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O dano social

The present scenario of society characterized by vigilance, exploitation of natural resources and rampant consumerism end up producing massive damages. That phenomena forces civil liability to offer tools that guarantee society protection against those illicit acts that harm general life quality, lowering social standards. Therefore, providing compensation for damages caused is no longer enough for social liability, which is faced with the challenge of presenting solutions that take into consideration both punitive and preventive aspects. In this context, in which society prevails the individual, as well as damages surpass interpersonal relationships, protection mechanisms provided by the Brazilian judicial system are no longer sufficient to combat newer kinds of damages, that affect society as a whole. Hence, it is necessary to deepen the studies on the matter of moral damages on a social bias, specially its control of a situation in which society representatives can´t cope with the proposition of law suits that they are expected to. The study of this question led to proposing a new category of damage, that has been gradually faced and discussed by Brazilian Courts. In order to achieve that, it was necessary to make use of historic studies on the development of civil liability and specially the need to recognize several different kinds of damages throughout the years. That also included a conceptual, axiological and functional analysis of moral damages, as well as a study on the foreign experiences and the results they obtained when making use of similar institutes to the one proposed in the core of this study. All this effort was necessary to legitimize the acknowledgement of social damage, in order to create the basis for a new damage category, so that it be accepted and used on the solution of cases that demand more effective measures that the Brazilian legal system hasn´t been able to present yet.

FABRÍCIO ANGERAMI POLI O DANO SOCIAL DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Orientadora: Professora Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2014 FABRÍCIO ANGERAMI POLI O Dano Social Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Professora Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2014 Resumo O atual cenário da sociedade, caracterizada pela vigilância, exploração dos recursos naturais e consumo desenfreado de bens, que acabam por produzir danos de massa, traz à Responsabilidade Civil papel de oferecer instrumentos que garantam proteção dessa mesma coletividade contra esses ilícitos que prejudicam a qualidade de vida geral, rebaixando o patrimônio social. Assim, desempenhar unicamente o papel de reparação ou compensação do dano não se mostra mais suficiente à Responsabilidade Civil, que é demandada a apresentar soluções que coloquem em prática as suas funções punitiva e preventiva. Nesse contexto, em que o coletivo sobrepõe-se ao individual, e que os danos ultrapassam as relações interpessoais, os mecanismos de proteção apresentados pelo atual ordenamento jurídico brasileiro não se mostram mais suficientes para combater os novos tipos de lesões que atingem a sociedade, mostrando-se necessário o aprofundamento sobre a questão de danos extrapatrimoniais, em âmbito coletivo, especialmente no que tange ao seu controle em um cenário em que os representantes da coletividade não conseguem suprir a demanda de ações que deveriam promover. O enfrentamento de tal questão levou à proposição do reconhecimento de uma nova modalidade de dano, que vem sendo, paulatinamente, encarada e debatida pelo Poder Judiciário. Para isso, foi necessário recorrer-se a apontamentos históricos a respeito da Responsabilidade Civil, seu desenvolvimento e, especialmente, necessidade de reconhecimento de vários tipos de danos ao longo dos anos, além de análise conceitual, axiológica e funcional do dano extrapatrimonial, e o estudo sobre a experiência estrangeira, os resultados obtidos por outros ordenamentos jurídicos na aplicação de figuras similares a que se propôs fosse reconhecida neste estudo. Todo esse esforço foi necessário para legitimar o reconhecimento de um dano social, ou seja, sedimentar as bases de uma nova categoria de dano, para que seja ela aceita e aplicada na solução de casos que demandam medidas mais efetivas, que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não foi capaz de apresentar. Palavras-chave: Dano social. Interesses coletivos e difusos. Punição. Prevenção. Patrimônio social. Qualidade de vida. Segurança. Abstract The present scenario of society characterized by vigilance, exploitation of natural resources and rampant consumerism end up producing massive damages. That phenomena forces civil liability to offer tools that guarantee society protection against those illicit acts that harm general life quality, lowering social standards. Therefore, providing compensation for damages caused is no longer enough for social liability, which is faced with the challenge of presenting solutions that take into consideration both punitive and preventive aspects. In this context, in which society prevails the individual, as well as damages surpass interpersonal relationships, protection mechanisms provided by the Brazilian judicial system are no longer sufficient to combat newer kinds of damages, that affect society as a whole. Hence, it is necessary to deepen the studies on the matter of moral damages on a social bias, specially its control of a situation in which society representatives can´t cope with the proposition of law suits that they are expected to. The study of this question led to proposing a new category of damage, that has been gradually faced and discussed by Brazilian Courts. In order to achieve that, it was necessary to make use of historic studies on the development of civil liability and specially the need to recognize several different kinds of damages throughout the years. That also included a conceptual, axiological and functional analysis of moral damages, as well as a study on the foreign experiences and the results they obtained when making use of similar institutes to the one proposed in the core of this study. All this effort was necessary to legitimize the acknowledgement of social damage, in order to create the basis for a new damage category, so that it be accepted and used on the solution of cases that demand more effective measures that the Brazilian legal system hasn´t been able to present yet. Key-words: Social damage. Collective and social interests. Punishment. Prevention. Social patrimony. Life quality. Security. INTRODUÇÃO O Direito vem testemunhando inúmeras e intensas transformações ao longo do último século, que podem ser atribuídas a também constante mudança da configuração da sociedade, em que, cada vez mais, engrandece-se a pessoa e, consequentemente, a sua dignidade, ao patamar mais elevado de proteção, que antes era reservado mais à propriedade e à posse. Assim, noções como a impossibilidade de alteração do contrato (pacta sunt servanda) ou a proteção absoluta da propriedade são gradativamente substituídas por uma exigência de adoção de conduta leal, em respeito ao valor da confiança, assim como à necessidade de assunção de um papel social do bem ou do negócio jurídico. Da mesma forma, a culpa, antes essencial para a configuração de um dever de reparação de dano, cede lugar a uma visão objetiva da responsabilidade civil, baseada numa teoria em que o risco da atividade é preponderante para determinar a obrigação de indenizar. Essa análise objetiva da responsabilidade civil e do próprio dano distancia, mais e mais, os antigos sentimentos de vingança observados nos primórdios da civilização – base de um dever de indenizar –, trazendo ao direito, principalmente pela atuação da jurisprudência, quase que uma fórmula de um direito de danos: sabe-se qual conduta gera responsabilidade de indenizar e qual será o valor dessa reparação, cabendo ao julgador, em grande parte das vezes, fazer quase que uma aplicação aritmética para chegar a um produto final (fatos + lei = sentença). No entanto, com o avanço tecnológico da sociedade, com a produção em massa e o consequente incremento dos meios de fiscalização quanto aos danos gerados por atividades de risco, ou por condutas egocêntricas que procuram diretamente a produção de um dano, o Direito, em um movimento pendular, volta-se novamente aos primórdios da civilização, lá buscando socorro, tomando emprestadas antigas noções de pena privada ou sanção civil, associadas a um sentimento não mais tão relacionado a uma vingança, mas a uma resposta exigida pela sociedade, tentando se aproximar de um conceito de justiça como solução à intolerância da camada social em relação a essas práticas danosas. De um lado, ainda é presente o dano como concebido, atrelado a uma lesão material ou a um prejuízo não econômico. De outro, surgem situações relacionadas a microlesões, em que não se permite visualizar um prejuízo individual, ou a ilícitos lucrativos, pelos quais a simples reparação ainda trará inequívoco lucro ao ofensor, ou mesmo lesões de gravidade exacerbada, que aviltam o patrimônio coletivo e o senso comum de justiça, sem resposta adequada no ordenamento jurídico. Os instrumentos conhecidos pelo Direito, assim, tornam-se insuficientes à retificação dessas situações, erigindo-se novas categorias de danos, agora coletivos ou difusos, marcados por uma clara intenção não somente de reparar, mas de punir e dissuadir. Esse movimento, que sai da reparação de um dano – sem com ela se descuidar – em direção a uma punição é retomado, inicialmente, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América1, não sem sofrer candente crítica. Passadas diversas décadas da retomada da aplicação de uma pena civil, percebe-se o seu assentamento e maior aceitação em uma grande variedade de casos, com indenizações controladas e limitadas. Assim que diversos outros ordenamentos jurídicos, vítimas dos mesmos problemas, passam a adotar uma noção voltada à prevenção de condutas lesivas. A responsabilidade civil que, inicialmente, repousava seus cuidados somente na compensação de um dano, passa a se preocupar com a sua prevenção. Surgem, nessa esteira, dúvidas a respeito de quais mecanismos podem se valer os aplicadores do direito para efetivar as funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil. Pode o dano moral servir a essa finalidade? É possível visualizar um caráter punitivo 1 A figura dos punitive damages traz à tona, novamente, a ideia de aplicação de uma sanção civil, como será verificado neste estudo, no capítulo III ou preventivo ao dano moral? As soluções atuais, encontradas pela jurisprudência, de aplicação de uma sanção punitiva são adequadas? Para chegar a essas respostas, pretende-se mostrar, inicialmente, a evolução da responsabilidade civil, mediante o aparente abandono da culpa, centrando-se na ideia de prejuízo e sua necessária reparação, com a sua posterior e necessária retomada, pela análise da ética das relações e da conduta das partes. Ao final, pretende-se apresentar uma solução para a questão, talvez não definitiva e, muito menos, milagrosa, já que a sedimentação de uma nova teoria depende dos ajustes que somente o empirismo pode conferir. Com a utilização de novos critérios – nem tão novos, porquanto já utilizados, mas de forma indevida –, a busca pela apresentação de uma solução, com o reconhecimento de uma nova categoria de dano, encontrará em sua aplicação o melhor termômetro para a sua eficácia, devendo haver mais audácia e menos conservadorismo da doutrina e dos Tribunais na busca de instrumentos de proteção tão ressentidos pela coletividade. CONCLUSÃO A atual sociedade de consumo, delineada pela globalização, pelos constantes avanços tecnológicos, malgrado beneficie-se dessa era da tecnologia, é, ao mesmo tempo, alvo de danos de massa2, figura antes não conhecida ou apreendida pelo direito, mas que, atualmente, é objeto de grande preocupação. Como visto, os presentes instrumentos de proteção e prevenção desses novos tipos de danos não têm se mostrado adequados para o controle dessas lesões em cadeia, ou mesmo não foram tais danos profundamente analisados no ordenamento jurídico brasileiro, o que leva à sua ineficiente e deficitária remediação. Quanto a essa realidade não pode ficar alheio o ordenamento jurídico. A responsabilidade civil, que sempre enfrentou os conflitos que lhe demandaram resposta, deve se amoldar à realidade de seu tempo, como sempre o fez, reconhecendo novas categorias de danos, e ampliando as suas funções, ou fazendo valer aquelas que já há muito lhe foram reconhecidas. Certamente, a expressão “o menino é o pai do homem”3, de Machado de Assis, presente em sua clássica obra Memórias Póstumas de Braz Cubas, revela a preocupação com o futuro dos indivíduos, com a criação da pessoa, no sentido de que o menino é pai do homem que ele se tornará; o homem é filho dos sonhos pretéritos e perspectivas do menino que já foi. A ausência de combatividade às condutas ilícitas, que rebaixam a qualidade de vida da sociedade, e colocam em xeque a sua segurança, levam uma forte carga axiológica às pessoas afetadas, que é introjetada por cada membro atingido, e passa, após algum tempo, a ser vista talvez não como normal, mas usual. Essa é a mensagem que será passada ao menino e, posteriormente, ao homem, caso não refreadas essas odiosas condutas, que danificam o patrimônio moral coletivo. 2 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 51/52. 3 Essa expressão dá nome ao título do capítulo 11 da obra. Decerto, os atentados ao patrimônio social devem se tornar a exceção, e não a regra, como ocorre hodiernamente. Os consumidores de determinados produtos ou serviços sabem que não serão bem atendidos por certos produtores ou fornecedores, e muitas vezes com isso se conformam, já que sabem que não obterão do Poder Judiciário a resposta que precisam. Da mesma forma, os crimes ambientais não punidos dão a outros potenciais poluidores o exemplo de que não há sanção para esse tipo de crime. Também aquele que inadimple com as suas obrigações, e que não sofre qualquer punição, mostra à sociedade que a prática ilícita compensa, incentivando a sua reiteração. Por isso que as funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil mostram-se fundamentais para o reconhecimento de novos instrumentos de proteção contra esses danos de massa, ou melhor, para o reconhecimento de uma nova categoria de dano, que resulta não da doutrina ou da legislação, mas de efusivos movimentos da própria sociedade, em busca de uma resposta efetiva aos atentados contra o seu patrimônio. Ao cabo deste trabalho, repete-se aquilo que foi afirmado em seu começo: não se pretende aqui apresentar uma solução milagrosa para esses problemas. Mas, bem estruturada a figura de uma nova categoria de dano, com a solidificação das bases em que se assenta, definição de hipóteses de aplicação, e apontamento do real intuito de sua utilização, torna-se possível, por meio de seu reconhecimento e emprego no caso concreto, pela experimentação empírica, que se chegue a um ideal alcançável, atingível, não mais distante e intangível. Apenas com o reconhecimento de uma nova categoria de dano será possível aplicar, explicitamente, uma indenização punitiva, com vista à prevenção de danos, da adoção de um padrão de conduta esperado pela sociedade, deixando de se mascarar esse intuito em compensações que acabam não se prestando nem para reparar a vítima, muito menos para dissuadir o ofensor ou potenciais lesantes. Também quanto ao caráter distributivo da indenização, a repartição dos valores ou dos benefícios trazidos pela compensação (por meio de obrigações de fazer) à sociedade torna mais factível a ideia de reparação coletiva, fugindo do aspecto individual, o que não apenas contorna o repúdio ao enriquecimento sem causa tanto combatido pelos Tribunais, quanto traz à reparação aqueles que, por falta de conhecimento, falta de interesse, ou falta de dinheiro, mas também vítimas do mesmo dano, não ingressariam com uma ação individual de reparação. Manifestamente, a aceitação de tal medida trará mais coesão e força a uma sociedade estressada, que perde, cada vez mais, a confiança em seus representantes, sobretudo no Estado, que deveria protegê-la e por ela zelar. Faz-se, da mesma forma, com que a sociedade possa agir em nome próprio, legitimando os seus direitos, sem precisar aguardar a boa intenção dos já assoberbados defensores da coletividade ou das desinteressadas associações na propositura de ações coletivas. E não é de esquecer que ampliar o espectro da resposta civil à ocorrência danosa é, de maneira mais clara, “prestigiar dado axiológico fundamental ao sistema, haurido desde a previsão do art. 3º, I, da Constituição Federal”. Se o objetivo básico da República é a construção de uma sociedade justa e solidária, admite-se que tal só se dê com o estabelecimento de relações que sejam equilibradas. “Sem razoável equilíbrio, nenhuma relação é justa, tampouco solidária”4. Que a sociedade não caminhe para o mesmo rumo de Braz Cubas, que, no ocaso da vida, ponderando os seus fracassos, contentou-se com o fato de não ter deixado filhos, para que não fosse transmitido “o legado de nossa miséria”. Somente com o exemplo das condutas leais – e, consequentemente, a repressão daquelas inidôneas –, da verdadeira solidariedade, será possível que a coletividade prospere, harmonizando-se de forma equilibrada e justa. 4 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 166. BIBLIOGRAFIA AGUIRRE. João Ricardo Brandão. Responsabilidade e Informação – Efeitos jurídicos das informações, conselhos e recomendações entre particulares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ÁLVAREZ, Agustín. Repensando la Incorporación de los Daños Punitivos. Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba. 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FABRÍCIO ANGERAMI POLI O DANO SOCIAL DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Orientadora: Professora Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2014 FABRÍCIO ANGERAMI POLI O Dano Social Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Professora Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2014 "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." Friedrich Nietzsche Agradecimentos A parte mais difícil de um trabalho não é inicia-lo, executá-lo ou concluí-lo, mas conseguir agradecer todos aqueles que contribuíram com o resultado final. Palavras, na maioria das vezes, são insuficientes para demonstrar essa gratidão. Inicialmente, agradeço à minha orientadora, Professora Patrícia Faga Iglecias Lemos, que acreditou no meu potencial, mesmo sem muito me conhecer, e me conduziu, sempre com apontamentos inteligentes e perspicazes, a chegar ao final deste trabalho, iluminando o meu caminho quando, em alguns momentos, ele parecia sombrio. As suas correções e sugestões guiaram-me no sentido certo, e trouxeram mais lucidez e precisão aos conceitos aqui trazidos. Foi uma honra ter sido orientado por pessoa tão brilhante. À minha mãe também não poderia faltar semelhante agradecimento e homenagem. Não somente pela formação, com base em valores de justiça e ética, que me tornaram o que hoje sou, mas também por me fazer acreditar que sempre posso ser um vencedor. Orgulhome em dizer que, em razão dos ensinamentos sempre corretos por ela transmitidos, fui sempre, em todas as situações que enfrentei, um vencedor, não no sentido de ser o campeão, de estar sempre em primeiro lugar, mas de ter dado o melhor de mim, ainda que o resultado esperado não tenha sido alcançado. O modelo de retidão de caráter e a agudeza de espírito que ela apresenta servir-me-ão para o resto da vida. Agradecimento especial também à minha namorada, Cássia, que conseguiu suportar os momentos de estresse, além de me ouvir, quando precisei desabafar, distrair-me, quando precisei relaxar, e me fazer sorrir, quando precisei me alegrar. O companheirismo em toda essa jornada foi essencial. Do restante da minha família veio o apoio nas horas fáceis e difíceis, sobre o qual não há palavras suficientes para agradecer. E, se os meus pais me deram a vida, a vida me deu novos pais. Muito mais do que colegas, chefes e, hoje, sócios, os amigos João e Gilberto contribuíram para a minha formação profissional, educacional, incentivando-me sempre a buscar conhecimento, além de terem colaborado sobremaneira com a formação do meu caráter. Mais do que um privilégio em com eles trabalhar, considero-os como parte de minha família, com quem sempre poderei contar. Aos demais membros do escritório Marques e Bergstein Advogados Associados: Alan, meu outro sócio, e Pietro, manifesto enorme gratidão pela prontidão em sempre ajudar, a debater dúvidas e encontrar uma solução, e, especialmente, fazer com que nada tivesse eu com que me preocupar durante os períodos de ausência. Finalmente, a todos os amigos que verdadeiramente me acompanham e me apoiam por todos esses anos. Muito obrigado! Resumo O atual cenário da sociedade, caracterizada pela vigilância, exploração dos recursos naturais e consumo desenfreado de bens, que acabam por produzir danos de massa, traz à Responsabilidade Civil papel de oferecer instrumentos que garantam proteção dessa mesma coletividade contra esses ilícitos que prejudicam a qualidade de vida geral, rebaixando o patrimônio social. Assim, desempenhar unicamente o papel de reparação ou compensação do dano não se mostra mais suficiente à Responsabilidade Civil, que é demandada a apresentar soluções que coloquem em prática as suas funções punitiva e preventiva. Nesse contexto, em que o coletivo sobrepõe-se ao individual, e que os danos ultrapassam as relações interpessoais, os mecanismos de proteção apresentados pelo atual ordenamento jurídico brasileiro não se mostram mais suficientes para combater os novos tipos de lesões que atingem a sociedade, mostrando-se necessário o aprofundamento sobre a questão de danos extrapatrimoniais, em âmbito coletivo, especialmente no que tange ao seu controle em um cenário em que os representantes da coletividade não conseguem suprir a demanda de ações que deveriam promover. O enfrentamento de tal questão levou à proposição do reconhecimento de uma nova modalidade de dano, que vem sendo, paulatinamente, encarada e debatida pelo Poder Judiciário. Para isso, foi necessário recorrer-se a apontamentos históricos a respeito da Responsabilidade Civil, seu desenvolvimento e, especialmente, necessidade de reconhecimento de vários tipos de danos ao longo dos anos, além de análise conceitual, axiológica e funcional do dano extrapatrimonial, e o estudo sobre a experiência estrangeira, os resultados obtidos por outros ordenamentos jurídicos na aplicação de figuras similares a que se propôs fosse reconhecida neste estudo. Todo esse esforço foi necessário para legitimar o reconhecimento de um dano social, ou seja, sedimentar as bases de uma nova categoria de dano, para que seja ela aceita e aplicada na solução de casos que demandam medidas mais efetivas, que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não foi capaz de apresentar. Palavras-chave: Dano social. Interesses coletivos e difusos. Punição. Prevenção. Patrimônio social. Qualidade de vida. Segurança. Abstract The present scenario of society characterized by vigilance, exploitation of natural resources and rampant consumerism end up producing massive damages. That phenomena forces civil liability to offer tools that guarantee society protection against those illicit acts that harm general life quality, lowering social standards. Therefore, providing compensation for damages caused is no longer enough for social liability, which is faced with the challenge of presenting solutions that take into consideration both punitive and preventive aspects. In this context, in which society prevails the individual, as well as damages surpass interpersonal relationships, protection mechanisms provided by the Brazilian judicial system are no longer sufficient to combat newer kinds of damages, that affect society as a whole. Hence, it is necessary to deepen the studies on the matter of moral damages on a social bias, specially its control of a situation in which society representatives can´t cope with the proposition of law suits that they are expected to. The study of this question led to proposing a new category of damage, that has been gradually faced and discussed by Brazilian Courts. In order to achieve that, it was necessary to make use of historic studies on the development of civil liability and specially the need to recognize several different kinds of damages throughout the years. That also included a conceptual, axiological and functional analysis of moral damages, as well as a study on the foreign experiences and the results they obtained when making use of similar institutes to the one proposed in the core of this study. All this effort was necessary to legitimize the acknowledgement of social damage, in order to create the basis for a new damage category, so that it be accepted and used on the solution of cases that demand more effective measures that the Brazilian legal system hasn´t been able to present yet. Key-words: Social damage. Collective and social interests. Punishment. Prevention. Social patrimony. Life quality. Security. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ________________________________________________________9 CAPÍTULO I - EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL E OS NOVOS DANOS ______________________________________________________________12 1.1. UMA BREVE ANÁLISE HISTÓRICA SOBRE O SURGIMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL E O SEU DESENVOLVIMENTO _______________12 1.2. O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DO RISCO NO BRASIL ____________28 1.3. O APARECIMENTO DO ABUSO DE DIREITO __________________________32 1.4. A ATUAL VISÃO DA RESPONSABILIDADE: SUAS NOVAS FUNÇÕES ____________________________________________________________40 CAPÍTULO II - A COMPENSAÇÃO DO DANO EXTRAPATRIMONIAL E AS SUAS FUNÇÕES ______________________________________________________50 2.1. O DANO EXTRAPATRIMONIAL _____________________________________50 2.2. DANO EXTRAPATRIMONIAL E A SUA EVOLUÇÃO: A SUA ADEQUADA CONCEITUAÇÃO _____________________________________________________51 2.3. AS FUNÇÕES PUNITIVA E PREVENTIVA DO DANO EXTRAPATRIMONIAL: É POSSÍVEL QUE ELE EXERÇA ESSAS FUNÇÕES? __65 2.4. O DANO MORAL COLETIVO: UMA TENTATIVA DE INDENIZAÇÃO PUNITIVA____________________________________________________________77 CAPÍTULO III – A EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA NA PUNIÇÃO E NA PREVENÇÃO DA PRÁTICA DO ILÍCITO _______________________________88 3.1. OS PUNITIVE DAMAGES ____________________________________________88 3.2. OS SOCIETAL DAMAGES ___________________________________________121 3.3. AS FAUTES LUCRATIVES __________________________________________123 CAPÍTULO IV – O DANO SOCIAL _____________________________________127 4.1. O CONCEITO DE ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO _______________128 4.2. POR UMA BREVE ANÁLISE FILOSÓFICA E SOCIOLÓGICA DA QUESTÃO ___________________________________________________________133 4.3. INDENIZAÇÃO PUNITIVA NO BRASIL: DA REJEIÇÃO À APARENTE ACEITAÇÃO ________________________________________________________149 4.4. O FENÔMENO DO DANO SOCIAL __________________________________161 4.5. O DANO SOCIAL COMO FONTE AUTÔNOMA DE INDENIZAÇÃO: A SUA CONCEITUAÇÃO, NECESSIDADE DE AMPLIAÇÃO E PRESSUPOSTOS _____171 4.5.1. dano social e abuso de direito _______________________________________213 4.5.2. critérios balizadores para a verificação do dano social e apuração do quantum indenizatório _________________________________________________________218 4.6. ALGUMAS SITUAÇÕES EM QUE PODE SER VERIFICADA A OCORRÊNCIA DE UM DANO SOCIAL __________________________________232 4.6.1. dano social no ambiente ____________________________________________235 4.6.2. dano social no consumo ____________________________________________247 4.6.3. dano social e a nova visão da intimidade _______________________________258 4.7. A DECISÃO QUE RECONHECE O DANO SOCIAL _____________________264 4.8. LEGITIMAÇÃO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO: O PROBLEMA DA ATOMIZAÇÃO PROCESSUAL _________________________________________267 4.9. A DESTINAÇÃO DA INDENIZAÇÃO ________________________________273 4.10. O PROBLEMA DA REPARAÇÃO PECUNIÁRIA ______________________279 4.11. DANO SOCIAL X DANO MORAL COLETIVO ________________________283 CONCLUSÃO _______________________________________________________288 BIBLIOGRAFIA _____________________________________________________291 INTRODUÇÃO O Direito vem testemunhando inúmeras e intensas transformações ao longo do último século, que podem ser atribuídas a também constante mudança da configuração da sociedade, em que, cada vez mais, engrandece-se a pessoa e, consequentemente, a sua dignidade, ao patamar mais elevado de proteção, que antes era reservado mais à propriedade e à posse. Assim, noções como a impossibilidade de alteração do contrato (pacta sunt servanda) ou a proteção absoluta da propriedade são gradativamente substituídas por uma exigência de adoção de conduta leal, em respeito ao valor da confiança, assim como à necessidade de assunção de um papel social do bem ou do negócio jurídico. Da mesma forma, a culpa, antes essencial para a configuração de um dever de reparação de dano, cede lugar a uma visão objetiva da responsabilidade civil, baseada numa teoria em que o risco da atividade é preponderante para determinar a obrigação de indenizar. Essa análise objetiva da responsabilidade civil e do próprio dano distancia, mais e mais, os antigos sentimentos de vingança observados nos primórdios da civilização – base de um dever de indenizar –, trazendo ao direito, principalmente pela atuação da jurisprudência, quase que uma fórmula de um direito de danos: sabe-se qual conduta gera responsabilidade de indenizar e qual será o valor dessa reparação, cabendo ao julgador, em grande parte das vezes, fazer quase que uma aplicação aritmética para chegar a um produto final (fatos + lei = sentença). No entanto, com o avanço tecnológico da sociedade, com a produção em massa e o consequente incremento dos meios de fiscalização quanto aos danos gerados por atividades de risco, ou por condutas egocêntricas que procuram diretamente a produção de um dano, o Direito, em um movimento pendular, volta-se novamente aos primórdios da civilização, lá buscando socorro, tomando emprestadas antigas noções de pena privada ou sanção civil, associadas a um sentimento não mais tão relacionado a uma vingança, mas a uma resposta 9 exigida pela sociedade, tentando se aproximar de um conceito de justiça como solução à intolerância da camada social em relação a essas práticas danosas. De um lado, ainda é presente o dano como concebido, atrelado a uma lesão material ou a um prejuízo não econômico. De outro, surgem situações relacionadas a microlesões, em que não se permite visualizar um prejuízo individual, ou a ilícitos lucrativos, pelos quais a simples reparação ainda trará inequívoco lucro ao ofensor, ou mesmo lesões de gravidade exacerbada, que aviltam o patrimônio coletivo e o senso comum de justiça, sem resposta adequada no ordenamento jurídico. Os instrumentos conhecidos pelo Direito, assim, tornam-se insuficientes à retificação dessas situações, erigindo-se novas categorias de danos, agora coletivos ou difusos, marcados por uma clara intenção não somente de reparar, mas de punir e dissuadir. Esse movimento, que sai da reparação de um dano – sem com ela se descuidar – em direção a uma punição é retomado, inicialmente, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América1, não sem sofrer candente crítica. Passadas diversas décadas da retomada da aplicação de uma pena civil, percebe-se o seu assentamento e maior aceitação em uma grande variedade de casos, com indenizações controladas e limitadas. Assim que diversos outros ordenamentos jurídicos, vítimas dos mesmos problemas, passam a adotar uma noção voltada à prevenção de condutas lesivas. A responsabilidade civil que, inicialmente, repousava seus cuidados somente na compensação de um dano, passa a se preocupar com a sua prevenção. Surgem, nessa esteira, dúvidas a respeito de quais mecanismos podem se valer os aplicadores do direito para efetivar as funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil. Pode o dano moral servir a essa finalidade? É possível visualizar um caráter punitivo 1 A figura dos punitive damages traz à tona, novamente, a ideia de aplicação de uma sanção civil, como será verificado neste estudo, no capítulo III 10 ou preventivo ao dano moral? As soluções atuais, encontradas pela jurisprudência, de aplicação de uma sanção punitiva são adequadas? Para chegar a essas respostas, pretende-se mostrar, inicialmente, a evolução da responsabilidade civil, mediante o aparente abandono da culpa, centrando-se na ideia de prejuízo e sua necessária reparação, com a sua posterior e necessária retomada, pela análise da ética das relações e da conduta das partes. Ao final, pretende-se apresentar uma solução para a questão, talvez não definitiva e, muito menos, milagrosa, já que a sedimentação de uma nova teoria depende dos ajustes que somente o empirismo pode conferir. Com a utilização de novos critérios – nem tão novos, porquanto já utilizados, mas de forma indevida –, a busca pela apresentação de uma solução, com o reconhecimento de uma nova categoria de dano, encontrará em sua aplicação o melhor termômetro para a sua eficácia, devendo haver mais audácia e menos conservadorismo da doutrina e dos Tribunais na busca de instrumentos de proteção tão ressentidos pela coletividade. 