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A vingança como afeto social

2016, Artefilosofia

A vingança como afeto social: Toni Morrison e Beloved Silvio Ricardo Gomes Carneiro (UFABC) Introdução: vingar por amor Entender as razões da vingança não se limita à perspectiva imediata de seu ato, em geral, hediondo. Há toda uma trama, todo um jogo de relações implícito no momento em que a descrevemos como “prato a ser servido frio”. Não apenas por ser um caso pensado, mas também porque no ato da vingança estão cristalizadas as condições que levam o personagem a cometer sua arte. Nesse sentido, Beloved apresenta a gramática de sua narrativa, no esforço de dizer um sofrimento que escapa à linguagem, cuja ponta do iceberg é aquilo que custa a ser dito: o infanticídio que se apresenta lentamente na construção das memórias dos personagens. Pois, o sentimento que move Sethe, a mãe, a cortar a garganta de seu bebê, Amada, é sobretudo a descrição de um ato de amor. Um assassinato como vingança diante dos caçadores de toda a sua família de foragidos: Sethe corta a garganta de sua bebê diante daqueles que levariam a todos como escravos. Fria como a vingança há de ser, o crime é pois a ponta do iceberg. Toni Morrison não faz deste gesto o centro de seu livro. É até compreensível, pois, que a autora rejeite comparações com o infanticídio clássico da Medeia. Sethe não mata para arrancar de si todas as marcas de um amor traído ou do isolamento de uma estrangeira que largou tudo e traiu o seu povo para a glória de seu Jasão. O ato de amor de Sethe, o infanticídio, é o resultado dos afetos sociais gerados em um terreno onde não se aprendeu a amar. Sob os olhos de Paul D, seu amante intrigado ao saber do crime cometido, Sethe procura descrever o que tanto defendeu em seu ato. Ao fugir de Sweet Home, a plantation onde os Garner mantinham seus escravos, Sethe segue para a 124 da Bluestone Road, terra de negros livres onde encontra o território fértil para desenvolver aquilo que jamais aprendera: a amar. Diz a ex-escrava: (...) Eu era grande, Paul D, e quando abria os braços, havia um espaço enorme para acolher minhas crianças. Parece que passei a amá-las mais depois de chegar aqui. Ou talvez não pudesse amá-las adequadamente em Kentucky, porque lá não eram minhas de verdade. Mas quando cheguei aqui, (...) não 51 havia mais ninguém no mundo que eu não pudesse amar se quisesse fazê-lo. Entende o que quero dizer?1 Difícil de entender: como alguém que amava tanto é capaz de uma atrocidade como aquela? Talvez o próprio Paul D tenha a resposta, quando – ainda ignorante do infanticídio - apresenta suas primeiras impressões sobre a relação de Sethe e Denver (a única filha que ainda permanecera na casa 124, após a prisão de sua mãe). Paul D mal acabara de chegar naquele lugar e, em seu primeiro diálogo com as duas moradoras, já pressente o risco dos afetos que circulam naquele ambiente. Ele, um ex-escravo que aprendera a nunca se apegar a nada ou a ninguém (fixar-se em algum lugar significa aprisionar-se a ele), sabia que, para uma ex-escrava amar algo assim era perigoso, especialmente se dedicava um amor desses aos filhos. O melhor, ele sabia, era amar só um pouquinho; amar tudo, mas só um pouquinho, pois, no caso de a coisa sumir, talvez ainda restasse um pouco de amor para a próxima.2 Há aqui uma desmedida na ordem dos afetos. Amar a tudo um pouco ou amar da maneira “densa” (como descreve Paul D em outra ocasião) e grandiosa a tudo que cabe num abraço? A vingança surge como efeito disso: seja no infanticídio contra os seus algozes; seja no retorno dos fantasmas, do bebê reencarnado na forma de menina crescida que também herda a desmedida amorosa. Pois há duas vinganças desenhadas na narrativa de Beloved. A