ISSN 1981-416X
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Dossiê
doi.org/10.7213/1981-416X.23.078.DS05
periodicos.pucpr.br/dialogoeducacional
Navegar é impreciso: algumas considerações sobre a incorporação do paradigma da complexidade na formação de professores
Navigating is imprecise: incorporating the complexity paradigm in teacher
training
Navegar es impreciso: algunas consideraciones sobre la incorporación del paradigma de la complexidad en la formación de docentes
Diogo Bogéa [a]
Cidade, UF, País
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Como citar: BOGÉA, D. Navegar é impreciso: algumas considerações sobre a incorporação do paradigma da complexidade
na formação de professores. Revista Diálogo Educacional, v. 23, n. 78, p. 1026-1041, 2023. https://doi.org/10.7213/1981416X.23.078.DS05
Resumo
Procuramos explorar nesse artigo as principais implicações do paradigma da complexidade na formação de docentes. O
artigo se divide em cinco partes. Na primeira, fazemos uma introdução geral ao paradigma da complexidade com
referências clássicas do tema, tais como Fritjof Capra e Ludwig von Bertalanffy. Em seguida, começamos a extrair algumas
de suas principais consequências. Na segunda seção, procuramos demonstrar que, de acordo com o paradigma da
complexidade, não existe qualquer possibilidade de seguirmos trabalhando com a concepção moderna de “sujeito” como
substância essencialmente racional, consciente e livre. Sem a figura do sujeito, torna-se preciso repensar o próprio
significado de “conhecimento”, o que propomos na seção três, com a ajuda dos biólogos Maturana e Varela.
Posteriormente, indicamos que o paradigma da complexidade destrói a fronteira entre natureza e artifício e exploramos as
possibilidades dessa indistinção com o Manifesto Ciborgue de Donna Haraway e a Psicanálise de MD Magno – pensador
que incorpora o paradigma da complexidade na psicanálise. Encerramos nossas investigações com a proposta de uma ética
da regência para além de repressão e liberdade. Em nossas considerações finais falamos sobre a teoria do Caos, cuja
[a]
Doutor em Filosofia, e-mail:
[email protected]
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professores
matemática tornou-se fundamental para descrever sistemas complexos e procuramos indicar qual seria, em nossa visão, a
principal contribuição do paradigma da complexidade na formação de professores.
Palavras-chave: Complexity. Subject. Knowledge. Teacher Training. Nature.
Abstract
We aim to explore in this article the main implications of the complexity paradigm in teacher education. The article is divided
into five parts. In the first, we provide a general introduction to the complexity paradigm with classic references on the
subject such as Fritjof Capra and Ludwig von Bertalanffy. Then, we begin to extract some of its main consequences. In the
second section, we seek to demonstrate that according to the complexity paradigm, there is no possibility of continuing to
work with the modern conception of the "subject" as an essentially rational, conscious and free substance. Without the
figure of the subject, it becomes necessary to rethink the very meaning of "knowledge," which we propose in section three
with the help of biologists Maturana and Varela. Next, we indicate that the complexity paradigm destroys the boundary
between nature and artifice and explore the possibilities of this indistinction with Donna Haraway's Cyborg Manifesto and
MD Magno's Psychoanalysis - a thinker who incorporates the complexity paradigm in psychoanalysis. We conclude our
investigations with the proposal of an ethics of regency beyond repression and freedom. In our final considerations, we
discuss the theory of Chaos, whose mathematics have become fundamental for describing complex systems, and we try to
indicate what, in our view, would be the main contribution of the complexity paradigm in teacher education.
Keywords: Complexity. Subject. Knowledge. Teacher training. Nature.
Resumen
Buscamos explorar en este artículo las principales implicaciones del paradigma de la complejidad en la formación de
docentes. El artículo se divide en cinco partes. En la primera, hacemos una introducción general al paradigma de la
complejidad con referencias clásicas del tema como Fritjof Capra y Ludwig von Bertalanffy. Luego, comenzamos a extraer
algunas de sus principales consecuencias. En la segunda sección, buscamos demostrar que de acuerdo con el paradigma
de la complejidad, no existe ninguna posibilidad de seguir trabajando con la concepción moderna de "sujeto" como
sustancia esencialmente racional, consciente y libre. Sin la figura del sujeto, se hace necesario repensar el propio
significado de "conocimiento", lo que proponemos en la sección tres con la ayuda de los biólogos Maturana y Varela. A
continuación, indicamos que el paradigma de la complejidad destruye la frontera entre naturaleza y artefacto y
exploramos las posibilidades de esta indistinción con el Manifiesto Ciborg de Donna Haraway y el Psicoanálisis de MD
Magno - pensador que incorpora el paradigma de la complejidad en el psicoanálisis. Concluimos nuestras investigaciones
con la propuesta de una ética de la regencia más allá de la represión y la libertad. En nuestras consideraciones finales
hablamos sobre la teoría del Caos, cuya matemática se ha vuelto fundamental para describir sistemas complejos y
tratamos de indicar cuál sería, en nuestra opinión, la principal contribución del paradigma de la complejidad en la
formación de docentes.
Palabras clave: Complexidad. Sujeto. Conocimiento. Formación de docentes. Naturaleza.
Considerações iniciais: uma breve introdução ao paradigma da complexidade
Em seu livro A Teia da Vida, o físico Fritjof Capra procura mapear o surgimento e desenvolvimento de um
novo paradigma científico com potencial para alterar sensivelmente toda a nossa visão de mundo. “O novo paradigma
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(...) concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas” (CAPRA, 2006, p.
25). Tal paradigma
reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza (e, em última análise, somos dependentes
desses processos) (CAPRA, 2006, p. 25)
Esse novo paradigma seria caracterizado por uma visão sistêmica que, ao invés de considerar o mundo como
uma coleção de objetos isolados, compreende cada existência singular como configuração e concerto de relações e
interações.