11 CAPÍTULO I EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL E OS NOVOS DANOS 1.1 UMA BREVE ANÁLISE HISTÓRICA SOBRE O SURGIMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL E O SEU DESENVOLVIMENTO Nos primórdios da civilização, os danos causados aos particulares não eram objeto de preocupação nem nos costumes arraigados entre a população, tampouco eram tratados pela legislação existente. A liberdade dos indivíduos encontrava seus limites na força exercida por seus semelhantes. Assim, aquele que era lesionado tratava de se vingar do lesante, combatendo a força com a força, o mal com o mal, sendo este, então, o mecanismo de reparação dos danos sofridos pelos primitivos2, selvagem talvez, mas humano, de reação espontânea e natural contra o mal sofrido3. O ofensor, dessa forma, ficava exposto à vingança do ofendido ou de seu clã, reconhecida tal prática como lícita, sem sofrer qualquer limitação4. Essa vingança, portanto, não era feita à revelia ou mediante a desaprovação das autoridades sociais ou religiosas; antes, contava com a sua anuência5. Aos poucos, a justiça feita pelas próprias mãos (autotutela) foi cedendo lugar à preocupação, pelo ordenamento jurídico, na regulamentação dessas hipóteses de danos ao âmbito privado do indivíduo. Dessa forma, o talião se converteu em regra com o Código de Hamurabi, advindo da Mesopotâmia do início do segundo milênio, compreendido antes do nascimento de Cristo. A vingança, que antes ficava a cargo daquele que sofreu o dano, nas hipóteses e da forma como a quisesse empreender, passou, por meio da lei escrita, a ser reduzida a específicos casos passíveis de compensação. Esse mesmo Código dispôs também sobre a 2 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 36. 3 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume I, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 23. 4 FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p. 99. 5 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 45. 12 forma como a compensação devia ser feita, retirando, assim, o julgamento do âmbito particular. A vítima, a partir de então, teve o seu direito de vingança previsto em lei. Contudo, com o desenvolvimento e complexidade que as relações sociais tomaram, o orgulho imperativo do homem começou a ser suavizado da mesma forma que o seu sentido brutal de honra6. Assim, em vez de vingar-se pelo dano sofrido, a vítima começou a achar mais interessante cobrar do lesante uma compensação sobre o seu patrimônio. Com efeito, foi por meio do Código de Manu que a noção de compensação não violenta dos danos primeiro se assentou. A ideia de compensação pelo pagamento de uma multa ou uma indenização deixava evidente que o dano sofrido poderia ser resolvido sem uma nova agressão. Mas também desde a época das Leis das XII Tábuas, a vítima de um delito privado tinha liberdade, em algumas das vezes, para se satisfazer mediante a vingança corporal ou pela obtenção de uma soma em dinheiro, cujo valor era fixado livremente7. Em outras situações, a vítima era obrigada a aceitar o pagamento de uma quantia previamente fixada na Lei. O costume de optar por aceitar a indenização em dinheiro levou ao ofendido o direito de escolher a aceitação da quantia ou a socorrer-se da vingança. Desse modo, pouco a pouco se foi entendendo que do dano nascia, em princípio, sempre uma obrigação de reparar, isto é, a obrigação de se cumprir com a disposição legal da composição, recorrendo-se ao talião somente caso não adimplida a dívida fixada8. Esse foi o início da reação contra a vingança privada, que é assim abolida e substituída pela composição obrigatória9. Embora não se conhecesse o termo “responsabilidade civil” àquela época, percebese que a sua noção já existia no direito romano. Não foi a responsabilidade traçada como 6 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 36. 7 Uma das passagens das Leis das XII Tábuas assim mencionava: “Tábua VIII, 2: Mutilado um membro, se não há transação, impõe-se ao autor a pena do talião”. In FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p. 100. 8 FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p. 100. 9 LIMA, Alvino. Culpa e Risco. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 21. 13 um instituto jurídico, como um princípio geral fundado na culpa; ao contrário, ela era puramente casuística, fundamentada na busca de um “justo equilíbrio”10. Pelo esforço dos legisladores romanos – e em razão do aparecimento de novos tipos de delitos e, consequentemente, novas formas de danos – por meio da criação da Lex aquilia de damno, aprovada no final do século III a.C., foi introduzida a ideia de causalidade do agente, pela concepção de que todo autor de um ato ilícito estaria obrigado a compensar o dano que causou. E foi na Lei Aquília que se esboçou, afinal, um princípio geral regulador da reparação do dano11. Partiu-se, destarte, de uma situação que, muitas vezes, levava mais à impunidade do autor do que à reparação da vítima - na medida em que esta deveria fazer a prova da lesão -, para uma realidade totalmente diferente, na qual o imperium detinha a autoridade para exigir a prova e impor uma penalização: “O Estado assume assim ele só, a função de punir”12. Dessa maneira, surge a ação de indenização e a responsabilidade civil passa a tomar lugar ao lado da responsabilidade penal. O problema que se encontrava na Lex Aquilia era o reduzido número de hipóteses de danos reparáveis por ela previstas. Coube, então, ao pretor e aos jurisconsultos ampliar a noção de damnum: “qualquer atentado material contra uma coisa ou uma pessoa se encontra reprimido”13. E, pelos mesmos jurisconsultos, foi substituída a noção de damnum pela de perjuicio: não importa a constatação de um atentado material contra uma determinada coisa, mas sim o prejuízo sofrido em razão dessa conduta. Ficou decidido, dessa sorte, que o simples damnum que não causava perjuicio não daria lugar à reparação. No entanto, esse sistema não irradiou seus efeitos a todas as situações de prejuízos, em virtude das limitadas hipóteses de danos apresentadas pelo texto legal. 10 SEGUÍ, Adela M. Aspectos Relevantes de la Responsabilidad Civil Moderna. In: MARQUES, Claudia Lima (coord.). Revista de Direito do Consumidor nº 52, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 269. 11 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume I, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 25. 12 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, vol. IV, p. 7. 13 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 36. 13 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 40. 14 Constatado o prejuízo, nas hipóteses previstas em lei, dava-se ao ofendido o direito de ação contra o ofensor. O que se verificava, porém, era a ausência de necessidade de constatação da culpa do lesante; antes se procurava a reparação do prejuízo à constatação da reprovabilidade da conduta pela culpa. Em que pese o afastamento da responsabilidade civil ou penal romana da ideia da culpa, reconheceu-se desde cedo que não era crível a vingança contra certas pessoas ausentes da razão, como as crianças e os loucos, os quais não teriam uma noção exata do bom e do mau. Ato contínuo, ao final do período da República, sob a influência dos ideais gregos, os jurisconsultos firmaram a concepção da culpa aquiliana. Enquanto a ação de dolo supunha necessariamente uma culpa caracterizada para ser exercida, a culpa propriamente dita passava ao primeiro plano, assumindo mais importância, talvez, que o próprio dano absorvido pela vítima: “o que se pune é a culpa, muito mais do que a ação causadora do prejuízo”14. Há grande discussão doutrinária sobre a implementação da culpa na lei Aquília. Enquanto alguns incluem a culpa como indispensável, sem a qual não estaria caracterizado o delito, outros entendem ter sido esse elemento introduzido pouco a pouco, por força de interpretação e à vista das necessidades sociais.15 Com efeito, a introdução do elemento subjetivo da culpa serviu para estabelecer a diferenciação entre a responsabilidade civil da penal. O domínio da ação penal, para os casos de delito privado, passou a diminuir, com a admissão, cada vez mais crescente, de obrigações delituais, e com a criação de uma ação mista ou simplesmente reipersecutória. Dessa forma, a função da pena passou a ter o fim de indenizar nas ações reipersecutórias, malgrado o seu modo de cálculo ainda se inspirasse na função primitiva de vingança. 14 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 43. 15 Alvino Lima cita como exemplos dos adeptos da indispensabilidade da culpa como elemento caracterizador do delito os autores Girard, Gaston May, E. Cuq, Pirson et Vilé, Contardo Ferrini, Ihering e Leonardo Colombo. Por sua vez, o grupo defensor da ideia de que a culpa não seria elemento constitutivo do delito da lei Aquília é constituído por Emilio Betti, Mario Cozzi, Leon e Henri Mazeaud e Frederico Pezella. In LIMA, Alvino. Culpa e Risco. 2ª, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 23. 15 Durante toda a Idade Média, a influência do direito canônico reforçou o tom de infração moral atribuído à culpa. O dano vinha mitigado em favor da ideia de infração, muito semelhante ao que ocorre na responsabilidade criminal: o dano não é cometido por um indivíduo contra outro; o dano é visto como uma ofensa contra a sociedade, contra o Estado. Essa culpa ligada à infração moral chegou ao início da Modernidade sob a influência da ideia de pecado, como violação de uma ordem superior16. Essa noção de culpa ganhou contornos especialmente nos países que sofreram influência direta da cultura cristã. Nesses países, a culpa passou a ser determinável não mais por um querer contra a lei, mas por um querer contra o bom caminho, determinado pelos costumes dessa sociedade cristã. Dessa sorte, “a culpa não é uma conseqüência prática do ilícito: a culpa é, agora, pela primeira vez, o fundamento da prática do ilícito...”17. Para Jean Domat, a culpa mostrava-se elemento indispensável à configuração do dever de indenizar, podendo-se até mesmo afirmar que não havia responsabilidade sem culpa18. Apoiado na escola de direito natural, Domat afirmava que os atos ilícitos não eram somente aqueles proibidos pela lei, mas também aqueles que afetavam a equidade, a honestidade ou os bons costumes, pautados na culpa de quem os cometiam19. Dessa maneira, aquele cuja conduta era irreprovável não poderia ser condenado a reparar o dano que tivesse causado; a vítima que arcaria com o azar que a acometeu e nada justificaria a inversão dessa situação20. Os irmãos Mazeaud e André Tunc, em seu Tratado de Responsabilidade Civil, identificam uma passagem de Tarrible, em que era reconhecida a culpa pela negligência ou imprudência do agente causador do dano. Para essas hipóteses, bastava uma culpa qualquer 16 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 14. 17 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 59. 18 VINEY, Geneviève. Traité de Droit Civil: Introducion à la Responsabilité. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1995, pp. 11/12. 19 FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p. 124. 20 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 60 16 para a caracterização do dever de reparação, sendo desnecessária a vontade de cometer aquele dano (culpa delitual) ou de ter agido com alguma malícia21. A culpa passou a ser, então, a base da responsabilidade civil concebida pelos juristas da Modernidade. Os ideais da liberdade e individualidade, tão arraigados na sociedade do século XVIII22, impuseram a construção de um sistema fundado justamente na má utilização dessa liberdade individual. As noções de responsabilidade e liberdade passaram a ser encaradas como intimamente vinculadas, servindo uma como fundamento da outra. E, para o controle dessa liberdade, não mais se mostravam suficientes os mecanismos de responsabilidade coletiva e vingança familiar da era medieval. Tampouco o sistema de responsabilidade delitual, que era delimitado às hipóteses típicas de delitos e penas, em grande parte das vezes de natureza corporal, mostrava-se adequado à responsabilização do transgressor. Daí porque necessária a concepção de um sistema de responsabilidade puramente civil, desvinculado das formas de punição da tradição medieval e não mais fundado na violação de normas penais expressas, senão no exercício ilegítimo da liberdade individual, este identificado com a noção de culpa.23 Como adverte Giselda Maria F. Novaes Hironaka, são dois filósofos do direito do século XVIII – Hugo Grotius e Jean Domat – que trazem inovações à concepção da responsabilidade civil. Embora sob a influência da culpa cristã, não apresentam eles uma concepção de responsabilidade civil fundada na culpa. A culpa, então, embora fosse um fato real, não era, por si apenas, motivo suficiente para a imputabilidade do dever de indenizar24. 21 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André, Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil..., p. 61. 22 Esse movimento liberal, político e social é mais sentido na França, a partir do reconhecimento, pela Revolução Francesa, da exacerbada interferência que o Estado exercia sobre as relações civis. Como refere Claudio Luiz Bueno de Godoy, o Code atendeu a reclamo de afirmação dos direitos de primeira geração, dos direitos subjetivos, em razão da necessidade e mesmo exigência de nítida separação e segurança “de uma esfera privada de atuação jurídica, de uma liberdade jurídica que, posto formal, a todos se reconhecia”. In GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 9. 23 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 12/13. 24 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, pp. 60/61. 17 Nas lições de Geneviève Viney, embora a culpa não fosse mais elemento único do dever de indenizar, continuou sendo um dos elementos à caracterização da responsabilidade. Ocorre que a culpa, a partir de então, seria indenizável quando acarretasse um dano, advindo, assim, o dever de reparação. Mesmo reconhecida a culpa como elemento constituinte do processo de identificação da causalidade, não era ela relevante para a determinação da imputabilidade, que se verificava a partir da existência real do dano e não da existência pura e simples de uma culpa25. Foi com base principalmente nas lições de Jean Domat26 e Pothier que o Código Civil francês espraiou a ideia de uma responsabilidade civil fundamentada na culpa, por meio da inserção do artigo 1382, que determinou a responsabilidade por danos causados a terceiros em razão de um agir culposo intencional (culpa delitual)27, e, sequentemente, um segundo artigo (art. 1383), em que sucedeu o mesmo com a culpa quasedelitual, caracterizada pela negligência ou imprudência28. De um modo ou de outro, a culpa, no Code Napoleón, é ainda elemento indispensável à verificação do dever de reparação. Da mesma forma que se exigia a culpa para os eventos danosos não advindos de uma relação contratual, para as relações contratuais também esse elemento era necessário. Para os irmãos Mazeaud e Tunc, todo inadimplemento da obrigação era necessariamente culposo: o artigo 1.147 do Código Civil francês libera o devedor, ainda que tenha 25 VINEY, Geneviève. Responsabilité. Archives de Philosophie Du Droit nº 35, Paris: Sirey, 1990, p. 281. É curioso observar que o termo “responsabilité” não era utilizado por Jean Domat, embora já bastante presente a ideia de uma responsabilidade civil. Com efeito, a primeira menção contemporânea ao termo ocorre em 1788, mas é apenas reconhecida oficialmente em 1798, pela Academia Francesa, quando publicada a quinta edição do dictionnaire de l'académie française. Mesmo diante do reconhecimento da expressão, o Código Civil Francês, promulgado em 1804, não utilizou-a em seu texto. Mencionava-se apenas a palavra responsable, sem a força da expressão “responsabilidade civil”, esta sim a designar um instituto jurídico e não uma mera característica do agente. Esse termo “responsável”, mencionado no Código de Napoleão, deriva etimologicamente do latim “respondere”, que remete a “sponsio”, uma instituição do direito romano arcaico. “Sponsor” era o devedor, reconhecido como tal no procedimento exigido para a estipulação. Em uma primeira fase, ao responder afirmativamente à indagação do estipulante, futuro credor, o “sponsor” assumia a obrigação. Ato contínuo, uma terceira pessoa se comprometia a honrar a dívida principal, recebendo o título de “responsor”. A expressão “respondere”, portanto, traz consigo a idéia de afiançar, de garantir o curso dos acontecimentos que estão por vir. 27 Jean Domat afirmava que a palavra ato, prevista no artigo 1382 do Código Civil francês, era uma abreviação para ato ilícito, a qual se opunha à culpa por imprudência. Nessa esteira, os irmão Mazeud citam que se o artigo 1383 do Code Napoleón traz a figura de uma culpa fundada na imprudência ou negligência, uma culpa não intencional, resulta evidente que o “ato” referido no artigo 1382 corresponde a outra categoria de culpa, a saber, a culpa intencional. MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I, p. 63. 28 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume I, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 28. 26 18 descumprido a obrigação, sempre que justifique que esse inadimplemento provém de uma causa alheia, que não lhe pode ser imputada. Nesse caso, não há descumprimento da obrigação em sentido estrito, não tendo o devedor incorrido em culpa29. Em contrapartida, o artigo mantém a responsabilidade do devedor quando não consegue provar esse fato alheio que culminou no descumprimento da obrigação, porque é de presumir o inadimplemento da obrigação em sentido estrito, em razão de uma culpa. E, com efeito, a apreciação dessa culpa, tanto em matéria delitual ou quasedelitual, quanto para a matéria contratual, era feita in abstracto. Essa ideia da culpa, que era tanto para a responsabilidade civil quanto para a responsabilidade penal analisada in abstracto, logo deixava claro, aos aplicadores do direito, a insuficiência desse modo apriorístico de apuração, especialmente na área penal. Assim, passou-se a verificar uma modificação estrutural da responsabilidade penal, enquanto a responsabilidade civil continuou a se caracterizar pelos mesmos requisitos inicialmente delineados, com base em uma culpa analisada em abstrato. Essa iniciativa parte da escola neoclássica, ante a dificuldade de punir aquele a quem a consciência não reprova. A atenuação da responsabilidade em face dos loucos já não se mostrava mais suficiente. Encarava-se, então, a realidade de que era preciso individualizar a pena dos agentes delituosos, por meio da substituição da apreciação em abstrato da culpa pela apuração em concreto, puramente subjetiva. De fato, essas considerações de ordem moral iluminaram o legislador, que passou, a partir de 1824, a permitir ao juiz a gradação da pena pela admissão de algumas circunstâncias atenuantes. Com a promulgação da lei penal de 28 de abril de 1832, erigiuse a regra de que “Ao conceder-lo o benefício das circunstâncias atenuantes, o juiz trata de proporcionar o castigo com a culpa moral, na medida da justiça”30. 29 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André , Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil..., pp. 72/74. 30 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André , Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil..., p. 81. 19 Com o advento dessa regra, assentou-se o posicionamento da escola neoclássica, e a culpa penal e a culpa civil passaram, por conseguinte, a apresentar noções distintas: a primeira fundava-se ainda no caráter abstrato de apreciação, ao passo que a segunda exigia a apuração de maneira subjetiva e em concreto, a partir da análise casuística. A essa altura, a responsabilidade civil já estava alijada da ideia de pena. Muitos tentaram desmontar a culpa civil, para adequá-la à nova visão com que a culpa penal era encarada, mas sem sucesso, já que a responsabilidade civil não mais se vinculava à pena, porém à indenização. É dessa noção de culpa que derivou a responsabilidade subjetiva, em que o critério de imputação da obrigação de indenizar se assenta na ocorrência de um ilícito advindo de um erro de conduta do lesante. Como adverte Claudio Luiz Bueno de Godoy, esse foi o modelo jurídico levado a todas as codificações da família romano-germânica do direito do século XIX31. No entanto, a partir de 1880, verificou-se um fenômeno de igual natureza a ambos os institutos. Tornou-se insuficiente a necessidade de uma culpa moral para a responsabilização do agente, em virtude da também necessidade de perquirição do estado espiritual do acusado. Essa aferição da culpa impunha tarefa extremamente árdua, a exigir do magistrado uma capacidade quase que divina de previsivibilidade do dano e análise psicológica do transgressor32. Além disso, em razão das condições do acusado, atenuava-se ou mesmo suprimia-se a sua responsabilização. Via-se, então, que essa concepção acabava expondo a sociedade a um perigo mais grave: a multiplicação das infrações. Por essa concepção, a escola positivista italiana insurgiu-se contra essa individualização da pena, afirmando que a finalidade desta não consiste no castigo pelo ato cometido, senão na defesa da sociedade, pela intimidação daqueles que pretendem imitar o delinqüente. Dessa forma, passou-se a defender que não se tratava mais de dosificar a pena segundo a responsabilidade moral do agente, mas segundo a gravidade do ato cometido: o 31 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 10. 32 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 17. 20 juiz não devia perguntar se o agente merecia aquela sanção; devia indagar se era útil à sociedade aplicá-la. Embora essa nova concepção não tenha sido acolhida na França, muito em razão do individualismo que estava impregnado na sociedade daquele tempo, teve o condão de mostrar o perigo para a sociedade na utilização dessa noção de culpa penal apreciada em concreto, assim como recordar o juiz de não se olvidar do caráter social de seu trabalho. Malgrado não tenha sido aplicada na responsabilidade penal, essa teoria italiana buscou lograr êxito na esfera civil da responsabilidade. Se a responsabilidade civil não mais guardava relação com a ideia de castigo, por que seria mantida a noção de culpa? É esse o berço, portanto, da teoria do risco, que busca dissociar, em algumas situações, a responsabilidade civil da ideia de culpa. A tentativa de ruptura do modelo tradicional da responsabilidade civil coincidiu com a fase do advento do maquinismo33 e a dificuldade de prova da culpa nos acidentes de trabalho. Com efeito, as vítimas dos acidentes de trabalho que, em princípio, deveriam comprovar a culpa do empregador, esbarravam sempre na impossibilidade de obter reparação, já que o acidente guardava relação, geralmente, ao próprio funcionamento das máquinas, fora, então, da esfera de culpa do patrão. Essa dificuldade facilitou a busca por saídas que abrandassem o rigor lógico do mecanismo de responsabilização. Inicialmente, buscaram-se meios oblíquos para atingir esse resultado: foi dada uma interpretação extensiva ao artigo 1.386 do Código Civil francês, que dispõe sobre a responsabilidade do proprietário de um edifício que desmorona, 33 Cláudio Luiz Bueno de Godoy ensina que, a partir da Revolução Industrial, com a consequente massificação e universalização das relações entre as pessoas, ocorre um declínio das relações essencialmente individualizadas, que cedem lugar às relações de massa, envolvendo um público indistinto de consumidores de produtos e serviços. A produção industrializada e o desenvolvimento das atividades de indústria e de risco fizeram proliferar a poterncialidade da ocorrência de acidentes, daquilo que ele denomina danos anônimos, em que dificilmente se conseguia identificar um culpado. Cita, ainda, que na Europa era comum falar na “civilização dos acidentes” ou na “era dos acidentes”, a ensejar o que se passou a chamar de “massificação dos danos”. Houve uma alteração na configuração do evento danoso, a partir das relações trabalhistas, produção industrializada, manuseio de insumos perigosos, circulação de veículos, o que determinou o surgimento de múltiplos e multifacetários acidentes, que traziam à vítima uma especial dificuldade de provar o nexo com a conduta culposa de algum específico lesante. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil pelo Risco da Atividade : Uma Cláusula Geral no Código Civil de 2002 : Coleção professor Agostinho Alvim : Coordenação Renan Lotufo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 13. 21 quando esse acidente é afeito a um vício de construção. Era preciso assimilar essa situação à do proprietário da máquina que, por seu defeito, causava danos aos obreiros. Não era mais necessário, dessa forma, estabelecer a culpa do patrão, mas o vício apresentado pela máquina. Em vista dessa dificuldade de comprovação do vício da máquina, procurou-se assegurar aos obreiros uma proteção mais eficaz: transmudou-se o problema da área da responsabilidade delitual para a área da responsabilidade contratual. Foram Sauzet e Sainctelette que se esforçaram para demonstrar que o empregador estaria obrigado a reparar o obreiro, por decorrência do contrato de trabalho firmado, que lhe garantiria segurança: se o empregado se lesiona, o patrão faltou com a sua obrigação. Ficava o empregador responsável, ao menos que demonstrasse que o acidente possuía uma causa alheia. Era a inversão, portanto, do ônus da prova34. Malgrado esse esforço da doutrina, a jurisprudência francesa jamais admitiu que o empregador, em função do contrato firmado com o empregado, comprometera-se à higidez deste. Todavia, esse movimento passou a ganhar força com a doutrina de Saleilles35, para quem a própria noção de culpa deveria ser alargada, sob a justificativa de que o Código Civil teria empregado a expressão em dois sentidos, um dos quais se confundia com nexo causal. Propunha ele que o princípio da imputabilidade fosse substituído por um princípio de simples causalidade, livre da necessidade de se aferir o comportamento do causador do dano36. Pretendia, pois, que aquele que criasse o risco deveria responder por suas consequências. A culpa, assim, recairia automaticamente àquele que criou o risco, devendo ela ser analisada a respeito da conduta do indivíduo que levou o ato a cabo 37. O passo foi importante, mas acabou por conservar a culpa como fundamento da responsabilidade civil. 34 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I, p. 94/96. 35 SALEILLES, Raymond. Les Accidents de travail et la responsabilité civile essai d'une théorie objective de la responsabilité délictuelle. Paris: Ed. A. Rousseau, 1897. 36 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 19. 37 FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, pp. 147/148. 22 Foi Josserand quem, no mesmo ano da publicação da tese de Saleilles, efetivamente rompeu com o tratamento tradicional que a matéria recebia, reclamando pela efetiva substituição da culpa na teoria da responsabilidade, nos casos daquele que possuía uma coisa em sua custódia (responsabilidade pelas coisas inanimadas). A partir de interpretação realizada no artigo 1384 do Código Civil francês, entendeu o autor que, no momento em que ocorresse um dano, o guardião seria responsável pela reparação, quer tivesse obrado com culpa, quer não38. Essa foi a consagração de um ponto de vista objetivo, livre de toda consideração subjetiva. Essa teoria de Josserand, inclusive, foi apoiada e incentivada por Salleiles, que contribuiu com a sua elaboração. Porém, quase que no dia seguinte à publicação da obra de ambos os autores, cujo precípuo era acudir as vítimas de acidentes de trabalho, o legislador interveio a favor dos obreiros, trazendo para eles algumas regras de exceção, por meio de legislação promulgada em 9 de abril de 1898. No entanto, os partidários da teoria do risco não se contentaram com as disposições excepcionais daquela referida lei, adotando cada vez mais adeptos da mudança de paradigma da teoria da responsabilidade civil. Entrementes, ainda eram muitos os adversários da teoria do risco, como adverte Jorge Peirano Facio, dentre eles Planiol, para quem as conseqüências de sua aplicação pareciam monstruosas, porquanto destruída a justiça, quando não apreciada a culpa. Dessa forma, a teoria do risco sofreu uma derrocada, perdendo terreno novamente para a teoria da culpa39. Diante dessa crise da responsabilidade civil, o legislador francês acabou por elaborar inúmeras leis, não apenas para assentar ainda mais a ideia da culpa na responsabilidade, mas também para refrear a jurisprudência que, embora não afastasse a necessidade da culpa, introduzia indiretamente algumas atenuantes para a sua verificação. Não obstante, algumas leis continuavam a excepcionar a teoria do risco, como a promulgada em 9 de abril de 1898, que tratava dos acidentes de trabalho. Essa lei não chegou a adotar, pura e simplesmente, a teoria do risco. Foi mais como uma transição entre a responsabilidade objetiva e subjetiva, na medida em que, pese a desnecessidade do 38 JOSSERAND, Étienne Louis. De la responsabilité du fait des choses inanimées, Paris: A. Rosseau, 1897. FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, pp. 154/155. 