FERNANDA NOIA DA COSTA LINO
A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
URBANO: FUNDAMENTOS, AGENTES E PRÁTICAS
URBANÍSTICAS
Tese apresentada à Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutora
em Direito do Estado, sob orientação do
Professor Doutor Fernando Dias Menezes de
Almeida.
São Paulo
2010
Banca Examinadora
Prof.
_________________________________
Prof.
_________________________________
Prof.
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Prof.
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Prof.
_________________________________
ii
AGRADECIMENTOS
Minha imensa gratidão ao Professor Fernando Dias Menezes de Almeida, por
ter me apoiado e me motivado, continuada e irrestritamente, neste programa de
doutorado e em muitos outros trabalhos, ao longo dos últimos 8 anos.
Meu reconhecimento também ao Professor Nestor Goulart Reis Filho, que em
mais de uma oportunidade me recebeu pronta e solicitamente na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP, dedicando horas do seu tempo para me ofertar suas
preciosas lições, assim como para sugerir textos engrandecedores, norteando-me com
maestria neste multifacetado tema.
Agradeço a este Professor, assim como ao Professor Luis Virgílio Afonso da
Silva pelas recomendações feitas por ocasião do meu exame de qualificação, as quais
foram decisivas para uma melhor delimitação e um direcionamento adequado deste
trabalho. Desde já assumo toda e qualquer responsabilidade pelo não aproveitamento
a contento dessas recomendações recebidas.
Ao Ricardo, pela sua afetuosa presença e pelo apoio incondicional durante
esse período de reflexão e escrita. Aos meus pais, Nemias e Blandina, pela prazerosa
acolhida e por todo o incentivo recebido, desde pequena, para continuar sempre
seguindo.
Por fim, pelo carinho e pelo auxílio que todos eles me dedicaram enquanto eu
elaborava este trabalho, agradeço às minhas irmãs Paula Regina da Cruz Noia e
Luciana da Cruz Noia, ao meu cunhado Jaime Meira do Nascimento Jr. e aos amigos
Ana Sylvia de Faria Almeida Prado, Matthieu Iochum, Natasha Schmidt Caccia
Salinas, Carolina Theodoro da Silva Mota, Maria Paula Bertran e Ana Carolina
Modinger.
iii
Para Ricardo
iv
SUMÁRIO
RESUMO .............................................................................................................................. vi
ABSTRACT......................................................................................................................... vii
RÉSUMÉ ............................................................................................................................viii
LISTA DE ABREVIATURAS ............................................................................................. ix
Introdução .............................................................................................................................. 1
Capítulo 1 OS FINS: POR QUE PRESERVAR O PATRIMÔNIO CULTURAL? ......... 6
1.1. Antecedentes normativos da preservação no mundo ocidental .................................. 7
1.2. Fundamentos da preservação em documentos internacionais .................................. 12
Capítulo 2 O QUE PRESERVAR? ................................................................................. 23
2.1. A noção de patrimônio cultural nos documentos internacionais .............................. 23
2.2. A concepção jurídica de patrimônio cultural segundo a Constituição Federal de
1988 ................................................................................................................................. 30
Capítulo 3 OS MEIOS: QUEM PRESERVA O PATRIMÔNIO CULTURAL
URBANO? ..... ..................................................................................................................... 39
3.1. Organizações Internacionais ..................................................................................... 44
3.2. Competências Constitucionais .................................................................................. 48
3.3. Ação dos três Poderes ............................................................................................... 67
3.3.1. O Decreto-lei nº 25/37 enquanto lei geral de preservação do patrimônio cultural
..................................................................................................................................... 69
3.3.2. Atuação do Poder Executivo.............................................................................. 77
3.3.3. Controle jurisdicional ........................................................................................ 84
3.4. Colaboração da comunidade ..................................................................................... 90
Capítulo 4 OS MEIOS: COMO É POSSÍVEL PRESERVAR O PATRIMÔNIO
CULTURAL URBANO? .................................................................................................... 97
4.1. A Proteção Internacional do Patrimônio Cultural da Humanidade ........................ 101
4.2. Mecanismos tradicionais: o tombamento e a desapropriação ............................. 110
4.3. O Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança e a tutela da paisagem cultural ...... 127
4.4. Transferência do direito de construir .................................................................. 138
4.5. Os planos urbanísticos......................................................................................... 146
Considerações Finais ......................................................................................................... 159
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 167
ANEXOS ........................................................................................................................... 182
v
RESUMO
O presente trabalho trata da preservação do patrimônio cultural urbano
desempenhada pelo Estado mediante o exercício da atividade urbanística. Mais
especificamente, analisa os fundamentos, assim como os agentes e as práticas
admitidos no ordenamento jurídico brasileiro para que se alcance esta finalidade
última de conservar, às presentes e futuras gerações, determinados valores culturais
contidos nas cidades.
A expressão patrimônio cultural urbano foi adotada neste trabalho como
abrangente tanto
dos monumentos
e conjuntos
históricos
e arquitetônicos
isoladamente considerados – cujos valores culturais são mais facilmente identificados
nas suas estruturas físicas, materiais –, quanto do próprio ambiente construído e
humanizado das cidades (composto por parques, praças e outros espaços, sempre
quando utilizados em práticas culturais e manifestações sociais), o qual carrega em si
valores de natureza marcadamente imaterial, relevantes pela capacidade de
proporcionarem bem-estar e qualidade de vida aos habitantes da cidade.
Como ponto de partida dessa abordagem, são mencionados sumariamente
alguns antecedentes normativos reveladores de que preocupações oficiais com a tutela
de bens culturais existiam desde a Antiguidade. Em seguida, é feita uma análise
evolutiva dos fundamentos dessa preservação, assim como das noções de patrimônio
cultural adotados em alguns dos principais documentos internacionais que tratam
sobre o tema. Também são analisadas as inovações trazidas pela Constituição Federal
de 1988 tanto para a concepção jurídica de patrimônio cultural, quanto para a
disciplina urbanística.
Também é dedicada atenção aprofundada aos sujeitos que, de acordo com o
ordenamento jurídico pátrio, estão incumbidos de – ou legitimados a – atuar na
preservação do patrimônio cultural urbano. Por fim, são especialmente investigados
os principais instrumentos urbanísticos disponíveis à consecução dessa tarefa,
sugerindo, com o devido embasamento, que a preservação do patrimônio cultural
urbano deve ser conduzida de maneira planejada, dispensando-se uma visão
urbanística às questões relacionadas àquela.
vi
ABSTRACT
The present study deals with the preservation of cultural heritage provided by
the State through the exercise of urbanistic activity. More specifically, it analyzes the
foundation, agents and practices admitted by Brazilian legal system to reach the goal
of preserving, to present and future generations, certain cultural values existing in the
cities.
The expression urban cultural heritage was adopted in this study as
comprehensive of historical and architectural monuments and aggregations taken in
an isolated manner - whose cultural values are most easily identified in their physical
and material structures – as well as of the built and humanized environment of cities
(made up of parks, squares and other spaces used in practices and social events),
which carries cultural values of immaterial nature, relevant for the ability to provide
welfare and quality of life for city residents.
As a starting point of this approach, it is briefly mentioned some legislative
history pointing out that official concerns with the protection of cultural heritage
existed since Antiquity. Next, this work examines the evolutionary reasons given for
conservation, as well as the notions of cultural heritage adopted by the main
international documents that deal with the issue. It also analyzes the innovations
made by the Brazilian Federal Constitution for both the legal concept of cultural
heritage and for urban discipline.
Deep attention is also devoted to the agents that, according to the Brazilian
legal system, are in charge of acting on the preservation of urban cultural heritage or
even legitimated to do so. Finally, it also investigates the main urbanistic instruments
available to achieve this task, suggesting with proper foundation, that the preservation
of urban cultural heritage should be conducted in a planned manner, dispensing an
urbanistic view to related issues.
vii
RÉSUMÉ
La présente thèse traite de la préservation du patrimoine culturel entrepris par
l’Etat à travers l’exercice de l’activité urbanistique. Plus spécifiquement, examine les
fondements, les agents et pratiques existant dans l’ordonnancement juridique
brésilien qui permettent d’atteindre l’objectif de conserver, pour les générations
présentes et futures, certains valeurs culturels contenues dans les villes.
L’expression patrimoine culturel urbain utilisée dans cette thèse englobe aussi
bien les monuments et ensembles historiques et architecturaux envisagés séparément dont la valeur culturelle est plus facilement identifiée de par leur structure physique,
matériel –, que l'environnement bâti et aménagés des villes (composés de parcs,
places et autres espaces, quand ils sont utilisés lors de pratiques culturelles et
manifestations sociales), qui contiennent intrinsèquement des valeurs culturelles de
nature fondamentalement immatérielle, aptes à procurer une certaine qualité de vie
aux habitants de la ville.
Comme point de départ de cette approche certaines normes anciennes sont
sommairement
mentionné,
révélant
qu’il
existait
depuis
l’Antiquité
des
préoccupations officielles concernant la tutelle des biens culturels. Ensuite, il est
procédé à une analyse évolutive des raisons de cette conservation, ainsi que des
notions de patrimoine culturel utilisées dans les principaux documents internationaux
relatifs à ce thème. Sont aussi analysées les innovations apportées par la Constitution
Fédérale de 1988 tant sur la concepción juridique de patrimoine culturel que sur la
discipline urbanistique.
Il est aussi question des sujets à qui, conformément à l’ordonnancement
juridique national, il incombe de – ou qui sont appelés à – agir pour la conservation
du patrimoine culturel urbain brésilien. Enfin, ont aussi examinés particulièrement les
principaux instruments urbanistiques disponibles pour accomplir cette tâche, ce qui
suggère, avec fondement, que la préservation du patrimoine culturel urbain soit
conduite d'une manière planifiée, dispensant une vison urbanistique aux questions
concernées à ce sujet.
viii
LISTA DE ABREVIATURAS
AIA
Avaliação de Impacte Ambiental
CONDEPACC
Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas
CONDEPHAAT
Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico do Estado de São Paulo
CONPRESP
Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico,
Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo
DIA
Declaração de Impacte Ambiental
DPHA
Divisão de Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Guanabara
Dphan
Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
EIA
Estudo Prévio de Impacto Ambiental
EIV
Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança
FCC
Fundação Catarinense de Cultura
FPACBA
Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia
FUNDARPE
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
ICCROM
Centro Internacional de Estudos para a Conservação e o Restauro de
Bens Culturais
ICOMOS
International Council on Monuments and
Internacional dos Monumentos e dos Sítios)
IEPHA
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de
Minas Gerais
IPHAE
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio
Grande do Sul
IPHAN
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IPTU
Imposto Predial de Propriedade Territorial Urbana
MES
Ministério da Educação e Saúde
OEA
Organização dos Estados Americanos
ONU
Organização das Nações Unidas
RIVI
Relatório de Impacto de Vizinhança
SPHAN
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Sudene
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
TDR
Transfer of Development Rights
UIP
Unidades de Interesse de Preservação
UNESCO
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
Sites
(Conselho
ix
Introdução
O surgimento das cidades, na Antiguidade, oferece a percepção de que
determinadas
necessidades
dos
indivíduos
(tais
como
a
segurança
e
o
desenvolvimento de atividades comerciais) somente – ou muito mais facilmente – se
satisfazem quando estes se dispõem a viver em coletividade. Declinam, assim, cada
um desses indivíduos, de parte dos seus interesses pessoais e reúnem-se em prol da
satisfação de outra parcela de interesses, comuns a toda a coletividade.
Por outro lado, o ambiente urbano acaba exercendo influência fundamental
sobre o modo de vida dos seus habitantes. Por exemplo, as densidades demográficas,
as formas de organização sócio-espaciais, a quantidade de equipamentos disponíveis
à garantia do exercício dos mais diversos direitos difusos, tais como saúde, habitação,
transporte e lazer, são todos fatores que, de algum modo e em algum grau,
influenciam o bem-estar e a qualidade de vida dos habitantes.
Em termos urbanísticos, para que uma cidade1 proporcione satisfatoriamente
estas duas últimas situações, é importante que ela seja planejada de tal forma que
ofereça espaços e equipamentos adequados à habitação, ao trabalho, à circulação e ao
lazer, assim como meios propícios ao exercício pleno da cidadania, esta somente
alcançada mediante a garantia aos indivíduos de perfeita percepção de si próprios
como partes essenciais e fazedoras do meio em que vivem.
Assim, é importante que o ambiente urbano proporcione a integração entre os
habitantes, estimule as relações sociais, promova o crescimento e o desenvolvimento
1
José Afonso da Silva ressalta a dificuldade de fixação do conceito de cidade e destaca inúmeras concepções
possíveis desta. Neste parágrafo da Introdução, a expressão cidade é tomada não exatamente na sua
concepção jurídico-política brasileira (como sendo restritamente o núcleo urbano, sede do governo
municipal), mas numa noção mais ampliada, demográfica e quantitativa, correspondente a um
aglomerado urbano com dimensões e densidade populacional considerável e determinado de
habitantes.
1
da educação e da cultura. Satisfeitas essas condições, entende-se que a cidade terá
cumprido ao menos parte de sua função social2.
Nesse contexto é que se revela a importância da preservação do patrimônio
cultural no ambiente urbano, tanto para garantia de bem-estar e qualidade de vida aos
seus habitantes, como para o próprio desenvolvimento das cidades, pois permite o
resguardo de uma memória às comunidades formadoras da sociedade e, com isso, a
percepção, por parte desses indivíduos, tanto de suas próprias identidades, quanto de
sua importância para o meio em que vivem e vice-versa.
No presente trabalho, a expressão patrimônio cultural urbano é tomada no
sentido de compreender a globalidade dos bens culturais edificados presentes no
ambiente urbano. Abriga não somente os monumentos e conjuntos históricos e
arquitetônicos tomados isoladamente – cujos valores culturais revelam-se mais
evidentemente nas suas próprias estruturas físicas, materiais –, quanto o próprio
ambiente construído e humanizado das cidades (composto por parques, praças, e
outros espaços), o qual, na medida em que utilizado por seus habitantes para
realização de práticas culturais e manifestações sociais, adquire relevância simbólica
para estes.
Este patrimônio cultural, tão importante à vida nas cidades, não deve
prescindir de reflexões por parte do Poder Público quando da elaboração de políticas
públicas, tampouco ser relegado quando do planejamento urbano, sob o risco de não
se exercer adequadamente a função social da cidade. Nesse contexto, a chamada
gestão democrática da cidade, consagrada pela Lei n. 10.257/01, revela-se
fundamental para o conhecimento e a satisfação dos reais interesses culturais da
sociedade.
Em matéria de patrimônio cultural, o Município - enquanto ente da Federação
que mais próximo está dos anseios e das manifestações dos seus indivíduos – pode
contribuir sobremaneira para o sucesso e a legitimidade da preservação de valores
culturais contidos no ambiente urbano, estando apto a perceber, inclusive com a
2
A Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) refere-se às funções sociais da cidade como um dos objetivos a serem
alcançados pela política urbana (art. 2º).
2
participação de suas comunidades, os valores referenciais a estas, ou seja, aqueles
valores que mereçam ser mantidos na memória urbana. São diversos os instrumentos
jurídicos urbanísticos disponíveis ao Município para alcançar esse fim, devendo
empregá-los de maneira razoável e proporcional, conforme o tipo de bem e o modo de
tutela que se almeja dispensar.
Mas como condição para que sejam eficazes e tenham satisfatória duração no
tempo, é indispensável também que as ações municipais de conservação e promoção
do patrimônio cultural urbano não sejam pensadas de maneira isolada, mas sim no
contexto espacial da cidade, a demandar uma gestão ordenada das várias funções
sociais desta. Portanto, devem guardar estrita consonância com a política maior de
desenvolvimento
desenhada
para
a
cidade.
Por
exemplo,
definindo-se
o
aproveitamento de edificações já existentes na cidade e dotadas de alguma
significação cultural para novos usos3.
Por outro lado, qualquer programa municipal de preservação do patrimônio
cultural local deve estar igualmente em perfeita sintonia com as diretrizes nacionais e
regionais que se estabelecerem no plano da preservação do patrimônio cultural
brasileiro, assim como com as diretrizes gerais traçadas pela União para o
desenvolvimento urbano das cidades4. Com efeito, a cooperação entre Municípios,
Estados federados respectivos e União é diretriz constitucional em matéria de
preservação do patrimônio cultural urbano.
É o que se depreende da leitura sistematizada dos dispositivos constitucionais
aplicáveis à matéria, a indicar, nesse tema, a adoção pela Constituição de 1988 de
“um sistema de racionalidade decisória em que as normas e decisões em matéria
urbanística [...] têm sua validade condicionada ao respeito de normas e decisões de
maior abrangência”5.
3
É o que defende Nestor Goulart Reis Filho, entendendo ser preferível econômica e culturalmente o ajuste
dessas edificações a novos usos na cidade. “Desenvolvimento urbano e uma nova política de conservação”, p.
38.
4
Hoje expressas na Lei n. 10.257/01.
5
Cf. Carlos Ari Sundfeld. “O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais”. In Estatuto da Cidade:
Comentários à Lei Federal 10.257/2001, p. 50. Grifos do autor.
3
Em 1988, foi dedicado pela primeira vez tratamento constitucional
sistematizado à questão urbana. Não se limitou a Constituição Federal a atribuir
competência legislativa explícita à União para editar normas gerais de direito
urbanístico e competência suplementar aos estados e municípios, o que por si só já
seria algo inovador, posto que expressivo de uma compreensão do direito urbanístico
transcendente dos limites e interesses estritamente locais.
Mais que isso, a Constituição trouxe finalmente para o plano constitucional a
questão da política espacial da cidade6, a ensejar, nos três âmbitos federativos, ações
estatais coordenadas de ordenação e planejamento do desenvolvimento urbano
nacional, com vistas a garantir às cidades brasileiras o exercício pleno de suas
funções sociais e o bem-estar dos seus habitantes (art. 182, caput e parágrafos). Ao
mesmo tempo, a Constituição de 1988 também dispensou tratamento inovador ao
tema da preservação do patrimônio cultural.
É notável o entrelaçamento entre esses dois temas no plano constitucional, à
medida que ambos se projetam para o alcance de um bem-estar social e do
desenvolvimento nacional equilibrado e, para tanto, servem-se de competências
materiais e legislativas concorrentes que sinalizam a importância do planejamento e
da coordenação nacional.
A presente tese parte de uma constatação fundamental de que, do ponto de
vista jurídico, a preservação do patrimônio cultural urbano somente faz sentido se
este for tomado numa visão de conjunto, ou seja, numa visão ambiental do universo
patrimonial. De efeito, de acordo com as orientações jurídicas contemporâneas
atinentes à matéria, o tratamento pontual e isolado de bens culturais, não se faz mais
adequado para garantia da projeção do patrimônio cultural urbano às gerações
presentes e futuras.
Feita essa constatação inicial, sustenta-se, no presente trabalho, que, para a
preservação ambiental do patrimônio cultural urbano, faz-se necessária a adequada
6
Uma proposta de Lei Nacional de Reforma Urbana vinha sendo pensada no Governo desde 1977. O tema
chegou ao Congresso Nacional para discussão somente em 1983, sob a forma do Projeto de Lei nº 775/1983.
Após ter enfrentado sucessivas resistências à sua aprovação, por alegada presença de inconstitucionalidade
no seu teor, o Projeto acabou tendo sua essência reproduzida na Constituição de 1988.
4
articulação das competências dos entes constitucionalmente incumbidos dessa tarefa,
assim como a aplicação dos instrumentos urbanísticos mais apropriados para a tutela
almejada, considerado cada caso.
Aquela constatação inicial encontra-se desenvolvida preliminarmente nos
Capítulos 1 e 2. O Capítulo 1 dedica atenção especialmente aos fundamentos
jurídicos da preservação que ao longo do tempo foram reproduzidos nas principais
normas internacionais atinentes ao tema. Já o Capítulo 2 aborda a evolução da
concepção jurídica de patrimônio cultural no plano normativo internacional, assim
como analisa a concepção adotada pela Constituição de 1988. O Capítulo 3 propõe
análise pormenorizada dos agentes incumbidos de agir com vistas à preservação do
patrimônio cultural urbano no Brasil, mais especificamente verificando o modo como
coordenadas as suas competências. Também se verificam os modos como assegurada
juridicamente a participação social nos processos de formação e tutela desse
patrimônio. Por fim, o Capítulo 4 traz uma exposição pormenorizada dos
instrumentos urbanísticos hoje disponíveis no ordenamento jurídico pátrio para esses
fins de preservação do patrimônio cultural urbano, propondo a gestão planejada do
patrimônio cultural urbano, integrada com os demais planos de desenvolvimento e
ordenação urbana.
5
Capítulo 1 OS FINS: POR QUE PRESERVAR O PATRIMÔNIO
CULTURAL?
Cada cidade tem a sua fisionomia, a sua feição,
como as pessoas têm um conjunto de traços com os
quais se constrói a sua identidade, o seu caráter.
Mas a fisionomia se transforma com o tempo.
Nestor Goulart Reis Filho
7
Neste primeiro Capítulo, proceder-se-á inicialmente a um breve relato
histórico-evolutivo de normas de caráter notadamente protecionista editadas no
mundo ocidental. O objetivo principal é demonstrar que, desde a civilização romana
antiga, sempre existiram preocupações oficiais com a conservação de bens
considerados culturalmente relevantes, presentes em núcleos urbanos. Isso, em que
pese se reconheça não somente que o alcance dessas preocupações oficiais e a
habitualidade com que elas se manifestaram variaram consideravelmente ao longo dos
tempos, como também que as razões que as impulsionaram sofreram mudanças
significativas até que se chegasse ao estágio atual de consagração do patrimônio
cultural como um direito difuso garantido pela maioria das Constituições nacionais
contemporâneas às presentes e futuras gerações.
Em seguida, ainda neste Capítulo, serão especialmente analisados os
fundamentos expostos nas principais cartas e normas internacionais que tratam sobre
o tema, justificadores das recomendações internacionais dirigidas aos Estados
nacionais, no sentido de que estes protejam seus respectivos patrimônios culturais.
7
São Paulo e outras cidades, p. 17.
6
A opção de se utilizar as cartas e normas internacionais, neste e no próximo
Capítulos, como materiais de análise dos fundamentos e do objeto da ação estatal
preservacionista deve-se à necessidade de estabelecer-se um corte ao presente estudo,
assim como ao fato daquelas refletirem as principais questões doutrinárias e
conceituais debatidas por especialistas do mundo todo sobre o tema, enfatizando, nas
últimas décadas, a importância de um olhar para o patrimônio cultural urbano em sua
globalidade.
Ademais, é sabido que as atuações, no Brasil, dos órgãos responsáveis pelo
tombamento, conservação e restauração de bens arquitetônicos foram e ainda hoje são
norteadas, na prática, pelas determinações emanadas dessas cartas patrimoniais
internacionais.8
1.1. Antecedentes normativos da preservação no mundo ocidental
Desde a Antiguidade, registra-se a existência de normas voltadas à preservação
de patrimônios construídos. O alcance, os fundamentos e os parâmetros dessa
proteção, no entanto, é que variaram conforme o tempo e o espaço considerados.
Assim, em aproximadamente 44 d. C., já vigorava na cidade de Herculano, na
atual Itália, um Decreto que obrigava os indivíduos que demolissem uma edificação
com fins especulativos a pagarem às autoridades valor equivalente ao dobro do preço
de compra do imóvel. Também na época romana, no ano de 389, um Édito dos
imperadores Valentiniano, Teodósio e Arcádio proibia acréscimos modernos que
desfigurassem ornamentos exteriores de edificações privadas e vedava a danificação
de construções históricas de cidades importantes por razões de cobiça ou ânsia de
lucro9.
8
Carlos Alberto Cerqueira Lemos, “Apresentação”, In Patrimônio: Atualizando o debate, Victor Hugo Mori
et alli, p. 13.
9
Miguel Brito Correia, “Enquadramento Histórico das Normas Internacionais”, In Flavio Lopes; Miguel
Brito Correia (org.), Património Arquitectónico e Arqueológico: Cartas, Recomendações e Convenções, p.
13.
7
Não obstante estes exemplos, é de se destacar que normas de feições
marcadamente preservacionistas ainda eram raras e de alcance muito restrito nesse
tempo, vislumbrando-se semelhante situação na Idade Média10.
A partir do Renascimento, assiste-se a um expressivo aumento no número de
normas de proteção publicadas na Europa.
Somente na região da Itália, nos séculos XV e XVI, registra-se a produção de
diversas bulas papais que tinham por objeto a restauração e a conservação de
equipamentos urbanos e de monumentos11. Também foram publicados inúmeros
outros atos, por diferentes Papas, cujas disposições proibiam a pilhagem de achados
arqueológicos, a extração de partes de monumentos para emprego em construção
nova, assim como a exportação de antiguidades12. Na região da Toscana, a Lei de 30
de maio de 1571 continha igualmente um viés claramente protecionista.13
Fora da península itálica - porém ainda no âmbito da Europa - são citadas
como normas que trataram pioneiramente da tutela de bens culturais: a Proclamation
agaynst breakynd or defacing of monuments, publicada em 19 de setembro de 1560
pela Rainha Isabel I da Inglaterra, em reação à forte onda de destruições de igrejas e
outros ícones das ordens religiosas recém abolidas; e o Decreto sobre Monumentos
Antigos, publicado em 28 de novembro de 1666 pelo Rei Carlos XI da Suécia, que
10
Miguel Brito Correia, op. Cit., p. 13. Sobre normas de proteção do patrimônio construído na Idade Média,
cf. Ferdinand Adolf Gregorovius, History of the City of Rome in the Middle Ages, 1967. Cf. também Cevat
Erder, Our Cultural Heritage: From Consciousness to Conservation, Museums and Monuments Series XX, p.
103.
11
Como exemplos, vale citar a Bula do Papa Martinho V Etsi in cunctarum orbis, de 30 de março de 1425,
que restabeleceu a função de magistri viarum, responsável pela reparação de ruas, pontes, portas, muros,
edifícios; a Bula do Papa Pio II Cum alman nostram urbem, de 28 de abril de 1462, contra a destruição de
monumentos da Antiguidade; e a Bula do Papa Sisto IV Quum provvida, 25 de abril de 1574.
12
A ved ação da exportação de antiguidades foi objeto específico do Decreto do Papa Urbano VIII, de 5 de
outubro de 1624. Françoise Choay lembra caber aos Papas, nesse período, a tarefa de preservação e que a
dilapidação de monumentos, assim como a apropriação privada de antiguidades clássicas eram muito comuns
e haveriam de crescer com o florescimento do comércio de objetos artísticos. A alegoria do patrimônio, p.
53-59.
13
Miguel Brito Correia também noticia uma sequência de atos normativos protecionistas publicados nessa
mesma região em 1646, em 1717, em 1726, em 1733 e em 1750. Op. Cit, p. 13-14.
8
diversamente da lei inglesa, refletia tão somente o empenho deste monarca de ver
aprofundado o conhecimento da História deste país14.
Por ocasião da Revolução Francesa, uma série de princípios norteadores de
políticas de salvaguarda ganhou forças com vistas a rechaçar as graves ameaças de
destruição de monumentos da história, da arte e da ciência, os quais, então recém
“reavidos” do clero15 e da Coroa pela Nação, passaram a ser vistos como integrantes
do patrimônio nacional francês.
A este patrimônio fora reconhecido valor cultural e educativo, impondo-se a
toda a Nação o dever de sua conservação integral16. As ameaças a este patrimônio
derivavam especialmente da perda brutal das destinações originais dos bens que o
integravam - em razão da transferência de titularidade destes
17
-, assim como da
força da destruição ideológica de que parte deles tornara-se alvo a partir de 179218.
14
Miguel Brito Correia, Op. Cit., p. 14.
15
A colocação dos bens do clero à disposição da Nação foi um dos primeiros atos produzidos pela
Constituinte, em 2 de outubro de 1789.
16
Miguel Brito Correia, Op. Cit., p. 14.
17
“[...] antes de qualquer decisão sobre sua destinação futura, estes [bens que passam a compor o patrimônio
da nação] são protegidos e postos ‘fora de circulação’ em caráter provisório, [...]. [...] Mas o problema
fundamental é a necessidade de decidir, em regime de urgência e de forma que resguarde o interesse coletivo,
sobre a destinação dos objetos heterogêneos que se tornaram patrimônios da nação”. Françoise Choay, A
alegoria do patrimônio, p. 100. Esta mesma autora prossegue analisando, mais adiante, que: “Os bens
imóveis, conventos, igrejas, castelos, residências particulares ensejavam outros problemas [diferentes dos
verificados para os bens móveis], em outra escala, e as comissões revolucionárias encarregadas de sua
conservação mostravam-se ainda mais despreparadas para isso do que no caso dos depósitos. Do estrito ponto
de vista da manutenção, elas não dispunham de infra-estruturas técnicas e financeiras que lhes permitissem
substituir, nessa função, os antigos proprietários eclesiásticos, reais ou feudais. Mas, principalmente, era-lhes
necessário inventar novos usos para os edifícios que haviam perdido sua destinação original – reutilização
cujos problemas podemos imaginar, comparando-se àqueles com os quais, apesar de uma longa experiência,
ainda hoje nos deparamos. Exemplo: o que se podia fazer com uma igreja? Anexá-la para o culto do Ser
Supremo? Essa solução não teve mais sucesso que a tentativa, no fim da Antiguidade, de conversão dos
templos pagãos em igrejas cristãs. Seu estilo neoclássico, de acordo com os ideais da Revolução, fez que a
igreja Sainte-Geneviève se tornasse, a partir da proposta de Quatremère de Quincy, o ‘Panteon francês’.
Kersaint propôs, sem sucesso, planos detalhados para a transformação da Madeleine em sede da Assembléia
Nacional. Bréquigny sugeriu que se utilizassem, de forma sistemática, as igrejas desativadas como museus.
Mas as catedrais e as igrejas que, em muitos casos, haviam perdido seus telhados foram antes convertidas em
depósitos de munição, de salitre ou de sal e, dependendo do caso, também em mercados, enquanto os
conventos e abadias eram transformados em prisões, como Fontevrault, ou em casernas”. Op. Cit, p. 104-105.
18
Françoise Choay relata que esse processo destruidor suscitara uma reação de defesa imediata, por
parte do Estado revolucionário, cujos procedimentos inserem-se no que a autora designou como
“conservação secundária ou reacional”, que se opõe à “conservação primária ou preventiva”, relativa
às medidas tomadas desde o início da Revolução para a proteção ordinária do patrimônio
nacionalizado. A conservação reacional, verificada na França a partir de 1792, seria “comparável à
que foi provocada pelo vandalismo dos reformados na Inglaterra. Contudo, na França em revolução, a
9
As instâncias revolucionárias, por meio de seus decretos e “instruções”,
instituíram uma série de procedimentos auxiliares à conservação desse patrimônio
nacional – tais como a classificação das diferentes categorias de bens culturais,
móveis e imóveis; o inventário sistemático desses bens; o levantamento do estado de
conservação de cada um deles; etc – antecipando, por assim dizer, o aparelho jurídico
e técnico de conservação de monumentos históricos que viria a ser desenvolvido mais
aprofundadamente na França na década de 1830, por Vitet, Mérimée e pela primeira
Comission des Monuments Historiques19.
Progressivamente, ao longo do século XIX e no início do século XX, a maioria
dos países europeus foi criando seus sistemas normativos próprios de preservação,
assim como estruturando órgãos oficiais para esses fins.20
Maria Cecília Londres Fonseca, interpretando a própria noção de patrimônio –
e reflexamente a sua política de preservação – como inseridas em um projeto mais
amplo de construção de uma identidade nacional, enumera algumas funções
simbólicas exercidas por esse patrimônio preservado, em favor do processo de
consolidação dos Estados-nações modernos:
1. reforçar a noção de cidadania, na medida em que são identificados, no
espaço público, bens que não são de exclusiva posse privada, mas
propriedade de todos os cidadãos, a serem utilizados em nome do
interesse público. Nesse caso, o Estado atua como guardião e gestor
desses bens;
2. ao partir da identificação, nos limites do Estado nacional, de bens
representativos da nação – demarcando-a assim no tempo e no espaço – a
noção de patrimônio contribui para objetivar, tornar visível e real, essa
entidade ideal que é a nação, simbolizada também por obras criadas
expressamente com essa finalidade (bandeiras, hinos, calendário,
alegorias e mesmo obras de artistas plásticos, como David). A
postura da reação assume outra dimensão e outro significado, político. Ela agora não visa apenas à
conservação das igrejas medievais, mas, em sua riqueza e diversidade, à totalidade do patrimônio
nacional”. Op. Cit, p. 97.
19
Françoise Choay, Op. Cit., p.95.
20
Para um rico levantamento das normas nacionais instituidoras de sistemas e órgãos oficiais de preservação
do patrimônio cultural em diversos países europeus, cf. Miguel Brito Correia, Op. Cit, p. 14-15.
10
necessidade de proteger esse patrimônio comum reforça a coesão
nacional;
3. os bens patrimoniais, caracterizados desde o início por sua
heterogeneidade, funcionam como documentos, como provas materiais
das versões oficiais da história nacional, que constrói o mito de origem da
nação e uma versão da ocupação do território, visando a legitimar o poder
atual;
4. A conservação desses bens – onerosa, complexa e frequentemente
contrária a outros interesses, públicos e privados - é justificada por seu
alcance pedagógico, a serviço da instrução dos cidadãos.21.
Ainda segundo esta autora, “a preservação como atividade sistemática só se
tornou possível [...] porque ao interesse cultural se acrescentaram um interesse
político e uma justificativa ideológica”.22
Na
América,
a
presença
monumental
da
civilização
pré-colombiana
impulsionou o México a publicar pioneiramente uma legislação patrimonial já em
1827, contando este país com uma Junta de Antiguidades desde 1808. Os Estados
Unidos publicaram seu Antiquities Act em 1906. Já no Brasil, a sistematização da
matéria alcançou o nível legal nacional somente em 1937, como se verá no Capítulo 3
deste trabalho.
Ao mesmo tempo em que essas inovações normativas ocorriam, especialmente
nos Estados nacionais europeus, também as atividades práticas de restauro de
monumentos foram desenvolvidas nesses diferentes países. Foi a partir das
experiências acumuladas com esses restauros que diversas correntes teóricas de
intervenção em monumentos foram sendo definidas, influenciando decisivamente o
conteúdo de alguns documentos internacionais a partir da década de 1930.
Também, de um modo geral, são perceptíveis nos textos das principais normas
internacionais atinentes à matéria mudanças significativas nos fundamentos e nos
21
O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil, p. 59-60.
22
Op. Cit., p. 60.
11
meios nacionais de salvaguarda do patrimônio cultural, assim como na própria
concepção desse patrimônio.
A seguir, será dado enfoque aos diferentes fundamentos dos quais alguns dos
principais documentos internacionais atinentes ao tema lançaram mão para justificar a
necessidade de preservação nacional e mesmo internacional do patrimônio cultural.
1.2. Fundamentos da preservação em documentos internacionais
A produção de documentos internacionais versando especificamente sobre a
preservação do patrimônio cultural é atividade recente na História universal. Entre
fins do século XIX e início do século XX, verificam-se as primeiras referências
normativas internacionais à proteção de monumentos e edificações – via de regra
motivadas pelas ameaças decorrentes de conflitos armados -, assim como os
primeiros textos técnicos internacionais de conservação e restauro.23
Um dos documentos mais antigos a mencionar explicitamente preocupações
com a conservação de bens culturais foi a Declaração de Bruxelas, de 27 de agosto
de 1874, dedicada a reger as condutas dos Estados em tempos de guerra. Esta
Declaração não chegou a entrar em vigor, mas em seu texto já se consignava a não
destruição ou apropriação de estabelecimentos dedicados à instrução, às artes e às
ciências, bem como de monumentos históricos e obras de arte, quando da ocupação
de territórios de Estados inimigos por autoridades militares.24
Em 29 de julho de 1899, por ocasião da conclusão dos trabalhos da primeira
Conferência Internacional de Haia25 e sob influência desta Declaração, restou
23
Cf. Miguel Brito Correia, Op. Cit., p. 13-21.
24
“Art. 8. Les biens des communes, ceux des établissements consacrés aux cultes, à la charité et à
l'instruction, aux arts et aux sciences, même appartenant à l'Etat, seront traités comme la propriété privée.
Toute saisie, destruction ou dégradation intentionnelle de semblables établissements, de monuments
historiques, d'oeuvres d'art ou de science, doit être poursuivie par les autorités compétentes”. Disponível em
http://www.icrc.org/dih.nsf/FULL/135?OpenDocument. Acesso em 15 jan. 2010.
25
Esta primeira Conferência Internacional de Haia foi realizada no período de 18 de maio a 29 de julho de
1899 e resultou na produção de três Convenções e três Declarações, a saber: I. Convenção para a regulação
12
convencionado que, nos casos de cercos e bombardeamentos, deveriam ser adotadas
todas as medidas necessárias para poupar o máximo quanto possível edifícios
dedicados à religião, à arte, à ciência, à assistência, monumentos históricos, hospitais
e abrigos de doentes e feridos – desde que, no entanto, eles não estivessem sendo
utilizados para fins militares. Também se convencionou que estes edifícios especiais
deveriam ser identificados com sinais visíveis e distintivos26.
Em 18 de outubro de 1907, na II Conferência Internacional de Haia, as
Convenções assinadas em 1899 foram revistas e ampliadas, especialmente para
incluir disposições aplicáveis aos casos de guerra naval27. Nessa revisão, manteve-se
mesma recomendação comentada acima, atinente à conservação de monumentos
históricos e de edifícios voltados à religião, arte, ciência, etc, acrescendo-se
especificações de tamanho, forma e cores do sinal distintivo a ser colocado nesses
edifícios especiais, com vistas a protegê-los também de ataques navais28.
Aproximadamente nessa mesma época, as conclusões a que chegaram centenas
de participantes do 6º Congresso Internacional de Arquitetos - realizado em Madri,
em abril de 1904, para tratar de variados temas de arquitetura –, ofereceram
elementos bastante elucidativos das preocupações de especialistas de diversas
nacionalidades com que os Estados garantissem, também em tempos de paz, a
pacífica dos conflitos internacionais; II. Convenção relativa às leis e aos costumes da guerra terrestre; III.
Convenção para a adaptação à guerra marítima dos princípios da Convenção de Genebra de 22 de agosto de
1864; IV.1. Declaração concernente à proibição de lançamento de projéteis e de explosivos do alto de balões;
IV.2. Declaração relativa à proibição do emprego de de projéteis que tenham por intuito único emitir gases
asfixiantes ou deletérios; e IV.3. Declaração referente à proibição de emprego de balas que se introduzem
facilmente no corpo humano.
26
Cf. Conveção relativa às leis e aos costumes da guerra terrestre (Convenção II, de 1899), cujo artigo 27
dispõe o seguinte: “In sieges and bombardments all necessary steps should be taken to spare as far as possible
edifices devoted to religion, art, science, and charity, hospitals, and places where the sick and wounded are
collected, provided they are not used at the same time for military purposes. The besieged should indicate
these buildings or places by some particular and visible signs, which should previously be notified to the
assailants”. Disponível em: http://avalon.law.yale.edu/19th_century/hague02.asp. Acesso em: 15 jan. 2010.
27
Elas passaram a totalizar doze Convenções.
28
“Art. 5 º. In bombardments by naval forces all the necessary measures must be taken by the commander to
spare as far as possible sacred edifices, buildings used for artistic, scientific, or charitable purposes, historic
monuments, hospitals, and places where the sick or wounded are collected, on the understanding that they are
not used at the same time for military purposes. It is the duty of the inhabitants to indicate such monuments,
edifices, or places by visible signs, which shall consist of large, stiff rectangular panels divided diagonally
into two coloured triangular portions, the upper portion black, the lower portion white”. Disponível em
http://avalon.law.yale.edu/20th_century/hague09.asp. Acesso em: 15 jan. 2010.
13
adequada salvaguarda dos monumentos históricos e arquitetônicos contidos em seus
territórios:
1º. Há logar para distinguir duas especies de monumentos: os
monumentos pertencentes a um período de civilisação, servindo a
usos que já não existem e jamais existirão, e os monumentos que
continuam a ser utilizados para o fim para que foram construídos, ou
para outros.
2º. Os monumentos mortos, devem sómente ser conservados
consolidando as partes indispensaveis para evitar que caiam em
ruinas; porque a importância dum monumento reside no seu valor
historico e technico, valor que desapparece com o monumento.
3º. Os monumentos vivos, devem restaurar-se para que possam
continuar a servir, porque em Architectura, a utilidade é uma das
bases da belleza.
[...]
6º. Promover-se-á em todos os paizes, onde ainda não existam, a
creação de Sociedades de defeza para os monumentos historicos e
artisticos; nas nações onde existam, provocar [sic] o seu
desenvolvimento, podendo agruparem-se por um esforço commum e
collaborarem no estabelecimento do inventário geral das riquezas
nacionaes e locaes.29
O primeiro documento internacional dedicado exclusivamente ao patrimônio
foi produzido somente 27 anos mais tarde, em 1931. Tratava-se da Carta de Atenas
sobre o restauro de monumentos, derivada das conclusões gerais da Conferência
Internacional sobre a Proteção e a Conservação de Monumentos de Arte e de
História30, realizada em Atenas, de 21 a 30 de outubro de 1931.
A Carta de Atenas, utilizando-se dos conceitos de algumas correntes teóricas
de intervenção em monumentos, discutiu uma série de aspectos que traduziam,
29
(grifamos). Trecho transcrito de Miguel Brito Correia, Op. Cit., p. 16.
30
Esta Conferência fora organizada pelo Serviço Internacional de Museus - organismo autônomo criado em
1926, no seio do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, que era o órgão técnico de uma das
Comissões da Sociedade das Nações -, e teria influenciado a criação da Comissão Internacional dos
Monumentos Históricos, considerada por muitos como precursora do atual Conselho Internacional dos
Monumentos e dos Sítios – ICOMOS.
14
naquele tempo, as principais preocupações dos técnicos de conservação e restauro de
bens culturais31.
As conclusões gerais dessa Conferência ofertaram um conjunto de relevantes
princípios aplicáveis às atividades técnicas de conservação e restauro, os quais, pelo
ineditismo com que estabelecidos no plano internacional, merecem aqui menção,
ainda que de forma resumida:
- Os restauros, quando inevitáveis, deverão respeitar a obra histórica
e artística do passado, sem excluir estilos de qualquer época;
- A utilização dos monumentos deve respeitar o seu caráter histórico
ou artístico [a fim de assegurar a sua longevidade];
- O interesse da coletividade sobrepõe-se ao interesse privado. Deve
ter-se em conta o sacrifício acrescido, exigido aos proprietários, na
ótica da preservação do bem comum;
- O caráter e a fisionomia das cidades devem ser respeitados [quando
da construção de edifícios], sobretudo nas proximidades dos
monumentos;
- É aceite o emprego judicioso de materiais e técnicas modernos,
para a consolidação de edifícios antigos;
- Nas condições da vida moderna, os monumentos estão cada vez
mais ameaçados pelos agentes atmosféricos, pelo que é necessária a
colaboração dos especialistas: físicos, químicos e biólogos;
- O emprego de materiais modernos na conservação de uma ruína
deve ser sempre passível de reconhecimento (no sentido de evitar
mimetismos);
- Quando se mostrar impossível a conservação de ruínas postas a
descoberto por escavações, é aconselhável enterrá-las de novo, para
evitar a degradação;
- A conservação dos monumentos exige uma cooperação intelectual
universal e deverá constituir um objetivo educacional para a
juventude;
- A proteção e conservação dos monumentos exigem normas
jurídicas adaptadas a cada país.32
31
Hoje, outras doutrinas se desenvolveram e outras preocupações se somaram ao tema, como se verá adiante.
15
O trecho destacado acima fornece indícios de que, nessa época, a principal
ameaça aos monumentos - em tempos de paz – era notadamente os agentes naturais
atmosféricos.
Essas conclusões gerais deram origem à Resolução sobre a conservação de
monumentos históricos e de obras de arte, aprovada pela Sociedade das Nações em
10 de outubro de 1932. Era, então, a primeira vez que uma norma jurídica de uma
organização internacional abordava a questão do patrimônio e reconhecia a sua
importância para a humanidade.33
De um modo geral, na década de 1930, ainda eram expressivas as
preocupações internacionais com a proteção do patrimônio cultural contra os perigos
que a guerra lhe representava. A esse respeito dispuseram o Pacto de Washington (ou
Pacto de Roerich), assinado em 1935 por 21 nações americanas, e o Anteprojeto de
Convenção internacional para a proteção dos monumentos e obras de arte em tempo
de guerra (1936), que não chegou a ter aprovação, por conta da eclosão da 2ª Guerra
Mundial, mas que juntamente com aquele Pacto, influenciaram decisivamente a
publicação pela UNESCO, em 1954, da Convenção para a proteção de bens culturais
em caso de conflito armado (também conhecida como Convenção de Haia de 1954).
A Convenção de Haia de 1954 derivou da terrível experiência da 2ª Guerra
Mundial, tendo reconhecido, em seu texto, o efeito devastador dos novos
instrumentos bélicos sobre os bens culturais, assim como a necessidade de se
organizar medidas efetivas de salvaguarda desses bens em tempos de paz34.
32
(grifamos). Flavio Lopes, “Evolução do pensamento contemporâneo através da leitura de normas
internacionais”, In Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.), Património Arquitectónico e Arqueológico:
Cartas, Recomendações e Convenções, p.26-27.
33
A Carta de Atenas a respeito da qual doravante se discorreu não deve ser confundida com a Carta
de Atenas sobre o Urbanismo Moderno, de 1933. Conforme relata Miguel Brito Correia, “a Carta de
Atenas sobre o urbanismo moderno foi publicada nos Annales Techniques (órgão oficial da Câmara Técnica
da Grécia, sediada em Atenas) nº 44-45-46, de Novembro de 1933, e somente em 1943 é publicada em livro
pelo grupo CIAM-França, de que Le Corbusier era um dos expoentes”. Op. Cit., p. 22, nota 19. Esta Carta
exprime a construção da ideologia Modernista sobre o urbanismo. A partir dos anos 70, todo o movimento
moderno é revisto.
34
Flavio Lopes, op. Cit, p. 29. Cf. Preâmbulo da Convenção de Haia de 1954. Disponível em
http://portal.unesco.org/publicacoes/docinternacionais/doccultura. Acesso em 12 jul. 2009.
16
Nesta Convenção, restaram consolidadas as ideias-chaves de que: a) “os danos
ocasionados aos bens culturais pertencentes a qualquer povo constituem um prejuízo
ao patrimônio cultural de toda a humanidade, dado que cada povo traz a sua própria
contribuição para a cultura mundial”; e de que b) “a conservação do patrimônio
cultural apresenta uma grande importância para todos os povos do mundo”, sendo
conveniente “que este patrimônio tenha uma proteção internacional”35.
Reforçava-se aqui, portanto, a necessidade de se estabelecerem, nos níveis
nacional e internacional, medidas de preservação de bens culturais de longo prazo,
voltadas para os tempos de paz, com especial fundamento na importância desses bens
para a cultura mundial.
Esta justificativa de preservação do patrimônio em razão da relevância deste
para a cultura de toda a humanidade – verificada pela primeira vez na Resolução da
Sociedade das Nações de 1932 e reiterada nessa Convenção de Haia, de 1954 continuou fortemente presente no pensamento da comunidade internacional.36
Assim, na Conferência de Washington, realizada em 1965 pela UNESCO, foi
recomendada a criação de um trust para o patrimônio mundial. E em novembro de
1972, foi aprovada por este mesmo organismo a Convenção para a proteção do
patrimônio mundial, cultural e natural, cujo alto índice de adesão – quase
consensual, posto que mais de 175 dos 189 Estados membros da UNESCO assinaram
essa Convenção - demonstra a importância atribuída pelas nações a esse patrimônio
universal. Esta Convenção da UNESCO de 1972 será analisada em detalhes no
Capítulo 4 deste trabalho.