De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades
do todo, que nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das relações entre as partes. Essas propriedades são destruídas quando o sistema é dissecado, física ou teoricamente, em elementos isolados. Embora
possamos discernir partes individuais em qualquer sistema, essas partes não são isoladas, e a natureza do todo é
sempre diferente da mera soma de suas partes. (CAPRA, 2006, pp. 40-41)
O novo paradigma viria quebrar com os pressupostos do paradigma mecanicista-analítico, que se impôs como
dominante a partir do século XVII. O mecanicismo-analítico tem como grande expoente filosófico René Descartes e
atinge um sucesso sem precedentes nas possibilidades de descrição e previsão de fenômenos naturais com Isaac
Newton. Em seu famoso Discurso do Método (2001), Descartes estabeleceu as bases do método analítico em quatro
princípios fundamentais: O primeiro seria
nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse
tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida (DESCARTES,
2001, p. 23)
O segundo, que faz o método cartesiano passar à tradição com a nomenclatura método analítico consiste em
“dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para
melhor resolvê-las” (DESCARTES, 2001, p. 23). É o princípio da divisão de um determinado objeto de pesquisa em
partes para que se possa investigar cada uma das partes isoladamente. O terceiro nos instrui a começar nossas
investigações pelas partes mais simples de um objeto de investigação e progressivamente avançar até o estudo das
mais compostas. E o quarto recomenda o registro minucioso do passo-a-passo da investigação: “fazer em tudo
enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir” (DESCARTES, 2001, p. 23).
A compreensão fundamental em jogo com o paradigma mecanicista-analítico é a de um mundo-máquina
regido por leis universalmente válidas e imutáveis em que cada parte, como peça de uma gigantesca engrenagem,
desempenha sua função específica, garantindo assim o bom funcionamento do todo. A analogia tecnológica para essa
visão de mundo é o relógio. Ao formular as cada vez mais precisas equações capazes de descrever movimentos físicos,
os cientistas modernos se sentiam desvendando os segredos da própria mente do relojoeiro divino. Para
compreender o funcionamento de um determinado fenômeno-máquina, como vimo na descrição metodológica de
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Descartes, deve-se decompor e dividir o todo a fim de estudar e descrever suas partes individuais mais simples. Ao
compreender a totalidade das partes, estaria garantida uma compreensão certeira do todo, pois o todo nada mais
seria do que a soma das partes no exercício das suas devidas funções segundo a regência de uma mesma e única lei
fundamental.
Em contrapartida, tal como explicita a excelente descrição de Capra (2006), a visão sistêmica de mundo lida
com complexos organizacionais nos quais o todo é maior do que a soma das partes. As interações entre as partes
fazem emergir uma lógica de funcionamento que não é redutível a nenhuma das partes isoladamente, nem a uma
soma simples de partes individuais no exercício de suas devidas funções. As interações entre as partes compõem um
modo de funcionamento e organização do “todo” que, por sua vez, reforça e reafirma certos padrões de organização
das partes. Essa é, aliás, a própria definição de complexidade.
Em seu famoso artigo Complex Networks, Amaral e Ottino procuram diferenciar sistemas complicados de
sistemas complexos. Eles explicam que sistemas complicados têm “um grande número de componentes os quais têm
papéis bem definidos e são governados por leis bem compreendidas” (AMARAL; OTTINO, 2004, p. 147). O exemplo
de sistema complicado que eles oferecem é o de um Boeing, composto de muitas partes, mas com possibilidades
bastante limitadas de responder a mudanças ambientais. Como os autores nos lembram, sem uma tripulação, tal
sistema não consegue desempenhar nem sequer suas mais básicas funções.
Acompanhemos a descrição que os autores fazem de sistemas complexos:
Sistemas complexos: auto-organização e emergência – É muito difícil chegar a uma definição abrangente de sistemas complexos. No entanto, vamos tentar uma: Um sistema complexo é um sistema com um grande número
de elementos, blocos de construção ou agentes, capazes de interagir entre si e com seu ambiente. A interação
entre os elementos pode ocorrer apenas com vizinhos imediatos ou com distantes; os agentes podem ser todos
idênticos ou diferentes; eles podem se mover no espaço ou ocupar posições fixas e podem estar em um de dois
estados ou vários estados. A característica comum de todos os sistemas complexos é que eles exibem organização
sem nenhum princípio organizador externo aplicado. O todo é muito mais do que a soma de suas partes.
Exemplos de sistemas complexos estão entre algumas das questões mais elusivas e fascinantes investigadas pelos
cientistas hoje em dia: como a consciência surge das interações dos neurônios no cérebro e entre o cérebro e seu
ambiente, como os seres humanos criam e aprendem regras sociais, ou como o DNA orquestra processos em
nossas células. (AMARAL; OTTINO, 2004, p. 148)
Os autores destacam, logo no início do trecho, duas características-chave de sistemas complexos. A primeira
sendo a auto-organização, isto é, sua organização não é determinada por uma lei ou regente externo pré-existentes.
Sua organização é fruto da própria dinâmica de interação das partes do sistema entre si e entre as partes e o todo
por elas formado. A segunda característica marcante dos sistemas complexos é a emergência. Da interação entre as
partes emerge um novo tipo de organização, com um novo tipo de lógica diferente da lógica organizacional do nível
anterior.
O termo foi introduzido pelos chamados emergentistas britânicos no final do século XIX. John Stuart Mill fala
do curioso caso em que “a combinação química de duas substâncias produz, como se sabe bem, uma terceira
substância com propriedades diferentes daquelas presentes nas duas substâncias isoladamente”, tal como ocorre
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com a água, que não apresenta “nenhum traço das propriedades do oxigênio ou do hidrogênio” e com os
experimentos com “dois líquidos, os quais, quando misturados em uma certa proporção, instantaneamente se
tornam, não uma quantidade maior de líquido, mas uma massa sólida” (MILL, 1906, pp 243-244). Coube a George
Lewes, em 1875, a cunhagem do termo “emergência” para se referir a esse tipo de interação causal que resulta numa
lógica de organização diferente daquela presente no nível anterior (O’CONNOR, 2020).
Ao longo do século XX, a noção de complexidade começou a aparecer em diversos campos do conhecimento.