39 23 empregado de comprovar a culpa do empregador, não obtinha a reparação integral do dano. Mais adiante, a partir de uma extensão da esfera de aplicação do artigo 1.386 do Código Civil francês e da criação do parágrafo primeiro do artigo 1.384 do mesmo Diploma, o legislador pareceu haver compreendido ser útil a facilitação da ação da vítima. Por meio dos artigos 1.384 (responsabilidade por fato alheio), 1.385 (danos causados por animais) e 1.386 (danos causados pela ruína do imóvel), regulamentaram-se algumas situações nas quais o autor de um dano deveria ser responsável pela lesão cometida, dispensando-se à vítima comprovar a culpa do ofensor. O legislador, embora não afastando a ideia da culpa, criou uma presunção de culpa, com a inversão da carga probatória, concedendo à vítima uma situação quase tão favorável à que lhe proporcionaria a teoria do risco. Traçada, assim, a ideia do risco nesses artigos, coube à jurisprudência estender a sua aplicação a casos semelhantes, em que também poderia estabelecer presunções de culpa. Nesse esforço de extensão da regra pela jurisprudência, partiu-se primeiro do artigo 1.385 do Código Civil francês, que, por tratar de danos causados por animais, não poderia ser utilizado nesse processo de interpretação extensiva. Foi-se, de logo, para o artigo 1.386; porém, embora tenha se esforçado a jurisprudência, não conseguiu aplicá-lo em situações que poderiam lhe ser semelhantes. Restava o artigo 1.384 que, mediante a audácia de alguns julgadores, contrários à interpretação tradicional dada ao seu parágrafo primeiro, afirmavam haver nesse dispositivo um princípio geral de responsabilidade pelas coisas40. Essa era, justamente, a tese idealizada e sistematizada por Saleilles e Josserand. Daí para frente, a maior parte das Cortes de Apelação e dos Tribunais passaram a declarar, juntamente com a Corte de Cassação, que se o dano fosse causado por uma coisa, a condenação devia ser fundada na culpa, mas a vítima ficava livre dessa demonstração, cabendo ao guardião essa incumbência. 40 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I, p. 97. 24 Ademais, a jurisprudência reconheceu que tanto fazia se a coisa estivesse sob a guarda da pessoa ou não, porquanto a aplicação do parágrafo primeiro do artigo 1.384 valia para ambas as hipóteses. E a conseqüência prática dessa interpretação demonstrava-se capital: a vítima não teria mais que provar a culpa do condutor do veículo - disposição que antes era regida pelo artigo 1.382 e, em razão desse entendimento, passou a orientar-se pelo parágrafo primeiro do artigo 1.384. Entretanto, a jurisprudência impôs limites às hipóteses para as quais se poderia aplicar essa regra do parágrafo primeiro do artigo 1.384, não a admitindo em qualquer caso de danos em função de uma coisa. Ao passo de admitir uma presunção de culpa do ofensor, a qual a jurisprudência chamava de presunção de responsabilidade, coube aos Tribunais e Cortes decidirem quando era possível afastar essa responsabilização. Inicialmente, admitia-se ao guardião da coisa demonstrar que não agira com culpa, ou seja, que a sua conduta foi irreprovável, para livrar-se do dever de reparar o dano. Contudo, aos poucos a jurisprudência aproxima as hipóteses de excludente do artigo 1.384, § 1º, das do artigo 1.385, para o qual o agente livra-se do dever de indenizar somente se provar a ocorrência de força maior ou de culpa exclusiva da vítima. Em 13 de fevereiro de 1930, uma decisão das Câmaras reunidas entendeu que a presunção de responsabilidade prevista no artigo 1.384, § 1º, não poderia ser afastada, a não ser pela prova de um caso fortuito ou força maior, ou de uma causa alheia, que não se imputava ao guardião da coisa41. Mas não parou por aí a jurisprudência francesa, passando a entender que a causa de terceiros deveria apresentar as mesmas condições da força maior: teria que ser um fato de terceiro imprevisível e irresistível para a liberação do guardião. Nessa esteira, a Corte de Cassação apresentou entendimento de que também a culpa exclusiva da vítima deveria ser imprevisível e irresistível para a liberação do guardião do dever de indenizar. Quando não apresentava essas características, não poderia gerar outra 41 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I, pp. 98/99. 25 conseqüência, senão uma divisão da responsabilidade. Por fim, restringindo a noção de força maior, exigiu que o acontecimento fosse exterior à atividade do guardião: ora, se o agente não podia mais livrar-se do dever de indenizar pela demonstração de ausência de culpa, a sua responsabilidade existia à margem de culpa, com base na assunção dos riscos da coisa. Parece, então, que a partir de tal reconhecimento, adotou-se na jurisprudência a teoria do risco42. Apenas a título de curiosidade, atualmente, na França, o uso da teoria da guarda tem sido largamente estendido para alcançar, muitas vezes, vítimas de danos casuais. Anderson Schreiber43 aponta uma decisão, datada de abril de 2003, proferida pela Corte de Cassação, que, em boa medida, reformou o acórdão exarado pela Corte de Apelação de Paris, pela qual se concedeu indenização a um alpinista que foi atingido por uma pedra deslocada acidentalmente por um colega que seguia acima dele na escalada. A Corte de Apelação entendera que o alpinista que havia procedido a esse deslocamento era o “guardião da pedra” e, dessa sorte, responsável pelos danos derivados dessa ação. Mas houve também um segundo dado fundamental para a modificação de tratamento da responsabilidade civil, que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial: a elevação da dignidade do homem a valor básico do ordenamento, cuja tutela passou a ocupar posição central nas leis constitucionais. Essa valorização da pessoa humana fez com que a responsabilidade passasse a se preocupar não apenas com a recomposição do patrimônio da vítima, desfalcado pelo evento danoso, “mas, antes, à sua preservação pessoal, à preservação de sua existência digna”. Desenvolve-se, a partir dos novos problemas sociais e da valorização da dignidade humana, um modelo objetivo, pautado no risco, “não raro coletivizado, vale dizer, diluído na sociedade, dessarte a ensejar até uma responsabilidade socializada, além de voltada à preservação da existência digna da vítima, em que a finalidade fundamental é a 42 Mazeaud e Tunc entendiam não ter a jurisprudência reconhecido a aplicação direta da teoria do risco, embora essa teoria tenha influenciado indiretamente o direito francês. A justificativa baseava-se na necessidade de participação ativa da coisa na realização do dano, não estando ausente, portanto, a ideia da culpa. 43 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil- Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 32 26 valorização da dignidade da pessoa humana”44. Não se procura mais um culpado, mas um responsável pela indenização. De acordo com Geneviève Viney, foi a consciência nos novos riscos criados no âmbito social, como o desenvolvimento do maquinismo, depois o dos transportes, além do desenvolvimento de novas tecnologias, cada vez mais complexas e sofisticadas, que se mostrou serem insuficientes os princípios clássicos da responsabilidade individual fundada na atitude culposa de assegurar proteção insuficiente às vítimas45. Como arremata Jorge Ferreira Sinde Monteiro, essa mudança de foco da responsabilidade civil, do elemento subjetivo ao objetivo, pode ser explicada pela concorrência de quatro causas: a multiplicação de acidentes anônimos, decorrentes da atividade industrial; a ascensão social da burguesia, para quem o dano oriundo de um acidente de trabalho representaria o fim de seu foco de renda, podendo mesmo levar à miséria, sendo, assim, necessário um modelo mais amplo de imputação e reparação; uma maior consciência jurídica dos lesados vitimados pelos acidentes de trabalho; e, por fim, o desenvolvimento do seguro de responsabilidade civil46. Verificou-se, então, a partir do esforço doutrinário e jurisprudencial, uma verdadeira revolução na matéria da responsabilidade civil, que passou a comportar dois pólos: um objetivo, baseado no risco, e um subjetivo, pautado na culpa, girando toda a teoria em torno desses dois extremos. Foram até mesmo separados os conceitos de ato ilícito e de dano ilícito (ou dano injusto). Um dano que o lesado não deveria ter experimentado e, portanto, suportado, poderia decorrer de certa atividade que, abstratamente considerada, fosse lícita e regulamentada pela Lei. Como explica Claudio Luiz Bueno de Godoy, desloca-se da 44 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 15/16. 45 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 42. 46 MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde. Estudos Sobre a Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedina, 1983, pp. 17/19. 27 perspectiva do regramento do conceito de culpa do ofensor para o de dano injusto sofrido pelo ofendido, mesmo que advindo de atividade lícita47. Ante o desequilíbrio causado em razão do dano sofrido pela vítima inocente, por conduta lícita praticada pelo ofensor inocente, o legislador preferiu fazer prevalecer o equilíbrio entre as pessoas, na medida em que a lesão coloca a vítima em posição de desequilíbrio frente ao lesante. Verifica-se, de fato, a opção do legislador em escolher fatores de imputação da responsabilidade, anteriormente pautada somente na culpa, agora desempenhada por outros critérios. A responsabilidade civil começou, assim, a ser enxergada não mais dependente da presença de um ato ilícito, pautado na culpa – embora ainda presente e preponderante essa modalidade de responsabilização –, mas também configurável no desenvolvimento de atividades lícitas. Passou a responsabilidade civil a se preocupar com o dano e a vítima; não mais com a culpa e o agente48. 1.2 O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DO RISCO NO BRASIL Em que pese a aceitação e desenvolvimento da teoria do risco nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, com a caracterização da responsabilidade civil objetiva, o Código Civil de 1916 (que começou a ser redigido em 1899), fruto do liberalismo do século XIX, não assentou a ideia do risco como pressuposto da responsabilidade, fundando-a na ideia da culpa. Conforme os apontamentos de Caio Mário da Silva Pereira, a doutrina do risco não penetrou no direito positivo brasileiro, senão em incidências específicas. O Código Civil de 47 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 25. 48 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito como sistema complexo e de 2ª ordem. Ato nulo e ato ilícito. Diferença do espírito entre responsabilidade civil e penal. Necessidade de prejuízo para haver direito de indenização na responsabilidade civil. In: Estudos e pareceres de direito privado: Com remissões ao novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2012). Saraiva: São Paulo, 2004, p. 27. 28 1916, embora tenha guardado fidelidade temática à teoria da culpa, ofereceu, contudo, disposições cuja exegese revelava um entendimento coordenado com a teoria do risco49. A hipótese citada por Caio Mário é a da responsabilidade pelo fato das coisas, em que, para ele, apoiando-se nas lições de outros juristas como Alvino de Lima e José de Aguiar Dias, entendia ser o caso de dispositivo já alicerçado na teoria do risco. Embora a parca referência, no Código Civil de 1916, à teoria do risco, pelo esforço doutrinário e jurisprudencial, em detrimento de previsão clara desse Diploma, criou-se um sistema de presunções de culpa50, que acabava por facilitar demasiadamente a defesa da vítima em algumas situações51. Ainda que presente de forma sobremaneira tímida essa teoria no Código Civil Brasileiro de 1916, esse movimento de evolução da responsabilidade civil, da culpa ao risco, é iniciado ainda antes da promulgação dessa Lei, com a edição do Decreto nº 2.681, de 7 de dezembro de 1912 (Diploma que regulou a responsabilidade civil das estradas de ferro, mas acabou estendendo-se a outras formas de transporte terrestre), e completa-se com a entrada em vigor do Código Civil de 200252. Teresa Ancona Lopez cita, entre as etapas que intermediaram os dois extremos da linha evolutiva, os artigos 1.527, 1.528 do Código Civil de 1916, que tratavam de 49 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil de acordo com a Constituição de 1988. 3ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 23. 50 Cláudio Luiz Bueno de Godoy refere-se à importância do trabalho da jurisprudência para a construção de uma teoria da responsabilidade independente de culpa no Código Civil de 1916. Referido autor menciona a evolução dos julgados no tocante à responsabilidade do dono do animal que, pelo inciso I do art. 1.527, facultava ao dono isentar-se da obrigação de indenizar, caso comprovasse ter vigiado o animal com o cuidado necessário. No entanto, passou-se a entender, em interpretação evolutiva, a partir de uma presunção de culpa que caminhava para o campo do risco, que se o animal houvesse provocado qualquer dano, sem que por culpa da vítima ou fortuito, seria porque o dono não o guardava ou vigiava com cuidado preciso. Também o art. 1.528, acerca da responsabilidade pela ruína de edifício ou construção. A disposição previa a responsabilização do dono do edifício pelos danos resultantes de sua ruína, mas desde que atribuíveis à falta de reparos cuja necessidade fosse manifesta. Essa era uma hipótese de responsabilidade subjetiva, ainda que com culpa presumida, que a jurisprudência se encarregou de interpretar objetivamente, sob o argumento de que, se a ruína não deriva de fortuito ou culpa de terceiro, só pode ser imputada à falta de reparos de necessidade manifesta. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 13/14. 51 Um exemplo desse sistema de presunções foi a edição da Súmula 341, pelo Supremo Tribunal Federal, que assim definia: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”. 52 BORGHI, Hélio. Responsabilidade civil: reflexões doutrinárias sobre o Estado. P. 250/251. In NERY, Rosa Maria de Andrade et DONNINI, Rogério (coord.). Responsabilidade Civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 234/284. 29 presunções de culpa, e o artigo 1.529 – que, na mesma esteira de Caio Mario, entende tratar-se já de uma responsabilidade objetiva –, as leis esparsas que surgiram em meados do século XX, como a lei de acidentes do trabalho, a lei de responsabilidade civil por danos nucleares etc. 53, e, principalmente, o Código de Defesa do Consumidor, promulgado em 1990 e tido como uma das leis mais modernas e protetivas do ordenamento jurídico brasileiro54. Houve, assim, uma verdadeira evolução legislativa, até que se concebesse a responsabilidade objetiva, com base no risco, no ordenamento brasileiro. A mesma citada autora conclui que o Código Civil de 2002 adotou a teoria da culpa como orientação geral (artigo 186 combinado com artigo 927, caput), mas consagrou a responsabilidade fundada no risco55 na cláusula geral que dá conteúdo ao polêmico parágrafo único do artigo 92756. Mas não é somente com a adoção da teoria do risco que o Código Civil de 2002 assegurou a possibilidade de responsabilização de forma objetiva. De fato, a responsabilidade objetiva nem sempre apresenta relação de sinonímia com a teoria do risco. A responsabilidade é objetiva, em algumas situações, porque a lei assim determina, ao passo que o risco é inferido da atividade. Dessa sorte, o Código Civil, em seus artigos 932, 933, 936, 937, 938, traz hipóteses de responsabilidade objetiva alheias à noção de 53 O Código Brasileiro do Ar (Decreto-lei 483), por exemplo, promulgado em 8 de junho de 1938, adota de maneira mais clara a teoria do risco: estabelece uma responsabilidade desatrelada da culpa, em relação aos danos causados às pessoas ou bens na superfície pela aeronave. Diz o art. 97: “Dará direito à reparação, qualquer dano que uma aeronave em vôo, manobras de partida ou chegada, causar a pessoas ou bens que se encontrem à superfície do solo”. Acrescenta o parágrafo único: “Essa responsabilidade só se poderá atenuar, ou excluir, na medida em que à pessoa lesada couber culpa”. 54 LOPEZ, Teresa Ancona. Principais Linhas da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro Contemporâneo. In AZEVEDO, Antonio Junqueira de; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (coord.). Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Tullio Ascarelli. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 662. 55 Em relação ao risco, criam-se algumas teorias que procuraram interpretar o parágrafo único do art. 927 do Código Civil. Cláudio Luiz Bueno de Godoy explica que dentre as interpretações atribuídas ao parágrafo, a doutrina inicia sua jornada com o risco integral, passa pelo risco de empresa ou profissional, pelo risco proveito, pelo risco mitigado, pelo risco perigo, até chegar à noção de risco especial, ou seja, que a periculosidade da atividade desenvolvida deve ser especial; indutiva de um risco especial. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 50/109 56 LOPEZ, Teresa Ancona. Principais Linhas da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro Contemporâneo. In AZEVEDO, Antonio Junqueira de; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (coord.). Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Tullio Ascarelli. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 663. 30 risco57. Revela-se, destarte, que a teoria do risco é apenas um dos tipos de responsabilidade objetiva. Com a nova estruturação do Código Civil, mediante a separação entre o ato ilícito e a responsabilidade civil, fica evidenciado o dano como requisito fundamental para a responsabilização. O dever de responsabilizar, assim, não surge mais apenas da prática do ilícito (art. 186), mas também do lícito (art. 927, parágrafo único). Para Teresa Ancona Lopez, o novo Código Civil, seguindo a tendência mais atual do Direito Civil, desvinculou até mesmo o ato ilícito (ato antijurídico) da noção de culpa. Essa distinção fica evidente no artigo 187, que trata do abuso do direito, para o qual foi adotada a teoria objetiva58. Não se pretende, contudo, defender que o sistema da responsabilidade civil deva pautar-se apenas no risco, de modo a desconsiderar a culpa como nexo de imputação. Como salienta Claudio Luiz Bueno de Godoy, a análise da culpa será necessária nos casos de direito regressivo exercido por quem responda objetivamente. Ou, ainda, mais importante, deve-se levar em conta o papel educativo ou profilático que ela exerce – ou, pelo menos, deveria exercer –, para a coibição da reiteração da conduta danosa. O que não se permite, atualmente, é que a culpa cumpra, sozinha, o papel de nexo de imputação da obrigação de indenizar, devendo, portanto, coexistirem culpa e risco. Por meio de critérios diversos de imputação oferecidos pelo sistema normativo, levanta-se uma reação a um 57 Ao comentar a responsabilidade por fato de terceiro, prevista no art. 932 do Código Civil, Silvio Rodrigues define, ao contrário do entendimento apresentado, que a ideia de risco é a que mais se aproxima da realidade. Assim, “Se o pai põe filhos no mundo, se o patrão se utiliza do empregado, ambos correm o risco de que a atividade daqueles surja para terceiros”. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 20ª edição, revista e atualizada de acordo com o novo Código Civil, 5ª tiragem, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 63. Parece que, em se tratando da responsabilidade pelo fato da coisa ou por fato de terceiros, excluído o caso do menor, pode ser levado em conta tal entendimento. Contudo, não se pode afirmar que o pai responde pelo ‘risco decorrente da existência de uma criança’, salvo grave desnaturação do conceito. De mais a mais, nem o tutor nem o curador ensejaram a criação desse suposto ‘risco-criança’, razão pela qual é incoerente afirmar que eles são responsáveis sob esse fundamento. 58 LOPEZ, Teresa Ancona. Principais Linhas da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro Contemporâneo. In AZEVEDO, Antonio Junqueira de; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (coord.). Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Tullio Ascarelli. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 664. 31 dano injusto, materializado pela atribuição ressarcitória de determinado sujeito, para que se busque o reequilíbrio do dano59. 1.3 O APARECIMENTO DO ABUSO DE DIREITO Assim como ocorreu com a evolução da teoria da culpa e aparecimento de novos nexos de imputação, que culminaram, consequentemente, no aperfeiçoamento da Responsabilidade Civil – antes pautada apenas no ato ilícito e na culpa, passando a comportar a noção de risco –, que passou a garantir a indenização da vítima mesmo para os casos de desenvolvimento de atividade lícita, não ficou alheio a esse movimento o surgimento de novas fattispecie jurídicas, relacionadas, especialmente, às situações comportamentais, como é o caso do abuso de direito. Conquanto ainda restassem discussões a respeito da influência da teoria do risco na responsabilidade civil para afastar a culpa em determinadas situações ou corrigir extravios em certas ocasiões, o aparecimento da teoria do abuso de direito deu-se de forma bastante clara. Conforme orienta Renan Lotufo, a noção do instituto encontra as suas raízes históricas no Direito Romano, na figura da aemulatio, que consistia no exercício de um direito sem finalidade própria, com o único objetivo de lesar e/ou prejudicar outrem60. Como é notório, no Direito Romano vigiam amplamente os princípios previstos nos brocardos “neminem laedit qui iure suo utitur”, “feci, sed iura fec”i e “nullus videtur dolo facere qui iure suo utitur”. Contudo, mesmo em Roma, e especialmente a partir do séc. II do Império, sempre existiu a concepção – ao menos intuitiva – do abuso de direito, representada pela impossibilidade de exercer determinado direito com o único objetivo de lesar patrimônio alheio. Há, nesse sentido, referência na Lei das XII Tábuas a partir da inscrição “non omne quod licet honestum est”. 59 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 26. 60 LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 2, p. 499. 32 Essa teoria romana dos atos emulativos foi melhor desenvolvida na doutrina medieval, e pode ser vista como precursora da teoria do abuso de direito. Eram chamados atos de emulação aqueles praticados pelo proprietário sem qualquer vantagem econômica, mas com o objetivo de prejudicar terceiros. A partir dos litígios observados nas relações de vizinhança, desenvolveu-se a tese da necessidade de limitar-se o exercício de direitos subjetivos, rompendo-se a concepção absolutista até então dominante61. Inacio de Carvalho Neto aponta que a doutrina do abuso de direito foi também desenvolvida nos direitos Canônico e Muçulmano, relacionada, à época, principalmente, com a limitação ao direito subjetivo da propriedade62. É no Direito Francês, entretanto, que a expressão abuso de direito, em sua concepção atual, foi cunhada, com origem em discussões jurisprudenciais atinentes essencialmente ao direito de propriedade, conhecidas pelos casos “Doerr” (construção de uma chaminé falsa em terreno próprio com o objetivo de retirar a iluminação do terreno vizinho) e “Clément-Bayard” (construção, pelo proprietário, de dispositivo com espigões de ferro, visando impedir o lançamento de aeróstatos pelo vizinho)63. A teoria do abuso de direito nasce como uma resposta à maneira pela qual os direitos subjetivos, estampados a partir do fim do século XIX, eram exercidos: em caráter absoluto e ilimitado, em razão do pensamento liberal dominante à época, e em decorrência dos ideais presentes no Iluminismo e consagrados na Revolução Francesa. Do absolutismo, não como reação, pois a reação seria a negação do direito subjetivo, porém como conseqüência, surgiu a doutrina do abuso de direito. Aos poucos, a noção do exercício ilimitado de direitos subjetivos alterou-se, com a conscientização de que mesmo os direitos individuais deveriam ser praticados de forma útil, harmoniosa e de acordo com os interesses da sociedade. 61 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 243. CARVALHO NETO, Inacio de. Abuso do direito. 5ª edição, Curitiba: Juruá, 2010, p. 30. 63 LOPEZ, Teresa Ancona . Exercício do direito e suas limitações: abuso do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 885, 2009, pp. 49/68. 62 33 A teoria do abuso de direito veio, pois, alargar o âmbito da responsabilidade civil. Com ela, o exercício dos direitos subjetivos foi deixando de se restringir tão somente ao texto da lei. De fato, a noção de abuso de direito procura limitar o poder dos indivíduos de modo a que se conciliem com os interesses da sociedade. De forma inequívoca, o sistema jurídico como um todo vem passando por uma significativa alteração, distanciando-se o seu núcleo do individual para o coletivo, social. Especificamente no Direito Civil contemporâneo, não há mais espaços para conceitos egoístas, individualistas, e as normas que dele emanam buscam precipuamente o equilíbrio, em detrimento a interesses puramente particulares. Trata-se, conforme orientação de Teresa Ancona Lopez, de uma ruptura do individualismo e do voluntarismo que dominaram a sociedade nos séculos XVIII e XIX, por meio da atuação do Estado e da jurisprudência, que principiaram a intervir nas relações privadas, com vista ao equilíbrio entre os interesses particulares e coletivos. Desse momento em diante, começa a relativização do exercício dos direitos subjetivos, com os trabalhos desenvolvidos pelos tribunais e pela doutrina, fundamentados em valores morais - geralmente alicerçados na dignidade e lealdade64. Embora essa nova concepção tenha sofrido críticas por alguns autores, foi fortalecida com o apoio que encontrou sobretudo em Saleilles e Josserand65. Essa mesma evolução jurisprudencial fez-se também em outros países, como na Bélgica, na Itália e até mesmo na Espanha. Pode-se afirmar, contudo, que a evolução jurisprudencial francesa é o ponto de partida para a moderna construção dogmática do conceito de abuso de direito. No século XX, a teoria a respeito do abuso de direito se concretiza e se desenvolve cientificamente (doutrina e jurisprudência), como consequente reação ao exercício ilimitado dos direitos subjetivos, típico do liberalismo e individualismo presentes à época. 64 65 LOPEZ, Teresa Ancona . Exercício do direito e suas limitações..., p. 52. JOSSERAND, Étienne Louis. De l’abus Du droit. In Bulletin de la Société d’Éstudes législatives, 1905. 34 Em que pese o Código Civil da Prússia de 1794 ter previsto a reparação dos danos decorrentes do exercício de direito praticado com a intenção de prejudicar outrem 66, e o Código Civil alemão de 1896 (BGB), em seu § 22667, ter abarcado a ideia da proibição dos atos emulativos, a inovação da teoria só esteve presente a partir do Código Civil Suíço de 1907, onde foi incorporada a atual concepção acerca do abuso de direito, vinculada às regras da boa-fé 68 . Os dispositivos desse Diploma iluminaram o Código Civil Português de 1966 (artigo 33469), que, por sua vez, foi inspirado no Código Civil Grego de 1940. O Artigo 187 do Código Civil Brasileiro de 2002 é fruto direto do antes referido artigo 334 do Código Civil Português, e tem como fonte indireta o artigo 281 do Código Civil Grego70. Não há notícias de que haja no direito pré-codificado (anterior ao Código Civil de 1916) um dispositivo que apontasse para a teoria do abuso de direito71. Dessa forma, a teoria consolidou-se de fato a partir da promulgação do Código Beviláqua, mediante a compreensão do artigo 160, inciso I, que preconizava: “Não constituem atos ilícitos: os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”. Giza Judith Martins-Costa que o abuso de direito, ao contrário do que ocorreu em outros países, apareceu no ordenamento jurídico brasileiro primeiramente por iniciativa legislativa e pela ação corajosa de uma ínfima gama de doutrinadores, que romperam os paradigmas de sua época. O regramento da matéria, abrigada entre as disposições da Parte Geral do Código Civil referente aos Atos Ilícitos, foi fórmula adotada por Clóvis 66 §§ 36 e 37: “O que exerce o seu direito dentro dos limites próprios não é obrigado a reparar o dano que causa a outrem, mas deve repará-lo, quando resulta claramente, das circunstâncias, que entre algumas maneiras possíveis de exercício de seu direito, foi escolhida a que é prejudicial a outrem, com intenção de lhe acarretar dano”. 67 “§ 226: É inadmissível o exercício de um direito, quando o objetivo for o de causar dano a outrem.” 68 O art. art. 2º do Código Civil suíço assim dispôs: "Todos têm, no exercício dos seus direitos e na execução das suas obrigações, de agir de acordo com a boa-fé. O abuso evidente de um direito não encontra proteção legal.". 69 “Art. 334: É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” 70 Note-se que, malgrado a concepção moderna do abuso de direito tenha se originado a partir do esforço doutrinário e jurisprudencial francês, no Código Napoleônico observou-se um retrocesso quanto ao desenvolvimento da teoria, porquanto prevalecente o pensamento individualista, esvaindo-se, assim, as noções que limitavam o exercício absoluto e antissocial do direito. 71 CARVALHO NETO, Inacio de. Abuso do direito. 5ªedição, Curitiba: Juruá, 2010, p.30. 35 Beviláqua, autor do Projeto resultante do Código de 1916, para que fosse condenado o abuso de direito, na esteira da doutrina de Saleilles72. Percebe-se, assim, que, no revogado Código Civil, não há uma previsão específica acerca do abuso de direito. Mas, a partir da interpretação inversa do artigo 16073, que contempla a licitude do direito praticado em exercício regular, concluía-se que o seu exercício irregular era antijurídico. Além do artigo 160 do CC/16 permitir a conclusão de que o ordenamento já adotava a teoria do ato abusivo, outros dispositivos do direito positivo brasileiro corroboravam também essa ideia. Como exemplo, basta citar os artigos 16, 17 e 18 do CPC, como também a antiga Lei de Falências (Decreto-Lei n. 7.661/45), que, em seu artigo 20, consagrava o pedido abusivo de falência em ato que gerasse indenização, dentre outros. Há ainda quem sustente que a teoria do abuso de direito foi inserida no artigo 5º74 da Lei de Introdução ao Código Civil75. Contudo, alerta Judith Martins-Costa que somente após a enxurrada de leis especiais que derivaram dos novos rumos políticos adotados posteriormente à Revolução de 1930, especialmente depois de o Código de Obrigações de 1941 ter expurgado a intenção emulativa do abuso, os Tribunais, em meados do Século XX, passaram a examinar recorrentemente a aplicação da teoria do abuso de direito, em especial no que se refere às ações locatícias76. 72 MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo indicado pela Boa-fé. in TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo: Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 59/60. 73 “Art. 160. Não constituem atos ilícitos: I. Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido. II. A deterioração ou destruição da coisa alheia, afim de remover perigo iminente (arts. 1.519 e 1.520). Parágrafo único. Neste último caso, o ato será legítimo, somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.” 74 “Artigo 5º: Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. 75 CARVALHO NETO, Inacio de. Abuso do direito. 5ª edição, Curitiba: Juruá, 2010, p.33 76 MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo indicado pela Boa-fé. in TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo: Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 61. 36 Relata a mesma autora que, às vésperas da promulgação do Código Civil de 2002, o abuso de direito se revelava, ainda, uma figura tímida, especialmente se comparado com a sua aplicação em outros países, com cunho ainda subjetivo, assistemático, “posto quase como um apêndice da cláusula geral de responsabilidade civil aquiliana do artigo 159 do Código Civil (1916)”77. Da análise do artigo 187 do CC, depreende-se que o ato ilícito invocado no dispositivo é sui generis, porquanto a análise da conduta é feita objetivamente, sem necessidade da constatação do elemento culpa. O termo “manifestamente” incluído no artigo suscita inúmeras discussões doutrinárias, porque só gera dúvidas sobre seu alcance. Com efeito, os limites ao exercício de um direito devem ser impostos segundo a “justiça da situação”, nas fronteiras da conduta lícita, ou seja, esse termo “manifestamente” deve servir de equilíbrio para a aplicação da teoria no caso em concreto, e opera como instrumento a reprimir injustiças manifestas. Nesse exato sentido, Fernando Noronha refere que o ato abusivo não é necessariamente ilícito subjetivamente, mas é sempre atuação contrária ao direito, atuação antijurídica. Segundo este autor, abusa de seu direito quem faz dele uso desconforme, restando ao lesado fazer a prova de que o direito foi exercido desproporcionadamente78. Na mesma linha, a posição adotada por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, ao definirem que basta o excesso manifesto no exercício de um direito, que sobrepuje sua finalidade econômica ou social, ou a boa-fé, ou os bons costumes, para que se caracterize o abuso, não havendo necessidade de demonstração da intenção de prejudicar terceiro79. Teresa Ancona Lopez definiu o abuso de direito como o “ato antijurídico exercido pelo titular de um direito que ao praticá-lo excede os limites impostos pelos valores éticos 77 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 67/68. 