos, coitadinhos!...”, o que torna o Só a expressão da interioridade, tanto
do ser individual quanto do ser nacional.
Não temos dúvida que os sentidos corporais externos: visão, audição, tato, paladar e
olfato têm em certa proporção uma analogia com a alma. Parte deles o conhecimento do
externo que adquirimos ao longo da vida. Porém, devemos dar destaque ao sentido da visão
por ser ele o que mais se relaciona com o interior de cada ser. Popularmente, a visão está para
o corpo como está para a alma, “enxergar com os olhos da alma” é a expressão utilizada
quando nossa impressão do mundo se mistura com o afeto que delegamos a alguma imagem.
Combinar ou separar essas imagens, sejam elas formadas a partir de um estímulo interno ou
externo, torna possível a representação de um mundo paralelo que de maneira complexa
habita a nossa mente, a nossa memória. Essa consciência interna de mundo é bastante
explorada no Só. O convite a Georges vai além da apresentação de um país, ou do
conhecimento das formas externas dos objetos, das formas distinguidas pelo instinto, da
separação grosseira de sons ou cores. O que se oferece a Georges é a possibilidade de se
enxergar o invisível, de se tocar o mistério que ninguém sabe explicar, como nos versos
“Mãos invisíveis levam-nos de rastros/ Que eles mal sabem andar.” Nos espaços do mundo
real que o sujeito poético percorre não encontra sentido, por isso a busca pelo mistério, a
correspondência entre o visível e o invisível. Examinemos o trecho a seguir:
Esta que passa é a Noite cheia de astros!
(Assim estava, em certo dia, na Judeia)
Aquele é o Sol! (Que bom o sol de olhos pintados!)
E aquela outra é a Lua Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
Vê! d' entre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
184
Cf. Só, p.220.
100
Criança em flor que ainda não os tem.
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mal ela sabe, a inocentinha,
Nas sua mãos, a Esponja deita mel:
Abelhas d' oiro tomam-lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha
Traz ainda o sangue de Sexta-feira...
Passa o último, o Sudário!
O corpo de Jesus, Nosso Senhor...
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o Sol-pôr...
Que pena faz vê-lo passar em Portugal!
Ai que feridas! e não cheiram mal...185
Nessa parte do “Lusitânia” podemos encontrar a revelação do mundo oculto a partir da
figura sagrada de Jesus e de todos os elementos que participaram do seu martírio, como a
coroa de espinhos, sinal do escárnio humano pelo filho de Deus, os dados utilizados pelos
soldados romanos, a esponja, a lança, o sudário; paradoxalmente essa composição representa
a “boa distância” com o sagrado e nos obriga a participar da narrativa como os apóstolos de
Cristo que em “...certo dia, na Judeia” ouviram os seus ensinamentos e foram convidados a
“ver” o mistério.
Uma das características das festas populares religiosas é exatamente a reprodução
metódica dos acontecimentos que envolvem os mistérios da fé. O processo de rememoração
desses rituais religiosos, que acontecem periodicamente, é compartilhado pela memória
coletiva de um povo, que reconhece na materialização da sua crença, a perpetuação de uma
tradição antiga. Essa materialização ocorre quando um grupo de pessoas vestidas como anjos
ou santos passa a representar os princípios, as idéias ou o modo de ser de uma personagem da
história. Cada participante da procissão faz parte de um conjunto de informações que reunidas
garantem a formação da imagem desejada. Cada um toma o seu lugar na construção do
cenário que reproduz o passado e de maneira ideal perpetuam as ações de sofrimentos e de
glórias.
É nesse momento da transfiguração das pessoas que “... o povo em êxtase...” incorpora
o passado e se liga a algo superior. As criações de Deus: o “Sol” e a “Lua Cheia” aparecem
como indícios da energia irradiante do poder supremo, nessas duas obras a cor predominante é
o branco, que para os ocidentais representa a vida; no mesmo trecho, em contraposição a essa
idéia surge a “Noite”, a ausência de cor, ausência de luz, de vida, assim como o “Sol-pôr”
sugestivamente relacionado ao “...vermelho extraordinário” do “...sangue de Sexta-feira”
185
Cf. Só, p.101.
101
remetendo evidentemente a morte, que não poderia faltar diante da representação do calvário
de Cristo.