primeira, já descrita, o infanticídio daquele pequeno ser, ainda sem nome, indeterminado na sua identidade – em um plano frustrado de Sethe contra seus caçadores. Era para que todos (ela e seus 4 filhos) fossem encontrados mortos pelos algozes. Vingança incompleta que gerou restos: o fantasma do bebê degolado que assombrava desde então a paz da casa 124. Baby Suggs, a “santa” que a todos recebia naquele lugar (e outro ser que aprendeu a natureza do amor entre os seus na liberdade comprada pelo trabalho de seu filho), reconhecia a sede de vingança daquele fantasma. Dizia a Denver, sua neta, que o fantasma não queria lhe fazer mal e lhe deixaria em paz. No entanto, ele perseguia não apenas Sethe, como também a própria Baby Suggs (esta, por não evitar o crime). Era preciso cuidado, porque este era um “fantasma insaciável, que queria muito amor”.3 1 Toni MORRISON, Amada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; p. 189. MORRISON, Amada, p. 60. 3 MORRISON, Amada, p. 245. 2 52 A segunda vingança, por sua vez, vem com a encarnação desse fantasma, a misteriosa jovem que se diz chamar por Amada. Ser que surge das águas e passa a ocupar a atenção de todos naquela casa 124. Há na indeterminação desta entidade uma fome de amor saciada por histórias contadas por Sethe e Denver de um passado que buscavam a todo instante esquecer. Há neste amor faminto de Amada certa desmedida ameaçadora: um desejo tão forte de unidade com sua mãe assassina à sombra de certa vingança pelo abandono na morte. É dúbia a intenção de Amada pendurada entre a vingança e o amor. Haveria nesta obra, pois, uma vingança que organiza os seus personagens? Ou seria o amor desmedido (sentimento fragmentado que atravessa a todos os personagens) o motor da narrativa que tem como efeito, uma vingança de outra ordem, uma vingança da literatura contra a história de sofrimento? Economia X Ficção Seria necessário, pois, fazer algumas questões prévias. Primeiramente, por que, nesta história, o amor é desmedido? Em segundo, por que ele se manifesta nestas formas de vingança? Sigamos a primeira pergunta a partir das investigações de Toni Morrison. Pois seu livro é o resultado de uma pesquisa extensa sobre um material histórico que se desdobra nos fatos e nos jornais dos Estados Unidos ainda divididos por sua Guerra Civil, em que os escravos serviam de mão de obra barata – não importa qual lado do campo ocupem: seja lutando por sua liberdade nos exércitos do Norte, seja na manutenção das plantations do Sul.4 Diante de fatos tão controversos e tão cheios de sofrimento, Morrison apresenta a dificuldade desse escrito: Ao tentar fazer da escravidão uma experiência íntima, esperava que o sentido das coisas, estando tanto fora quanto sob controle, seria persuasivo todo o tempo; que a ordem e a quietude da vida cotidiana seria violentamente rompida pelo caos do morto miserável; que o esforço hercúleo para esquecer seria ameaçado pela memória desesperada em permanecer viva. Para tornar a escravidão em uma experiência pessoal, a linguagem deve sair dos trilhos/perder-se em seu caminho habitual [get out of the way].5 V. MORRISON, Beloved, p. 269, cf. RAYNAUD, “Beloved and the shifiting shapes of memory” in TALLY (ed.), The Cambridge Companion to Toni Morrison. 