A biologia organísmica, procurando superar o dualismo entre mecanicismo e vitalismo (a noção de que os corpos
vivos são animados por uma “força vital” misteriosa), passou a pensar em termos de dinâmicas e padrões de
organização. Os biólogos organísmicos
enfatizaram o fato de que uma das características-chave da organização dos organismos vivos era a sua natureza
hierárquica. De fato, uma propriedade que se destaca em toda vida é a sua tendência para formar estruturas
multiniveladas de sistemas dentro de sistemas. Cada um desses sistemas forma um todo com relação às suas
partes, enquanto que, ao mesmo tempo, é parte de um todo maior. Desse modo, as células combinam-se para
formar tecidos, os tecidos para formar órgãos e os órgãos para formar organismos. Estes, por sua vez, existem
dentro de sistemas sociais e de ecossistemas. Ao longo de todo o mundo vivo, encontramos sistemas vivos aninhados dentro de outros sistemas vivos. (CAPRA, 2006, p. 40).
Com o surgimento da mecânica quântica, a física de partículas tornou-se uma física das redes de relações
entre partículas. Ao invés de encontrar as partículas fundamentais que, como blocos de construção independentes,
nos ajudariam a compreender a natureza última da realidade, a física quântica se deparou com padrões complexos
de interação em que as partículas – e as coisas – não são apenas interativas, mas interconstitutivas, constituindo-se
mutuamente através das relações. Como coloca muito bem Carlo Rovelli:
A teoria não descreve como as coisas “são”: descreve como as coisas “acontecem” e como “influem umas sobre
as outras”. Não descreve onde está uma partícula, mas onde a partícula “se faz ver pelas outras”. O mundo das
coisas existentes é reduzido ao mundo das interações possíveis. A realidade é reduzida a interação. A realidade é
reduzida a relação. (...) Todas as características de um objeto só existem em relação a outros objetos. É só nas
relações que os fatos da natureza se configuram. No mundo descrito pela mecânica quântica, não existe realidade
sem relação entre sistemas físicos. Não são as coisas que podem entrar em relação, mas são as relações que dão
origem à noção de “coisa”. (ROVELLI, 2014, p. 123) [Destaques entre aspas do próprio Rovelli]
A emergência da noção de complexidade em campos diversos deu impulso à tentativa de produção de uma
Teoria Geral dos Sistemas (2009), título do livro publicado por Ludwig Bertalanffy em 1968. Trata-se de um esforço
interdisciplinar para lidar com “problemas de inter-relação de grande número de ‘variáveis’” (BERTALANFFY, 2009, p.
15). Bertalanffy fala então do surgimento de um “novo paradigma”, com uma “nova filosofia da natureza” baseada
em um “ponto de vista organísmico do ‘mundo como uma grande organização’”. (BERTALANFFY, 2009, p. 16).
Como vimos, ao longo do século XX, para além do paradigma mecanicista-analítico, surge um novo paradigma
que poderíamos chamar de paradigma da complexidade. A partir das referências anteriormente citadas,
compreendemos o paradigma da complexidade como uma visão de mundo segundo a qual os seres existentes se
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articulam como sistemas compostos por relações e interações auto-organizáveis a partir das quais há emergência de
modos de ser que não são redutíveis a nenhuma das partes isoladamente.
Após essa breve introdução, passaremos a uma investigação dos principais impactos do paradigma da
complexidade na formação de professores, procurando explicitar de que maneira ele desestabiliza, desconfigura ou
desconstrói os sentidos mais geralmente atribuídos aos processos educacionais.
Este é um trabalho de Filosofia da Educação. No livro Metodologia e prática de pesquisa em Filosofia (2015),
Evandro Barbosa e Thaís Cristina Costa nos lembram que em uma investigação filosófica
Não nos interessa tomar o saber preexistente como dado, mas perscrutar caminhos não percorridos, através de
uma atividade filosófica crítica que busque a justificação do conhecimento de uma forma mais profunda que a
simples aceitabilidade do senso comum sobre suas definições (BARBOSA; COSTA, 2015, p. 14).
Os autores citam Thomas Nagel para demarcar a diferença entre a Filosofia e os demais campos das ciências:
Ao contrário da ciência, ela não se apoia em experimentos ou na observação, mas apenas na reflexão. E, ao contrário da matemática, não dispõe de nenhum método formal de verificação. Ela se faz pela simples indagação e
arguição, ensaiando ideias e imaginando possíveis argumentos contra elas, perguntando-nos até que ponto nossos conceitos de fato funcionam. (NAGEL ap. BARBOSA; COSTA, 2015, p. 14)
Nessa intenção de indagar até que ponto nossos conceitos de fato funcionam, propomos nesse artigo colocar
em questão os dois sentidos mais comumente atribuídos aos processos educacionais: a transmissão de conteúdos de
conhecimento e o ensinamento de valores morais. Sendo ambos esses projetos baseados na noção moderna de
sujeito como centro de comando substancial, racional e consciente, propomos também em primeiro lugar investigar
até que ponto esse conceito de sujeito herdado da modernidade ocidental verdadeiramente funciona.
Assim, de acordo com os “passos básicos” (BARBOSA; COSTA, 2015, p. 24) de uma pesquisa em Filosofia, o
problema que move nosso trabalho é: se incorporarmos os princípios do paradigma da complexidade em nossa
formação enquanto professores, quais seriam as principais implicações sobre a maneira como costumamos
compreender o sentido da nossa prática? Trata-se de um problema situado na fronteira entre ontologia – já que se
trata de uma investigação sobre quem são as pessoas envolvidas nos processos educacionais articulada a uma
investigação sobre a própria natureza do mundo; epistemologia, pois exige que nos questionemos sobre o que é
conhecimento; e ética, pois tem um impacto direto em nossa maneira de ser e estar no mundo.