O peso da dor nesse momento é minimizado pela presença das crianças, que da
“Esponja de Fel!”, por suas mãos, como num milagre, a “Esponja deita mel”. São elas as
porta-vozes da inocência. Nos versos em que participam, o sofrimento cede lugar aos doces
olhos que fazem luar, aos diminutivos portadores de carinho e às “Abelhas d' oiro” a guiar
seus passos. Porém, apesar do aspecto singelo da passagem das crianças, a presença delas
causa dor ao sujeito poético que visualiza a sua infância perdida, aumentando o desejo de ser
como elas, de participar da sua ignorância, porque também ele tem a “Coroa dos Espinhos”.
E em meio a essa multidão arrebatada pela alma é ele, o sujeito poético, quem
consegue como observador perspicaz superar o encanto e revelar momentos de compaixão por
si mesmo, quando, por exemplo, sente em si as dores de Cristo como se fossem suas: “Ai que
feridas!”, e ao mesmo tempo percebe que é por Portugal que essa tristeza passa e que talvez
não deixe de existir quando a procissão passar. Assim como também não passará a sua
angústia, a sua tísica d'alma, carregada de sentido sobrenatural.
Esses momentos de angústia podem por hipótese justificar-se dentro de um quadro
evolutivo da sociedade e da literatura no que diz respeito às idéias transformadoras de
filósofos e poetas como Augusto Comte, Darwin, Baudelaire, entre outros, e de raízes mais
antigas, por uma evolução literária a partir dos séculos XI e XV, quando a fé cristã
predominava com a sua visão teocêntrica do mundo subjugando a razão, até o momento do
Simbolismo que nos interessa.
Da época realista poderíamos citar diversos nomes de pensadores e cientistas que
contribuíram com mudanças na mentalidade social e estética do século XIX, mas
destacaremos apenas dois: Augusto Comte (1798/1857) fundador do Positivismo Filosófico e
Darwin (1809/1882) com a Teoria Evolucionista. Comte procurou “reorganizar a moral e a
sociedade segundo os princípios cientificistas, substituindo a religião e a metafísica pelas
respostas obtidas com a experimentação racional e científica”186. Darwin inicia o processo de
destruição do pensamento divino sobre a criação do homem, para ele a criação humana faz
parte de um processo natural de evolução das espécies, eliminando com esse pensamento a
verdade pregada pelas Escrituras Sagradas. Sobre a teoria de Darwin houve uma aversão por
parte da Igreja e de alguns grupos sociais, o que gerou um conflito não solucionado até os dias
de hoje. Fato é que não pode haver equilíbrio na rejeição de Deus pela ciência, ou vice-versa.
186
Nelly Novaes Coelho, Literatura & Linguagem: a obra literária e a expressão lingüística, 5ªed., Petrópolis,
Rio de Janeiro, Vozes, 1993, p.122.
102
No que se refere à tentativa de suprimir o mistério da existência humana, por parte
dessas duas teorias do Realismo, concordamos com a utilização desses pensamentos como
instrumento para análise e compreensão da sociedade, como o fez de modo exemplar Eça de
Queirós, contudo de maneira geral, as pessoas mostravam-se descontentes como o excesso de
realidade na arte, em meio à visão pessimista de mundo em que viviam, com os problemas
político-sociais e a proximidade da virada do século. Partiu do homem então, a necessidade de
pertencer ao cosmo, a tentativa de representar, por meio da arte, a transcendência humana
sobre os aspectos materiais, de não querer sentir-se fragmentado, sendo assim a busca por si
mesmo através da arte foi uma alternativa para o encontro das respostas que permanecem na
causas ocultas da vida humana.
Por isso, o Simbolismo (última década do século XIX) supera a visão objetiva do
mundo por meio da busca de uma linguagem capaz de sugerir a realidade e não retratá-la
objetivamente. Em Portugal essas duas últimas poéticas, a Realista e a Simbolista,
conviveram de modo significativo com o cientificismo e o materialismo do final do século
XIX; contudo, apesar de haver uma ideologia predominante por parte dos realistas, essa não
era globalizante, e um grupo de artistas colocou em dúvida a capacidade científica de se
explicar todos os fenômenos relacionados ao homem, dando início a estética simbolista que
valorizava entre outras coisas a intuição e os sentidos humanos. Álvaro Cardoso Gomes em
seu livro A estética simbolista considera que:
A fusão, portanto, de diferentes sensações, as chamadas sinestesias, é um
esforço para recuperar a linguagem original, aquela em que a palavra, mais
do que uma simples representação dos objetos, é também coisa ela própria.