5 MORRISON, Beloved, pp. XVIII-XIX. 4 53 Morrison, pois, estava obcecada por este momento rico das ambiguidades, momento em que senhor e escravo estão longe de estabelecer uma dialética da reconciliação; momento em que resta uma linguagem a perder sua velha gramática. Algo que Paul D sabia muito bem quando recorda a história de Sixo – um americano nativo, escravo em Sweet Home – que respondia ao administrador da fazenda sobre o “roubo” de um porco da seguinte maneira: “Sixo planta centeio que consegue bons preços. Sixo cava e alimenta a terra, o que lhe dá mais colheitas. Sixo pega e alimenta Sixo para lhe dar mais trabalho” (e, portanto, prossegue silenciosamente o raciocínio, Sixo não roubou o porco, mas alimentava a força de trabalho que sustenta a economia de Sweet Home).6 Deste raciocínio, Paul D observa a reação do Professor (o administrador-capataz): “Apesar de considerar o argumento inteligente, o professor dera uma surra em Sixo, para mostrar que as definições pertenciam aos definidores – não aos definidos.”7 Eis a gramática a ser dispensada na narrativa de Beloved – como uma terceira vingança: a vingança da linguagem contra os definidores, da ficção versus a cliometria. Expliquemo-nos. Beloved é publicado em um momento especial. Em 1987, muito da interpretação tradicional sobre a escravidão nos EUA seria revista em um artifício astuto da escola neoliberal: uma releitura da ferida aberta do capitalismo através de uma rede de dados estatísticos inovadores que poderiam ensinar muito sobre as condições da escravidão, dissolvendo antigos mitos sustentados por ideologias humanitárias. O livro premiado pelo Nobel de economia, Time on the cross: the economics of American negro slavery, de Robert Fogel e Stanley Engermann sistematizaria pela primeira vez esta leitura histórico-econômica do sistema escravagista estadunidense através da cliometria, um projeto ambicioso, conforme os próprios autores, em que o “reexame da escravidão é parte de um esforço ainda mais ambicioso para reconstruir toda a história do desenvolvimento econômico estadunidense sobre impressionantes bases quantitativas.”8 Através de um refinamento das técnicas de dados estatísticos (e o auxílio de novos computadores que aceleram a configuração das variáveis), os autores passam a investigar as condições de vida dos escravos negros, de modo a preparar uma base comparativa geral com as condições dos negros libertos do Norte. 6 MORRISON, Amada, p. 223. MORRISON, Amada, p. 223. 8 FOGEL & ENGERMAN, Time on the cross, p. 6. 7 54 É certo que os autores são honestos (ou cínicos) o suficiente para admitir o limite desse processamento de dados, ao afirmar que a cliometria – embora desenvolvida em uma autonomia da linguagem econômica diante dos mitos da interpretação tradicional – tem seus limites. Sobretudo, a incapacidade cliométrica de mensurar os efeitos psicológicos que a escravidão produz. Procura retirar assim da margem de seus dados o campo subjetivo que escapa (e o sofrimento de carne e osso nele inscrito). Uma retirada estratégica, pois alcança certa vantagem na autonomia das bases quantitativas. Do elenco de mitos desfeitos pelos autores através da cliometria, um caso exemplar é o tratamento dado às bases nutritivas distribuídas entre os escravos e os brancos. Os autores descrevem seu método da seguinte maneira: primeiro, levantam a estimativa do “suprimento total de alimentos disponível para o consumo humano em determinadas plantations”; depois, dividiam este total conforme o destino do suprimento aos negros e aos brancos. Na medida em que não se tem um dado sobre a base nutricional dos brancos, toma-se como referência a média nacional do consumo de alimentos, concluindo que havia uma “sobrealimentação” por parte dos brancos: com a média estimada de 5300 calorias diárias – ao passo que era destinada aos negros 5% do montante geral de calorias. Decerto, reconhece-se a miséria calórica destinada aos negros.9 No entanto, concluem os autores: na comparação per capita do consumo nutricional entre os dois grupos sociais, havia uma sobrealimentação dos brancos que, por ventura, subestima o consumo nutricional escravo, que era relativamente elevado – sobretudo quando comparado aos trabalhadores industriais do norte. Por