Nossa hipótese básica é que o paradigma da complexidade inviabiliza o conceito tradicional de sujeito,
exigindo que repensemos também os sentidos mais comumente atribuídos aos processos educacionais. Por fim,
podemos dizer com Evandro Barbosa e Thaís Cristina Costa que
Nem sempre o problema vem acompanhado de uma única questão, por isso sua resolução pode exigir equacionar
problemas correlatos que orbitam a questão central. Nesse caso, a resolução da questão central (e suas questões
secundárias) passa diretamente pelo nível justificação que oferecemos em nossas respostas, tendo em vista que
essa busca ad eterno pelo conhecimento não repousa em uma resposta absoluta. Com isso, somos convidados a
revisar nossas crenças a todo o momento, na medida em que nossas respostas repousam sobre argumentos
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passíveis de revisão e crítica. De certa forma, este trabalho filosófico de refinar nossas respostas e soluções é o
que permite aprimorar e aumentar o nível de justificação da argumentação filosófica. (BARBOSA; COSTA, 2015,
p. 26)
Quanto ao tipo e procedimentos técnicos, nosso trabalho combina pesquisa exploratória com pesquisa
bibliográfica (BARBOSA; COSTA, 2015, p. 32-33) sobre o tema teoria da complexidade entre obras clássicas, de
divulgação científica ou obras mais recentes aplicadas a questões específicas. Nossa leitura é guiada pelas exigências
do pensamento filosófico que, como muito bem colocado por Gonçalo Armino Palácios, deve mobilizar “espírito
crítico, imaginação e poder argumentativo” (PALÁCIOS, 1997, p. 33).
Sem sujeito, como fica?
Ao corrigir trabalhos em um curso de formação de professores é provável que se encontre um bom número
de vezes a expressão “formar sujeitos críticos e reflexivos”. Vez por outra, ela se encaixa na linha de argumentação
construída até então e vem coroar uma cadeia de argumentos bem-intencionados quanto ao papel do educador.
Numa boa maioria das vezes, no entanto, ela aparece como um coringa ou super-trunfo supostamente capaz de
elevar magicamente o nível do texto com sua mera aparição. É muito comum vermos eventos e artigos acadêmicos
sobre os “sujeitos” da educação, o sujeito professor, o sujeito aluno, a interação entre sujeitos etc.
“Sujeito”, no entanto, é a pedra angular do paradigma mecanicista-analítico. Não por acaso, a filosofia
mecanicista-analítica de Descartes é também aquela que aponta como único ponto fixo de certeza imutável a
presença do “sujeito” como “substância pensante” essencialmente racional e consciente. É esse sujeito substancial
que, criado à imagem e semelhança de Deus, é único e indivisível, resultando no moderno conceito de “indivíduo”,
com seus direitos, deveres e propriedades fundamentais. É também ele que, por participar em alguma medida da
perfeição divina, é sempre “idêntico a si mesmo”, resultando na noção de “identidade”.
Ao operarmos efetivamente a transição para o paradigma da complexidade, como fica essa noção clássica de
“sujeito”? Em sua premiada tese A Cidade sou Eu (2007), Rosane Araújo utiliza o paradigma sistêmico justamente
para operar o “alargamento, descentramento, e dissolução do conceito de ―eu” (ARAUJO, 2007, p. 155).
Desconstruindo a oposição binária entre “indivíduo” e “cidade” – que possibilita a afirmação que dá título à tese – a
autora chega ao seguinte:
Assim como a cidade, também somos redes de formações, campos de força constantemente colocados em jogo,
à medida que nos conectamos com os espaços, de maneira imbricada e interdependente. São essas situações
relacionais que borram os limites e dissolvem as fronteiras que nos separam da cidade. (ARAUJO, 2007, p. 151)
A ideia de um “sujeito” substancial previamente constituído, único, idêntico a si mesmo e indivisível não
sobrevive ao paradigma da complexidade. No paradigma da complexidade cada “coisa”, “objeto”, “pessoa”,
“instituição”, “valor” ou “ideia” emerge como resultante de uma trama multidimensional de circunstâncias de todos
os tipos – biológicas, físicas, químicas, culturais, tecnológicas. As interações entre circunstâncias variadas produzem
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padrões de organização específicos que aparecem configurados como singularidades específicas. Essas
singularidades, no entanto, não são substanciais, mas relacionais e organísmicas; não são “unidades” previamente
constituídas e fechadas sobre si mesmas. Estão abertas a múltiplas e diversas influências, afetações e interações que
as compõem; não são “idênticas” a si mesmas, são compostas por multiplicidades de circunstâncias diversas em
concerto, por isso mesmo, longe de ser imutáveis, são dinâmicas e experimentam transformações dependendo das
variações nas interações que estabelecem.
Assim, não se sustentam como sentidos da educação nem a pretensão “tradicional” de formar sujeitospadrão segundo princípios morais e conteúdos de conhecimento universais e imutáveis, nem a pretensão
“progressista” de formar sujeitos críticos e reflexivos. Sujeitos críticos e reflexivos seriam como substâncias pensantes
que, tomando assento num ponto de vista privilegiado, pode ver a totalidade das circunstâncias do seu mundo a
partir de “fora”. Isso possibilita ao “sujeito” racional um ponto de vista “crítico” capaz de um diagnóstico preciso dos
males do seu tempo, bem como uma ação livre, capaz de “transformar” seu mundo segundo um programa racional
previamente estabelecido.
Ao incorporar realmente o paradigma da complexidade na formação de professores, mais do que se
perguntar “que sujeito formar diante dessa radical mudança de paradigma?”, será preciso então que nos
perguntemos: “como pensar a formação humana sem sujeito?”.
O que significa conhecer?
A despeito de todas as críticas tão bem formuladas por Anísio Teixeira e Paulo Freire, os grandes patronos da
nossa Educação, ainda é muito comum imaginarmos que o que acontece em um processo educacional é a transmissão
de conteúdos de conhecimento entre sujeitos racionais. Um dos sentidos mais comuns atribuídos à educação é
justamente esse e, supondo que caia de paraquedas repentinamente diante de uma turma, um recém-chegado
professor muito provavelmente imaginará que um dos sentidos fundamentais da sua presença ali será transmitir os
conteúdos de conhecimento da sua respectiva disciplina aos sujeitos racionais e conscientes que o encaram. Numa
sala de aula, no entanto, há sempre muito mais do que isso acontecendo. O que talvez não esteja acontecendo de
maneira alguma é justamente a transmissão de conteúdos de conhecimento entre sujeitos racionais.