78 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 371. 79 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume I: parte geral. 7ª edição, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 501. 37 e sociais do sistema, violando a boa-fé, os bons costumes e a finalidade social e econômica do direito80” Conceitualmente, então, pode-se definir o abuso de direito como “exercício inadmissível de posições jurídicas81”, ou como “um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito”82, ou, por fim, como o “ato antijurídico exercido pelo titular de um direito que ao praticá-lo excede os limites impostos pelos valores éticos e sociais do sistema, violando a boa-fé, os bons costumes e a finalidade social e econômica do direito”83. As conseqüências jurídicas da aplicação do artigo 187 do Código Civil, segundo Bruno Miragem, cingem-se à remoção do ato que se pratica em abuso, com a eliminação de suas conseqüências, bem como a reparação civil. Sobrevindo danos – sejam patrimoniais ou extrapatrimoniais – em decorrência de um direito exercido abusivamente, exsurge o dever de repará-lo. Para o referido autor é possível ainda a invalidade do ato praticado, por se tratar de nulidade por ofensa à ordem pública (ofensa à boa-fé, bons costumes e fim econômico ou social do direito) e ineficácia da conduta, em virtude da dita nulidade (não produção de efeitos como resultado da ilicitude)84. Como arremata Francisco Amaral, a sanção para o abuso de direito pode ser direta, compelindo-se o infrator a restaurar o estado anterior – extinguindo, portanto, a situação abusiva – ou direta, impondo-se ao devedor a obrigação de reparar o dano85. Verifica-se, assim, que a evolução do Direito levou à adoção de princípios pautados na eticidade, na melhor defesa da vítima, em contrapartida a repulsa pela adoção de condutas contraditórias ou que expõem a sociedade a riscos desnecessários. Notadamente, 80 LOPEZ, Teresa Ancona . Exercício do direito e suas limitações..., p. 547. CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 661 e seguintes. O autor coloca ainda terminologia mais precisa para descrever o abuso de direito: o abuso de posições jurídicas. 82 FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de direito civil. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 889. 83 LOPEZ, Teresa Ancona . Exercício do direito e suas limitações: abuso do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 885, 2009, p. 55. 84 MIRAGEM, Bruno. Abuso de Direito: proteção da confiança e limite ao exercício das prerrogativas jurídicas no direito privado. 1ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 177. 85 AMARAL, Francisco. Direito civil : introdução. 7ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 246. 81 38 o Direito Civil contemporâneo impôs ao aplicador do direito o desafio de harmonizar a autonomia individual e a solidariedade social, somente merecendo tutela a atividade econômica privada que atende concretamente aos valores constitucionais. Todo e qualquer ato jurídico que desrespeite tais valores, ainda que não seja ilícito, pode ser qualificado como abusivo, ensejando a correspondente responsabilização86. A vedação à prática abusiva de um direito, pois, caminha em consonância com a contemporânea concepção do Direito Civil: as realizações relevantes para o mundo do Direito devem, antes de tudo, revelarem-se úteis à sociedade; o detentor de uma determinada faculdade jurídica deve exercer o seu direito tendo em vista o bem estar da coletividade; mesmo numa relação privada restrita; entre dois sujeitos, os direitos devem ser praticados segundo um padrão de comportamento objetivamente concebido, devendose observar, ainda, os aspectos morais socialmente inseridos. Ou seja, essa mudança de paradigma da concepção da teoria do abuso de direito mostra também a evolução da responsabilidade civil acerca do tema. Isso porque não apenas mudou-se o foco do abuso para uma concepção eminentemente objetiva, mas porque também se passou a admitir a atuação da responsabilidade civil preteritamente à ocorrência do dano (v.g., os casos de repressão à publicidade abusiva). De fato, verifica-se que a importante figura do abuso de direito ingressou no ordenamento jurídico brasileiro como mais uma forma de manifestação da responsabilidade civil – embora a ela não se restrinja –, para prevenir e regular o exercício inadequado de uma conduta, que embora aparentemente permitida por Lei, acaba se revelando indevida, frente aos princípios éticos e sociais do direito. Na atual sociedade de massa e de consumo, o abuso de direito ganha contornos ainda mais especiais, de proteção do bem individual e coletivo. Por existir, muitas vezes, uma linha tênue entre o permitido e o proibido, cabe ponderar a atuação dos agentes sociais de acordo com as regras de boa-fé e probidade, no sentido de não prejudicar outrem87. 86 TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil: Estudos na perspectiva civilconstitucional. 3ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 418. 87 A ideia do abuso de direito regulamentando a massa social ficará mais bem delineada no tópico que tratar dos danos coletivos, em especial, o dano social, com a proibição das práticas danosas e ilícitos lucrativos. 39 1.4 A ATUAL VISÃO DA RESPONSABILIDADE: SUAS NOVAS FUNÇÕES O breve apanhado histórico acerca da evolução da Responsabilidade Civil é importante para explicar a constante necessidade de ampliação e renovação deste instituto, assim como para afastar a afirmação, já trazida há tempos, de que a responsabilidade civil estaria em crise, não comportando exercer os papéis que a sociedade dela exige. De fato, a consagração de uma sociedade caracterizada pelo risco e a insuficiência de alguns conceitos clássicos acabaram por colocar em xeque a sustentação da própria responsabilidade civil. É bastante claro que a universalização das relações de massa, notadamente impessoais, acaba por dificultar a apreensão ao modelo tradicional da responsabilidade civil, em especial pela dificuldade de comprovação da causalidade entre um dano e uma conduta culposa do agente. No entanto, esse novo enquadramento da sociedade, da individualização à universalização, encerra por permitir a renovação da responsabilidade civil, com a inclusão de temas de grande importância no panorama jurídico contemporâneo em sua pauta, afastando qualquer possibilidade de falência do instituto. O esforço doutrinário e as dificuldades apresentadas pelos Tribunais na solução de novas situações que são levadas ao seu escrutínio acarretam uma ampliação das funções da responsabilidade civil, que antes se preocupava apenas com a reparação dos danos e, agora, passa a se preocupar também com a punição e dissuasão da conduta danosa, e ainda com a sua prevenção, até mesmo antecipando-se à ocorrência do dano. Neste passo, a responsabilidade civil, que antes se preocupava com a proteção de cada indivíduo considerado de forma isolada na sociedade, passa a ser embasada na ideia trazida pelo princípio da solidariedade, presente na Constituição Federal de 198888. Com a 88 “Art. 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”. 40 implementação da responsabilidade objetiva, por meio da adoção da teoria do risco, partese do individualismo jurídico para a regulamentação dos problemas sociais.89 Como explica Teresa Ancona Lopez, o princípio da solidariedade traz consigo a ideia de socialização dos riscos: as conseqüências danosas são repartidas entre todos os membros da sociedade, na medida em que os riscos são sociais, não sendo justo que os homens por ele respondam individualmente. Assim, o risco se coletiviza, como também a responsabilidade90. A própria noção de culpa, antes alicerce fundamental da responsabilidade civil, acaba sendo relegada a segundo plano, especialmente com a ascensão do princípio ético da boa-fé objetiva. Com os padrões de conduta impostos pela boa-fé objetiva, a culpa “acaba por desempenhar papel meramente formal como categoria de enquadramento de atos que atingem valores impostos substancialmente por outra cláusula geral”, conforme adverte Anderson Schreiber91. Para o mesmo autor, atualmente há também uma perda de nitidez na distinção entre responsabilidade subjetiva e objetiva. Isso porque, muitas vezes, uma questão tratada pelo regime da responsabilidade subjetiva acaba encontrando solução jurisprudencial em expedientes bastante objetivistas, e vice-versa. Essa perda de nitidez estaria vinculada à gradual reunificação entre a antijuridicidade e o dano92. Essa transferência do foco da responsabilidade civil em direção ao dano 93, com a relativa perda de importância da culpa e do nexo causal na filtragem das demandas indenizatórias, denota um afastamento do paradigma de imputabilidade moral em favor de 89 MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Solidariedade. In Revista do Departamento de Direito, PUC, Rio de Janeiro, p. 11. 90 LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 51. 91 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 46. 92 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 210/211. 93 Nesse sentido, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka defende uma responsabilidade pressuposta, pela qual se deve buscar primeiramente a reparação da vítima, para depois verificar-se o responsável pelo dano. Essa tese seria também uma das novas modalidades de aplicação e evolução da responsabilidade civil. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 41 um sistema de reparação capaz de efetivamente proteger as vítimas dos comportamentos lesivos. Com base na solidariedade, a matriz individualista da responsabilidade civil vai dando lugar a soluções mais sociais e coletivas, fundada num dever solidário de reparação. Daí advém a distribuição equitativa dos prejuízos pela própria sociedade. Essa diluição dos danos, como denomina Anderson Schreiber94, já pode ser observada em três meios: ampliação das hipóteses de responsabilidade solidária; desenvolvimento dos seguros de responsabilidade; e crescente importância da prevenção e precaução dos danos. A construção jurisprudencial da teoria da causalidade alternativa, em que os potenciais causadores do evento lesivo são, à falta de identificação do causador específico, considerados solidariamente responsáveis perante a vítima, além de ampliar as hipóteses de responsabilidade solidária, assentou a ideia de diluição do prejuízo, que seria repartido entre os agentes potencialmente ofensores. Sustenta-se, ainda, que tal ônus econômico poderia ser repassado aos consumidores de modo geral, por meio, por exemplo, do aumento direto do preço do produto ou serviço. Para Teresa Ancona Lopez, a verdadeira socialização dos riscos é aquela na qual há a difusão do seguro obrigatório e a criação dos Fundos estatais. Dessa sorte, sem a adoção geral do seguro obrigatório, não se poderia falar nessa socialização dos riscos95. A própria adoção de securitização privada de responsabilidade, bastante presente na cultura norteamericana, por meio da qual o segurado contrata a assunção econômica pelo segurador de sua eventual responsabilização, possibilitaria essa diluição dos custos, na medida em que, pela cobrança do prêmio, os danos seriam repartidos, também, pelos potenciais agentes danosos. Há, assim, uma busca espontânea dos agentes potencialmente lesivos – e, em última análise, da sociedade – por uma repartição de riscos, com a distribuição entre si dos danos advindos de sua atividade. Por motivo dessa propagação dos instrumentos assecuratórios, mais comuns nos países centrais, chega-se a reforçar aquela ideia de crise da responsabilidade civil, na medida em que haveria, supostamente, uma limitação do campo de incidência de suas regras. 94 SCHREIBER, Anderson, Novos Paradigmas da Responsabilidade..., p. 213. LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 51. 95 42 Contudo, essa tentativa de limitação das regras da responsabilidade às ordens jurídicas em que o seguro obrigatório ou as indenizações sociais não sejam difundidos só encontra razão se realizada uma interpretação restritiva desse ramo do direito. Conforme apontamento de Teresa Ancona Lopez, com o desenvolvimento do seguro obrigatório e dos fundos de garantia, foi, de fato, enxergada a grande vantagem de reparação da vítima do dano, sem que o lesante tivesse que arcar com o custo integral da indenização, mas o imenso inconveniente de desestimular a adoção de medidas para evitar o evento danoso. O foco deixa de ser a causa (dano) e passa a ser a conseqüência (ressarcimento), perdendo importância a responsabilização da teoria com base na culpa ou no risco. Pago o seguro de responsabilidade civil, o potencial lesante pode se sentir desestimulado a atuar de modo preventivo96. Todavia, explica a autora que a socialização dos riscos e a aplicação generalizada do seguro de responsabilidade civil jamais conseguiriam limitar o campo de aplicação da responsabilidade civil, a começar pelas conseqüências econômicas e sociais que acompanham a adoção desse sistema. Ademais, nada impedirá que o lesado ajuíze uma ação indenizatória em face do causador do dano, caso não se sinta integralmente reparado.97 Além do mais, as ações de responsabilização constituem pré-requisito ao pagamento pelo seguro. Nesse mesmo sentido, Geneviève Viney menciona que o seguro de responsabilidade passa a tomar a forma de seguro direto, o qual esteve na origem dos sistemas de seguro social e, posteriormente, de seguridade social, que, por sua vez, procederam a aparição de fundos de garantia ou de indenização destinados a cobrir certos riscos particularmente graves em apelo à solidariedade nacional ou mesmo internacional. Alerta a mesma autora que esses procedimentos diversos justapõem-se e se integram, criando, em numerosos países, um verdadeiro direito de acidentes, no qual a 96 LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, pp. 49/55. 97 LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, pp. 58/59. 43 responsabilidade civil continua a ocupar lugar não menos importante de outrora, embora agora em concorrência ou completada por outros tipos de garantia98. Mas, principalmente, com a consagração dos princípios da prevenção e da precaução, além de restar verificada a atual tendência do direito da socialização dos danos, atribui-se um novo rumo ao direito da responsabilidade civil no século XXI. O mesmo princípio da solidariedade, que serviu de fundamento à implementação do seguro de responsabilidade civil (analisada a partir de sua função meramente ressarcitória), serve, agora, como base da função preventiva da responsabilidade civil. Portanto, essas novas preocupações da sociedade, longe de decretarem a falência da responsabilidade civil, apresentam novas pautas ao instituto, expandindo o seu campo de atuação. Maria Celina Bodin de Moraes aduz que, no campo da responsabilidade civil, o princípio da proteção da pessoa humana provocou a sistemática expansão da tutela da pessoa da vítima, fazendo com que perdesse importância a função moralizadora, antes tida como um dos aspectos nucleares da responsabilidade civil99. Esse aspecto moralizador, que antes orientava a responsabilidade civil, é substituído pela concepção de existência de um dever geral de solidariedade presente no instituto. E esse mesmo dever de solidariedade passa agora a atuar como alicerce da função preventiva da responsabilidade civil. Esse campo, na lição de Teresa Ancona Lopez, vem sendo ampliado ao longo da história de evolução da responsabilidade civil: o direito da responsabilidade civil, que sempre se preocupou com a reparação ou compensação do dano já causado – e esse ainda é o papel predominante da responsabilidade civil – passa a visar o futuro, na tentativa de evitar acontecimentos danosos, muitas vezes irreparáveis.100. Como ensina Patrícia Faga 98 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 42/43. 99 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 235 e 238. 100 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da Precaução e Evolução... pp. 62/76 e 124/125. 44 Iglecias Lemos, “fundado na idéia basilar de proibição de causar dano a outrem (alterum non laedere), o sistema de responsabilidade civil passa a assumir uma função antecipatória, calcada na prevenção (risco conhecido) e na precaução (risco hipotético) de danos”101. Decerto, esse novo paradigma da responsabilidade civil revela ainda mais a sua importância em relação àquelas situações em que é impossível a reparação integral do dano, como nos tão conhecidos e recorrentes danos ao meio ambiente, à saúde, à integridade física. Para essas situações, mais do que indenizações pesadas (punitive damages), faz-se necessária a utilização de instrumentos de prevenção anteriores ao dano. Afinal, a indenização como resultado prático da aplicação da prevenção poderia resultar na dispensa dessa função, que estaria melhor abarcada pela difusão do seguro de responsabilidade102. O reconhecimento e a aplicação dessa nova função da responsabilidade civil, no sentido de antecipar-se ao cometimento do dano, que se mostra, muitas vezes, irreparável, apresentam-se como uma tendência inevitável do sistema. Notadamente, o que se observa é uma gradual desvinculação da figura do dano da responsabilidade civil, reconhecendo-se tanto as hipóteses de reparação de um dano por um seguro público ou privado, ou seja, sem se utilizar dos instrumentos oferecidos pela responsabilidade civil, como também a aplicação desse instituto sem a ocorrência específica de um dano, v.g. os casos de prejuízos ambientais e propaganda enganosa. Mas, longe ainda o ordenamento quanto à efetividade para a antecipação do cometimento de danos, e da criação de um modelo de solidariedade na divisão do prejuízo, com a criação de seguros universais, mais preocupante, atualmente, são as novas formas de lesão à coletividade, que surgem como uma das preocupações mais candentes do direito. Manifestamente, a assunção de novos papéis e funções, pela responsabilidade civil, em razão das novas formas de interação da sociedade, deu-se também em virtude das 101 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Resíduos Sólidos e Responsabilidade Civil Pós-Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 183. 102 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias , Resíduos Sólidos e Responsabilidade Civil..., p. 186. 45 novas modalidades de danos reconhecidos pela doutrina e jurisprudência, para os quais também aplicáveis as funções reparatória e preventiva. Citam-se, apenas como exemplos, as figuras do danno biologico, criado pelos tribunais italianos, como referência aos danos causados à saúde da vítima, como também os posteriormente reconhecidos “danos existenciais”, caracterizados como danos à dignidade, em que há comprometimento das atividades diuturnas da pessoa e de sua qualidade de vida103. O reconhecimento desses novos anseios da sociedade leva, invariavelmente, ao reconhecimento de novas modalidades de danos, antes inexistentes ou encarados como de somenos relevância pela própria coletividade. A exemplo disso, a figura da perda de uma chance, importada do direito francês pelo ordenamento brasileiro104. Aliás, é natural esperar que, na época da pós-modernidade, marcada pela superação de fronteiras, pela crise da soberania, pela comunicação globalizada, pela multiplicação das fontes normativas, pelo avanço científico e tecnológico, permeadas por soluções tópicas vazadas por cláusulas gerais ou conceitos indeterminados de conteúdo não cientificamente construído, surjam novas manifestações de eventos lesivos105. 103 Essa profusão de nomenclaturas e possibilidades de reparação vislumbradas pela doutrina e jurisprudência levou a falar-se em “danos de etiqueta”, na medida em que a cada novo dano apreendido, um novo nome lhe era atribuído. 104 Trata-se da chance perdida pela vítima, em função de ação ou omissão do agente ofensor. Essa modalidade de dano é configurável de acordo com a verificação dos seguintes elementos: i) um resultado positivo futuro, cuja verificação não se apresenta certa, podendo consistir ou na obtenção de uma vantagem ou na não concretização de uma desvantagem; ii) a pessoa deve se encontrar numa situação em que pode vir a alcançar esse resultado, porque reúne um conjunto de condições de que depende a sua verificação; iii) um comportamento de terceiro suscetível de gerar a sua responsabilidade e que elimina de forma definitiva as existentes possibilidades de o resultado se vir a produzir. O que se indeniza é a chance perdida, e não o evento futuro que não se atingiu. Com efeito, essa teoria da indenização pela perda de uma chance, criada na França na década de 60, surgiu como forma de desnaturação do nexo causal para decidir casos de responsabilidade civil do médico. Dadas as dificuldades naturais em dizer que um fato constituía a causa jurídica de um dano, e perante o binômio da concessão integral da indenização ou sua exclusão – em outras palavras, binômio do tudo ou nada –, os juízes optaram por algo intermediário, baseados na teoria da perda de uma chance. Após esse reconhecimento para os casos de erro médico, a teoria passou a ser aplicada em diversas outras situações, vislumbrada como um dano autônomo, que deveria ser indenizado sempre que a chance perdida fosse real e concreta, com alta probabilidade de ocorrer. De fato, a aplicação e mesmo definição do instituto ainda se apresenta bastante insipiente no Brasil. Não se chega a um consenso geral no sentido de classificar a teoria como uma nova modalidade de dano ou como um modulador do nexo de causalidade. E justamente em razão dessa confusão, a aplicação da teoria pela jurisprudência ainda apresenta inegáveis problemas conceituais. No entanto, não se nega o fato de que a aplicação dessa doutrina tem crescido em nosso sistema jurídico, caracterizando um novo desdobramento sobre o qual a responsabilidade civil deve se debruçar, atendendo aos problemas que, embora não sejam novos, começam a aparecer com maior evidência. 105 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Alguns apontamentos sobre o dano moral, sua configuração e o arbitramento da indenização. p. 379. In CASSETTARI, Christiano. 10 anos de vigência do Código Civil Brasileiro de 2002. Saraiva: São Paulo, 2013, p.378. 46 Com efeito, a discussão atual acerca da responsabilidade civil circunscreve-se a definir quais funções pode ela adotar, e se é possível, mesmo que reconhecidas diversas funções, desempenhá-las todas. Assim, ao lado de engendrar-se uma nova configuração da sociedade, marcada por seguros universais de responsabilidade ou na antecipação do acontecimento do dano, a responsabilidade civil, adaptando-se ao seu tempo, em vez de abandonar as suas primitivas preocupações, voltadas à conduta do lesante e à reparação da vítima, retoma antigos conceitos, para amoldar-se à formatação coletiva do agora. Por isso que, mais que reconhecer a existência de direitos transindividuais, difusos ou coletivos, ampliam-se, por força de lei ou pelo esforço da doutrina e da jurisprudência, as formas de sua proteção, aplicando-se, ainda, quando necessário, medidas que pareciam estar há muito esquecidas, cujo intuito, declarado ou não, é punir o agente e prevenir o dano futuro. Ao lado da função clássica da reparação, Fernando Noronha reconhece a possibilidade de aplicação de uma pena privada, atribuindo, então, à responsabilidade civil uma função sancionatória, que servirá de instrumento de punição e de dissuasão à reiteração de conduta censurável106. Maria Celina Bodin de Moraes bem define que a teoria da pena privada, defendida em meados do século XX por Boris Starck, vem ganhando cada vez mais adeptos no ordenamento brasileiro, tanto por parte da doutrina quanto da jurisprudência. Essa pena privada passa a ser computada no cálculo da reparação por danos morais, que começa a exercer uma função dúplice: reparação da vítima e sancionamento do ofensor, como meio de se punir ou desestimular ou inibir.107 106 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, pp. 439/441. 107 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 224. 47 No entanto, a mesma autora alerta que a solução mais condizente com o instituto da pena privada é a normatização das fattispecie merecedoras de sua aplicação, para que a sua autorização não constitua um “cheque em branco” ao julgador.108 Embora ainda um pouco insipiente a aplicação das indenizações punitivas no Brasil, não tendo sido a sua ideia dissociada da de reparação do dano, como aconteceu no Reino Unido e Estados Unidos da América, é possível ver-se a aplicação de medidas corretivas às situações negativamente exemplares, que afetam a coletividade. Verifica-se, assim, uma evidente preocupação da responsabilidade civil em relação não apenas aos danos causados à coletividade, que, muitas vezes, carecem de adequada proteção ou iniciativa do Poder Judiciário em controlá-los, ao mesmo tempo em que se levanta uma função de punir e dissuadir, acompanhada, também, de uma função de prevenção do próprio dano109. Atualmente, essa preocupação social sobre a qual a responsabilidade civil atualmente se debruça, e que também é fundada no solidarismo social, é o que Antonio Junqueira de Azevedo denominou “dano social”110, como medida de recomposição, à sociedade, daquilo que dela foi retirado. A reparação desse dano representa a confirmação das funções punitiva e dissuasória, traduzindo, via de conseqüência, uma função também preventiva da reiteração do ato lesivo. No entanto, malgrado plantada essa ideia, parece ainda haver relutância em sua aplicação, muito embora, hodiernamente, sejam esses danos transindividuais e multifacetários os principais problemas apresentados pela coletividade, que acaba padecendo de um rebaixamento de sua qualidade de vida, sem um instrumento eficaz que lhe garanta a paz almejada. 108 MORAES, Maria Celina Bodin de, Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 227. 109 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, pp. 441/442. 110 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 377/384. 48 Como asseveram Judith Martins-Costa e Mariana de Souza Pargendler, a preocupação atual dos estudiosos volta-se à procura de um instituto “apto a coibir ou desestimular certos danos particularmente graves cuja dimensão é transindividual, ou comunitária...”111. Voltam-se, então, os olhos para a procura de uma solução a esses problemas que afetam a coletividade como um todo, ainda que causados pontualmente a cada indivíduo, sendo certa a insatisfação com a linearidade do princípio da reparação nessa sociedade atual. Todo esse encadeamento histórico serve não apenas para afastar a falência da responsabilidade civil, mormente essas novas e urgentes preocupações ora apresentadas, mas também para justificar a necessidade do amoldamento do próprio instituto à existência desses novos danos ou mesmo à exigência de novas regulações, de forma que a sociedade fique protegida e pacificada, atendendo aos princípios éticos e sociais positivados pela Constituição Federal. Longe de apresentar uma crise de identidade, a responsabilidade civil parece renovar-se a cada novo desafio que lhe demanda solução. 111 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 16. 49 CAPÍTULO II A COMPENSAÇÃO DO DANO EXTRAPATRIMONIAL E AS SUAS FUNÇÕES 2.1 O DANO EXTRAPATRIMONIAL A evolução da responsabilidade civil, como visto, apenas ocorreu em razão da diversificação do dano, ou seja, do surgimento de novas situações e realidades, que provocaram a necessidade de expansão das hipóteses de dano até então existentes. Com efeito, nessa mesma esteira, o dano extrapatrimonial foi decorrência lógica da insuficiência da indenização às lesões meramente patrimoniais, na medida em que qualquer dano não economicamente aferível ficava à mingua de uma justa compensação. Não se pretende, justamente por não ser esse o escopo deste trabalho, traçar uma longa linha histórica acerca do dano moral, de seus primeiros passos desconfiados até à completa aceitação no direito. O que se pretende demonstrar é apenas a modificação da ótica sob a qual era vislumbrado esse dano, capaz, agora, de transcender a aplicação puramente individualista em que era empregado, para garantir a reparação de uma lesão, não aferível economicamente, que atinja a uma coletividade. Apenas importante destacar, inicialmente, que se entende correta a utilização do termo “dano extrapatrimonial” no lugar de “dano moral”, por ser o primeiro mais abrangente do que o segundo. Como mesmo destacam José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala, a doutrina ainda é muito vacilante quanto a essa nomenclatura, denominando-o dano moral, e, mais recentemente, usando a designação de dano extrapatrimonial112. Como refere Mário Júlio de Almeida Costa, a distinção entre os danos patrimoniais e extrapatrimoniais ou não patrimoniais reside na verificação de se a lesão é 112 LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e prática. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 260. 50 ou não suscetível de avaliação pecuniária. Os primeiros incidiriam “sobre interesses de natureza material ou econômica, refletem-se no patrimônio do lesado, ao contrário dos últimos, que se reportam a valores de ordem espiritual, ideal ou moral”113 Por essa razão que a denominação “dano extrapatrimonial” revela-se mais acertada, justamente por ser menos restritiva. Como atestam os mesmos citados autores José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala, o termo extrapatrimonial “não vincula a possibilidade do dano à palavra moral, que pode ter várias significações e torna-se, desta maneira, falha por imprecisão e abrangência semântica”, sendo suficiente, portanto, a utilização da nomenclatura dano não econômico, não patrimonial (strictu sensu) ou extrapatrimonial114. Como aquilata Paulo de Tarso Sanseverino, “A expressão dano extrapatrimonial abrange, fundamentalmente, os prejuízos sem conteúdo econômico que violam ‘a esfera existencial da pessoa humana’”115. Entende-se, então, que o dano extrapatrimonial pode ser o gênero, do qual o dano moral, o dano estético, o dano da perda da chance, o dano moral coletivo e o dano social podem ser espécies116. Ao entanto, apenas para fins didáticos, utilizar-se-ão outras expressões, como dano não patrimonial, dano não econômico, até mesmo dano moral etc. 2.2 O DANO EXTRAPATRIMONIAL E A SUA EVOLUÇÃO: A SUA ADEQUADA CONCEITUAÇÃO 113 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 6ª edição, Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 407. 114 LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e prática. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 260. 115 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 257. 116 Explica Leonardo Roscoe Bessa que dano moral e dano extrapatrimonial não podem ser confundidos, porquanto traduzir este último, em contraposição ao dano patrimonial, qualquer violação de interesses não suscetíveis de avaliação pecuniária, podendo englobar, assim, outros tipos de danos, que não apenas o dano moral individual. In BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, p. 97. 