Depois da 2ª Guerra Mundial, os problemas da industrialização e da
urbanização em massa passaram a repercutir mais intensamente nas cidades. A ação
35
(traduzimos). Cf. Preâmbulo da Convenção de Haia de 1954. Disponível
http://portal.unesco.org/publicacoes/docinternacionais/doccultura. Acesso em 12 jul. 2009.
em
36
Conforme observa Fernando Fernandes da Silva, “Vários são os interesses comuns da humanidade
em torno da proteção dos bens culturais: a necessidade de preservar e transmitir às futuras gerações
informações a respeito de experiências acumuladas ao longo dos séculos sobre comportamento
humano, regimes políticos e econômicos, indispensáveis para a compreensão de fenômenos que
afetam a humanidade no presente e no futuro; a utilização dos bens culturais como fonte de deleite e
lazer; a necessidade de o homem manter-se ligado aos seus antepassados ou apegar-se a tradições que
o remontem a épocas de engrandecimento espiritual ou material da humanidade”. As cidades
brasileiras e o patrimônio cultural da humanidade, p. 54.
17
destruidora de bens culturais tornou-se muito mais vigorosa no meio urbano do que
no meio rural. Nesse cenário, em que os agentes atmosféricos já não representavam
mais a principal ameaça a esses bens, despertaram-se as consciências para a
importância do ambiente37 e para a necessidade de formulação de ações
preservacionistas voltadas à solução dos problemas de gestão patrimonial
presenciados especificamente no meio urbano.
A Carta de Veneza, resultante do II Congresso de Arquitetos e Técnicos de
Monumentos Históricos, realizado em maio de 196438, já acenava que “o monumento
é inseparável da história de que é testemunho e do lugar em que está localizado”39 e
que “a conservação de monumentos é sempre favorecida pela sua destinação a uma
função útil à sociedade”, que garantirá a constância em sua manutenção40.
Com essas assertivas, a Carta de Veneza lançava as bases para o
desenvolvimento posterior, pela comunidade internacional, de duas ideias hoje
marcantes em matéria de preservação:
Uma primeira, de que os bens culturais imóveis presentes no ambiente urbano
não devem ser vistos de maneira isolada, mas sim como inseridos num contexto, ou
seja, como parte inerente ao ambiente em que se situam. E uma segunda, de que esses
bens, na maioria dos casos, podem ter uma função diversa da originalmente
concebida, com vistas a conciliar os interesses de conservação aos anseios de
desenvolvimento econômico e social.
Nesse contexto de acelerado crescimento da população nas cidades, Flávio
Lopes observa que
37
Fernando Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da legalidade, p. 75.
38
A Carta de Veneza, também intitulada Carta internacional sobre a conservação e o restauro de
monumentos e sítios, é considerada por muitos especialistas como o mais importante documento doutrinário e
técnico até então elaborado, mantendo uma atualidade notável e servindo, ainda hoje, como base à restante
produção normativa do ICOMOS.
39
O monumento é concebido pela Carta de Veneza tanto como criação arquitetônica isolada, quanto como
conjunto urbano ou rural que dá testemunho a uma civilização particular.
40
Arts. 4º e 5º da Carta de Veneza, 1964. Essa Carta assumiu especial relevância à matéria em razão da
noção mais ampliada de monumento histórico adotada em seu texto, que será comentada oportunamente no
Capítulo 2 deste trabalho.
18
[...] o visível fracasso de grande parte das intervenções urbanísticas
que suportaram o crescimento acelerado das cidades, despontou um
novo sentido de exigência e uma nova esperança: a revitalização dos
centros urbanos antigos, com a reutilização do patrimônio edificado
existente, e a manutenção da ambiência social dos bairros
históricos.41
Entre as diversas normas internacionais dispondo sobre estas matérias,
destacam-se a Recomendação sobre a salvaguarda dos conjuntos históricos e da sua
função na vida contemporânea (ou Recomendação de Nairobi), aprovada pela
UNESCO em 1976; e a Carta internacional sobre a salvaguarda das cidades
históricas e áreas urbanas históricas (ou Carta de Washington), publicada pelo
ICOMOS em 1987.
Na Recomendação de Nairobi, foi ressaltada a importância dos conjuntos
históricos ou tradicionais para a sociedade, tendo em vista que eles
[...] fazem parte do ambiente cotidiano dos seres humanos em todos
os países; constituem a presença viva do passado que lhes deu forma;
asseguram ao quadro da vida a variedade necessária para responder à
diversidade da sociedade e, por isso adquirem um valor e uma
dimensão humana suplementares;
[...] constituem através das idades os testemunhos mais tangíveis da
riqueza e da diversidade das criações culturais, religiosas e sociais
da humanidade [...];
[...] adquirem uma importância vital para cada ser humano e para as
nações que neles encontram a expressão de sua cultura e, ao mesmo
tempo, um dos fundamentos de sua identidade.42
Também se reconheceu a rapidez das transformações econômicas e sociais,
entendendo-se que a crescente universalidade das técnicas construtivas e das formas
arquitetônicas apresentam o risco de uniformização dos povoamentos humanos no
mundo inteiro. Em razão desse risco, este documento sugeriu a promoção da
41
Op. Cit., p. 30.
42
Recomendação de Nairobi. UNESCO, 1976, Considerações Iniciais.
19
salvaguarda dos conjuntos históricos para evitar a descaracterização ambiental, assim
como para desenvolver os valores culturais e sociais peculiares de cada nação43.
Como modo de garantia efetiva dessa salvaguarda, recomendou a urgente
adoção, por todos os Estados, de uma política global e ativa de proteção e de
revitalização dos conjuntos históricos ou tradicionais e de sua ambiência, como parte
do planejamento nacional, regional ou local, de forma a orientar a ordenação e o
planejamento físico-territorial em todos os níveis.44
Por sua vez, a Carta de Washington, publicada pelo ICOMOS em 1987,
considerou os conjuntos urbanos como a expressão material da diversidade das
sociedades ao longo da história. E, em que pese essa importância dos conjuntos
urbanos, eles estariam sendo gravemente ameaçados pela degradação, deterioração e
destruição provocadas por um tipo de urbanização característico da era industrial,
afetando universalmente todas as sociedades.45
Reconheceu-se que essa situação é por vezes dramática e, com vistas a refrear
essas potenciais alterações do caráter cultural, social e econômico desses conjuntos
urbanos – com perdas irreversíveis para a sociedade-, foram sugeridas neste documento
internacional medidas concretas de atuação estatal, nomeadamente a figura do plano
de
salvaguarda”46.
Este
deveria
“integrar-se
numa
política
coerente
de
desenvolvimento econômico e social e ser tomado em consideração em todos os
níveis de planejamento territorial e do urbanismo”47.
43
Cf. Flávio Lopes, op. Cit., p. 30-31. Cf. também item II.6 dessa Recomendação (Princípios Gerais).
Disponível em www.iphan.gov.br. Acesso em 12 jul. 2009.
44
Assim, dispõe essa Recomendação a esse respeito: “III – Política nacional, regional e local: Em cada
Estado membro deveria se formular, nas condições peculiares a cada um em matéria de distribuição de
poderes, uma política nacional, regional e local a fim de que sejam adotadas medidas jurídicas, técnicas,
econômicas e sociais pelas autoridades nacionais, regionais e locais para salvaguardar os conjuntos históricos
ou tradicionais e sua ambiência e adaptá-los às exigências da vida contemporânea. Essa política deveria
influenciar o planejamento nacional, regional e local e orientar a ordenação urbana e rural e o planejamento
físico-territorial em todos os níveis. As ações resultantes desse planejamento deveriam se integrar à
formulação dos objetivos e programas, à distribuição das funções e à execução das operações. Dever-se-ia
buscar a colaboração dos indivíduos e das associações privadas para aplicação da política de salvaguarda”.
45
Carta de Washington. ICOMOS, 1987, “Preâmbulo e Definição”.
46
Flávio Lopes, op. Cit., p. 31.
47
Carta de Washington, ICOMOS, 1987, “Princípios e Objetivos”, artigo 1º.
20
Estas duas últimas normas internacionais exprimem um grande avanço teórico
em matéria de preservação do patrimônio arquitetônico, consistente no abandono dos
princípios da proteção atomizada de monumentos isolados para se passar a
compreender todo o tecido urbano.
Essa importância do planejamento como instrumento de conservação e
renovação dos centros urbanos antigos também encontrou acolhida na Declaração de
Amsterdã e na Carta Europeia do Patrimônio Arquitetônico, ambas publicadas pelo
Conselho da Europa, em 1975. De acordo com esta Carta,
O patrimônio arquitetônico dá testemunho da presença da história e
de sua importância em nossa vida.
A encarnação do passado no patrimônio arquitetônico constitui um
ambiente indispensável ao equilíbrio e ao desenvolvimento do
homem.
Os homens do nosso tempo, em presença de uma civilização que
muda de feição e cujos perigos são tão manifestos quanto os bons
resultados, se apercebem instintivamente do valor desse patrimônio.
É uma parte essencial da memória dos homens de hoje em dia e se
não for possível transmiti-la às gerações futuras na sua riqueza
autêntica e em sua diversidade, a humanidade seria amputada de uma
parte da consciência de sua própria continuidade.
O patrimônio arquitetônico é um capital espiritual, cultural,
econômico e social cujos valores são insubstituíveis.
Cada geração dá uma interpretação diferente ao passado e dele extrai
novas ideias.48
Reconheceu-se também, nessa Carta, que somente mediante a gestão
integrada dos bens patrimoniais, com a concertação de esforços entre todos os
intervenientes nos processos de ordenação do território e a disponibilização dos meios
48
Extraído da versão da Carta do Patrimônio Arquitetônico Europeu disponível em www.iphan.gov.br.
Acesso em 12 jul. 2009.
21
adequados, é possível alcançar resultados satisfatórios49. Esclareceu-se, nessa
ocasião, que a conservação integrada
- Deve constituir uma das primeiras metas dos projetos de
planejamento urbano e regional;
- Atinge-se através da aplicação conjugada de técnicas adequadas de
restauro e da escolha correta de funções apropriadas; e
- Carece de suporte legal, administrativo, financeiro e técnico.50
Não obstante todo esse desenvolvimento teórico quanto aos fundamentos a
justificarem as ações preservacionistas nacionais e internacionais do patrimônio
cultural, assim como quanto aos meios de assim fazê-lo, na prática, ainda se
observam
muitos
conflitos
de
interesses,
assim
como
outros
impasses
à
implementação dessas ideias, que necessitam ser superados.
49
Flávio Lopes, op. Cit., p. 32-33.
50
Idem, Ibidem, p. 32-33.
22
Capítulo 2 O QUE PRESERVAR?
For many years, only major monuments were
protected and restored and then without
reference to their surroundings. More recently
it was realised that, if the surroundings are
impaired, even those monuments can lose
much of their character. Today it is recognized
that entire groups of buildings, even if they do
not include any example of outstanding merit,
may have an atmosphere that gives them the
quality of works of art, welding different
periods and styles into a harmonious whole.
These groups should also be preserved.
Carta do Patrimônio Arquitetônico Europeu51
2.1. A noção de patrimônio cultural nos documentos internacionais
Já se comentou que, de um modo geral, os conceitos e doutrinas internacionais
envolvendo a matéria de preservação do patrimônio arquitetônico sofreram mudanças
significativas ao longo dos tempos. Por exemplo, durante o século XX, assistiu-se a
um alargamento gradativo da noção de patrimônio cultural veiculada nas Cartas,
Convenções, Resoluções e Recomendações publicadas por entidades internacionais
como a UNESCO, o ICOMOS, o Conselho da Europa, etc.
De início, a preocupação manifestada nesses documentos centrava-se
basicamente nos monumentos isolados, dotados de “importância excepcional” notadamente histórica e arquitetônica. As Convenções de Haia de 1899 e 1907 e a
Carta de Atenas de 1931 são bastante elucidativas dessa atenção voltada a este tipo
específico de bem cultural.
51
Conselho da Europa, 1975.
23
Grosso modo, prevaleciam as preocupações com a conservação desses
monumentos, em detrimento de tudo quanto estivesse no seu entorno e que pudesse
ofuscar a sua suntuosidade.
Mesmo quando se recomendou, no texto da Carta de Atenas, o respeito ao
caráter e à fisionomia da vizinhança dos monumentos antigos52, restava claro ali que a
importância dada à ambiência devia-se ao interesse de se conferir maior destaque a
estes, funcionando aquela, portanto, como elemento acessório, adjetivo dos
monumentos, e não exatamente como patrimônio cultural, isto é, como o próprio
objeto da preservação.
Na Convenção de Haia de 1954, estabeleceu-se pela primeira vez no nível
normativo internacional uma definição para “bens culturais”, ainda restrita ao
universo material. Assim, dispôs seu artigo 1º que
Para os fins da presente Convenção, são considerados como bens
culturais, qualquer que seja sua origem e seu proprietário:
a) Os bens, móveis ou imóveis, que tenham uma grande importância para o
patrimônio cultural dos povos, tais como os monumentos de arquitetura,
de arte ou de história, religiosos ou seculares, os campos arqueológicos,
os grupos de construções que por seu conjunto ofereçam um grande
interesse histórico ou artístico, as obras de arte, manuscritos, livros e
outros objetos de interesse histórico, artístico ou arqueológico, assim
como as coleções científicas e as coleções importantes de livros, de
arquivos ou de reproduções dos bens antes definidos;
b) Os edifícios cuja destinação pricipal e efetiva seja conservar ou expor os
bens culturais móveis definidos na alínea a), tais como os museus, as
grandes bibliotecas, os depósitos de arquivos, assim ocmo os refúgios
destinados a proteger em caso de conflito armado os bens culturais
móveis definidos na alínea a);
52
Cf. item III das Conclusões Gerais da Carta de Atenas. Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.),
Património Arquitectónico e Arqueológico: Cartas, Recomendações e Convenções, p. 44.
24
c) Os centros que contenham um número considerável de bens culturais
definidos na alínea a) e b), que se denominarão ‘centros monumentais’.53
Foi com o advento da Carta de Veneza, em 1964, que restou consagrada uma
concepção mais ampliada de monumento, que passou a abranger
a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio, rural ou urbano, que
constitua testemunho de uma civilização particular, de uma evolução
significativa ou de um acontecimento histórico. Esta noção aplica-se não
só às grandes criações mas também às obras modestas do passado que
adquiriram, com a passagem do tempo, um significado cultural.54
Esta Carta não somente anunciou um novo modo de visão contextual do
patrimônio – na medida em que admitiu hipóteses de tratamento não isolado do
monumento -, como também consolidou-se, ela própria, como um marco na
substituição do critério da excepcionalidade pelo da referencialidade dos bens
integrantes do patrimônio cultural.
Tomado o conjunto de normas internacionais sobre preservação de bens
culturais produzidas contemporânea e posteriormente à Carta de Veneza, é
perceptível o modo como o pensamento sobre o tema evoluiu gradativamente no
sentido de incorporar novos conceitos e critérios, baseados em outras áreas do
conhecimento, como a antropologia e a sociologia. A ponto de hoje, a expressão
patrimônio cultural revelar uma concepção extremamente ampla, incorporadora de
diferentes categorias de bens e mais aproximada da cultura popular e das
manifestações cotidianas dos indivíduos do que a aquela concepção recorrente no
início do século XX.
Exemplo emblemático desse alargamento da noção de patrimônio é o
fornecido pela Declaração do México - publicada pelo ICOMOS em 1985, como
53
(traduzimos). Disponível em: http://portal.unesco.org/publicacoes/docinternacionais/doccultura. Acesso em
20 jul. 2009.
54
(grifamos). Art. 1º da Carta de Veneza. Extraído de versão em português coletada em Flavio Lopes;
Miguel Brito Correia (org.), Património Arquitectónico e Arqueológico: Cartas, Recomendações e
Convenções, p. 103-108.
25
resultado da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais -, em que restou
reconhecido que
o patrimônio cultural de um povo compreende as obras de seus
artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios, assim como as
criações anônimas surgidas da alma popular e o conjunto de valores
que dão sentido à vida. Ou seja, as obras materiais e não materiais
que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as
crenças, os lugares e os monumentos históricos, a cultura, as obras
de arte e os arquivos e bibliotecas.55
Por outro lado, essa realidade atual de ampliação do conteúdo do patrimônio
cultural impõe grandes desafios aos Estados no tocante ao cumprimento das tarefas de
seleção oficial dos bens sujeitos à tutela especial e de definição dos modos mais
apropriados de gestão para cada caso, dada a escassez de recursos humanos e
financeiros para dar conta de um repertório cada vez mais vasto e diversificado.
No campo específico do patrimônio cultural urbano, são diversos os textos
internacionais que vêm enriquecendo o seu conteúdo, podendo ser aqui citados, numa
ordem razoavelmente evolutiva:
a) A Recomendação da UNESCO sobre a salvaguarda da beleza e do caráter
das paisagens e dos sítios, que já em 1962 ressaltara a importância científica e
estética dos sítios e paisagens, bem como o caráter fundamental destes nas condições
de vida das populações.
b) A Carta do Patrimônio Arquitetônico Europeu, do Conselho da Europa, 1975,
que oferece e consolida uma concepção dinâmica e abrangente de patrimônio
arquitetônico, da qual nos valemos, nesta tese, para firmar nossa própria concepção
de patrimônio cultural urbano. De acordo com esta Carta, o patrimônio arquitetônico
europeu é constituído não somente pelos monumentos que lhe são mais importantes, mas
também pelos conjuntos de construções mais modestas de suas cidades antigas e aldeias
55
Isabelle Cury (org.), Cartas Patrimoniais, p. 314-315.
26
tradicionais inseridas nas suas envolventes naturais ou construídas pelo homem. Nos
termos desta Carta:
Durante muitos anos só se protegeram e restauraram os monumentos
mais importantes e sem levar em conta a ambiência destes. Mais
recentemente, percebeu-se que se a ambiência estiver debilitada,
mesmo aqueles monumentos poderão perder muito do seu caráter.
Hoje reconhece-se que grupos inteiros de edifícios, mesmo não
contendo nenhum valor excepcional, podem criar uma atmosfera que
lhes atribui a qualidade de obras de arte, unindo diferentes períodos
e estilos em um harmonioso conjunto. Esses grupos de edifícios
também devem ser preservados.
c) A já comentada Recomendação sobre a salvaguarda dos conjuntos
históricos e da sua função na vida contemporânea, (ou simplesmente Recomendação
de Nairobi), aprovada pela UNESCO em 1976, que tratou de definir como “conjuntos
históricos ou tradicionais” os assentamentos humanos cuja coesão e cujo valor são
relevantes do ponto de vista cultural. E como “ambiência” desses conjuntos históricos
ou tradicionais, entendeu ser “o quadro natural ou construído que influi na percepção
estática ou dinâmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata no
espaço, ou por laços sociais, econômicos ou culturais”56.
d) A Carta de Florença sobre a salvaguarda dos jardins históricos, elaborada
pelo ICOMOS em 1981, a qual, reconhecendo o valor cultural e a particular natureza
destes jardins – como “composição arquitetônica cujo material é essencialmente
vegetal, e portanto vivo, perecível e renovável” –, aconselhou que eles fossem
tutelados mediante o tratamento integrado dos planos de salvaguarda com os de uso
do solo e de ordenação do território.
e) A Resolução 813 sobre a arquitetura contemporânea, adotada há mais de
vinte e cinco anos pelo Conselho da Europa (exatamente desde 1983), que,
preocupada com o patrimônio do futuro, interessantemente chamou a atenção “para a
56
Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.), Património Arquitectónico e Arqueológico: Cartas,
Recomendações e Convenções, p. 175-187.
27
necessidade de integrar a construção contemporânea, de caráter humano e com
qualidade no conjunto arquitetônico existente, de modo a assegurar uma certa
continuidade da
tradição
arquitetônica”57.
Nesta
Resolução,
verifica-se um
extraordinário alargamento da noção de patrimônio cultural à universalidade das
estruturas construídas na cidade e à qualidade de vida das populações. Como bem
avaliado por Flavio Lopes,
este olhar para o presente e para o futuro, preconizando uma maior
atenção à arquitetura contemporânea é um sinal de negação das
correntes mais conservadoras, defensoras de uma quase cristalização
das áreas de acentuado valor patrimonial58.
f) A também já referida Carta sobre a salvaguarda das cidades históricas (ou
Carta de Washington), do ICOMOS, de 1987, que reconhece nos núcleos urbanos,
mais do que simples documentos históricos, representações dos verdadeiros valores
das civilizações urbanas tradicionais.
g) A Recomendação R (91) 13 para a proteção do patrimônio arquitetônico do
século XX, publicada em 1991 pelo Conselho da Europa, a qual, ainda que de alcance
restrito aos países do continente europeu, demonstra-se relevante para o mundo todo,
como exemplo de atenção dispensada a um patrimônio que “ainda não envelheceu”,
mas que já sofre sérios riscos de aniquilamento, justificando-se assim sua salvaguarda
no presente, para garantir às gerações futuras o conhecimento e usufruto deste
instante da memória europeia.
h) A Carta sobre o patrimônio construído vernáculo, aprovada pelo ICOMOS
em 1999, relevante por reconhecer as tradições construtivas desenvolvidas pelas
próprias comunidades e transmitidas de maneira informal aos seus descendentes como
valores dignos e necessitados de salvaguarda, especialmente em razão das ameaças de
homogeneização cultural e arquitetônica existentes no mundo todo. Esta Carta
57
Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.), Património Arquitectónico e Arqueológico: Cartas,
Recomendações e Convenções, p. 201-203.
58
“Evolução do pensamento contemporâneo através da leitura de normas internacionais”, In Flavio Lopes;
Miguel Brito Correia (org.), Património Arquitectónico e Arqueológico: Cartas, Recomendações e
Convenções, p.36.
28
enumerou interessantes princípios de conservação desse patrimônio, tais como: (i) a
participação de grupos multidisciplinares de especialistas que reconheçam a
inevitabilidade das mudanças, assim como a necessidade de respeito à identidade
cultural; (ii) o respeito aos valores culturais e ao caráter tradicional de edifícios,
conjuntos
e
assentamentos
vernáculos,
quando
necessárias
intervenções
contemporâneas; (iii) a manutenção e preservação dos conjuntos e assentamentos de
caráter representativo em cada uma das áreas, como modo de apreciação e
conservação do tradicional; (iv) a consideração do patrimônio vernáculo como parte
integrante da paisagem cultural nos programas de conservação e desenvolvimento; e
(v) a vinculação do patrimônio vernáculo não só aos elementos materiais, edifícios,
estruturas e espaços, mas também ao modo como ele é usado e interpretado pela
comunidade e às tradições e expressões intangíveis associadas a ele.
Não há dúvidas de que um dos maiores avanços nessa matéria foi o abandono dos
princípios da proteção atomizada de monumentos, para passar a abranger todo o tecido
urbano. Esse novo modo de preservação deve-se à necessidade de adaptações a essa
alargada concepção de patrimônio, reconhecendo-se também que o ambiente urbano é
naturalmente sujeito a transformações de suas feições. Conforme sintetizado por Flávio
Lopes,
Ultrapassa-se o nível de preocupação sobre o monumento ou sobre a
estrutura física, para abarcar ‘as relações entre a cidade e o ambiente
envolvente natural ou criado pelo homem e para tentar preservar as
59
diferentes funções da cidade, adquiridas ao longo da sua história’ .
Existem inúmeras abordagens ambientalistas e ecologistas do tema, depreendendose uma visão globalizante do patrimônio cultural urbano e tentando-se, com isso, fazer
frente às rápidas e profundas alterações sentidas no ambiente urbano. Essas recentes
concepções dinâmicas, como dito, exigem a superação de novos desafios, tentando-se
encontrar a justa medida nas intervenções.
59
Flávio Lopes, op. Cit, p. 31
29
2.2. A concepção jurídica de patrimônio cultural segundo a Constituição Federal
de 1988
No Direito brasileiro, o patrimônio cultural vem atualmente definido no artigo
216 da Constituição Federal de 1988, que estabelece:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem:
I –as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Antes do advento dessa Constituição, contava-se com a conceituação jurídica
de patrimônio oferecida pelo caput e pelos parágrafos 1º e 2º do artigo 1º do Decretolei nº 25/37, a saber:
Art. 1º. Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o
conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja
conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a
fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional
valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
§1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados
parte integrante do patrimônio histórico e artístico brasileiro depois
de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do
Tombo de que trata o art. 4º desta lei.
30
§2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são
também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como
os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição
notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados
pela indústria humana.
Da leitura desses trechos, constata-se que comparativamente ao que até então
era previsto pelo Decreto-lei nº 25/1937, a Constituição de 1988 inovou no
tratamento dispensado ao tema da preservação do patrimônio cultural em pelo menos
dois aspectos.
Primeiramente, ao elevar para o plano constitucional a concepção de
patrimônio cultural, tendo o constituinte optado até mesmo por citar alguns exemplos
de bens integrantes desse patrimônio, ao que parece, para que não pairassem dúvidas
quanto à maior extensão da referida expressão.
Tal iniciativa indica uma clara preocupação do constituinte com que este
patrimônio, nas dimensões ali traçada, seja reconhecido como um direito difuso,
constitucionalmente garantido. Confere, assim, a essa norma – assim como às
previstas nos parágrafos 1º a 6º desse mesmo artigo60 -, estabilidade, já que somente
modificável por processo especial, assim como superioridade, em relação às normas
infraconstitucionais.
Em segundo lugar, a Constituição de 1988 inovou ao dedicar definição jurídica
muito mais ampla para o que, a partir de então, passou a denominar com precisão
60
A conceituação do patrimônio cultural brasileiro feita no caput do art. 216 da Constituição de 1988 permite
o balizamento da diretiva estatal de preservação, incentivo e valorização dos bens integrantes desse acervo.
Tal diretiva vem pormenorizada nos parágrafos deste dispositivo nos seguintes termos:
“§1º. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural
brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outros modos de
acautelamento e preservação.
§2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as
providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
§3º. A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.
§4º. Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei.
§5º. Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos.”
31
patrimônio cultural brasileiro, numa clara assunção de uma visão abrangente do
universo patrimonial.61
Conforme verificado no primeiro trecho transcrito acima, o constituinte de
1988 entendeu como dignos de tutela especial pela ordem jurídica brasileira os bens –
materiais62 ou imateriais63, tomados em conjunto ou isoladamente – eleitos pelos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira como portadores de referência à
sua identidade, à sua ação e à sua memória.
Note-se que, com essa medida, a Constituição Federal de 1988 passou a
conferir explicitamente a esses diferentes grupos sociais a titularidade do direito à
proteção do patrimônio cultural brasileiro. Essa idéia vem reforçada pelo parágrafo 1º
do artigo 216, que prevê a colaboração da comunidade nas atividades de promoção e
de proteção desse patrimônio.
Assim, assumindo um viés claramente democrático quanto ao conteúdo do
patrimônio cultural, essa nova definição constitucional suplantou concepção mais
antiga, contida no Decreto-Lei nº 25/37, de um “patrimônio histórico e artístico
nacional” designado pelo Estado a partir de concepções oficiais dos “fatos
memoráveis da história” e dos “valores excepcionais” merecedores de proteção64.
E confirmou o completo abandono da idéia de inscrição do bem no Livro do
Tombo - ou seja, do tombamento daquele - como requisito indispensável para a
constituição do direito à tutela estatal do referido bem. Tanto é que, em reforço a essa
61
José Afonso da Silva analisa como adequada a expressão patrimônio cultural brasileiro, empregada pela
Constituição de 1988, por sintetizar tanto a idéia de patrimônio histórico, quanto a de patrimônio artístico.
Tanto a do patrimônio reconhecido pela União, como a do patrimônio reconhecido pelos Estados e pelos
Municípios. Apesar desse aperfeiçoamento, o autor ressalta que a terminologia constitucional ainda é
imprecisa, causando algumas vacilações, como por exemplo o uso das expressões patrimônio histórico,
cultural, artístico, turístico e paisagístico, e patrimônio histórico-cultural local, nos arts. 24, VII e 30, IX,
respectivamente. (Ordenação Constitucional da Cultura, pp. 100 e 101).
62
Como as imagens sacras de Aleijadinho, o Palácio Imperial de Petrópolis e o conjunto arquitetônico do
centro histórico de Salvador, todos tombados pelo IPHAN entre 1938 e 1985 (Processos de tombamento
n.845-T-71, 1162-T-85, 822-T-69 e 823-T-69; n. 166-T-38; e n. 1093-T-83 respectivamente).
63
Tais quais o ofício das paneleiras de Goiabeiras, no Espírito Santo; a celebração religiosa Círio de Nossa
Senhora de Nazaré, em Belém do Pará; e o Frevo, registrados pelo IPHAN em 2002, 2004, e 2007
respectivamente.
64
Art. 1º do Decreto-Lei n. 25/37.
32
prescindibilidade do tombamento, o constituinte de 1988 fez referência expressa a
uma série de instrumentos os quais igualmente poderão servir aos fins de designação
e proteção dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro (artigo 216,
parágrafo 1º).
A propósito, essa nova concepção constitucional do patrimônio cultural
brasileiro acompanha a tendência contemporânea de admitir-se a influência das
ciências sociais sobre a acepção jurídica do termo65. Esta tendência, como já visto, foi
objeto de profícuos debates havidos no nível internacional a partir da segunda metade
do século XX, tendo-se intensificado nos anos 80, quando amplamente debatida a
formulação do conceito de “patrimônio cultural” com base em princípios inerentes às
áreas da antropologia e da sociologia. Conforme já comentado, foi na Declaração do
México de 1985, promovida pelo ICOMOS por ocasião da Conferência Mundial sobre
as Políticas Culturais, que restou consignada essa influência dessas duas áreas de
conhecimento sobre o conceito jurídico de patrimônio cultural, hoje refletida nas
Constituições de inúmeros países ocidentais.
Acerca dessa influência sobre o conceito de patrimônio cultural, Sonia Rabello
de Castro confirma que:
Tradicionalmente, poder-se-ia conceber que o valor cultural de um
prédio, em que estivesse em discussão seu aspecto artístico,
envolvesse tão-somente profissionais da área da arquitetura. Hoje,
esta visão restrita do bem cultural acha-se ultrapassada, [...].
[...] o trabalho de conceituação do que seja patrimônio cultural exige
a participação integrada de outros técnicos, mormente das áreas
relacionadas ao estudo do conhecimento epistemológico e filosófico,
bem como de áreas de estudo da cultura das sociedades, como a
antropologia, a história e demais ciências sociais. Se o fundamental
não é a coisa em si, e sim o seu valor simbólico, é importante
detectar não só a questão objetiva da arquitetura de um prédio, por
65
José Eduardo Ramos Rodrigues, “A Evolução da Proteção do Patrimônio Cultural – crimes contra o
ordenamento urbano e o patrimônio cultural”, In Temas de Direito Público, n. 3, p. 202.
33
exemplo, mas sua inserção como valor cultural para um determinado
grupo social66.
Vê-se que a Constituição de 1988 reconhece de modo inédito o caráter
sincrético e multifacetado da cultura brasileira, formada pelas diferentes expressões
simbólicas produzidas no seu território, inclusive as de alcance apenas regional ou
local. Desmitifica a idéia de uma cultura nacional homogênea, formadora da
identidade do Povo Brasileiro, pois impossível universalizar a cultura de um País,
especialmente no caso do Brasil, de território tão extenso e de tão expressiva
diversidade étnica67.
Assim, considera como integrantes do patrimônio cultural brasileiro aqueles
bens detentores de um valor simbólico aos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira68.
O requisito da referencialidade vem previsto na Constituição de 1988 como
condição de existência dessa tutela constitucional especial. Com efeito, tratou-se de
expressar que nem todas as manifestações culturais constituem o denominado
patrimônio cultural brasileiro, mas somente aquelas referenciais, ou seja, aquelas de
66
O Estado na preservação de bens culturais. O tombamento, pp. 43-44.
67
Na avaliação de Alayde Mariani, no tempo em que instituídos o Decreto-lei nº 25/37 e, com ele, o conceito
jurídico de patrimônio histórico e artístico, vivia-se no Brasil “um momento de orgulho nacional, quando se
pretendia projetar e espelhar a feição de uma civilização particular para a nação. [...] A ação nacionalista do
Estado Novo, embora integrada ao nacionalismo cultural dos modernistas, não deixava de incorporar outras
representações na proposta de criação ou formação do novo homem/povo brasileiro. [...] Construía-se uma
pedagogia de formação do brasileiro sob o horizonte do homem ocidental e universal”. “A memória popular
no registro do patrimônio, In Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n. 28, 1999, p.158. Essas
impressões da autora, todavia, parecem ser refutadas pelas de Maria Cecília Londres Fonseca sobre o mesmo
assunto, a qual não obstante reconheça o relevante papel da educação e da cultura no projeto ideológico do
Estado Novo, interpreta especificamente as ações do Sphan, órgão nacional de preservação instituído nesse
período, como dotadas de autonomia. “A atividade desenvolvida por esse grupo de intelectuais [modernistas]
no Sphan gozou de surpreendente autonomia dentro do MES. Desde o início, a área do patrimônio ficou à
margem do propósito de exortação cívica que caracterizava a atuação do ministério na área educacional. A
cultura produzida pelo Sphan sequer era articulada com os conteúdos dos projetos educacionais ou com os
instrumentos de persuasão ideológica do Estado Novo; esses conteúdos eram mais compatíveis com a
vertente ufanista do modernismo. Durante o Estado Novo, o Sphan funcionou efetivamente como um espaço
privilegiado, dentro do Estado, para a concretização de um projeto modernista”. O patrimônio em processo:
trajetória da política federal de preservação no Brasil, p. 98.
68
Tais como os terreiros da Casa Branca do Engenho Velho e do Axé Opô Afonjá, em Salvador
(tombamentos federais n. 1067-T-82 e n. 1432-T-98); a Basílica Velha de Nossa Senhora de Aparecida, em
São Paulo (tombamento estadual n. 22.002/82, resolução n. 11, de 18.04.1982); e o sítio arqueológico na Ilha
do Campeche, no Estado de Santa Catarina (tombamento federal n. 1426-T-98), dentre tantos outros
exemplos.
34
especial importância para a formação da identidade, para a continuação da ação ou
para o resgate da memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
Isso não significa, no entanto, que as manifestações culturais destituídas desse
aspecto referencial tenham sido relegadas por completo pela ordem constitucional
brasileira. A estas, a Constituição reservou o apoio e o incentivo do Estado à sua
valorização e difusão, assim como a garantia do seu livre exercício e de acesso às
suas fontes (artigo 215)69.
É que especialmente àquelas tidas como referenciais para os diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira quis-se assegurar tutela jurídica especial, a fim de
que, integrando um grande acervo articulado entre as esferas de Poder, essas
manifestações culturais pudessem ser preservadas e transmitidas de uma geração para
outra.
A Constituição preservou a exigência já verificada na ordem jurídica
anteriormente à sua vigência, de designação oficial dos bens integrantes do
patrimônio cultural brasileiro. Isso porque uma atuação estatal adequada sobre este
patrimônio, seja divulgando-o, seja fomentando-o, seja policiando-o, depende
invariavelmente de um conhecimento prévio e preciso do seu conteúdo.
Assim, o parágrafo 1º do art. 216 exige que o poder público promova o
patrimônio cultural brasileiro “por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação”.
69
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
§1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§2º. A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos
étnicos nacionais.
§3º. A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento
cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:
I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II – produção, promoção e difusão de bens culturais;
III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV – democratização do acesso aos bens de cultura;
V – valorização da diversidade étnica e regional”.
35
Conforme será referido oportunamente no Capítulo 4, promover o patrimônio cultural
brasileiro, além do sentido de difundi-lo, de divulgá-lo70, também sugere o sentido de
“formá-lo pela definição de quais bens devem integrá-lo”71. Assim sendo, entende-se
que os cinco incisos do art. 216 são apenas indicativos de classes de bens passíveis de
constituírem o patrimônio cultural brasileiro, devendo haver, em cada caso concreto,
algum ato oficial do poder público para que a tutela especial seja instaurada.
É como também entende Maria Coeli Simões Pires, para quem
o conteúdo dessas expressões [contidas nos cinco incisos do art. 216]
haverá de ser definido pelo poder público responsável pela aplicação
da lei a partir de condicionamentos e critérios técnicos. As
adjetivações não são suficientes para expressar a relação do bem com
a cultura para efeito de aplicação da proteção especial72.
Da leitura da parte final do caput, fica claro que se trata de enumeração
meramente exemplificativa, sendo perfeitamente possível que outras categorias de
bens não previstas ali integrem o conteúdo do patrimônio cultural brasileiro, desde
que referenciais e assim oficializados pelo poder público.
O inciso V trata especificamente dos conjuntos urbanos, bem como dos sítios
de valor histórico, paisagístico, artístico, paleontológico, arqueológico, ecológico e
científico.
José Afonso da Silva observa com propriedade o modo confuso como o
constituinte usou o termo sítio neste inciso, aplicando-o genericamente para uma série
de valores, inclusive para valores artísticos e científicos.
Sítios históricos, paisagísticos, arqueológicos, paleontológicos e
ecológicos, como locais de ocorrência desses elementos, é expressão
70
Esse sentido é abordado no item 3.1.1. do trabalho.
71
José Afonso da SILVA, Ordenação Constitucional da Cultura, p. 116.
72
Da proteção ao patrimônio cultural. O tombamento como principal instituto, p. 83.
36
corrente; mas ‘sítios artísticos e científicos’, ao que nos parece, não
constitui modo correto de dizer”73.
De efeito, estas últimas expressões não são usuais como o “sítio arqueológico”
ou “sítio histórico”. São relativamente vazias de significado, pois não é exatamente
aos seus locais de ocorrência que esses valores são intrínsecos. Significa dizer que
não há uma vinculação inafastável entre esses valores e os sítios onde eles se
manifestam.
Afora os bens históricos, artísticos, arqueológicos e paleontológicos,
claramente vistos como culturais, não se pode negar este mesmo caráter aos bens
paisagísticos, ecológicos e científicos74. Aos bens de valor científico, porque
expressam a criatividade e a inventividade humana. Aos de valor paisagístico e
ecológico,
pois
mesmo
envolvendo
aspectos
naturais,
não
necessariamente
construídos pelo homem, projetam em sua própria existência valores atribuídos por
este, tais como o bem-estar e a boa qualidade de vida. Constituem, por assim dizer,
valores subjetivos atribuídos pelo homem à realidade que o circunda.
Lembram Pontier, Ricci e Bourdon que “a própria idéia de conservar no estado
de paisagens é um revelador poderoso de uma cultura”75. De fato, não fosse o homem
querer manter as paisagens e o equilíbrio ecológico, estes poderiam não existir (o que
também revelaria um aspecto cultural). É o caso, por exemplo, das intenções de
construção de comportas e barragens para conter o avanço gradativo das águas sobre
a cidade de Veneza, fator que ameaça o desaparecimento da cidade num tempo
futuro.
Vale lembrar, todavia, que tanto para os valores ecológicos como para os
valores científicos a Constituição dedicou dispositivos próprios76, que muito melhor
73
Ordenação Constitucional da Cultura, p. 122.
74
Com a ressalva da impropriedade do termo “sítio” para designar bens desta última espécie, conforme
apontado acima.
75
Droit de la culture, p. 322. (traduzimos)
76
Para bens ecológicos, cf. art. 225, cujo caput, associado aos seus sete incisos e seis parágrafos, oferece rica
garantia formal ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e estabelece o dever do Estado e da
coletividade de preservá-lo e defendê-lo.
37
exprimem os peculiares interesses de tutela do que a tímida menção feita nesse inciso
V do art. 216.
E no que se refere aos valores científicos, a Constituição de 1988 reservou os arts. 218 e 219, contidos no
Capítulo IV (“Ciência e Tecnologia”) do Título VIII (“Da Ordem Social”), que garantem a promoção e o
incentivo ao desenvolvimento científico, à pesquisa e à capacitação tecnológicas, assim como o estímulo ao
mercado interno e à autonomia tecnológica brasileira.
38
Capítulo 3 OS MEIOS: QUEM PRESERVA O PATRIMÔNIO
CULTURAL URBANO?
Mas a semente de uma primeira experiência de
política cultural coroada de pleno êxito ficou a
demonstrar que a interferência do Poder
Público no âmbito da cultura, se a prática é
democrática, só pode trazer benefícios,
mormente quando se concebe a cultura como
uma realização da vida social.
José Afonso da Silva77
Uma vez explicitados os fundamentos da salvaguarda jurídica do patrimônio
cultural urbano e o objeto dessa tutela estatal, este terceiro Capítulo propõe
identificar, com ênfase na análise do ordenamento jurídico brasileiro vigente, os
sujeitos incumbidos de – ou legitimados a – agir, direta ou indiretamente, no sentido
da preservação desse patrimônio.
Preliminarmente à abordagem ora proposta, importa destacar que, de início pouco depois de se ter reconhecido no plano teórico-constitucional o dever do Estado
de proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País (em
1934) e a partir da primeira sistematização legal da matéria (pelo Decreto-lei nº
25/1937) -, essas atividades de proteção foram desempenhadas, na prática,
concentradamente pela União. E desse mesmo modo elas se desenvolveram por um
certo período, até que na década de 1960, sinais mais expressivos de uma
descentralização de funções puderam ser sentidos.
A configuração atual de participação de diversos atores na promoção e
proteção do patrimônio cultural - não somente integrantes da estrutura estatal, mas
77
Ordenação Constitucional da Cultura, p. 223. (Sobre o Departamento de Cultura e Recreação do
Município de São Paulo).
39
também alheios a ela - decorre, portanto, de um paulatino processo de
descentralização das atividades preservacionistas.
Pelo menos dois fatores parecem estar associados a essa ampliação da gama de
sujeitos envolvidos com a tutela do patrimônio cultural.
O primeiro deles refere-se à tendência mundial contemporânea de diluição do
poder estatal, especialmente no tocante a assuntos envolvendo interesses difusos,
como no presente caso. A propósito dessa tendência, observa Agustín Gordillo o
seguinte:
É certo que algumas tendências são facilmente discerníveis e alguns
autores as viram já na década de 60: a progressiva criação de órgãos
supranacionais, de normas supranacionais, de justiça supranacional,
com uma simultânea tendência oposta à descentralização ou
regionalização do poder dentro de cada país. Acompanha também o
processo o crescente desenvolvimento das organizações nãogovernamentais, pessoas jurídicas privadas ou públicas não estatais
que realizam atividades de interesse público, mas sem formar parte
de organização estatal alguma. Ao seu redor e às vezes na
administração pública, aparecem pessoas que desempenham funções
públicas sem revestir a qualidade de agentes do Estado. O clássico
Estado Nacional se vê assim submetido a tensões opostas, que o têm
por quase certo perdedor: perde poder para as regiões estatais
internas, perde poder para organizações não-governamentais.
Nenhum desses fenômenos é ruim. Ao contrário, é bom que o poder
se frature, que haja múltiplos centros de poder, para que existam
cada vez menos possibilidades de que alguém, um só, se adone de
todo o poder78.
78
(traduzimos). No original: “Es cierto que algunas tendencias son fácilmente discernibles y algunos
autores las vieron ya en la década del 60: la progresiva creación de órganos supranacionales, de
normas supranacionales, de justicia supranacional, con una simultanea tendencia opuesta hacia la
descentralización o regionalización del poder dentro de cada país. Acompaña también al proceso el
creciente desarrollo de las organizaciones no gubernamentales, personas jurídicas privadas o públicas
no estatales que realizan actividades de interés público pero sin formar parte de organización estatal
alguna. A su alrededor y a veces en la administración publica, aparecen personas que desempeñan
funciones públicas sin revestir la calidad de agentes del Estado. El clásico Estado nacional se ve así
sometido a tensiones opuestas, que lo tienen por casi seguro perdedor: pierde poder a mano de las
regiones estatales internas, pierde poder a mano de la comunidad estatal supranacional, pierde poder a
mano de organizaciones no gubernamentales. Ninguno de estos fenómenos es malo. Es bueno, al
contrario, que el poder se fracture, que haya múltiples centros de poder, para que existan cada vez
40
O segundo fator relacionado à ampliação dos agentes envolvidos com a tutela
do patrimônio cultural brasileiro consiste no acelerado crescimento populacional e no
vertiginoso processo de urbanização verificados no País em especial a partir do final
da década de 1960. Nesse período, o Brasil industrializava-se e suas cidades
transformavam-se
a
olhos
vistos,
tornando-se
em
pouco
tempo
um
país
predominantemente urbano. As rápidas e pouco qualificadas alterações urbanísticas
ameaçavam e destruíam em nova escala o patrimônio cultural, não se fazendo mais
suficiente a ação tutelar isolada e exclusiva do órgão federal de preservação.79
Assim, se inicialmente, ao longo das décadas de 30 a 50, o Estado Nacional
centralizou no Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN
praticamente todas as atividades técnicas e políticas de tutela do patrimônio
nacional80, nas décadas seguintes, os Estados e Municípios passaram pouco a pouco a
compartilhar com a União essas ações preservacionistas, agindo especialmente por
meio de seus órgãos próprios de preservação.
Essa descentralização das ações de preservação do patrimônio cultural entre os
entes federados, a partir da década de 60, significava também uma maior
oportunidade de auxílios financeiros para pagamento dos encargos relacionados a
essas ações e, consequentemente, uma promessa de melhores condições de se fazer
frente às novas e igualmente ampliadas demandas por tutela que surgiam, de um
patrimônio que cada vez menos se restringia a monumentos isolados e excepcionais e
menos posibilidades de que alguien, un sólo, se adueñe de todo el poder ”. Tratado de Derecho
Administrativo, Tomo 1, p. IV-32.
79
Cf. Nestor Goulart Reis Filho, “Por uma nova política de preservação”, In O Estado de São Paulo, 9 de
janeiro de 2009, p. A2.
80
É a chamada fase heróica do SPHAN, que segue até o final dos anos 60, coincidindo com a aposentadoria
de Rodrigo de Melo Franco de Andrade da diretoria desse Serviço. Excepcionalmente, na década de 1930,
verifica-se a organização do Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo,
tendo Mario de Andrade figurado como diretor no período de 1935 a 1937. Não obstante esse órgão, à época,
não exercesse atividades voltadas à preservação de monumentos históricos e arquitetônicos, tal qual o
SPHAN fazia, é de se reconhecer o valioso e excepcional trabalho que aquele já desenvolvia no município de
São Paulo em prol da democratização da cultura, construindo parques infantis, criando o coral paulistano,
efetuando levantamentos demográficos, decifrando, conservando e publicando documentos históricos sob sua
guarda, incentivando a pesquisa folclórica, a leitura, o resgate da memória de todas as manifestações
populares da cidade, etc. Tudo isso visando a elevar a vida cultural de São Paulo, a promover a diversão de
crianças e adultos, a dar a devida importância às tradições populares. O Departamento de Cultura ofereceu
um contributo inigualável à cultura da cidade de São Paulo, estimulando, já na década de 1930, valores
imatériais que somente depois de mais de 50 anos seriam reconhecidos constitucionalmente como expressões
de patrimônio cultural.
41
que não mais se via ameaçado somente pelo desgaste natural do tempo, mas
principalmente pela força da especulação imobiliária.
Mesmo
a
sociedade civil,
de um
certo
modo,
apresentou-se
mais
marcadamente a essas questões a partir da década de 1970. Também a atuação da
comunidade internacional diretamente sobre o patrimônio cultural brasileiro
acentuou-se a partir da década de 1980, quando se iniciou a inscrição de uma série de
centros históricos brasileiros na Lista do Patrimônio Mundial, com fundamento na
Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da
UNESCO, de 1972.
A atual concepção jurídica de patrimônio cultural brasileiro, conforme
comentado no Capítulo 2, já não é a mesma da década de 1930. A Constituição
federal de 1988 tratou de ampliá-la, passando a consagrar como tal os “bens [...]