O paradigma mecanicista-analítico canonizou uma concepção de conhecimento segundo a qual há no seio
do universo e na face da Terra um ser especial, diferente por natureza de todos os demais, o humano, que, por ser
essencialmente racional e consciente, é capaz de conhecimento. O sujeito-racional-humano coloca-se, então, diante
de um mundo-objeto e aplica suas faculdades sensíveis e principalmente suas faculdades intelectuais (capazes de
processar as informações advindas dos sentidos) para conhecer os objetos que povoam o mundo. Nesse processo, o
sujeito é ativo e os objetos passivos e o conhecimento deve buscar ser verdadeiro, isto é, universalmente válido.
O novo paradigma complexifica as coisas. Se tudo o que há emerge como efeito de uma grande rede de
interações, não há nenhum “sujeito” nem nenhum “objeto” previamente constituídos que então entram numa
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relação especial que, por sua vez, produz um resultado chamado “conhecimento”. Incorporando o paradigma da
complexidade, os pensadores da chamada teoria-ator-rede dedicaram boa parte de seus esforços a investigações
acerca do chamado “conhecimento científico”. Muito além de pensar o conhecimento como produto da ação de um
sujeito-cientista-racional em um ambiente-laboratório controlado, a teoria-ator-rede pensa qualquer conhecimento
como resultante – inscrita em um suporte material – de interações de atores heterogêneos – artefatos tecnológicos,
investimentos financeiros impulsionados por campanhas de marketing, interesses e significações diversos. O criador
do termo é John Law. Assim ele descreve o procedimento dos pesquisadores ligados à teoria ator-rede ao investigar
o que seja “conhecimento”:
o “conhecimento” (mas eles generalizam de conhecimento para agentes, instituições sociais, máquinas e organizações) pode ser visto como um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos.
Eu coloquei “conhecimento” entre aspas porque o conhecimento sempre assume formas materiais. Ele aparece
como uma fala, ou como uma apresentação numa conferência; ou ele aparece em artigos, livros, patentes. Ou
ainda, ele aparece na forma de habilidades incorporadas em cientistas e técnicos (Latour e Woolgar, 1979). O
“conhecimento”, portanto, é corporificado em várias formas materiais. Mas de onde ele vem? A resposta da teoria ator-rede é que ele é o produto final de muito trabalho no qual elementos heterogêneos – tubos de ensaio,
reagentes, organismos, mãos habilidosas, microscópios eletrônicos, monitores de radiação, outros cientistas, artigos, terminais de computador, e tudo o mais – os quais gostariam de ir-se embora por suas próprias contas, são
justapostos numa rede que supera suas resistências. Em resumo, o conhecimento é uma questão material, mas
é também uma questão de organizar e ordenar esses materiais. Este então é o diagnóstico da ciência, na visão
ator-rede: um processo de “engenharia heterogênea” no qual elementos do social, do técnico, do conceitual, e
do textual são justapostos e então convertidos (ou “traduzidos”) para um conjunto de produtos científicos, igualmente heterogêneos. (LAW, s/d, p. 2)
O maior expoente da teoria-ator-rede, Bruno Latour, descreve a experiência hipotética de uma pesquisadora
que visita um laboratório a fim de fazer uma pesquisa de campo – posição em que ele mesmo tantas vezes esteve em
sua juventude:
ali encontra pessoas de jaleco branco, provetas de vidro, cultivos de micróbios, artigos com notas de pé de página:
tudo indica que se encontra “no terreno da Ciência”; logo se põe a anotar com obstinação de onde provém os
ingredientes sucessivos que seus informantes necessitam para levar adiante seu trabalho. Ao proceder desta maneira, a jovem reconstitui muito rapidamente uma lista de ingredientes que se caracterizam (…) por conter elementos cada vez mais heterogêneos. No mesmo dia pode ter anotado a visita de um jurista que foi tratar das
questões de patentes, um pastor para as questões de ética, um técnico para a reparação de um novo microscópio,
de um escolhido para o voto de uma subvenção, de um business angel para o lançamento da próxima start-up,
de um industrial para ajustar um novo fermentador, etc. Uma vez que seus informantes asseguram que todos
esses atores são necessários para o êxito do laboratório, ao invés de identificar os limites de um domínio, sempre
questionados por diversas manchas, nada lhe impede de seguir as conexões de um elemento, pouco importa qual,
e ver aonde leva. (LATOUR, 2013, p.44)
Há, portanto, uma rede de elementos heterogêneos – uma rede de circunstâncias de todos os tipos – que interagem
e produzem efeitos emergentes.
Em uma sala de aula há uma rede de circunstâncias de todos os tipos: circunstâncias biológicas,
eletroquímicas, significações culturais, saberes e técnicas vindos de muitos tempos e lugares diferentes, inscritos em
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suportes diferentes – papéis, HDs, nuvens, cérebros –, tecnologias diversas, complexos afetivos diversos, interagindo
numa intrincada rede que vai produzindo reverberações singulares para cada um dos envolvidos. Não se trata,
portanto, de uma relação unidimensional (transmissão de conteúdos de conhecimento) entre sujeitos, mas de uma
rede multidimensional de agentes produzindo reverberações singulares.
Se eliminarmos a figura do “sujeito” substancial essencialmente racional e consciente, nos vemos impelidos
a repensar o que chamamos de conhecimento. É o que propõem dois grandes nomes do paradigma da complexidade,
Maturana e Varela, em seu belo livro A Árvore do Conhecimento (2001). Ao invés da dicotomia entre sujeito e objeto
previamente constituídos que estabelecem uma relação específica “de conhecimento”, Maturana e Varela descrevem
o processo do conhecer como inseparável do processo de viver e agir em meio a uma teia de relações que produz
seres vivos singulares. Há uma “circularidade cognitiva” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 266) e um “acoplamento
estrutural” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 87) que fazem com que cada ser vivo venha a existir como efeito de
interações entre suas partes componentes e seu ambiente. Uma vez configurado esse mesmo ser vivo segue em
interação com as circunstâncias que o compõem. Assim, numa rede de interações que produz transformações
mútuas, as partes produzem o todo que produz as partes e o ser-vivo produz o ambiente que o produz.