51 Aponta Américo Luís Martins da Silva que, muito antes de o Direito romano tratar do dano e de sua reparação, já existiam, na Suméria, na Babilônia e na antiga Índia codificações de leis regulamentando o dano moral, ainda que de forma incipiente. Assim que os Códigos de Ur-Nammu, Manu e Hamurabi faziam referências a lesões não econômicas, que eram compensadas por meio de penas pecuniárias.ou pelo direito de vindita. Da mesma forma, era possível reconhecer a reparação do dano moral em fatos históricos da Grécia antiga, ou mesmo de passagens do Alcorão, sendo, posteriormente, discutido pelo Direito romano, pelo Direito canônico, Direito hebraico e Direito talmúdico117. Da mesma forma lembra Jorge Peirano Facio, ao comentar que a reparação por dano moral remonta às mais antigas etapas de evolução da responsabilidade civil. Ainda nas épocas mais primitivas, o instituto da vingança privada protegia qualquer atentado contra a personalidade, especialmente aqueles que atacavam à honra e não se traduziam em prejuízo pecuniário. Também no direito romano havia uma tendência em reparar os danos morais, quando o ofendido recebia uma reparação tanto pelas perdas pecuniárias quanto pelas restrições que sofria em seu bem-estar, desagrados, agitações de espírito etc., não se tratando somente de disciplina determinada pela lei, mas cabendo ao juiz a fixação, a partir das peculiaridades do caso, de indenização que satisfizesse o ofendido118. No Brasil, durante muitos anos, houve dúvida a respeito da aplicação de indenização para a reparação de dano extrapatrimonial, já que a legislação nada dizia a respeito ou não era suficientemente clara. Deveras, a lacuna deixada nas legislações do final do século XIX, ao redor do mundo, também pode ser observada no Código Civil de 1916, que, seguindo a mesma estrutura das codificações baseadas no Código de Napoleão, manteve-se silente sobre a reparação por danos não econômicos. O Código Civil de 1916 não tornou a reparação dependente do crime, mas remeteu os casos de proteção às figuras contidas na Lei penal119. 117 SILVA, Américo Luís Martins da. O Dano Moral e a Sua Reparação Civil. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 65/92. 118 FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, pp. 381/382. 119 MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p.34. 52 Ocorre que, mesmo antes da elaboração do Código Civil de 1916, havia corrente que defendia, no Brasil, a existência de uma lesão não econômica. No Decreto nº 2.681/12, ainda em vigor, que regulamenta a responsabilidade civil nas estradas de ferro, há previsão, no artigo 21, além do pagamento das despesas com o tratamento e os lucros cessantes sofridos pela vítima do dano, de que seja arbitrada uma “indenização conveniente” pelo juiz, que já podia, àquela época, levar a uma interpretação de reparação por um dano não patrimonial sofrido pelo lesado. Por esse motivo, parte da doutrina afirmava que a indenização por dano extrapatrimonial, embora existente à época da promulgação do Código, não fora nele positivada como princípio geral, enquanto outra corrente via a regra de forma clara, especialmente nos artigos 76120 e 159121122123. Fato é que a jurisprudência, especialmente a do Supremo Tribunal Federal, não adotava um posicionamento concreto sobre a reparabilidade ou não dos danos morais. Fato é que essa questão somente foi, finalmente, encerrada com o advento da Constituição Federal de 1988, que, no artigo 5º, fez constar expressamente a possibilidade de uma reparação por uma lesão não patrimonial124, seguida, três anos após, pelo advento do Código de Defesa do Consumidor e, posteriormente, pelo Código Civil de 2002. 120 “Art. 76. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legitimo interesse econômico, ou moral. Parágrafo único. O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou á sua família.” 121 “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. 122 Clayton Reis explica que o artigo 76 do Código Civil era preciso ao possibilitar a reparação por dano moral, já que condicionava a ação ao consequente interesse moral e econômico. Se o interesse moral era requisito indispensável para postular em juízo, também devia esse mesmo interesse poder ser objeto de reparação. Por seu turno, o artigo 159, em virtude de sua enorme amplitude, autorizaria a reparação de qualquer dano, não se podendo excluir aquela referente à lesão a direitos da personalida. REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, pp. 63/66. 123 Silvio Rodrigues afirmava até mesmo que, em inúmeras hipóteses, o Código Civil admitia a indenização por danos extrapatrimoniais, como no caso do esbulhador que, não podendo devolver a coisa esbulhada, ficava obrigado a pagar não apenas o seu preço, mas também o seu valor de afeição (art. 1.543), ou nos casos de injúria ou calúnia, em que a vítima, sem conseguir comprovar o prejuízo patrimonial, ainda tinha direito a uma reparação em dinheiro (art. 1.547, parágrafo único). RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 14ª edição, volume 4, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 197. 124 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”. 53 Leonardo Roscoe Bessa traça uma divisão a respeito da evolução em direção ao reconhecimento do dano moral, apresentando quatro fases distintas: 1) a fase de sua irreparabilidade; 2) a sua admissão, desde que reflexo do dano material; 3) o seu reconhecimento independentemente do dano material; e 4) a possibilidade de cumulação de dano moral e material125. Atualmente, a dicotomia dano patrimonial e dano moral está bem delineada: o primeiro representa o prejuízo que atinge o patrimônio palpável da vítima, ou seja, aferível em valor, ao passo que e o segundo representa perda do patrimônio não econômico. Na realidade, explica José de Aguiar Dias, ao fazer a diferenciação entre o dano patrimonial e o dano não econômico, que todo dano é uno, e não se discrimina em material e extrapatrimonial em atenção à origem, mas aos efeitos. Assim, a “distinção, ao contrário do que parece, não decorre da natureza do direito, bem ou interesse do lesado, mas do efeito da lesão, do caráter de sua repercussão sobre o lesado”. Dessa forma, será possível constatar tanto um dano patrimonial em consequência de lesão a um bem não patrimonial, quanto um dano extrapatrimonial em vista de uma ofensa a bem material126. Quanto à sua definição, a doutrina comumente traz o sentido de dano moral sob a forma negativa, em contraposição ao dano material, atribuindo-lhe um caráter residual. Procura-se, desse modo, conceituar o dano moral por exclusão. Já demonstrava Wilson Mello da Silva que o dano moral é a lesão sofrida pelo sujeito em seu “patrimônio ideal”, entendendo por patrimônio ideal “o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico"127, ou seja, atribuía ao dano extrapatrimonial esse aspecto residual que ele possui, além da dor, do direito personalíssimo, mas como qualquer dano que não possa ser economicamente aferível. 125 BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, p. 94. 126 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume II, Rio de Janeiro: Forense, 1979, pp. 414 e 428. 127 SILVA, Wilson Mello da. O Dano Moral e a sua Reparação, 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 13. 54 Nesse mesmo sentido, Silvio Neves Baptista diz que o dano é extrapatrimonial quando a lesão agride bens imateriais “insuscetíveis de avaliação em dinheiro, e que compõe o núcleo dos direitos da personalidade”, que acarreta a privação ou diminuição desses bens fundamentais ao homem128. No entanto, a pacificação quanto à existência de um dano moral reparável não significou a ausência de controvérsias em outros pontos sobre esse mesmo instituto. Durante muitos anos, os danos extrapatrimoniais foram – e continuam ainda sendo – relacionados à ideia de “dor, a mágoa, a tristeza infligida injustamente a outrem”129, ou seja, os “danos d’alma”130, “tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana”131. Pontes de Miranda tentou, ainda, estabelecer que não é a dor, em si, que se indeniza, “é o que a dor retira à normalidade da vida, para pior, e pode ser substituído por algo que o dinheiro possa pagar”, acrescentando, também, que se exige, como pressuposto comum da reparabilidade do dano não patrimonial, a gravidade, além da ilicitude, ou melhor, que seja ele oriundo de fato que também é crime ou contravenção132. Não se conseguia – como ainda alguns não conseguem –, consequentemente, vislumbrar a hipótese de um dano moral desatrelado de uma dor, uma aflição, uma angústia, um vexame – por vezes devendo-se até mesmo comprovar esse sentimento133. Embora ainda admitida a caracterização dos danos morais por uma dor ou humilhação, fato é que não se parece conceber, ainda mais após a edição da Constituição Federal de 1988, esteja ele desatrelado da ideia de lesão a direitos personalíssimos. Orienta 128 BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria Geral do Dano: De acordo com o Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2003, pp. 78/81. 129 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 14ª edição, volume 4, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 188. 130 REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 76. 131 CAHALI, Youssef Said. Dano Moral. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 20. 132 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo 26, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971, pp. 32/34. 133 O Tribunal de Justiça de São Paulo, ainda hoje, apresenta, em algumas de suas Câmaras, entendimento segundo o qual essa dor relacionada aos danos morais deve ser comprovada para que encontre reparação: “Seguro Saúde Preliminar afastada Exclusão da cobertura das sessões de fisioterapia Tratamento prescrito pelo médico que se configura fundamental para o controle do quadro clínico ao autor Cláusula abusiva Aplicação do Código de Defesa do Consumidor Danos morais não caracterizados Reforma da sentença, tãosó para afastar os danos morais e reconhecer a sucumbência recíproca. Dá-se parcial provimento ao recurso. (...) A cobrança efetuada caracteriza mero aborrecimento, não passível de indenização, anotandose, ademais, que sequer foram comprovados os alegados danos morais sofridos pelo espólio-autor”. In www.tjsp.jus.br, Apelação Cível nº 0177777-51.2009.8.26.0100, 5ª Câmara de Direito Privado, Relatora Christine Santini, julgado em 14/12/2011, consultado em 20/2/2012. 55 Yussef Said Cahali que o dano moral, em sua versão mais atualizada, vai paulatinamente se afastando de seus “contingentes exclusivamente subjetivos de dor, sofrimento, angústia”, partindo para uma análise mais objetiva, de forma a compreender também “as lesões à honorabilidade, ao respeito, à consideração e ao apreço social, ao prestígio, e à credibilidade nas relações jurídicas do cotidiano”134, ou seja, os direitos personalíssimos. Atualmente, alguns doutrinadores entendem, inclusive, não existir dano moral sem que haja lesão a um direito da personalidade, prescindindo-se da hipótese de ter a lesão causado um abalo psíquico na vítima, atribuindo a esse tipo de agravo um aspecto residual, sem atribuição econômica. Apenas para ilustrar essa evolução de pensamento da doutrina, Maria Celina Bodin de Moraes traça um retrato da atual visão doutrinária e jurisprudencial brasileira, que divide o dano moral em subjetivo (efeito não-patrimonial de lesão a direito subjetivo) e objetivo (afronta a direito de personalidade). No primeiro caso (dano moral subjetivo), o dano é considerado moral quando os efeitos da ação originam angústia, dor, sofrimento, constrangimento intensos, a ponto de poderem facilmente distinguir-se dos aborrecimentos cotidianos; no segundo (dano moral objetivo), o dano fere direitos personalíssimos, como a honra, atividade profissional, reputação, entre outros135. Ao optar por fazer decorrer o dano moral dos sentimentos de dor, humilhação, vexame, a autora diz que a jurisprudência teve acertada intuição acerca de sua real natureza jurídica, já que, normalmente, o que humilha, ofende, constrange as pessoas é justamente o que fere a dignidade. E derivando os direitos personalíssimos da dignidade humana, revelase correta a aplicação do dano moral para essas situações de ataque à dignidade136. A fim de tomar partido e orientar a aplicação de indenização por dano extrapatrimonial, diversos autores emitiram conceitos próprios, tentando trazer uma fórmula definitiva sobre o instituto. 134 Yussef Said Cahali. Dano Moral. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 351/352. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.157. 136 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., pp. 117/132. 135 56 Para Sílvio de Salvo Venosa, o dano moral é definido como o “prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Sua atuação é dentro dos direitos da personalidade”137. Embora admita que a atuação dos danos morais dá-se dentro dos direitos personalíssimos, não descarta o autor a dor física ou psíquica para a sua configuração, que gere um distúrbio anormal na vida do indivíduo. O juiz, portanto, segundo o autor, deve se pautar pela “sintomatologia do sofrimento” – já que o dano psicológico pressupõe modificação de personalidade, com sintomas palpáveis –, quantificando-a economicamente. Teresa Ancona Lopez, por sua vez, suscita que a definição de dano moral deveria ser dada em contraposição ao dano material, sendo este o que lesa bens pecuniariamente apreciáveis, ao passo que aquele reflete o prejuízo a bens ou valores sem conteúdo econômico138. A mesma autora divide o dano moral em três espécies: danos morais objetivos, caracterizados na ofensa aos direitos da pessoa tanto no seu aspecto privado (integridade física, corpo, nome, honra, segredo, intimidade, imagem), quanto em seu aspecto público (vida, liberdade, trabalho), assim como nos direitos de família, o qual é presumido, por acontecer in re ipsa; danos morais subjetivos (pretium doloris), identificado como o sofrimento d’alma, porque afetada a pessoa em seus valores íntimos, em suas afeições (como no caso dos pais que perdem um filho), e também no prejuízo pelos prazeres da vida; e, por fim, os danos morais ligados à imagem social, identificado, pelo constituinte, no art. 5º, V da Constituição Federal, separado do dano patrimonial e moral, que protege o indivíduo de não ver reproduzida nem desrespeitada sua imagem física139. De fato, os danos morais, quando começaram a ser aplicados, ressentiam-se de parâmetros materiais seguros – o que propiciava a crítica mais dura que sempre receberam –, motivo pelo qual eram sempre deixados ao arbítrio judicial e à verificação de um fator psicológico de aferição problemática: a dor moral. A Constituição Federal de 1988, ao admitir a indenização por danos extrapatrimonais, procurou resolver essa problemática, ao 137 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 9ª edição, São Paulo: Atlas, 2009, p. 41. LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 24. 139 LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 28/32. 138 57 definir, expressamente, que a sua constatação basear-se-ia numa violação a direitos personalíssimos. Diz Paulo Luiz Netto Lôbo que a inserção constitucional dos direitos da personalidade e dos danos morais consagrou a evolução pela qual ambos os institutos jurídicos têm passado. Os direitos da personalidade, por não apresentarem conteúdo econômico, encontram excelente campo de aplicação nos danos morais, que possuem a mesma natureza não patrimonial: “Ambos têm por objeto bens integrantes da interioridade da pessoa, que não dependem da relação com os essenciais à realização da pessoa, ou seja, aquilo que é inato à pessoa e deve ser tutelado pelo direito”.140 Como sustenta Sergio Cavalieri Filho, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos V e X, diz expressamente que o dano moral apenas se verifica quando houver lesão a um bem integrante da personalidade, não se relacionando, portanto, com a dor, vexame, sofrimento, embora esses elementos possam ser verificados numa situação em que o dano moral ocorre141. Matilde Zavala de González diferencia o dano patrimonial do dano moral da forma seguinte: o primeiro repercute sobre o que o sujeito tem, enquanto o segundo incide sobre o que a pessoa é, implicando um defeito existencial. Sob uma ótica ressarcitória, esses prejuízos existenciais significam descompensações que trazem um menoscabo injusto à vida das pessoas. Ou seja, o dano moral vai além da equivocada limitação que lhe é dada a sofrimento ou dor. A partir da prática lesiva, modifica-se para a vítima a maneira de estar “em sí y em el mundo, con motivo de una modificación disvaliosa de su integridad espiritual que empeora su existencia”. Esse dano existencial, dessa forma, não equivale a transtornar animicamente a pessoa, já que ele independe da dor, sofrimento ou qualquer alteração psíquica – embora, verificadas perturbações afetivas, possa ser intensificado o 140 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 119, 31 out. 2003. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/4445, consultado em 29/2/2012. 141 CAVALIERI FILHO, Sergio. Os Danos Morais no Judiciário Brasileiro e sua Evolução desde 1988. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 99/100. 58 prejuízo moral –, bastando verificar-se um dano ao viver cotidiano, à livre e serena existência 142. Para a mesma autora, não há que se falar em divisão ou classificação do dano moral (v.g. dano moral objetivo e subjetivo), na medida em que, em geral, o rebaixamento existencial afeta tanto o psiquismo como os vínculos relacionais da pessoa. Essa pluralidade de vertentes que acentua o negativo impacto existencial do indivíduo. Além disso, é também factível um dano moral sem uma especial perturbação anímica, como a utilização ilegítima de imagem pessoal, que encerra por não violentar a intimidade ou ofender a honra do lesado, cabendo, da mesma forma, a reparação. Por esse motivo, o dano moral deve ser enxergado de forma única, dimensionado subjetiva e objetivamente: a perspectiva subjetiva surge da necessidade de personalizar a nocividade causada pela lesão, ao passo que a ótica objetiva, sem qualquer contradição, impõe a verificação de “pautas generalizadas para el común de los seres humanos”143. A seu turno, Carlos Roberto Gonçalves atesta que o dano extrapatrimonial designa exclusivamente o agravo que não produz efeito patrimonial, ou melhor, se houver consequências de ordem patrimonial, ainda que mediante repercussão, o dano deixa de ser extrapatrimonial. Continua dizendo que é lesão de bem que integra os direitos da personalidade, e que acarreta dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação ao lesado. Na realidade, explica ele que o dano moral não é propriamente a dor, na medida em que o direito não repara qualquer padecimento, perfazendo esses estados de espírito a consequência da lesão144. Esse arcabouço diferenciado de entendimentos permite que se faça crítica ao posicionamento de parte da doutrina e da jurisprudência, em relação a essa necessidade de associação do dano moral a um sentimento. Certamente, aquelas lesões não aferíveis economicamente, e que causarem dano aos direitos de personalidade, são enquadradas 142 GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, pp. 1/2. 143 GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, p. 18. 144 AZEVEDO, Antônio Junqueira de (coord.). Comentários ao Código Civil: Parte especial do direito das obrigações. Volume 11, 2002, pp. 339/340. 59 como dano extrapatrimonial ressarcível, podendo ou não ser verificada uma dor ou humilhação. O segundo ponto de crítica, que se liga ao primeiro, refere-se à conceituação negativa empregada pela doutrina, ao tentar definir o dano moral 145. Numa tentativa de retirar do dano extrapatrimonial essa conceituação negativa, por pensar que ela apenas permite estabelecer a característica que esse tipo de dano não detém: conteúdo econômico ou patrimonial, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino procurou não apenas trazer um conceito positivo, mas cravar os direitos personalíssimos como a verdadeira bandeira desse tipo de lesão. Na opinião do autor, por meio da conceituação negativa, fica difícil estabelecer, no caso concreto, a ocorrência ou não de dano extrapatrimonial, a exemplo dos problemas ocorridos no transporte aéreo, como os transtornos ensejados pelos atrasos de voos. Dessa forma, um conceito positivo mostra-se fundamental para a definição do instituto: o dano extrapatrimonial é o prejuízo, sem conteúdo econômico, derivado de uma ofensa a direitos da personalidade, ou seja, é a violação de um ou vários direitos inerentes à personalidade de um sujeito de direito. Notadamente, a noção de direito de personalidade não pode ser aplicada de forma restritiva, mas deve ser ampliada para abranger o mais importante desses direitos, que é a tutela da vida humana146. Em síntese, pode-se definir o dano moral pelos seus próprios elementos; “como a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos”; como fez Yussef Said Cahali147. Assim, atualmente, o dano moral foge daquela noção de dor, aproximando-se, intrinsecamente, como quis a Constituição Federal, dos direitos de personalidade, na 145 Luis Díez-Picazo explica que conceituar negativamente o dano moral se trata de puro escapismo de problemas decorrentes da lógica ou da pura exegese do ordenamento jurídico, que resultam muito difíceis de serem resolvidos. In DÍEZ-PICAZO, Luis. Em Torno al Daño Moral. P. 248, In ANDRADE, Manuel da Costa et al (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Vol. IV, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 241/256. 146 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 262/263. 147 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 20. 60 medida em que eles oferecem um conjunto de situações definidas pelo sistema jurídico, inatas à pessoa, cujo dano faz surgir, de forma direta, a pretensão aos danos morais, “de modo objetivo e controlável, sem qualquer necessidade de recurso à existência da dor ou do prejuízo. A responsabilidade opera-se pelo simples fato da violação (damnu in re ipsa)”148. Dessa sorte, constatada a lesão a direito de personalidade, fato consequente é a necessidade de reparação do dano moral. Certamente, esses estados psicológicos de que padece a vítima de um dano extrapatrimonial constituem não o dano em si, mas suas consequências ou repercussão. É normal e até aceitável essa confusão do dano com o resultado por ele provocado. Dano moral e dor (física ou moral) acabam sendo vistos como um só fenômeno. No entanto, é certo que essa noção deva ser afastada, de forma que o dano – fato logicamente antecedente – não deve ser confundido com a impressão que ele causa na mente ou na alma da vítima – fato logicamente subsequente. É exatamente para esse ponto que André Gustavo Corrêa de Andrade chama atenção, explicando que “as dores, angústias, aflições, humilhações e padecimentos que atingem a vítima de um evento danoso não constituem mais do que a conseqüência ou repercussão do dano (seja ele moral ou material)”. Dessa forma, assim como nem todo mal-estar gera um dano moral, nem toda lesão extrapatrimonial é capaz de configurar um mal-estar. A falha da argumentação, para o autor, reside na necessidade de aproximação que se pretende fazer entre o dano moral e o dano patrimonial. Com efeito, a diversidade de natureza dos bens atingidos impossibilita a aproximação das duas espécies de dano. Essa associação do dano moral à dor, ao sofrimento ou a outros sentimentos negativos decorre da concepção usual de que o dano deva ser identificado com alguma alteração naturalística, provocada por algum comportamento ou acontecimento149. 148 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 119, 31 out. 2003. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/4445, consultado em 29/2/2012. 149 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A Evolução do Conceito de Dano Moral. In http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_civil/a_evolucao_do_conceito_de_dano _moral.pdf, consultado em 13/2/2012, pp. 5/6 e 13. 61 Seria válido, portanto, concluir que o dano moral não está associado ao sentimento, mas relacionado à violação de uma classe especial de direitos, fundamentais para o homem, denominados direitos personalíssimos150. De fato, a dor ou, mais amplamente, a afetação do bem-estar psicofísico não deve ser considerada pressuposto necessário para caracterização do dano moral, como refere Leonardo Roscoe Bessa: “Naturalmente, a perturbação do estado anímico da pessoa, bem como sua intensidade, são elementos que devem servir de ponderação na quantificação da indenização por dano moral”151. Nesse mesmo sentido, Eduardo Zannoni fundamenta que o dano moral não é representado pela dor ou outros padecimentos, que são variáveis em cada caso e sentidos de forma diferente por cada indivíduo, e que podem estar vinculados tanto a direitos patrimoniais como a direitos extrapatrimoniais. O dano extrapatrimonial ocorrerá quando houver lesão a uma faculdade de atuar que impede ou frustra a satisfação ou gozo de interesses não patrimoniais reconhecidos à vítima do evento danoso pelo ordenamento jurídico152. Certamente, a dor que experimentam os pais pela morte do filho, ou o padecimento ou complexo de quem suporta um dano estético são estados de espírito contingentes e variáveis em cada caso, pois cada pessoa sente a seu modo153. Assim, no dano moral, a lesão a um interesse tutelado repercute de forma inteiramente diferenciada sobre cada pessoa, não havendo um critério objetivo que permita a sua precisa aferição. Por esse motivo que não é crível fazer depender a configuração do dano moral a um momento consequencial (dor, sofrimento), tampouco defini-lo por via negativa, como todo prejuízo economicamente incalculável, eis que isso acaba por convertê-lo em figura receptora de todos os anseios, dotada de uma vastidão tecnicamente insustentável. O correto, portanto, é defini-lo como a lesão a um interesse tutelado, que 150 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 38. 151 BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, p. 96. 152 ZANNONI, Eduardo A. El Daño en la Responsabilidad Civil. 2ª edição, Buenos Aires: Astrea, 1993, p. 289/290. 153 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 548. 62 estimula a investigação sobre o objeto da lesão, com a finalidade de aferir-se o seu merecimento de tutela ou não, para que sejam selecionados os danos ressarcíveis154. Novamente recorrendo-se à lição de Maria Celina Bodin de Moraes, que traça com clareza esse debate atual acerca da noção de dano ressarcível: de um lado, há aqueles que identificam o dano com a antijuridicidade, ou seja, com a violação culposa de um direito ou de uma norma, e, de outro, aparecem os defensores da teoria do interesse, atualmente majoritária, que o vinculam à lesão de um interesse juridicamente protegido155. A primeira corrente acaba interpretando o sistema da responsabilidade civil como se fora típico, uma vez que somente da violação de normas que reconhecem direitos subjetivos absolutos admite-se o surgimento da sanção civil. Por outro lado, a outra teoria desvincula o conceito de dano da noção de antijuridicidade, adotando critérios mais amplos, que englobam não apenas direitos, mas também interesses que, considerados dignos de tutela jurídica, obrigam à reparação sempre que lesionados. E é aí que reside a tutela ressarcitória com base na clausula geral de responsabilidade. Deve-se, porém, segundo essa ótica, indicar os critérios para a identificação da qualidade do interesse, se e quando deve ser considerado digno de tutela jurídica, procedendo-se a essa ponderação de interesses à luz dos princípios constitucionais. Como demonstra a autora, aquela visão de dano moral subjetivo, associado à antijuridicidade, cedeu lugar à definição de dano moral como a lesão a um direito da personalidade, concebendo-o como a lesão a interesse juridicamente protegido. Isso porque “melhor do que se restringir a modelos típicos específicos de direitos subjetivos é recorrer a uma cláusula geral de tutela da personalidade”, conceituando-se, então, o dano moral como a lesão à dignidade da pessoa humana, ou melhor, como a “lesão a algum desses aspectos ou substratos que compõem, ou conformam, a dignidade humana, isto é, a 154 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 101/102. 155 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 240/247. 63 violação à liberdade, à igualdade, à solidariedade ou à integridade psicofísica de uma pessoa humana”. Apenas alerta a autora que, quando estes princípios entrarem em colisão entre si, será preciso ponderar, através do exame dos interesses em conflito, tais princípios em relação a seu fundamento, isto é, a própria dignidade humana156. Por corresponder à lesão a um interesse juridicamente protegido, analisado no caso concreto, mostra-se também sem rigor técnico admitir-se que o dano extrapatrimonial ocorra in re ipsa, para que seja procedida à reparação sem a necessidade de produção de prova, resultando essa observação na terceira crítica ora apontada. De fato, a prova da dor deve, sim, ser dispensada, não porque seja inerente à ofensa sofrida pela vítima, mas porque o dano moral independe da dor, consistindo, antes, na própria lesão, e não nas consequências negativas que tal lesão pode vir a gerar. Dessa forma, a pretendida dispensa da prova do dano moral abarca tão-somente as consequências da lesão sobre a sensibilidade da vítima, não já a lesão em si. Assim, quem tem sua imagem utilizada em um outdoor, por exemplo, tendo as suas virtudes ressaltadas, pode, na prática, alegrar-se com a exposição, mas o simples fato de não tê-la autorizado configura, por si só, uma lesão concreta a seu direito personalíssimo de imagem, tratandose, portanto, de dano indenizável. Nada disto quer significar que baste a alegação em tese da lesão. Exige-se a prova da concreta afetação do direito personalíssimo para que derive a obrigação de compensação. Ocorre que, em alguns danos, a prova é relativamente simples, porque vem dotada de materialidade 157. Atualmente, portanto, ainda que se admita um dano moral vinculado à ideia de um abalo psíquico, de uma dor, um sentimento, não há como, em contrapartida, deixar de 156 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 240/247. Importante ressaltar a irresignação da autora em relação à vinculação do dano moral à ideia de sentimento, impondo severa crítica a essa conceituação: “O fato é que a reparação dos danos morais não pode mais operar, como vem ocorrendo, no nível do senso comum. Sua importância no mundo atual exige que se busque alcançar um determinado grau de tecnicidade, do ponto de vista da ciência do direito, contribuindo-se para edificar uma categoria teórica que seja elaborada o suficiente para demarcar as numerosas especificidades do instituto. A ausência de rigor científico e objetividade na conceituação do dano moral têm gerado obstáculos ao adequado desenvolvimento da responsabilidade civil além de perpetrar, cotidianamente, graves injustiças e incertezas aos jurisdicionados” (p. 244). 157 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 193/194. 64 defini-lo como a lesão a um interesse tutelado, representado por um direito de personalidade, o que denota a contemporânea visão sob a qual é enxergado esse instituto, de forma objetiva e atenta à tutela dos interesses juridicamente protegidos pelo ordenamento. Deve, dessa forma, ser afastada a ideia de que todo dano extrapatrimonial decorra de um sentimento da vítima, e que dispense comprovação de ocorrência. Da mesma forma como qualquer prejuízo, deve o dano extrapatrimonial ser comprovado, mediante a demonstração da afetação de um direito da personalidade. 