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira”, neles incluindo-se as formas de expressão, os
modos de criar, fazer e viver, os espaços de manifestações culturais e os conjuntos
urbanos (art. 216, caput e incisos I, II, IV e V da Constituição Federal de 1988).
São reconhecidas, portanto, como valores culturais tutelados pelo Poder
Público, as manifestações do cotidiano, da vida na cidade, a própria cidade, em si,
enquanto artefato significativo das diferentes forças sociais interagentes, assim como
suas edificações, inseridas em seus contextos, em seu ambiente e sempre que
referenciais à identidade e à memória das comunidades formadoras da sociedade
brasileira.
Nota-se que o patrimônio cultural brasileiro, do modo como oficialmente
concebido hoje, apresenta-se, ao menos formalmente, muito mais próximo dos
valores populares cultivados nos âmbitos local e regional - compatibilizando-se com
os anseios e interesses ali manifestados - do que no tempo em que ele era definido
juridicamente como o conjunto de bens vinculados a “fatos memoráveis da história do
Brasil” ou dotados de “excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico
ou artístico”, concepção esta que acabava por privilegiar os valores da cultura erudita,
via de regra representativos apenas dos segmentos sociais dominantes.
42
Nesse hodierno cenário, a atuação dos poderes públicos municipal e estadual
pode contribuir para o exercício da função que mais modernamente tem-se acrescido
ao federalismo, de garantia da democracia participativa, “com sua multiplicação de
círculos de decisões políticas em que o cidadão fica mais próximo do poder”.81
A título de argumentação, poder-se-ia defender que a própria comunidade,
direta e exclusivamente – e não por meio do Estado –, é quem deveria identificar os
valores que lhe fossem significativos e relevantes para a sua memória e para a de seus
sucessores e designá-los à tutela jurídica. Esse posicionamento, contudo, traz consigo
o risco de que a formação do patrimônio conduzida exclusivamente pela sociedade
civil seja tendenciosa para o lado de um ou alguns poucos grupos dominantes da
sociedade. É certo que a assunção dessa tarefa exclusivamente pelo Estado também
pode ensejar mesmo risco - daí as orientações contemporâneas no sentido de que a
comunidade participe das políticas de preservação do patrimônio cultural e de gestão
da cidade. Mas a presença do Estado nesse processo é indispensável, como agente
condutor de ações e mediador dos interesses em jogo. Também, como definidor e
aplicador dos meios coercitivos apropriados à repressão dos abusos e à imposição de
limites ao mercado imobiliário.
Portanto, muito embora se reconheça como de fundamental importância a
participação da comunidade, a atuação do Estado nessa álea é imprescindível,
norteando e induzindo, pela regulação e pelo fomento, o desenvolvimento urbano
associado às ações de preservação do patrimônio cultural.
A propósito das organizações internacionais, é de se ressaltar aqui ideia que já
se induz da simples leitura dos Capítulos 1 e 2 retro, qual seja, de que ao contrário do
que se possa pensar à primeira vista - em razão da distância que parece haver entre
questões internacionais e realidades urbanas locais e regionais –, muitas dessas
organizações, por meio de suas produções técnicas e normativas, oferecem novos e
interessantes modos de se pensar e de se gerir o patrimônio cultural urbano. Nesse
aspecto, vale recordar como exemplo o já comentado alargamento nas abordagens
desse tema para o nível da globalidade da paisagem. No plano instrumental, a
81
Fernanda Dias Menezes de Almeida, Competências na Constituição de 1988, p. 44.
43
UNESCO também oferece notável suporte técnico e financeiro para preservação de
algumas áreas inseridas nas cidades, quando eleitas segundo critérios específicos
como “Patrimônio da Humanidade”.
Este Capítulo inicia-se, assim, com a apresentação dos organismos
internacionais que têm oferecido contribuições significativas para o tema da
preservação do patrimônio cultural no ambiente urbano.
Em seguida, será voltada atenção para o âmbito nacional brasileiro, mas a
abordagem não se limitará a uma visão subjetiva vertical da repartição das
competências constitucionais atinentes a essa matéria entre os entes federados.
Também será analisada horizontalmente a atuação dos três Poderes - Legislativo,
Executivo e Judiciário - nessa seara.
Por fim, será analisado o modo como assegurada juridicamente a participação
social nos processos de formação e tutela do patrimônio cultural urbano, tendo em
vista o comando constitucional no sentido de que a promoção e a proteção deste
patrimônio sejam realizadas com colaboração da comunidade (artigo 216, parágrafo
1º).
3.1. As Organizações Internacionais
Em função da representatividade e das contribuições de suas produções
técnicas e normativas, apontam-se como os organismos internacionais de maior
importância para o tema da preservação do patrimônio cultural urbano: a UNESCO, o
Centro Internacional de Estudos para a Conservação e o Restauro de Bens Culturais ICCROM, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - ICOMOS, a
Organização dos Estados Americanos - OEA e o Conselho da Europa.
A UNESCO, conhecida como “agência especializada” da ONU, é na realidade
organização internacional distinta desta, criada em 1945 e dotada de personalidade
44
jurídica própria em direito das gentes82, contando atualmente com 193 Estados
Membros e 6 Estados Membros associados. Dentre os seus propósitos institucionais,
destaca-se o de
manter, expandir e difundir o conhecimento: Garantindo a
conservação e a proteção do legado mundial de livros, obras de arte e
monumentos de história e de ciência, recomendando as convenções
internacionais necessárias às nações envolvidas; Estimulando a
cooperação entre as nações em todos os ramos de atividade
intelectual, incluindo o intercâmbio internacional de pessoas ativas
nos campos da educação, da ciência e da cultura, além do intercâmbio
de publicações, objetos de interesse artístico e científico, bem como
outros materiais de informação; Desencadeando métodos de
cooperação internacional calculados para dar aos povos de todos os
países acesso a material impresso e publicado, produzido por
qualquer um deles.83
A maioria das normas internacionais da UNESCO contributivas ao tema já
foram comentadas nos Capítulos anteriores, por ocasião da análise dos fundamentos e
do objeto da tutela estatal do patrimônio cultural urbano. Referem-se a diretrizes,
princípios, evoluções doutrinárias e conceituais de extrema importância no campo
teórico. No Capítulo seguinte, será dedicada análise somente à Convenção para a
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, porquanto introdutora e
reguladora de um ferramental específico, de assistência direta aos Estados signatários
na tutela de sítios naturais e culturais situados em seus territórios, que tenham sido
previamente reconhecidos pelo Comitê do Patrimônio Mundial como Patrimônio da
Humanidade. No Brasil, existem 16 sítios assim classificados, sendo 8 deles
localizados em áreas urbanas84.
82
A propósito das agências especializadas da ONU, observa José Francisco Rezek que “sua gravitação em
torno das Nações Unidas resulta de uma circunstância de fato: os Estados-membros são praticamente os
mesmos, e não há inconveniente em que, reunidos no foro principal, que é a ONU, ali estabeleçam diretrizes
de ação para as organizações especializadas”. In Direito Internacional Público: Curso Elementar, p. 265.
83
Art. I.2.c da Constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
UNESCO, 2002. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001472/147273POR.pdf.
Acesso em: 10 out. 2009.
84
Eis os bens culturais brasileiros inscritos na Lista do Patrimônio Mundial: Conjunto Arquitetônico e
Urbanístico de Ouro Preto, Minas Gerais (1980), Centro Histórico de Olinda, Pernambuco (1982), Centro
45
O ICCROM, criado sob os auspícios da UNESCO em 1959 e com sede na
Itália, constitui uma organização intergovernamental formada atualmente por mais de
126 Estados membros, tendo o Brasil declarado sua adesão a ele em agosto de 1964.
Dentre os seus objetivos está o de incrementar a troca de informação sobre
conservação e restauro entre especialistas, tendo colaborado com a produção do
intitulado Documento de Nara, de 1994, que sugeriu à UNESCO novas diretrizes
quando da aplicação do critério da autenticidade na inscrição de bens culturais na
Lista do Patrimônio Mundial.
O ICOMOS é uma organização não governamental sem fins lucrativos que
reúne pessoas e instituições de diversas áreas do conhecimento (arquitetura, história,
arqueologia, geografia, antropologia, engenharia e urbanismo), especialistas na
conservação de monumentos, conjuntos e sítios históricos. Criada em 1965 a partir
das resoluções do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de
Monumentos Históricos, realizado em Veneza no ano anterior, essa Organização visa
ao desenvolvimento e à disseminação mundial de teorias, metodologias e técnicas de
conservação específicas para cada tipo de herança cultural, como edificações, cidades
históricas, paisagens culturais e sítios arqueológicos85. Suas ações até hoje são
norteadas pelos princípios preconizados na Carta Internacional sobre a Conservação
e o Restauro de Monumentos e Sítios, de 1964 (Carta de Veneza).
O ICOMOS tem produzido vasta documentação técnica sobre o tema
(resoluções, declarações, conclusões de encontros, etc), também colaborando com a
UNESCO na avaliação das candidaturas de bens culturais à inscrição na Lista do
Histórico de Salvador, Bahia (1985), Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas, Minas Gerais
(1985), Parque Nacional do Iguaçu (1986), Conjunto Urbanístico de Brasília (1987), Parque Nacional da
Serra da Capivara (1991), Centro Histórico de São Luís, Maranhão (1997), Centro Histórico de Diamantina,
Minas Gerais (1999), Costa do Descobrimento - Reserva da Mata Atlântica (1999), Mata Atlântica Reservas do Sudeste (1999), Área de Conservação do Pantanal (2000), Parque Nacional do Jaú (2000),
Centro Histórico da Cidade de Goiás (2001), Áreas protegidas do Cerrado: Chapada dos Veadeiros e Parque
Nacional das Emas (2001), Ilhas Atlânticas Brasileiras: Reservas de Fernando de Noronha e Atol das Rocas
(2001).
85
De acordo com o art. 5º do seu Estatuto, são propósitos institucionais do ICOMOS: servir como forum de
diálogos e troca de experiências profissionais; reunir, desenvolver e disseminar informações sobre princípios,
técnicas e políticas de conservação; cooperar com autoridades nacionais e internacionais na implantação de
centros de documentação especializados em conservação; auxiliar a adoção e implementação de convenções
internacionais relacionadas ao tema; participar da organização de programas de treinamento para
especialistas em escala mundial; e fornecer profissionais e especialistas altamente qualificados a serviço da
comunidade internacional.
46
Patrimônio Mundial. Conforme a natureza do bem envolvido e as medidas protetoras
empregadas, o ICOMOS, assim como o ICCROM, poderão colaborar com a UNESCO
na prestação de assistência técnica auxiliar à proteção de bens inscritos na Lista do
Patrimônio Mundial.
A OEA, sediada em Washington D.C., foi constituída em 1948 e é composta
atualmente pelos 35 Estados independentes da América. Dentre os objetivos contidos
na sua Carta constitutiva encontra-se o de promover, por meio da ação cooperativa, o
desenvolvimento econômico, social e cultural do Continente (art. 2º, alínea f).
Como produções teóricas da OEA interessantes ao presente tema, destacam-se
as Normas de Quito (1967), que reafirmam a ideia de que o espaço é inseparável do
conceito de monumento - desenvolvida pela Carta de Veneza (1964) - e a Resolução
de São Domingos (1974), que recomenda, dentre outras ações, como forma de
compromisso social, que todos os programas de intervenção e resgate dos centros
históricos tragam “soluções de saneamento integral que permitam a permanência e
melhoramento da estrutura social existente”, sugerindo, para tanto, que a salvação
desses centros históricos faça parte da política de habitação, levando-se em conta os
recursos potenciais que estes possam oferecer.
Por fim, o Conselho da Europa, sediado em Estrasburgo, foi estabelecido em
1949 com o propósito de sugerir aos Estados membros a adoção de ações conjuntas
em matérias de âmbito social, econômico, cultural, científico, jurídico e
administrativo, de modo a contribuir para uma união mais estreita entre os países
europeus, para a defesa da democracia pluralista e dos direitos do homem e para a
melhoria das condições de vida.
Dentre os seus objetivos está o de sugerir, no âmbito da cultura, ações que
favoreçam a tomada de consciência e a valorização da identidade e da diversidade
cultural da Europa.
Atualmente o Conselho da Europa compreende 47 países europeus, sendo
relevante a sua contribuição para o tema não apenas em razão dos princípios e
filosofias propostos para abordagem do patrimônio, que defendem uma visão
ampliada deste, de modo a abarcar também todas as componentes do ambiente
47
humanizado e edificado (centros históricos, paisagem cultural, arquitetura dos séculos
XIX e XX, etc)86, mas sobretudo em razão do reconhecimento de que somente é
possível obter resultados satisfatórios de preservação mediante a gestão integrada dos
bens patrimoniais, admitindo-se, inclusive, esta forma de conservação como uma das
metas principais dos planos urbanísticos87.
3.2. Competências Constitucionais
A preservação do patrimônio cultural, desde quando prevista pela primeira vez no
plano constitucional brasileiro, sempre foi entendida como atribuição estatal
exercitável conjuntamente pela União, pelos Estados e pelos Municípios. Assim, a
Constituição de 1934, ao introduzir referência à matéria, estabeleceu que
Art. 10. Compete concorrentemente à União e aos Estados
[...]
III – proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico
ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte;
[...]
Art. 148. Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e
animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da
cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o
patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao
trabalhador intelectual.
86
Cf. Convenção Europeia da Paisagem, Conselho da Europa, 2000. Cf. também Flavio Lopes, “Evolução do
pensamento contemporâneo através da leitura de normas internacionais”, In Flavio Lopes; Miguel Brito
Correia (org.), Património arquitectónico e arqueológico..., p. 25 e Rafael Winter Ribeiro, Paisagem
Cultural e Patrimônio, p. 50-62.
87
Flavio Lopes, “Evolução do pensamento contemporâneo através da leitura de normas internacionais”, In
Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.), Património arquitectónico e arqueológico..., p. 32. Miguel Brito
Correia também ressalta que desde quando publicada sua primeira Convenção versando sobre o patrimônio, o
Conselho da Europa já produziu mais de 50 convenções, recomendações e resoluções, afirmando-se, no
mundo, “como a instituição mais fecunda na elaboração de instrumentos normativos na área do patrimônio
cultural. “Enquadramento histórico das normas internacionais”, In Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.),
Património arquitectónico e arqueológico..., p. 19.
48
Do mesmo modo, as Constituições que se seguiram previram competências
comuns para a proteção do patrimônio, atribuídas ora enumeradamente à União, aos
Estados e aos Municípios88, ora genericamente ao “Poder Público”89, porém nunca
pairando dúvidas de que se tratava de tarefa que caberia a todas as entidades
federadas cumprir90.
Na Constituição de 1988, a inclusão da proteção do patrimônio cultural no rol
de competências materiais91 comuns, bem como no de competências legislativas
concorrentes (artigos 23 e 24 respectivamente) tornou ainda mais claro o quanto já se
vinha prescrevendo desde o início à matéria92. Dando espaço ao federalismo
cooperativo, a preservação do patrimônio cultural brasileiro consagrou-se como
questão que interessa a toda a Federação, incumbindo o seu exercício - verdadeiro
poder-dever93 - indistintamente à União, aos Estados membros, ao Distrito Federal e
aos Municípios.
88
De acordo com a Constituição de 1937: “Art. 134. Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim
como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados
especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados
aos cometidos contra o patrimônio nacional.”
89
Consoante a Constituição de 1946: “Art. 174. O amparo à cultura é dever do Estado. [...] Art. 175. As
obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as
paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do Poder Público”. Na Constituição
de 1967: “Art. 172. O amparo à cultura é dever do Estado. Parágrafo único. Ficam sob a proteção especial
do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as
paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”. Na Emenda Constitucional nº 1/69, é
mantida a redação do art. 172 e parágrafo da Constituição de 1967, alterando-se apenas a numeração para art.
180.
90
Toshio Mukai refere-se a esse entendimento Acerca do entendimento de que a expressão “poder público”
compreende todos os entes federados, Toshio Mukai manifesta alinhamento com a opinião de Helita Barreira
Custódio, expressada nos seguintes termos: “Reafirmando a competência concorrente da União, dos Estados
e dos Municípios, em matéria de patrimônio cultural e nacional, a Magna Carta de 1946 adotou de forma
mais simplificada a expressão ‘poder público’, expressão ratificada pela Constituição de 1967 (art. 162,
parágrafo único) e pela Emenda nº 1, de 1969 (art. 180, parágrafo único)”. Toshio Mukai, Direito e
Legislação Urbanística no Brasil: História, teoria e prática, p. 154.
91
Também doutrinariamente denominadas competências “executivas” ou “gerais”.
92
Fernanda Dias Menezes de Almeida comenta, inclusive, que teria vindo da Constituição de 1934 a ideia de
um rol de competências comuns a mais de uma esfera, e que “o cotejo entre o artigo 23 da atual Constituição
e o artigo 10 da de 1934 mostra ter havido a absorção, pelo art. 23, do próprio conteúdo do rol que o art. 10
abrigava”. Competências na Constituição de 1988, p. 76.
93
Consoante ensina Dalmo de Abreu Dallari, a competência não é um poder facultado aos entes federados,
mas sim verdadeiro encargo atribuído a eles, um poder-dever o qual o ente não pode se eximir de cumprir. In
A reforma constitucional e as novas competências dos Estados e Municípios, p. 32-34. Celso Antonio
Bandeira de Mello chega a preferir a expressão “dever-poder” para designar as prerrogativas dos poderes
públicos, por entender que assim “se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado
49
Assim, quanto à competência material, dispõe a Constituição de 1988:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios:
[...]
III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais
notáveis e os sítios arqueológicos;
IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de
arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural.
Aparentemente voltado ao aspecto natural do ambiente, mas nem por isso não
aplicável ao caso em tela, já que empregada expressão ampla, cite-se também o inciso
VI do mesmo dispositivo, que igualmente estabelece a competência material comum
para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas.”
O artigo 30, IX dispõe que compete aos Municípios “promover a proteção do
patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora
federal e estadual”.
Este dispositivo, à parte as suas contribuições à definição da competência
legislativa - como se verá mais adiante -, mostra-se, no plano de competências
materiais, mais como um reforço do constituinte de que a preservação do patrimônio
cultural é também incumbência do Poder local – ainda mais considerado o histórico
brasileiro de, na prática, centralizarem-se as ações preservacionistas nas mãos da
União -, do que propriamente como elemento essencial à definição das competências
executivas nessa matéria, porquanto, conforme visto acima, já é explícita, no artigo
23, incisos III e IV, a competência comum de todos os Poderes, inclusive dos
Municípios.
do poder em relação ao dever”. In Curso de Direito Administrativo, p. 72. Essa preferência pela expressão
“dever-poder” é compartilhada com Eros Grau e Carmem Lucia de Antunes Rocha, conforme teor dos votos
pronunciados no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.544-9/RS, STF, j. 28.06.2006,
Min. Rel. Sepúlveda Pertence.
50
Essa competência material comum é irrenunciável e indelegável, sendo
exemplar, nesse sentido, o acórdão proferido em sede da ação direta de
inconstitucionalidade nº 2544-9, proposta pelo Governador do Estado do Rio Grande
do Sul, em que se questionou a constitucionalidade da Lei estadual nº 11.380/99, que
atribuía aos Municípios do Estado do Rio Grande do Sul os deveres de proteção,
guarda e responsabilidade pelos sítios e acervos arqueológicos localizados em seus
respectivos territórios.
Nessa ocasião, o Ministro Relator Sepúlveda Pertence ponderou em seu voto
que a Lei estadual in casu “não poderia limitar a defesa, proteção e responsabilidade
dos sítios arqueológicos a um único ente federativo [...] pois tal disposição ofende
diretamente os ditames constitucionais”. Mais adiante, acrescentou que “não há
possibilidade de se cogitar na exclusão de um ente federativo, em se tratando de
competência comum, pelo seu próprio significado - questão de interesse de toda a
Federação”. Advertiu ainda que as competências previstas no art. 23, III da
Constituição de 1988 “substantivam incumbência e responsabilidade [...] de natureza
qualificadamente irrenunciável” e que o poder de regulação do modo de cooperação
entre elas compete exclusivamente à União, por meio de lei complementar (artigo 23,
parágrafo único), o qual, ainda assim, “não abrange o poder de demitirem-se a União
ou os Estados dos encargos constitucionais de proteção dos bens de valor
arqueológico para descarregá-lo ilimitadamente sobre os Municípios”. Por maioria de
votos, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação, declarando a
inconstitucionalidade da referida lei estadual.94
Há, no entanto, na doutrina, autores como Sonia Rabello de Castro que
entendem que existiriam “bens que têm importância exclusivamente regional ou
local” e que, nessas hipóteses, apenas o Estado, ou o Município, teria interesse
jurídico em protegê-los. Também, que faleceria à União competência para agir na
94
ADI 2.544-9/RS, j. 28.06.2006, Min. Rel. Sepúlveda Pertence. O único voto dissidente, do Ministro Marco
Aurélio de Mello, pautava-se no fato da lei estadual contestada não ter mencionado expressamente que a
atribuição era conferida exclusivamente ao município, entendendo, portanto, que eventual declaração de
inconstitucionalidade daria “uma carta em branco aos municípios quanto ao fato de não adotarem
providências visando a essa proteção”. Deve-se considerar, entretanto, que o dever dos municípios de
adotarem tais providências deriva diretamente da Constituição, não se justificando esse “reforço de
comando” no nível legal estadual. Ademais, o teor da lei contestada não deixava dúvidas quanto às intenções
do Estado de delegar essa atribuição exclusivamente ao município.
51
proteção de um bem que não tivesse importância para a cultura nacional, por falta de
interesse jurídico95.
Aproximando-se dessa linha, Antônio Augusto de Queiroz Telles considera
que
O que vai [...] disciplinar a atuação do Poder Público, nessa matéria,
é justamente a abrangência do sentido histórico ou artístico, situado
na escala nacional (União), regional (Estados), ou local
(Municípios), além da do Distrito Federal. [...] Para que possa haver
concomitância de tombamento, sobre o mesmo bem, seria necessária
a comprovação do real interesse das três esferas96.
Ousa-se discordar dessas leituras, posto que elas não parecem refletir
adequadamente a orientação dada pelo constituinte de 1988 quanto à responsabilidade
dos entes federados nessa matéria.
Hely Lopes Meirelles, por ocasião da análise da competência privativa dos
Municípios em assuntos de interesse local, já ponderou que “não há assunto
municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é
apenas de grau [de predominância], e não de substância”97. Portanto, nem mesmo
neste caso
de competência privativa dos
Municípios
existiriam
interesses
exclusivamente locais.
No que diz respeito à preservação do patrimônio cultural – para a qual, como
se viu, foi definida expressamente competência comum –, fica evidente que a matéria
interessa a toda a Federação, independentemente de avaliações, no caso concreto, de
95
O Estado na preservação de bens culturais, p. 21 e ss.
96
Tombamento e seu regime jurídico, p. 95. Na mesma linha, cf. Toshio Mukai, Direito e Legislação
Urbanística no Brasil, p. 155.
97
Direito Municipal Brasileiro, p. 131. O autor retoma esse seu entendimento em outra passagem: “Interesse
local não é interesse exclusivo do Município; não é interesse privativo da localidade; não é interesse único
dos munícipes. Se se exigisse essa exclusividade, essa privatividade, essa unicidade, bem reduzido ficaria o
âmbito da Administração local, aniquilando-se a autonomia de que faz praça a Constituição. Mesmo porque
não há interesse municipal que não o seja reflexamente da União e do Estado-membro, como, também, não
há interesse regional ou nacional que não ressoe nos Municípios, como partes integrantes da Federação
brasileira. O que define e caracteriza o ‘interesse local’, inscrito como dogma constitucional, é a
predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União.” (Grifos do autor). Op. Cit., p. 107.
52
alguma predominância de interesses locais ou regionais. Com efeito, do que se deduz
do teor do artigo 216, caput e parágrafo 1º da Constituição de 1988, todos os valores
culturais reconhecidos oficialmente pelo Poder Público - seja pela União, por
Estados, pelo Distrito Federal ou por Municípios – como referenciais à sociedade
brasileira integram o patrimônio cultural brasileiro, sendo certo que sua preservação
às presentes e futuras gerações assume, de algum modo, importância nacional.
Não bastasse essa disposição do artigo 216, o constituinte tratou de incluir o
tema no rol do artigo 23, isto é, dentre aquelas matérias de grande relevância social e
que reclamam a cooperação executiva de todos os entes federados, nos três níveis,
seja por envolverem interesses públicos particularmente ameaçados, seja por
demandarem o cumprimento de metas de alcance social nacional98. Ainda, no
parágrafo único desse mesmo dispositivo, sugeriu que a preservação de valores
referenciais à memória à ação ou à identidade das gerações presentes e futuras serve
ao “equilíbrio do desenvolvimento e do bem estar em âmbito nacional”99.
Portanto, não se revela adequado entender que qualquer dos entes da
Federação esteja isento, em alguma hipótese, da responsabilidade pela preservação
desse patrimônio que constitui, todo ele, um bem jurídico nacional. O que se pode
definir, em nível infraconstitucional, são atribuições diferenciadas desses entes nessa
matéria, na prática, mas não que essa distribuição legal de atividades exclua o dever
constitucional comum, de todos eles, por essa preservação100.
98
Tais como: cuidar da saúde e assistência pública (art. 23, II), proporcionar os meios de acesso à cultura,
educação e ciência (inciso V), proteger o meio ambiente (inciso VI), preservar florestas, fauna e flora (inciso
VII), promover melhorias na habitação e no saneamento básico (inciso IX), combater as causas da pobreza
(inciso X), etc. Cf. Fernanda Dias Menezes de Almeida, Competências na Constituição de 1988, p. 130 e ss.
99
“Art. 23. [...] § único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito
nacional”.
100
Reforce-se que a realidade dos Municípios brasileiros é de verdadeira carência de recursos
próprios. Em pesquisa do IBGE realizada em 2000, apurou-se que aproximadamente 95% dos 5.198
Municípios pesquisados possuíam mais de 65% de suas receitas totais provenientes de transferências
correntes da União e dos Estados federados respectivos. Ainda assim, nos anos de 2003 a 2005, os
municípios foram as entidades federadas com maior participação no total de despesas governamentais
com cultura (54%, 52,3% e 47,2%, para os anos de 2003, 2004 e 2005, respectivamente), conforme
demonstrado em pesquisa desse mesmo Instituto. Esses dados acabam se tornando mais preocupantes,
no que diz respeito aos investimentos públicos em cultura e, por via reflexa, em preservação do
patrimônio, quando se comparam os gastos governamentais anuais nesta área com os realizados em
outras áreas sociais, como saúde e educação: tomando-se por base o período de 2003 a 2005, o IBGE
53
Para a execução dessa competência comum de preservação do patrimônio
cultural brasileiro, o parágrafo único do artigo 23 da Constituição prevê a edição de
lei complementar fixando normas de cooperação entre os entes federados101.
Entende-se que esta lei complementar, a que se refere o mencionado
dispositivo, deverá fixar as bases políticas e as normas operacionais disciplinadoras
do modo como se pretende que as atividades de preservação do patrimônio cultural
brasileiro sejam exercidas pelos entes federados. Conforme defendido por Fernanda
Dias Menezes de Almeida, a lei complementar que for editada com fundamento no artigo
23, parágrafo único
Dirá, por exemplo, como as Administrações federal, estaduais e
municipais e do Distrito Federal deverão colaborar reciprocamente
para que não ocorra a dispersão dos esforços que o constituinte quer
ver conjugados.
Estabelecerá o norte para a especificação do que compete a cada
esfera política na prestação dos mesmos serviços objeto da
competência comum.102
Em complementação a essa definição dos modos de distribuição e de
integração das atribuições executivas nos três níveis da Federação brasileira, também
é perfeitamente cabível, no conteúdo dessa lei complementar, o estabelecimento dos
instrumentos administrativos passíveis de serem empregados pelos entes federados
para os fins de preservação patrimonial. Isso com vistas a se evitar centralização,
lacunas e sobreposições de ações, bem como conflitos na aplicação dos instrumentos
de preservação pelos entes federados.
apurou que as médias de gastos governamentais anuais (das três esferas de governo) nas áreas da
educação e da saúde foram respectivamente de 6,7% e 6,9% do total de gastos governamentais anuais.
Já na área da cultura, a média percentual de gastos anuais foi de apenas 0,2%, nesses três anos. Para
essas e outras informações a esse respeito, cf. tabelas nos Anexos I a V deste trabalho.
101
A Emenda Constitucional nº 53/2003 tratou de alterar a redação original desse parágrafo único,
substituindo a expressão “lei complementar fixará” por “leis complementares fixarão”. Desse modo, restou
claro que é possível a edição de lei complementar específica para cada matéria arrolada no artigo 23.
102
Fernanda Dias Menezes de Almeida, Competências na Constituição de 1988, p. 134.
54
No campo ambiental natural, são registrados avanços na tramitação, no
Congresso Nacional, do Projeto de Lei Complementar nº 12-B de 2003, que fixa
normas de cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios para o
exercício de suas competências comuns relativas à preservação do meio ambiente
natural (art. 23, VI), das florestas, fauna e flora (art. 23, VII) e – o que é curioso –
dentre os interesses reunidos no artigo 23, III (documentos, obras e outros bens de
valor histórico, artístico ou cultural, monumentos, paisagens naturais notáveis e sítios
arqueológicos), somente as paisagens naturais notáveis.103 Aqui, mais uma vez,
optou-se por tratar juridicamente o patrimônio ambiental enfatizando-se apenas os
seus aspectos de natureza.
Para essa mesma finalidade de execução da competência material comum de
preservação do patrimônio cultural, a Constituição de 1988 também admite que sejam
celebrados convênios de cooperação entre os entes federados. É o que hoje resta
expressamente consentido no artigo 241 da Constituição de 1988 - acrescido pela
Emenda Constitucional nº 19/1988104.
Portanto, a elaboração e aprovação de lei complementar não é imprescindível
para que se estabeleçam modos de cooperação entre entes federados nessa matéria de
preservação do patrimônio cultural. Convênios de cooperação poderão ser celebrados
com vistas ao exercício mais vantajoso dessa competência.
103
A redação final do Projeto de Lei Complementar 12-B/2003 foi recentemente aprovada pela Câmara dos
Deputados (em 16 de dezembro de 2009), tendo seguido para o Senado Federal na mesma data. Última
atualização em dezembro de 2009.
104
Já na Constituição de 1937 existia previsão da possibilidade de associação dos municípios com vistas à
realização de atividades prestacionais públicas de forma cooperada. Assim dispunha o artigo 29 desta
Constituição: “Os municípios da mesma região podem agrupar-se para a instalação, exploração e
administração de serviços públicos comuns. O agrupamento, assim constituído, será dotado de personalidade
jurídica limitada a seus fins. Parágrafo único. Caberá aos Estados regular as condições em que tais
agrupamentos poderão constituir-se, bem como a forma de sua administração”. Também o §3º do artigo 13
da Constituição de 1969 dispunha que “A União, os Estado e os Municípios poderão celebrar convênios para
a execução de suas leis, serviços ou decisões, por intermédio de funcionários federais, estaduais ou
municipais”. Com a Emenda Constitucional nº 19/98, superou-se a omissão da Constituição de 1988 acerca
dessa faculdade, que já consistia em verdadeira tradição constitucional, aprovando-se a seguinte redação para
o artigo 241 da Constituição de 1988: “Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados,
autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos,
serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”. Cf. MEDAUAR, Odete;
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Consórcios Públicos: Comentários à Lei 11.107/2005, p. 17-20.
55
No tocante à competência legislativa em matéria de preservação do patrimônio
cultural, a Constituição de 1988 estabelece que:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:
[...]
VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico turístico e
paisagístico;
VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor,
a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico;
Ainda que deslocada, a competência legislativa concorrente dos Municípios
encontra guarida no artigo 30, II, que lhes incumbe de “suplementar a legislação
federal e a estadual no que couber”, assim como no artigo 30, IX, já referido acima,
que também reforça o caráter suplementar da atividade legislativa municipal ao
determinar que a proteção do patrimônio histórico-cultural local deverá observar as
legislações estadual e federal.
Estes dispositivos do artigo 24, do mesmo modo que os do artigo 23, traduzem
a ênfase dada pela Constituição de 1988 ao federalismo cooperativo em matéria de
preservação, à medida que atribuem poderes políticos também aos entes periféricos e
sugerem a coordenação das competências legislativas de todos eles de tal modo que
sejam definidos graus diferenciados de participação em questões de relevância para
toda a Federação105. Assim, à União caberia a decisão comum, tomada em escala
federal, e aos Estados e Municípios competiria adaptar essa decisão às suas
peculiaridades e necessidades regionais e locais, além de executá-la autonomamente.
Pertinente apontamento é feito por Fernanda Dias Menezes de Almeida,
concernente à diferença de limites ao exercício das competências legislativas
concorrentes em matéria de preservação admitidas na anterior Emenda Constitucional
nº 1/69 e na atual Constituição de 1988:
105
Gilberto Bercovici. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição cit., p. 151.
56
Relativamente à proteção do patrimônio histórico-cultural, que o
parágrafo único do artigo 180 da anterior Constituição cometia ao
Poder Público em geral, podia-se entender, sob a égide daquela
Constituição, que havia competência legislativa cumulativa. Pela
atual Constituição, a matéria passa a integrar a competência
concorrente não cumulativa 106.
Significa dizer que, pela Constituição anterior, atribuindo-se o encargo da
proteção do patrimônio cultural genericamente ao “poder público”, não se
estabeleciam limites prévios ao exercício da competência legislativa concorrente
pelos entes federados nessa matéria, podendo todos eles, em tese, legislar livremente
sobre a proteção especial de documentos, obras, sítios de valor histórico ou artístico,
monumentos e paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.
Já pela ótica da Constituição de 1988, a matéria submete-se à repartição
vertical de competências, segundo a qual, dentro do mesmo campo material, fica
reservado um nível normativo superior à União, para fixação dos princípios e das
normas gerais, deixando-se aos Estados-membros e Municípios (artigo 30, II) a
complementação dessas normas, de acordo com suas realidades específicas.
Neste segundo caso, portanto, a atividade legiferante dos Estados sofre
limitações das normas gerais estabelecidas pela União e a atividade dos Municípios,
tanto das normas gerais da União, quanto das normas complementares dos Estados
respectivos. É o que esclarecem os parágrafos 1º a 4º do artigo 24 da Constituição,
que sistematizam, de modo geral, a competência legislativa concorrente não
cumulativa.107
106
Competências na Constituição de 1988, p. 142. Sobre a competência legislativa concorrente da União,
Estados e Municípios em matéria de preservação sob a ótica da Emenda nº 1/69, cf. também Marcelo de
Oliveira Fausto Figueiredo Santos. “Tombamento: uma análise constitucional”, in Adilson Abreu Dallari e
Lúcia Valle Figueiredo (orgs.), Temas de Direito Urbanístico 1, p. 63-64; e Carlos Augusto A. Machado,
“Tombamento: um instituto jurídico”, in Adilson Abreu Dallari e Lúcia Valle Figueiredo (orgs.), Temas de
Direito Urbanístico 1, p. 29-31.
107
“Art. 24. [...] §1º. No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a
estabelecer normas gerais. §2º. A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a
competência suplementar dos Estados. §3º. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão
a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. §4º. A superveniência de lei federal
sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”.
57
Procedendo a uma análise crítica do modelo teórico de repartições de
competências da Constituição de 1988, Fernanda Dias Menezes de Almeida pondera
que
Parece-nos, efetivamente, que a utilização das competências
concorrentes108, como idealizada, atende aos desígnios de se chegar a
maior descentralização, sem prejuízo da direção uniforme que se
deva imprimir a certas matérias.
Numa palavra, o caminho que se preferiu é potencialmente hábil a
ensejar um federalismo de equilíbrio, que depende, embora, como
não se desconhece, também de outras providências.109
Contudo, um problema apontado na prática dessas competências legislativas
concorrentes não cumulativas refere-se justamente à dificuldade de identificação das
“normas gerais”, dentre as emanadas pela União - as quais, lembre-se, justificariam
uma relativa centralização normativa por parte deste ente político.
Esse impasse deve-se, em grande parte, ao problema da formulação de um
conceito de “normas gerais” que permita o reconhecimento destas com razoável
segurança110. De outra parte, as dificuldades de identificação dessas normas são
108
Vale apontar que Fernanda Dias Menezes de Almeida considera a expressão “competência concorrente”
como sinônima de “competência comum”. Para a autora, as competências concorrentes seriam “competências
exercitáveis conjuntamente, em parceria, pelos integrantes da Federação, segundo regras preestabelecidas
[...], assim tradicionalmente determinada porque [...] relativamente a uma só matéria concorre a competência
de mais de um ente político”. Mais adiante, ressalta que “a competência material do art. 23 foi designada
como competência ‘comum’, termo que, no caso, tem o mesmo sentido de ‘concorrente’”. In Competências
na Constituição de 1988, p. 129. Ainda em outro trecho, a autora comenta que: “Passando-se às
competências comuns, estão elas discriminadas em dois dispositivos. No artigo 23 são previstas [...]. De
outra parte, no artigo 24 figura [...]”. Op. Cit., p. 75. Em sentido contrário, estabelecendo diferenças entre
competências comuns e concorrentes, cf. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p.
481 e Gilberto Bercovici, Desigualdades Regionais, Estado e Constituição, p. 153, nota 369.
109
Competências na Constituição de 1988, p. 77.
110
Referindo-se à orientação de Tércio Sampaio Ferraz Jr., no sentido de que o conteúdo da expressão
‘norma geral’ seja analisado teleologicamente, Gilberto Bercovici prossegue assinalando o seguinte: “As
normas gerais devem se reportar ao interesse fundamental da ordem federativa. Como a Federação brasileira
têm [sic] por fundamento a solidariedade, que exige a colaboração de todos os seus integrantes, existe a
necessidade de uniformização de certos interesses como base desta cooperação. Desta maneira, toda matéria
que ultrapassar o interesse particular de um ente federado porque é comum, ou seja, interessa a todos, ou
envolver conceituações que, se fossem particularizadas num âmbito subnacional, gerariam conflitos ou
dificuldades nacionalmente, é matéria de ‘norma geral’”. In Desigualdades Regionais, Estado e Constituição,
p. 152. Fernanda Dias Menezes de Almeida cita a advertência de Manoel Gonçalves Ferreira Filho de que,
pelo ângulo positivo, a conceituação de “normas gerais” sempre daria margem a dúvidas, no caso concreto,
58
agravadas pelo fato delas recorrentemente virem inseridas em um mesmo diploma
legal em que também presentes normas específicas à Administração Pública da
União, sem maiores sistematizações ou distinções umas das outras.
Esse problema acaba gerando incertezas, na prática, quanto aos precisos
limites dos campos autônomos de atuação legislativa estadual, distrital e municipal,
podendo suscitar conflitos de competências.
De qualquer forma, diante das exposições feitas até aqui, resta claro, no plano
teórico, o modo como a Constituição de 1988 definiu a repartição de competências
em matéria de preservação do patrimônio cultural.
Tendo em vista o foco deste trabalho no patrimônio cultural urbano, assim
como o fato de que a preservação deste patrimônio é um dos fins da atividade
urbanística111,
cumpre
agora
analisar
sistematicamente
as
competências
constitucionais em direito urbanístico, a fim de se verificar se o quanto definido pela
Constituição de 1988 em matéria de preservação do patrimônio cultural encontra
harmonia com as disposições igualmente definidas por aquela para o tratamento da
ordenação urbana.
Formulada em outros termos, a questão presente é a seguinte: seriam as
competências constitucionais em matéria de preservação do patrimônio cultural
compatíveis com as competências em matéria urbanística? Ou, pelo contrário, haveria
algum conflito entre as disposições atinentes a esses dois temas, tratados
separadamente pela Constituição Federal?
Em 1988, foi dedicado pela primeira vez tratamento constitucional
sistematizado à questão urbana. No tocante às competências, o constituinte de 1988
tratou de reconhecer esquema que já vinha sendo defendido pela doutrina, no tempo
de até onde ela seria efetivamente geral, razão pela qual este autor sugere que essas normas sejam definidas
pelo aspecto negativo, ou seja, identificando as características de uma norma que não seja geral. Fernanda
Dias Menezes de Almeida não vê muito como evitar, na prática, relativo subjetivismo na identificação das
normas gerais, o que acaba canalizando para conflitos de competências. op. Cit., p. 146-151.
111
A esse respeito, ensina José Afonso da Silva que “é também um momento importante da atividade
urbanística a preservação do meio ambiente natural e cultural, assegurando, de um lado, condições de vida
respirável e, de outro, a sobrevivência de legados históricos e artísticos e a salvaguarda de belezas naturais
para desfrute e deleite do Homem”. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 33.
59
do regime anterior - ainda que com relativa dificuldade, dado o silêncio
constitucional de então -, no sentindo de incumbir tanto a União, como os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios dos assuntos urbanísticos.
De acordo com a atual Constituição, à União cabe editar normas gerais de
direito urbanístico (artigo 24, I e parágrafo 1º)112, além de “elaborar e executar planos
nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e
social” (artigo 21, IX) e “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive
habitação, saneamento básico e transportes urbanos” (artigo 21, XX).
Estas duas últimas competências são, ao mesmo tempo, materiais - ou seja, de
execução - e legislativas, tendo em vista o teor do artigo 48, inciso IV da Constituição
Federal113.
Elas traduzem não somente uma vinculação adequada entre os planos de
ordenação do território e os de desenvolvimento econômico e social114, como também
uma clara intenção do constituinte de ressaltar o papel de destaque da União em
matéria de planejamento. Ambas as ideias são reforçadas pelo teor do caput e do
parágrafo 1º do artigo 174, que mesmo não mencionando expressamente a
competência própria da União para as funções estatais ali referidas, não deixam
dúvidas de que ela a possua.
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade
econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para
o setor público e indicativo para o setor privado.
112
“Art. 24. compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito
[...] urbanístico. §1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a
estabelecer normas gerais”.
113
De acordo com o art. 48, IV da Constituição de 1988: “Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do
Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as
matérias de competência da União, especialmente sobre: [...] IV - planos e programas nacionais, regionais e
setoriais de desenvolvimento;”. Cf. Daniela Campos Libório Di Sarno, Elementos de Direito Urbanístico, p.
38. Cf. também Fernanda Dias Menezes de Almeida, Competências na Constituição de 1988, p. 84.
114
Cf. José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 57-58.
60
§1º. A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do
desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e
compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
A propósito da atividade estatal de planejamento, Gilberto Bercovici critica
essa ênfase dada pela atual Constituição à União, ignorando o papel dos Estados e
Municípios na formulação dos planos. E afirma que “a preponderância da União,
nessa área, não exclui a necessidade de participação de todos os entes federados na
elaboração conjunta do planejamento”. Não é por outra razão que o autor considera a
não inclusão do planejamento no rol do artigo 23 como uma das maiores críticas a
serem feitas às competências comuns definidas pela Constituição de 1988115.
Fernanda Dias Menezes de Almeida avalia essa questão de modo diverso. Para
essa autora,
a crítica maior que cabe fazer à Constituição vigente não se volta
tanto para a ênfase que se continuou a dar ao planejamento nacional
e regional, a cargo da União.
[...]
O que se lamenta, numa linha de democracia participativa, é que se
tenha perdido a oportunidade de tornar necessária a audiência dos
Estados e dos organismos regionais ou municipais interessados,
quando da elaboração dos diversos planos nacionais e regionais116.
Com efeito, a ênfase dada pela Constituição de 1988 aos poderes da União em
matéria de planejamento, especialmente no artigo 21, por si só, não representa uma
vedação aos Estados e Municípios de também formularem planos regionais ou locais.
Tampouco constitui qualquer ofensa ao princípio federalista da autonomia das
unidades federadas.
115
Desigualdades regionais, Estado e Constituição, p. 155-156.
116
Competências na Constituição de 1988, p. 96. A autora menciona que o anteprojeto da Comissão Afonso
Arinos, em seu art. 72, XII, garantia a oitiva dos Estados e órgãos interessados quando do exercício da
competência de planejamento e promoção do desenvolvimento nacional pela União.
61
Trata-se tão somente de reforçar a importância de que a União, representando
a unidade do Estado federal, norteie as ações públicas em determinadas áreas –
especialmente naquelas que demandam maior intervencionismo estatal – a fim de se
buscar soluções para problemas que costumam transcender os lindes de um único
Estado-membro117. A centralização relativa, portanto, é admitida pelo próprio
constituinte de 1988 em situações em que ele considerou imprescindível a unidade do
Estado118.
No campo urbanístico, por exemplo, o planejamento local não se faz suficiente
para resolver a problemática urbana em toda a sua complexidade. Nas palavras de
José Afonso da Silva, “na medida mesma em que a idéia de urbanismo se amplia para
abranger a sistematização do território, também se apresenta a exigência de que a
dimensão espacial se incorpore ao planejamento no nível nacional”119.
Nesse contexto é que se inserem os dispositivos da Constituição de 1988
mencionados acima, os quais definem que, em matéria de planejamento urbano, a
União estabeleça as diretrizes gerais, ou seja, as orientações mínimas a partir das
quais as entidades federativas deverão desenvolver suas ações urbanísticas executivas
e legislativas.
Mas se concorda, aqui, com o quanto ponderado por Fernanda Dias Menezes
de Almeida, no sentido de que esses dispositivos constitucionais, ao definirem a
relativa centralização de poder nas mãos da União para elaboração de planos
nacionais e regionais, deveriam ter garantido a oitiva dos Estados, organismos
regionais e Municípios.
117
Cf. Fernanda Dias Menezes de Almeida, Competências na Constituição de 1988, p. 91.
118
Vale menção o seguinte trecho de Gilberto Bercovici sobre o federalismo: “Em nenhuma concepção
doutrinária o federalismo é entendido como oposto à unidade do Estado. Pelo contrário, o objetivo do
federalismo é a unidade, respeitando e assimilando a pluralidade. Nem poderia ser diferente, afinal a unidade
está na essência da organização estatal. Para garantir a unidade (fim), o Estado possui determinada forma de
organização (meio), mais ou menos centralizada. Todo Estado, inclusive o federal, neste sentido, é unitário,
pois tem como um de seus objetivos a busca da unidade. A autonomia não se opõe à unidade, mas à
centralização em determinados órgãos ou setores do Estado. Neste sentido, num Estado federal a unidade é o
resultado de um processo de integração, em que a autonomia não se limita a ser um objeto passivo (garantia),
mas é, essencialmente, sujeito ativo na formação desta unidade estatal (participação).” (grifamos) In
Desigualdades Regionais, Estado e Constituição, p. 149.
119
(Grifos do autor). Direito Urbanístico Brasileiro, p. 100.
62
A Constituição de 1988 também atribui à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios, competência material comum para “promover programas
de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento
básico”; bem como “combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização,
promovendo a integração social dos setores desfavorecidos”. (artigo 23, IX e X).
Quanto aos Estados federados, a eles são definidas competências legislativas
concorrentes para complementar as normas gerais urbanísticas da União (artigo 24, I
e parágrafo 2º)120, consideradas suas respectivas especificidades regionais, bem como
“mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões [...] para integrar a organização, o planejamento e a execução de
funções públicas de interesse comum” (artigo 25, parágrafo 3º)121.
Foi tímida a Constituição de 1988 ao tratar da participação dos Estados no
planejamento urbano, não havendo menção específica a esta expressão como matéria
de competência estadual. Mas essa sua competência é deduzida, sem maiores
indagações, pelo teor do artigo 24, inciso I e parágrafo 2º. Mais uma vez recorrendose às lições de José Afonso da Silva,
Abre-se aos Estados, aí, no mínimo, a possibilidade de estabelecer
normas de coordenação dos planos urbanísticos no nível de suas
regiões, além de sua expressa competência para estabelecer regiões
metropolitanas122.