Cada singularidade é um complexo afetivo que, para usar uma expressão de Spinoza, pode afetar e ser
afetado de muitas maneiras:
o corpo humano [e não só o corpo humano] (...) é composto de um grande número de indivíduos de natureza
diferente e pode, portanto (...), ser afetado de muitas e diferentes maneiras por um só e mesmo corpo e, inversamente, uma vez que uma só e mesma coisa pode ser afetada de muitas maneiras, poderá igualmente afetar de
muitas e diferentes maneiras uma só e mesma parte do corpo. Por isso tudo, podemos facilmente conceber que
um só e mesmo objeto pode ser causa de muitos e conflitantes afetos. (SPINOZA, 2016, p. 106)
Conforme suas possibilidades próprias de afetar e de ser afetado, um complexo existente vai mapeando,
lendo e percebendo as circunstâncias ao redor de acordo com seus próprios interesses de conservação e expansão
da própria força. Nesse movimento de mapeamento e percepção, um complexo existente vai desenvolvendo
maneiras próprias de agir e reagir em relação ao mundo circunstante. Vai formando uma maneira própria de
experimentar o mundo, ao mesmo tempo em que vai formando uma maneira própria de agir e reagir nesse mesmo
mundo.
Maturana e Varela nos convocam a
perceber tudo o que implica essa coincidência contínua de nosso ser, nosso fazer e nosso conhecer, deixando de
lado nossa atitude cotidiana de pôr sobre nossa experiência um selo de inquestionabilidade, como se ela refletisse
um mundo absoluto. Por isso, na base de tudo o que iremos dizer está esse constante dar-se conta de que não se
pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse "fatos" ou objetos lá fora, que alguém capta e introduz
na cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora é validada de uma maneira particular pela estrutura humana,
que torna possível "a coisa" que surge na descrição. Essa Circularidade, esse encadeamento entre ação e experiência, essa inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o mundo nos parece ser, nos diz que
todo ato de conhecer faz surgir um mundo. Essa característica do conhecer será inevitavelmente um problema
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nosso, nosso ponto de vista e o fio condutor (...) Tudo isso pode ser englobado no aforismo: todo fazer é um
conhecer e todo conhecer é um fazer. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 31-32)
Em toda interação entre complexos afetivos – corpos afetivos que podem afetar e ser afetados de muitas
maneiras – está acontecendo conhecimento. Ao invés de conceber um sujeito e um objeto previamente constituídos
e passar à investigação epistemológica sobre as possibilidades de “acesso” desse sujeito cognoscente ao objeto – terá
o sujeito um acesso ao mundo enquanto tal, ou será o mundo percebido apenas uma ilusão do sujeito? - a ênfase
recai sobre a relação que atravessa e constitui corpos afetivos complexos e seus respectivos mundos – ambos
formados de acordo com as possibilidades e capacidades mútuas de afetar e ser afetados. Ao contrário do que nos
diz o paradigma mecanicista-analítico, o conhecimento é sempre, portanto, perspectivo, interessado e parcial.
A questão deixa de ser, então “como transmitir conteúdos de conhecimento de maneira mais eficaz e
completa?”. Nem sequer será “como transmitir critérios seguros para diferenciar a verdade e a mentira, o universal
e o particular?”. A questão passa a ser: como produzir abalos e reverberações que possam potencializar as
possibilidades de afetar e serem afetados dos complexos afetivos envolvidos? Tal como coloca Spinoza:
É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de
afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de
ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras. E, inversamente, é nocivo aquilo que torna o corpo
menos capaz disso. (...) Quanto mais o corpo se torna capaz disso, tanto mais a mente se torna capaz de perceber
(...). Portanto, aquilo que assim dispõe o corpo e o torna capaz disso é necessariamente bom ou útil (...), e tanto
mais útil quanto mais pode tornar o corpo capaz disso; e, inversamente (...), é nocivo se torna o corpo menos
capaz disso. (SPINOZA, 2016, p. 180-181)
Ou seja, o conhecimento deixa de ter um sentido puramente intelectual e passa a ter um sentido éticoafetivo. A questão se torna então: como ampliar as capacidades de afetar e serem afetados dos complexos afetivos
envolvidos nos processos educacionais?
Para além de Natureza e Cultura
Em seu Manifesto Cyborg de 1985, Donna Haraway toma o ciborgue – cybernetic organism – como
representante máximo da vida contemporânea. Poderíamos tomar, com ela, o ciborgue como representante máximo
do paradigma da complexidade. Os ciborgues, como ela nos lembra, são “criaturas que são simultaneamente animal
e máquina, que vivem em mundos ambiguamente naturais e artificiais” (HARAWAY, 2019, p. 07).
O desenvolvimento tecnológico do século XX explicitou o caráter ilusório da fronteira entre natureza e cultura
e entre natureza e artifício. Como ciborgues, vivemos conectados a uma rede de diversos materiais, técnicas,
informações e tecnologias. Isso faz com que, por um lado, possamos pensar que tudo é natural, já que todos os
materiais, bem como todas as técnicas e saberes necessários para a produção de tecnologia, não tendo vindo de
nenhum “além”, estão na própria natureza. Por outro lado, podemos considerar, com o psicanalista MD Magno – que
incorpora o paradigma da complexidade na psicanálise – que tudo é artificial, já que tudo o que há é uma articulação
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de materiais e códigos diversos. Se antes o “natural” estava envolto em mistério, se nada sabíamos sobre a origem e
o modo de funcionamento dos seres “naturais”, uma vez que hackeamos os códigos da natureza, compreendemos
que também os sistemas ditos “naturais” são apenas articulações de materiais e códigos em padrões de organização
reprodutíveis em laboratório. Nas palavras de Magno:
Para mim, o que quer que haja é artifício. Distingo artifícios naturais, ou seja, dados espontaneamente, e artifícios
industriais, produzidos pelo homem, com a sua “mãozinha”. Uma árvore é um artifício dado. Não tenho dúvida
de que a insistência, mesmo na sua impotência, do saber, da artificiosidade humana em querer penetrar na construção de uma árvore, possa, um dia, vir a fabricar uma árvore por vias artificiosas. O mistério, o “misticismo”,
em torno da natureza é absolutamente boçal. Não é da nossa espécie cultuar um mistério que não passa de ser a
própria ignorância. O que é típico nosso é perguntar: será que há mesmo mistério? Será que, se formos penetrando aí e pesquisando, não descobriremos com que artifício a natureza se produz? Tanto é que insistimos e
investimos rios de dinheiro na produção artificiosa de dominância sobre a naturalidade do corpo, no caso da
medicina, do uso de remédios, dos processos de longevidade, de cura, etc. (MAGNO, 2001, p. 43-44)
Magno recusa qualquer suposição de uma “natureza” original que é acrescentada ou modificada pelo
artifício. A suposição de uma “natureza humana” é o que a educação conservadora procura resguardar ou resgatar.