Trabalhando com imagens sinestésicas, o poeta deseja representar o instante
da percepção de um objeto, de um movimento, sem a incômoda intervenção
da inteligência, que tende a separar as sensações em blocos distintos.187
Em Portugal buscou-se por volta de 1890, um novo traço de espiritualidade, de
mistério. Havia a necessidade do irracional, da entrega do eu para o subconsciente, e para
alcançar esses níveis de pureza dentro da criação, os poetas simbolistas não deixaram se
envolver pelo “emocionalismo” dos poetas românticos, sobressaíram-se antes pela sua
capacidade sugestiva, pela emoção contida e pela noção de correspondência entre todas as
coisas que existem no mundo natural com o mundo espiritual. Com algumas variantes
encontramos em António Nobre também o ineditismo das associações, as sinestesias e as
metáforas inusitadas. Há nesse poeta uma preocupação com a essência das coisas. Verifica-se
187
Álvaro Cardoso Gomes, A estética simbolista, São Paulo, Cultrix, 1985, p.17.
103
em inúmeras passagens do Só a tentativa de se chegar ao cerne da vida, que por sua vez é
envolvida por um mistério indecifrável, sugerindo pouco a pouco os objetos e as sensações
alcançadas a partir deles, como nessa seqüência do “Lusitânia”:
E a procissão passa. Preamar de povo!
Maré cheia do oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su' alma beata.
Trazem imagens da Função nos seus chapéus.
Poeira opaca. Abafa-se. E, no Céu ferro-e-oiro,
O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!
Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.
Passam as chocas, boas mães! passam capinhas.188
Essa tentativa de chegar ao que há de mais profundo na existência humana é
representada pela mistura dos elementos naturais: mar, Deus, ferro, ouro, prata, povo, sol,
poeira, animais (“toiros” e vacas) e o próprio homem, vestido de “fato novo”. Juntos eles
criam um ambiente de sonho, quase irreal, pela sua correspondência entre as coisas do céu e
as coisas da terra. Observemos como as informações do poema se fecham numa massa
metafórica, de modo que a alma possa se manifestar através do som de “Fadinhos chorosos” e
a vida simbolicamente recomeçar com a passagem das vacas chocas. Assim como é
importante dizer que a utilização de cada um dos elementos descritos acima não pode ser feita
de maneira a ter um fim em si mesmo, é importante ressaltar que unidos eles servem como
sugestão de uma imagem de alcance mais elevado, “... um estado de espírito que somente tais
objetos poderiam criar dentro da memória. Em síntese, o que se pretende recuperar é um
estado de Graça.”189
Podemos considerar, a partir de uma seleção de elementos dentro do Só, uma série de
palavras-estímulo propulsoras de imagens. A natureza da imagem evocada pelo sujeito
poético dependerá da relação que esse sujeito teve com o objeto escolhido no passado. É
possível mesmo sustentar que algumas das imagens do Só são construções feitas de
recordações de experiências sensoriais , já que o passado pode ser recuperado através de um
estímulo capaz de desencadear imagens esquecidas pelo tempo. Basta um momento propício,
188
189
Cf. Só, p.102.
Álvaro Cardoso Gomes, A estética simbolista, p.18.
104
de intimidade, como no poema “António” para que isso ocorra; vejamos o momento em que o
sujeito poético aciona a memória:
Que noite de Inverno! Que frio, que frio!
Gelou meu carvão:
Mas boto-o à lareira, tal qual pelo Estio,
Faz sol de Verão!190
E na estrofe dialogante, já recordando: “Nasci, num Reino d' Oiro e amores,/ À beira-mar.191”
Segundo Annie Gisele Fernandes, “... a primeira estrofe é construída, na sua totalidade, por
linguagem metafórica, através da qual a 'noite de Inverno', representativa do espaço externo e
do momento presente, pode referenciar todos os males que assolam o sujeito poético. No
entanto, ao ser aquecida e iluminada pelo fogo da 'lareira', a 'noite de Inverno' dá lugar à
rememoração, à vivência dos acontecimentos do passado, à interiorização e se transforma na
panacéia que traz de volta 'o sol de Verão' ”192. Isso demonstra que informações armazenadas
no cérebro podem vir à tona e conduzir o ser a reviver experiências passadas, basta empregar
o necessário estímulo para a sua recuperação. Quando isso ocorre, participamos novamente
das sensações sentidas ou aspiradas no instante da percepção dos objetos. Essas imagens
recuperadas pela memória adquirem consistência quase material, mesmo quando sabemos que
a sua base é espectral e que não passam de uma manifestação dessa memória.