Até esse ponto, não se verificam dificuldades de se concluir que as
competências constitucionais definidas para a União e os Estados, em matéria de
preservação do patrimônio cultural são perfeitamente compatíveis com as
competências que esses mesmos entes possuem em matéria urbanística.
120
“Art. 24. compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito
[...] urbanístico. §2º. A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência
suplementar dos Estados”.
121
“Art. 25. [...] §3º. Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, para
integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.”
122
José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 126.
63
O problema se coloca quando se passa a tratar das competências
constitucionais urbanísticas municipais. No inciso VIII do artigo 30 da Constituição
de 1988, vem estabelecida a competência material privativa do Município de
“promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento
e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.
José Afonso da Silva vê nesse dispositivo o fundamento do planejamento
urbanístico local. E reforça que
Isso não é competência suplementar, não. É competência própria,
exclusiva, que não comporta interferência nem da União, nem do
Estado. [...] Esse ordenamento [territorial] é função do plano diretor,
aprovado pela Câmara Municipal, que a Constituição elevou à
condição de instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana123
A partir desse dispositivo referido acima, Ulpiano Bezerra de Meneses avalia
que as normas e critérios de zoneamento (tais como de densidade populacional, de
volume de edificações e de uso) constituiriam matéria típica de competência dos
Municípios e que isso representaria um impasse, por exemplo, aos órgãos estaduais
de preservação de deliberarem acerca de destinação de usos de bens imóveis
tombados. Para o autor,
o uso de bens culturais constitui uma das principais justificativas da
proteção que o poder público (nos três níveis) é obrigado a fomentar.
123
Direito Urbanístico Brasileiro, p. 58. As competências privativas e expressas estariam teoricamente livres
de qualquer interferência material dos outros entes federados. Hely Lopes Meirelles refere-se a quatro regras
facilitadoras da distinção das três órbitas de ação governamental, esquematizadas e enumeradas por Victor
Nunes Leal. A primeira dessas regras é a de que a competência municipal expressa e exclusiva afasta
qualquer outra competência sobre o assunto, seja ela federal ou estadual. “A manifestação expressa e
privativa da competência do Município repele a de qualquer outra entidade estatal, poder, órgão ou autarquia.
Qualquer ingerência estranha na competência municipal será inconstitucional e afastável por via judicial”. In
Direito Municipal Brasileiro, p. 129-130.
64
O uso e a efetividade das funções em benefício da coletividade é
mesmo o que legitima, em última instância, a própria preservação124.
Primeiramente, ocorre destacar o quanto já ponderado por Celso Ribeiro
Bastos acerca das competências municipais explicitadas no artigo 30 da Constituição.
Na lição desse autor, essas competências “não devem estimular uma visão
exageradamente grandiosa da autonomia municipal”, já que muitas delas sofrem
restrição de uma normatividade superior.125
Nessa mesma linha, destaque-se a competência material referida no artigo 182
da Constituição - para execução da Política de Desenvolvimento Urbano –, a qual não
obstante seja privativa do Poder Público municipal, deverá ser realizada “conforme as
diretrizes gerais fixadas em lei”126.
Em segundo lugar, se por um lado José Afonso da Silva identifica no
dispositivo constitucional acima a competência exclusiva do município, por outro
lado ele próprio reconhece que em determinados setores urbanísticos a competência
para atuar é comum à União, Estados, Distrito Federal e Municípios e para legislar é
concorrente entre estes entes, não privativa do Município. E chega até mesmo a
apontar como exemplos desses setores específicos a proteção de obras de valor
histórico, artístico e cultural e dos monumentos, paisagens notáveis e sítios
arqueológicos, assim como a proteção do meio ambiente e o combate à poluição:
Aqui, sim, a posição dos Municípios é diversa daquela apontada
acima em relação às normas urbanísticas em geral, porque nesses
setores a atuação legislativa municipal é suplementar da legislação
federal e estadual, com aplicação do disposto no art. 30, II, e
especialmente ao teor específico do inciso IX desse artigo, que
declara caber ao Município promover a proteção do patrimônio
124
“A cidade como bem cultural”, In Victor Hugo Mori et alli (orgs.), Patrimônio: Atualizando o debate, p.
41.
125
Curso de Direito Constitucional, p. 278. Nesse mesmo sentido, Fernanda Dias Menezes de Almeida, op.
cit., p. 118.
126
“Art. 182. A Política de Desenvolvimento Urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Trata-se da Lei federal nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade).
65
histórico-cultural local, observada
fiscalizadora federal e estadual.127
a
legislação
e
a
ação
A expressão “no que couber”, empregada pelo constituinte no artigo 30, VIII,
reforça essa noção de que existem limites à exclusividade conferida ao Município
para o planejamento territorial.
Portanto,
não
se
vislumbram
óbices
constitucionais,
baseados
nas
competências urbanísticas municipais, para a definição de usos de bens culturais
pelos órgãos de preservação estaduais, ou mesmo pelo órgão federal, desde que estas
ações estejam inseridas no escopo de cooperação entre os entes, dada a competência
comum na matéria.
Apenas há de se advertir que essa definição de uso para bens culturais pelo
Poder Público – seja pelo órgão federal, seja pelo estadual ou municipal de
preservação –, caso incida sobre propriedades privadas e de forma individualizada,
ensejará o direito do particular à justa indenização, em razão do esvaziamento total ou
parcial do conteúdo econômico da propriedade causado pelo ato do Poder Público
(artigo 5º, inciso XXII da Constituição Federal)128.
De tudo quanto exposto neste item, conclui-se que os impasses a uma política
de preservação do patrimônio cultural integrada ao direito urbanístico não residem no
âmbito constitucional. Conforme demonstrado, a Constituição de 1988 previu
competências bastantes a todos os níveis de poder para o concurso e a integração de
127
(Grifos do autor). Direito Urbanístico Brasileiro, p. 65-66.
128
Trata-se de situação em que destacadas do domínio as prerrogativas de usar e fruir o bem, em razão de ato
posterior do poder público. A propósito de critérios para distinção entre situações que gerariam o dever do
Estado de indenizar e as que apenas conformariam o conteúdo do direito de propriedade, cf. Carlos Ari
Sundfeld, Direito Administrativo Ordenador, p. 89-104; Cf. também José Canasi, Tratado teorico practico
de la expropriación pública, p. 65 e ss; e ainda, cf. Ernst Forsthoff, Tratado de Derecho Administrativo, p.
426 e ss. Para Lucia Valle Figueiredo, “se a propriedade privada tiver sua possibilidade de utilização
diminuída, estará o Poder Público, ao tombar, constituindo uma servidão e, assim, deverá indenizar o
proprietário na proporção em que este for atingido pela medida do tombamento, portanto, na proporção do
dano”. In Disciplina Urbanística da Propriedade, p. 63. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já
assentou entendimento de que a restrição administrativa sobre o uso da propriedade que causar o
esvaziamento do seu conteúdo econômico gera ao proprietário o direito à indenização. Como casos em que
apontado esse entendimento pacífico, cf. Recurso Especial 188781/PR, j. 20.09.1999; Recurso Especial
52905/SP, j. 13.12.1994; Recurso Especial 34006/SP, j. 25.10.1993; Recurso Especial 401.264/SP, j.
05.09.2002; Recurso Especial 435128/SP, j. 11.02.2003; Recurso Especial 665791/SP, j. 05.04.2005; dentre
outros. Cf. no Capítulo 4 deste trabalho comentários acerca do tombamento de uso.
66
suas ações legislativas e executivas tanto em matéria de proteção do patrimônio
cultural, como no tocante ao desenvolvimento urbano (reabilitação e planejamento
urbanos associados à inclusão social).
O que parece faltar exatamente é vontade política de integração dos órgãos
públicos de ordenação urbana e de preservação, nos três níveis da Federação, bem
como de implementação de planos nacionais, regionais e locais que coordenem as
ações dos entes federados, considerada a atual realidade urbana e as novas e mais
ampliadas definições de patrimônio cultural.129
3.3. Ação dos três Poderes
O parágrafo 1º do artigo 216 da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer
que “o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”,
dá a tônica da política nacional de preservação do patrimônio cultural brasileiro,
vinculando todos os Poderes Públicos - da União, dos Estados e dos Municípios – à
consecução desse objetivo. Aponta, assim, para fins futuros, servindo de pauta de
valores para as ações do Poder Público.130
129
Cf. Paulo Ormindo de Azevedo, “Comentário 4: A cidade como obra aberta”, In Patrimônio: Atualizando
o debate, p. 67.
130
José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 149. Ernest Benda, num contexto em
que discutia a cláusula do Estado social na Lei Fundamental Alemã, considerou-a como ‘categoria jurídica
voltada ao futuro’: “O fato de que só em pequena medida caiba inferir diretamente respostas materiais é um
inconveniente apenas em uma primeira e elementar aproximação. O mandamento constitucional continua
existindo. Não cabe à discrição da maioria parlamentar executá-lo ou não. Mas o detalhe do que deva ser
feito não está tão predeterminado que não exista margem para a busca da melhor alternativa”. apud Maria
Paula Dallari Bucci, “O conceito de política pública em Direito”, In Maria Paula Dallari Bucci (org.),
Políticas Públicas: Reflexões sobre o conceito jurídico, p. 9. Também Maria Paula Dallari Bucci, ao tratar da
positivação constitucional das normas sociais, ressalta que “[...] seria absolutamente frustrante, do ponto de
vista político, aceitar a inexequibilidade dos direitos sociais. Do ponto de vista jurídico, isso representaria
tornar inócuo o qualificativo de ‘Estado social de direito’ afirmado no art. 1º da Constituição. Partindo da
conhecida máxima de interpretação de que a lei não contém palavras inúteis, não se pode tomar tal locução
como sinônimo de ‘Estado de Direito’, omitindo a carga finalística do adjetivo ‘social’ num Estado em que as
67
José Afonso da Silva considera haver nesse dispositivo uma
peremptoriedade da norma, que a faz in fieri para a eficácia plena, a
ponto de poder-se duscutir se, apesar de um certo sentido de
programa a realizar, não se acham, aí, traduzidos, se não direitos
subjetivos, ao menos interesses legítimos que implicam, no mínimo,
131
obrigações administrativas de aparelhar-se para executar a norma.
Essa ideia é reforçada pela enumeração, no dispositivo, das providências que
deverão ser tomadas para aplicação da norma constitucional (realização de
inventários, registros, tombamentos, etc).
No tocante às cidades, o constituinte de 1988 também programou
especialmente aos Municípios a implementação de políticas de desenvolvimento
urbano para os seus respectivos territórios, com vistas a ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus
habitantes (artigo 182, caput). Definiu que essas políticas a cargo dos Poderes
Públicos Municipais deveriam seguir diretrizes gerais fixadas em lei132, assim como
ser baseadas em um Plano Diretor133 – que deverá revestir-se da forma de lei
municipal e conter as exigências fundamentais de ordenação da cidade, necessárias ao
delineamento da função social da propriedade urbana (artigo 182, §1º e 2º).
tarefas sociais ainda estão por ser feitas”. In “O conceito de política pública em Direito”. In Maria Paula
Dallari Bucci (org.), Políticas Públicas: Reflexões sobre o conceito jurídico, p. 10.
131
Op. Cit., p. 149. Acerca das normas constitucionais definidoras de direitos sociais específicos, José
Joaquim Gomes Canotilho adverte que “as diretivas por elas definidas, longe de serem meros convites para
legislar, assumem o caráter de verdadeiras imposições constitucionais de atividade legiferante”. In Direito
Constitucional, p. 178. A respeito da incidência do princípio da aplicabilidade direta das normas
constitucionais de meio ambiente (dispensando-se intervenção de lei mediadora), cf. José Joaquim Gomes
Canotilho, Protecção do Ambiente e Direito de Propriedade: Crítica de Jurisprudência Ambiental, p. 18.
132
Hoje expressas na Lei Federal nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade). Neste documento, também se reconhece
a necessidade dessa política municipal de desenvolvimento urbano seguir as regras gerais estabelecidas pelos
planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social,
assim como as definidas no planejamento das regiões metropolitanas , aglomerações urbanas e microrregiões
(art. 4º, I e II da Lei federal 10.257/01).
133
O Plano Diretor é obrigatório somente para as cidades com mais de vinte mil habitantes (art. 182, §1º da
Lei 10.257/01).
68
Todas as normas constitucionais acima referidas apontam, portanto, para uma
série de medidas a serem adotadas pelos Poderes Legislativo e Executivo para
realização dos fins que mencionam.
Diante desse dever do Estado de adoção de medidas voltadas a esses fins,
propõe-se, neste item, verificar o modo como hoje é sistematizado o tema da
preservação do patrimônio cultural urbano pelos Poderes Legislativo e Executivo. No
que se refere ao Poder Judiciário, serão verificados alguns meios processuais de tutela
do patrimônio cultural urbano. Será dada ênfase às atividades legislativas e
executivas no nível nacional.
3.3.1. O Decreto-lei nº 25/37 enquanto lei geral de preservação do patrimônio
cultural
O tema da preservação do patrimônio cultural recebeu tratamento legal inédito
no Brasil três anos depois que versada a matéria pela primeira vez no plano
constitucional, pela Constituição de 1934. Assim, em 30 de novembro de 1937, foi
publicado pela União o Decreto-Lei nº 25134 visando a “organizar a proteção do
patrimônio histórico e artístico nacional”.
Seu texto incorporava as contribuições sucessivamente acumuladas das
diversas propostas legislativas anteriores135, definindo juridicamente o “patrimônio
histórico e artístico nacional” (Capítulo I), bem como instituindo o regime jurídico
próprio do instrumento que se tornaria – e assim se mantém, até os dias de hoje - o
134
O Decreto-lei 25/37 decorre de um projeto de lei de 1936, de autoria do jurista Rodrigo Melo Franco de
Andrade, que então já assumia a diretoria do recém criado SPHAN.
135
A ideia de criação de uma lei nacional de proteção do patrimônio cultural vinha sendo debatida na Câmara
dos Deputados desde 1923, quando o deputado pernambucano Luiz Cedro apresentou pela primeira vez à
Casa um projeto de lei dispondo sobre a matéria. Este projeto de lei, assim como outros dois apresentados
posteriormente por Augusto de Lima (1924) e José Wanderley de Araújo Pinho (1930), não obstante tenham
sido abandonados alegadamente por razões de inconstitucionalidade – a Constuição de 1891 assegurava o
direito de propriedade “em toda a sua plenitude” -, contém normas que muito se assemelham às constantes do
Decreto-Lei nº 25/37. Para o inteiro teor dessas propostas, cf. Fundação Nacional Pro-Memória, Proteção e
revitalização do patrimônio cultural no Brasil: Uma tragetória, Anexos II a IV, p. 63-88.
69
mecanismo de tutela do patrimônio cultural mais recorrente nas práticas dos órgãos
preservacionistas, qual seja, o tombamento (Capítulos II a V).
Atualmente, não obstante a relativa incompatibilidade de suas normas gerais
introdutórias com a ordem constitucional de 1988 – tais como as normas de definição
jurídica do patrimônio histórico e artístico nacional (caput do artigo 1º) e de
condicionamento do reconhecimento oficial do bem como patrimônio cultural à sua
inscrição em um dos Livros do Tombo (parágrafo 1º do artigo 1) -, o Decreto-lei nº
25/37 permanece em plena vigência, preservando o título de “Lei Nacional de
Proteção do Patrimônio Cultural”.
Iniciando-se a presente abordagem com a análise desse documento legal em
sua estrutura, observa-se que nele não existe uma distinção clara entre normas gerais
e normas especiais, o que é de praxe verificar-se em leis expedidas pela União.
Algumas de suas disposições podem ser mais facilmente reconhecidas como
normas gerais, como as que tratam dos efeitos do tombamento - em especial a que
veda a destruição, demolição ou mutilação de bens tombados e a que veda
construções ou fixação de anúncio de cartazes na vizinhança de bens tombados sem
prévia autorização (artigos 17 e 18, respectivamente), posto que são as obrigações
que melhor caracterizam o referido instituto.
Outras também, excepcionalmente, revelam-se com alguma clareza como
normas especialmente dirigidas à Administração Pública da União, tais como aquelas
referentes a prazos e procedimentos aplicáveis ao processo de tombamento conduzido
pelo órgão de preservação federal então recém criado – o SPHAN (artigo 9º).
Mas não há no Decreto-lei 25/37 qualquer sistematização – mediante o
tratamento das normas gerais e especiais em capítulos apartados, por exemplo - no
sentido de “organizar [efetivamente] a proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional”.136
Tampouco é possível identificar no Capítulo V desse Decreto-lei, intitulado
“Disposições Gerais”, um agrupamento das normas gerais atinentes ao tema, pois
136
Essa é a expressão que intitula o Decreto-lei nº 25/37.
70
como se verifica da leitura dos seus dispositivos (artigos 23 a 30), há normas ali
inseridas que são nitidamente dirigidas à Administração Pública federal - como o
artigo 25, que incumbe o SPHAN de procurar entendimentos com autoridades
eclesiásticas e instituições científicas, dentre outras pessoas, com vistas à cooperação
mútua em benefício do patrimônio –, assim como há normas fora desse Capítulo
manifestamente gerais, conforme apontado acima.
No entanto, maiores discussões sobre essa distinção precisa entre normas
gerais e normas especiais do Decreto-lei nº 25/37 não faziam muito sentido até a
década de 1960, uma vez que nesse período, o Poder Público da União, por meio do
SPHAN, centralizava praticamente todas as ações estatais preservacionistas do então
“patrimônio histórico e artístico nacional”.
Isso muito embora a Constituição de 1934 já atribuísse competência conjunta à
União, aos Estados e aos Municípios em matéria de proteção ao patrimônio cultural137
e o próprio Decreto-lei nº 25/37 reconhecesse a pertinência da atuação executiva e
legislativa dos Estados federados ao prever, no artigo 23, que o Poder Executivo
federal deveria providenciar acordos com estes entes visando à “coordenação e [ao]
desenvolvimento das atividades relativas à proteção do patrimônio histórico e
artístico nacional” e à “uniformização da legislação estadual complementar”.138 e 139
Essa situação começou a mudar na década de 1960, como dito, quando
aumentaram as produções legislativas estaduais em matéria de preservação do
patrimônio cultural. No plano municipal, essas produções tornaram-se mais
expressivas na década de 1980.
De modo que, presentemente, dada a coexistência de leis federal, estaduais e
municipais versando sobre essa mesma matéria,
137
distinções mais
precisas,
Cf. Item 3.2 deste trabalho.
138
“Art. 23. O Poder Executivo providenciará a realização de acordos entre a União e os Estados, para
melhor coordenação e desenvolvimento das atividades relativas à proteção do patrimônio histórico e
artístico nacional e para a uniformização da legislação estadual complementar sobre o mesmo assunto”.
139
Esta última atribuição legal do Poder Executivo federal de agenciar a “uniformização da legislação
estadual complementar” evidencia, no entanto, relativa centralização nas mãos da União do poder dos
Estados de legislar, na medida em que as normas estaduais complementares deveriam, em tese, refletir os
interesses regionais de cada estado, consideradas as características que os diferenciam entre si.
71
especialmente na legislação federal, entre normas gerais e normas especiais de
preservação do patrimônio cultural revelam-se essenciais para se conhecer, com
maior segurança e clareza, os exatos campos das atuações legislativas complemetares
estadual e municipal na matéria.
Feitas essas considerações de estrutura, parte-se para a análise do conteúdo do
Decreto-lei nº 25/37, no que se refere à sua compatibilidade com as diversas
demandas de preservação surgidas ao longo dos anos.
Esse documento legislativo, ao conceber juridicamente o patrimônio como um
universo composto exclusivamente por bens materiais, acabou traçando limites
bastante restritos ao campo de incidência de tutela jurídica. Como explica Maria
Cecília Londres Fonseca,
A preocupação, nesse caso, não era com o aspecto conceitual ou com
o organizacional, [...] mas com recursos operacionais que fossem não
só legais como também reconhecidos como legítimos. [...] para
viabilizar a proteção legal era necessário referir-se a coisas (“bens
móveis e imóveis”), o que marcava a inadequação do instrumento
proposto – o tombamento – para proteger manifestações folclóricas,
como lendas, superstições, danças, dramáticas, etc.140
Não obstante os bens imateriais já tivessem sido cogitados como objeto de
preservação em um anteprojeto de lei elaborado anteriormente por Mario de Andrade,
eles foram excluídos do regime de proteção patrimonial instituído pelo Decreto-lei nº
25/37, voltando-se este particularmente aos monumentos e obras de excepcional valor
histórico ou artístico nacional. Esse objeto mais restrito atendia a contento, naquele
início, aos anseios preservacionistas do então recém criado SPHAN.
De acordo com o relato de Paulo Ormindo de Azevedo, nos primeiros vinte
anos de vigência do Decreto-lei nº 25/37, este funcionou “como um instrumento de
140
O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil, p. 104-105. A autora,
nessa passagem, confronta o Decreto-Lei nº 25/37 com o anteprojeto de lei formulado pouco tempo antes por
Mario de Andrade, para os mesmos fins, a pedido do então ministro Gustavo Capanema. Este anteprojeto foi
ao final preterido pelo daquele, mas adotava uma concepção muito mais ampla de patrimônio reconhecidamente avançada para seu tempo - que contemplava as culturas erudita e popular, material e
imaterial.
72
preservação passivo, impedindo demolições e adulterações volumétricas de setores
urbanos, mas não propriamente como um instrumento de conservação”141. Isso porque
o referido Decreto-lei não cuidava de outros mecanismos de preservação senão do
tombamento, que tem por finalidade precípua a garantia da imodificabilidade da coisa
protegida.
Mesmo que essa lei demonstrasse, já nesse tempo, algumas deficiências, na
prática, para garantir algo mais do que a preservação passiva de bens materiais
culturais, o País, nessa época, era predominantemente rural, de modo que esse
patrimônio ainda não se via ameaçado senão pelo abandono e pelo desgaste do
tempo142.
Algumas distorções no emprego desse documento legislativo começaram a
surgir ainda na década de 1940, quando verificada a aplicação do regime do
tombamento para a proteção de áreas urbanas143. Mais tarde, mesmo municípios
inteiros, como Porto Seguro (tombado pelo IPHAN em 1968), foram submetidos a
esse mesmo instrumento.
Mas a defasagem do Decreto-lei nº 25/37 para “organizar a proteção do
patrimônio histórico e artístico nacional” – portanto, para figurar como a lei geral de
preservação do patrimônio cultural brasileiro144 -, manifestou-se com maior ênfase a
partir da década de 60, quando o acelerado processo de urbanização trouxe novos
desafios para o tema e veio confirmar, assim, a insuficiência do tombamento como
instrumento único de preservação145. A esse respeito, analisa Paulo Ormindo de
Azevedo:
141
Op. Cit., p. 67. O autor relata ainda, quanto aos desdobramentos da aplicação dessa lei nesse período, que
“sob sua vigência muitas famílias abandonaram os centros históricos e foram substituídas por comerciantes
informais e migrantes do campo. Muitos donos abandonaram seus imóveis para resgatarem o solo para
estacionamentos”. Cf. também Jean Benoit Bleyon, L´urbanisme el la protección des sites..., p. 169.
142
Cf. Nestor Goulart Reis Filho, “Por uma nova política de preservação”, In OESP, 9 de janeiro de 2009, p.
A2.
143
Idem, ibidem, p. 67. A análise da aplicação do tombamento para proteção de áreas e setores urbanos é
aprofundada mais adiante neste trabalho, no item 4.2, no qual se discorrerá acerca do tombamento de bairros.
144
Ainda que se reconheça que a referida lei preserva sua pertinêcia para cuidar de bens isolados, aplicandose o regime do tombamento nela detalhado.
145
Cf. Paulo Ormindo de Azevedo, “Cometário 4: A cidade como obra aberta”, In Victor Hugo Mori et alli
(orgs.), Patrimônio: Atualizando o debate, p. 67.
73
Quando, porém, na década de 60 a pressão migratória e o
crescimento vegetativo ameaçavam explodir as nossas cidades, ficou
patente que aquele instrumento legal, criado para preservar
monumentos e imagens sacras, não dava conta das complexas
transformações sócio-econômicas e da deterioração física de nossos
centros históricos. 146
É também desse tempo a Lei federal nº 3.924/61, que tratou especificamente
da guarda e da proteção dos “monumentos arqueológicos e pré-históricos”, tendo
instituído, para tanto, um regime especial de limitação ao exercício do direito de
propriedade diferente do tombamento em muitos aspectos, a começar pelo caráter
geral e abstrato dessa limitação, decorrente da própria lei.
Este regime especial tratou de estabelecer de modo explícito que a propriedade
de superfície, regida pelo direito comum, não incluiria a das jazidas arqueológicas ou
pré-históricas e que estas, para todos os efeitos e especialmente para os de exploração
e aproveitamento econômico, seriam consideradas bens patrimoniais da União a partir
da vigência da lei (artigo 1º, parágrafo único e artigo 7º)147. Admitiu também a
ocupação temporária de terrenos de propriedade particular para fins de pesquisa em
jazidas arqueológicas por instituições científicas.
Enfim, por meio dessa Lei, reconheceu-se que para a fruição verdadeira desse
tipo de bem pela sociedade, era preciso um regime que oferecesse mais do que a
simples e passiva imodificabilidade de uma área detentora de reminiscências
arqueológicas e pré-históricas148. Era preciso que ele garantisse também livre acesso e
exploração dessa área para pesquisas, escavações, análise do solo e retirada de
146
Idem, Ibidem, p. 67.
147
É que a Constituição de 1946, então vigente, não tratava expressamente desses bens arqueológicos e préhistóricos, tampouco os definia como bens da União. O legislador tratou, então, de reconhecer o direito dos
proprietários sobre as jazidas já em exploração na data de publicação da lei, sob a condição de que esse fato
fosse comunicado à Diretoria do Patrimônio Histórico Nacional e que não se destruíssem, nem mutilassem os
bens culturais ali encontrados. Essa pouca clareza é resolvida atualmente pelo teor dos artigos 20, X e 176 da
Constituição de 1988, que reconhecem as jazidas, cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e
pré-históricos como pertencentes à União.
148
O que já era garantido pelo regime do tombamento. (“Art. 1º. Constitui o patrimônio histórico e artístico
nacional o conjunto dos bens móveis ou imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse
público, [...] por seu excepcional valor arqueológico [...]”).
74
fragmentos do local, de modo a permitir uma posterior recomposição das peças,
estudos sobre estas, sua identificação, inventariação e difusão dos dados coletados.
Outra disposição normativa envolvendo a matéria de preservação de bens
culturais foi instituída em 2000, mas não pelo Poder Legislativo federal, e sim pelo
Presidente da República, mediante o Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Este
Decreto dispõe sobre o mecanismo de registro de bens culturais de natureza imaterial
e “cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”149, contemplando, assim,
aquela parcela imaterial do patrimônio cultural não compreendida na definição,
tampouco no modo de tutela previstos no Decreto-lei nº 25/37, mas presente e
extremamente importante no ambiente urbano. E declara o dever do Ministério da
Cultura de garantir a ampla divulgação e promoção desse patrimônio imaterial.
O Estatuto da Cidade, por sua vez, apresentou em 2001 uma relação de
instrumentos urbanísticos passíveis de contribuir para o cuidar do patrimônio no
ambiente urbano, sem, todavia, oferecer maiores sistematizações a esta matéria. E
nem seria esta Lei a mais adequada para tanto, posto que ela cuida especificamente de
oferecer aos Municípios as diretrizes gerais de suas políticas de desenvolvimento
urbano, que deverão abranger uma série de aspectos, sendo a preservação do
patrimônio cultural apenas um deles150.
Assim, esta Lei tão somente sugere aos Municípios a utilização de mecanismos
para os fins de preservação, como o tombamento, o Estudo de Impacto de Vizinhança,
a transferência do direito de construir, a desapropriação. Deixa transparecer, é
verdade, a necessidade de que a preservação do patrimônio cultural urbano seja vista
no contexto da ordenação urbana e o fato de que os Municípios, nesse aspecto, muito
têm a contribuir. Mas, como dito, não é nessa Lei que se encontra – nem que se deve
esperar encontrar - a sistematização geral da matéria.
149
Eis a expressão contida no enunciado do Decreto, não obstante não sejam fornecidos em seu texto
quaisquer detalhamentos sobre os recursos a serem empregados para implementação dessa suposta política,
as metas a serem alcançadas, os prazos estimados e os resultados esperados desse Programa, etc,
postergando-se para uma futura oportunidade o cumprimento, pelo Estado, dos deveres sociais a ele dirigidos
nas normas constitucionais programáticas competentes.
150
Tanto que, com relação aos instrumentos de política urbana que menciona, estabelece, no artigo 4º, § 1º,
que eles: “regem-se pela legislação que lhe é própria, observado o disposto nesta Lei”.
75
De modo que hoje, passados mais de 40 anos de enfrentamento das intensas
transformações sócio-econômicas no cenário urbano, considerado o reconhecimento
de uma concepção ampliada de patrimônio cultural pela Constituição de 1988, por
influência dos debates e formulações desenvolvidos sobre o tema no plano
internacional, e tendo em vista as diretrizes gerais estabelecidas para a gestão das
cidades, conclui-se não ser mais possível considerar o Decreto-lei nº 25/37 como a lei
geral de proteção do patrimônio cultural.
De efeito, o Decreto-lei nº 25/37 preserva em muito sua importância no que se
refere à garantia de imodificabilidade de bens imóveis e mesmo à tutela dos bens
culturais móveis, mas não sistematiza, nem compreende toda a matéria. Não indica
princípios aplicáveis, não define adequadamente o amplo objeto de tutela do
patrimônio cultural brasileiro, não enumera os meios garantidores da sua promoção e
proteção, tampouco aponta os mecanismos adequados à garantia de tutela para cada
tipo diferente de bem patrimonial.
É verdade que, como visto, o Direito positivo prevê, de modo esparso, uma
concepção ampla para o patrimônio cultural, assim como alguns regimes especiais
para tutela dos bens neste compreendidos. Mas a codificação da matéria num único
texto legislativo federal traz como contribuição uma maior clareza da unidade do
sistema. Nesse aspecto, o direito do meio ambiente natural é mais avançado, posto
que desde a década de 1980 conta com a vigência da Lei nº 6.938/81.
A título de exemplo de codificação da matéria em outros países, cite-se o caso
recente da Itália, que por meio do Decreto legislativo de 22 de janeiro de 2004, n. 42,
publicou o Codice dei beni culturali e del paesaggio, que contém em si os princípios
gerais de tutela, fruição e valorização dos bens culturais; da definição de patrimônio
cultural; das funções e competências do Estado italiano, das regiões e outras
entidades públicas territoriais, em matéria de tutela e valorização do patrimônio
cultural; dos modos pontuais de tutela (vigilância, inspeção, proteção e conservação);
do controle da circulação dos bens culturais móveis; da tutela e gestão dos bens
paisagísticos; e mesmo das sanções administrativas e penais.
76
Por fim, no nível dos Estados, as produções legislativas de caráter geral
limitam-se a transcrever o teor do Decreto-Lei nº 25/37, na maioria dos casos, sem
maiores preocupações em adequar a matéria a especificidades regionais. No âmbito
municipal, de um modo geral, mesma observação é feita com relação às leis especiais
preservação editadas por estes entes.
3.3.2. Atuação do Poder Executivo
Num primeiro momento de atuação do então SPHAN, quando predominava
forte centralização na política de preservação adotada, algumas áreas urbanas foram
declaradas oficialmente como patrimônio histórico e artístico nacional. Mas nesse
tempo, essas áreas eram concebidas, elas próprias, como verdadeiros monumentos, ou
seja, cada uma delas sendo uma obra de arte pronta e acabada.
As ações de preservação que incidiam sobre essas áreas urbanas voltavam-se,
então, basicamente à conservação intacta ou ao restabelecimento de uma integridade
estética das edificações nela contidas. Valorizavam-se as expressões do barroco
colonial, por se entender esse estilo como representativo da arte genuinamente
brasileira. E em razão disso, era recorrente a restauração das edificações históricas a
um estado colonial, eliminando-se, por exemplo, todos os elementos ecléticos
eventualmente encontrados nestas.
Foi com esse propósito, de conservação de áreas urbanas como verdadeiros
monumentos, que foram tombadas, já no início das ações do SPHAN, as cidades
históricas mineiras de Ouro Preto, Mariana, Tiradentes, São João del Rei e
Diamantina, todas elas expressões do barroco e, portanto, tidas como exemplares
excepcionais de um estilo artístico verdadeiramente nacional.
Mas o crescimento acelerado das cidades, desencadeado pelo processo de
industrialização do País a partir dos anos 50, associado ao caráter marcadamente
cultural da atuação do SPHAN, que confrontava com o novo modelo de
77
desenvolvimento brasileiro, geraram necessidades de redimensionamento da política
de preservação do SPHAN.151
Sem contar a falta de recursos financeiros e administrativos, com que tinha de
lidar este Serviço para gestão de um patrimônio que crescia a passos largos, conforme
observado por Nestor Goulart Reis Filho:
O patrimônio artístico e histórico tem sido considerado, no Brasil,
como um acervo cultural que o poder público se empenha em
preservar, às suas custas, através de algumas amostras de
significação excepcional, que são guardadas como documentos da
vida cultural de outras épocas. [...] De acordo com esse processo [de
tombamento], nos vários Estados da federação selecionam-se
algumas obras, consideradas notáveis por seu significado artístico ou
histórico, sobre as quais se estende a proteção oficial e em sua
restauração e conservação despendem-se os recursos disponíveis.
Dessa política, aplicada de forma criteriosa, resultou o prestígio
indiscutível de que goza a repartição correspondente, a Diretoria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que há mais de trinta anos
vem conseguindo, com um trabalho de alto nível técnico, preservar
as manifestações culturais mais importantes do País. Todavia, a
extensão de seus resultados vem sendo limitada, sensivelmente, pela
carência de meios financeiros. Como, na prática, os ônus das
medidas defensivas recaem sempre sobre os cofres públicos, o custo
relativamente elevado dessa aplicação termina por restringir as
possibilidades de ação da repartição federal que tende a concentrar
os seus esforços em áreas como Bahia, Pernambuco e Minas Gerais,
onde o volume de suas responsabilidades se destaca em relação a
outras regiões do País.
151
Conforme aponta Maria Cecília Londres Fonseca: “Nas décadas de 1950 e 1960 ocorreram grandes
mudanças no modelo de desenvolvimento brasileiro, responsáveis pelos impasses com que a política de
preservação do Sphan foi confrontada, levando a instituição e outros setores da administração pública que
passaram a se interessar pela questão, a recorrer a novas alternativas de atuação. Nesse período a ideologia
do desenvolvimentismo atrelou o nacionalismo aos valores da modernização. Foi a época áurea da
industrialização, da urbanização e da interiorização, estimuladas pela construção de Brasília. As
conseqüências para a preservação desse modelo de desenvolvimento repercutiram não apenas no nível
simbólico – na medida em que essa ideologia se contrapunha à continuidade e à tradição – como nos níveis
econômico e social – devido ao intenso processo de migração para as capitais e a valorização do solo urbano,
desarticulando os processos espontâneos de preservação do patrimônio, tanto o edificado quanto o
paisagístico. Na prática do Sphan, surgiram tensões agudas, especialmente na preservação das cidades
históricas e dos centros históricos das grandes cidades.” O patrimônio em processo..., p. 141.
78
Como consequência, um número muito grande de edifícios e obras
artísticas em geral, de grande importância regional mas de valor
relativo no plano nacional, é condenado ao abandono, à destruição
ou à descaracterização. Mesmo manifestações culturais de interesse
nacional, como as que se referem à história do café e à origem da
industrialização no Brasil – ambas ocorrendo em boa parte no Estado
de São Paulo – estão desaparecendo rapidamente, pois as ocorrências
dos séculos coloniais tendem a ser mais valorizadas do que
aquelas.152
Diante dessa realidade, uma nova diretriz para a política de preservação passou
a ser assumida mais explicitamente na década de 1970, baseada na descentralização
das atividades protecionistas para os âmbitos dos Estados e dos Municípios.
O Compromisso de Brasília (de abril de 1970), assim como o Compromisso de
Salvador (de outubro de 1971) elucidaram claramente essa tendência naquela época.
Eles consistem em documentos compiladores de proposições adotadas por
Governadores de Estado, Secretários Estaduais de Cultura, Prefeitos de Municípios
interessados e representantes de Instituições Culturais, a partir de discussões havidas
entre eles em dois encontros promovidos pelo Governo federal. Nesses documentos
estão contidas recomendações aos Estados e Municípios de adoção de uma série de
medidas que prometiam viabilizar a então declarada necessária ação supletiva destes
entes na proteção de bens culturais de valor nacional, bem como permitir que os
Estados assumissem a proteção de bens de valor regional, sob a orientação técnica do
então Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Dphan.
Nesse tempo, diversos órgãos estaduais de preservação do patrimônio cultural
encontravam-se em recente atividade. E órgãos municipais de preservação também
não tardaram em surgir e atingir quantidade expressiva153.
152
(Grifamos). Nestor Goulart Reis Filho, O quadro da arquitetura no Brasil, p. 192-194.
153
No âmbito dos Estados, não obstante o pioneirismo do Estado do Paraná, que por meio da lei n. 112, de
outubro de 1948, criou o Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, é considerável o número de
órgãos de preservação surgidos na década de 1960, tais como o DPHA, no antigo Estado da Guanabara
(1964), o IPHAE, no Rio Grande do Sul (1964), o FPACBA, na Bahia (1967), e o CONDEPHAAT, em São
Paulo (1968). Na década seguinte, são criados o IEPHA, em Minas Gerais (1971), a FUNDARPE, em
Pernambuco (1973) e a FCC, em Santa Catarina (1979). No plano municipal, é na década de 1980 que se
amplia expressivamente o número órgãos e entidades especiais de preservação, como o CONPRESP, em São
79
Em termos de programas governamentais, costuma ser lembrada a experiência
de cerca de 10 anos do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas,
criado em 1973 por proposta do Ministério da Educação e Cultura e com a
participação, no âmbito federal, dos Ministérios do Planejamento e da Indústria e
Comércio (por meio da Embratur).
Contando com recursos do Banco Nacional de Habitação, com a atuação direta
e descentralizada dos Estados e Municípios e com a referência conceitual e técnica do
IPHAN, esse Programa “tinha [inicialmente] como objetivo criar infra-estrutura
adequada ao desenvolvimento e suporte das atividades turísticas e ao uso de bens
culturais como fonte de renda para regiões carentes do Nordeste, revitalizando
monumentos em degradação”154.
Mais do que a simples restauração física de monumentos históricos espalhados
pelo País, o “Programa de Cidades Históricas” – como ficou mais conhecido –
propunha o fortalecimento das bases do turismo nessas cidades e a articulação desta
atividade com as necessidades locais de desenvolvimento econômico.
Essa ideia de aproveitamento do potencial turístico do patrimônio cultural para
os fins de desenvolvimento econômico já vinha sendo amplamente debatida no nível
internacional desde pelo menos 1967, quando realizado um encontro da OEA para
tratar da conservação e utilização de monumentos e lugares de interesse histórico e
artístico. As conclusões deste encontro resultaram nas chamadas “Normas de Quito”,
que acerca desse tema dispuseram basicamente o seguinte:
Partimos do pressuposto de que os monumentos de interesse
arqueológico, histórico e artístico constituem também recursos
econômicos da mesma forma que as riquezas naturais do país.
Consequentemente, as medidas que levam a sua preservação e
adequada utilização não só guardam relação com os planos de
desenvolvimento, mas fazem ou devem fazer parte deles.
[...]
Paulo (1985), o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (1980), o
CONDEPACC, em Campinas (1987), a Fundação Gregório de Matos, em Salvador (1986),
154
Maria Cecília Londres Fonseca, O patrimônio em processo..., p. 143.
80
Valorizar um bem histórico ou artístico equivale a habilitá-lo com as
condições objetivas e ambientais que, sem desvirtuar sua natureza
ressaltem suas características e permitam seu ótimo aproveitamento.
Deve-se entender que a valorização se realiza em função de um fim
transcendente, que, no caso da América Ibérica, seria o de contribuir
para o desenvolvimento econômico da região.
[...]
Os valores propriamente culturais não se desnaturalizam nem se
comprometem ao vincular-se com os interesses turísticos e, longe
disso, a maior atração exercida pelos monumentos e a fluência
crescente de visitantes contribuem para afirmar a consciência de sua
importância e significação nacionais.
[...]
Os projetos de valorização do patrimônio monumental fazem parte
dos planos de desenvolvimento nacional e, consequentemente,
devem a eles se integrar. Os investimentos que se requerem para a
execução dos referidos projetos devem ser feitos simultaneamente
com os que são necessários para o equipamento turístico da zona ou
região objeto de revalorização” (grifamos).
Nessa esteira, visando a esse aproveitamento do patrimônio cultural para o
turismo e desenvolvimento, foram pensadas, no Brasil, formas mais abrangentes de
lidar com a preservação patrimonial, baseadas em planos urbanísticos, como relata
Paulo Ormindo de Azevedo:
A consciência de que só através do planejamento seria possível
conservar as nossas cidades históricas não faltou aos fundadores do
IPHAN. Para implementar uma nova política, Rodrigo Melo Franco
de Andrade e Renato Soeiro, seu sucessor, promovem a incorporação
da experiência europeia com convites a especialistas estrangeiros
para discutir a questão e assessorar os primeiros planos urbanísticos
de centros históricos no país. [...] foram elaborados planos diretores
para Ouro Preto, São Luís do Maranhão, Alcântara, Parati, Salvador,
São Cristóvão e Laranjeiras, entre outras cidades.
Muitos desses planos foram financiados e implementados, através de
convênios com estados e municípios, pelo Programa das Cidades
Históricas [...]. Consciente de que a questão da conservação do nosso
81
patrimônio não poderia ser resolvida exclusivamente a partir de
Brasília, a geração fundadora do IPHAN promove a descentralização
e horizontalização do sistema [sic] preservação [...], ensejando a
criação de numerosas fundações estaduais e algumas municipais de
proteção ao patrimônio.155
Posteriormente, em 1977, o Programa de Cidades Históricas foi estendido para
algumas localidades da região sudeste do País. Mas durou até 1983, encerrando-se,
assim, um promissor processo de criação de uma política pública nacional de
preservação de Cidades Históricas156.
Na década de 1990, projeto semelhante foi retomado pelo Poder Executivo
federal, por meio do Programa Monumenta. Esse Programa contou com o apoio
técnico-institucional da UNESCO e com recursos do Banco Interamericano de
Desenvolvimento - BID para financiar ações integradas nessas localidades históricas.
Tais ações visavam a oferecer condições de sustentabilidade a esse patrimônio
cultural urbano e consistiam na: restauração de bens tombados; capacitação de mãode-obra; formação de agentes locais de cultura e turismo; promoção de programas
educativos; e destinação de novos usos aos bens recuperados nessas cidades. Ao todo,
26 sítios foram beneficiados por esse Programa.
De abrangência ampliada, tem sido divulgada recentemente uma proposta do
Poder Executivo federal que, se implementada, pretende dar continuidade aos
objetivos do Programa Monumenta157 e beneficiar cerca de 173 Municípios. Os
investimentos seriam estabelecidos segundo os Planos de Ação elaborados pelos
municípios respectivos, com metas anuais158.
155
Paulo Ormindo de Azevedo. “Comentário 4: A cidade como obra aberta”. In Victor Hugo Mori et alli
(orgs), Patrimônio: Atualizando o debate, p. 67.
156
Idem, ibidem, p. 67.
157
Os investimentos do BID para o Programa Monumenta encerram-se no final do ano de 2009, devendo as
ações correspondentes ser concluídas até o final do ano de 2010.
158
Trata-se do chamado “PAC das Cidades Históricas”, lançado em outubro de 2009 pelo Governo Federal,
tendo por objetivos principais: “1. Promover a requalificação urbanística dos sítios históricos e estimular usos
que promovam o desenvolvimento econômico, social e cultural – que inclui ações de embutimento de fiação
elétrica aérea, recuperação de espaços públicos com acessibilidade universal, instalação de mobiliário urbano
e sinalização, iluminação de destaque e instalação de internet sem fio; 2. Investir na infra-estrutura urbana e
social – o que vai permitir a inclusão das cidades históricas e seu entorno nas ações da Agenda Social do
82
Todos
esses
Programas,
inclusive
este
proposto
mais
recentemente,
estabeleceram como condição para sua aplicação que essas localidades fossem
tombadas pelo IPHAN ou ao menos estivessem em processo de tombamento federal.
Nesse aspecto, pensando-se em uma política nacional de preservação que
compreenda de todo o patrimônio cultural urbano brasileiro, que garantisse aos bens
que o integram mesmas oportunidades de captação de recursos financeiros de bancos
de desenvolvimento, independentemente de avaliações de graus de relevância cultural
envolvidos – se nacional, regional ou local -, sugerem-se duas remodelações desse
requisito para os programas que se pretender implementar atualmente: uma primeira,
consistente na não limitação das oportunidades investimentos apenas aos bens
declarados oficialmente como culturais pela via do tombamento, dado que inúmeros
são os mecanismos que hoje também podem, substitutivamente, formar do patrimônio
cultural brasileiro. Uma segunda, relativa à abrangência também das localidades
oficialmente reconhecidas como patrimônio cultural exclusivamente pelos órgãos
estaduais ou municipais de preservação.
Nos
dias
atuais,
verificam-se
interações
do
IPHAN
com
órgãos
preservacionistas dos Estados federados e dos Municípios, assim como com
instituições acadêmicas e sociedade civil, voltadas à estruturação de um Sistema
Nacional de Patrimônio Cultural, assim como à reflexão e construção conjunta de
uma Política Nacional de Patrimônio Cultural. Trata-se da promoção de simpósios,
reuniões e chamadas públicas com essas entidades buscando-se coletar informações,
bem como discutir questões relevantes à realização desses objetivos.
governo federal. 3. Financiamento para recuperação de imóveis privados subutilizados ou degradados. 4.
Recuperação de monumentos e imóveis públicos – que inclui a readequação de uso para abrigar
universidades, escolas, bibliotecas, museus e outros espaços públicos. 5. Fomento às cadeias produtivas
locais – que prevê apoio à estruturação de atividades produtivas, especialmente as atividades tradicionais. 6.
Promoção nacional e internacional do patrimônio cultural representado pelas cidades históricas a partir do
viés do turismo”. De acordo com notícia veiculada na página eletrônica do Iphan, a meta de investimentos
iniciais, no primeiro ano desse Programa, seria de cerca de R$ 250 milhões. Além da União, por meio dos
Ministérios do Turismo, da Educação e das Cidades, esse projeto contará com a participação da Eletrobras,
do BNDES, da Petrobras, da Caixa Econômica Federal e do Banco do Nordeste do Brasil. Extraído da página
eletrônica
do
Iphan:
www.iphan.gov.br.
Disponível
em:
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=14929&sigla=Noticia&retorno=detalheNotic
ia. Acesso em: 09 dez. 2009.
83
Mais adiante, no Capítulo 4, serão expostos de forma detalhada alguns
instrumentos urbanísticos disponíveis ao Poder Executivo pelo Direito positivo
brasileiro para fins de preservação do patrimônio cultural urbano.
3.3.3. Controle jurisdicional
A atividade jurisdicional constitui meio tipicamente repressivo de proteção ao
patrimônio cultural brasileiro.
Analisando-se a linha evolutiva das ações preservacionistas a cargo do Poder
Público desde a edição do Decreto-Lei nº 25/37, quando institucionalizada a tutela
jurídica do patrimônio, verifica-se uma ampliação dos meios processuais de defesa
desse patrimônio - tais como a ação civil pública e a ação popular -, assim como uma
utilização crescente desses mecanismos para garantia da preservação de bens
culturais.