O humano natural (ou divino) com seus valores naturais (ou divinos) deve ser protegido da corrupção do artifício.
Assim, a mulher natural deve desempenhar seus papéis sociais naturalmente dados, o homem natural deve
desempenhar seus papéis sociais naturalmente determinados e a sexualidade tem um único modo natural de
expressão. Por isso, Magno insiste que é preciso
recusar-se a fazer reverência ao mito, à ideologia ou coisa que o valha, da existência de uma Natureza. A crença
disto é o que faz com que suponhamos que há algo de intocável na realidade externa que é o creme do creme, a
essencialidade natural do mundo ou a co-naturalidade do Universo com um certo Deus absolutamente consciente,
onipotente, onipresente etc. (MAGNO, 1992, p. 132)
Ao comentar as implicações do manifesto ciborgue para a educação, Henrique Marins chama a atenção para
alguns pontos importantes que caem por terra uma vez que se elimina a fronteira entre natureza e artifício:
A partir do momento em que se elimina a necessidade de estabelecer claramente onde termina o homem e onde
começa a máquina, possibilitando perceber o ciborgue como uma criatura que é univocamente definida por sua
multiplicidade, desconstrói-se os discursos que levam à totalidade. Assim, o ciborgue não é atingido pelo desejo
edipiano, porque, enquanto homem-máquina, ele se fragmenta e se restitui sem o desejo de possuir ou de se
identificar a seus progenitores; não anseia, tampouco, por uma redenção apocalíptica, pois, se ele não é formado
a partir de uma natureza unificadora, seu destino não tem de sê-lo. (CARVALHO, 2013, p. 06)
O ciborgue não é essencialmente determinado por sua origem familiar. Ele é composto por multiplicidades
de materiais, articulações e conexões. Assim, ele não está também automaticamente inserido numa comum-unidade
ou irmandade de “semelhantes idênticos”. O ciborgue não tem uma História Universal que pré-determina sua origem,
seu sentido e sua finalidade. O ciborgue não se dissolve em unidades ou totalidades, ele encarna uma singularidade
dinâmica, um complexo afetivo cujo ser, as possibilidades, capacidades e percepções vão se transformando conforme
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as conexões que estabelece. Suas associações não se fazem pela força de uma natureza comum, nem de uma
qualquer identidade cultural, mas sim pela potência de coalizões por afinidade (HARAWAY, 2019, p. 16).
A destruição da fronteira entre natureza e cultura – se está tudo conectado em rede, onde passaria a
fronteira? – bagunça seriamente alguns dos sentidos éticos mais comumente atribuídos aos processos educacionais.
Já mencionamos que os projetos conservadores tentam ancorar seus anseios numa suposta “natureza” imutável do
humano, do homem, da mulher, da criança etc. Mas, mesmo os projetos ditos “libertadores”, ao tomarem como
sentido a produção de “liberdade” e “autonomia” estão encarecendo uma suposta diferença de natureza entre o
humano como sujeito racional, consciente e, como tal, livre para escolher seu destino, e os demais seres existentes,
regidos por leis mecânicas e determinísticas.
Para além de Liberdade e Repressão
A modernidade, ancorada na noção de sujeito racional consciente produziu pelo menos dois macroprojetos
educacionais. O primeiro, exaustivamente descrito por Foucault em Vigiar e Punir (2013) apresenta como sentido
ético da educação a imposição de ordem, disciplina e de rígidos valores morais preestabelecidos. Tal projeto aposta
na repressão de todas as expressões afetivas que destoam da sua norma padrão. O segundo propõe uma educação
capaz de produzir liberdade e autonomia.
Até hoje, aquele professor que – como em nosso exemplo anterior – caísse de paraquedas diante de uma
turma, provavelmente assumiria como sua segunda tarefa fundamental – ao lado da transmissão de conteúdos de
conhecimento – a imposição de ordem e disciplina, o “domínio de turma”, a transmissão dos mais nobres valores
morais já forjados pela civilização ocidental e, ao mesmo tempo, lembrando das suas melhores aulas de filosofia da
educação, imaginaria que o sentido da sua prática é – paradoxalmente – produzir liberdade e autonomia naqueles
“sujeitos” que agora o encaram.
Ambos os projetos tomam como fundamento inquestionado a presença de um sujeito essencialmente
racional e consciente. O projeto conservador conta com a possibilidade de reproduzir infinitamente a formação de
um sujeito-padrão segundo conteúdos de conhecimento e valores morais universais e imutáveis. Já a “liberdade”
pretendida pelo projeto “progressista” é atributo fundamental de um sujeito que, criado à imagem e à semelhança
de Deus, dispõe de livre-arbítrio para agir como bem entender. Autonomia seria a capacidade desse sujeito para
estabelecer leis racionais – em nível individual e social – para si mesmo e para a comunidade (a comum-unidade) dos
seres racionais. Para agir livremente, o “sujeito” teria que poder assumir uma posição externa à rede de circunstâncias
e relações que o constituem, que o determinam e impulsionam. “De fora”, como um Deus, o sujeito poderia intervir
nas circunstâncias pela única força da sua vontade livre e incondicionada.