conseguinte, retirando os efeitos psicológicos do sistema escravagista, os autores concluem a existência de uma dieta mais balanceada aos corpos das plantations. São dados, como os próprios autores reconhecem, fragmentados – um balanço de números que tem sua complexidade e é suscetível a erros de cálculos. Falha que não significa nada além de um erro de composição das bases em questão: é parte da natureza dos erros contidos em diversos corpos de dados que eles [os cliometristas] empregam e as bases que tais erros produzirão estão baseadas nos dados nelas contidos. Quando avaliados deste ponto de partida, a evidência recai não apenas em duas categorias (bom e mal), mas em uma complexa hierarquia em que existem muitas categorias de evidência e graus variáveis de confiabilidade.10 9 FOGEL & ENGERMAN, Time on the cross, p. 11. FOGEL & ENGERMAN, Time on the cross, p. 10. 10 55 O juízo moral sobre os dados é parte pequena diante da capacidade de arranjos de dados e suas hierarquias. Evita assim o juízo moral da interpretação tradicional sobre a história da escravidão que impede de ver não apenas as pioras que o sistema industrial implantou nos EUA pós-Guerra Civil, como também as virtudes produtivas e de consumo ocultas nos sofrimentos da ordem escravagista. Ao fragmentar o escopo dessa história, os cliometristas levantam as virtudes nutricionais, produtivas e a organização social das vidas espalhadas nas plantations. Nesse novo arranjo de hierarquias, contudo, alguns mitos da história dos dominadores se dissipam. Os autores procuram mostrar quanto os negros eram mais produtivos do que os brancos (retirando a pecha de negros preguiçosos presentes na história oficial), procuram demonstrar a ordem familiar que organiza as relações sociais dos escravos (retirando a pecha de selvagem dos mesmos livros oficiais), a despeito de evitar os efeitos psicológicos da escravidão. Contudo, há aqui algo que Paul D chamaria “devil’s confusion” (confusão do diabo), que faz alguém parecer estar bem desde que se sinta mal, quando o sentido das coisas se apresenta no caos do controle e do descontrole.11 A astúcia do discurso de Fogel & Engermann se dá no fato de evitar falar do sofrimento para constituir o elogio de um novo tipo de sujeito: o homem que, ainda escravo, possui as habilidades e competências do trabalhador produtivo, organizado em uma unidade familiar economicamente viável e garantidor de sua própria sobrevida bem nutrida. O escravo narrado em Time on the cross é, curiosamente, o protótipo do empresário de si mesmo, o capital humano encarnado. Vejamos a “confusão do diabo” no caso familiar descrito pelos autores: A crença de que a procriação escrava, a exploração sexual e a promiscuidade destruíram a família negra é um mito. A família foi a unidade básica da organização social na escravidão. Foi o interesse econômico dos planters que encorajaram a estabilidade das famílias escravas e muitos assim o fizeram. A maior parte das vendas de escravos eram ou de famílias inteiras ou de indivíduos que já tinham a idade em que seria normal a eles deixar a família.12 Desmontar um discurso como esse, que escapa pelo fragmento dos dados e pela astúcia da “confusão do diabo” não é tarefa simples. Pois a mera acusação ideológica é respondida com uma série de números contrários e pelo interesse econômico mobilizado 11 12 MORRISON, Amada, p. 16. FOGEL & ENGERMANN, Time on the cross, p. 5. 