Essa tendência contemporânea de ampliação das demandas judiciais por tutela
do patrimônio cultural é atribuída a pelo menos duas razões distintas: uma primeira,
consistente na já comentada ampliação do próprio objeto da preservação; e uma
segunda razão, referente ao contemporâneo alargamento da noção de legalidade e,
portanto, dos elementos passíveis de serem submetidos a avaliação e controle
jurisdicional.
Três importantes instrumentos processuais podem ser mencionados como
disponíveis no Direito positivo para a defesa dos bens integrantes do patrimônio
cultural urbano pelo Poder Judiciário, quais sejam: a ação popular, a ação civil
pública e a ação penal pública.
Prevista no artigo 5º, inciso LXXIII da Constituição de 1988 e disciplinada
pela Lei Federal nº 4.717, de 29 de junho de 1965, a ação popular consiste em
mecanismo por meio do qual qualquer cidadão poderá propor judicialmente a
anulação de atos lesivos ao patrimônio público praticados por entidade pública ou
84
privada que o detenha, sendo assim também entendidos os bens e direitos de valor
artístico, estético, histórico ou turístico159. Salvo comprovada má-fé, nesse tipo de
ação, o autor fica isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
A ação civil pública, por sua vez, é regida pela Lei Federal nº 7.347, de 24 de
julho de 1985 e constitui instrumento processual próprio para tutela jurisdicional civil
de bens e direitos metaindividuais, dentre os quais são previstos explicitamente os
bens “de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”160. O Estatuto da
Cidade, preocupando-se em garantir a tutela judicial coletiva do equilíbrio urbano,
também tratou de prever expressamente a ordem urbanística como bem suscetível de
defesa pela Ação Civil Pública (artigos 53 e 54)161.
É nesse modo de ação que se destaca a importante e incisiva participação do
Ministério Público em prol de interesses coletivos indisponíveis e de interesses
difusos162, que quando não atua como parte no processo, exerce obrigatoriamente a
função de fiscal da lei.
Além do Ministério Público, também possuem legitimidade para propor ação
civil pública: a União, os Estados, os Municípios, as autarquias, as fundações, as
sociedades de economia mista, assim como as associações constituídas há pelo menos
um ano e que detenham uma finalidade institucional compatível com o objeto da
demanda. Como sujeitos passivos dessa ação são admitidas quaisquer pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas -, que tenham causado ou ameaçado causar
lesão a esses bens e direitos tutelados.
O objeto imediato da ação civil pública ajuizada será sempre a condenação
civil do réu à indenização e/ou ao cumprimento de obrigações de fazer (tal como a
realização de reformas para conservação do bem, ou a demolição de construção
efetuada na vizinhança de bem tombado) e/ou de não fazer (tal como a não destruição
159
Nos termos do art. 1º, §1º da Lei 4.717, de 29 de junho de 1965.
160
Art. 1º, inciso IV da Lei federal nº 7.347/85.
161
Cf. Carlos Ari Sundfeld, “O Estatuto da Cidade e Suas Diretrizes Gerais”, In Adilson Abreu Dallari;
Sérgio Ferraz (orgs.), Estatuto da Cidade: Comentários à Lei federal nº 10.257/01, p. 55-56.
162
Trata-se de função institucional do Ministério Público prevista pelo art. 129, inciso III da Constituição
Federal de 1988.
85
ou mutilação do imóvel tutelado), sob pena de execução específica ou de cominação
de multa diária, independentemente de requerimento por parte do autor.
Sobre esse aspecto, observa Hely Lopes Meirelles que
esta imposição judicial de fazer ou não fazer é mais racional que a
condenação pecuniária, porque na maioria dos casos o interesse
público é mais o de obstar a agressão ao meio ambiente ou obter a
reparação direta e in specie do dano do que de receber qualquer
quantia em dinheiro para a sua recomposição, mesmo porque quase
sempre a consumação da lesão ambiental é irreparável, como ocorre
no desmatamento de uma floresta natural, na destruição de um bem
histórico, artístico ou paisagístico, assim como no envenenamento de
um manancial, com a mortandade da fauna aquática163.
Com efeito, considerada a própria natureza difusa dos interesses tutelados pela
ação civil pública, é de se deduzir que em muitos casos será consideravelmente
dificultoso, quando não impossível, estabelecer-lhe um sucedâneo pecuniário. Como
observa Rodolfo de Camargo Mancuso ao analisar o art. 11 da Lei 7.347/85, “a mens
legis é a de conseguir, no limite do possível, que o poluidor, o fraudador, o vândalo,
repare o mal feito, e para isso a lei dotou o juiz da possibilidade de impor
astreintes”164.
Não há maiores controvérsias na jurisprudência quanto ao entendimento de
que é dispensável o tombamento do imóvel para que ele possa ser objeto de proteção
civil pelas vias judiciais.
Isso porque se entende que o reconhecimento da existência de um valor
cultural referencial - e portanto legítimo de ser protegido - é tarefa que cabe aos três
Poderes executar: Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim, perfeitamente
163
Mandado de Segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, habeas data, ação direta
de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e argüição de descumprimento de
preceito fundamental, p. 177.
164
Ação Civil Pública – em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores, p. 36.
Grifos do autor.
86
substituível o ato administrativo do tombamento pela decisão judicial declaratória da
existência de bem cujo valor cultural merece ser tutelado165.
Mesmo entendimento é o de Paulo Affonso Leme Machado, para quem, na
ação civil pública,
caso [os bens e direitos culturais] não estejam declarados pela
Administração pública em categoria que os inclua na qualidade de
bens e direitos tutelados, essa condição poderá ser conhecida e,
portanto, provada no curso da ação. A lei não quis subtrair ao juiz a
possibilidade de considerar dignos de proteção, bens e direitos cujo
valor ainda não houvera sido protegido pela Administração Pública.
Entender de outra forma seria retirar do Poder Judiciário a
possibilidade de examinar lesão a direito individual, o qual,
166
evidentemente, se enquadra, em âmbito maior, no direito social .
165
Nesse sentido já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por ocasião do julgamento da
Apelação Cível nº 112.282-1, julgada em 28 de junho de 1989, em que o Município de Casa Branca recorria
contra sentença que julgara procedente ação civil pública proposta pelo Ministério Público estadual
objetivando a preservação de praça pública: “A lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, não condiciona a
propositura da ação à existência do prévio tombamento do local. Nem se pode dizer que dependa de
exclusivo alvedrio da administração municipal a preservação de locais que tenha por merecedores de
conservação. Seria excessivamente aleatório deixar recantos tradicionais de antigas cidades à mercê do bem
ou mau gosto das autoridades municipais. A questão diz respeito aos próprios interesses da comunidade, do
núcleo habitacional, no sentido de resguardar tradições caras à própria cidade e a seus habitantes, algo que
simboliza a forma de pensar, de agir, de sentir dos habitantes, com o teor de vida pelo qual optem os que se
definam no sentido de fixar moradia na cidade. Esse interesse não é restrito, assim, nem o pode ser, apenas a
alcaides ou a vereadores. Não pode ser jungido aos anseios, objetivos e apegos dos governantes municipais”
In Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, LEX-122, pp. 50-52. Nesse
mesmo sentido, confira-se trecho de voto proferido em acórdão julgado em 21 de março de 1990 pela 8ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos do Agravo de Instrumento nº
129.575-1: “O argumento sobre a necessidade do prévio ‘tombamento’ como condição de procedibilidade da
ação pública já foi apreciado por esta Câmara de forma negativa, quando se reproduziu a lição do Juiz José
Raul G. Almeida: ‘o interesse público não é só aquele que o legislador declara, mas a realidade mesma,
sentida pelo critério social. Esta situação pode se apresentar e anteceder a própria declaração legislativa. São
tendências sociais que podem ser reconhecidas pelo Judiciário’ (Da legitimação na ação civil pública, p. 59,
in Biblioteca da Faculdade de Direito, USP). A reserva exclusiva e de forma absoluta do monopólio de
identificar o direito pelo legislador advém da desatualizada compreensão do princípio da separação dos
Poderes, reservando ao juiz o modesto papel de agente aplicador do Direito, colocando a função jurisdicional
aos estreitos limites de uma simples máquina de silogismo. A identificação do interesse público, que a ação
civil pública busca preservar, também cabe ao Judiciário. Não no sentido de ter poder criador de norma, mas
pelo dever de observar a realidade dos fatos, no cumprimento de sua função de realizar justiça. [...] O
processo que se quer extinguir vale, no mínimo, como instrumento de salvaguarda de um bem até julgamento
sobre o interesse público de sua subsistência” In Revista dos Tribunais, v. 658, pp. 91-93.
166
Ação Civil Pública e Tombamento, p. 15. Nessa mesma esteira, cf. Rodolfo de Camargo Mancuso: “no
que tange a ser o tombamento um pré-requisito para a defesa do bem cultural em juízo, somos pela negativa,
até porque tal ato não vem exigido como condição de admissibilidade para a ação civil pública, nem para a
87
A ação civil pública e a ação popular, portanto, funcionam como verdadeiros
instrumentos autônomos de proteção do patrimônio cultural brasileiro, independendo
dos atos do Poder Executivo para reconhecer oficialmente a existência de um bem
culturalmente referencial à sociedade e determinar obrigações de fazer e de não fazer
aos réus da lide com vistas à proteção desse bem167.
Consistem em mecanismos pelos quais o Poder Judiciário, enquanto Poder
Público, poderá corrigir e suplementar as eventuais omissões do Poder Executivo na
execução da norma constitucional programática que determina a preservação estatal
do patrimônio cultural. Contribuem, assim, para o atendimento da diretriz
constitucional contida no art. 216, parágrafo primeiro da Constituição de 1988.
Por fim, a ação penal pública consiste em outra importante medida repressiva
de proteção disponível no plano jurisdicional, que visa a conter os atos lesivos ao
patrimônio cultural brasileiro. Por meio dela é possível a aplicação das sanções
penais cominadas nos artigos 62 a 65 da Lei federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de
1998168, àqueles que cometerem os crimes de dano contra o patrimônio cultural
definidos nesses mencionados dispositivos. A legitimidade ativa para propor esta
ação é do Ministério Público, consoante a competência privativa estabelecida pelo
artigo 129, inciso I da Constituição Federal de 1988.
Esses artigos 62 a 65 da Lei federal nº 9.605/98 dispõem que constituem crime
de dano contra o patrimônio cultural:
a) destruir, inutilizar ou deteriorar bem especialmente protegido por
lei, ato administrativo ou decisão judicial;
ação popular” Ação Civil Pública em Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural e dos Consumidores, p.
275.
167
Em sentido contrário, entendendo que a proteção do patrimônio cultural só emerge do ato da autoridade
administrativa ordenando o tombamento, cf. TJSP, Apelação Cível nº 83211-1, Rel. Des. Ernani de Paiva, j.
19.03.1987. Há de ressalvar que se trata, todavia, de acórdão proferido sob a égide da Constituição anterior,
em que ainda não constava expressamente a orientação de que múltiplos podem ser os modos de proteção do
patrimônio cultural brasileiro.
168
Esta Lei dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao
meio ambiente e dá outras providências.
88
b) alterar o aspecto ou a estrutura de edificação ou local de valor
cultural especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão
judicial sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a
autorização concedida;
c) promover construção em solo não edificável em razão do seu
valor cultural, ou no seu entorno, sem autorização ou em desacordo com a
autorização concedida; e
d) Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação,
monumento urbano ou coisa tombada.
As penas cominadas para esses crimes variam desde detenção de três meses a
um ano e multa, até reclusão de um a três anos e multa.
Com a entrada em vigor dessa Lei federal nº 9.605/98, foram revogados
tacitamente os dispositivos do Código Penal até então aplicáveis à matéria (artigos
165 e 166). Essa lei trouxe modificações importantes ao tema de tutela penal do
patrimônio cultural brasileiro.
Uma primeira refere-se ao fato dessa Lei ter retirado do objeto material desses
tipos penais a condição de que o bem seja tombado - prevista até então - ampliandose, com isso, as oportunidades de tutela. De efeito, visando ajustar-se às diretrizes
constitucionais, o legislador passou a tutelar todo e qualquer bem detentor de um
valor cultural reconhecido oficialmente pelo Poder Público - seja pelo Poder
Executivo, seja pelo Legislativo, seja pelo Poder Judiciário.
Uma segunda novidade trazida por essa Lei federal refere-se ao fato de se
passar a admitir a modalidade culposa desses delitos, o que não existia até então.
E, enfim, uma terceira modificação importante diz respeito às penas cominadas
para esses tipos penais, que se tornaram maiores que as até então cominadas pelo
Código Penal.
Antes de encerrar este tópico 3.3.3, cabe mencionar a questão da possibilidade
ou não do Poder Judiciário determinar aos órgãos estatais inadimplentes a
89
implementação das políticas públicas estabelecidas pela Constituição. Sobre esse
assunto, o Supremo Tribunal Federal tem firmado entendimento no sentido de que
Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo
a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se
possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em
bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas
definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos
órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em
descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles
incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a
eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de
estatuta constitucional. A questão pertinente à reserva do possível.169
3.4. Colaboração da comunidade
Preliminarmente, há de se referir que a Constituição de 1988 foi elaborada e
promulgada em um contexto em que se ampliava e se consolidava o processo
democrático brasileiro, logo depois de um longo período em que vivenciada uma
ditadura militar no País.
Nesse cenário, o constituinte de 1988 tratou de dispor, ao lado das garantias e
dos direitos individuais e do direito de petição aos Poderes Públicos, alguns
mecanismos de participação política direta, quais sejam, o referendo, o plebiscito e a
iniciativa popular170.
Também estabeleceu, de maneira inédita, a participação da sociedade nas
ações públicas voltadas à realização de alguns direitos contidos no Título VIII da
Constituição de 1988 - referente à “Ordem Social” -, mais especificamente daqueles
169
Recurso Extraordinário nº 436.996-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22 nov. 2005. Nesse mesmo
sentido, Recurso Extraordinário nº 595.595-AgR, Rel. Min. Eros Grau, j. 28 abr. 2009.
170
Arts. 50, XV e 61, §2º da Constituição de 1988. Cf. Marcos Jordão Teixeira do Amaral, “Da gestão
democrática da cidade”, In Odete Medauar; Fernando Dias Menezes de Almeida (coord.), Estatuto da
Cidade: Lei 10.257/01, Comentários, p. 260.
90
relativos à educação, à cultura e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado171. De
efeito, porquanto modos de manifestação do direito ao bem-estar e à qualidade de
vida humana, esses direitos necessitam ser formados garantindo-se o envolvimento da
sociedade nos processos respectivos, a fim de que eles representem - o mais
aproximadamente possível - os reais anseios desta.
Com relação ao patrimônio cultural brasileiro, o constituinte de 1988 previu
essa participação social nos seguintes termos:
Art. 216. §1º O poder público, com a colaboração da comunidade,
promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de
inventários, registro, vigilância, tombamento e desapropriação e de
outras formas de acautelamento e preservação.
Essa norma constitucional determina que o Poder Público, quando das suas
decisões envolvendo a preservação do patrimônio cultural brasileiro, assegure a
participação da sociedade e leve em conta as opiniões e contribuições oferecidas por
esta. As políticas públicas nessa matéria, portanto, deverão ser feitas em moldes
participativos, conferindo-se, de alguma forma, um mínimo de envolvimento da
população nas ações preservacionistas, assim como nas decisões acerca de quais bens
preservar.
Isso com vistas a garantir que o patrimônio instituído e tutelado pelo Estado
represente efetivamente - e de forma equilibrada - os valores referenciais aos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira e que, ao mesmo tempo, ele se
preserve integrado na vida social. É que, como conclui Isaura Botelho, “não se trata
de colocar a cultura (que cultura?) ao alcance de todos, mas de fazer com que todos
171
Assim: “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. [...] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se
ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
91
os grupos possam viver sua própria cultura [...], pois o público é o conjunto de
públicos diferentes [...]”172.
Acerca dessa participação social em matéria de preservação patrimonial,
Bernardo Novais da Mata-Machado bem observa que
Antes da Constituição de 1988, os bens passíveis de proteção legal
estavam limitados àqueles de excepcional valor e que faziam
referência a fatos memoráveis da história do Brasil. Nesse contexto,
era mais fácil justificar e obter consenso em torno da preservação
desses bens. Mas se mesmo antes já se ressentia de uma participação
mais efetiva das comunidades atingidas, hoje, com a possibilidade de
estender-se a proteção patrimonial a bens materiais e imateriais de
regiões, municípios, bairros e até mesmo a referências pontuais, não
é mais possível abrir mão da presença direta dos interessados.173
A complexidade cultural contemporânea, manifestada no modo amplo como
definido o patrimônio cultural brasileiro na Constituição Federal de 1988, está a
exigir, assim, participações diretas e paritárias da sociedade nos assuntos atinentes à
defesa desse seu patrimônio. Nessa tarefa, no entanto, sempre se configurará um
desafio fazer com que essa participação aconteça sem cooptações ou manipulações.
No âmbito das cidades, dentro do espírito da Constituição de 1988 de garantia
do Estado Democrático de Direito, a Lei federal nº 10.257/01 também deixou claro
que as políticas de desenvolvimento urbano executadas pelos Municípios deveriam
ter como fundamento essencial a gestão democrática, admitindo a participação de
172
“As dimensões da cultura e o lugar das políticas públicas”, p. 27. Disponível em:
http://www.centrodametropole.org.br/pdf/Isaura.pdf. Acesso em: 20 dez. 2009.
173
“Participação Política e Conselhos de Cultura: Uma proposta”. In Hamilton Faria, Altair Moreira e
Fernanda Versolato (orgs.), Você Quer um Bom Conselho?: Conselhos Municipais de Cultura e
Cidadania Cultural, p. 68. Disponível em: http://www.polis.org.br/publicacoes_lista.asp?cd_serie=6.
Acesso em: 20 dez. 2009. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, prescreve, em
seu art. 27 que “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de
gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos benefícios que dele resultam”. E a
Recomendação sobre a Participação dos Povos na Vida Cultural (1976), da UNESCO, definiu duas
dimensões dessa participação: a dimensão ativa (direito à livre criação) e dimensão passiva (direito à
livre fruição). Restringindo mais o alcance da noção de participação, tem-se a Declaração do México
sobre as Políticas Culturais (1983), que traduz participação política tão somente como atos de
tomada de decisões políticas. Desse modo, fica garantido aos indivíduos e à sociedade participar do
processo de “tomada de decisões relativos à vida cultural, recomendando, para tanto, “multiplicar as
ocasiões de diálogo entre a população e os organismos culturais”.
92
diferentes atores sociais, de modo a se fazer valer as funções sociais da cidade e da
propriedade174.
Assim, o Capítulo I dessa Lei afirmou expressamente o princípio democrático
como um dos seus princípios gerais. E o Capítulo IV previu a gestão democrática da
cidade como diretriz operacional dessa nova ordem jurídico-urbanística175, dispondo
em seu artigo 43 que:
Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser
utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:
I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional,
estadual e municipal;
II – debates, audiências e consultas públicas;
III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis
nacional, estadual e municipal;
IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano;
V – (vetado).
Esse rol definido pelo legislador é meramente exemplificativo, sendo possível
a adoção destes e/ou de outros mecanismos democráticos de gestão aqui não
explicitados. De efeito, o sentido imperativo da expressão “deverão ser”, contida no
caput deste dispositivo, refere-se à garantia de gestão democrática, e não
propriamente ao emprego mínimo dos meios arrolados nesses incisos.
O inciso V desse dispositivo referia-se aos mecanismos do referendo e do
plebiscito. Seu veto poderia sugerir que esse rol do artigo 43 fosse taxativo – daí
174
Cf. Leonardo Barci Castriota, “Intervenções sobre o patrimônio urbano: modelos e perspectivas”,
In Forum Patrimônio..., v.1, n.1, p. 24. A propósito, recorda Maria Paula Dallari Bucci que o Estatuto
da Cidade “resulta, ele próprio, de uma longa história de participação popular, iniciada na década de
80, e que teve grande influência na redação do capítulo da política urbana da Constituição Federal
(arts. 182-183)”. “Gestão Democrática da Cidade”, In Adilson Abreu Dallari; Sérgio Ferraz (coord.),
Estatuto da Cidade..., p. 336-337
175
Cf. Maria Paula Dallari Bucci, “Gestão Democrática da Cidade”, In Adilson Abreu Dallari; Sérgio
Ferraz (coord.), Estatuto da Cidade..., p. 336.
93
justificando a necessidade de exclusão de um mecanismo dessa relação. Mas a
Mensagem nº 730, de 10 de julho de 2001, do Poder Executivo federal, esclarece a
questão ao expor, como razões desse veto, a mera observância da “boa técnica
legislativa”, sob o argumento de que a Lei federal nº 9.709/98 já autorizaria a
utilização desses dois instrumentos democráticos em todas as questões de
competência dos Municípios176. Mas se esta é realmente a razão de ser do veto, não se
compreende por que mantido o inciso IV do texto legal, por exemplo, cujo
mecanismo indicado é igualmente regido por essa mesma lei referida177.
De todo modo, não obstante essa inconveniente omissão na Lei, o Poder
Público municipal não deve deixar de utilizar esses dois mecanismos em suas ações
urbanísticas, inclusive nas que atinem à preservação de bens culturais, a fim de que
sejam amplas “as oportunidades de consulta aos habitantes da cidade sobre assuntos
do seu interesse”178, bem como para que se admitam modos deliberativos de
participação, já que os demais instrumentos relacionados exemplificativamente nesse
dispositivo são meramente consultivos.
Essa diretriz democrática para as políticas de gestão das cidades é também
explícita nas seções desta Lei que definem os regimes gerais de vários instrumentos
de política urbana, tais como no estudo de impacto de vizinhança (em que se garante
à população interessada a consulta aos documentos desse Estudo – que esclarece os
potenciais impactos dos empreendimentos ou atividades intentados em áreas urbanas
determinadas)179; nas operações urbanas consorciadas (que têm como elemento
176
A Lei 9.709/98 regulamenta a execução do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular. Dispõe
seu artigo 6º que: “Nas demais questões, de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, o plebiscito e o referendo serão convocados de conformidade, respectivamente, com a
Constituição Estadual e com a Lei Orgânica.”.
177
Conforme também observado por Maria Paula Dallari Bucci, “O argumento técnico [do veto] é
inconsistente, diga-se, na medida em que a menção aos instrumentos da gestão democrática neste
capítulo do Estatuto da Cidade tem finalidade de sistematizar o assunto em relação ao objeto da lei –
a gestão da cidade – que delimita um interesse específico e cria um campo de aplicação peculiar. A se
admitir o fundamento do veto em seu suposto rigor, deveriam ser vetados, pelo menos em parte,
também o inciso II, posto que as audiências e consultas públicas são disciplinadas pela Lei de
Processo Administrativo (Lei federal 9.784/1999) e o inciso IV, uma vez que o art. 61, §2º da
Constituição Federal já disciplinou a iniciativa popular de projeto de lei”. Op. Cit., p. 351.
178
Maria Paula Dallari Bucci, “Gestão Democrática da Cidade”, In Adilson Abreu Dallari; Sérgio
Ferraz (coord.), Estatuto da Cidade..., p. 351.
179
“Art. 37. [...], § único. Dar-se-á publicamente aos documentos integrantes do EIV, que ficarão
disponíveis para consulta, no órgão competente do Poder Público municipal, por qualquer interessado.”
94
essencial a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e
investidores privados nas intervenções urbanísticas do Poder Público municipal
voltadas à melhoria urbanística de áreas da cidade)180; e no plano diretor (em que se
deverá garantir, no seu processo de elaboração e na fiscalização de sua
implementação, a realização de audiências públicas e debates com a sociedade, a
publicidade e o amplo acesso dos documentos e informações produzidos)181.
E mesmo nos casos dos instrumentos de política urbana cujos regimes gerais
não contenham previsão expressa nesse sentido, essa ampla participação deve ser
assegurada sempre que possível, com fundamento no art. 43 já transcrito acima.
Nos Estados Unidos, em localidades onde adotado o Programa de Transferable
of Development Rights (TDR) para proteção de bens históricos – cujo modo de operar
assemelha-se ao instituto brasileiro da “transferência do direito de construir”182 -, o
poder público exerce trabalho conjunto com a comunidade residente para determinar
quais áreas na cidade serão destinadas ao desenvolvimento e quais serão
preservadas183.
Na Convenção Europeia da Paisagem184, de 20 de outubro de 2000, definiu-se
que os Estados signatários estabeleceriam procedimentos para a participação do
público em geral - além de autoridades locais e regionais, e de outras partes
interessadas - na definição e implementação de políticas de paisagem.
180
“Art. 32. [...], §1º. Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas
coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários
permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas
estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental.”
181
“Art. 40. [...], §4º. No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação,
os Poderes Legislativo e executivo municipais garantirão: I - a promoção de audiências públicas e debates
com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; II - a
publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; III - o acesso de qualquer interessado aos
documentos e informações produzidos.”
182
Que será mais detalhadamente abordado no Capítulo 4 deste trabalho.
183
Cf. Transferable Development Rights (TDR). Model Iniciatives. Democratic Leadership Council Website,
30/06/08. Disponível em: http://www.dlc.org/ndol_ci.cfm?kaid=139&subid=274&contentid=250739. Acesso
em: 6 nov. 2009. Este artigo noticia que até 2003, haviam sido implementados 134 programas de TDR em 25
estados norte-americanos.
184
Conselho da Europa. Convenção Europeia de paisagem. 2000. Art. 5º, c). Disponível em:
http://www.gddc.pt/siii/docs/dec4-2005.pdf. Acesso em: 27 dez. 2009.
95
Essa norma convencional europeia foi absorvida pelo atual Código Italiano
dos Bens Culturais e da Paisagem (Decreto legislativo de 22 de janeiro de 2004, nº
42) nos seguintes termos:
144. Publicidade e participação. 1. Nos procedimentos de
aprovação dos planos paisagísticos são assegurados a harmonização
institucional, a participação dos sujeitos interessados e das
associações constituídas para a tutela dos interesses difusos,
identificadas consoante o artigo 13 da lei de 8 de julho de 1986, n.
349, e amplas formas de publicidade. Para tal fim, as regiões
disciplinarão mediante disposições legais específicas os
procedimentos de planejamento paisagístico, em particular
estabelecendo que a partir da data de adoção ou aprovação
preliminar do plano, por parte da junta regional ou do conselho
regional, não são consentidas nos imóveis e nas áreas referidos no
artigo 134 intervenções que contrastem com as prescrições de tutela
previstas para estes no plano em questão.185
A participação da comunidade também pode ser realizada indiretamente, por
representação do Ministério Público e de associações civis sem fins lucrativos. O
primeiro legitima-se como Instituição que traduz as pretensões da sociedade nessa
seara, fiscalizando por meio de inquéritos civis, ações civis públicas, termos de
ajustamento de conduta, etc, as políticas de preservação implementadas pelo Poder
Executivo. As associações civis, por sua vez, além do importante papel na promoção
do patrimônio cultural, também estão legitimadas juridicamente, como visto, a propor
ações civis públicas em favor desses interesses de tutela.
185
(traduzimos). No original: “144. Pubblicità e partecipazione. – 1. Nei procedimenti di
approvazione dei piani paesaggistici sono assicurate la concertazione istituzionale, la partecipazione
dei soggetti interessati e delle associazioni costituite per la tutela degli interessi diffusi, individuate ai
sensi dell’articolo 13 della legge 8 luglio 1986, n. 349 e ampie forme di publicità. A tale fine le
regioni disciplinano mediante apposite norme di legge i procedimenti di pianificazione paesaggistica,
in particolare stabilendo che a fare data dall’adozione o approvazione preliminare del piano, da parte
della giunta regionale o del consiglio regionale, non sono consentiti per gli immobili e nelle aree di
cui all’articolo 134 gli interventi in contrasto con le prescrizioni di tutela per essi previste nel piano
stesso.”
96
Capítulo 4 OS MEIOS: COMO É POSSÍVEL PRESERVAR O
PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO?
Para orientar as responsabilidades do poder
público em relação ao patrimônio ambiental
urbano, a legislação, as instituições e as
práticas deveriam operar tendo como quadro o
território da cidade e seus atributos
diferenciais e, como alvo, criar condições
favoráveis para qualificar as práticas de seus
cidadãos
Ulpiano Bezerra de Meneses186
Atualmente, considerada a diversidade dos bens compreendidos na concepção
constitucional de patrimônio cultural brasileiro (artigo 216, caput e incisos I a V),
claro está que não é mais possível admitir que a tutela estatal desse patrimônio seja
exercida mediante a aplicação de um mesmo e único tipo de mecanismo, para todos
os casos. Assim é que a própria Constituição de 1988, depois de detalhar o conteúdo
dessa concepção de patrimônio, tratou de arrolar uma série de instrumentos passíveis
de serem aplicados aos fins da preservação.
Para que sejam recordados os exatos termos do dispositivo em comento:
Art. 216. [...]
1º. O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras
formas de acautelamento e preservação.
186
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, “A cidade como bem cultural”, In Victor Hugo Mori et alli
(orgs.), Patrimônio: Atualizando o Debate, p. 41.
97
Do quanto disposto pelo constituinte, depreende-se que a ampla preservação
do patrimônio cultural, para sua perpetuação ao longo das gerações, deve ser
empreendida contando-se com duas modalidades distintas de ação do Estado, quais
sejam, a promoção e proteção desse patrimônio. De efeito, preservação é conceito
genérico e nela é possível compreender “toda e qualquer ação do Estado que vise
conservar a memória de fatos ou valores culturais de uma Nação”187.
Por promoção entende-se não somente toda e qualquer ação estatal de
fomento, estímulo ou difusão dos valores culturais, como também a própria formação
do patrimônio cultural, que se faz pela designação específica pela autoridade
competente dos bens que deverão integrá-lo188. Assim seriam as ações de
inventariação, registro e catalogação de bens, a difusão de conhecimentos sobre o
patrimônio, a realização de eventos públicos, etc.
Já a proteção compreende tanto a ação estatal preventiva, consistente nas
medidas que impeçam a ocorrência de danos a bens culturais ameaçados – portanto,
muitas vezes limitadoras de direitos individuais -, quanto a ação repressiva, relativa a
ações que visam a reparar o dano já ocorrido (quando possível a reparação), assim
como punir o agente causador do dano, aplicando-lhe sanções – é o caso das ações
judiciais já comentadas.
A Constituição de 1988, ao impor ao Poder Público prestações de preservação
do patrimônio cultural brasileiro, sugeriu que elas fossem integradas entre si, tanto as
de promoção, quanto as de proteção. Tanto as fomentadoras, quanto as fiscalizadoras
e sancionadoras, permitindo com isso aproximar esse patrimônio da sociedade para
quem originalmente ele é considerado referência cultural, e assim procurando
assegurar a integridade e a perenidade desses bens na vida e na memória das
comunidades formadoras da sociedade brasileira.
No contexto das cidades, muitos dos valores culturais hoje nelas presentes são
assim concebidos não tanto em razão de aludirem a fatos históricos memoráveis ou
exemplares
excepcionais
da
aplicação
de
técnicas
artísticas
consagradas,
187
Sonia Rabello de Castro, O Estado na preservação de bens culturais: o tombamento, p. 5.
188
José Afonso da Silva, Ordenação Constitucional da Cultura, p. 116.
98
manifestados em um artefato material, mas principalmente pelas significações
afetivas que este artefato pode oferecer aos habitantes e usuários da cidade nas
interações destes com aquele e seu meio. Essas significações afetivas, na medida em
que são capazes de proporcionar bem-estar e contribuir para a qualidade de vida no
meio urbano, passam a constituir para a ordem vigente, do mesmo modo que aqueles
valores históricos expressos em documentos, verdadeiros fundamentos à ação estatal
tutelar sobre elas.
Ao mesmo tempo, a atividade urbanística, tipicamente interventiva sobre o
domínio privado e fundamentada no princípio da supremacia do interesse público
sobre o particular, realiza a ordenação e o controle do uso do espaço urbano tendo por
finalidade última essa mesma garantia de bem-estar, assim como a qualidade de vida
no ambiente urbano.
Ocorre que a visão isolada que o instituto do tombamento tradicionalmente
dispensa aos bens sob sua tutela, somada ao modo indistinto como este instrumento
vem sendo aplicado nos últimos tempos, para praticamente todos casos em que se
pretende promover e proteger bens culturais, evidenciam as limitações deste
mecanismo para dar conta, sozinho, da tutela das múltiplas espécies de interesses
culturais presentes no ambiente urbano.
Em obra publicada em 1979, Jean-Benoit Bleyon já observava que a política
francesa de salvaguarda do patrimônio arquitetônico urbano era caracterizada pela
coexistência dos modos de proteção tradicionais e de novos modos de salvaguarda,
explicando que aqueles constituíam as medidas de proteção pontuais, e estes, as
medidas planificadas de salvaguarda189. A salvaguarda planificada do patrimônio
arquitetônico urbano permitiria uma ação verdadeiramente eficaz, posto que
asseguraria, ao mesmo tempo, a restauração dos monumentos e dos sítios históricos
(proteção) e a integração deles no ambiente urbano (promoção)190.
189
L’Urbanisme et La Protection des Sites: La Sauveguarde du Patrimoine Architectural Urbain, p.
169.
190
Idem, ibidem, p. 169.
99
Sem a pretensão de esgotar a análise dos inúmeros impasses existentes em
matéria de preservação do patrimônio cultural urbano – já que isso transcenderia em
muito uma avaliação exclusivamente jurídica -, o que se propõe neste Capítulo são
basicamente dois feitos: um primeiro é apontar ideia já há algum tempo sedimentada
nos debates internacionais, assim como em outros campos científicos, especialmente
no de arquitetura e urbanismo, qual seja, de que as soluções para a gestão do
patrimônio cultural das cidades devem ser buscadas empregando-se uma visão
urbanística sobre o tema, ou seja, pelas vias da preservação integrada ao
planejamento urbano. Um segundo intento, consiste em demonstrar que o
ordenamento jurídico brasileiro oferece hoje uma interessante gama de instrumentos
urbanísticos para os fins de preservação do patrimônio cultural, ainda que a matéria,
como um todo, reconhecidamente careça de sistematização legal de âmbito nacional.
Abaixo, portanto, será analisado preliminarmente o mecanismo de preservação
adotado pela UNESCO, em especial as propostas e recomendações feitas pelo Comitê
do Patrimônio Mundial para as cidades históricas brasileiras declaradas Patrimônio da
Humanidade, na medida em que nessas manifestações são evidenciadas as
preocupações da comunidade internacional com a conservação integrada e planejada
dessas cidades históricas.
Seguidamente, se procederá à exposição dos instrumentos urbanísticos
considerados essenciais à preservação planejada do patrimônio cultural urbano. Todos
eles foram ao menos referidos pela Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) como típicos
instrumentos de política urbana, ainda que os regimes de alguns deles encontrem-se
detalhados em leis esparsas e vigentes desde muito tempo antes de 1988, situação
que, somada à ausência da lei nacional sistematizadora, pode gerar questionamentos,
na prática, quanto ao alcance dos efeitos desses instrumentos; quanto aos objetos para
os quais eles são mais apropriados; quanto à possibilidade ou não deles serem
conciliados entre si; quantos aos deveres e garantias aos proprietários e à vizinhança
dos bens de interesse cultural, etc.
100
4.1. A Proteção Internacional do Patrimônio Cultural da Humanidade
A Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de
1972, é considerada o mais popular documento normativo da UNESCO, em matéria
de patrimônio, não somente pelo número de Estados signatários (até junho de 2009,
somavam-se 186), como pelo número de sítios inscritos na Lista do Patrimônio
Mundial (incluídas as decisões anunciadas na última reunião do Comitê do
Patrimônio Mundial, somam-se ao todo 890 sítios, dos quais 689 são culturais, 176
são naturais e 25 são mistos)191.
De alto impacto junto à opinião pública, essa Convenção estabelece um
sistema de proteção coletiva, de nível planetário, aos bens eleitos por um comitê
internacional (“Comitê do Patrimônio Mundial”) como “Patrimônio da Humanidade”,
nas categorias cultural ou natural, de acordo com os critérios da excepcionalidade do
valor universal e da autenticidade do bem192.
A UNESCO adota como princípio fundamental a justificar essa sua ação
tutelar a concepção de que “o patrimônio cultural de cada um é o patrimônio cultural
de todos”193, ou seja, de que há determinado conjunto de bens, de uma região ou de
um país, cujo valor é excepcional não somente para a respectiva comunidade, mas
também para todos os povos do mundo.
191
Cf. informações disponíveis em: http://www.brasilia.unesco.org/noticias/releases/patrimoniomundial-ganha-13-novos-sitios. Matéria de 30.06.2009. Acesso em: 10 dez. 09 e
http://www.brasilia.unesco.org/noticias/releases/brasilia-sediara-reuniao-do-comite-do-patrimoniomundial-em-2010/?searchterm=patrimonio mundial. Acesso em: 10 dez. de 2009.
192
Cf. Flavio Lopes, “Evolução do pensamento contemporâneo através da leitura de normas
internacionais”, In Patrimônio Arquitetônico: Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais,
p. 31. Conforme aponta este autor, ao longo dos quase 40 anos de existência da Convenção, esses
critérios vêm sendo objeto de profunda reflexão. O Documento de Nara (1994) é resultado de um
desses debates, a respeito do critério da autenticidade. Cf. também Fernando Fernandes da Silva, As
cidades brasileiras e o patrimônio cultural da humanidade, p. 93-96.
193
Cf. Documento de Nara, UNESCO, 1994, item 8.
101
Diante
desse
princípio,
implicaria
essa
salvaguarda
internacional
a
responsabilidade da UNESCO pela conservação dos bens culturais que ela nomeasse
como Patrimônio da Humanidade?
A resposta a essa indagação é claramente negativa. A ação internacional de
salvaguarda não substitui o dever próprio dos Estados de zelar pela conservação de
um patrimônio que, antes de ser de todos, é genuinamente deles. Os Estados
signatários da Convenção firmaram compromisso com a UNESCO no sentido de
garantirem a manutenção de seus bens, sendo o cumprimento desse dever pelos
Estados, inclusive, uma das condições para inscrição de bens na Lista do Patrimônio
Mundial194.
Os organismos internacionais, de modo geral, devem respeitar a soberania dos
Estados. No caso da UNESCO, essa máxima é prevista no parágrafo 3º do artigo 1º de
sua Constituição:
Com vistas à preservação da independência, da integridade e da
diversidade frutífera das culturas e dos sistemas educacionais dos
Estados Membros da Organização, fica a ela vedada a intervenção
nas questões essencialmente restritas à jurisdição interna desses
Estados.195
A atividade supranacional vem, assim, tão somente cooperar com as ações
preservacionistas desenvolvidas pelos Estados signatários em seus respectivos
territórios - por suas formas próprias e soberanas de ação e repartição das atribuições
–, mas nunca substituí-las196.
194
Fernando Fernandes da Silva, Op. cit., p. 96.
195
Constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. UNESCO,
2002. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001472/147273POR.pdf. Acesso em 3
dez. 2009.
196
Nesse sentido, cf. Preâmbulo e art. 4º da Convenção: “[...] Considerando que, diante da amplitude
e da gravidade dos novos perigos que os ameaçam, cabe à coletividade internacional participar da
proteção do patrimônio cultural e natural de valor universal excepcional, prestando assistência
coletiva que, sem substituir a ação do Estado interessado, irá completá-la eficazmente; [...] Art. 4º.
Cada Estado-parte da presente Convenção reconhece que lhe compete identificar, proteger, conservar,
valorizar e transmitir às gerações futuras o patrimônio cultural e natural situado em seu território. O
Estado-parte envidará esforços nesse sentido, tanto com recursos próprios, como, se necessário,
102
A Convenção do Patrimônio Mundial preconiza quatro princípios basilares, a
conduzirem as ações dela decorrentes, quais sejam:
a) o pleno respeito à soberania dos Estados em cujo território
situam-se os bens culturais e aos direitos desses Estados sobre os
referidos bens, conforme a legislação nacional respectiva (art. 6º,
§1º);
b) o compromisso de cada Estado-parte de identificar, conservar,
proteger, valorizar os bens culturais presentes em seu território e
inscritos na Lista do Patrimônio Mundial, assim como de adotar,
em seus países, uma política geral que atribua função ao patrimônio
cultural na vida coletiva e que integre sua proteção aos programas de
planejamento (arts. 3º, 4º e 5º, a);
c) o dever de cooperação e apoio da comunidade internacional
com a identificação, proteção, conservação e valorização dos
bens inscritos na Lista do Patrimônio Mundial, sempre que
requerido pelo Estado-parte (art. 6º, §§1º e 2º); e
d) o compromisso de todos os Estados-partes na Convenção de
não tomar qualquer medida que ameace direta ou indiretamente
os bens integrantes da Lista (art. 6º, §3º). 197
As ações internacionais de que trata a Convenção do Patrimônio Mundial
resumem-se a:
a) estudos sobre problemas artísticos, científicos e técnicos
levantados
pela
proteção,
conservação,
revalorização
e
reabilitação do patrimônio cultural;
b) serviços de perícia, técnicos e de mão-de-obra qualificada;
mediante assistência e cooperação internacionais às quais poderá recorrer, especialmente nos planos
financeiro, artístico, científico e técnico”.
197
Cf. Fernando Fernandes da Silva. Op. cit., p. 92-93.
103
c) formação de especialistas em identificação, proteção,
observação, revalorização e reabilitação do patrimônio cultural;
d) fornecimento de equipamento que o Estado interessado não
possua ou não tenha condições de adquirir;
e) empréstimos a juros reduzidos, sem juros ou reembolsáveis a
longo prazo; ou até mesmo subvenções não-reembolsáveis, em
casos excepcionais e especialmente motivados, operações estas
suportadas pelo Fundo do Patrimônio Mundial. O financiamento
é parcial, cabendo ao Estado beneficiário o levantamento da
maior parte dos recursos.198
As observações feitas até aqui demonstram o quão impróprio é o uso da
expressão “tombamento” para designar as ações da UNESCO de salvaguarda das
localidades brasileiras declaradas Patrimônio da Humanidade.
De efeito, o tombamento é instituto jurídico criado no nosso ordenamento pelo
Decreto-Lei nº 25/37 para ser aplicado nos limites do território nacional e pela
Administração
Pública
brasileira.
Possui
natureza
jurídica
de
limitação
administrativa, fundada no poder de polícia do Estado, e produz como efeitos
obrigações de fazer e de não fazer aos proprietários dos bens culturais.
Já a UNESCO, como visto, não poderá exercer influências desse nível nos
territórios das Nações. Suas ações preservacionistas possuem natureza de fomento e
são exercidas por organizações internacionais e amplamente sobre os mais diversos
territórios nacionais.
O interesse dos Estados por esse auxílio internacional pode ser explicado, em
parte, pelo fato que nos lembra Agustín Gordillo, de que as administrações nacionais
encontram-se
sistemático
198
199
hoje,
em
matéria
de
finanças
públicas,
em
endividamento
. Mas não é só isso. O título de “Patrimônio da Humanidade” também
Art. 22 da Convenção do Patrimônio Mundial. Unesco, Paris, 1972.
199
“La administración de numerosos servicios sociales que van desde la educación y la salud, pasan
por la previsión social y avanzaron sobre la cultura, ve sus recursos progresivamente limitados”.
Tratado de Derecho Administrativo, tomo I, p. IV-34.
104
“significa contar com um status internacional, prestígio e reconhecimento que é
fundamental para o marketing do turismo”, como bem pondera Simone Scifoni200. É o
que também constata Flavio Lopes:
Nos últimos anos temos assistido, em todo o mundo, a um
extraordinário aumento da procura turística relativamente aos bens
inscritos na Lista do Património Mundial, rompendo-se, em alguns
desses monumentos e sítios, o equilíbrio entre as condições da
201
preservação e a capacidade de acolhimento de visitantes .
Essa constatação reforça a importância de que as potencialidades turísticas
dessas localidades sejam exploradas respeitando-se os limites de sustentabilidade
destas, ou seja, buscando-se o equilíbrio entre a realização do presente e a
preservação do futuro.
A adesão do Brasil à Convenção do Patrimônio Mundial foi ratificada pelo
Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 71, de 30 de junho de 1977,
tendo o texto da norma sido promulgado pelo Presidente da República por meio do
Decreto nº 80.978, de 12 de dezembro de 1977.
Algumas localidades urbanas brasileiras tiveram o reconhecimento da
UNESCO como Patrimônio da Humanidade. São elas, por ordem cronológica de
titulação: o conjunto arquitetônico e urbanístico de Ouro Preto, em Minas Gerais
(1980); o centro histórico de Olinda, em Pernambuco (1982); o centro histórico de
Salvador, na Bahia (1985); o Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas,
Minas Gerais (1985); o conjunto urbanístico de Brasília (1987); o centro histórico de
São Luis, no Maranhão (1997); o centro histórico de Diamantina, Minas Gerais
(1999); e o Centro Histórico da Cidade de Goiás (2001).
200
“Patrimônio Mundial: Do ideal humanista à utopia de uma nova civilização”. In Espaço e Tempo.
GEOUSP.
n.
14,
São
Paulo,
2003,
p.06.
Disponível
em:
www.geografia.fflch.usp.br/publicacoes/geousp/Geousp14/Geousp_14_Scifoni.htm. Acesso em: 20
nov. 2009. Nessa mesma linha, Flávio Lopes: “Presentemente, mais do que benefícios directos
(financeiros e técnicos) provenientes da UNESCO, os governos de todo o mundo, ao desenvolverem
esforços para incluir monumentos e sítios na Lista do Património Mundial, esperam obter prestígio e
projecção internacional”. Op. cit., p. 31.
201
Op. cit., p. 32.
105
Ainda que numa lógica distorcida, a inscrição dessas localidades na Lista do
Patrimônio Mundial tem influenciado uma maior produção de atos administrativos e
normativos voltados à preservação desses bens no âmbito nacional. O caso de Brasília
exemplifica essa influência da UNESCO sobre as atividades administrativas e
normativas nacionais, pois até meados de 1987 - ano em que a cidade foi reconhecida
como Patrimônio Mundial -, seu Plano Piloto não contava com proteção jurídica
específica. Esta surge por influência direta do respectivo processo de inscrição do
bem na Lista do Patrimônio Mundial.202
Fala-se em distorção, em razão da aparência de que o aumento na produção de
atos administrativos e normativos de preservação acabe sendo motivado mais pela
busca do selo de “Patrimônio da Humanidade”, do que propriamente pela convicção
das autoridades de que necessário o estabelecimento de mecanismos jurídicos
apropriados e ações públicas integradas e de longo prazo para a preservação eficaz
dessas localidades.
Por fim, cabe anotar que a assistência internacional é prestada também sob a
forma de monitoramento. Sem uma metodologia precisa, o monitoramento consiste no
acompanhamento do estado de conservação dos bens inscritos na Lista do Patrimônio
Mundial pelo Comitê do Patrimônio Mundial, admitindo-se que qualquer Estadoparte
notifique
este sobre
eventuais
ameaças
ao
Patrimônio
Mundial
ou
descumprimento de obrigações contidas na Convenção.
Conforme aponta Fernando Fernandes da Silva, esse sistema “é bem mais do
que uma rotineira inspeção periódica. Trata-se de um processo permanente de
cooperação que envolve parceiros locais num contexto regional, incluindo
informações e atividades de pesquisa”203. Acrecente-se que o monitoramento
internacional acaba contribuindo também para a criação de uma rotina nas atividades
de conservação pelos órgãos internos dos Estados-partes, à medida que são exigidos
destes relatórios periódicos.
202
O Decreto federal n. 10.829 foi publicado em 14 de outubro de 1987 e o tombamento federal
definitivo de Brasília foi realizado três anos mais tarde, em 1990.