Fato é que António Nobre empregava com ousadia a sua imaginação e os recursos
mnemônicos, o que lhe permitia escolhas raras para expressar o que de mais íntimo estava no
seu ser. Assim como o poeta que, tocado pela sua sensibilidade, ora entrega-se ao passado, e
nesses momentos busca os sonhos da infância, ora entrega-se ao presente, tormento do real.
Em ambos os tempos existe a possibilidade de corte no processo das idéias e retorno a tempo
anterior aquele como a chamada dos “pregões” antecedendo o momento de dor que finaliza o
poema “Lusitânia no Bairro Latino”:
Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca da Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!193
190
Cf. Só, p.80.
Idem, ibidem, p.80.
192
Annie Gisele Fernandes, A estrutura dialógica em poemas do Só de Antônio Nobre, p. 94.
193
Cf. Só, p.102.
191
105
Envolvido em um momento de pessimismo, o sujeito poético a partir dos pregões de
ricos alimentos em meio a pedintes, começa a descrever o Portugal em crise, com tons
melancólicos e decadentes próximos à morte:
À porta dum casal, um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro Mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas, do moribundo.
Dança de roda mailas moças o coveiro.
Clama um ceguinho:
'Não há maior desgraça nesta vida
Que ser ceguinho!'
Outro, moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Este, sem braços, diz 'que os deixou na pedreira...'
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o Sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...
Que lindos cravos para pôr na botoeira!
Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobs! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Deliriums-tremens! Quistos!
Monstros, fenômenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam 'uma esmola p'las alminhas
Das suas obrigações!'
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar...
Qu'é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão eles que não vêm pintar?194
É importante perceber a irreverência com que “Anto” trata a morte. Muitas vezes a
morte é personificada na “velhinha” que passa “Além, na tapada das Catorze Cruzes,”195 para
buscar alguém, outras vezes sua presença é sentida pela figura máxima do coveiro, sempre
presente nas festas e nas cerimônias próprias da passagem da vida para a morte, como os
cortejos de anjinhos. Aparentemente há uma obsessão da parte de Anto pelos aspectos
práticos dessa profissão, às vezes é Anto quem toma o lugar do coveiro e ele próprio cava
194
195
Cf. Só, p.102/103.
Idem, ibidem, p. 231.
106
sepulturas e se preocupa com a confecção do próprio caixão, com o material a ser utilizado e
etc. Maria Ema Tarracha Ferreira afirma que essa ansiedade pelo sono eterno é um reflexo da
peregrinação do sujeito poético em busca do espaço primordial, a cova, “Por isso, ‘António’
permanece sempre menino, mitificando-se infantilmente em ‘Anto’, olhando o mundo com a
ternura nostálgica própria de quem vive em exílio”196. Simultaneamente “Anto” vê a morte
como a velha e como a mãe desaparecida, desejando-a como alívio para os seus males. Há
mesmo no Só um diálogo amigável entre “Anto” e o coveiro, em “Males de Anto II”, sobre as
acomodações pós morte e é cantando que o coveiro as descreve: “Colchão de raízes e de
folhas, liso,/ Lençóis de terra brandos como espuma,/ Dá-los-ei ao rol, no Dia de Juízo...”197.
Esse modo informal de se lidar com o tema da morte destaca imagens contraditórias, como a
“dança de roda mailas moças o coveiro”. Esse fenômeno da dança na poesia do Só contém
aspectos macabros por sugerirem, por exemplo, a permanente presença da morte
independentemente da ocasião, ou ainda, a vida ceifada na mais tenra idade, o que é
comemorado pelo final do seu sofrimento, como se vê quando as crianças à caminho da cova
estão a bailar, como nesse trecho do poema “Os sinos”: “Ó ricos sapatos de solinha nova,/
Bailai! bailai!/ Nas eiras que rodam debaixo da cova.../ Bailai! bailai!”198.