Se pensarmos numa dinâmica de redes operantes segundo o paradigma da complexidade, tanto o projeto
conservador quanto as pretensões progressistas de “liberdade” e “autonomia” simplesmente não se sustentam. O
que faz com que cada um de nós seja o que é – e faça o que faz, e perceba o que percebe? Ter nascido num certo
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tempo, num certo lugar, sob certo regime de primeiros cuidados, em meio a determinadas condições climáticas,
econômicas, sociopolíticas, tecnológicas, ter sido afetado pelas relações com as muitas coisas, pessoas e instituições
que atravessaram e compuseram nosso caminho, ter adoecido e se restabelecido de muitas maneiras, ter
experimentado uma variada gama de sofrimentos e alegrias, decepções, medos e expectativas, ter sido afetado pelas
artes de diversos tipos que circulavam nesse tempo e nesse lugar, ter tomado parte num certo esquema educacional
etc. A lista é infinita e inesgotável. Cada um desses elementos é como um ator heterogêneo interagindo numa imensa
rede. A interação desse complexo dinâmico de circunstâncias vai formando para cada um de nós uma existência – e
uma trajetória – absolutamente singular.
A tentativa de impor um padrão identitário a essa singularidade, reprimindo tudo o que, nela, destoa desse
mesmo padrão, exige altos níveis de investimento – de tempo, recursos e energia – e está irremediavelmente fadada
ao fracasso. Essa composição singular e complexa sempre destoa, sempre desvia, sempre produz dissonâncias. Por
outro lado, a “liberdade” é impossível, pois conta com a ilusão de que em meio a todo esse processo dinâmico de
articulações de circunstâncias em rede pudesse haver um “centro de comando” capaz de assumir o controle do
processo. Cada um de nós já teve a oportunidade de experimentar, para o bem e para o mal, que uma tal suposição
de comando e controle simplesmente não se sustenta. Dizemos que o “sujeito” escolhe carregar um guarda-chuva
num dia chuvoso sem levar em conta que o próprio fato – incontrolável – de estar chovendo é um forte determinante
dessa “escolha”. A existência de guarda-chuvas, por sua vez, remete ainda a toda uma rede de materiais, trabalhos,
técnicas e transportes que tornam possível essa mesma “escolha”.
Assim, talvez, para além de repressão e liberdade pudéssemos tentar apostar na regência dessa
multiplicidade de circunstâncias constitutivas a fim de produzir modos de expressão singulares. Mais do que agentes
da lei ou agentes da liberdade, professores poderiam, então, quem sabe, ser mensageiros de circunstâncias
maestrinas capazes de reger multiplicidades de circunstâncias e afetos. As artes, os esportes e as ciências carregam
consigo o potencial de serem excelentes circunstâncias maestrinas. Ao contrário das instituições disciplinares dos
projetos conservadores, as circunstâncias maestrinas não estarão preocupadas em consertar os complexos de
circunstâncias e afetos que compõem cada um de nós. Circunstâncias maestrinas estarão preocupadas em concertar
essa multiplicidade constitutiva, produzindo com ela modos de expressão e de existência singulares.
Considerações finais: navegar é impreciso
Em um dia de inverno de 1961, Edward Lorenz trabalhava em seu supercomputador no M.I.T. Ele trabalhava
em um ambicioso projeto meteorológico alimentado pela ilusão megalomaníaca humana quanto à possibilidade de
controlar inteiramente o clima do planeta – para fins de guerra e lazer. No computador, sequências numéricas
correspondiam a variações climáticas específicas e operavam diversas simulações. Apressado para tomar um café,
Lorenz arredondou a sequência numérica com uma diferença mínima, de um para mil. Ao invés de lançar 0,506127,
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lançou 0,506, julgando que uma diferença tão mínima não produziria qualquer alteração na repetição da simulação
anterior. “Ao voltar, uma hora depois, viu algo que plantou a semente de uma nova ciência” (GLEICK, 1990, p. 14).
Essa nova ciência ficaria conhecida como Teoria do Caos e sua imagem paradigmática seria o chamado “efeito
borboleta”, que em sua formulação mais popular, diz que “o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode gerar um
furacão no Texas”. A matemática do Caos se tornou uma ferramenta chave para a descrição e mapeamento da
dinâmica de sistemas complexos. O princípio fundamental da Teoria do Caos é a “dependência sensível das condições
iniciais” (GLEICK, 1990, p. 20). Isso significa que em um sistema complexo, as “condições iniciais”, isto é, a rede de
circunstâncias que compõe o sistema, atua decisivamente na determinação do seu comportamento futuro. Por isso,
uma mínima circunstância não mapeada ou desconhecida, provocará, a médio ou longo prazo, uma resultante
inteiramente diferente da inicialmente esperada. Lorenz descobriu que prever inteiramente o que aconteceria com
o clima – e com qualquer outro sistema caótico – era absolutamente impossível.
Uma das tentações mais comuns da experiência docente é a vontade de controle. Planejar cada detalhe,
prever cada possibilidade, prepara-se para cada cenário, prevenir-se de todo modo possível. Pré-determinar de
maneira rígida o sentido do processo. Transmitir conteúdos de conhecimento. Impor ordem e disciplina. Produzir
liberdade e autonomia.
A cibernética, que nos presenteou com o conceito de auto-organização – e que está na origem do ciborgue –
remete ao grego kybernetes, o timoneiro. A imagem é curiosa. Pois faz pensar – como sempre insistiu Platão – que o
timoneiro é o sujeito racional que, porque dispõe de um saber prévio e bem consolidado sobre a arte da navegação,
está sempre no controle e no comando do navio. Mas a imagem cibernética do timoneiro é diferente. Diz respeito
justamente à imprecisão da arte da navegação. Diz de abrir-se a um não-saber fundamental e a um não estar no
controle do processo. O timoneiro, na metáfora cibernética, é aquele que gira o timão de acordo com as informações
que lhe chegam do mar. Ele responde ao movimento das ondas. Sua excelência terá mais a ver com um estar aberto
e atento, inteiramente conectado ao mar das circunstâncias, do que ao fortalecimento de um centro de comando
dotado de conteúdos de saber que garantem seu sucesso.
Se o paradigma da complexidade pode nos ensinar algo talvez seja justamente isso: navegar é impreciso.
Viver é impreciso. Dar aula é impreciso.
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