203
Op. Cit., p. 162.
106
No que se refere às localidades urbanas brasileiras inscritas na Lista do
Patrimônio Mundial, eis, a seguir, algumas recomendações já feitas pelo Comitê do
Patrimônio Mundial a elas:
Com relação a Ouro Preto, o Comitê do Patrimônio Mundial já havia
recomendado, em 1994, a elaboração de um plano de reabilitação integral do centro
histórico, devido aos danos decorrentes do turismo204. Em 2003, motivado pelas
graves destruições causadas por um incêndio a uma edificação do século XVIII, no
centro histórico, o Comitê do Patrimônio Mundial requisitou do Estado brasileiro a
adoção de medidas de contenção de riscos e a previsão destas medidas no plano de
gestão da cidade. Requisitou também a finalização desse plano e a definição de zonas
especiais para a área205. Em 2004, o Estado brasileiro demonstrou, em relatório, a
delimitação e a descrição de zonas especiais, que seriam incluídas numa versão
revisada do Plano Diretor de Ouro Preto de 1996.
Para o Centro Histórico de Olinda, em 1994 foram feitas recomendações de
especial atenção para a formulação de uma política conciliadora do turismo e do
patrimônio cultural206.
Quanto ao Centro Histórico de Salvador, o Comitê do Patrimônio Mundial
reconheceu os trabalhos de restauração e revalorização da área do Pelourinho.
Também promoveu a formação de um grupo de especialistas internacionais e
autoridades regionais e locais, que acabaram se reunindo em 1995, em Brasília, para
debater sobre as novas funções definidas para o Pelourinho e o deslocamento dos seus
habitantes207.
O Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas, estado de Minas
Gerais, fora considerado em bom estado conservação, em 1994, embora se tenha
advertido, à época, da rápida transformação da área circundante à cidade e da
possibilidade de desfiguração do conjunto, no futuro. Nessa ocasião, o Comitê do
204
Documento WHC 93/CONF. 002/14, Unesco, Paris, 04.02.1994, p. 21-22. Cf. também Fernando
Fernandes da Silva, op.Cit, p. 165.
205
Cf. Documento WHC-03/27.COM/7B, decisão 27 COM 7B.87, Unesco, Paris, 2003.
206
Fernando Fernandes da Silva, op.Cit, p. 165.
207
Cf. Documento WHC-93/CONF. 002/14, Unesco, Paris, 1994.
107
Patrimônio Mundial recomendou, dentre outros pontos: a) a participação mais
integrada entre autoridades nacionais de preservação e autoridades estaduais e locais;
b) a implementação pela União de um plano de preservação ambiental (estudado em
1988) e, pelas autoridades locais e regionais, de um plano piloto para o povoado, em
seu conjunto e nas áreas patrimoniais em particular; c) a assessoria da UNESCO
sobre técnicas e normas de planejamento urbano e ambiental, assistência técnica e
treinamento de pessoal; d) legislação urbana adequada para evitar maiores
deteriorações paisagísticas208.
Com relação à Cidade de Goiás, em 2002, por força das destruições no Centro
Histórico, causadas pelas fortes chuvas havidas na localidade, o Comitê do
Patrimônio Mundial aprovou uma verba de 50 mil dólares, tendo controlado o
andamento dos trabalhos de restauração da área afetada, reconhecendo, no ano
seguinte, a necessidade de uma proteção urbana e ambiental integrada na localidade,
para mitigar futuros impactos de fortes chuvas.209
Por fim, no que se refere ao Conjunto Urbanístico de Brasília, em 1993, o
Comitê do Patrimônio Mundial recomendou a criação de um comitê interinstitucional,
com representantes de setores da comunidade local favoráveis ao desenvolvimento da
cidade, bem como das instituições de conservação, visando a estimular a discussão
dos principais projetos de crescimento da cidade e a procura de soluções que
equilibrassem a conservação e o progresso.
No plano de ações concretas, foram recomendadas, dentre outros pontos: a) a
conservação dos vazios urbanos para evitar a especulação imobiliária; b) a
delimitação de uma área non aedificandi para fins de manutenção de visibilidade; c) a
preservação das quatro áreas do plano piloto: escala monumental, residencial,
gregária e bucólica; d) a criação de espaços de encontro para usos múltiplos210.
Nos últimos anos, Brasília tem recorrentemente entrado na pauta das
discussões da assembléia do Comitê do Patrimônio Mundial. Em Relatório publicado
208
209
210
Fernando Fernandes da Silva, op.Cit, p. 166.
Documento WHC-03/27.COM/7B, decisão 27 COM 7B.86, Unesco, Paris, 2003.
Idem, ibidem, p. 165-166.
108
em 2000, o Comitê do Patrimônio Mundial já consignara que a cidade vinha
enfrentando desafios devido ao aumento da população (então com 3 milhões de
pessoas, numa cidade originalmente desenhada para 500 mil habitantes)211.
Preocupações com a tutela do Conjunto Arquitetônico de Brasília continuaram sendo
manifestadas nos anos seguintes. Em 2003, o Comitê recomendou o desenvolvimento
e a implementação do Plano Diretor de Brasília, bem como o envolvimento
continuado das autoridades, em todos os níveis, das organizações profissionais e de
diferentes setores da sociedade no processo de proteção e gestão da cidade212. Em
2004, o Brasil forneceu ao Comitê do Patrimônio Mundial informações sobre o
desenho e a elaboração do Plano Diretor da área protegida de Brasília, conforme
recomendações feitas na sessão anterior. O Comitê recomendou então a cooperação
continuada e firme entre o IPHAN e o Governo do Distrito Federal213.
A informação mais atualizada sobre monitoramentos em Brasília é de 2009,
quando o Comitê do Patrimônio Mundial reconheceu progressos no desenvolvimento
do plano de gestão e estimulou a finalização da delimitação de zonas especiais para a
cidade. Também tomou conhecimento dos projetos em andamento, tendo requisitado
a documentação técnica relativa ao Projeto da Orla, ao desenvolvimento da Vila
Planalto, às soluções de transporte da W3 e mudanças no uso do solo nas
superquadras, para revisão214.
Diante do exposto, nota-se a importância dada pela comunidade internacional
à gestão do patrimônio cultural planejada e integrada com as principais questões
sociais e econômicas das cidades analisadas, como modo de garantia de
sustentabilidade destas. Exemplo disso são as preocupações comentadas acima,
concernentes à conciliação adequada entre turismo e patrimônio; à garantia de
discussão de projetos de crescimento da cidade; à revitalização de áreas e eventuais
impactos sobre a população ali residente; à definição de zonas especiais dentro da
cidade; e ao envolvimento da comunidade e do Poder Público, nos níveis nacional,
211
Relatorio WHC-2000/CONF.204/21, Paris, Unesco, 2000.
212
Documento WHC-03/27.COM/7B, decisão 27 COM 7B.85, Unesco, Paris, 2003.
213
Documento WHC-04/28.COM/15B, decisão 28 COM 15B.108, Unesco, Paris, 2004.
214
Documento WHC-09/33.COM/20, decisão 33 COM 7B.133, Unesco, Paris, 2009.
109
estadual e municipal. Em todas essas preocupações manifestadas, é cristalino o
entendimento de que a preservação do patrimônio cultural necessita ser pensada no
contexto de planejamento urbano.
A designação de bens como patrimônio cultural pelos Poderes Públicos
municipal ou estadual não se revela suficiente, sendo mesmo dispensável, para que
aqueles bens concorram ao status de Patrimônio da Humanidade. De efeito, como
condição inafastável para inscrição de bens na Lista de Patrimônio Mundial da
UNESCO figura tão somente o prévio reconhecimento destes como patrimônio
nacional pelo Estado-parte da Convenção de 1972. No caso brasileiro, portanto, basta
o ato oficial federal de proteção.
Como desdobramento desse requisito, cogita-se aqui, em tese, a hipótese de
conflito entre os interesses do Poder Público municipal, manifestados no respectivo
plano urbanístico, de desenvolver e transformar a fisionomia de determinada área
urbana contida no seu território (e que não conta com tutela especial municipal) e os
da UNESCO, de preservar essa mesma área como Patrimônio da Humanidade. Nessa
situação, perante a UNESCO, as únicas consequências jurídicas, caso o Município
execute o plano urbanístico e não preserve a área, será a perda do título de Patrimônio
da Humanidade para a área e, consequentemente, a eliminação de todos os auxílios
técnicos e financeiros disponibilizados para conservação de bens dessa categoria.
Mas na prática, é pouco provável esse conflito, dado que, na maioria dos casos
em que um determinado bem concorre ao título de Patrimônio Mundial, são os
próprios Municípios quem mais se interessam em conquistar esse título, para melhor
explorar economicamente o turismo no seu território.
4.2.
Mecanismos tradicionais: o tombamento e a desapropriação
O tombamento e a desapropriação são tidos como mecanismos tradicionais de
preservação do patrimônio cultural, dado serem os mais recorrentes dentre as práticas
preservacionistas e há cerca de setenta anos encontrarem guarida no Direito positivo
110
brasileiro para a realização desse fim. O primeiro, no Decreto-lei n° 25, de 30 de
novembro de 1937 e o segundo, no Decreto-Lei n° 3.365, de 21 de junho de 1941215.
Nos termos do artigo 216, §1° da Constituição Federal e do artigo 2° do Decreto-lei
3.365/41, todos os entes da Federação são legitimados a empregar esses dois
mecanismos para a finalidade pública de preservação patrimonial.
O tombamento constitui o instrumento jurídico inaugural de preservação do
patrimônio cultural no Brasil, tendo figurado por um longo período como de
aplicação fundamental para o reconhecimento de um bem como integrante desse
patrimônio216. Isso porque, para que fosse assim designado, este bem deveria ser
inscrito necessariamente em um dos quatro Livros do Tombo217, fosse ele público ou
privado. Assim, mesmo os bens desapropriados mediante declaração de utilidade
pública de preservação eram tombados - tombamento de ofício – para que se fizessem
constar nos referidos Livros. Este instituto, portanto, de acordo com a ordem jurídica
então vigente, tratava de promover – na medida em que ele era elemento essencial à
designação do bem como patrimônio - e proteger todo o patrimônio cultural brasileiro
215
Decreto-lei 3.365/41: “Art. 2 o Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser
desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios. [...] Art.
5 o Consideram-se casos de utilidade pública [...] k) a preservação e conservação dos monumentos
históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas
necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a
proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza”.
216
Ressalte-se que o tombamento foi instituído pensando-se num desenho de patrimônio cultural
omposto somente por bens materiais. Assim dispõe o art. 1º, caput e §2º do Decreto-Lei 25/37: “Art.
1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico. [...] § 2º. Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são
também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pelo natureza ou agenciados
pelo indústria humana.
217
Nos termos do Decreto-Lei 25/37: “Art. 1º [...] §1º. Os bens a que se refere o presente artigo só
serão considerados parte integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos
separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei. [...] Art.
4º. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos
quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber: 1) no Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica,
etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º; 2) no Livro
do Tombo Histórico, as coisas de interêsse histórico e as obras de arte histórica; 3) no Livro do
Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira; 4) no Livro do Tombo das
Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou
estrangeiras.”
111
– mediante a instituição de um regime especial de limitações administrativas
fundamentado no poder de polícia.
De início, essa regra da exclusividade do tombamento para designação de
todos os bens integrantes do patrimônio cultural nacional era perfeitamente
compatível não somente com o modelo centralizado de gestão patrimonial praticado
pelo SPHAN – este preocupado com a proteção dos monumentos excepcionais de um
país então predominantemente rural218 - como também com a natureza material desses
bens. Mas ela perdeu forças com a vigência da Constituição de 1988, a partir da qual
se passou a admitir que bens tais como as formas de expressão; os modos de criar,
fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas - todos estes de natureza
imaterial e, portanto, não albergados pelo regime do tombamento – pudessem, do
mesmo modo que os bens materiais, ser reconhecidos oficialmente como patrimônio
cultural, assim como receber a tutela especial estatal.
O constituinte de 1988 também ofereceu outros mecanismos servíveis à
promoção e à proteção desse patrimônio, tais como o registro, o inventário, a
vigilância, a desapropriação, etc (artigo 216, parágrafo 1º). E não destacou o
tombamento dentre os instrumentos que enumerou, sugerindo, com isso, que exista
certa fungibilidade entre eles, ao menos no tocante à formação do patrimônio cultural
brasileiro.
A Lei 10.257/01 também se refere ao tombamento - ainda que sem quaisquer
detalhamentos - como típico instrumento de política urbana (artigo 4º, inciso V,
alínea d). E ao lado dele, dispõe o estudo de impacto ambiental, a transferência do
direito de construir e a desapropriação, dentre outros. É dizer que a adoção daquele é
facultada ao Poder Público municipal, podendo este avaliar o conjunto de
instrumentos urbanísticos à sua disposição na Lei e escolher os que mais
convenientemente atendam aos seus problemas peculiares de preservação.
Não obstante o tombamento não seja mais meio exclusivo de formação do
patrimônio cultural brasileiro, ele continua servindo a estes fins, assim como aos de
218
Cf. Nestor Goulart Reis Filho, “Por uma nova política de preservação”, In OESP, 09.01.2009, p.
A2.
112
instituição de um regime especial de proteção219. O que mudou, portanto, foi o fato de
hoje ser perfeitamente possível que estes fins sejam alcançados por outros meios, ou
mesmo pela conjunção daquele com estes.
Daí se entender, com base no dispositivo constitucional acima referido,
reforçado pelo teor da Lei 10.257/01, que o tombamento é ato administrativo
discricionário220, posto que à Administração Pública é conferida a faculdade de
escolher, com base nos critérios de conveniência e oportunidade, uma – ou mais de
uma - dentre as diferentes medidas de preservação do patrimônio cultural admitidas
no Direito positivo, não necessariamente o tombamento. É que nessa matéria,
permitiu o constituinte “uma proteção dinâmica e adaptável às contingências e
transformações da sociedade”, cabendo ao poder público avaliar a conveniência da
“execução das medidas protetoras consubstanciadas no próprio conteúdo de gestão
dos bens tombados”221.
É pacífico na doutrina que o ato administrativo do tombamento, quanto aos
seus efeitos, tem caráter constitutivo222, dado que ele faz nascer uma situação jurídica
nova, seja o bem tombado de propriedade pública ou privada. Na lição de José
Afonso da Silva,
219
O tombamento insere-se dentre aquelas formas de salvaguarda do patrimônio qualificadas como
passivas, dado que ele não tem como objetivo a restauração ou a valorização social dos monumentos,
mas a simples conservação do seu estado físico. Cf. Jean Benoit Bleyon, L´urbanisme el la protección
des sites..., p. 169.
220
Nesse mesmo sentido, cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, p. 158. Como
decisões em que se reconheceu caber ao Poder Executivo (e não ao Poder Legislativo) instituir
tombamento, cf. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.706/DF. STF, Relator Ministro Eros Grau,
v.u., j. 9 abr. 2008; e relatório da Representação Constitucional nº 1.312/RS, STF, Relator Ministro
Célio Borja, j. 27 out. 1988.
221
Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, p. 467. Nesse sentido, cf. também
Voto do Ministro Relator Octavio Gallotti no Recurso Extraordinário n. 219.292-1-MG, STF, j.
07.12.1998.
222
Cf. José Afonso da Silva, Ordenação Constitucional da Cultura, p. 160. Cf. também José Cretella
Jr., “Regime Jurídico do Tombamento”, In Revista de Direito Administrativo, v. 112, p.56. E Carlos
Augusto A. Machado, “Tombamento – Um instituto jurídico”, In Adilson Abreu Dallari; Lucia Valle
Figueiredo (orgs.), Temas de Direito Urbanístico 1, p. 49. Entendimento diverso pode ser induzido
pela seguinte definição adotada por Hely Lopes Meirelles: “Tombamento é a declaração, pelo Poder
Público, do valor histórico, artístico, paisagístico, cultural ou científico de coisas que, por essa razão,
devem ser preservadas de acordo com a inscrição no próprio livro”. “Tombamento e Indenização”, In
Revista de Direito Administrativo, v. 161, p. 1.
113
o tombamento tanto pode incidir sobre coisas pertencentes à União,
aos Estados, aos Municípios, ao Distrito Federal e às autarquias, de
uso comum, especial ou dominial, assim como sobre coisas
pertencentes às pessoas naturais ou às pessoas jurídicas privadas
(Decreto-Lei 25, de 1937, arts. 5º e 6º). Em qualquer desses casos, o
tombamento é que constitui o bem tombado em patrimônio cultural
[...]. Ele produz efeitos sobre a esfera jurídica dos proprietários,
privados ou públicos, dos bens tombados, impondo restrições ao
direito de propriedade, e cria para eles um regime jurídico especial,
transformando-os em bens de interesse público (situação diversa de
domínio público e de domínio privado), sujeitos a vínculos de várias
espécies [...]. Tudo isso inova a situação jurídica dos bens tombados,
transforma sua posição jurídica e impõe a seus proprietários
condutas jurídicas, ob rem, que antes não havia, demonstrando que o
tombamento, em qualquer caso, é ato constitutivo223.
Sem pretender aqui maiores aprofundamentos nas discussões doutrinárias
acerca da natureza jurídica do tombamento - posto que esse assunto mereceria análise
à parte – cabe apenas esclarecer que as divergências quanto à consideração do
tombamento ora como espécie de limitação administrativa224, ora como servidão
administrativa225, ora como instituto sui generis226 - dentre outras considerações
223
(Grifos do autor). Ordenação Constitucional da Cultura, p. 160.
224
Nesse sentido, José Afonso da Silva: “entendo que o tombamento é limitação ao caráter absoluto
da propriedade, porque reduz a amplitude dos direitos do proprietário por meio de um regime jurídico
especial de interesse público que impõe ao bem tombado vínculos de destinação, de imodificabilidade
e limites à alienabilidade. [...] o tombamento [...] em nenhuma hipótese caracteriza servidão
administrativa, simplesmente porque não gera direito real sobre a coisa tomada em favor da entidade
pública”. Ordenação Constitucional da Cultura, p. 160-162. Cf. também Hely Lopes Meirelles,
“Patrimônio Histórico. Tombamento”, In Estudos de Direito Público, v. IV, n. 2, jul-dez/85, p. 74.
225
Para Celso Antonio Bandeira de Mello: “São exemplos de servidão administrativa: [...] o
tombamento de bens em favor do Patrimônio Histórico”, Curso de Direito Administrativo, p. 899902. Segundo Adilson Abreu Dallari, “o tombamento configura verdadeira servidão administrativa, na
medida em que o Poder Público absorve uma qualidade ou um valor já existente no bem tombado,
para desfrute ou proveito da coletividade. Nesse caso, o princípio da isonomia e, por decorrência
dele, o princípio da distribuição das cargas públicas, obriga a coletividade beneficiária do
tombamento (e representada pela administração) a reparar o dano eventualmente experimentado pelo
proprietário do bem”. “Tombamento”, In Adilson Abreu Dallari e Lucia Valle Figueiredo (orgs.)
Temas de Direito Urbanístico 2, p. 13. Cf. também Ruy Cirne Lima, “Das servidões administrativas”,
In Revista de Direito Público, v. 5, p. 26.
226
Assim entende Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “o tombamento tem em comum com a limitação
administrativa o fato de ser imposto em benefício de interesse público; porém dela difere por
individualizar o imóvel. Comparado com a servidão, o tombamento a ela se assemelha pelo fato de
individualizar o bem; porém dela difere porque falta a coisa dominante, essencial para caracterizar
qualquer tipo de servidão, seja de direito público ou privado. Preferimos, por isso, considerar o
tombamento categoria própria, que não se enquadra nem como simples limitação administrativa, nem
como servidão.” Direito Administrativo, p. 159.
114
verificadas na doutrina227 - pautam-se, de um modo geral, na avaliação dos diferentes
autores quanto ao grau de limitação ao direito de propriedade produzido pelo instituto
(em razão de compreender obrigação de suportar e/ou individualizar o bem), assim
como quanto ao caráter do direito de propriedade atingido (segundo uns, afetaria o
caráter absoluto, para outros, o caráter exclusivo). Essas discussões parecem ter todas
como pano de fundo uma mesma preocupação em definir doutrinariamente se o
tombamento gera ou não, como efeito fático, o dever de indenizar.
Neste item, no entanto, será detida atenção apenas aos efeitos expressamente
previstos no Decreto-lei nº 25/37 - portanto inerentes ao instituto jurídico do
tombamento. A análise ora proposta visa a verificar situações em que a aplicação
exclusiva desse instituto não se revela adequada à realização da finalidade última de
preservação e perpetuação do patrimônio cultural urbano às presentes e futuras
gerações.
Assim, como efeitos do tombamento ipso iure, podem ser relacionados os
referentes a:
(A) Imposição de obrigações de fazer e de não fazer aos proprietários, quais
sejam:
1) Garantir o direito de preferência à União, ao Estado e ao Município
nas alienações onerosas (art. 22);
2) Registrar qualquer transferência de propriedade de imóvel tombado
em sua respectiva matrícula, no Registro de Imóveis competente, no
prazo máximo de trinta dias (art. 13, §1º);
3) Inscrever o bem móvel tombado no Cartório de Registro de Títulos e
Documentos competente sempre que ele sofrer deslocamentos e no
prazo máximo de trinta dias (art. 13, §2º);
4) Conservar e reparar o bem tombado para manutenção do seu valor
cultural (art. 19);
227
Cf. Lúcia Valle Figueiredo, Disciplina Urbanística da Propriedade, p. 62-63.
115
5) Comunicar formalmente ao órgão de preservação: 5.1) as
transferências de propriedade de imóvel tombado (art. 13, §3º), 5.2) o
extravio ou furto de bem móvel tombado (art. 16) e 5.3) a necessidade
de obras de conservação e reparação de bem tombado quando os
proprietários não dispuserem de recursos suficientes para tanto (art.
19);
6) Não destruir, demolir ou mutilar a coisa tombada (art. 17);
7) Não reparar, pintar ou restaurar a coisa tombada sem prévia
autorização (art. 17);
8) Não promover a saída do bem tombado para fora do país (art. 14);
9) Não obstar ações de fiscalização (art. 20); e
10) Não impedir a realização de obras urgentes de conservação e
reparação pelo Poder Público (art. 19, §3º).
(B) Imposição de obrigações de não fazer à vizinhança dos bens tombados,
consistentes em:
1) não colocar anúncios ou cartazes sem prévia autorização do órgão de
preservação; e
2) não realizar construção que impeça ou reduza a visibilidade de coisa
tombada sem prévia autorização do órgão de preservação.
A partir da leitura desses efeitos legalmente previstos para o tombamento,
primeiramente é possível deduzir que, de um modo geral, eles exprimem uma
preocupação com a conservação da integridade física do artefato material,
pressupondo-se que os valores culturais estejam intrínsecos a este, ou seja, contidos
em suas próprias feições físicas.
É o que revelam, mais explicitamente, as obrigações do proprietário de:
conservar e reparar o bem tombado para manutenção do seu valor cultural; não
destruir, demolir ou mutilar a coisa tombada; não reparar, pintar ou restaurar a
116
coisa tombada sem prévia autorização; e comunicar formalmente ao órgão de
preservação a indisponibilidade de recursos suficientes para obras necessárias de
conservação e reparação de bem tombado.
Estas obrigações consistem em verdadeiras limitações administrativas ao
exercício do direito de propriedade que se justificam, no entanto, pela necessidade de
conservação da coisa em si, ou seja, da matéria que contém e traduz o valor cultural.
Não resolvem, por exemplo, as necessidades de conservação e perpetuação de
manifestações culturais ou mesmo de modos de vida - verdadeiros valores imateriais , presentes tradicionalmente no interior ou no ambiente da coisa tombada. Daí
considerar-se ilegal o chamado tombamento de uso.
Tombamento de uso é expressão que designa uma distorção no emprego desse
instituto e consiste na imposição, pelo mesmo ato de tombamento, de destinação
específica aos imóveis tombados. É verdade que, pelo tombamento, poderão ser
proibidos usos que não se conformarem com as necessidades de conservação das
características físicas do bem tombado. Mas não é possível exigir-se uso específico
desse bem pela via do tombamento, tampouco condicionar o exercício de toda e
qualquer atividade pretendida à prévia aprovação do órgão de preservação.
A esse respeito, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal por ocasião de
julgamento do Recurso Extraordinário nº 219.292-MG, em 7 de dezembro de 1999,
nos termos da ementa de acórdão abaixo:
Tombamento de bem imóvel para limitar sua destinação à atividades
artístico-culturais. Preservação a ser atendida por meio de
desapropriação. Não pelo emprego da modalidade do chamado
tombamento de uso. Recurso da Municipalidade do qual não se
conhece, porquanto não configurada a alegada contrariedade, pelo
acórdão recorrido, do disposto no art. 216, § 1.º, da Constituição.228
Tratava-se, neste caso, do tombamento de um teatro e de um cinema pela
Prefeitura do Município de Belo Horizonte, cujos termos do respectivo ato
228
Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 219.292-MG, 1.ª Turma, Ministro Relator
Octávio Gallotti, v.u., j. 7.12.1999.
117
administrativo estabeleciam obrigações de preservação não somente das edificações,
em si, mas também da própria destinação destas, exigindo-se a conservação
especificamente para as atividades artístico-culturais em questão. A inadequação da
medida empregada foi reconhecida pela Corte Suprema, conforme constou do voto do
Ministro Relator Octávio Gallotti:
Não é, porém, contra o tombamento da edificação, ou espaço
destinado a manifestações artístico-culturais que se insurge a ora
recorrente, senão contra a predeterminação da modalidade de seu uso
pelo Poder Público.
Ora, nada está no texto constitucional a acenar a faculdade dessa
cisão ou desintegração dos atributos inerentes ao direito de
propriedade, por meio de simples tombamento, em lugar da
desapropriação, expressamente enumerada, entre os instrumentos de
proteção do patrimônio cultural brasileiro, pelo art. 216, §1º, da
Constituição.229
Na doutrina, Sonia Rabello de Castro observa com propriedade que:
Ainda que se tombe o imóvel, não poderá a autoridade tombar o seu
uso, uma vez que o uso não é objeto móvel ou imóvel. Com relação
ao aspecto de uso, o que pode acontecer é que, em função da
conservação do bem, ele possa ser adequado ou inadequado. Assim,
se determinado imóvel acha-se tombado, sua conservação se impõe;
em função disto é que se pode coibir formas de utilização da coisa
que, comprovadamente, lhe causem dano, gerando sua
descaracterização. Nesse caso, poder-se-ia impedir o uso danoso ao
bem tombado, não para determinar um uso específico, mas para
230
impedir o uso inadequado .
229
Idem.
230
O Estado na Preservação de Bens Culturais, p. 108. Nesse mesmo sentido, cf. Sergio Andrea
Ferreira: “Onde está o valor cultural: na atividade ou no imóvel? Ou na atividade somente através
daquele imóvel? [...] o bem tombado é que há de ser o que se reveste do valor cultural”. “O
tombamento e o devido processo legal”, In Revista de Direito Administrativo, v. 208, abr-jun/1997, p.
33.
118
Do exposto, depreende-se que o tombamento não é instrumento adequado para
a preservação dos valores culturais presentes em edificações e espaços de
manifestações artístico-culturais (artigo 216, IV, da Constituição Federal), pois
nestes, os valores culturais estão contidos nos usos empregados à coisa, e não
propriamente na coisa.
Do mesmo modo, quando se tratar de espaços públicos tais como coretos,
jardins e áreas de reunião de grande público, o tombamento que se fizer sobre esses
bens será, na prática, meramente alegórico, na medida em que os efeitos legalmente
definidos para o referido instituto não são aptos a garantir adequada proteção aos
valores culturais verdadeiramente em questão, que são as atividades neles
desempenhadas. E quando o tombamento envolver imóvel privado, será franqueado
ao proprietário o direito de questionar judicialmente a legalidade do ato
administrativo respectivo – tal qual no caso mineiro exemplificado logo acima - dado
que essa limitação imposta ao seu direito de uso sobre a coisa não conta com amparo
legal (artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal).
Uma solução possível para casos como este é, de efeito, o mecanismo da
desapropriação, com fundamento no artigo, 5º, alíneas h) e p) do Decreto-lei nº
3.365/41231, especialmente se se tratar de imóveis privados que historicamente
abrigaram usos culturais específicos, significativos à memória dos seus usuários.
Outra opção para preservação desses valores – caso se pretenda conservar a
propriedade privada – é o emprego de meios promocionais de tutela, como a
concessão de incentivos fiscais aos empreendedores desses espaços culturais,
condicionada à conservação das atividades dessa natureza.
Uma
segunda
constatação
a
partir
da
análise
detida
dos
efeitos
caracterizadores do regime especial do tombamento é o modo individualizado como
tomados juridicamente os bens objeto deste tipo de tutela.
231
“Art. 5 o . Consideram-se casos de utilidade pública: [...]h) a exploração ou a conservação dos
serviços públicos; [...] k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos,
isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manterlhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e
locais particularmente dotados pela natureza; [...] p) os demais casos previstos por leis especiais.”
119
Com efeito, predominam no texto legal obrigações atribuídas ao proprietário
da coisa tombada – dentre elas, por exemplo, a de garantia do direito de preferência
aos Poderes Públicos nas alienações onerosas (art. 22); e a de registro, junto à
matrícula no Registro de Imóveis competente, de qualquer transferência de
propriedade do imóvel tombado (art. 13, §1º) - corroborando a noção de que este
instrumento, do modo como juridicamente instituído, limita-se a garantir unicamente
a coisa tombada em sua singularidade, não levando em conta se esta encontra-se
harmonicamente imbuída no seu meio ou se é usufruída pela sua vizinhança.
Essa concepção individualizada dos bens culturais, quando reforçada pelas
adjetivações “excepcional valor”, “feição notável” e “fatos memoráveis” - contidas
no artigo 1º, caput e parágrafo 2º do Decreto-Lei nº 25/37 - revela a intenção de tutela
legal em razão do caráter monumental daqueles, destacado das demais edificações
presentes no mesmo ambiente. E ainda que exista no Decreto-lei em comento uma
norma específica voltada à vizinhança de bens tombados, seu texto não traduz
propriamente uma preocupação urbanística de harmonização desses bens com o meio
no qual eles se inserem.
Nos termos do artigo 18 do Decreto-Lei 25/37:
Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada,
fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela
colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a
obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a multa de cinquenta
por cento do valor do mesmo objeto.
Pelo contrário, nesse dispositivo, o controle do entorno parece justificar-se em
razão da necessidade de se destacar a coisa tombada singular do seu próprio meio,
protegendo-a dos efeitos danosos que a vizinhança poderá causar ao seu excepcional
valor. A coisa tombada é vista aqui mais claramente como monumento, assumindo
posição hierarquicamente superior a tudo quanto exista à sua volta. O valor da
ambiência é, pois, adjetivo da coisa tombada, não substantivo: “é seu efeito
120
qualificador que conta, em relação ao bem tombado”232. Por força disso, a atenção
dedicada pelo Decreto-lei nº 25/37 ao invólucro espacial é menor do que a dispensada
ao bem protegido233.
O Decreto-lei n° 25/37, no entanto, não oferece critérios mensuráveis para
determinação do conceito de “vizinhança da coisa tombada”, tampouco estabelece o
grau de redução ou impedimento da “visibilidade” a partir do qual se fará necessária a
fiscalização. Deixa essas definições a cargo da Administração Pública, por meio de
seus órgãos de preservação, conforme aferições técnicas a serem procedidas caso a
caso.234
Há notícias de que já na década de 1950, Rodrigo Melo Franco de Andrade,
amigos e colaboradores do SPHAN empenharam-se em cristalizar, junto às mais altas
cortes do país, concepção mais ampliada à expressão “visibilidade”, contida no
dispositivo em comento, a fim de que fosse possível a aplicação do instituto do
tombamento - então prontamente disponível na ordem jurídica vigente - a contextos
muito mais amplos do que os originalmente imaginados235. Conforme explica Paulo
Ormindo de Azevedo, “muito da literatura que se criou sobre a envoltória dos
monumentos se deve à tentativa de transformar uma lei específica de proteção de
bens materiais singulares em um instrumento de proteção de setores urbanos e até de
cidades e municípios”236.
Nos Tribunais Superiores, em que há tempos se reconhece a competência
judicial para apreciar os motivos do ato de tombamento237, questões relativas à
232
Ulpiano Bezerra de Meneses, “A cidade como bem cultural”, In Victor Hugo Mori et alli (orgs.),
Patrimônio: Atualizando o Debate, p. 44.
233
Na lição desse mesmo autor: “O bem tombado é que é o objeto de interesse e de proteção; se há
controle do entorno, é em função do bem tombado. Portanto, valor substantivo é o do bem tombado; o
entorno tem valor adjetivo”. Idem, ibidem, p. 43-44.
234
A Consultoria Geral da República, por ocasião de parecer acerca da construção de dois edifícios
nas proximidades do Museu Imperial de Petrópolis, em 1968, já manifestou entendimento de que “não
basta que a construção esteja na vizinhança da coisa tombada, é necessário que a mesma impeça ou
reduza sua visibilidade”. In Revista de Direito Administrativo, v. 93, p. 380.
235
Paulo Ormindo de Azevedo, “Comentário 4: A cidade como obra aberta”, In Victor Hugo Mori et
alli (orgs.), Patrimônio: Atualizando o Debate, p. 68.
236
Op. Cit, p. 68.
237
Caso emblemático dessa competência é o do “Arco do Teles”, julgado pelo Supremo Tribunal
Federal em 19 agosto de 1943 e onde se reconheceu o valor histórico desse imóvel. Cf. Carlos
121
visibilidade de bens tombados têm sido decididas muitas vezes com base nessa
concepção ampla, dedicando-se uma visão de conjunto238 e 239.
O que se deve atentar, porém, é que ainda que se adote essa concepção, nem a
obrigação de não fazer contida no comentado artigo 18, tampouco todos os demais
efeitos previstos pelo regime jurídico do tombamento – a maior parte relativa a
obrigações dos proprietários de conservar a integridade física dos seus bens materiais
tombados - são suficientes para garantir satisfatoriamente essa visão de conjunto que
tanto se espera. Fica claro que o tombamento é medida importante, sim, para conter
as destruições em larga escala ao patrimônio cultural urbano material, derivadas do
acelerado processo de urbanização - gerador de concentrações urbanas - e dos
avanços desenfreados do mercado imobiliário sobre o território da cidade. Mas não é
bastante para garantir sozinha uma visão harmônica dos espaços detentores desses
bens culturais e uma conservação efetiva desses bens na memória da cidade e de seus
habitantes. Para tanto, faz-se necessário articular o tombamento com outros
mecanismos, igualmente essenciais a essa preservação almejada, que garantam a
participação popular e a conservação integrada com os moradores e utentes da cidade.
Ainda, merece menção aqui a experiência do Estado de São Paulo no que se
refere ao delineamento da “vizinhança da coisa tombada”.
Medeiros Silva, “Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Tombamento – Vizinhança –
Desapropriação – Registro de Imóveis – Direitos de Terceiros”, In Revista de Direito Administrativo,
v. 108, p. 436. Cf. também Embargos a Recurso Extraordinário n° 41.279, j. 9/9/65, Supremo
Tribunal Federal, Rel. Min. A. M. Vilas-Boas, in Revista de Direito Administrativo, v. 84, p. 155165, referente a construções nas proximidades do Outeiro da Glória (RJ), tombado. E Agravo em
Mandado de Segurança n° 10.579, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, j. 02.12.1959, Rel. Des.
Orlando Carlos, in Revista de Direito Administrativo, v. 74, p. 229, referente a obras nas adjacências
do Museu Imperial, em Petrópolis.
238
Nesse sentido, cf. voto do Ministro Presidente Djalma da Cunha Melo, na Apelação Cível n. 1.515PB, tramitada perante o Tribunal Federal de Recursos e julgada em 6/11/51, tratando da construção de
ginásio esportivo nas imediações do convento de São Francisco, em João Pessoa, Estado da Paraíba:
“[...] Custa crer que os Irmãos Maristas, diretores do Ginásio Pio X, prossigam insistindo em manter
o aleijão, em deixar prejudicada em sua graça arquitetônica o templo já aludido, que deveriam ser os
primeiros a querer ver preservado na sua visão de conjunto, na sua perspectiva, na sua austeridade, na
sua beleza, na sua imponência” (grifamos). In Revista dos Tribunais, v. 222, p. 559 e ss.
239
Cf. também recomendação contida no Compromisso de Salvador (de outubro de 1971), formulada
por governadores de Estado, no sentido de se criar legislação complementar que amplie o conceito de
visibilidade de bem tombado, a fim de se atender ao conceito de ambiência.
122
Até 2003, vigorou disposição do Decreto n° 13.426/79 que definia
objetivamente a concepção de vizinhança por meio da adoção genérica de um raio de
trezentos metros para qualquer imóvel tombado pelo CONDEPHAAT240. Esse critério
era semelhante ao empregado pelo Direito francês, que estabelece, como regra geral,
um raio de quinhentos metros para demarcação da área envoltória de quaisquer bens
inscritos no inventário suplementar de monumentos históricos241.
Houve quem considerasse arbitrário esse dispositivo do decreto bandeirante,
em razão dele definir aleatória e genericamente uma mesma dimensão de área de
restrição a quaisquer bens imóveis sujeitos ao tombamento estadual242. Além disso,
como constatou Ulpiano Bezerra de Meneses, se se tomasse o Município de São
Paulo como exemplo, a aplicação dessa regra redundaria em “quase todo o centro
urbano (centro velho e expandido, Luz e Paulista) sob controle urbanístico total do
CONDEPHAAT.”243 Significava, a rigor, a necessidade de consulta prévia ao órgão
preservacionista para quaisquer projetos de alteração de gabarito de imóveis situados
nessa área que é a mais adensada da cidade.
O dispositivo em comento encontra-se revogado, por força do Decreto estadual
n° 48.137, de 7 de outubro de 2003244. Mas o relato dessa dificuldade operacional de
controle das áreas envoltórias dos inúmeros monumentos tombados pelo Estado
somente na cidade de São Paulo serve aqui como exemplo claro de um impasse
240
“Artigo 137. Nenhuma obra poderá ser executada na área compreendendo um raio de 300
(trezentos) metros, em torno de qualquer edificação ou sítio tombado, sem que o respectivo projeto
seja previamente aprovado pelo Conselho, para evitar prejuízo à visibilidade ou destaque do referido
sítio ou edificação”.
241
Trata-se da Lei de 1913, que somente excecpcionalmente admite a adoção de metragens especiais,
a serem determinadas por Decreto do Conselho de Estado. Cf. Jean-Marie Pontier, Jean-Claude Ricci
e Jacques Bourdon, Droit de la culture, p. 318.
242
Nesse sentido, Ulpiano Bezerra de Meneses: “Por que não 200m? Ou 400m, 500m? E por que teria
a ambiência que coincidir sempre com uma área circular, quando a realidade aponta para a
heterogeneidade e não a regularidade geométrica? [...] E quando a forma do bem for geometricamente
irregular? E quando a inserção do bem no espaço implicar outra triangulação (isola do em espaço
livre, esquina, miolo de trama, etc)? E quando houver descontinuidade espacial, embora continuidade
conceitual, histórica, estilística?)”. “A cidade como bem cultural”, In Victor Hugo Mori et alli
(orgs.), Patrimônio: Atualizando o Debate, p. 43.
243
Op. Cit, p. 43.
244
Esse decreto passou a dispor que a Resolução de Tombamento é que “preverá a área sujeita a
restrições de ocupação e de uso, quando estes se revelarem aptos a prejudicar a qualidade ambiental
do bem sob preservação, definindo, caso a caso, as dimensões dessa área envoltória” (art. 1°).
123
hodierno nos centros urbanos, com relação à gestão do patrimônio cultural, e que não
parece ser resolvido pelas disposições deste novo Decreto, qual seja: o modo isolado
de tratamento dos bens culturais urbanos pelos órgãos de preservação, favorecendo
uma sobreposição de prioridades públicas diversas - muitas vezes não harmônicas
entre si - para uma mesma área no território cidade.
De efeito, este modo de gestão do patrimônio definitivamente não prioriza o
envolvimento
dos
órgãos
municipais
de
ordenação
urbana
nas
questões
preservacionistas, tampouco a elaboração, a quatro mãos, de um plano urbanístico de
conjunto para essas áreas.
Nesse mesmo contexto insere-se a questão dos chamados tombamentos de
bairros, os quais, especialmente quando efetivados pelos órgãos estaduais de
preservação, podem conflitar com projetos de desenvolvimento urbano desenhados
pelos Municípios245.
É verdade que, quando o ato de tombamento estadual de um bairro for
superveniente aos projetos urbanísticos definidos pelo Município em áreas inseridas
nesse mesmo bairro, esse conflito parece ser solucionável mais facilmente. Neste
caso, aquele ato não poderá obstar a realização das obras regularmente licenciadas e
já iniciadas – por uma questão de garantia a direitos adquiridos -, a menos que o
Estado federado indenize os investimentos realizados pelo Poder Público municipal e
desaproprie a área de interesse de preservação246. Mas quando o tombamento estadual
antecede às intenções municipais de transformação deste bairro, então a questão
torna-se de difícil solução.
245
Cite-se como um dos inúmeros exemplos as obras do Corredor Santo Amaro – 9 de Julho,
realizadas pela Prefeitura do Município de São Paulo, nos anos 80, em área compreendida no bairro
dos Jardins. Pouco depois de iniciadas essas obras, o CONDEPHAAT tombou esse bairro, ato que
motivou, inclusive a propositura de ação civil pública pelo Ministério Público para obstar a
destruição de árvores pela Prefeitura.
246
Conforme esclarece Marcio Cammarosano, “a Administração municipal tem o direito de, no
exercício de sua competência, assegurada constitucionalmente, realizar obras públicas que digam
respeito ao seu peculiar interesse. Uma vez elaborado o projeto, realizada a licitação, contratada a
empreiteira e iniciada a execução do projeto, ato administrativo superveniente de outra esfera
governamental não tem eficácia impeditiva ou condicionadora da obra, ressalvada a regular
expropriação dos direitos adquiridos dela emergentes, inclusive aquele que beneficia a empreiteira
regularmente contratada”. “Tombamento – Realização de Obra Pública”, In Revista de Direito
Público, n. 81, jan.-mar/87, p. 192.
124
Na linha do quanto sustentado no item 3.2. deste trabalho - em que cotejadas
as competências constitucionais atinentes à matéria -, não se trata, neste caso, de um
conflito entre as competências comuns estabelecidas em matéria de preservação e as
privativas dos Municípios, definidas para assuntos de interesse local.
O que se verifica, na realidade, é um problema de ausência de norma estadual
que coordene minimamente as atividades preservacionistas em seu território. De
efeito, neste caso, faltou ao Poder Público estadual implementar um plano urbanístico
setorial para a defesa do patrimônio cultural urbano, contemplando planos de
conjunto específicos para cada um desses bairros. Planos estes que deveriam fixar –
depois da audiência e do debate entre os órgãos interessados e a sociedade - as áreas a
serem desenvolvidas e as áreas a serem preservadas, com vistas a harmonizar os
interesses públicos em jogo 247.
Outra observação relevante, relativa aos tombamentos de bairros, é que eles
são instituídos, via de regra, por meio de resoluções dos órgãos de preservação, nas
quais costumeiramente vêm definidas todas as restrições gerais aplicáveis ora à
Administração Pública, ora aos proprietários de imóveis localizados nos bairros
tombados, com vistas à preservação do traçado urbano, da vegetação e das linhas
demarcatórias dos lotes desses bairros.248
Essas restrições consistem, por exemplo, com relação aos proprietários, em
obrigações de: a) submeter à prévia deliberação do órgão de preservação quaisquer
intervenções nos lotes situados na área tombada; e b) sujeitar novas construções aos
recuos e percentual de ajardinamento mínimos, assim como aos gabaritos, taxas de
ocupação e alturas máximos definidos pela resolução.
Pelo que se verifica, trata-se de restrições voltadas tipicamente a uma
preservação espacial, de áreas dentro da cidade, em nada se confundindo com aquelas
restrições definidas no Decreto-lei n° 25/37, destinadas à preservação pontual, de
247
Nestor Goulart Reis Filho sugere que esses planos de conjunto para bairros sejam válidos por um
período de 10 a 20 anos, após o que eles seriam novamente discutidos e, conforme o caso,
modificados ou mantidos. “Por uma nova política de preservação”, In OESP, 09.01.2009, p. A2.
248
A propósito, cf. teor da Resolução nº 2, de 23.01.1986 e da Resolução nº 8, de 14.03.1991, ambas
expedidas pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, que tombaram os bairros paulistanos dos
Jardins e do Pacaembu, respectivamente. Disponível em www.cultura.sp.gov.br. Acesso em 20 fev. 2010.
125
bens singularmente considerados. Aquelas, portanto, necessitam vir respaldadas em
nova lei, não servindo-lhes para tanto o Decreto-lei n° 25/37. Isso porquanto a
resolução, na qualidade de ato normativo da Administração Pública, não tem o
condão de inovar o Direito, de criar direitos e obrigações.
No que se refere ao mecanismo da desapropriação, este se justifica pela
necessidade do Poder Público de aquisição de um bem para satisfação de uma
utilidade pública, qual seja, no presente caso, a preservação do patrimônio cultural. O
Poder Público deverá, no entanto, garantir ao expropriado prévia e justa indenização
em dinheiro (artigo 5°, XXIV da Constituição Federal).
Esse mecanismo assume importância fundamental à efetivação dessa
preservação, na medida em que se coloca como instrumento apto a dirimir aqueles
casos em que a prevalência da proteção de valores culturais implica sacrifícios a
direitos individuais249. Além disso, a desapropriação pode ser empregada para
aquisição de imóveis que não comportam em si valores culturais, mas que se
encontram no mesmo meio destes e que poderão servir à demarcação de espaços
públicos de convivência com esses valores.
Com fundamento no artigo 216, parágrafo 1° da Constituição Federal, a
desapropriação
poderá
ser
adotada
como
instrumento
de
preservação
independentemente do tombamento, servindo inclusive à formação do patrimônio
cultural brasileiro. Isso porque, como visto, o tombamento não é mais condição para
esta formação e o próprio ato expropriatório que declara o bem como de utilidade
pública para fins de preservação poderá assim fazê-lo, porquanto ele contém em si,
expressos, os motivos da expropriação, que invariavelmente remeterão ao
reconhecimento oficial de valores culturais, ainda que estes não estejam contidos
propriamente no bem objeto de desapropriação.
Para além desse reconhecimento oficial, pensando-se na garantia de
preservação efetiva desses bens à identidade e memória da sociedade, seriam
necessárias outras medidas de promoção.
249
Cf. Carlos Ari Sundfeld, Direito Administrativo Ordenador, p. 86-118.
126
4.3.
O Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança e a tutela da paisagem cultural
O Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV), previsto nos artigos 4°, VI e
36 a 38 do Estatuto da Cidade, é típico instrumento de política urbana municipal que
consiste na avaliação prévia de projetos de criação ou ampliação de empreendimentos
ou atividades, privados ou públicos, quanto aos potenciais impactos destes sobre a
qualidade de vida dos habitantes de áreas dentro da cidade. Nos casos em que o EIV é
exigido, sua elaboração configura condição para obtenção de licenças e autorizações
de construção, ampliação ou funcionamento.
A ideia de um estudo prévio acerca de eventuais impactos de empreendimentos
sobre o ambiente urbano não é novidade trazida pelo Estatuto da Cidade. Com efeito,
desde antes da entrada em vigor desta lei, aquela já vinha sendo desenvolvida por
meio de outros instrumentos jurídicos, implementados por alguns municípios com
fundamento em suas competências ambientais e urbanísticas. Marcos Maurício Toba
noticia que, no passado, já se chegou a implementar estudos de impacto de vizinhança
com fundamento no art. 17 do Decreto federal nº 99.274/1990 (que regula o
EIA/RIMA) e no art. 2º da Resolução CONAMA 01/1986250 e que em 1990, a Lei
Orgânica do Município de São Paulo já continha dispositivo prevendo relatórios de
impacto de vizinhança – RIVI a projetos de significativa repercussão ambiental ou na
infra-estrutura urbana251.