56 pela mão invisível de aparente humanização. A violência contra os corpos escravizados é, na verdade, uma escola para o futuro empresário de si.13 Mas talvez aqui, mais do que em qualquer outro espaço, a narrativa de Beloved parece como estratégia crítica fundamental: algo que denomino a “vingança da ficção sobre a economia”. Pois o que interessa Morrisson não é alimentar a imaginação masoquista do leitor que observa um corpo negro e feminino que sofre. Como lembra Raynaud, o papel do leitor nesta narrativa é outro: no esforço de constituir uma subjetividade escrava (um contrassenso na ordem das ideias), Morrison faz o leitor ser sequestrado da mesma maneira que os negros foram abduzidos na África. “’Apreendidos como escravos de um lugar para outro, de qualquer lugar para qualquer outro, sem preparação e sem defesa’”, o leitor é “chamado ‘a uma participação ativa na experiência não-narrativa, não literária do texto, o que torna difícil para [ele] assegurarse em uma aceitação fria e distante dos dados.’”14. Não se encontra na ficção de Beloved a Grande História operando: interessam-lhe os fragmentos – pedaços não de uma realidade espicaçada pelas estatísticas, mas fragmentos como resultados das vidas estilhaçadas, que afeta os laços eróticos e a economia das relações de seus personagens, de modo que o amor verdadeiro aparece no exagero: no infanticídio do bebê ainda sem nome, no retorno do bebê em busca da necessidade de sua mãe. E o leitor é convidado à experiência desses fragmentos, montando o quebra-cabeças da história nas inúmeras perspectivas que rondam o crime. Recompor esta experiência é a melhor vingança que Morrison contra a confusão neoliberal. Sweet Home, 124 e a Clareira Morrison não poupa o leitor desta realidade. É interessante notar os espaços em que os personagens vivem suas narrativas: Sweet Home, a casa 124 da Bluestone Road e a Clareira. Todos lugares de testemunho da vida fragmentada, que é a “experiência íntima” da escravidão. Se atentarmos, Sweet Home, a plantation de onde saíram os personagens centrais do romance, seria muito próximo ao lugar da escravidão idílica desenhada pelos números da cliometria. Ali, Sethe formaria sua família. Ali, não haviam escravos: todos eram tratados para ser homens: comprei-os “como homens, criei-os como homens”, 13 A comparação é desenvolvida de maneira instigante em PEIRCE, Education in the age of biocapitalism. 14 RAYNAUD, “Beloved and the shifiting shapes of memory”, p. 44 (com citações de Morrison). 57 dizia Sr. Garner, o senhor de Sweet Home, “um sujeito bastante duro e bastante sabido para chamar os próprios negros de homens”.15 Viver como homens faz parte daquela “confusão do diabo”, descrita por Paul D, que fazia parecer bem na medida em que se sentia mal. Por isso, toda a memória de Sweet Home não é a descrição de um lugar feliz. Se os negros de lá são homens, como dizia o sr. Garner, é porque vivem sob as regras do seu senhor. Sethe apenas reconheceu isso quando saiu de lá, quando percebeu que em Sweet Home nunca fizera o que realmente decidira, nunca pudera amar verdadeiramente seus filhos. Se amava ou se agia, era sob as estritas regras de Sweet Home. Portanto, não amava ou agia como humana, mas como uma coisa que o sr. Garner denominava “homem”, como uma definição do definidor, e não do definido. Eles “só eram homens de Sweet Home em Sweet Home.”16 Nesse sentido, fugir de Sweet Home e encontrar a casa 124 da Bluestone Road, lugar distante de Ohio, lugar de confraternização entre os ex-escravos e outros foragidos da terra devastada pela Guerra, parecia ser o encontro com a utopia. De fato, ali – como havia dito anteriormente – pode-se verdadeiramente amar; amar exageradamente seus filhos e perceber que Sweet Home era um lugar para nunca mais voltar. Contrário dos espaços rígidos que forjavam homens ao sabor do Sr. Garner, a casa 124 era um lugar aberto em que todos circulavam, uma casa alegre, um lugar onde não uma, mas duas panelas ferviam no fogão; onde o lampião queimava a noite toda. Forasteiros descansavam, enquanto crianças se divertiam experimentando sapatos