Em outro trecho, o do moribundo “À porta dum casal”, encontramos a dualidade do
ser que tem no momento da morte o corpo paralisado pela doença e imóvel para a ação. Em
contraposição, no mesmo corpo, temos os olhos abertos, a observar tudo por serem eles
“olhos de Outro Mundo”, numa dolorosa consciência das desordens sociais. São esses olhos,
que vêem os infortúnios a passar pela sua porta, a garantia de conexão com o presente cruel,
registrado na apresentação de pedintes, doentes ou de pessoas mutiladas no ambiente de
trabalho (“Este, sem braços, diz 'que os deixou na pedreira...'”). Narcisicamente, o sujeito
poético revela-se como senhor de um mundo no qual é permitida a entrada prioritariamente de
seus pares: pobres, doentes e crianças. São eles que apresentam uma vida ora cercada pela
inocência, pelos sonhos, ora cercada pela ausência de algo que os complete. Pelo seu
sofrimento, são considerados metaforicamente como “lindos cravos”, propícios a fazer parte
da sua “botoeira”, ou seja, da sua existência ligada ao transcendental. Por isso, ouvimos as
vozes daqueles que sofrem a maldizer suas vidas ou porque nasceram cegos, ou por terem
perdido os braços, sem se esquecerem do além que exige de todos “uma esmola p' las
alminhas/ Das suas obrigações!”.
196
Cf. “Introdução” in Só, p. 73.
Cf. Só, p. 247.
198
Idem, ibidem, p. 143.
197
107
Ainda continuando com o sentido da visão apresentado nesse trecho, recordamos que
também o sujeito poético vê tudo com olhos de compaixão. Compaixão por sua própria sina,
por sua dor, refletida na sina do outro que tem a tísica do corpo a corromper seus pulmões
tirando-lhe o ar vital. Contudo, a dor do corpo não pode se equiparar à dor de quem tem uma
tísica de alma, e em “Males de Anto I – A ares numa aldeia”, declara: “Ah quanto foi bem
pior que a tua a minha cruz!/ Quanto sofri, meu Deus! Ah quanto eu sofro ainda!”199
Diante desse desfilar de sofrimento, no meio da visão apocalíptica que enumera a
decadência humana a partir de “Tísicos!” até “Quistos”, nos deparamos com figura passível
de Jó, aqui ampliada em Jobs. No Antigo Testamento, encontramos a história desse homem
bom e virtuoso atingido por grande sofrimento ao perder seus dez filhos, sua mulher, sua
fortuna e toda a sua saúde ao transformar-se em uma chaga repelente. É interessante notar que
apesar das dificuldades e tristezas enviadas por um ser superior, não compreendido em sua
sabedoria por Jó, este em nenhum momento emite qualquer sinal de revolta e aceita tudo
como desígnio de Deus. Como recompensa, pela sua paciência, Jó recupera seus bens, sua
saúde e constitui uma nova família.
Não encontramos no sujeito poético a passividade de Jó, pelo contrário, ele deseja a
mudança, ocorra ela através do retorno ao passado, para que seja novamente feliz na plenitude
da infância, ou através do reencontro com a mãe desaparecida e supostamente morta em
“Memória”. Em ambas as situações, encontramos o sujeito poético deslocado no presente e
diante de uma massa disforme de pessoas que mais se parecem com animais por “mugir” e
“uivar” suas dores.
Por fim, encerra o poema com o dístico “Qu'é dos Pintores do meu país estranho,/
Onde estão eles que não vêm pintar?”, qualificando mais uma vez a sua terra natal que
durante o tríptico caracterizou-se por “...país de Marinheiros”, “...das Naus, de esquadras e de
frotas!”, além de ser também de “romarias/ E procissões”, mas apesar da intimidade com que
descreveu as imagens, a impressão que fica ao qualificar o país como estranho é que o sujeito
poético comunga intimamente com Portugal, a ponto de poder pintá-lo, já que outros autores
não fazem por permanecerem alheios ao que o País realmente é.
Nesse diálogo entre a poesia e a pintura é que confirmamos, mais uma vez, a
modernidade de um autor como António Nobre. No seu tríptico regressamos num primeiro
momento a um reino totalmente seu, de onde surgem locais encantados e as histórias que vêm
pelo mar são recuperadas pela memória do povo, como a da “Formosa Magalona”, sem deixar
199
Cf. Só, p. 236.
108
de citar que nos colocamos diante do seu tempo de felicidade: a infância; depois, com virtuosa
saudade, entramos por aldeias piscatórias, observamos a força de seus homens, sua linguagem
e a fé fortalecedora, instrumento de defesa para aqueles que enfrentam o mar; e, na última
parte do painel, temos a reconstituição de festas populares, como as procissões e as romarias.