Mas ao padronizar minimamente o instituto do EIV 252 no âmbito dos
Municípios, o Estatuto da Cidade tem o mérito de estabelecer a todos eles ao menos
duas regras importantes: 1) que à comunidade deve ser garantido certo grau de
250
O autor acrescenta que “realmente era possível uma interpretação nesses moldes, dada a amplitude
abrangida pelos casos apontados na referida legislação”. “Dos Instrumentos da Política Urbana: Arts.
36 a 38”, In Odete Medauar; Fernando Dias Menezes de Almeida (coord.), Estatuto da Cidade..., p.
226.
251
Idem, ibidem, p. 226.
252
A propósito, o Município de São Paulo, em seu Plano Diretor Estratégico (Lei 13.430, de 13 de
setembro de 2002), atualizou o regime do RIVI, absorvendo os preceitos gerais definidos no Estatuto
da Cidade para o EIV (art. 256 e ss).
127
envolvimento no processo de aprovação, pelo Poder Público municipal, de projetos
potencialmente impactantes sobre a qualidade de vida em áreas urbanas; e 2) que o
patrimônio cultural e a paisagem urbana são elementos essenciais dessa análise de
impactos.
Com efeito, as normas gerais definidas pelo Estatuto da Cidade para o EIV são
as seguintes:
Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades
privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração
de Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) para obter as
licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento
a cargo do Poder Público municipal.
Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos
positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à
qualidade de vida da população residente na área e suas
proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes
questões:
I – adensamento populacional;
II – equipamentos urbanos comunitários;
III – uso e ocupação do solo;
IV – valorização imobiliária;
V – geração de tráfego e demanda por transporte público;
VI – ventilação e iluminação;
VII – paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
Parágrafo único. Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do
EIV, que ficarão disponíveis para consulta, no órgão competente do
Poder Público municipal, por qualquer interessado.
Art. 38. A elaboração do EIV não substitui a elaboração e a
aprovação de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), requeridas
nos termos da legislação ambiental.
128
Uma primeira consideração a ser feita quanto a esse instrumento é que ele não
é de adoção obrigatória pelos municípios, ou seja, fica a critério de cada um desses
entes, com base nas suas competências urbanísticas, reconhecê-lo ou não como
integrante de suas políticas próprias de desenvolvimento urbano local, dentre os
mecanismos que lhes são sugeridos no artigo 4° do Estatuto da Cidade 253.
Por outro lado, se um município decidir contar com esse ferramental para
auxiliar a ordenação do seu território, então deverá instituí-lo por meio de lei – e não
por mero ato da Administração Pública municipal (art. 36). Com efeito, nesse caso, se
estaria diante da criação de uma obrigação nova, a um grupo de indivíduos, cujo
cumprimento seria, inclusive, condição para a implantação e o exercício de certos
empreendimentos e atividades. Sabe-se que no âmbito das relações do Poder Público
com particulares, deve prevalecer o princípio segundo o qual “ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”254. Portanto, andou
bem o legislador federal ao exigir, no artigo 36, que a instituição do EIV como
instrumento urbanístico do Município seja feita por ato do Poder Legislativo.
Este dispositivo, no entanto, vai além, estabelecendo, também como norma
geral, que é a lei municipal que deverá definir os empreendimentos que dependerão
do EIV para obtenção de licenças e autorizações de funcionamento, construção e
ampliação. Pode-se vislumbrar in casu uma concepção mais restrita do princípio da
legalidade preconizado no artigo 5°, II da Constituição de 1988, no sentido de que os
contornos do campo de aplicação da obrigação nova (de realização de EIV) serão
estabelecidos pela lei municipal, não havendo, nesse assunto, margem para
normatividade administrativa255.
253
“Art. 4º. Para os fins desta Lei [regulação do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,
da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental], serão utilizados, entre
outros instrumentos: [...]VI – Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e Estudo Prévio de Impacto
de Vizinhança (EIV).
254
Art. 5º, II da Constituição de 1988.
255
Para uma leitura sobre a evolução das concepções de princípio da legalidade, cf. Odete Medauar, O
Direito Administrativo em Evolução, p.144-155. Para apreensão dos debates doutrinários acerca das
diversas concepções de legalidade, cf. Charles Eisenmann, “O Direito Administrativo e o Princípio da
Legalidade”, In Revista de Direito Administrativo, p. 47-70; Guido Zanobini, “L’attività
amministrativa e la legge”, In Scritti Vari di Diritto Pubblico, p. 203-217; Massimo Severo Giannini,
Diritto Amministrativo, p. 83-89; José Manuel Sérvulo Correia. Legalidade e autonomia contratual
nos contratos administrativos, p. 58-63 e 309-312; Domingo S. Sesin, Administração Pública.
129
A fim de se inibir arbitrariedades e de se garantir razoável segurança jurídica
nas relações dos particulares com o Poder Público, é importante que essa lei
municipal empregue critérios o mais objetivos possível na definição dos
empreendimentos e atividades para os quais o EIV far-se-á obrigatório256. Também,
que ela cuide para definir áreas de empreendimentos que não sejam nem muito
pequenas – a ponto de abranger hipóteses em que, na prática, o Estudo seria
desnecessário –, nem muito grandes – de modo que pudesse esvaziar o instituto257.
Nessa tarefa, deverá contemplar, no mínimo, os empreendimentos/atividades que
considere capazes de gerar impactos sobre os aspectos enumerados nos incisos do
artigo 37 do Estatuto da Cidade (adensamento populacional, equipamentos urbanos
comunitários, uso e ocupação do solo, valorização imobiliária, tráfego e demanda por
transporte público, ventilação e iluminação, paisagem urbana e patrimônio natural e
cultural). Observado isso, é possível definir, por exemplo, critérios diferentes para
áreas diferentes entre si, dentro do município, consideradas as peculiaridades de cada
uma delas.
O Estatuto da Cidade não faz distinção entre empreendimentos residenciais e
comerciais/industriais, o que dá a entender que a realização daqueles também poderá
se sujeitar à prévia apresentação de EIV, caso a lei municipal assim estabeleça. Até
porque a mera natureza residencial do empreendimento não é suficiente para excluir
hipóteses de impactos sobre a área urbana (especialmente adensamento populacional
e tráfego).
Uma vez instituído juridicamente esse mecanismo em um Município, a
Administração Pública respectiva não poderá deixar de exigi-lo dos empreendimentos
e atividades devidamente enquadrados na lei municipal como de elaboração
obrigatória, sob pena de responsabilidade do Poder Público pelos danos causados à
Atividade regulada, discricionária e técnica..., p. 1-11; e Paulo Otero, Legalidade e Administração
Pública: O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, p. 957-965.
256
Renato Cymbalista, pondera que “esses critérios podem variar conforme as características e a
infra-estrutura urbana do município, e poderão basear-se, por exemplo, no impacto de tráfego gerado,
sobrecarga de infraestrutura, adensamento populacional, sombreamento sobre imóveis vizinhos,
poluição sonora, etc”. “Estudo de Impacto de Vizinhança”, In Dicas Instituto Polis: Idéias para a
ação municipal, nº 192, ano 2001, p. 1. Disponível em: www.polis.org.br. Acesso em: 21 out. 2009.
257
Cf. Marcos Mauricio Toba, “Dos Instrumentos da Política Urbana: Arts. 36 a 38”, In Odete
Medauar; Fernando Dias Menezes de Almeida (coord.), Estatuto da Cidade..., p. 228-229.
130
vizinhança. Nesse aspecto, ressalte-se que a exigência de EIV pode incidir não
somente em relação a empreendimentos ou atividades privados, como também em
relação aos públicos.
A avaliação do EIV pelo Poder Público municipal deverá levar em conta as
peculiaridades do empreendimento/atividade (natureza, porte, efeitos), assim como as
da área considerada (caracterísicas geomorfológicas, ambientais, culturais, de infraestrutura urbana) e poderá concluir: (i) pela aprovação do empreendimento/atividade
sem restrições; (ii) pela aprovação com condições ou contrapartidas específicas; ou
ainda (iii) pela sua reprovação.
No Estatuto da Cidade, não existe qualquer referência a prazos para conclusão
dessa avaliação do EIV, mas caberá a cada Município defini-lo. Com efeito, a
estipulação desse prazo pelo Município – e, por certo, seu cumprimento efetivo por
sua Administração pública - faz-se indispensável, na medida em que o EIV impõe-se
como condição ao licenciamento de certos empreendimentos privados, não sendo
condizente com o princípio da livre iniciativa que o empreendedor fique
indefinidamente aguardando a movimentação administrativa – e assumindo os ônus
dessa espera. A essa imprescindível definição de prazo para conclusão da avaliação
do EIV, soma-se a necessidade de que aquele, em observância aos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, não seja demasiadamente longo, dado que isso
poderia desestimular investimentos no município.258
Nesse aspecto, a legislação portuguesa parece estar mais avançada. Na
intitulada Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) - que nesse país compreende
também a análise de projetos em “áreas sensíveis”, tais como em zonas de proteção
de imóveis classificados259 de interesse nacional, de interesse público ou de interesse
municipal –, é estipulado um prazo de 25 dias, contados da recepção do relatório de
consulta pública, para a comissão de avaliação proferir parecer final do sobre o
258
“A partir do momento em que o empreendedor compra o terreno, está contabilizando despesas
decorrentes da não aplicação dos recursos no mercado financeiro”. Renato Cymbalista, “Estudo de
Impacto de Vizinhança”, In Dicas Instituto Polis: Idéias para a ação municipal, nº 192, ano 2001, p.
2. Disponível em: www.polis.org.br. Acesso em: 21 out. 2009.
259
A expressão deve ser entendida no seu sentido técnico. Classificação consiste em mecanismo
jurídico de proteção do patrimônio cultural português, que em muitos aspectos se assemelha ao
instituto brasileiro do tombamento.
131
Estudo de Impacte Ambiental, assim como um prazo de 15 dias para que proferida a
Declaração de Impacte Ambiental pelo Ministro da área do meio ambiente.260
A respeito do envolvimento da comunidade no processo de avaliação de
projetos potencialmente impactantes sobre a qualidade de vida nas cidades, o artigo
37, parágrafo único do Estatuto da Cidade garantiu a publicidade dos documentos que
integram o EIV, para consulta pelos interessados. É inegável a importância desse
dispositivo, na medida em que ele estabelece como norma geral o dever de
informação adequada do teor do EIV à população, mas por outro lado também se
reconhece a timidez com que ele abordou a questão da participação da comunidade,
uma vez que ritos muito mais garantidores, como o de audiência pública e o de
colaboração da vizinhança na definição de contrapartidas, já eram usuais antes
mesmo dessa lei, em procedimentos de avaliação de impacto urbanístico então
adotados por alguns Municípios.
De qualquer forma, fica assegurado legalmente esse mínimo de envolvimento
da vizinhança, nada impedindo que as leis municipais prevejam outros modos mais
incisivos de participação da comunidade do que a mera permissão de acesso ao teor
do EIV. Isso tudo, a fim de que seja possível consolidar um mecanismo de controle
democrático sobre as interferências potencialmente nocivas à vida na cidade. Se bem
explorado, o EIV poderá render bons frutos à composição de conflitos de interesses
sociais presentes na cidade.
No entanto, é importante que essa avaliação dos impactos sobre a vizinhança
seja sempre protagonizada pelo Poder Público. Conforme lembra Renato Cymbalista,
há alguns serviços fundamentais para o funcionamento de qualquer cidade que
costumam ser mal vistos pela vizinhança - como cemitérios, penitenciárias,
rodoviárias261 -, podendo sofrer resistências de todas as regiões do município. Esses
tipos de empreendimento são potencialmente impactantes sobre as áreas em que
instalados, sendo essencial, nesses casos, que o Poder Público pondere todos os
260
Cf. Fernando Alves Correia, “A Avaliação Ambiental de Planos e Programas: Um instituto de
reforço da protecção do ambiente no direito do urbanismo”, In Revista de Legislação e de
Jurisprudência, p. 12.
261
“Estudo de Impacto de Vizinhança”, In Dicas Instituto Polis: Idéias para a ação municipal, nº
192, ano 2001, p. 2. Disponível em: www.polis.org.br. Acesso em: 21 out. 2009.
132
interesses em jogo (da vizinhança e da cidade como um todo) e os efeitos desses
empreendimentos sobre a área considerada, devendo resolver ele mesmo, considerada
a opinião da população residente, pela adoção ou não do empreendimento no local
projetado.
No que se refere à infungibilidade entre o EIA e o EIV, prevista no artigo 38
do Estatuto da Cidade, pertinente é a análise feita por Adilson Abreu Dallari acerca
desses institutos:
Talvez a criação do segundo se deva ao costume ou ao preconceito
no sentido de tomar a expressão ‘meio ambiente’ como abrangendo
apenas o ambiente natural, os recursos naturais, tais como florestas,
águas, montanhas etc. Na verdade, o meio ambiente a ser preservado
abrange tanto os bens naturais como os bens culturais. O que deve
variar, diante do caso concreto, é a forma, a metodologia, de
realização do estudo, que será sempre um Estudo de Impacto
Ambiental. 262
Com efeito, a rigor, impactos sobre a vizinhança serão sempre impactos sobre
o ambiente, este compreendendo tanto elementos naturais como construídos pelo
homem. A diferença que poderia haver entre uma e outra análise seria em termos de
abrangência, ou seja, quanto à amplitude do ambiente a ser considerado na avaliação,
podendo-se sustentar que o segundo caso via de regra assume uma extensão maior do
que o primeiro, geralmente limitado a áreas dentro do território do município. Mas
ainda assim, em ambos os casos, a natureza do objeto de análise seria a mesma, qual
seja, ambiental.
Isso é o que, conceitualmente, se poderia entender por “estudo de impacto
ambiental”263.
No
entanto,
na
prática
legislativa
brasileira,
impactos
de
262
“Instrumentos da Política Urbana”, In Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz (orgs.), Estatuto da
Cidade: Comentários à Lei federal nº 10.257/2001, p. 84-85.
263
Em sentido contrário, cf. Paulo Affonso Leme Machado: “’impacto ambiental’ é qualquer alteração
das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de
matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente afetam a saúde, a
segurança e o bem-estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as condições
estéticas e sanitárias do meio ambiente e a qualidade dos recursos ambientais”, Estudos de Direito
Ambiental, p. 59.
133
empreendimentos e atividades sobre o patrimônio cultural, por exemplo, não
costumam ser avaliados em sede de EIA. 264 Não por impertinência temática, como
visto, mas em razão da legislação ambiental ter definido toda uma estrutura
organizacional e uma metodologia voltadas exclusivamente à proteção dos aspectos
naturais do meio ambiente - daí a menção feita no artigo 38 de que o EIV não
substituirá o EIA.
Portanto, veio em boa hora a consagração do EIV como instrumento de
política urbana, à medida que se passou a contemplar a avaliação de diferentes
aspectos normalmente não enfatizados pelos órgãos ambientais em suas análises e
que, no entanto, do mesmo modo que os recursos naturais, estão presentes no
ambiente urbano e são relevantes à qualidade de vida na cidade.
Extraído da Exposição de Motivos do projeto de lei municipal que institui o
Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança no Município de Porto Alegre, apresentado
pela Câmara Municipal em 6 de abril de 2009, o trecho abaixo transcrito revela outra
razão para o interesse desta municipalidade pela adoção do EIV:
Ele é, portanto, o instrumento que pode fornecer uma visão integral
do empreendimento, superando os pareceres fragmentados das
diferentes secretarias, que acabam por desresponsabilizar o Poder
Executivo das consequências resultantes da aprovação dos
empreendimentos.265
Assim, o EIV, em seu formato, contribui também para uma apreensão global e
unificada do empreendimento ou atividade projetados e dos seus prováveis efeitos,
sem que isso signifique dispensa de sua análise técnica pelas secretarias respectivas.
264
Diversamente, o novo Código dos bens culturais e da paisagem italiano (Decreto Legislativo de 22
de janeiro de 2004, n. 42), ao tratar da Avaliação de Impacto Ambiental como medida de proteção,
prevê o seguinte: “26. Valutazione di impatto ambientale. [...] 2. Qualora dall’esame del progetto
effettuato a norma del comma 1 risulti che l’opera non è in alcun modo compatibile con le esigenze di
protezione dei beni culturali sui quali essa è destinata ad incidere, il Ministero [per i beni e le attività
culturali] si pronuncia negativamente, dandone comunicazione al Ministerio dell’ambiente e della
tutela del territorio. In tal caso, la procedura di valutazione di impatto ambientale si considera
conclusa negativamente.”
265
PROCESSO
Nº
1710/09
/
PLL
Nº
068/09.
Disponível
em:
http://200.169.19.94/processo_eletronico/017102009PLL/017102009PLL_PROJETO_84763650_125
9.pdf. Acesso em: 08 dez. 2009.
134
Seguindo-se para a análise do artigo 37, VII do Estatuto da Cidade, as
referências expressas à paisagem urbana e ao patrimônio natural e cultural nesse
dispositivo evidenciam a relação intrínseca existente entre esses elementos e a
qualidade de vida nas cidades, e confirmam a noção de que empreendimentos ou
atividades que produzam impactos sobre aqueles afetam diretamente esta.
Entende-se também que a expressão paisagem urbana – adotada pelo
legislador – comporta perfeitamente a paisagem cultural, a que já nos referimos
anteriormente neste trabalho, pois toda paisagem urbana é essencialmente cultural, no
sentido de ser um “sistema agregador de diferentes valores”266.
Sendo assim, os termos do inciso VII desse dispositivo permitem uma
compreensão adequada do patrimônio cultural urbano no seu aspecto ambiental, ou
seja, enquanto paisagem integradora e sintetizadora de valores culturais materiais e
imateriais, interagentes entre si e sujeitos a contínuas transformações, dada a essência
dinâmica das cidades.
E o instituto do EIV, na medida em que se propõe a analisar potenciais
impactos sobre a paisagem cultural, torna-se importante mecanismo de controle para
que as inevitáveis alterações da cidade - nas suas funções e utilização - ocorram com
as devidas precauções, ou seja, sem que se perca a essência dos valores culturais
presentes no ambiente urbano, referenciais à memória e à identidade dos seus
habitantes.
Conforme observa Paulo Ormindo de Azevedo,
o valor do casario de nossas cidades e bairros tombados está, ao
nosso ver, menos nas suas paredes de adobe ou pau-a-pique, que nas
relações espaciais que viabilizam formas de sociabilidade
tradicionais extremamente ricas. [...] Sem o controle do tráfego e do
266
Rafael Winter Ribeiro, Paisagem cultural e patrimônio, p. 110.
135
uso do solo, seus elementos qualificadores – chafarizes, capelas,
cruzeiros, passos da paixão e pontes – perdem o seu significado.267
O EIV, portanto, revela-se uma interessante opção de mecanismo de tutela do
patrimônio cultural brasileiro, especialmente nesses casos em que os valores culturais
que se pretende tutelar não se referem exatamente a elementos técnicos de
monumentos isolados, mas especialmente a formas de interação dos habitantes e
usuários da cidade com estes.
Isso porque, muito mais do que vedações passivas, a adoção do EIV pelos
Municípios pode oferecer, a partir da análise de cada caso, sugestões de alterações no
projeto original do empreendimento ou atividade, bem como de contrapartidas das
mais diversas ordens (tais como não isolamento de equipamentos públicos, absorção
de tráfego, etc.) de modo a garantir-se o necessário resguardo desses valores culturais
referenciais à população.
Nesse contexto, é indiscutível a importância que assumem os habitantes locais,
como demonstra Ulpiano Bezerra de Meneses:
[...] a cidade culturalmente qualificada é boa para ser conhecida
(pelo habitante, pelo turista, pelo que tem aí negócios a tratar, pelo
técnico, etc.), boa para ser contemplada, esteticamente fruída,
analisada, apropriada pela memória, consumida afetiva e
identitariamente, mas também, e acima de tudo, é boa para ser
praticada, na plenitude de seu potencial. Em outras palavras, para ser
culturalmente qualificada como cidade, ela precisa ser boa como
cidade, precisa de condições de viabilidade econômica, infraestrutura, políticas adequadas de habitação, transporte, saúde,
educação, etc.
Nessa ordem de idéias, o principal sujeito de cultura é o habitante
local. A palavra ‘habitante’ vem do latim habeo, que quer dizer ‘ter’,
manter uma relação constante com algo; o sufixo ‘it’ (habito)
aprofunda e reitera esta relação. Hábito, habitar, portanto, expressam
267
“Comentário 4: A cidade como obra aberta”. In Victor Hugo Mori et alli (orgs.) Patrimônio:
Atualizando o debate, p. 65. Cf. também Georges Louis Hage Humbert, “O estudo do impacto de
vizinhança como instrumento de proteção ao meio ambiente cultural”, In Forum de Direito Urbano e
Ambiental, p. 3325-3326.
136
um grau superior e constante de apropriação. Essa relação contínua,
permanente, cotidiana, demorada e que o tempo adensa é que cria as
condições mais favoráveis para a fruição do patrimônio ambiental
urbano.268
Daí a importância da colaboração da comunidade local - por meio de
audiências públicas ou por outros meios - no processo de avaliação do EIV pelo
Poder Público municipal: primeiramente porque a ela é que os valores culturais da
cidade servem primordialmente como referência e, em segundo lugar, porque é ela
quem melhor contribuirá para a defesa e conservação desses valores.
E porquanto a paisagem urbana e o patrimônio cultural constituem elementos
essenciais de análise do EIV, não parece demasiado concluir que, nos processos de
avaliação de EIVs, os órgãos ou entidades municipais de preservação - ou, na
ausência destes, as secretarias de cultura - deverão ser ouvidos, assim como
convidados a participar da formulação de condições ou contrapartidas aos
empreendimentos e atividades relativamente impactantes sobre o patrimônio cultural
urbano.
Enfim, do quanto se apresentou até aqui, verifica-se que o EIV constitui
interessante mecanismo de controle da expansão de áreas urbanas, servindo inclusive
à tutela do patrimônio cultural urbano. Tem o mérito de garantir aos habitantes locais
– estes essenciais à conservação e perpetuação dos valores culturais presentes na
cidade –, no mínimo, o acesso à integralidade dos documentos que compõem o EIV.
É, no entanto, um mecanismo a priori limitado ao âmbito e à competência dos
Municípios, como típico instrumento de suas políticas urbanas (art. 37 do Estatuto da
Cidade), ao passo que a tutela do patrimônio cultural brasileiro cabe conjuntamente a
todos os entes federados.
É exatamente em razão do tratamento dispensado ao patrimônio cultural pela
Constituição de 1988 (art. 216) - atribuindo-lhe um caráter de legado brasileiro às
futuras gerações - e do poder-dever constitucional dos Poderes Públicos, nos três
268
“A cidade como bem cultural...”, In Victor Hugo Mori et alli (orgs.), Patrimônio: Atualizando o
debate, p. 39.
137
níveis da Federação, de mútua cooperação na gestão do patrimônio cultural brasileiro,
que não seria exagerado defender que União e Estados-membros respectivos, por
meio de seus órgãos de preservação, deverão, sempre que necessário, assistir os
Municípios nas avaliações de EIVs que envolvam potenciais impactos sobre o
patrimônio cultural urbano, seja essa colaboração técnica - por meio de pareceres, de
disponibilização de pessoal especializado para averiguações e sugestões de alterações
ou contrapartidas - ou financeira – por meio de repasse de recursos.
E não há que se falar que, neste caso, o patrimônio seria assunto de interesse
local, portanto de responsabilidade exclusiva do Município, pois conforme já exposto
neste trabalho, os valores referenciais à memória e à identidade dos diferentes grupos
que formam a sociedade brasileira são reconhecidos constitucionalmente como
interessantes à Federação como um todo, posto que relevantes à cultura e ao bemestar nacional, conforme indicam o artigo 23, III, IV e parágrafo único, assim como o
artigo 216 da Constituição de 1988.
4.4.
Transferência do direito de construir
Outro instituto previsto no Estatuto da Cidade como instrumento de política
urbana disponível aos municípios é a transferência do direito de construir. Esse
instituto interessa sobremaneira o tema da preservação do patrimônio cultural urbano,
na medida em que ele pode servir para garantir a não-edificação em imóveis urbanos
dotados de interesse cultural, muitas vezes situados em áreas de crescente valorização
imobiliária e verticalização.
Nos termos do artigo 35 dessa lei:
Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o
proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em
outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de
construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele
138
decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para
fins de:
I – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse
histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural;
III – servir a programas de regularização fundiária, urbanização de
áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse
social.
§1°. A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que
doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte dele, para os fins
previstos nos incisos I a III do caput.
§2°. A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições
relativas à aplicação da transferência do direito de construir.
A transferência do direito de construir, assim como a outorga onerosa do
direito de construir, prevista nos artigos 28, 30 e 31 do Estatuto da Cidade, baseiamse na concepção de que o direito de propriedade compreende uma parcela do direito
de construir, até um limite objetivamente estabelecido pela lei, para além do qual se
faz necessária uma outorga específica do Poder Público para seu exercício269.
Essa concepção adotada hoje pela lei federal tem como marco histórico, no
Brasil, os amplos debates doutrinários ocorridos notadamente na década de 1970,
envolvendo o instituto do solo criado e sua constitucionalidade como instrumento de
intervenção urbanística, ocasião em que também se discutiu a transferência do direito
de construir270.
269
Para Márcia Walquiria Batista dos Santos, “mesmo o direito de construir sendo inerente ao direito
de propriedade, assim o é com reservas, na medida em que o Estado assumiu uma postura não mais
indiferente ao seu papel ordenador e garantidor (pelo menos nas questões urbanísticas)”.
“Instrumentos da Política Urbana (arts. 28 a 35)”, In Odete Medauar; Fernando Dias Menezes de
Almeida (coord.), Estatuto da Cidade..., p. 209. Na doutrina francesa, em defesa de que o espaço
privado deveria ser limitado em volume de construção, cf. Jean-Paul Gilli, Redéfinir le droit de
propriété, p. 101-102.
270
Para conhecimento do teor dessas discussões, cf. O Solo Criado/Carta de Embu, CEPAM –
Fundação Prefeito Faria Lima, 1977, p. 43-123. Cf. também Eros Grau, Direito Urbano, 54-84. Para
uma síntese das principais ideias desenvolvidas em países europeus sobre o direito de construir e sua
relação com o direito de propriedade, cf. Fernando Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio
da legalidade, p. 607 e ss.
139
Ela é intermediária de outras duas concepções também defendidas na doutrina:
uma, mais civilista, que considera que o direito de propriedade compreende o
exercício do direito de construir em sua plenitude, como decorrência direta dos
atributos de gozo e fruição daquele, sobretudo em se tratando de propriedade urbana,
cuja destinação natural seria a edificação271. E outra, mais publicista, que entende o
direito de construir como direito autônomo, de titularidade coletiva, portanto externo
ao domínio da coisa e somente exercido pelo particular mediante outorga do Poder
Público.272
Uma vez concebendo que parte do direito de construir vem inserida no direito
de propriedade, o Estatuto da Cidade estabeleceu, então, que os contornos daquele
deverão ser definidos pelo plano diretor - enquanto instrumento norteador de toda a
política urbana do município –, a partir da fixação de um coeficiente de
aproveitamento básico, o qual poderá ser “único para toda a zona urbana ou
diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana” (artigo 28, parágrafo 2°).
Por coeficiente de aproveitamento, entendeu a lei federal “a relação entre a área
edificável e a área do terreno” (artigo 28, parágrafo 1°).
Portanto, de acordo com a lei geral, o coeficiente de aproveitamente básico é o
índice definidor da porção de direito de construir que constitui direito subjetivo do
titular do domínio. A partir da perfeita apreensão desse direito subjetivo do
proprietário é que se torna possível, nas hipóteses admitidas em lei, a aplicação do
instituto da transferência do direito de construir ora em análise.
Conforme previsto no artigo 35, nos casos de imóveis urbanos considerados
necessários a determinadas finalidades públicas, a lei municipal poderá autorizar que
seus respectivos proprietários alienem ou exerçam em outro local da cidade a parcela
de direito de construir a que ordinariamente fariam jus, não fosse a afetação do
imóvel. O mesmo se aplica aos proprietários que doarem seus imóveis ao poder
público municipal para realização desses fins (artigo 35, parágrafo 1°).
271
Cf. Yara Darcy Police Monteiro e Egle Monteiro da Silveira, “Transferência do Direito de
Construir”, In Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz (coord.), Estatuto da Cidade..., p. 297.
272
Cf. Floriano de Azevedo Marques Neto, “Outorga onerosa do direito de construir (solo criado)”, In
Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz (coord.), Estatuto da Cidade..., p. 224-228.
140
Yara Darcy Police Monteiro e Egle Monteiro da Silveira enumeram como
elementos essenciais desse instituto:
1) doação ou afetação de determinado imóvel urbano a uma das
finalidades públicas previstas nos incisos I a III do art. 35;
2) a vinculação do imóvel ao atendimento dos fins públicos
enunciados deverá ser de proporções a impedir, ao menos
parcialmente, sua utilização funcional, ou seja, a possibilidade de
edificação segundo os índices e potenciais de construção previstos
no plano diretor;
3) a autorização, veiculada por lei municipal, ao proprietário que
teve seu direito de construir amesquinhado, ou que tenha doado seu
imóvel, para exercer em outro local o correspondente direito de
construir previsto no plano diretor, para efeitos de reparação ou
compensação. Tal compensação poderá ser concretizada também por
meio de alienação, mediante escritura pública, do direito de
construir;
4) o plano diretor, devidamente aprovado pela Câmara de
Vereadores, é condição para que o Município possa contemplar a
transferência do direito de construir na lei local, posto que do plano
defluem os parâmetros conformadores desse instrumento
urbanístico.273
Dessa análise procedida pelas autoras, sublinhe-se o caráter compensatório do
instituto em relação ao proprietário, ou seja, restitutivo de um reconhecido direito
subjetivo à edificação, dele subtraído em razão de interesse público274. Ressalte-se
também a exigência legal de plano diretor como requisito para a adoção do instituto
pelo Poder Público municipal, a sugerir uma preocupação do legislador federal de que
os municípios tenham seu território minimamente organizado, com definição das
zonas da cidade aptas a comportar esses acréscimos construtivos.
273
(Grifamos). “Transferência do Direito de Construir”, In Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz
(coord.), Estatuto da Cidade..., p. 291-292.
274
Jean-Paul Gilli propõe a indenização em todos os casos em que as regras jurídicas urbanísticas
proibam ou interditem o proprietário de utilizar o seu espaço privado, impondo-lhe um gravame
anormal. Redéfinir le droit de propriété, p. 108 e ss.
141
À parte a redundância do inciso II do artigo 35, posto que a mera referência
aos gêneros “social e cultural” bastariam para compreender as espécies “histórico”,
“ambiental” e “paisagístico”, o legislador federal, ao contemplar essas hipóteses
como autorizadoras de transferência do direito de construir, consagrou no
ordenamento jurídico pátrio um novo mecanismo de preservação do patrimônio
cultural, dando fôlego aos municípios para também o adotarem em reforço ao
instituto do tombamento.
De efeito, em benefício do interesse público de preservação do patrimônio
cultural urbano, a transferência do direito de construir confere garantia jurídica de
conservação das dimensões originais de imóveis tombados localizados em áreas
urbanas cujos coeficientes de aproveitamento básico admitiriam edificar em
dimensões superiores às daqueles. Como contrapartida, essa medida possibilita que os
proprietários desses imóveis tombados aproveitem economicamente - seja em outras
áreas, seja alienando - o direito de construir remanescente dos seus domínios, isto é,
aquela parcela de direito de edificar a qual ele ficou impossibilitado de exercer em
seu imóvel em razão do gravame imposto pelo tombamento.
Há de se ter em mente, no entanto, que esse modelo teórico alcançará os
objetivos de preservação, na prática, na medida em que a ideia de aquisição de
potenciais construtivos se mantiver sempre atraente para o mercado. É certo que uma
série de fatores, das mais diversas ordens, podem influenciar o interesse do mercado
por esses potenciais. Mas há uma condição mínima, inafastável, para o sucesso da
medida, consistente na garantia de que as normas urbanísticas definidoras dos
coeficientes de aproveitamento não sejam alteradas no futuro. Como reforça Eros
Grau:
[...] a adoção do instituto da transferência do direito de construir
apenas é viável quando não exista a possibilidade da mudança da
legislação que fixa o coeficiente de aproveitamento. Se houver essa
possibilidade, provavelmente, ninguém se interessará em adquirir
direitos de criar solo a outros proprietários de imóvel. Por esta razão
é que, sistematicamente, a idéia da transferência do direito de
construir vem sendo considerada atrelada à noção de solo criado que,
por sua vez, implica a adoção de um coeficiente único, inalterável.
142
Diz-se que a transferência do direito de construir agiria “em reforço” ao
tombamento, tendo em vista o caráter complementar daquela em relação a outras
medidas preservacionistas.275
Nesse sentido, ressalte-se, em primeiro lugar, que a lei federal exige, como
condição própria da aplicação da transferência do direito de construir, que o imóvel
tenha sido reconhecido como de interesse público276. Daí já ser possível concluir que
tal imóvel deve submeter-se previamente ao menos a algum tipo de identificação
oficial como detentor de valor cultural.
Em segundo lugar, essa transferência, enquanto medida de preservação,
limita-se a impedir que imóvel de valor cultural seja destruído ou tenha suas
dimensões originais descaracterizadas pelo proprietário para aproveitamento integral
do potencial construtivo admitido para a área urbana. De modo que quaisquer outras
ações específicas, igualmente necessárias à completa satisfação do interesse público
de preservação – como por exemplo, as que impliquem encargo extraordinário de
obrigações positivas para o proprietário -, dependerão da adoção concomitante de
outros mecanismos.
A lei federal não ofereceu maiores detalhamentos quanto ao modo de aplicação
do instituto, reconhecendo a autonomia dos municípios para legislarem a esse
respeito, conforme as peculiaridades de suas respectivas localidades (Artigo 35,
parágrafo 2°).
No Brasil, o município de Curitiba assumiu posição pioneira nessa matéria ao
instituir, já no início da década de 1980 – portanto, muito antes do Estatuto da Cidade
-, a transferência do potencial construtivo para o seu território. Então regido pela Lei
municipal n° 6.337/82, este instrumento foi previsto como mecanismo para proteção
275
John Costonis, por ocasião em que defendia esse mecanismo no Plano de Chicago: “Nor is the Plan
offered as a substitute for conventional non-compensatory preservation programs. On the contrary,
most cities will probably prefer to employ the Plan as a complement to these programs, utilizing it
only when constitutional or practical obstacles demand recourse to a compensatory alternative.”
Space Adrift: Saving urban landmarks through the Chicago Plan, p. xvii.
276
“Art. 35. Lei municipal [...] poderá autorizar [...] II – [...] quando o imóvel for considerado de
interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural”.
143
de imóveis históricos classificados oficialmente como Unidades de Interesse de
Preservação (UIP).
A partir de então, a produção de leis municipais contemplando esse instituto
intensificou-se - não obstante ainda prevalecesse, nesse tempo, na doutrina e na
jurisprudência, o entendimento de que leis com esse conteúdo seriam de competência
da União, alegadamente em razão de tratar-se de direito de propriedade, matéria afeta
ao Direito Civil (artigo 22, I da Constituição Federal). Cite-se como exemplo os casos
de Florianópolis (Lei nº 3.338/89); Belém (Plano Diretor de 1993); Belo Horizonte
(Plano Diretor de 1996); Campinas (Lei complementar nº 04/96) e Porto Alegre (Lei
complementar nº 435/99).
Nos Estados Unidos, no início dos anos 70, quando então se elaboravam os
termos do Plano Urbanístico de Chicago, um estudo bastante detalhado sobre o tema
foi desenvolvido por John J. Costonis, enfatizando a utilidade desse instituto –
“transfer of development rights” (TDR) - especialmente para os fins de preservação
dos monumentos inseridos em áreas urbanas adensadas da cidade e extremamente
valorizadas pelo mercado imobiliário.277
Esse estudo procurava demonstrar que o mecanismo do TDR era capaz de
assegurar a preservação desses monumentos com um custo mínimo para os seus
proprietários, bem como para a cidade. Como ponto de partida para as propostas
depois apresentadas, adotou-se que:
1) Os monumentos urbanos possuem tipicamente dimensões muito
menores que as admitidas pelo zoneamento vigente para a área e mesmo
que as edificações ordinárias ali presentes;
2) A maior parte desses monumentos pode ser gerida de maneira lucrativa,
sendo que a vulnerabilidade destes no mercado imobiliário decorre, na
verdade, da desproporção que há entre o valor de seus terrenos e o
reduzido espaço que eles ocupam nestes;
277
John J. Costonis. Space Adrift: Saving urban landmarks through the Chicago Plan, University of
Illinois Press, 1974, 207p.
144
3) Esses monumentos encontram-se com frequência concentrados em uma
ou mais áreas razoavelmente adensadas da cidade, geralmente no seu
centro.
4) serviços públicos e facilidades são tipicamente mais abundantes em
áreas centrais, permitindo que essas áreas absorvam grande número de
pessoas com maior eficiência que em outras áreas da cidade.278
A partir daí, o autor formulou o programa de TDR da seguinte maneira:279
Preliminarmente, deveria haver a demarcação oficial de uma ou mais áreas
dentro da cidade onde pudessem ser exercidos os direitos transferidos (“TDR
districts”). Essas áreas poderiam coincidir com aquela onde localizados os
monumentos ou ser outras, onde existisse demanda de mercado por novas
construções.
Quando da inventariação do monumento, ou a qualquer tempo depois desta, o
proprietário seria legitimado a transferir seus direitos de construir não utilizados para
outros lotes dentro dos “TDR districts”, além de ser contemplado com a redução do
imposto predial proporcional ao decréscimo que se verificasse no valor da
propriedade em razão da limitação de construir.
Em contrapartida, incidiria sobre esses imóveis uma “preservation restriction”
que proibiria seus proprietários presentes e futuros de voltar a construir naqueles,
bem como os obrigaria a mantê-los em consonância com as boas práticas de gestão de
edifícios. Essas medidas, para o autor, reduziriam interesses especulativos nos
terrenos desses monumentos urbanos.
A adesão a esse programa de TDR pelos proprietários, de todo modo, seria
facultativa e a recusa por parte destes implicaria a desapropriação do imóvel. Nota-se
aqui o reconhecimento de que a preservação de monumentos urbanos nas áreas
adensadas da cidade de Chicago constituiria, invariavelmente, um gravame sobre o
278
Idem, Ibidem, synopsis, p. 1.
279
Idem, Ibidem, synopsis, p. 1-2.
145
direito de propriedade, o qual deveria ser devidamente compensado, fosse pelo
mecanismo do TDR, fosse pela desapropriação.
As despesas com a aquisição desses imóveis desapropriados, assim como
outras necessárias à operacionalização do programa seriam pagas por um banco
(“development rights bank”), administrado pelas autoridades públicas, basicamente
com as receitas provenientes da venda dos direitos de construir de monumentos
públicos e desapropriados, e dos direitos de construir de monumentos privados,
doados por seus proprietários.
Enfim, a importância desse estudo desenvolvido nos Estados Unidos, no bojo
das discussões sobre o Plano de Chicago, em 1973, revela-se na iniciativa de se
estruturar todo um programa de sustentabilidade dos monumentos históricos situados
em áreas valorizadas da cidade. Visando a conservá-los integrados a esta, adotou-se
como primado básico desse sistema a necessidade de que esses monumentos
mantivessem seus usos privados, servindo às necessidades comerciais da cidade, em
detrimento de eventuais usos que acabassem por comprometer sua verdadeira fruição
pelos habitantes desta.
4.5.
Os planos urbanísticos
Sabe-se que a preservação do patrimônio cultural urbano visa a garantir às
presentes e futuras gerações de indivíduos o pleno gozo dos valores culturais
materiais e imateriais contidos no ambiente citadino e referenciais às suas identidades
e memórias. E que o Estado, ao assim proceder, busca proporcionar a estes
indivíduos, em última análise, o alcance de níveis elevados de bem-estar e de
qualidade de vida.
Do mesmo modo, é certo que toda política de desenvolvimento urbano traduz
um projeto estatal de racionalização urbana que tem por objetivo “ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes” (artigo 182 da Constituição Federal de 1988).
146
Assim é que, tendo em vista esses objetivos comuns, a tutela estatal dos bens
culturais presentes na cidade deverá ser conduzida de forma planejada, no mesmo
contexto em que definidas as normas e ações de ordenação do território 280.
O planejamento, genericamente considerado, consiste em “um processo
técnico instrumentado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos
previamente estabelecidos”281. Segundo o ordenamento pátrio, a adoção do
planejamento para fins de desenvolvimento nacional não é mera faculdade conferida
ao Poder Público, mas verdadeira imposição jurídica, fundamentada nos artigos 21,
IX (“Compete à União [...] elaborar e executar planos nacionais e regionais de
ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social”); 174, caput e §1º
(“Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na
forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento [...]” e “a lei
estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional
equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de
desenvolvimento”); 30, VIII (“Compete aos Municípios: [...] promover, no que
couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso,
do parcelamento e da ocupação do solo urbano”) e 182, §1º da Constituição Federal
(“O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal [...] é o instrumento básico da
política de desenvolvimento e de expansão urbana”).
Portanto, o processo de planejamento constitui mecanismo jurídico no qual
deverão necessariamente estar pautadas as ações da Administração Pública brasileira
para a realização de transformações sociais e econômicas positivas sobre a realidade
brasileira. Na ordem urbanística, por exemplo, o planejamento é pressuposto de
qualquer ação do Poder Público.
Alguns dos dispositivos apontados acima, somados ao artigo 48, IV da
Constituição de 1988 (que atribui ao Congresso Nacional a incumbência de dispor
280
Flavio Lopes reconhece, nesse mesmo sentido, que: “a salvaguarda das cidades e bairros históricos deve,
para ser eficaz, integrar-se numa política coerente de desenvolvimento econômico e social e ser tomada em
consideração em todos os níveis do planeamento territorial e do urbanismo”. “Evolução do pensamento
contemporâneo através da leitura de normas internacionais”, In Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (orgs.)
Património arquitectónico e arqueológico: Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais, p. 31.
281
(grifo do autor). José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 95.
147
sobre planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento),
também conferem expressamente aos planos - instrumentos desse processo de
planejamento - a natureza de lei. Essa determinação específica do Direito brasileiro de que os planos sejam aprovados em lei, assumindo, portanto, uma dimensão jurídica
– serve às necessidades de conformação e limitação do exercício de direitos
individuais dos administrados, com vistas à consecução dos objetivos públicos de
desenvolvimento e bem-estar previamente definidos.
No caso especial dos planos urbanísticos, segundo destaca José Afonso da
Silva, estes “importam inovação de grande profundidade no ordenamento jurídico,
[...] impondo obrigações e constrangimentos e gerando direitos que, no sistema
brasileiro, somente se compreendem mediante lei”282.
Por sua vez, o processo de planejamento urbanístico, na medida em que se
consubstancia em planos devidamente instituídos na ordem jurídica, não se resume
mais a um simples fenômeno técnico, mas a um verdadeiro processo coeso e
dinâmico de criação de normas jurídicas, composto por uma fase preparatória –
relativa a planos gerais normativos – e outra vinculante – referente a planos de
atuação concreta, de natureza executiva.283 De modo que as leis que aprovam os
planos urbanísticos contém, em si, todo um conjunto articulado de diretrizes
normativas e de regras concretas dotadas de eficácia jurídica e capazes de transformar
e inovar a situação jurídica até então existente.284
É pacífico que a experiência brasileira em planejamento urbanístico ainda não
surtiu efeitos satisfatórios.285 No âmbito dos Municípios, poucos foram os que
estabeleceram, na prática, um processo de planejamento permanente, não obstante
sempre se tenha atribuído competência a esses entes para elaborar e executar planos
urbanísticos. Essa descontinuidade nos planejamentos de âmbito municipal deve-se a
282
Idem, Ibidem, p. 98.
283
(grifos do autor). Op. Cit, p. 95.
284
Idem, Ibidem, p. 98.
285
José Afonso da Silva, op. Cit., p. 101. Para Flávio Villaça, “Exceção feita ao zoneamento [...], o
planejamento urbano no Brasil tem sido fundamentalmente discurso”. Em outro trecho: “O planejamento
urbano [...] não tem sido no Brasil [...] uma atividade orientadora ou guia da ação do Estado, no nível local,
metropolitano ou em qualquer outro”. “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”,
In Csaba Déak; Sueli Ramos Schiffer (orgs.), O processo de urbanização no Brasil, p. 222-223.
148
uma série de fatores, mas especialmente à carência de recursos técnicos, financeiros e
humanos, além de, como avalia José Afonso da Silva, “certo temor do Prefeito e da
Câmara de que o processo de planejamento substitua sua capacidade de decisão
política e de comando administrativo”286.
Ao mesmo tempo, já se comentou neste trabalho que o planejamento
urbanístico local, mesmo que permanente, seria insuficiente para resolver problemas
urbanos contemporâneos que muitas vezes transcendem os limites municipais287.
Nesse contexto, foi ganhando forças a preocupação em institucionalizar um
sistema de planejamento urbanístico estrutural voltado à realização de uma política
urbana global, cujo objeto compreenderia tanto o desenvolvimento adequado da rede
urbana - tomada nos níveis nacional, regional e estadual (planejamento interurbano)-,
quanto o desenvolvimento do território urbano municipal (planejamento intraurbano)288.
Esse sistema de planejamento urbanístico estrutural, já preconizado pela
Constituição de 1988, pressupõe a construção hierárquica de planos de ordenação do
território com amplitudes e enfoques diversos, os quais seguiriam basicamente o
esquema abaixo, sugerido por José Afonso da Silva289:
a) Planos urbanísticos nacionais, macrorregionais e setoriais, estabelecidos
pela União e voltados a, respectivamente: definir diretrizes e objetivos
gerais de desenvolvimento da rede urbana; coordenar o desenvolvimento
das regiões geoeconômicas do país; e ordenar especialmente o território
nacional ou regional;
b) Planos urbanísticos gerais e setoriais, elaborados pelos Estados federados
e tendo por escopo, respectivamente: a ordenação da rede urbana estadual,
respeitadas as diretrizes gerais federais; e a ordenação especial do território
estadual; e
286
Op. Cit., p. 101.
287
Cf. item 3.2.
288
José Afonso da Silva, Op. Cit., p. 101.
289
Op. Cit., p. 106.
149
c) Planos
urbanísticos
microrregionais,
gerais,
parciais
e
especiais,
elaborados pelos Municípios, consistentes em, nesta ordem: planos de
coordenação de regiões administrativas; plano diretor; zoneamento,
alinhamento, etc.; e planos de renovação urbana, de distritos industriais, etc.
O Estatuto da Cidade, preenchendo uma condição de executoriedade das
normas constitucionais atinentes à política urbana - contidas nos artigos 182 e 183
Constituição Federal de 1988 -, trouxe em seu texto as diretrizes e os objetivos gerais
da política nacional de desenvolvimento urbano, regulando o uso da propriedade
urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar dos cidadãos e do
equilíbrio do meio ambiente. Essa lei indicou como instrumentos dessa política,
dentre outros: os planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e
de desenvolvimento econômico e social; o plano diretor; o zoneamento; os planos,
programas e projetos setoriais; e os planos de desenvolvimento econômico e social
(art. 4º, I e III, a, c, g e h).
Via de regra, é no nível municipal que a função urbanística é exercida mais
concretamente, ou seja, que são mais frequentes os planos de natureza executiva, por
decorrência direta da competência constitucional exclusiva dos Municípios para
executar a política urbana (artigo 182), bem como para tratar de assuntos de interesse
predominantemente local (artigo 30, I).