dos adultos. Recados eram deixados na casa, pois, fosse quem fosse o destinatário, com toda a certeza um dia passaria por ali.17 Foi este o lugar que Sethe encontrara, e – através de sua chegada – podemos compreender a distância do significado das coisas entre o reino de Sweet Home e a 124 da Bluestone Road. Contudo, havia de ser este lugar que seria maculado pelo fantasma do bebê assassinado. Os brancos de Sweet Home – verdade, sem mais a medida do Sr. Garner – encontraram ali Sethe e suas crianças. Na invasão dos brancos do território livre, todo o sentido contido lá perde o controle. Desde então, estava presente a noção de que qualquer um que fosse branco podia tirar a vida e a alma de um negro por qualquer motivo que lhe desse na cabeça. Eles podiam não apenas castigar, matar ou aleijar, mas também sujar. Sujá-los tanto a ponto de eles não gostarem mais de si próprios. (...) O que [Sethe] tinha de melhor eram seus 15 MORRISON, Amada, p. 20. MORRISON, Amada, p. 150. 17 MORRISON, Amada, p. 105. 16 58 filhos. Os brancos podiam sujá-la, mas não o que tinha de melhor, sua parte bela e mágica – a que era limpa. Recusar a tudo isso, a ser homem e mulher de Sweet Home e, ao mesmo tempo, ver sua liberdade invadida pela arbitrariedade de brancos que a caçavam, fez Sethe cometer o infanticídio. O fantasma foi o preço deste ato, o resto de limpo e sujo que permanece na casa 124. Baby Suggs, que comandara durante todo o tempo o território livre daquela morada, sabia disso. Não haveria porque fugir dali, ainda que isolados do resto da comunidade, - toda a comunidade havia se assustado com o crime hediondo de Sethe, com as notícias do fantasma e com o espelho de todos os seus crimes (aos poucos, os demais membros da comunidade seguem lembrando seus próprios crimes: Stamp Paid matara sua própria mulher após ser vendida ao para satisfazer seu senhor; Ella, outra negra que era próxima da casa, referia-se ao seu senhor como o “mais vil de todos”, dado os crimes e as perversões que ela a fez conhecer). De que adiantaria mudar? “Não existe uma casa no país que não esteja cheia da dor de algum negro morto”, dizia Baby Suggs. A própria casa 124 seria propriedade de um branco – o abolicionista “negro alvejado”, Edward Bodwin – que quase seria morto pela alucinação de Sethe, já totalmente envolvida pela relação com o fantasma encarnado de Amada. Depois do incidente com o senhor, novamente a casa 124 se mostra frágil diante do desejo dos brancos: os Bodwins pensam em vender a propriedade. Com efeito, fica em aberto quem seria o novo proprietário: um outro branco, os antigos negros? Talvez porque isso não mais importe. Quando Paul D retorna para a casa 124, já sem os vestígios do fantasma, percebe que “falta alguma coisa” ali.18 “Descarregada, a 124 é apenas mais uma casa velha precisando de reformas”. Do ambiente rancoroso e carregado pelo fantasma do passado, a casa 124 passa a ser barulhenta quando Amada encarna e toma posse de seu lugar junto à mãe. Descarregada, seria um lugar silencioso. A herança maior da casa 124 era, pois, deixar a memória da fragilidade da pouca liberdade a todo instante ameaçada pela arbitrariedade dos brancos. Ao prestar contas com seu passado, haveria espaço ainda para o amor? Paul D reconhecia em Sethe algo que seria capaz de reunir seus fragmentos. Ainda que fragilizada pelo desaparecimento de seu bebê-fantasma, Paul D sente emoções demais por esta mulher, a ponto de sua cabeça doer – como o despertar de sentimentos que jamais vivenciara enquanto o último 18 MORRISON, Amada, p. 316. 