Os três painéis unidos descrevem fielmente o que é ser português a partir da idealização de
uma paisagem tipicamente rural e da alma portuguesa em todas as suas nuanças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre todas as funções do corpo humano, a memória é sem dúvida a mais fascinante. É
ela que define o que somos e nos faz compreender o mundo que nos cerca. Por isso, devemos
considerar que ao longo desse trabalho tentamos mostrar o aproveitamento de um tempo
passado, ordenado e refeito pela memória do sujeito poético, como fonte de informações,
características e sensações sobre a cultura portuguesa do final dos Oitocentos. Essa
reconstrução poética, obviamente, foi determinada pela identidade do sujeito poético, que ora
se apresenta como a criança doce e querida por amas, envolvido numa atmosfera de contos de
fadas ou de visões paradisíacas do mundo que o cercava, ora se reconhece como o adulto
angustiado diante das perdas inevitáveis da vida. De ambos, obtivemos evocações
impressionistas por meio de recursos sensoriais que sugeriram o estado de alma de um ser que
valorizou tudo o que é português.
A partir constituição do sujeito poético, e isso ocorre já no primeiro poema da obra,
intitulado “Memória”, encontramos um conjunto de memórias (paisagística, religiosa,
histórico-social) que não distinguem o erudito do popular. A presença do “Zé do Telhado”,
por exemplo, não diminui a lembrança dos feitos de um Virgílio, de Camões, de Shakespeare,
entre tantos outros. Esse nivelamento das camadas sociais e culturais é próprio do discurso de
um sujeito poético que respeita os erros ortográficos dos poveiros e a crença pagã em fadas,
bruxas,
magos, sem apagar a caracterização
cristã das procissões e romarias.
Independentemente do aspecto apresentado, seja ele cultural, histórico ou religioso, as
evocações da memória funcionam como expressão pura de um povo visto e idealizado como
sofredor, assim como Anto. Contudo, devemos deixar claro que a aproximação de Anto com
esse mundo provinciano não o fez um deles. As aldeias, os pescadores, o povo pedinte, cheio
de gangrenas, a paisagem nortenha de Portugal, a beatice ou o mistério que ninguém sabe
109
explicar, sempre resgatados pela memória, são em vários poemas, entre eles “O Lusitânia no
Bairro Latino”, “formas de ancoragem”. “Anto” precisou rever os valores do seu povo, sua
religião, os problemas sociais e as paisagens familiares para impedir a sua total fragmentação.
Detalhe como a acentuada aparição dos topônimos ou antropônimos na obra faz com que
“cavalguemos” pela seleção feita pela sua memória como se também fossem nossas as
paisagens e pessoas apresentadas.
Essa intimidade que nos oferece a obra proporciona o reconhecimento de ser o Só um
drama que apresenta um sujeito poético desajustado no tempo e no espaço, ao mesmo tempo
em que, por meio da sua dor somos “convidados” a ver o seu mundo reconstruído pela
memória. Concluiu-se então que há nas poesias dessa obra uma visão multicolorida de um
Portugal que se apresenta de maneira popular e agradavelmente eloqüente através do ritmo
modelado pela emoção e das inúmeras imagens proporcionadas pela memória de “Anto”. A
memória épica avulta em alguns poemas e o retorno a modelos nacionais: navegadores, heróis
da terra e do mar, Camões, faz com que venha à memória a pátria gloriosa. Nesses momentos,
o sujeito poético aponta a grandeza já passada de um país e novamente recorre às cores para
um suposto diálogo entre as artes da pintura e da literatura. Assim, por meio de versos como
“Qu’ é dos Pintores do meu país estranho,/ Onde estão eles que não vêm pintar?”200
sutilmente percebemos a possibilidade de um levante, de uma ação a favor da ascensão da
pátria portuguesa, mas logo o colorido se perde nas trevas da decadência nacional e o presente
ressurge com o sentimento de fracasso, de estar vencido na vida. Nessa perspectiva, a
utilização da memória nesse trabalho não só visualizou uma fatia do tempo passado, mas,
sobretudo, proporcionou a reconstrução de um momento singular da pátria portuguesa de
acordo com a ambiência mental pessimista do fim do século XIX.
200
Cf. “Lusitânia no Bairro Latino” in Só, p. 103.
110
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