No entanto, em algumas matérias especiais, a atuação urbanística da União e
dos Estados também se revela mais concretamente, por força da competência
constitucional comum conferida a estes entes e aos Municípios para tanto. É o caso
dos planos urbanísticos setoriais de defesa do patrimônio cultural, passíveis de serem
estabelecidos nos âmbitos nacional, estadual e local.
Assim, em matéria de preservação do patrimônio cultural, é dever
constitucional da União planejar o desenvolvimento da rede urbana nacional em
função de uma política da defesa do patrimônio cultural (artigos 21, IX e 24, I, VII e
VIII e §1º).
Aos Estados impõe-se definir planos especiais de ordenação do seu território
destinados à organização e delimitação de áreas de interesse público e que demandam
150
limitações ao exercício do direito de propriedade, com vistas à proteção do
patrimônio histórico, paisagístico, artístico, arqueológico (artigo 24, I, VII e VIII e
§2º). Nessa tarefa, o Estado deverá observar as diretrizes gerais fixadas pela União no
plano nacional setorial relativo à matéria.
Os Municípios, por sua vez, preservam suas competências privativas para
promover o adequado ordenamento de seu território (artigo 30, VIII), assim como
para elaborar e implementar seu plano diretor (artigo 182), mas deverão conformar
essas suas ações aos planos setoriais nacional e estadual de tutela do patrimônio
cultural eventualmente definidos e a eles aplicáveis (artigo 30, IX) 290.
Ocorre que até o presente momento, não se verifica no Direito positivo
brasileiro um plano urbanístico federal setorial nessa matéria de preservação do
patrimônio cultural. Tampouco são comuns planos setoriais sobre esse tema no
âmbito legislativo estadual, mesmo sabendo-se que algumas dificuldades verificadas
na prática estatal de defesa do patrimônio cultural urbano poderiam encontrar
soluções nessas ações urbanísticas planificadoras, caso elas fossem implementadas.
Retomando a questão do tombamento estadual de bairros291, os possíveis
impasses entre esta medida preservacionista e as intenções municipais de renovação
urbana devem-se, também em grande parte, à ausência de um plano estadual setorial
para essa matéria que preveja claramente as áreas sujeitas a proteção especial, os
prazos de vigência desta proteção – após o que se discutiriam novos planos para essas
áreas -, as metas a serem alcançadas até o final dessts prazos, os recursos
eventualmente disponíveis para alcançar os fins colimados, etc.
Outro exemplo é o dos sítios históricos brasileiros declarados Patrimônio da
Humanidade pela UNESCO. Eles carecem de um plano federal especial – devidamente
aprovado por lei – que defina uma política consistente e de longo prazo para conservação
desse Patrimônio. Política esta que garanta o aporte continuado de recursos para essas
áreas, assim como a compatibilização da gestão desse Patrimônio, guardando-se, em todos
os casos, o equilíbrio entre fluxos turísticos e serviços culturais oferecidos. Um plano
290
José Afonso da Silva, op. Cit., p. 107
291
Cf. item 4.2. supra.
151
como este contribuiria para uma exploração adequada do turismo em nível nacional, sem
desconsideração das necessidades de bem-estar e qualidade de vida dos habitantes dessas
localidades292.
No nível municipal, os planos urbanísticos que mais têm aproveitamento aos fins da
preservação são o plano diretor, o plano parcial do zoneamento, e o plano setorial de
preservação de áreas de interesse cultural (artigo 4º, III, g).
O plano diretor, previsto nos artigos 4º, III, a e 39 a 42 da Lei 10.257/01,
desempenha relevante tarefa na ordenação geral do território da cidade, constituindo o
intrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Esse plano, que
deverá ser aprovado pela Câmara Municipal, visa a garantir o pleno exercício das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, com vistas à satisfação das necessidades de
bem-estar e qualidade de vida dos seus habitantes.
O artigo 41, IV da Lei 10.257/01 prevê a obrigatoriedade da adoção do plano
diretor para cidades integrantes de áreas de especial interesse turístico. As áreas de
especial interesse turístico foram criadas pela Lei federal nº 6.513/77 e nesta
definidas como “trechos contínuos do território nacional, inclusive suas águas
territoriais, a serem preservados e valorizados no sentido cultural e natural, e
destinados à realização de planos e projetos de desenvolvimento turístico” (artigo 3º).
Vale alertar, todavia, para a inconstitucionalidade daquela norma legal contida
no artigo 41, IV da Lei 10.257/01, eis que ela cria nova hipótese de obrigatoriedade
de elaboração do plano diretor pelos Municípios, além da prevista no parágrafo 1º do
artigo 182 da Constituição Federal (que o exige somente dos Municípios com mais de
vinte mil habitantes).293 Assim, essa norma legal estaria violando o princípio da
autonomia dos Municípios, no que se refere àqueles com vinte mil habitantes ou
menos, os quais não foram obrigados pela Constituição a adotar planos diretores.
Nesses casos, portanto, mesmo envolvendo áreas de especial interesse turístico, a
292
Nessa linha foi criada, na Itália, a Lei de 20 de fevereiro de 2006, n. 77, que dispõe sobre medidas
especiais de tutela e fruição dos sítios italianos de interesse cultural, paisagístico e ambiental, inseridos na
Lista do Patrimônio Mundial, submetidos à tutela da UNESCO.
293
Fernando Dias Menezes de Almeida. “Dos Instrumentos da Política Urbana”. In MEDAUAR, Odete;
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de (coord.). Estatuto da Cidade: Lei 10.257, de 10.07.2001,
comentários. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 62, nota 19.
152
decisão acerca da adoção ou não de plano diretor competirá a cada um destes
pequenos Municípios.294
De qualquer modo, quanto adotados planos diretores nas cidades onde
exisitentes áreas de especial interesse turístico, eles deverão demonstrar-se
compatíveis (ou compatibilizados) com o plano urbanístico setorial desenhado pela
União para essas áreas – aqui vistas, cada uma delas, como um único e contínuo
tecido urbano. Deverão ainda prever os meios adequados à exploração da vocação
turística dessas áreas – consideradas as especificidades locais – com o melhor
proveito para os seus habitantes (maior oferta de mão de obra, etc). Nota-se como a
atividade planejadora, nesses casos, é ainda mais relevante.
É de se lembrar que o plano diretor também constitui mecanismo indispensável
- uma espécie de ato-condição295 - para a adoção, pelos Municípios, do instrumento
urbanístico da transferência do direito de construir, já apontado neste Capítulo como
alternativa interessante à tutela estatal do patrimônio cultural no ambiente urbano
(artigo 35 da Lei 10.257/01).
O zoneamento, por sua vez, é típico plano urbanístico parcial que define usos
aos terrenos da cidade296. Poderá ser utilizado pelo Poder Público municipal para a
finalidade específica de conservação de áreas de especial relevância cultural, sendo
que, neste caso, a lei municipal que o instituir deverá identificar essas áreas, a fim de
que nelas se apliquem as normas especiais garantidoras da tutela. Ao proceder a essa
identificação, o zoneamento também age como instrumento de promoção, ou seja, de
formação desse patrimônio.
294
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 826/9, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional
o caput artigo 195 da Constituição do Estado do Amapá, que estabelecia que “o plano diretor, instrumento
básico da política de desenvolvimento econômico e social e de expansão urbana, aprovado pela Câmara
Municipal, é obrigatório para os Municípios com mais de cinco mil habitantes”. Entendeu-se, nessa ocasião,
semelhantemente ao quanto exposto acima no caso dos municípios que possuem áreas de especial interesse
turístico em seu território, ou seja, que a norma constitucional estadual em questão “violou o princípio da
autonomia dos municípios com mais de cinco mil e até vinte mil habitantes”. Relator Ministro Sydney
Sanches, v.u., j. 17 set. 1998.
295
Cf. Jacintho Arruda Câmara, “Plano Diretor”, In Adilson Abreu Dallari; Sérgio Ferraz (coord.), Estatuto
da Cidade..., p. 323-324.
296
Cf. Fernando Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da legalidade, p. 37.
153
Essa tutela oferecida pelo zoneamento implica certo grau de limitação geral e
abstrata ao exercício do direito de propriedade por todos os proprietários de imóveis
que se encontrem em uma mesma área especial de proteção na cidade. O zoneamento
definirá, assim, o conteúdo do direito de propriedade nessas localidades, com vistas a
conformá-lo aos anseios sociais de preservação de valores culturais297. Contudo, não
será por meio deste instituto que o poder público poderá exigir desses proprietários
prestações positivas voltadas à preservação de bens culturais298. De efeito, as
principais ações compreendidas nos planos de zoneamento são as seguintes:
a) delimitação das áreas e categorização dos tipos de uso;
b) fixação de dimensões mínimas dos lotes;
c) fixação dos coeficientes de edificação admitidos em cada área;
d) fixação das taxas de ocupação das distintas áreas de uso;
e) fixação de recuos fronteiros, laterais e de fundos.299
O zoneamento constitui importante ferramenta especialmente para aqueles
Municípios que não contam com órgãos especiais de preservação dentro da sua
estrutura organizacional administrativa. Também, de um modo geral, ele é relevante
por permitir que outros instrumentos de política urbana igualmente úteis a essa
preservação sejam conjugados à sua aplicação.
Assim, por exemplo, o Município de São Paulo adotou o zoneamento como
mecanismo auxiliar aos fins de preservação por meio do seu Plano Diretor
Estratégico, tendo estabelecido que os imóveis classificados como Z8-200 pela lei de
zoneamento300 seriam enquadrados como Zonas Especiais de Proteção Cultural –
297
Desde que essa conformação não retire a funcionalidade do bem ao proprietário, conforme observado por
Celso Antonio Bandeira De Mello, “Natureza Jurídica do Zoneamento. Efeitos”, In Estudos de Direito
Público, a. I, n. 1, jan-jun/1982, p. 10.
298
Cf. Celso Antonio Bandeira de Mello, “Natureza Jurídica do Zoneamento. Efeitos”, In Estudos de Direito
Público, a. I, n. 1, jan-jun/1982, p. 6.
299
Idem, ibidem, p. 13.
300
Lei municipal nº 13.885, de 25 de agosto de 2004.
154
ZEPEC, sendo-lhes autorizado aplicar o mecanismo da transferência do direito de
construir301.
Uma outra medida que pode ser conciliada com o zoneamento é o benefício de
redução ou isenção do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana –
IPTU nessas zonas especiais de proteção302.
De uma maneira geral, a grande vantagem dos planos urbanísticos, em
comparação com os outros instrumentos analisados neste Capítulo – ainda que todos
eles sejam reconhecidamente úteis, ao seu modo, à causa preservacionista –, é a visão
de conjunto que aqueles são capazes de conferir ao universo patrimonial cultural
urbano.
Essa visão de conjunto, ou seja, de síntese dos bens culturais presentes no
ambiente urbano, proporcionada por esses planos urbanísticos, atende perfeitamente
aos anseios contemporâneos de conservação e perpetuação de valores que não se
resumem mais apenas às feições estéticas excepcionais materializadas em
monumentos pontuais pelo território da cidade, mas se espalham pelo tecido urbano,
projetando-se amplamente sobre diversas dimensões da cidade, inclusive sobre as
práticas e as manifestações culturais que nela cotidianamente se realizam. Nesse
sentido, vale destacar a lição do urbanista Paulo Ormindo de Azevedo:
A preservação da cidade, ou parte dela, não pode se restringir,
portanto, ao artefato material, ignorando as duas outras dimensões
urbanas, as práticas sociais e os sentidos associados. Sem essa
integração, a cidade perde a sua vida, vira sítio arqueológico, ou
pior, parque temático. Ao contrário dos monumentos arquitetônicos e
301
Esse comando vem expresso no Plano Diretor do Município de São Paulo (Lei nº 13.430, de 13 de
setembro de 2002) nos seguintes termos: “Art. 168. As Zonas de preservação Cultural – ZEPEC são porções
do território destinadas à preservação, recuperação e manutenção do patrimônio histórico, artístico e
arqueológico, podendo se configurar como sítios, edifícios ou conjuntos urbanos. §1º. Os imóveis ou áreas
tombadas ou preservadas por legislação Municipal, Estadual ou Federal, bem como os imóveis classificados
como Z8-200 por Lei Municipal, enquadram-se como ZEPEC; §2º Aplica-se às edificações particulares
localizadas em ZEPEC a transferência do potencial construtivo, conforme disposto nos artigos 217, 218 e
incisos I e II do artigo 219 desta lei.”
302
Cite-se, como exemplo, a Lei nº 12.350/97, do Município de São Paulo, que permite a isenção do
pagamento do IPTU por até dez anos para prédios de relevância cultural restaurados, e a Lei nº 10.598/88,
também do Município de São Paulo, que permite a dedução de 50% do IPTU para restauração de edificações
localizadas no entorno de bem considerado de relevância cultural.
155
objetos de arte, a cidade nunca é uma obra acabada, virtualmente
perfeita, como na tradição clássica. O congelamento da cidade
significaria sua morte. O que podemos conservar é algumas partes ou
componentes da cidade, como os monumentos, tendo em vista não só
o passado, mas especialmente o futuro.303
Um tratamento adequado dessa temática seria, assim, aquele que estabelecesse
planos de ações concretas para essas áreas, de vigência limitada no tempo, após a
qual seriam apurados os resultados obtidos e, eventualmente, revistos esses planos,
reconhecendo-se, desse modo, que a cidade não é estática, tampouco os seus valores
culturais. E que o que se elegeu hoje como patrimônio poderá não ser entendido dessa
mesma forma no futuro – e vice-versa.
Além disso, esse modo de visualização do patrimônio - na sua globalidade -,
dispensado pelo plano urbanístico, sempre quando associado à técnica do inventário,
possibilita uma identificação mais precisa das áreas de maior risco de desfiguração.
Esse fato contribui para que sejam priorizados os investimentos públicos nessas áreas
mais sensíveis.
A propósito do inventário – oportunamente lembrado pelo constituinte de 1988
ao dispor sobre os modos de tutela do patrimônio cultural brasileiro –, é de se
ressaltar que este mecanismo, em que pese a sua natureza meramente informativa, ou
seja, de simples documento que relaciona, descreve detalhadamente e qualifica um
conjunto de bens, poderá produzir efeitos significativos sobre a tutela do patrimônio
cultural urbano, a depender do modo como aplicado.304
Assim, conforme comentado, áreas de risco de perda patrimonial poderão ser
facilmente identificadas se se contar com um banco de dados completo, integrado
com outras instâncias governamentais e em constante atualização.
303
“Comentário 4: A cidade como obra aberta”, In Victor Hugo Mori et alli (orgs.), Patrimônio: Atualizando
o debate, p. 65.
304
O inventário é comumente lembrado como mecanismo de preservação em diversas normas e documentos
internacionais envolvendo essa matéria. Como exemplo, cite-se a Recomendação nº R (95) 3, do Conselho da
Europa.
156
Também quando se garante a ampla publicação do inventário, este é capaz de
transformar-se em verdadeiro veículo de comunicação, agindo em três diferentes
níveis: 1°) de conscientização popular; 2°) de divulgação interna, entre os vários
órgãos da administração pública federal, estadual e municipal; e 3°) de comunicação
entre os proprietários de imóveis e os órgãos de preservação.305 A conscientização
popular poderá dar causa, por exemplo, a reações comunitárias à destruição de
edifícios inventariados, mesmo que eles não tenham sido tombados. Quando essas
reações ganham força e notoriedade, os interesses especulativos nessas áreas tendem
a se dissipar, direcionando-se para outras localidades, menos conflituosas. Já a
divulgação e o intercâmbio de invetários entre as Administrações Públicas federal,
estadual e municipal, permitem uma maior apreensão, pelos diferentes órgãos
públicos, dos imóveis detentores de valor cultural que se encontram distribuídos nos
territórios em que atuam e da disponiblidade destes imóveis para ocupação e uso por
esses órgãos. E quanto aos proprietários de imóveis de valor cultural e sua relação
com os órgãos preservacionistas, o inventário pode facilitar a comunicação entre eles,
mediante a oferta de informação detalhada sobre o imóvel privado inventariado,
assim como de assessoria técnica para obras de conservação ou adaptação
funcional.306
Por fim, o inventário também aproveita aos fins de planejamento urbano, nos
níveis nacional, regional e local, nas situações em que suas informações sobre
imóveis e zonas especiais de interesse cultural tornam-se disponíveis aos órgãos de
planejamento e ordenação do território, favorecendo a elaboração de planos
urbanísticos – especialmente de planos diretores – mais sensíveis à problemática do
patrimônio.307
Na Itália, o Código dos Bens Culturais e da Paisagem, publicado em 2004, passou
a conceber juridicamente a paisagem não mais como uma beleza natural, mas como um
305
Paulo Ormindo de Azevedo, “Patrimônio Edificado: Inventariar ou classificar?”, In Primeiras Jornadas
Luso-Brasileiras do Património: Património Edificado. Comunicações, Actas, Conclusões, p. 58.
306
Idem, Ibidem, p. 58. Esse autor relata a experiência do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do
Estado da Bahia, em que o inventário produzido no âmbito estadual teve também essa função de
aproximação entre este órgão e os proprietários de imóveis inventariados.
307
Idem, Ibidem, p. 58.
157
documento. Diante dessa nova perspectiva, tem-se procurado perceber todo o território
italiano como um grande arquivo da história do homem e da natureza, em contínua
transformação, misturando alguns traços do passado aos do presente. Registra-se, nesse
País, a prática recente de aproveitamento dos dados relativos ao patrimônio cultural urbano
na gestão do território. Conforme relata Rafael Winter Ribeiro,
“há algumas décadas a Itália tem se engajado através do governo
central com o Instituto Central para o Catálogo e a Documentação,
ou através dos governos locais (regiões, províncias, municípios),
num trabalho de recenseamento de seu patrimônio histórico. Nesse
sentido, os bancos de dados já difundidos no passado foram
largamente utilizados na gestão urbana e, em menor medida, na
gestão do território, para completar uma leitura sumária dos eventos
históricos dos lugares, segundo as épocas e as grandes constantes
geográficas e culturais”308.
Esse intercâmbio de informações entre os órgãos de preservação e os de gestão
urbana revela-se essencial tanto para uma remodelação ou transformação de áreas
marginalizadas ou degradadas da cidade com a maior compatibilidade e o maior respeito
possíveis em relação aos elementos ali preexistentes, quanto para a escolha adequada dos
intrumentos urbanísticos capazes de atender às necessidades de proteção patrimonial da
área considerada e, ao mesmo tempo, de causar o menor condicionamento possível aos
interesses individuais dos proprietários. Com um planejamento urbano que leve em conta
os dados de um inventário cultural, é possível também definir incentivos fiscais
municipais, estaduais e para proprietários e promotores de projetos de restauro em áreas
previamente identificadas.
308
Rafael Winter Ribeiro, Paisagem Cultural e Patrimônio, p. 58.
158
Considerações Finais
Partindo-se de uma constatação inicial de que, juridicamente, a preservação
estatal do patrimônio cultural urbano deve ser procedida dispensando-se uma visão
ambiental desse patrimônio, ou seja, de conjunto, a presente tese buscou demonstrar
que o alcance desta finalidade última dependerá da adequada a articulação das
competências dos entes incumbidos dessa preservação pela Constituição Federal,
assim como da adoção de mecanismos que proporcionem uma gestão integrada e
planejada desse patrimônio.
Em linhas gerais, analisou-se primeiramente o modo como evoluíram, na
doutrina internacional, os fundamentos para a ação do Estado na preservação do
patrimônio cultural. Viu-se que existe uma proximidade entre as finalidades últimas
buscadas pelas normas preservacionistas e as buscadas pelas normas urbanísticas em
geral, qual seja, a satisfação do bem-estar e da qualidade de vida aos indivíduos.
Nessa linha, sustentou-se que a preservação do patrimônio cultural, quando no
ambiente urbano, é modo de exercício da atividade urbanística, devendo levar em
conta sempre o conjunto de normas e princípios aplicáveis ao direito urbanístico.
Quanto ao objeto de preservação, foram apontadas as interessantes
contribuições de organizações internacionais no âmbito conceitual do patrimônio
cultural urbano. A UNESCO e o Conselho da Europa, por exemplo, vêm
desenvolvendo abordagens mais ampliadas do patrimônio, para o nível da globalidade
da paisagem.
Verificou-se que, no Brasil, a atual concepção jurídica de patrimônio cultural
vem consagrada no plano constitucional, marcadamente com a intenção de reforçar o
status do patrimônio como um direito social, disposto na ordem vigente em mesmo
patamar que o direito de propriedade – o qual, aliás, há tempos comporta em si uma
função social. Essa concepção jurídica de patrimônio revela-se muito mais próxima
dos valores populares cultivados nos âmbitos local e regional, compatibilizando-se
com os anseios e interesses ali manifestados.
159
Quanto aos sujeitos incumbidos de – ou legitimados a – agir, no Brasil, pela
preservação do patrimônio cultural, verificou-se que, não obstante na texto
constitucional de 1934 já se tivesse atribuído comumente a todos os entes federados o
dever de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, as atividades de tutela,
na prática, iniciaram-se de maneira concentrada, pela União, por meio do Serviço de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN. Nesse início, as ações
preservacionistas
voltavam-se
basicamente
à
conservação
intacta
ou
ao
restabelecimento da integridade estética de edificações, estas então valorizadas pelo
seu caráter excepcional, ou seja, pela sua monumentalidade.
A descentralização dessas atividades preservacionistas dentro da estrutura do
Estado Federal brasileiro ocorreu paulatinamente, ao longo de décadas, tendo sido
mais fortemente sentida somente a partir dos anos 60, quando começaram a ser
criados órgãos preservacionistas estaduais, seguidos dos órgãos municipais de mesma
natureza, estes constituídos em grande parte nos anos 80. Foi comentada a
experiência do Programa de Cidades Históricas, na década de 1970, que buscava o
aproveitamento dos potenciais turísticos desse patrimônio para o desenvolvimento
econômico local e no bojo do qual se desenvolveu marcadamente a ideia de um
tratamento mais abrangente do patrimônio, baseado em planos urbanísticos.
Essa descentralização que hoje caracteriza as ações preservacionistas, ao
permitir uma maior proximidade dos cidadãos com as decisões políticas envolvendo
seus interesses de tutela de valores culturais, pode contribuir, em certa medida, para o
exercício da democracia participativa. No presente trabalho, verificou-se que vem
sendo perseguida a garantia de envolvimento da sociedade nas políticas de
preservação do patrimônio cultural urbano e que, nesse sentido, a consagração
constitucional da necessária colaboração da comunidade na realização desse direito,
associada à previsão legal de gestão democrática da cidade, constituem as primeiras –
porém reconhecidamente grandes – conquistas. No plano prático, o crescente e
recorrente uso de mecanismos jurisdicionais para tutela desse patrimônio são mostras
significativas dessa maior participação.
Também a colaboração internacional tem sido exercida nessa matéria, de
maneira direta e indireta. Diretamente, por meio da assistência técnica e financeira
160
prestada pela UNESCO à salvaguarda de bens culturais eleitos como Patrimônio da
Humanidade. No Brasil, essa assistência faz-se presente desde 1980, quando a cidade
de Ouro Preto figurou como primeira localidade brasileira inscrita na Lista do
Patrimônio Mundial da UNESCO. Indiretamente, em função das contribuições da
UNESCO, do ICCROM, do ICOMOS, da OEA e do Conselho da Europa, por meio de
suas produções técnicas e normativas, para o desenvolvimento do tema.
Na presente tese, sustentou-se que essa ampla ramificação de entes
diretamente envolvidos com a tutela do patrimônio cultural guarda estreita relação
com pelo menos dois fenômenos de ambitude mundial: um primeiro, consistente na
tendência contemporânea de diluição e neutralização do poder estatal – especialmente
em se envolvendo interesses difusos. E um segundo, relativo aos efeitos nocivos ao
patrimônio cultural produzidos - ou ao menos ameaçados – em maior escala pelo
acelerado crescimento populacional e pelo vertiginoso processo de urbanização,
fortemente sentidos especialmente na segunda metade do século XX. No Brasil, esses
fatores, associados à carência de recursos técnicos e administrativos experimentada
pelo órgão federal de preservação já na década de 60, foram decisivos para uma
reconsideração da política preservacionista centralizadora adotada até então.
Apurou-se que a atual Constituição Constitucional de 1988 seguiu conferindo
competência executiva comum a União, Estados, Distrito Federal e Municípios para
cuidar desse patrimônio e passou a prever expressamente a competência legislativa
concorrente não cumulativa para a matéria, reservando à União um nível normativo
superior - para fixação de princípios e normas gerais -, e deixando aos Estados e
Municípios a complementação legislativa, de acordo como as peculiaridades
regionais e locais.
Demonstrou-se, ademais, que essas competências são irrenunciáveis e
indelegáveis e que a responsabilidade pela defesa do patrimônio cultural brasileiro
recai sobre todos os entes da Federação, indistintamente, independentemente do grau
de interesse predominante no bem cultural (se local, regional ou nacional), tendo em
vista que a matéria envolve interesses públicos particularmente ameaçados, além de
ser de grande relevância social. Buscou-se sustentar que deve haver um grande
esforço de cooperação e coordenação entre os entes federados, sob a regência de
161
normas gerais definidas pela União, a fim de que não haja prejuízos à matéria por
questões ligadas a limites de espaços de competência. E apontou-se que, no entanto,
os termos exatos dessa cooperação mútua para os fins de preservação do patrimônio
cultural não foram devidamente definidos pelo Congresso Nacional até o presente
momento.
Também se apurou que a Constituição de 1988 introduziu ineditamente
disposições sobre a política urbana, tratando de atribuir expressamente competência
concorrente a todos os entes para legislarem sobre direito urbanístico. Quanto à
competência executiva, entretanto, o constituinte conferiu-a exclusivamente aos
Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo
urbano” (art. 30, VIII). Apontou-se para a dúvida muitas vezes suscitada quanto às
competências da União e dos Estados para atuarem na preservação do patrimônio
cultural urbano, o que implicaria, em certo grau, ingerências destes entes sobre o
ordenamento do território do Município. Acerca disso, demonstrou-se que aquela
competência exclusiva municipal é referente a normas urbanísticas em geral e que,
com relação à proteção do patrimônio cultural urbano, trata-se de um setor
urbanístico especial, para o qual foi definida constitucionalmente competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Com base em dados coletados de pesquisas realizadas pelo IBGE entre 2000 e
2005, apontou-se para a situação vivenciada pela grande maioria dos Municípios
brasileiros, de verdadeira dependência de recursos financeiros transferidos pela União
e pelos Estados, o que reforça o entendimento de que a consecução do objetivo de
preservação não prescinde da cooperação mútua dos entes federativos. Também se
observou que, ainda assim, os Municípios suportam cerca de 50% das despesas
governamentais totais anuais realizadas na área da cultura e que estas,
especificamente, representaram, entre 2003 e 2005, o ínfimo percentual de 0,2% das
despesas governamentais totais anuais.
Em relação aos Poderes Executivo e Legislativo, foi analisado que o artigo
216, parágrafo 1º da Constituição de 1988 determinou-lhes providências de
aparelhamento estatal, com vistas à adequada prestação da preservação do patrimônio
162
cultural, indicando inclusive mecanismos hábeis à satisfação desse interesse público.
Alguns desses mecanismos indicados, tais como a desapropriação e o tombamento,
foram referidos também na Lei federal nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade) como
típicos instrumentos de política urbana.
No âmbito legislativo, cotejou-se em detalhes o Decreto-lei nº 25/37, em
especial: sua relativa incompatibilidade com as atuais disposições constitucionais
atinentes à concepção jurídica de patrimônio; a ausência de clareza quanto à natureza
geral ou especial das normas nele contidas; suas limitações para cuidar de bens
imateriais e mesmo de bens materiais significativos pelo seu conjunto, e não pela sua
monumentalidade. Verificou-se que algumas distorções no emprego dessa lei
surgiram já na década de 1940, ocorrendo com maior ênfase a partir da década de
1960, quando passaram a ser cada vez mais frequentes os casos de aplicação do
tombamento para proteção de áreas urbanas. Viu-se também que a edição da Lei
federal nº 3.924, em 26 de julho de 1961 – referente à guarda e proteção dos
monumentos arqueológicos e pré-históricos -, e do Decreto federal nº 3.551, em 4 de
agosto de 2000 – que dispõe sobre o registro de bens imateriais -, são demonstrações
claras da defasagem do Decreto-lei nº 25/37 para, sozinho, “organizar a proteção do
patrimônio histórico e artístico nacional”309.
Comentou-se que o Estatuto da Cidade, na condição de lei definidora das
diretrizes gerais da política de desenvolvimento urbano, tratou de relacionar uma
série de instrumentos urbanísticos disponíveis à finalidade de tutela do patrimônio
cultural urbano, evidenciando a importância de que seja dispensada uma visão
urbanística para este tema, num contexto de ordenação do território. Advertiu-se, no
entanto, que dado documento legal não oferece maiores sistematizações a esta matéria
específica. Até porque nem seria esse o seu escopo.
Daí que, para uma maior clareza da unidade do sistema de preservação do
patrimônio cultural no Brasil e para uma melhor orientação dos mecanismos de tutela
mais apropriados para cada caso, sugeriu-se, neste trabalho, a codificação da matéria
em um único texto legislativo nacional.
309
Como visto, eis o titulo do Decreto-lei nº 25/37.
163
Em reforço à tese de que a gestão do patrimônio cultural urbano deve ser
buscada por meio de uma preservação integrada ao planejamento territorial,
apresentaram-se, no Capítulo 4, uma série de mecanismos jurídicos específicos.
Primeiramente foi abordada a proteção internacional da UNESCO ao intitulado
“Patrimônio Mundial”, dedicando-se enfoque especial às recomedações feitas pelo
Comitê do Patrimônio Mundial para a conservação das Cidades Históricas brasileiras.
Essas recomendações evidenciaram as preocupações internacionais com que a gestão
desse patrimônio fosse sempre procedida de maneira planejada e integrada com as
principais questões sociais e econômicas das localidades envolvidas.
Em seguida, foram expostos alguns instrumentos disponíveis na ordem jurídica
brasileira para as finalidades de preservação do patrimônio cultural.
Iniciando a abordagem com os institutos do tombamento e da desapropriação,
o primeiro foi objeto de análise mais aprofundada, em razão dele ser, até os dias de
hoje, o mecanismo a que mais frequentemente se recorre na prática, quando se
pretende preservar algum tipo de valor cultural. Nesse contexto, ressaltou-se a
maneira imprópria como o tombamento vem sendo empregado para resguardar tanto
valores culturais imateriais – tais como manifestações culturais e modos de viver -,
como para tutelar bens que necessitam ser lidos contextualmente, nos seus ambientes
– e não isoladamente -, para que possam exprimir alguma significação cultural.
Foram apontadas, nesse aspecto, as distorções do emprego do tombamento de uso e
do tombamento de bairro. Também foram destacadas as necessidades de se garantir a
participação da comunidade e dos órgãos municipais de ordenação urbana nas
decisões preservacionistas envolvendo bairros, assim como de se produzirem – mais
do que simples atos isolados de tombamento - planos urbanísticos setoriais que
ofereçam uma visão de conjunto para essas áreas.
Com relação à desapropriação, viu-se que ela assume importância
fundamental para os casos em que a proteção de valores culturais implica grandes
sacrifícios ao direito de propriedade, pois ela garante ao expropriado a prévia e justa
indenização em dinheiro. Também se sublinhou a importância da desapropriação para
a demarcação de espaços públicos de convivência com valores culturais, já que este
164
instrumento poderá incidir sobre quaisquer bens materiais – sejam eles detentores de
valores culturais ou não –, desde que para a finalidade pública de preservação.
Verificou-se que o regime geral do Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança
(EIV), previsto no Estatuto da Cidade, assegura: a) um mínimo de envolvimento da
comunidade local – principal sujeito de cultura - nos processos de aprovação de
projetos potencialmente impactantes sobre a qualidade de vida em áreas urbanas; b) a
consideração do patrimônio cultural – usualmente excluído do objeto do Estudo
Prévio de Impacto Ambiental (EIA) – como elemento essencial de análise desses
impactos; c) uma compreensão deste patrimônio cultural em seu aspecto de paisagem,
integradora e sintetizadora de valores culturais materiais e imateriais, interagentes
entre si e sujeitos a contínuas transformações, dada a essência dinâmica das cidades; e
d) a possibilidade de conciliação dos interesses de desenvolvimento e de preservação
no mesmo território urbano, mediante o estabelecimento de contrapartidas
neutralizadoras dos potenciais impactos sobre o patrimônio cultural.
Tratou-se ainda, neste trabalho, da transferência do direito de construir também regida, em linhas gerais, pelo Estatuto da Cidade – e da utilidade desta
medida para garantir a não-edificação em imóveis urbanos dotados de interesse
cultural e situados, muitas vezes, em áreas de crescente valorização imobiliária e
verticalização. Verificou-se que, segundo este mecanismo, lei municipal poderá
autorizar proprietários de imóveis detentores de valor cultural a alienarem ou
exercerem em outro local da cidade a parcela do direito de construir a que eles
ordinariamente fariam jus – por integrar seus direitos de propriedade -, não fosse a
afetação do imóvel. Sustentou-se também a aplicação da transferência do direito de
construir conciliada com outros mecanismos, que identifiquem prévia e oficialmente
os imóveis de significativa relevância cultural e que contribuam, de outros modos,
para a garantia de uma completa satisfação do interesse público de preservação.
Dispensou-se breve análise ao instituto do “transfer of development rights”,
desenvolvido pela doutrina norte-americana na década de 1970, no contexto da
elaboração do Plano Urbanístico de Chicago, que buscava, em última análise, conferir
integração social e sustentabilidade aos monumentos históricos situados em áreas
valorizadas da cidade.
165
Por fim, com vistas a reforçar a principal tese sustentada neste trabalho, qual
seja, de que a tutela estatal do patrimônio cultural urbano deve ser conduzida de
forma planejada, no mesmo contexto em que definidas as normas e ações de
ordenação do território, dedicou-se atenção especial aos planos urbanísticos. Viu-se
que, de acordo como o ordenamento pátrio, o planejamento urbanístico é imposição
jurídica que recai sobre o Poder Público nos três níveis da Federação e que o
desenvolvimento da rede urbana pressupõe a elaboração de planos urbanísticos
gerais, regionais, locais, setoriais e parciais. Ressaltou-se também os deveres
constitucionais: da União, de planejar o desenvolvimento da rede urbana nacional
associadamente a um plano especial de defesa do patrimônio cultural brasileiro; dos
Estados, de delimitar e organizar, por meio de planos setoriais, as áreas de interesse
de preservação de seus respectivos territórios - respeitadas as normas gerais definidas
pela União; e dos Municípios, de promover a adequada ordenação do seu território,
por meio do plano diretor, do zoneamento, etc, mas conformando suas ações aos
planos setoriais nacional e estadual de tutela do patrimônio cultural. Apontou-se para
a carência, no Direito positivo brasileiro, de planos urbanísticos setoriais envolvendo
essa matéria, mas que sua adoção, se associada à técnica de inventário, poderá trazer
inúmeros benefícios ao propósito de preservação integrada do patrimônio cultural.
166
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2.544-9 – RS, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, v.u., j. 28 jun. 2006.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
1.706/DF. Relator Ministro Eros Grau, v.u., j. 9 abr. 2008.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 595.595-AgR,
Relator Ministro Eros Grau, v.u., j. 28 abr. 2009.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 34.006-SP, Relator
Ministro Humberto Gomes de Barros, j. 25 out. 1993.
180
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 52.905-SP, Relator
Ministro Humberto Gomes de Barros, j. 14 dez. 1994.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 188.781-PR,
Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, j. 20 set. 1999.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 401.264/SP,
Relatora Ministra Eliana Calmon, j. 05 set. 2002.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 435.128/SP,
Relator Ministro Luiz Fux; j. 11 fev. 2003.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 665.791/SP,
Relator Ministro Castro Meira; j. 05 abr. 2005.
TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS. Apelação Cível nº 1.515-PB, j. 6 nov. 1951. In
Revista dos Tribunais, v. 222, p. 559 e ss.
SÃO PAULO (Estado). TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Apelação Cívil nº 83.211-1, Relator
Desembargador Ernani de Paiva, j. 19 mar. 1987.
SÃO PAULO (Estado). TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Apelação Cívil nº 112.282-1, Relator
Desembargador Fonseca Tavares, v.u., j. 28 jun. 1989. In Revista de Jurisprudência
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, LEX, v. 122, p.50-52.
RIO DE JANEIRO (Estado). TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Agravo em Mandado de
Segurança n° 10.579, Relator Desembargador Orlando Carlos, j. 02 dez. 1959. In
Revista de Direito Administrativo, v. 74, p. 229-232.
181
ANEXOS
Tabela I
Despesa total com cultura,
segundo as esferas de governo - Brasil - 2003-2005
Despesa total com cultura
Esferas de governo
2003
2004
Valor absoluto
(1 000 R$)
Participação das
esferas (%)
Valor absoluto
(1 000 R$)
2005
Participação
das esferas
(%)
Valor absoluto
(1 000 R$)
Participação
das esferas
(%)
2 358 264
100,0
2 581 670
100,0
3 129 414
100,0
Federal
338 746
14, 4
395 926
15, 3
523 338
16,7
Estadual
746 851
31, 7
836 716
32, 4
1 127 768
36,0
1 349 028
52, 3
1 478 308
47,2
Total
Municipal
1 272 667
54,0
Fontes: Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal – SIAFI; Execução orçamentária dos estados (1995-2006). Brasília, DF: Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, [200-]. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/download/
exec_orc_estados.xls>. Acesso em: 2007; Finanças do Brasil: dados contábeis dos municípios 2003-2005. Brasília, DF:
Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, v. 49-51, 2004-2006. Disponível em: <http://www.tesouro.
fazenda.gov.br/estados_municipios/index.asp>. Acesso em: 2007; IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Contas Nacionais, Estatísticas Econômicas das Administrações Públicas 2003-2004; Perfil dos municípios brasileiros: cultura 2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. Acompanha 1 CD-ROM. Acima do título: Pesquisa de Informações Básicas Municipais.
182
Tabela II
Participação da despesa orçamentária com cultura no total da despesa orçamentária
Brasil - 2003-2005
Esferas
Cultura
(1 000 R$)
Total
(1 000 R$)
Participação da cultura
(%)
2003
Total
2 358 084
1 208 814 474
0,2
Federal
338 566
876 456 652
0,0
Estadual
746 851
205 044 675
0,4
Municipal
1 272 667
127 313 147
1,0
Total
2 581 670
1 282 899 039
Federal
395 926
908 148 769
0,0
Estadual
836 716
239 836 314
0,3
134 913 956
1,0
2004
Municipal
1 349 028
0,2
2005
Total
3 129 414
1 538 810 372
0,2
Federal
523 338
1 106 790 731
0,0
Estadual
1 127 768
273 529 892
0,4
Municipal
1 478 308
158 489 749
0,9
Fontes: Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal – SIAFI; Execução orçamentária dos estados (1995-2006). Brasília, DF: Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, [200-]. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/download/
exec_orc_estados.xls>. Acesso em: 2007; Finanças do Brasil: dados contábeis dos municípios 2003-2005. Brasília, DF:
Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, v. 49-51, 2004-2006. Disponível em: <http://www.tesouro.
fazenda.gov.br/estados_municipios/index.asp>. Acesso em: 2007; IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Contas Nacionais, Estatísticas Econômicas das Administrações Públicas 2003-2004; Perfil dos municípios brasileiros: cultura 2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. Acompanha 1 CD-ROM. Acima do título: Pesquisa de Informações Básicas Municipais.
183
Tabela III
Análise comparativa das despesas por funções consolidadas
pelas três esferas de governo, segundo o tipo de função
Brasil - 2003-2005
Análise comparativa das despesas por funções consolidadas pelas três esferas de governo
2003
Tipo de função
Valor
absoluto (1
000 000 R$)
Total
2004
Participação
percentual (%)
1 210 274
100,0
Valor
absoluto (1
000 000 R$)
2005
Participação
percentual (%)
1 279 221
100,0
Valor
absoluto (1
000 000 R$)
Participação
percentual (%)
1 533 676
100,0
Saúde
75 057
6,2
91 412
7,1
99 340
6,5
Educação
87 370
7,2
89 928
7,0
102 037
6,7
Cultura
2 359
0,2
2 582
0,2
3 129
0,2
Outras
1 045 488
86,4
1 095 299
85,6
1 329 170
86,7
Fontes: Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal – SIAFI; Execução orçamentária dos estados (1995-2006). Brasília, DF: Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, [200-]. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/download/
exec_orc_estados.xls>. Acesso em: 2007; Finanças do Brasil: dados contábeis dos municípios 2003-2005. Brasília, DF:
Ministério da Fazenda, Secretaria do Tesouro Nacional, v. 49-51, 2004-2006. Disponível em: <http://www.tesouro.
fazenda.gov.br/estados_municipios/index.asp>. Acesso em: 2007; IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Contas Nacionais, Estatísticas Econômicas das Administrações Públicas 2003-2004; Perfil dos municípios brasileiros: cultura 2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. Acompanha 1 CD-ROM. Acima do título: Pesquisa de Informações Básicas Municipais.
184
Tabela IV
Municípios, total e por faixas de participação das receitas de transferências correntes no total geral
das receitas, segundo classes de tamanho da população dos municípios, Grandes Regiões
e Unidades da Federação - 1998-2000
Classes de tamanho
da população dos municípios,
Grandes Regiões e
Unidades da Federação
Total
de
municípios
(1)
Municípios, por faixas de participação das receitas de transferências correntes
no total geral das receitas
Até 65%
Mais de
70% a
75%
Mais de
65% a
70%
Mais de
75% a
80%
Mais de
80% a
85%
Mais de
85% a
90%
Mais de
90% a
95%
Mais de
95%
2000
Total
5 507
279
204
357
569
811
1 018
1 007
953
Até 5 000 hab.
1 409
33
De 5 001 a 20 000 hab.
2 652
83
28
53
102
185
302
348
288
70
143
273
405
528
491
De 20 001 a 100 000 hab.
1 224
506
100
66
118
164
203
178
159
158
192
47
36
37
28
18
10
9
1
30
16
4
6
2
-
-
-
-
Classes de tamanho da população
De 100 001 a 500 000 hab.
Mais de 500 000 hab.
Grandes Regiões e Unidades da
Federação
Norte
449
36
12
28
34
55
53
49
81
Rondônia
52
4
-
3
5
7
7
11
8
Acre
22
1
2
5
3
5
3
1
1
Amazonas
62
16
7
12
9
6
3
2
1
Roraima
15
3
-
1
-
3
2
2
2
143
5
2
2
12
21
13
17
21
Pará
Amapá
Tocantins
Nordeste
16
1
1
-
1
1
2
-
-
139
6
-
5
4
12
23
16
48
1 787
42
40
51
95
178
270
387
566
Maranhão
217
1
1
2
2
6
13
26
127
Piauí
221
18
18
20
31
39
28
17
20
Ceará
184
1
1
1
4
16
39
56
56
Rio Grande do Norte
166
6
5
7
6
18
24
36
51
Paraíba
223
2
3
3
11
22
38
62
77
Pernambuco
185
3
3
5
9
22
26
49
60
Alagoas
101
2
1
1
-
3
3
20
31
Sergipe
75
3
2
2
2
5
13
20
26
Bahia
415
6
6
10
30
47
86
101
118
Sudeste
1 666
113
84
165
251
278
327
265
141
Minas Gerais
853
23
31
80
109
145
180
171
107
Espírito Santo
77
4
3
6
12
15
17
11
9
Rio de Janeiro
91
20
8
13
25
13
8
3
1
645
66
42
66
105
105
122
80
24
São Paulo
Sul
1 159
74
46
82
153
242
282
196
80
Paraná
399
36
19
28
44
81
93
63
32
Santa Catarina
293
20
15
11
32
47
81
55
31
Rio Grande do Sul
467
18
12
43
77
114
108
78
17
446
14
22
31
36
58
86
110
85
77
7
2
6
5
9
16
25
7
Mato Grosso
126
2
10
11
14
22
28
25
11
Goiás
242
4
10
14
17
27
42
60
67
1
1
-
-
-
-
-
-
-
Centro-Oeste
Mato Grosso do Sul
Distrito Federal
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Municipais 1999/2001.
(1) Inclusive os ignorados e os sem declaração de existência.
185
Tabela V
Municípios, total e por faixas de participação das receitas tributárias no total geral das receitas,
segundo classes de tamanho da população dos municípios, Grandes Regiões
e Unidades da Federação - 1998-2000
Classes de tamanho
da população dos municípios,
Grandes Regiões e
Unidades da Federação
Total
de
municípios
(1)
Municípios, por faixas de participação das receitas tributárias no total geral das receitas
Mais de
0,5% a
1%
Até
0,5%
Mais de
1% a
1,5%
Mais de
1,5% a
2%
Mais de
2% a 3%
Mais de
3% a 4%
Mais de
4% a 6%
580
Mais de
6% a
10%
Mais de
10%
2000
Total
5 507
444
661
640
501
684
477
569
642
Até 5 000 hab.
1 409
155
236
260
182
248
122
83
33
20
De 5 001 a 20 000 hab.
2 652
222
336
294
237
331
264
361
301
153
De 20 001 a 100 000 hab.
1 224
67
89
85
81
101
87
130
206
300
192
-
-
1
1
4
4
6
29
141
30
-
-
-
-
-
-
-
-
28
Classes de tamanho da população
De 100 001 a 500 000 hab.
Mais de 500 000 hab.
Grandes Regiões e Unidades da
Federação
Norte
449
80
64
53
32
32
26
24
23
14
Rondônia
52
2
7
10
8
1
8
4
2
3
Acre
22
4
4
4
4
3
-
1
1
-
Amazonas
62
22
17
2
3
5
2
3
1
1
Roraima
Pará
Amapá
Tocantins
Nordeste
15
-
1
-
-
-
-
3
4
5
143
19
21
19
5
7
12
4
4
2
16
-
-
-
-
1
-
1
4
-
139
33
14
18
12
15
4
8
7
3
1 787
306
421
311
187
181
81
67
38
37
Maranhão
217
99
35
12
8
13
3
4
2
2
Piauí
221
29
59
53
28
9
6
4
1
2
Ceará
184
16
49
48
25
23
6
3
2
2
Rio Grande do Norte
166
49
49
21
14
9
3
3
3
2
Paraíba
223
44
95
40
17
8
6
3
3
2
Pernambuco
185
13
21
35
26
32
13
18
9
10
Alagoas
101
13
19
9
5
4
6
3
-
2
Sergipe
75
11
22
13
8
5
5
6
2
1
Bahia
415
32
72
80
56
78
33
23
16
14
Sudeste
1 666
25
86
141
140
194
192
227
253
366
Minas Gerais
853
23
68
95
90
112
104
135
116
103
Espírito Santo
77
-
-
4
6
15
10
16
11
15
Rio de Janeiro
91
1
5
2
9
5
8
8
17
36
645
1
13
40
35
62
70
68
109
212
São Paulo
Sul
1 159
12
63
90
100
209
130
181
181
189
Paraná
399
5
27
25
35
66
47
77
52
62
Santa Catarina
293
-
16
21
23
48
31
43
44
66
Rio Grande do Sul
467
7
20
44
42
95
52
61
85
61
446
21
27
45
42
68
48
81
74
36
77
2
1
3
4
13
2
17
24
11
Mato Grosso
126
3
8
16
9
17
15
24
22
9
Goiás
242
16
18
26
29
38
31
40
28
15
1
-
-
-
-
-
-
-
-
1
Centro-Oeste
Mato Grosso do Sul
Distrito Federal
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Municipais 1999/2001.
(1) Inclusive os ignorados e os sem declaração de existência.
186
187