59 homem de Sweet Home. “Ela me junta (...). Os pedaços que sou, ela os junta e os devolve para mim da ordem correta.”19. Nesse diálogo final, Paul D decide juntar-se à Sethe: “eu e você temos mais ontem do que qualquer pessoa. Precisamos de algum tipo de amanhã”. Sethe, absorta em seus pensamentos na filha que desaparecera, nada diz. Até então, seus filhos eram sua melhor parte. Ela só desperta quando Paul D, em um gesto carinhoso, lhe diz: “Sethe, você é sua melhor parte”. E Sethe, que amou tanto seus filhos, mas nunca a si mesmo, se questiona: “Eu? Eu?” O romance poderia terminar aí. Mas não. Seria preciso dar destino ao amor que acabara de ser despertado. O amor aberto para “algum tipo de amanhã”. Repetidas vezes, Morrison lembra: “não era uma história para se passar adiante”. “Pouco a pouco, todos os vestígios vão desaparecendo, e o que foi esquecido não são apenas pegadas, mas também a água e o que tem lá no fundo. O resto é clima.”20 Clima que era o modo como Sethe vivia seu fantasma, quando não o amava ainda, “apenas o encarava como algo natural. Como uma súbita mudança no clima.”21 No entanto, talvez seja aí o único lugar em que o amor não se converta em vingança. Pois havia um lugar onde o clima predominava, onde os espaços eram abertos e os negros encontravam a sua liberdade: a Clareira, um espaço bem dentro da mata, no final de uma trilha conhecida apenas pelos animais daquele lugar, onde Baby Suggs pregava o amor, sem exageros, mas aquele que partia do cuidado do coração. Lá, a santa Baby Suggs organizava seu ritual: Chorem (...) Pelos vivos e pelos mortos. Apenas chorem. (...) Aqui, (...) neste lugar, somos carne; carne que chora, que ri. Amem essa carne. Amem muito. Lá fora eles não amam essa carne. Eles a desprezam. Nem amam nossos olhos; só querem arrancá-los. Muito menos amam a pele em nossas costas. Lá fora eles a açoitam. E, meu povo, eles não amam nossas mãos. Essas, eles apenas usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! Levantem suas mãos e beijem-nas! Toquem-se uns aos outros com elas, acariciem seu rosto com elas, porque eles também não gostam dele. Vocês tem de amar seu rosto, vocês! E mais: eles não gostam de nossa boca. Lá fora, irão quebra-la e quebra-la de novo. Jamais vão dar atenção às palavras e aos gritos que saem dela. O que colocamos dentro dela para nutrir nosso corpo será arrancado e substituído por restos. Não, eles não gostam de nossa boca. Estou falando de carne. Carne que precisa ser amada. Pés que precisam descansar e dançar; costas que precisam de apoio; ombros que precisam de braços; braços fortes. Meu povo, lá fora eles não amam nosso pescoço ereto. Vocês é que devem amá-lo. Ponham a mão nele, agradem-no, acariciem-no. Esse nosso fígado escuro, amem-no. E também a pulsação do coração que bate. Mais do que os olhos ou pés. Mais do que os pulmões que ainda têm muito a esperar para respirar o ar da liberdade. Mais 19 MORRISON, Amada, p. 319. MORRISON, Amada, p. 321. 21 MORRISON, Amada, p. 52. 20 60 do que o ventre que abriga a vida, mais do que as partes íntimas que fazem a vida, devemos amar nosso coração. Porque este é o prêmio.”22 Nesta longa enunciação, a ex-escrava dirige-se para os recém-libertos de modo a despertar neles o amor que nunca sentiram. Um amor que atravessa o corpo que nunca fora deles. Um amor que faz vida e gera neles certo cuidado de si. Signo que reaparece na figura de Denver, que se lança no mundo quando percebe seu próprio fim na loucura do amor mortal entre Sethe e sua Amada. Cuidar de si própria era preciso. E, ao fazê-lo, Denver poderia romper com a indeterminação que assombrava a existência escrava. Aqui está o gesto de vingança maior da ficção sobre a economia, a quebra do mal infinito que é a confusão do diabo. Denver segue viva e provavelmente saiba amar como na Clareira: no cuidado de si que rompe não apenas com as condições da escravidão, mas com a própria existência desta. 22 MORRISON, Amada, p. 107. 61