2.3 AS FUNÇÕES PUNITIVA E PREVENTIVA DO DANO EXTRAPATRIMONIAL: É POSSÍVEL QUE ELE EXERÇA ESSAS FUNÇÕES? Superada a questão a respeito da classificação do dano moral, mediante a sua correta conceituação, volta-se à discussão sobre a possibilidade de punição e prevenção que deve – ou deveria – ser alcançada com a indenização dessa lesão. Em razão da falta de instrumentos repressivos da conduta do agente, e ante a falência do sistema penal brasileiro, atualmente, doutrina e jurisprudência encontraram, no dano extrapatrimonial, um mecanismo de desestímulo e punição ao ofensor, retirando da indenização o seu viés único de compensação à violação a um direito de personalidade da vítima. Com a retomada da culpa na análise da conduta do agente, ampliou-se a aplicação do dano moral para dar guarida tanto a uma ideia de punição quanto de prevenção. Tanto doutrina quanto jurisprudência mostram-se vacilantes a respeito da adoção de uma carga punitiva ao dano moral, que, ao acrescer um plus à indenização, acabaria assegurando o cumprimento da função preventiva da Responsabilidade Civil. Como explica Maria Celina Bodin de Moraes, pela análise da jurisprudência do STJ, aderiu-se recentemente à tese do caráter punitivo, em sua faceta de desestímulo ao ofensor. Já há algum tempo, o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira tentava inserir a orientação a ser seguida pelo magistrado nos casos de reparação do dano moral, como se 65 observa do resultado do julgamento do Recurso Especial nº 85.205, de abril de 1997, que afirmava ter o juiz, na fixação dos danos morais, de se orientar pelos critérios recomendados “pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e bom-senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades do caso”. A partir de 1998, o entendimento dessa Corte Superior mudou, e as ementas dos acórdãos passaram a fazer referência à fixação proporcional ao “grau de culpa” e ao “porte econômico das partes” – critérios de punição em si mesmos –, além da indicação expressa à necessidade de “desestimular o ofensor a repetir o ato” – critério este eminentemente preventivo158. Obtempera Anderson Schreiber que a doutrina dos punitive damages norteamericanos tem sido discutida e utilizada no Brasil, vivendo-se, entretanto, uma situação claramente anômala, na medida em que eles não vêm admitidos como parcela adicional de indenização, mas aparecem embutidos na própria compensação do dano moral. A doutrina fundamenta um duplo caráter da reparação do dano moral: caráter compensatório, para assegurar o sofrimento da vítima; caráter punitivo, para que o causador do dano se veja castigado pela ofensa que praticou159. Nesse mesmo sentido, grande parte das cortes brasileiras não só tem chancelado o duplo caráter do dano moral, como tem aplicado, na sua quantificação, critérios deliberadamente punitivos, amparando-se, usualmente, em quatro requisitos: gravidade do dano; capacidade econômica da vítima; grau de culpa do ofensor; e capacidade econômica do ofensor. Esses dois últimos critérios denunciam uma função exclusivamente punitiva, já que não dizem respeito ao dano em si, mas à conduta e, mais gravemente, à pessoa do ofensor. Ao combinar critérios punitivos e critérios compensatórios, a prática brasileira distancia-se do modelo norte-americano, que distingue claramente compensatory damages e punitive damages. Com isso, cria-se, no Brasil, uma espécie bizarra de indenização, em que ao responsável não é dado conhecer em que medida está sendo apenado, e em que 158 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 225. 159 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 199. 66 medida está simplesmente compensando o dano, atenuando, exatamente, o efeito dissuasivo que consiste na principal vantagem do instituto160 Por essas e outras razões, a doutrina é dividida a respeito da possibilidade de aplicação de uma sanção punitiva, atrelada a um dano moral, ou mesmo de um acréscimo dissuasório na indenização. Mas já de há muito que o dano moral é também considerado como uma espécie de instrumento expiatório, carregado de caráter exemplar, sendo a soma em dinheiro paga pelo ofensor utilizada “para que ele sinta de alguma maneira o mal que praticou”161. Há algumas décadas, Carlos Alberto Bittar apontava para a conscientização da doutrina sobre a necessidade de fazer o agente sentir as consequências da resposta do ordenamento jurídico, para que o próprio sistema tivesse eficácia, como também de dotar a reparação cabível de expressão que servisse de exemplo para a sociedade, “tudo para a realização efetiva de sua função inibidora162”. Teresa Ancona Lopez também acenou para essa ideia “de pena ou expiação, em relação ao culpado, e a de satisfação, relativa à vítima”. Suscita a autora que a soma em dinheiro paga a título de satisfação deve ocupar um lugar intermediário entre a indenização e a pena, devendo-se avaliar o tamanho do dano, como também o grau de culpa do ofensor, sem se olvidar da aferição sobre a participação da vítima na concretização da lesão163. Por sua vez, Carlos Roberto Gonçalves constata que tem prevalecido o entendimento de que a reparação do dano moral apresenta duplo caráter: compensatório para a vítima e punitivo para o ofensor. Assim, ao mesmo tempo em que serve de consolo para a vítima, atua como fator de desestímulo ao infrator, como forma de sanção. No 160 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 199/201. 161 MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Ressarcimento de Danos. 3ª edição, Rio de Janeiro: Âmbito Cultural Edições Ltda., 1985, p. 129. 162 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 217. 163 LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 139/140. 67 entanto, garante que a função principal do dano moral é a recomposição dos bens lesados da vítima164. Ao estudar a validade da indenização por danos morais, José de Aguiar Dias apontava para a ligação entre reparação e pena, quando resolvida em dinheiro, porquanto empregada na satisfação do prejudicado, “proporcionando-lhe o solatium, apaziguamento, e conseguindo alteração do sentimento e da vontade”. Essa função, para ele, ofereceria satisfação “à consciência de justiça e à personalidade do lesado, e a indenização pode desempenhar um papel múltiplo, de pena, de satisfação e de equivalência”165. Para Matilde Zavala de González é possível existir uma função dissuasória da indenização por dano moral, em cumprimento à função punitiva do Direito de Danos. Afirma ela que não se deve aumentar o valor indenizatório, para que se impila o ofensor a não reiterar o ato, mas também que o montante não pode ser ínfimo, de forma a nem mesmo indenizar a vítima. No entanto, consigna que toda condenação por danos extrapatrimoniais, ainda que imediatamente sirva à compensação da vítima, deve, mediatamente, desestimular futuras atividades lesivas. Se o causador do dano sabe, antecipadamente, que não lhe recairão gravosas consequências, continuará agindo com indiferença, devendo ser dimensionada a indenização na exata medida do dano causado, sem um plus excessivo para a vítima166. Entende a mesma autora que, por vezes, são impostas pelos magistrados cargas indenizatórias tão elevadas que evidenciam esse plus, donde subjaz uma finalidade punitiva da indenização, o que seria inconstitucional, por distorcer a reparação de danos e impor uma carga ao responsável, que lesiona indevidamente seu direito de propriedade. Se a indenização possui o jaez de punição, deve ser explícita – não embutida no montante dos danos morais –, além de preencher os pressupostos usualmente requeridos (v.g. ilícito lucrativo)167. 164 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 566/568. 165 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume II, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 423. 166 GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, pp. 56/57. 167 GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, p. 328/329. 68 Já Caio Mário da Silva Pereira sustenta que na reparação por dano moral estão conjugados dois motivos, ou duas concausas: I) uma punição ao infrator pelo fato de haver ofendido um bem jurídico da vítima, posto que imaterial; e II) assegurar ao ofendido uma soma que não é o pretium doloris, “porém o meio de lhe oferecer a oportunidade de conseguir uma satisfação de qualquer espécie, seja de ordem intelectual ou moral, seja mesmo de cunho material o que pode ser obtido “no fato” de saber que esta soma em dinheiro pode amenizar a amargura da ofensa e de qualquer maneira o desejo de vingança”168. Para Mário Moacyr Porto, adepto do exercício de uma função punitiva nos danos morais, a indenização revela uma “reparação satisfatória doublé de pena privada”, perfazendo função de atenuar as consequências do sofrimento injusto e castigar o responsável de ter causado o sofrimento que abateu a vítima169170. Na doutrina de Antonio Jeová Santos é possível claramente encontrar aquela anomalia descrita por Anderson Schreiber, ao determinar que a indenização por danos morais, além do caráter ressarcitório, serve também como sanção exemplar. Assim, determina-se o montante, segundo o autor, tendo em vista a gravidade objetiva da lesão, assim como a repercussão que o dano teve na vida do prejudicado, apurando-se um valor que faça com que o ofensor se evada de novas indenizações, evitando outras infrações danosas171. Ou seja, pune-se o ofensor, sem levar-se em consideração a gravidade de sua conduta, já que a análise é objetiva e voltada à gravidade da lesão, não se dando a ele saber por que e em que grau está sendo apenado. Demonstra Paula Cristina Lippi Pereira de Barros que essa tendência de aplicação de uma punição associada ao dano moral é fomentada por duas razões: uma de ordem qualitativa, que consiste no fato de que cada pessoa sofre o dano de forma diversa, já que 168 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, de acordo com a Constituição de 1988. 3ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1992, pp. 315/316. 169 PORTO, Mário Moacyr. Temas de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 32. 170 Nesse mesmo sentido, Américo Luís Martins da Silva aponta uma dupla função da compensação do dano moral: de expiação e de satisfação. Essa função expiatória atribui à compensação um caráter de pena, cuja finalidade é acarretar perda ao patrimônio do culpado e, ainda mais, faz parte de um complexo pedagógico para o desenvolvimento das relações sociais, tal como no caso da aplicação de uma multa de trânsito. In SILVA, Américo Luís Martins da. O Dano Moral e a Sua Reparação Civil. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 62. 171 SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. São Paulo: Lejus, 1997, p. 58. 69 ele ocorre na esfera íntima e moral; e outra de ordem quantitativa, na medida em que o valor em pecúnia não poderá reparar a mácula moral, sendo impossível retornar ao status quo ante. Assim, observa-se uma valoração das indenizações a partir de critérios punitivos aplicados ao ofensor, com o objetivo de satisfazer o dano extrapatrimonial provocado no lesado. Cria-se, dessa forma, uma figura estranha aos punitive damages, assim como à própria estrutura da responsabilidade civil do sistema romano-gêrmanico, porquanto o ofensor é condenado ao pagamento de um valor pecuniário que para ele representa uma punição, ao mesmo tempo em que é esse mesmo numerário destinado ao lesado, para compensação da lesão que sofreu172. Notadamente, o legislador não é indiferente a essa realidade, que abarca cada vez mais adeptos a uma função punitiva do dano moral, muito embora não tenham sido ainda aprovados os Projetos de Lei que tentaram trazer o aspecto punitivo a esse tipo de indenização. A exemplo disso, cite-se o Projeto de Lei nº 6.960/2002, do Deputado Ricardo Fiuza, apresentado em junho de 2002, que sugeria a inclusão de um segundo parágrafo ao artigo 944 do Código Civil, referindo um caráter de compensação e desestímulo do dano moral173. Na mesma esteira foi o Projeto de Lei nº 2.496/2007, do Deputado Vital do Rêgo Filho, que pretendia a inserção de um parágrafo único ao artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, também com a formulação de um aspecto punitivo à indenização por dano moral174. Ocorre que ambos os referidos Projetos de Lei apresentavam caráter sobremaneira genérico, o que foi visto como um “cheque em branco” ao magistrado para o aumento da indenização, porquanto não previstos critérios para a concretização desse desestímulo ou punição. 172 BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP p. 109, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/10/2013. 173 “A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante”. 174 “Parágrafo único. A fixação do valor devido a título de efetiva reparação de danos morais atenderá, cumulativamente, à função punitiva e à função compensatória da indenização." 70 Tanto assim foi que o Deputado Júlio Delgado, relator designado pela Comissão de Defesa do Consumidor, em que pese tenha reconhecido os “aspectos irrecusavelmente relevantes para a defesa do consumidor e para as relações de consumo” do Projeto de Lei nº 2.496/2007, entendeu ser ele “vago no tocante à forma como tal proposta deve ser implementada na prática, perpetuando a dificuldade atual em mensurar-se a extensão dos danos morais”, apresentando, dessa forma, um substitutivo. Curioso notar que, dentre as proposições sugeridas, na fixação da indenização, o magistrado deveria levar em conta “a situação social, política, econômica e creditícia das pessoas envolvidas, as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral, a intensidade do sofrimento ou humilhação”, e, ainda, “o grau de dolo ou culpa, a existência de retratação espontânea, o esforço efetivo para minimizar a ofensa ou lesão e o perdão, tácito ou expresso”, sem deixar de se balizar pelo impedimento do enriquecimento sem causa. O fato é que, como ressalta Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, no Brasil, a primeira dificuldade encontrada na utilização da indenização punitiva é justamente essa ausência de texto legal autorizador dessa prática. Para o autor, sem texto legal expresso, a indenização punitiva acaba encontrando óbice na função indenitária do princípio da reparação integral175. No entanto, atualmente, longe de se aproximar da figura dos punitive damages, os Tribunais brasileiros têm aplicado indenizações por danos extrapatrimoniais com natureza punitiva. Isso ocorre, também, em função dos problemas práticos enfrentados atualmente pelo direito criminal, que passa por uma grave crise de identidade, em razão dos obstáculos encontrados para uma adequada execução das penas impostas pelos juízes. Certamente, as penas privativas de liberdade, aplicadas aos crimes mais graves, têm se mostrado sobremaneira rigorosas, tomando um caminho contrário ao escopo de sua função: a ressocialização do criminoso. Por outro lado, nos casos menos graves e pequenos delitos, as soluções oferecidas pelos juizados especiais criminais ocasionam, para a vítima, um sentimento de impunidade do ofensor, o que acaba levando o ofendido à procura de uma solução indenizatória, em 175 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 74 e 273. 71 virtude desse descontentamento com o resultado final da ação penal. Nessas ações, em grande parte das vezes, as vítimas não buscam apenas a compensação pelos prejuízos que sofreram, mas uma verdadeira punição econômica para o ofensor, que constitui uma verdadeira pena privada. Dessa forma, “o agravamento ou redução da indenização em conformidade com o dolo ou o grau de culpa do ofensor confere à indenização uma inequívoca natureza de pena privada”. De igual forma, a função preventiva da indenização, ligada umbilicalmente à sua função punitiva, surge, na jurisprudência, para fazer valer o aspecto didático-pedagógico dessas decisões, especialmente nas ações de indenização promovidas contra as grandes empresas, fazendo com que elas passem a adotar medidas preventivas, justamente para evitar a repetição do ilícito de mesma natureza176. Retomando o magistério de Maria Celina Bodin de Moraes, a distinção feita entre função punitiva e função preventiva – esta última utilitarista, na medida em que utilizada para prevenir danos futuros, e não para retribuir danos passados – acaba trazendo certa carga de injustiça nas sentenças. Isso porque é possível que uma conduta gravemente dolosa possa não constituir pré-requisito necessário e suficiente à imposição de penalidade, justamente por ser de difícil repetição. Por outro lado, uma conduta menos grave, mas de fácil imitação, mereceria, na finalidade preventiva, uma condenação maior, o que acaba não sendo bem apreciado pelas “sentenças exemplares”. A solução para a aplicação da pena privada seria normatizar as fattispecie merecedoras, indicando claramente os critérios que devem ser levados em conta, para que a autorização não se transmude em um “cheque em branco”177. A adoção, sem restrições, do caráter punitivo, ao arbítrio do juiz, coloca em risco o princípio da legalidade, que dispõe nullum crimen, nulla poena sine lege. Grande parte dos danos morais, aos quais é possível impor uma indenização punitiva, configura-se também como crime, motivo pelo qual acaba sendo desrespeitado o bis in eadem, já que o ofensor estaria sendo punido duplamente178. 176 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 74 e 273/275. 177 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 225/227. 178 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 260. 72 Não apenas a antes referida autora, mas também Gustavo Tepedino e Heloisa Helena Barbosa, contrários à atribuição de caráter punitivo à indenização por danos morais, elencam diversos motivos impeditivos à materialização dessa função: i) a adoção da função punitiva violaria o princípio da legalidade, segundo o qual nulla poena sine praevia lege, resultando, ainda, em menor número de garantias ao réu, em decorrência de aplicação da pena em âmbito de processo civil e não penal; ii) traria risco de grave bis in idem, pela cumulatividade da responsabilidade civil com a responsabilidade criminal; iii) a majoração da indenização, a título de punição, pode recair sobre outra pessoa, que não o agressor, a exemplo das hipóteses de responsabilidade por fato de terceiro; iv) pode o ofensor ter afastado o risco da pena por meio de um seguro; v) toda a sociedade pode vir a arcar com o custo da pena privada, v.g. em casos de responsabilidade do agente público; vi) poderia haver subversão do sistema de responsabilidade civil, desestimulando-se a invocação da responsabilidade objetiva179. Além disso, André Gustavo Corrêa de Andrade elenca outro problema, relacionado à desnecessidade de punição de todos os tipos de conduta. Desempenhando esse papel misto que doutrina e jurisprudência procuram lhe empregar, o dano moral sempre acabaria desempenhando as funções compensatória e punitiva, mesmo que o comportamento do ofensor não tenha sido reprovável ou particularmente grave. Esse problema é percebido na jurisprudência, em que, sempre que há possibilidade de majorar a indenização, em razão de conduta ultrajante, não é aumentado o seu valor pelo Superior Tribunal de Justiça. Pelo contrário, verifica-se uma reiterada limitação dos valores indenizatórios por esta Corte Superior que, embora acene com a possibilidade de incrementar o valor indenizatório, raramente encontra oportunidade de fazê-lo, enquanto, de modo oposto, com bastante frequência, exercita o poder de reduzir o quantum fixada pelas instâncias inferiores, por considera-los abusivos180. Por conseguinte, essa generalização da função punitiva da indenização por dano moral, ao contrário de cumprir a sua função primordial de exemplificar e prevenir, acaba anulando ou, no mínimo, enfraquecendo esse papel que deveria ser exercido pela 179 TEPEDINO, Gustavo et alli. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Volume II, Rio de Janeiro: Renovar, pp. 863/864. 180 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 73 Responsabilidade Civil, tornando-se um “simples jargão, vazio de conteúdo”181. De nada vale ao julgador, então, mencionar que a indenização por dano moral está cumprindo as finalidades compensatória e punitiva, se na fixação do montante não levou em consideração critérios punitivos, imprimindo um valor padronizado. Assim, defende Renata Chade Cattini Maluf, embora recusando reconhecer à responsabilidade civil uma função punitiva, que o direito brasileiro acaba, por via indireta, valendo-se de aberturas laterais para excepcionar o caráter punitivo puramente ressarcitório da reparação do ato ilícito, devendo o legislador instituir novas sanções civis, além daquelas já existentes, com o fim de punir algumas espécies de condutas que levam ao dano moral, levando-se também em conta a aceitação da responsabilidade punitiva pela doutrina e jurisprudência182. Por esse mesmo motivo que, atento a essa realidade, mas valendo-se, como visto, do tratamento teórico equivocado, o Superior Tribunal de Justiça tem definido o valor das indenizações por danos morais com a expressa consideração da necessidade de impor àquele que praticou o ilícito: (a) a retribuição proporcional à ofensa perpetrada; e (b) condenação que puna ou desestimule a reincidência tanto do próprio ofensor como de outros potenciais ofensores183. Certamente, além das reclamações anteriormente mencionadas por parte da doutrina, percebe-se que as decisões que acabam se valendo dessa função punitiva apresentam grave falha material, na medida em que, no mais das vezes, esse plus indenizatório não vem claro em sua redação, impossibilitando ao ofensor discutir a sua imoderação em outras instâncias. Também, atribuir à pena privada uma relação direta com uma medida expiatória acaba fazendo com que se retorne à época da barbárie, em que os problemas eram solucionados de acordo com o instrumento de vingança que a vítima pretendia utilizar. 181 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 182 MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pp.149/150. 183 Como exemplo, veja-se o Recurso Especial nº 283.319, que decidiu: “A indenização por dano moral objetiva compensar a dor moral sofrida pela vítima, punir o ofensor e desestimular este e a sociedade a cometerem atos dessa natureza” in www.stj.jus.br, Terceira Turma, Relator Min. Pádua Ribeiro, julgado em 8/5/2001, consultado em 3/10/2011. 74 Além do mais, ante a rejeição ou protelamento desses Projetos de Lei que procuraram atribuir ao dano moral uma função punitiva, é de se ver que não recebem eles aceitação do Poder Legislativo, razão pela qual não se permite a utilização dessa via para a inserção de uma pena privada no ordenamento jurídico brasileiro. Tampouco parece ser da natureza do dano moral, malgrado o entendimento doutrinário a favor, a imposição de indenização que não sirva apenas para compensar a vítima, já que a ideia primordial das indenizações relacionadas a essa lesão, tal qual como concebida, é repor aquilo que se perdeu, ou minorar ou compensar o prejuízo verificado. Como coloca Nelson Rosenvald, é bastante comum encontrar decisões nos tribunais superiores em que o quantum do dano moral é remetido a uma fórmula em que se levam em conta a extensão da lesão ao bem jurídico da personalidade, a condição econômica do ofensor e a punição que deve ser aplicada a ele, em razão da gravidade do seu agir. No entanto, considera que constitui grave erro do magistrado aferir a malícia do agente ou o seu desprezo pelas situações existenciais alheias ao momento da justificação e do cálculo do valor do dano moral, porque, ao se confundir a função desestimuladora e a compensatória, na mesma e única condenação, gera-se uma insatisfatória reparação dos danos, como também uma insuficiente ou imperceptível prevenção e punição de comportamentos lesivos184. Misturar compensação e punição numa única indenização acaba não se prestando para nenhuma das duas intenções: não há punição adequada, porque não se sabe qual o valor destinado ao efeito profilático, tampouco, por vezes, é analisada a conduta do agente (dolo ou culpa grave), assim como não há indenização razoável, porque, destinada unicamente ao particular, não repara a sociedade que também padeceu do mesmo dano. Nota-se da jurisprudência que os valores de condenações a danos morais, mesmo quando analisados os elementos que teoricamente levariam à punição do agente, atendem a um padrão que mal compensa a vítima pelo dano efetivamente sofrido. Com efeito, os valores destinados à indenização por dano moral parecem obedecer um limite, como antes 184 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 182/184. 75 dito, ainda que se afirme estar-se aplicando uma penalidade, revelando, a toda evidência, o despropósito de cumulação das funções compensatória e punitiva ao dano moral. Essa visão contrária à cumulação de funções fica ainda mais clara nas situações em que o dano causado, individualmente, não representa agressão ao direito da personalidade, embora atinja, claramente, um grupo de pessoas. Nesse caso, nem se poderia cogitar a aplicação de um dano moral para punição do ofensor e prevenção da repetição da conduta, por que não atingida a esfera existencial do autor da ação, ficando tal situação marginalizada de proteção àqueles efetivamente atingidos. Assim, a imposição de uma função punitiva apenas seria correta quando, diante da conduta particularmente ultrajante, mostrar-se necessário apresentar resposta à coletividade, e não à vítima isoladamente considerada, já que a pena visa afastar aquela conduta que se pretende expurgar da sociedade, que não representa um modelo a ser seguido. Certamente, a aplicação de indenização por dano moral, se se prestasse a, realmente, considerar a extensão da lesão, compensando a vítima de forma digna, tornaria desnecessária essa discussão sobre o aspecto punitivo e dissuasório, porque tanto o ofendido já se sentiria reparado, quanto a vítima arcaria com valor considerável, que serviria de desestímulo à reiteração do ato. O problema, portanto, na verificação das indenizações por danos morais, é o seu valor ínfimo. Pelos elementos demonstrados, o dano moral não pode se prestar, como ocorre atualmente, a exercer funções punitiva e preventiva. A deturpação do dano moral, para que se faça valer uma indenização punitiva, acaba tornando perigosa a estrutura sobre a qual se pretende erigir um novo mecanismo de proteção da sociedade, colocando-a em xeque. Certo é que a indenização por danos morais “deve ser suficiente para reparar o dano, o mais completamente possível, e nada mais. Qualquer quantia a maior importará enriquecimento sem causa, ensejador de novo dano”185. 185 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007, p. 90. 76 2.4 O DANO MORAL COLETIVO: UMA TENTATIVA DE INDENIZAÇÃO PUNITIVA Por certo, o Direito vem sofrendo profundas transformações, que, nas palavras de Carlos Alberto Bittar Filho, podem ser sintetizadas pela palavra “socialização”, conduzindo-o ao “primado claro e insofismável do coletivo sobre o individual”, cujos reflexos fazem-se sentir – como não poderia deixar de ser – na teoria do dano moral186. É o dano moral (referente à espécie do dano extrapatrimonial), aparentemente, a válvula de escape da Responsabilidade Civil, servindo, atualmente, como a panaceia para os problemas apresentados pela atual sociedade da tecnologia. Assim, diante dos problemas sociais, que fogem do âmbito individual, recaindo sobre a órbita coletiva – hoje se defendem os direitos dos grupos –, criou-se a figura do dano moral coletivo. Xisto Tiago de Medeiros Neto refere que o surgimento do dano moral coletivo apenas acompanhou a própria evolução das espécies de danos e bens juridicamente tutelados, que antes atingiam e reconheciam apenas pessoas físicas e jurídicas, passando a abarcar grupos, categorias, classes de pessoas ou mesmo toda a coletividade, aos quais o ordenamento jurídico conferiu titularidade de direitos e a prerrogativa jurídica de obter a sua proteção judicial. Foi, então, a partir de novos interesses transindividuais, com a visualização de inéditos e graves conflitos sociais, que se reconheceram novas configurações de danos injustos, que demandaram imediata reação e resposta eficaz do sistema jurídico187. Parece claro que, se o indivíduo pode ser vítima de um dano moral, não há por que não possa sê-lo a coletividade. Nas palavras de María Fabiana Compiani, dano coletivo, 186 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/ edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013. 187 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, p. 146/151. 77 em sentido amplo, é aquele que afeta várias pessoas, simultânea ou sucessivamente. Ou seja, há uma pluralidade de vítimas de uma mesma lesão, podendo cada um ter sofrido prejuízo a um interesse subjetivo diferente. Ou, em sentido estrito, denomina-se dano coletivo aquele experimentado por um conjunto de pessoas que possuem um interesse grupal ou social. Nesse caso, o prejuízo coletivo é único, ainda que seja ele estendido indivisivelmente a uma pluralidade de indivíduos insertos que detenham um interesse comum. Esse dano é verificado mesmo quando não haja qualquer prejuízo individual 188. Mas, para falar sobre dano moral coletivo, deve-se ter em mente o sentido de coletividade, que se define pelo “grupo mais ou menos extenso de indivíduos que possuem interesses comuns”189. Verifica-se, assim, que da composição do tecido da coletividade emergem os valores, que resultam, em última instância, da amplificação dos valores dos indivíduos da coletividade. Assim como cada indivíduo carrega sua carga de valores, também a comunidade, justamente por ser um conjunto de indivíduos, tem uma dimensão ética. E esses valores coletivos dizem respeito à comunidade como um todo, independentemente de suas partes, apresentando um caráter nitidamente indivisível, não podendo, por isso mesmo, ser decompostos num feixe de interesses individuais. Esses valores enquadram-se numa categoria maior, no “fenômeno cultural”190. A categoria do dano moral coletivo foi criada, portanto, para proteção dos direitos emergentes referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da comunidade, aos quais Paulo Bonavides define como direitos de terceira geração191. Verifica-se, desse modo, que a proteção dos valores morais não está mais restrita aos valores morais individuais da pessoa física, reconhecendo-se valores morais próprios a 188 COMPIANI, María Fabiana. Responsabilidad por daños colectivos. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, SP, ano 9, n. 36, p. 185-198, out.-dez. 2000, p. 191. 189 Houaiss Eletrônico, versão monousuário 1.0, junho de 2009. 190 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/ edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013. 191 BONAVIDES, Paulo. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6. 78 outros entes que, caso lesados, também merecerão a devida compensação 192. Trata-se, desse modo, da proteção a interesses transindividuais, que podem ser coletivos ou difusos, segundo a sua titularidade esteja circunscrita a um grupo ou a uma generalidade indeterminada de sujeitos193194. Dessa sorte, para tratar de uma ação coletiva ou mesmo de um dano coletivo (patrimonial ou moral), é preciso que se tenha em mente um bem coletivo. Não é suficiente, para a caracterização de bem coletivo, que o bem não pertença a uma única pessoa, mas a muitas pessoas; nem que pertença a muitas pessoas e seja indivisível. Com efeito, o bem coletivo se caracteriza pela indivisibilidade dos benefícios, ou seja, de que não haja apropriação privada; que seja de uso comum (propriedade difusa); e que detenha status normativo, que seja reconhecido em Lei, tenha reconhecimento deontológico, no sentido de que sua proteção deve estar ordenada, trazendo, como exemplos, o meio ambiente, o patrimônio cultural, direitos de proteção ao consumidor, transparência na informação, a liberdade etc.195. Leonardo Roscoe Bessa explica que o surgimento de movimentos sociais, nas últimas décadas, gerou o reconhecimento de um direito social, e mostrou que a configuração processual clássica, individualizada, era absolutamente incapaz de absorver e dar resposta satisfatória aos novos litígios, que ficavam marginalizados e acabavam gerando mais conflituosidade. Esse direito social, que não podia mais ser encarado como mera expressão de garantias dos indivíduos, mas como garantia de grupos, necessitava de 192 RAMOS, André de Carvalho. A ação civil pública e o dano moral coletivo. In http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/6772-6771-1-PB.htm, consultado em 2/10/2013, p. 2. 193 COMPIANI, María Fabiana. Responsabilidad por daños colectivos. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, SP, ano 9, n. 36, p. 185-198, out.-dez. 2000, p. 192 194 Segundo Fernando Noronha, foi o Código de Defesa do Consumidor que deu uma disciplina jurídica aos direitos transindividuais, dividindo-os em coletivos e difusos. A diferença entre ambos se dá na indeterminação dos titulares, que é característica dos direitos difusos, enquanto nos direitos coletivos é possível determina-los, ainda que não no momento da propositura da ação. Dessa forma,os interesses difusos são de todos em geral, e de ninguém em particular, ao passo que os coletivos são das pessoas pertencentes a um grupo ou a uma categoria. Assim, os interesses coletivos poderiam ser representados pelo exemplo dos membros de uma associação de classe ou dos contribuintes de um mesmo tributo, enquanto os difusos poderiam ser enquadrados, por exemplo, nas vítimas de publicidade enganosa ou abusiva, ou da colocação no mercado de produtos com alto grau de nocividade. NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, pp. 573/574. 195 LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D, 1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, pp. 13/14. 79 novas ferramentas de proteção, que foram asseguradas tanto pela Constituição Federal quanto por leis ordinárias196197. Esse grupo social nada mais é do que o homem em sua dimensão social, “não se distinguindo a sua natureza (coletiva) da de seus integrantes. Assim, a positivação da coletividade, como titular de interesses jurídicos, seria a expressão de ser das pessoas no plano social, como partícipes de um vasto elenco de interesses comuns, que, compartilhados por todos, “são-lhes essenciais à vida, integrando, assim, a esfera da dignidade de cada um dos respectivos membros da coletividade, de maneira a ensejar a sua plena proteção jurídica“. Verifica-se, assim, que não apenas o indivíduo é dotado de determinado padrão ético, mas também o são as coletividades, que titularizam direitos. Mesmo não detendo personalidade, ao menos nos moldes clássicos concebidos pela teoria do Direito, as coletividades possuem valores e um patrimônio ideal, que gozam de proteção jurídica198. Desse modo, vê-se que o dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando diante de um dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade, idealmente considerado, é injustamente agredido; “quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial”199. Diante da afronta a valores comuns ou bens da coletividade, podem ser vislumbradas consequências imateriais que são coletivas, ou difusas, “assim indeterminadas, todavia nem por isso um dano a ninguém. Muito ao contrário, erige-se potencialidade lesiva extrapatrimonial a todo um grupo”200. 196 BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, pp. 82/83 197 Citem-se, apenas como exemplo, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública. 198 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, pp. 154/157. 199 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/ edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013. 200 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Alguns apontamentos sobre o dano moral, sua configuração e o arbitramento da indenização. P. 379. In CASSETTARI, Christiano. 10 anos de vigência do Código Civil Brasileiro de 2002. Saraiva: São Paulo, 2013, pp.373/388. 80 Mediante o reconhecimento de direitos coletivos, passou-se a categorizar o dano de acordo com os interesses jurídicos verificados, da seguinte forma: i) de interesse individual, que ocorre no âmbito individual do lesado, decorrendo daí a sua legitimação para a propositura da ação; ii) interesses pluri-individuais homogêneos, no qual o interesse continua sendo individual, assim como a legitimação para a propositura da ação, mas há uma homogeneidade de interesses, suscetíveis de uma decisão única; iii) interesse transindividual coletivo, no qual o titular do direito é o grupo, que resulta legitimado para pleiteá-lo judicialmente, certo de que os seus efeitos obrigam o próprio grupo; iv) interesses transindividuais difusos, que importam a sociedade em seu conjunto ou uma generalidade indeterminada de sujeitos, que detêm um interesse geral, indivisível, com a designação de um representante legitimado: o Estado201. Mas, tal qual ocorreu com o dano moral individual, o dano moral coletivo não apresentou aceitação inicial, especialmente pela jurisprudência pátria, que, ainda vinculada à ideia de dor e sofrimento, não conseguia vislumbrar a compatibilidade entre um dano extrapatrimonial e direitos transindividuais. O reconhecimento de uma ofensa moral, portanto, estaria restrita a uma pessoa, e não a um grupo ou a sociedade, como ficou claro no julgamento do Recurso Especial nº 598.281, do Superior Tribunal de Justiça: “É perfeitamente viável a tutela do bem jurídico salvaguardado pela Constituição (meio ambiente ecologicamente equilibrado), tal como a realizada nesta ação civil pública, mediante a determinação de providências que assegurem a restauração do ecossistema degradado, sem qualquer referência a um dano moral”202. No entanto, como se verá ao longo deste trabalho, o entendimento dos Tribunais brasileiros, paulatinamente, começou a se adequar à ideia de um dano moral coletivo – que 201 LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D, 1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, p. 6. 202 In www.stj.jus.br, 1ª Turma, relator Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 2/5/2006, consultado em 10/3/2011. É importante mencionar que o resultado não foi unânime. O Ministro Luiz Fux apresentou voto divergente, sob o argumento de que “o meio ambiente ostenta na modernidade valor inestimável para a humanidade, tendo por isso alcançado a eminência de garantia constitucional”, frisando ainda que “a Constituição Federal e a Lei 7.347/95 estabelecem a possibilidade de reparação civil por danos morais causados ao meio ambiente, além do dever de indenizar os danos patrimoniais”. 81 já estava previsto em Lei e na própria Constituição Federal –, muito mais como uma forma de repreender o ofensor, do que propriamente compensar a vítima da lesão. Essa evolução lógica e racional da jurisprudência nada mais é do que o reflexo dos anseios da sociedade por novas ferramentas de proteção. Ricardo Luis Lorenzetti argumenta que, em que pese o direito privado tenha se ocupado, tradicionalmente, com as condutas individuais em relação intersubjetiva, ainda que sub-repticiamente o comportamento coletivo esteve sempre presente. Notadamente, é a conduta social que traz sentido aos comportamentos individuais e, via de consequência, dá conteúdo às abstrações normativas. Ou seja, os modelos de bonus pater familia, homem de negócios, médico prudente, nada mais são do que módulos abstratos que se integram ao serem examinadas as condutas dos grupos. Não se toma por base, na confecção da Lei, o que faz um único homem, senão um conjunto de pessoas203. Com efeito, a maior resistência apresentada pelos Tribunais, inicialmente, para afastar a existência de um dano moral, especialmente de natureza difusa, relacionava-se ao mesmo problema encontrado inicialmente na verificação do dano moral individual: a impossibilidade de aferição de um sofrimento, de uma dor, ou seja, um sentimento da coletividade204205. Entretanto, acentua Xisto Tiago de Medeiros Neto que, diferentemente do dano moral, o dano moral coletivo prescinde da demonstração de efeitos negativos, como a repulsa, o abalo psíquico etc. – embora possam esses efeitos ser apreendidos em dimensão 203 LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D, 1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, pp. 9/10. 204 "PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLETIVO. NECESSÁRIA VINCULAÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO DE DOR, DE SOFRIMENTO PSÍQUICO, DE CARÁTER INDIVIDUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE TRANSINDIVIDUALIDADE (INDETERMINABILIDADE DO SUJEITO PASSIVO E INDIVISIBILIDADE DA OFENSA E DA REPARAÇÃO). RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO”. In www.stj.jus.br, REsp 598.281/MG, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, Relator p/ Acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 2/5/2006, consultado em 4/12/2012. 205 Esse entendimento foi posteriormente modificado pelo Superior Tribunal de Justiça, que passou a entender que “O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base. 2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos”. In www.stj.jus.br, REsp 1057274 / RS, Segunda Turma, Relatora Ministra Eliana Calmon, julgado em 1/12/2009, consultado em 4/12/2012. 82 subjetiva –, tendo em vista que constituem mera consequência do dano produzido pela conduta do agente, não se apresentando como pressuposto para a sua configuração. Considerado tal dano pela ofensa a padrões éticos dos indivíduos, considerados em sua dimensão coletiva, desvincula-se da dor física e psíquica206. Assim, a dor psíquica, que alicerçou a teoria do dano moral individual, acaba cedendo lugar à verificação de um sentimento de desapreço e de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade, quando da análise do dano moral coletivo. E essa intranquilidade e sentimento de desapreço gerados pelos danos coletivos, por serem indivisíveis, acarretam lesão extrapatrimonial de reparação coletiva207. Demais disso, ainda segundo o entendimento de Xisto Tiago de Medeiros Neto, a análise do dano moral coletivo prescinde da verificação da intenção do ofensor – ainda que seja possível enxergar o elemento culposo –, na medida em que decorre do próprio fato violador do direito, bastando a demonstração do fato antijurídico e do nexo causal direto com o dano coletivo emergente para a sua constatação, carecendo, também, da apresentação de qualquer prova, por ser observado in re ipsa, emergindo objetiva e diretamente do evento causador do dano208. Em que pese inclinar-se a doutrina pela defesa da desnecessidade da intenção do ofensor ou ainda o caráter de compensação da coletividade, acaba-se sempre mostrando o verdadeiro intuito para o qual se destina a indenização por um dano moral coletivo: uma punição. Afirma Leonardo Roscoe Bessa que o objetivo de se prever a condenação por um dano moral coletivo só encontra justificativa pela “relevância social e interesse público inexoravelmente associados à proteção e tutela dos direitos metaindividuais”, mediante a imposição de novas e graves sanções jurídicas para determinadas condutas que se busca atender ao princípio da prevenção e precaução, de modo a conferir real e efetiva tutela ao 206 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, pp. 159/160. RAMOS, André de Carvalho. A ação civil pública e o dano moral coletivo. In http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/6772-6771-1-PB.htm, consultado em 2/10/2013, p. 3. 208 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, pp. 178 e 181. 207 83 patrimônio coletivo, aproximando-se, assim, do direito penal, cuja finalidade é a prevenção209. No mesmo sentido, Xisto Tiago de Medeiros Neto aduz que o que se almeja com a caracterização de um dano moral coletivo é a imposição de uma sanção pela prática ilícita, com pretensão dissuasória, por ser inconcebível visar à recomposição ou compensação dos interesses transindividuais. Apenas de forma subsidiária seria possível conceber uma finalidade compensatória indireta, por que voltada a indenização à restituição dos bens lesados210211. Dessa forma que André Gustavo Corrêa de Andrade traça uma ligação intrinsecamente necessária entre o dano moral coletivo e a ideia de punitividade da indenização, ao ressaltar ser possível a concepção de uma compensação ou satisfação em âmbito coletivo, mas que a falta de uma vítima concreta, individualizada, realça essa ideia de punição212. Segundo Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, a única exceção admitida no sistema jurídico brasileiro à teoria da indenização punitiva aparece nas hipóteses de danos extrapatrimoniais coletivos, ou seja, quando a ofensa atinja os interesses coletivos ou difusos de um grande universo de pessoas. “Mesmo nesse caso, porém, a indenização não se confunde com os punitive damages, pois não se destina à parte lesada, mas a um fundo público, cujos recursos serão destinados à reconstituição dos bens lesados (consumidor, meio ambiente, patrimônio histórico)”213. Ou seja, partindo de elementos trazidos doutrinária e jurisprudencialmente para a caracterização do dano moral individual, pretende-se a aplicação de um dano moral 209 BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, p. 89. 210 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, pp. 202/203 211 Essa, também, a visão de Leonardo Roscoe Bessa, para quem a punição representaria papel preventivo na proteção aos direitos metaindividuais. BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, pp. 98/99. 212 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 164/165. 213 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 75. 84 coletivo, que faça a função de punir ou dissuadir, mas sem levar em conta a intenção do ofensor ou mesmo qualquer tipo de prova da ocorrência da lesão. Mais grave do que atribuir uma função punitiva ao dano moral individual é imporse uma indenização por dano moral coletivo, cujo único intuito revelado pela doutrina é a punição, com base em elementos utilizados para o reconhecimento de uma lesão em um dissídio de natureza totalmente diversa. Verifica-se, assim, uma espécie completamente bizarra de reparação, cujo intuito é a punição do agente, sem a necessidade de aferição de sua conduta ou de produção de qualquer prova. Bastaria, então, a ocorrência de qualquer dano ao patrimônio coletivo, por mais tênue que fosse, para que surgisse uma indenização que, repita-se, não visa, segundo o que foi trazido, compensar, mas somente punir. Logicamente, caso assim fosse, o ordenamento jurídico tornar-se-ia caótico, desestimulando qualquer tipo de atividade voltada à produção ou ao consumo. Por óbvio que, da mesma forma como ocorre com a verificação de um dano moral individual, deve também haver prova suficiente para a constatação de um dano moral coletivo. O que ocorre é que alguns tipos de dano já trazem a materialidade que leva à responsabilização. Mas isso não significa que a prova dessa infração não esteja lá. Demais disso, para a aplicação de uma sanção punitiva, mostra-se necessária a análise da conduta do agente, mesmo que não propriamente a verificação de uma culpa, mas de uma simples constatação sobre a pouca importância que foi dada em relação à possibilidade de evitar o dano ou de impedir que ele ocorresse, para que se possa taxa-la de socialmente reprovável. Orienta, nesse sentido, Daniel de Andrade Levy, que o dano moral coletivo aparece para a Responsabilidade Civil como uma “forma subliminar de instrumentalização da função punitiva”, uma vez que o seu caráter nebuloso tem levado doutrina e jurisprudência a encontrar critérios de compensação pautados mais na conduta do agente do que no prejuízo sofrido pelas vítimas. Isso porque a indenização não consegue compensar o dano sofrido pela coletividade ou por seus membros, não sendo mais essa reparação, por 85 conseguinte, considerada do lado da vítima, que a recebe, mas do lado do agente, que a paga214. Traçando o real cenário que circunscreve o dano moral coletivo, Nelson Rosenvald aponta que essa lesão, única espécie de dano moral em que implicitamente o legislador admite um caráter punitivo à atividade do causador do dano, não passa de “peculiar espécie de pena civil criativamente desenhada no ordenamento brasileiro, em nada se assemelhando com a natureza do dano extrapatrimonial”. O dano moral coletivo, verificado em situações que desbordem dos limites da tolerabilidade, produzindo verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem patrimonial coletiva, prescindindo da prova do dor, sentimento ou abalo psicológico, busca, em realidade, um valor pelo desestímulo ao ofensor e potenciais lesantes, mesmo que esta sanção também sirva como uma espécie de satisfação coletiva, apresentando essa figura, então, o mesmo desvio de perspectiva que remete a doutrina e os tribunais a considerar que o dano moral individual possui dupla função: compensatória e profilática215. Pela análise da jurisprudência, é fácil perceber esse direcionamento à punição, quando do reconhecimento de um dano moral coletivo. Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujo objeto de discussão era a comercialização de combustível adulterado, restou assentado que “Os danos morais difusos representam punição para o apelante, inescrupuloso por vender combustível adulterado para a população, com isto criando desconforto, transtornos e raiva”, e, na fixação do quantum, apontou-se que “Montante que deve se revestir do caráter compensatório, sem prejuízo da índole pedagógica, razão porque não pode alcançar cifras irrisórias ou escorchantes”216. Em outro exemplo, de lavra do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, debatiase a penalidade que seria aplicada aos autores de morte de animal “com requintes de inaudita crueldade”. Além da reprimenda penal, definiu-se pela existência de um dano moral coletivo, por motivo da agressão a “valores que dizem respeito a um mínimo de 214 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 88/89. 215 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 200/2002. 216 In www.tjsp.jus.br, Apelação nº 0024660-54.2007.8.26.0506, 32ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Luis Fernando Nishi, Julgado em 25/4/2013, consultado em 10/10/2013. 86 padrão civilizatório, onde se inclui o respeito à vida, inclusive quanto a animais próximos às criaturas humanas. não se podendo aceitar infligir-se a eles tratamento cruel”, que culminaram na “perda da paz” daquela coletividade. Assim, aplicou-se indenização com evidente carga punitiva ao autor do ilícito, levando-se em conta mais a agressividade da conduta praticada, que fulminou essa paz social, do que o dano realmente causado217. Do Tribunal Regional Federal da 3ª Região não se pode deixar de mencionar o debate travado quanto à utilização indevida de informação privilegiada (insider trading). Apontou-se ser o caso de utilização da teoria do dano moral coletivo pelo seu aspecto preventivo e punitivo. Ressaltou-se que “o dano moral coletivo reveste-se também de caráter punitivo pela qual sempre esteve presente também nas relações privadas individuais, v.g., astreintes e cláusula penal compensatória”. Na fixação do valor da indenização, um dos parâmetros utilizados foi estabelecer um “montante que desestimule o infrator para a prática de conduta delitiva”218. Dessa forma, verifica-se que, aplicado aos mais variados tipos de conflitos, o verdadeiro intuito do dano moral coletivo é a imposição de uma sanção punitiva, demonstrando, entretanto, que a utilização dessa figura não consegue desempenhar nem propriamente a função de punição, nem de dissuasão, já que a referência à reprovabilidade da conduta é, normalmente, implícita, além de ser baixo o valor da indenização, e tampouco se verifica compensação do dano à coletividade, tendo em vista a sua destinação que não é aproveitada ou mesmo ao valor, que é insuficiente na compensação da lesão. 217 In www.tjrs.jus.br, Apelação nº 70037156205, 21ª Câmara Cível, Relator Desembargador Arminio José Abreu Lima Da Rosa, Julgado em 11/8/2010, consultado em 10/10/2013. 218 Interessante, ainda, expor alguns critérios utilizados pelo julgador para a aplicação de indenização por dano moral coletivo: “em razão da gravidade do ato ilícito cometido pelos acusados, que colocou em risco o correto funcionamento do mercado de valores mobiliários, a astúcia de um dos réus, ao se utilizar de uma empresa offshore com o propósito de ocultar das autoridades brasileiras a negociação de valores mobiliários, e o grande lucro potencialmente auferido, fixo o valor mínimo a título de reparação de danos morais coletivos, em consonância com as disposições contidas no artigo 11, §1º, inciso III, da Lei nº 6.385/76, em R$ 254.335,66 (duzentos e cinquenta e quatro mil, trezentos e trinta e cinco reais e sessenta e seis centavos) para o acusado Luiz Murat, e de R$ 305.036,36 (trezentos e cinco mil, trinta e seis reais e trinta e seis centavos) para o acusado Romano Ancelmo, em virtude da vantagem econômica obtida, conforme foi apurada na decisão de primeiro grau”. In http://www.trf3.jus.br/, Apelação Criminal nº 0005123-26.2009.4.03.6181/SP, Quinta Turma, Relator Desembargador Federal Luiz Stefanini, Julgado em 4/2/2013, consultado em 10/10/2013. 87 CAPÍTULO III A EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA NA PUNIÇÃO E NA PREVENÇÃO DA PRÁTICA DO ILÍCITO Parece que, atualmente, os ordenamentos jurídicos de diversos países clamam pela regulamentação dessas novas configurações relacionais, transindividuais, especialmente quando causadoras – ou potencialmente causadoras – de danos à sociedade. No entanto, antes de, simplesmente, hastear-se uma bandeira pela reivindicação de uma nova modalidade de dano no ordenamento jurídico brasileiro, parece prudente a análise da experiência estrangeira, sobretudo de países que procuraram justamente regular essas situações, para a proteção da coletividade. 3.1 OS PUNITIVE DAMAGES A figura dos punitive damages, bastante conhecida da tradição anglo-saxã, e também conhecida como exemplar damages, vindictive damages ou smart money, relaciona-se, de forma geral, a uma ideia de indenização punitiva consistente “na soma em dinheiro conferida ao autor de uma ação indenizatória em valor expressivamente superior ao necessário à compensação do dano, tendo em vista a dupla finalidade de punição (punishment) e prevenção pela exemplaridade da punição (deterrence) opondo-se – nesse aspecto funcional – aos compensatory damages, que consistem no montante da indenização compatível ou equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de ressarcir o prejuízo”, como explicam Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler219. Ou seja, a indenização punitiva apresenta tanto a função de punir o autor de um dano, quanto de dissuadir a prática de certo comportamento social: uma função de exemplaridade. 219 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 16 88 Assim, o que antes era afeito apenas ao juízo penal (esse papel de punir), agora vem chamando atenção de doutrina e jurisprudência de diversos países, mediante a superação dessa cisão entre direito penal e direito civil, com a introdução, na responsabilidade civil, da ideia de uma pena privada, voltada ao castigo do ofensor e à dissuasão de novas tentativas similares. Para Maria Celina Bodin de Moraes, o instituto dos punitive damages constitui uma figura anômala, intermediária entre o direito civil e o direito penal, pois apresenta o objetivo principal de punir o agente causador de um dano, por meio de uma pena pecuniária revertida à vítima220. Verifica-se, então, que a responsabilidade civil, antes voltada a reparar os danos injustamente sofridos, em razão das sociedades hiperindustrializadas ou mesmo das escolhas jurídico-axiológicas dessas mesmas comunidades, não estaria imune à criação de um instituto capaz de coibir ou desestimular certos danos particularmente graves, de dimensão transindividual. É por esse motivo que os punitive damages têm chamado a atenção dos estudiosos, que passaram a entender como insuficiente o linear princípio da reparação. É bem sabido que muitas empresas, cujos produtos são danosos em escala massiva, continuam a produzi-los, amparadas por um raciocínio de custo/benefício entre o lucro obtido com as vendas e o custo das indenizações eventualmente pagas aos indivíduos que ingressam em juízo, vítimas dos danos causados por esses produtos 221, mostrando-se extremamente relevante o reconhecimento de uma figura que consiga afastar e corrigir esse tipo de conduta. Historicamente, a responsabilidade civil, em sua origem, não apresentava a configuração como se conhece hoje, como visto no primeiro capítulo deste trabalho. Basta relembrar que a própria indenização não foi a primeira função apresentada pela responsabilidade civil. Com efeito, nas sociedades primitivas, o dano aparecia principalmente como um rompimento da ordem social e mesmo natural, dependendo, assim, de uma recomposição, 220 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 258. 221 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 16 89 que ocorria normalmente por um ato de sacrifício. Essa “reparação”, portanto, era próxima à noção de vingança, possibilitando a perseguição do agente causador do dano deixada à iniciativa da vítima ou do grupo ao qual ela pertencia222. Tem-se, dessa forma, que o dano injusto e a vingança privada nunca foram figuras muito distantes. Como refere o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ao explicar a origem da punição, o próprio conceito moral de “culpa” teve início em outro conceito, bastante material, de dívida. Com efeito, o devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para reforçar na consciência a restituição como dever e obrigação, oferece ao credor, para o caso de inadimplência, algo que possua, sobre o qual ainda tenha poder, como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo a sua vida, ou ainda, em certas circunstâncias religiosas, a salvação de sua alma e a paz no túmulo (no Egito, o cadáver do devedor não encontrava sossego, diante do devedor, nem em seu túmulo). Sobretudo, o credor podia infligir ao devedor toda sorte de humilhações e torturas, como, por exemplo, cortar membros e partes do corpo tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da dívida. A equivalência do prejuízo, nesse caso, estava em substituir uma vantagem diretamente relacionada a um dano patrimonial por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa. Compensava-se o dano com a dor223. E é nesta esfera, das obrigações legais, que está, para o mesmo autor, o foco de origem dos conceitos morais de culpa, consciência, dever, surgidos por um processo largamente banhado de sangue. Percebe-se, então, que é nesse sentimento de pena, de castigo, que surge o primeiro conceito de compensação do credor, baseado em sua vingança pessoal224, que leva à justiça da situação, sendo esta, portanto, a função primitiva da responsabilidade civil. 222 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 5. 223 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 22. 224 Para Friedrich Nietzsche, o conceito de vingança obscurece e cobre a verdadeira visão acerca da punição imposta pelo credor ao devedor. Para o autor, não se tratava de uma vingança pessoal, que, na realidade, não trazia compensação para o credor (“em que medida pode o sofrimento ser compensação para a ‘dívida’?”). O gratificante era o fazer-sofrer, na medida em que o prejudicado trocava o dano e o desprazer pelo dano por um contraprazer: causar o sofrer. Essa, portanto, a efetiva recompensa do credor: o prazer em causar a dor do devedor. Afirma o autor que a crueldade constituía o “grande prazer festivo da humanidade antiga”, sendo ingrediente de quase todas as suas alegrias. A exemplo disso, o autor cita as execuções e suplícios, que estavam sempre presentes em casamentos de príncipes e grandes festas públicas, em passado não tão distante. 90 Nessa esteira, o ilícito e a sanção sempre estiveram ligados, sendo quase impossível dissociar essas duas figuras. Para o homem existe um desejo de vingança, que remonta talvez não à vindicatio romana, mas a uma formação natural animalesca do próprio ser humano, em sua luta pela sobrevivência, “apoiada no desvalor de seu próximo”225. Os antigos acreditavam que a vida de cada um era tecida de um complexo de bens e de males, cuja distribuição fatal constituía o perfeito equilíbrio social. O ato ilícito era, pois, verificado no rompimento desse equilíbrio e as reações que provocava tendiam ao seu restabelecimento, por meio da imposição de um mal simétrico ao que havia causado a outrem. Esperava-se, mais, que os deuses operassem o restabelecimento desse equilíbrio rompido. Estimulado o zelo dos deuses na correção da injustiça, através de devotiones ou imprecações, a vítima se encarregava de restabelecer o equilíbrio, fazendo confundirem-se vingança com justiça226. Inicialmente, essa vingança era exercida pelos grupos familiares – divididos em clãs –, pelo dano causado a qualquer um de seus membros, o que foi progressivamente alterado para uma configuração que permitia ao próprio indivíduo exercer tal direito, tudo de acordo com a Lei de Talião, que regulamentava essas formas de resposta ao dano injusto. De fato, a vingança apresenta-se, a essa época, como verdadeira ferramenta de resolução de conflitos, com regras próprias e organizada socialmente, capaz de conduzir à reconciliação e à paz da sociedade. A evolução desse sistema, que traduz uma segunda fase do processo evolutivo da pena privada, ocorre quando o ofendido passa a ter direito de, em alguns casos, escolher entre a vingança privada e o pagamento de determinada soma227. A vingança incidia como agressão ao corpo do ofensor, ao passo que a composição pecuniária era revestida de NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 21/23. 225 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive Damages. In Revista de Direito Privado – RDPriv. NERY JUNIOR, Nelson et NERY, Rosa Maria de Andrade (coord.), ano 12, nº 45, janeiro-março, 2011, p. 166. 226 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume II, Rio de Janeiro: Forense, 1979, pp. 416/417. 227 Esse abrandamento da violência já era verificado no Código de Hamurabi, na Babilônia, que fez a primeira referência à figura da indenização, seguido pelas leis do reino babilônico de Eshnunna e pelo Código de Manu, na Índia. MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 14. 91 arbitrariedade, já que não era fixado nenhum valor ou critério de reparação, cabendo aos interessados o acordo sobre o quantum228. Em Roma, foram elaborados instrumentos que substituíam essa vingança privada, os quais representavam sanções ao ato ilícito: de um lado, havia figuras de sanções que buscavam uma resposta direta e imediata à situação criada ou ainda por surgir do ato ilícito, com o fim de neutralizar os seus efeitos, como era o caso do ressarcimento do dano e da reparação; por outro lado, uma outra figura tinha a pretensão não de reparar a vítima, mas de reprimir o ódio ao agente que cometeu o ato ilícito, sendo este o âmbito da pena, voltada mais para a conduta do ofensor do que para a vítima. Verifica-se, então, que a origem dos punitive damages remonta ao direito romano, em que não havia uma clara separação entre responsabilidade civil e penal, permitindo a utilização de penas privadas sem conteúdo propriamente ressarcitório229. Essa técnica de punir, mais adiante, foi apreendida de forma diversa por duas distintas tradições jurídicas: a tradição romanística, base dos sistemas jurídicos europeucontinentais e latino-americanos, e o direito anglo-saxão, verificado nos sistemas de common law, notadamente no norte-americano. De fato, essa “pena privada”, que não guarda relação com “justiça privada” ou “vingança privada” ou pena aplicada “pelos privados”, era, no Direito Romano clássico, a forma de punição atrelada ao delictum, conceito originalmente próprio ao ius civile e, dessa razão, distinto do crimen, ato contrário ao direito castigado pelo Direito Penal público230. Decerto, o Direito Romano não limitava os termos poena, punire e outros derivados à pena em sentido técnico, aplicando-os a todas as figuras de sanção. A pena em sentido técnico correspondia mais fielmente à actio poenalis, que guardava relação a um dos instrumentos destinados a concretizar a função de punir. 228 FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p. 100. 229 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, p.70. 230 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 17. 92 Ato contínuo, a terceira fase dessa evolução é verificada no reconhecimento do delito, com o conseqüente abandono da vingança pessoal, pelo qual o Estado assume o papel de mediador dos conflitos, mediante a fixação de valores para a composição das partes e a instituição da poena. Nessa fase, a própria figura do magistrado assume maior importância, deixando ele de simplesmente garantir o direito do ofendido de executar a pena, para efetivamente julgar e arbitrar a indenização. Esse novo modelo era verificado na Lei das XII Tábuas, cujo precípuo eram as composições, em que pese haver nela ainda resquícios daquele sistema de vingança pessoal. É nesse mesmo momento que, na Grécia, ocorre a transformação do genos na polis, em que o sobrelevo da figura do Estado passa a impedir as guerras consubstanciadas nas vinganças familiares. Essa função de punir era assegurada em duas frentes: a das penas privadas e a das penas públicas. A pena privada era utilizada para a repreensão dos ilícitos contra a pessoa ou seus bens, ou seja, no âmbito dos delitos privados (delicta). Com efeito, pena privada, nessa época, era a sanção que mirava infligir um mal ao réu, “golpeando-o em seu patrimônio”, ou seja, era o direito, em alguns casos, de agir em ódio ao culpado, alterando a sua situação pessoal ou patrimonial231. Por seu turno, as penas públicas eram a forma de punição às infrações praticadas contra o Estado e contra a paz do reino, os delitos públicos (crimen). Diante de um delito privado, o Estado, apesar de quedar-se inerte, assegurava à vítima o direito de ação para obter a condenação do ofensor ao pagamento de determinada quantia, caracterizada, destarte, como a sanção a um ato privado, derivada de uma ação intentada por um privado (actio poenalis), resultando na restrição patrimonial do réu, imposta com caráter punitivo, não ressarcitório. Deveras, as soluções fundadas nesse sentimento de ódio ao ofensor estavam ancoradas no que hoje se apresentaria como o “princípio da adequação”. Ao dano sofrido 231 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 6. 93 pela vítima deveria corresponder, a título de pena, um múltiplo econômico equivalente ao seu dobro, triplo ou quádruplo232. Isso que distinguia a pena privada daqueles outros instrumentos que visavam impedir ou neutralizar os efeitos do ilícito, embasados em critérios econômicos, com o ressarcimento na exata medida do dano (actiones rem persequentes). O objetivo das actiones poenales privadas era a sanção ou a repressão a determinadas condutas lesivas de interesses privados, como, por exemplo, o furto ou o roubo, obrigando o ofensor a entregar à vítima valores maiores do que o correspondente à simples compensação. Por fim, a quarta fase é caracterizada por um sistema fundado na indenização, perdendo força a poena, o que culminou numa dissociação dessas duas figuras. Fica claro, também, nesse momento, a separação entre o direito público, regulamentador do crimen, que perfazia as infrações ao Estado e à paz pública, e o direito privado, que tratava do delicta, constituído pelo conjunto de ilícitos praticados contra a pessoa ou contra o seu patrimônio. O Estado passou a dispor tanto de instrumentos que assegurassem a reparação da vítima, quanto para a aplicação de penas privadas, com evidente função punitiva233. Ocorre que se passou a verificar um processo de despenalização da responsabilidade civil, tanto pelos ideiais da justiça comutativa lançados por São Tomás de Aquino, pelos quais se bania qualquer transferência injustificada de riqueza de um sujeito ao outro, que acabou limitando, paulatinamente, a obrigação ressarcitória aos danos efetivamente sofridos, quanto pela necessidade de se tornar cada vez mais uniforme esse instituto. Além disso, o sucesso da pena pública, inaugurada pelo juízo penal mediante demanda do ofendido também contribuiu a essa progressiva crise da pena privada234. Esse processo conduziu ao cancelamento da originária função penal da responsabilidade civil, ao mesmo tempo em que eliminou as diferenças com que eram antes tratados os diversos tipos de delitos, segundo a sua gravidade e de acordo com o 232 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 17. 233 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 170. 234 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 8. 94 elemento subjetivo do autor da lesão. Passou-se, então, durante vários séculos, a considerar-se irrelevante o grau de culpa para a fixação da indenização. Além disso, ante a inexistência de uma divisão do trabalho bem estabelecida nas primeiras sociedades, a partir de uma consciência coletiva bastante evidente, justificava-se a importância de uma responsabilidade penal, garantidora da ordem pública. Contudo, a divisão do trabalho e a conseqüente organização da sociedade trouxe uma maior ideia de individualidade, o que fez com que o direito perdesse o seu caráter exclusivamente penal, para se fragmentar em outras diversas disciplinas, marcando, então, o surgimento de um direito muito mais restitutivo do que punitivo. Gradualmente, a feição reparatória toma lugar no direito das obrigações, separando não apenas a esfera civil da penal, como reclamando, em matéria contratual, somente o equivalente ao valor do bem alienado. Verificou-se, então, inicialmente no Código Civil francês, a adoção de uma rigorosa separação entre as matérias civis e penais, o que foi seguido pelas demais codificações surgidas nos anos posteriores. Assim, a pena privada romana passou a ser vista como um indício da barbárie das civilizações mais remotas235. A esse fato, some-se a contribuição religiosa para o entendimento da responsabilidade civil punitiva. Os canonistas e teólogos acabam por trazer uma ideia de moral à responsabilidade civil, apontando a culpa como seu elemento visceral. A moral cristã alça a culpa ao mais alto patamar, determinando que o homem responde pelos seus atos não apenas em relação aos seus semelhantes, mas também a Deus. Essa ideia de culpa acaba sendo associada a um pecado, praticado no exercício do livre-arbítrio. Por esses motivos, a ideia de pena privada foi abandonada por tempo demasiado, porquanto ligada à ideia de barbárie, além de ser contrária à moral cristã. 235 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 17. 95 Contudo, já na época de Eduardo I, no século XIII, os legisladores ingleses, em busca de uma indenização associada às ações penais, passaram a se valer da condenação por múltiplos financeiros do dano, tal qual ocorria no Direito romano. Nesse modelo construído na Inglaterra, o autor do dano sofria uma sanção, caracterizada pela privação de seu patrimônio equivalente a um múltiplo do dano causado à vítima, que tinha, ao seu dispor, a previsão de uma ação civil justamente para esta finalidade236. No século XIII, portanto, em algumas hipóteses específicas, dava-se ao juiz a possibilidade de condenar o réu ao pagamento de indenizações punitivas. Verifica-se, dessa forma, ser a Inglaterra o berço dos punitive damages. Em 1278, a primeira previsão legal de indenização multiplano no Direito anglo-saxônico veio a aparecer, no Statute of Councester, da Inglaterra, sendo essa a raiz da tradição punitiva237. Acontece que, do século XIII até meados do século XVIII, foram as funções compensatória e punitiva da indenização confundidas pelas Cortes inglesas e norteamericanas. De fato, os exemplary damages eram incluídos na categoria de compensatory damages, em razão da recusa de se atribuir um caráter compensatório às indenizações por danos morais238. Em 1760, algumas cortes inglesas passaram a justificar as vultosas somas concedidas pelos júris como não apenas uma compensação oferecida à vítima de um dano, mas também como uma forma de punir o ofensor pela sua conduta antijurídica. Na Inglaterra, em situações de graves abusos de autoridade por parte de funcionários públicos e entes privados, evidenciados nos casos Huckle vs. Money e Wilkes vs. Wood, ambos datados de 1763, reconheceu-se que o tort law comportava uma função de pena privada, consagrando-se o princípio da reparação dos danos causados por funcionários do Rei239240. 236 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 228/229. 237 VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à Punição e Dissuasão – Os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 41. 238 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 173. 239 LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema 96 Quando se cria, então, essa doutrina dos exemplary damages – expressão utilizada, pela primeira vez, em 1763, no julgamento dos citados casos Huckle vs. Money e Wilkes vs. Wood –, que servia para justificar a atribuição de indenização quando não havia prejuízo tangível, o instituto dos punitive damages apresenta especial desenvolvimento, principalmente pelo esforço dos Tribunais. É bem verdade que, atualmente, os punitive damages, especialmente no Direito norte-americano, são também atribuídos à responsabilidade patrimonial, revestidos de caráter de exemplaridade social. Ao entanto, sua origem é marcada pela função punitiva, aplicável apenas aos casos de danos extrapatrimoniais. Como mostra Maria Celina Bodin de Moraes, é no final do século XIX que a concepção liberal, marcada pela autonomia da vontade individual, começa a sofrer considerável transformação, em virtude do recrudescimento do modo de produção capitalista. A partir daí, começam a ocorrer múltiplas manifestações intervencionistas na economia por parte do Estado, mas ainda com a preservação da autonomia privada, momento em que pode se observar a nítida separação entre Direito Público e Direito Privado241. Essa nova fase, marcada também pela demarcação entre o lícito e o ilícito, que deveria facilitar o seu reconhecimento pelos cidadãos comuns, configurando-se como meio de garantir a liberdade dos indivíduos, ao mesmo tempo em que servia como meio de Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória. 240 Fora esses casos, Vitor Fernandes Gonçalves cita ainda outros julgados em que, posteriormente, foi aplicada a doutrina dos punitive damages, concernentes a condutas ofensivas ou vergonhosas sob a ótica dos costumes sociais vigentes à época, como Tukkidge vs. Wade, que puniu um caso de sedução, Grey vs. Grant e Benson vs Frederik, que impôs uma sanção punitiva em razão de agressões físicas perpetradas contra as vítimas, Leith vs. Pope, que reprimiu uma falsa acusação, e Duberley vs. Gunning, que castigou a indução de um crime. GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 34. 241 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., pp. 197/198. Explica, ainda, a autora que a teoria da “pena privada” foi defendida, em meados do século XX, por Boris Starck, pela qual se procurou atribuir à faute a consequência da pena privada. Essa teoria apresentou utilidade quando se percebeu a necessidade de buscar fundamentos com maior poder de adesão para fortalecer a ideia de reparação do dano moral, neutralizando o argumento moral que a afastava, pois que, não havendo como submeter a qualquer tipo de aferição em concreto a extensão do dano, o pagamento da quantia em dinheiro pelo ofensor poderia ter, pura e simplesmente, caráter de sanção. Argumentava-se também que a ideia de compensação apenas serviria à reparação do dano moral sofrido pelas vítimas de classes mais favorecidas, porque possível a substituição da tristeza pelos prazeres que o dinheiro proporcionaria. Contudo, insuficiente esse resultado a uma pessoa rica, devendo haver uma condenação do agressor a título de pena. pp. 219/221. 97 proteção dos direitos subjetivos de cada um, demonstrava claramente a posição da liberdade do cidadão quanto à circulação dos bens e sua posição frente ao poder estatal. Mas, para a burguesia que estava no poder, não se revelava vantajoso conceder ao juiz grande independência, de modo que pudesse avaliar o dano, mas somente um papel de “boca da lei”, com a aplicação, se possível, de seu texto literal242. A separação, portanto, entre pena e indenização acabou sendo uma consequência dessa mentalidade, porquanto imprescindível retirar da indenização qualquer conotação punitiva, à medida que eventual exagero nas indenizações, além de contrariar ao interesse da classe dominante burguesa, pudesse limitar excessivamente a liberdade dos privados, refreando o desenvolvimento econômico e industrial243. Em 1851, no caso Morse v. Auburn & Syracuse R.R., afasta-se o pain and suffering da categoria dos exemplary damages, fazendo com que os prejuízos morais passassem a integrar exclusivamente a categoria compensatória dos actual damages, ao passo que a indenização relativa à punição seria destinada à repressão de conduta deliberadamente desrespeitosa.244 Desse modo, estabelece-se na Inglaterra o conceito de actual damages para abarcar também os prejuízos extrapatrimoniais. Consequentemente, retirada a função compensatória dos exemplary damages, foi tal figura utilizada exclusivamente na sua função de punishment e deterrence, de modo que as suas finalidades precípuas passaram a 242 Vitoriosa a classe burguesa, surgiu, logicamente, uma necessidade de reafirmação jurídica de seu modelo de cidadão. A própria codificação do direito foi o instrumento por ela utilizado para decretar a morte jurídica do sistema feudal até então vigente. Com efeito, este regime fundava-se na existência de uma sociedade fragmentada em 3 estamentos: nobreza, clero e terceiro estado, cada qual submetido a um regime jurídico diferente. Além disso, o Estado era dividido politicamente em condados, ducados e outras unidades, muitas vezes possuidoras de ordens jurídicas próprias. A classe burguesa contrapôs-se a esse modelo, oferecendo um novo, no qual figurava um único “tipo” de cidadão, membro de uma comunidade estatal, submetida às mesmas regras, independentemente de sua origem. Acresça-se a isso o fato de que o liberalismo filosófico trouxe à tona a idéia de que o direito só seria legítimo quando decorresse diretamente da vontade geral, obtida por meio das leis deliberadas pelo parlamento – que atuava exatamente como representante da nação. O Direito era, portanto, reduzido à lei, que procedia do parlamento, que representava a vontade geral. Por isso que o juiz exercia um papel de “boca da lei”, na medida em que não se aceitava qualquer tipo de interferência na vontade do povo. In BART, Jean. Histoire du droit, 2ª edição, Paris: Dalloz, 2001, p. 81; e CARBASSE, Jean-Marie. Manuel d’introduction historique au Droit. 3ª edição, Paris: PUF, 2001, pp. 279/304. 243 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., pp. 199/202. 244 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 49. 98 ser a punição do ofensor e a prevenção a futuras novas práticas lesivas245. O foco do instituto passa a incidir não mais sobre a espécie do dano, mas sobre a conduta de seu causador. A partir de então, os danos materiais decorrentes de ilícito (actual damages) passam a incluir também a categoria dos danos extrapatrimoniais (aggravated damages), apartando-os da indenização punitiva, que passa a ser considerada como uma categoria separada, denominada punitive ou exemplary damages. Então, tem-se que o direito inglês consagrou as categorias de aggravated, exemplary e restitutionary damages, trazidos pelos relatórios elaborados pela Comissão de Direito da Inglaterra e de Wales, numa tentativa de uniformizar a matéria. Verificou-se, dessa forma, uma perda progressiva de importância dos punitive damages ao longo dos séculos, até que essas penas ressurgissem com bastante força. Notadamente, até 1964, embora já reconhecida a figura dos punitive damages, a sua aplicação ainda não apresentava critérios bem definidos. No entanto, nesse mencionado ano, quando da decisão do caso Rookes VS. Barnard, pela House of Lords, em que se discutia a atuação de um sindicato, que havia se valido de meios ilegais para induzir a British Airways a demiti-lo, foi trazida, por fim, uma baliza à aplicação do instituto. Inicialmente, caracterizou-se de forma clara a distinção entre a indenização punitiva e os danos morais (aggravated damages). Em seguida, foram determinados os critérios de aplicação dos punitive damages, que incidiriam em três situações distintas: i) atos opressivos, arbitrários ou inconstitucionais advindos de servidores do governo; ii) condutas lesivas que fossem economicamente vantajosas para o réu, sob o ponto de vista econômico, levando-se em conta a condenação a ser imposta em termos puramente compensatórios; iii) casos expressos em lei246. Esse balizamento proporcionou, em primeiro lugar, o reconhecimento de que o ato coator praticado pelos membros do governo – justamente porque eles são os servidores do 245 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 17. 246 Rookes v. Barnard, In http://www.bailii.org/uk/cases/UKHL/1964/1.html, consultado em 17/5/2012. 99 povo e o uso de seu poder sempre deve ser subordinado a suas obrigações públicas –, quando opressivo, ou arbitrário, ou inconstitucional, seria capaz de ocasionar a aplicação dos punitive damages. Ou seja, a verificação alternativa desse desvio de conduta do membro do governo seria capaz de proporcionar uma indenização punitiva. Esse fato abriu margem para que diversos atos praticados por esses membros do governo, ainda que não violentos ou opressores, levassem à aplicação dos punitive damages, como no caso de prisão indevida, em que o detento, mesmo tratado “à base de filé e cerveja”, foi preso por equívoco, conforme assentado em Huckle VS. Money247, não tendo o juiz se referido à extensão do dano sofrido pela vítima, mas abordado apenas a extrema gravidade da falta cometida248. No entanto, essa abertura logo foi minorada pela mesma House of Lords, que passou a entender que a violação deveria resultar em danos físicos, mentais ou financeiros, para que fosse possível atribuir indenização punitiva, não bastando a simples violação a direito da vítima, como ficou decidido em Walkins VS. Secretary of Home Department and Others249. Ato contínuo, a segunda categoria que passou a ensejar a aplicação de indenizações punitivas na Inglaterra refere-se às condutas ilícitas praticadas pelo agente que lhe geram um benefício maior do que a eventual indenização a ser paga à vítima, a título puramente compensatório. A visão sob a qual se enxergou essa situação é, na realidade, uma discussão, extremamente atual, de Law & economics. Posteriormente, a jurisprudência inglesa, numa tentativa de equilíbrio dessa categoria, para que não fosse impedido o desenvolvimento empresarial, pelo risco de que qualquer conduta lucrativa, mas danosa, pudesse se enquadrar nessa hipótese de condenação por punitive damages, criou dois requisitos para a aplicação do instituto nesses casos, verificados na decisão paradigmática do caso Broome VS. Cassel & Co. Ltda250: i) a prova do conhecimento do réu acerca de sua conduta contrária à lei, ou um desprezo 247 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 175. MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p.131. 249 In http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200506/ldjudgmt/jd060329/watkin.pdf, consultado em 24/5/2012. 250 In http://uniset.ca/other/rossminster/broome.html, consultado em 24/5/2012. 248 100 quanto à ilegalidade de seu ato; e ii) uma decisão de prosseguir com a conduta lesiva, sob a perspectiva de que a vantagem material obtida seja maior do que a indenização eventualmente paga. Por fim, a terceira categoria trata dos casos expressamente previstos em lei, que autorizariam a aplicação da indenização punitiva, merecendo destaque o Copyright, Designs and Patents Act 1998 e o Patents Act 1977. Até o ano de 2002, além de ter de se enquadrar numa dessas três categorias, para que fosse concedida indenização punitiva, havia que ser respeitado o Cause of Action Test, requisito trazido do caso AB VS. South West Services Ltd., julgado em 1993, pelo qual apenas seriam consideradas causas de pedir passíveis de punitive damages aquelas que, antes do caso paradigmático de 1964, também o fossem. Ou seja, apenas se enquadravam nesse requisito situações bastante específicas, como: falso aprisionamento, assalto, difamação, violação relativa a bens móveis ou imóveis e interferência culposa no comércio e nos negócios, contanto que essas situações fossem assim caracterizadas antes do mencionado acórdão de 1964251. Após o julgamento desse citado caso, diversos tipos de novos danos não poderiam mais ser reconhecidos como ensejadores de punitive damages. Mas, a partir de 2002, no caso Kuddus (AP) vs. Chief of Leicestershire Constabulary252, foi afastado o Cause of Action Test, reconhecendo os julgadores o perigo de engessamento do sistema de responsabilidade, principalmente em razão das novas figuras lesivas que surgiam ao longo dos anos. A partir desse novo paradigma, passou-se a reconhecer a aplicação do instituto às novas formas de danos, anteriormente não permitidas pelo sistema, mas sempre em observância àquelas três categorias fixadas pela decisão de 1964. Assim, na Inglaterra, os punitive damages, tal qual previstos na decisão do leading case Rookes vs. Barnard, apresentam não apenas categorias, que devem ser preenchidas, para que se verifique a aplicação do instituto, mas também critérios, que devem ser levados em consideração pelo júri e pelo magistrado na determinação de seu quantum. 251 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 179. In http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200001/ldjudgmt/jd010607/kuddus-1.htm, consultado em 28/5/2012. 252 101 Inicialmente, o autor da demanda deve ser, necessariamente, a vítima da lesão, o que afasta a ideia de que os punitive damages sirvam unicamente para punir o agente causador do dano. Por segundo, a indenização deve atender ao princípio da moderação, como o mínimo para cuidar ao interesse público. Por fim, a indenização deve ser sopesada de acordo com a capacidade econômica das partes, sobretudo a do réu. A consagração desses três critérios também vem acompanhada do que a doutrina inglesa posteriormente chamaria de “if, but only if”. Essa expressão quer significar que a indenização punitiva deve ser atribuída quando, e somente quando a verba relativa à compensação da vítima não for suficiente para preencher a finalidade da responsabilidade civil. Ou seja, a regra do “if, but only if” trouxe a ideia da não existência dos punitive damages como categoria autônoma, independente da compensação, traduzindo esta última também o seu caráter de prevenção. Importante também o alerta feito no julgado do caso Rookes vs. Barnard, no sentido de que qualquer elemento que agrave ou atenue a conduta do réu deva ser levado em consideração para a aplicação dos punitive damages. Assim a sua reincidência na mesma prática lesiva ou mesmo a participação em outras atividades ilícitas. Pesem as críticas acerca do instituto, fato é que os punitive damages, no sistema inglês, mostram-se bastante controlados, com critérios claros de causa de pedir, indenizações equilibradas, aplicados a partir de um estudo técnico aprofundado a respeito dos casos paradigmas, levando segurança jurídica necessária à população 253, e sancionando os danos mais graves às liberdades fundamentais dos indivíduos254. 253 Daniel Andrade Levy orienta que “Para nós, interessa naquele direito insular perceber (a) a importância da fundamentação dos punitive damages como instrumento de segurança jurídica, por meio de bem detalhados casos paradigmas; (b) a separação entre dano moral e dano punitivo; (c) a necessidade de se pensar no binômio “critérios restritos de reparação e resultados ilógicos” ou “generalidade da reparação e insegurança jurídica”; (d) a importância de uma tradição de case Law, fundada na experiência, na atribuição de um caráter exemplar à indenização, e a importância do exemplo como fundamento do case Law; e (e) a ideia do “indivíduo social”, como aquele que tem o múnus de levar ao conhecimento do Poder Judiciário o causador do dano”. In Revista de..., LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 185. 254 MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p.134 102 Se, por um lado, na Inglaterra, os punitive damages acabaram não assumindo tamanha importância, em razão desse controle exercido pela House of Lords, por outro lado, nos EUA, tiveram eles uma expansão bastante significativa, principalmente em relação aos danos decorrentes de acidentes de consumo255. Ao analisar o mesmo instituto sob a ótica norte-americana, verifica-se que a tendência das indenizações dos punitive damages foi inversa, verificada a partir da década de 70 até meados dos anos 90, em que os valores apresentavam quantia sobremaneira elevada, ultrapassando, muitas vezes, o valor da própria compensação destinada aos danos materiais ou morais sofridos pela vítima256. Contudo, para o estudo dos punitive damages nos EUA, deve-se levar em consideração a real divisão federativa que lá ocorre, em que há diferentes regramentos e ordenamentos em cada Estado, que garantem ou vedam a aplicação do instituto. Cinco Estados proíbem, em maior ou menor grau, a aplicação de punitve damages: Luisiania, Massachusetts e Washington, que permitem a utilização do instituto apenas nos casos previstos em lei; e Nebrasca e New Hampshire, que o proíbem integralmente. Alguns Estados, por sua vez, conquanto permitirem a aplicação dos punitive damages, limitam o seu valor, como é o caso do Alabama (250 mil dólares) e Idaho (250 mil dólares ou três vezes o valor dos danos materiais, o que for maior). Certamente, os punitive damages nos EUA demonstram o desenvolvimento quase que isolado do tort system norte-americano das demais nações do Commonwealth, partindo muito mais de uma análise financeira do direito, e deixando clara a sua passagem entre o dano moral e a sanção. 255 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 71. 256 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 229. 103 Basta voltar no tempo para perceber que os primeiros casos de punitive damages, na Inglaterra e nos EUA, foram fruto da humilhação sofrida pelos réus, numa ligação intrínseca entre a ideia de sanção e o abalo moral sofrido257. De fato, as decisões relacionadas aos punitive damages dos séculos XVIII e XIX são ligadas sempre à noção de honra que, violada, acarretaria o direito de compensação da vítima. A sanção imposta em resultado da humilhação sofrida pela vítima representava, assim, a vingança de toda a coletividade. Como revela Renata Chade Cattini Maluf, inicialmente, a aplicação dos punitive damages era restringida aos casos de tutela da pessoa e vida privada, da honra, da reputação e naquelas situações em que fosse permitido reconhecer um ganho expressivo em relação aos danos efetivamente causados, e quando o comportamento do ofensor apresentasse uma carga de culpa elevada258. Com o passar dos anos, novas condutas injustas ou odiosas, mas que não acarretavam, necessariamente, a humilhação da vítima, passaram a demandar, também, a imposição de sanções, ao mesmo tempo em que a teoria dos danos compensatórios apresentava evolução doutrinária e jurisprudencial. Passa-se, destarte, a admitir-se que a humilhação, que antes era ligada à ideia dos punitive damages, poderia estar associada, na realidade, a um dano moral compensatório. Sob essa linha de raciocínio, as Cortes norteamericanas lançam suas reflexões sobre essa questão, para diferenciar e estremar as figuras do dano moral e dos punitive damages259. Dessa forma, com a contribuição da Revolução Industrial, que proporcionou o avanço da tecnologia, assim como a intensificação do movimento operário, verificou-se uma mudança de visão em direção a um aspecto social dos punitive damages, para sancionar não apenas os casos de abuso do poder econômico, como também as situações de acidentes do trabalho e as hipóteses em que ficava manifesto um tratamento injusto ao 257 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 54/55. 258 MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p.127 259 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 187. 104 cidadão pelas companhias. Sai-se da ideia de humilhação para adentrar-se à concepção de reprimenda ao tratamento injusto. Mais adiante, ainda no século XX, mas agora em sua segunda metade, pós-Segunda Guerra Mundial, verifica-se uma terceira fase de evolução dos punitive damages, ligada à expansão do consumo e da responsabilidade decorrente do produto (product liability). Mas logo se constatou uma aparente incompatibilidade entre a aplicação dos punitive damages, sempre voltada à análise da culpa do ofensor, e a responsabilidade pelo fato do produto, que dispensava essa aferição subjetiva260. Não obstante, a insuficiência das regras da responsabilidade civil, para a disciplina de tais casos, demandou uma ampliação da interpretação jurisprudencial, o que resultou na aplicação de indenizações punitivas sempre que se verificasse ter sido a conduta do ofensor intencional (willful) ou irresponsável (reckless), em clara atenção à função preventiva da responsabilidade civil (deterrance). Observa-se, portanto, uma visão socializante do dano, cuja indenização se apresenta como ferramenta para a defesa da sociedade, e não mais com vista à satisfação do interesse individual. Essa nova face dos punitive damages é a utilizada atualmente nos EUA, que denota mais a necessidade de prevenção do dano e exclusão dos bad players, do que propriamente indenizar a vítima. Realmente, a expansão da tese punitiva pode ser verificada pelo fato de que o pagamento pela dor, anteriormente, era considerado imoral (o chamado “dinheiro da dor”), sendo então preciso buscar outra motivação para evitar que as condenações à compensação dos danos causados a direitos extrapatrimoniais apresentassem caráter meramente simbólico. A pena privada seria, portanto, um fundamento de grande aceitação diante de certas categorias de danos extrapatrimoniais261. Passando-se aos requisitos de aplicação do instituto, como regra geral, nos EUA, receber a indenização relacionada aos punitive damages não constitui um direito subjetivo da vítima, salvo previsão legal em contrário, dependendo da discricionariedade do júri, que 260 261 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., 188. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p.223. 105 decidirá sobre a sua concessão. Em algumas jurisdições, no entanto, quando há alegações e provas suficientes, a indenização punitiva é, sim, considerada um direito subjetivo, perfazendo, então, dever do júri concedê-la. Nessa mesma esteira, como regra geral, não é permitida a condenação em punitive damages por violação de um contrato, pouco importando os motivos que levaram o réu a perpetrar a quebra. A concessão dos punitive damages depende da prova das “circunstâncias subjetivas que se assemelham à categoria continental do dolo, quais sejam: malice, wantonness, willfulness, oppression, fraud, entre outras”262. Percebe-se, então, que a simples negligência do agente ofensor, quando não associada a essas outras circunstâncias agravantes, não é motivo para a concessão de punitive damages, sendo certo que a gross negligence (culpa grave), em alguns estados, é capaz de ensejá-los263. Cabe também ao júri, como regra, a fixação dos punitive damages, podendo, entrementes, haver revisão do valor fixado, por uma Corte superior, em determinadas hipóteses, sempre que constatada excessiva arbitrariedade. Esse é justamente o problema dos punitive damages, que começa a despontar em razão dos exorbitantes valores fixados pelo júri, que não possuíam uma baliza para sua aplicação, e, no mais das vezes, eram movidos por um sentimento de vingança até mesmo pessoal contra a companhia causadora do dano, pelo que a histórica confiança antes nele depositada acabou por, de certa forma, ruir. Essa exacerbação inicial das indenizações punitivas levou a severas críticas ao instituto pela doutrina, em razão da ausência desses critérios e limites para sua fixação. De fato, ao júri não eram atribuídos parâmetros objetivos a respeito do cabimento e do valor dos punitive damages, de forma a guiar sua decisão e, assim, proporcionar julgamentos imparciais. 262 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 20. 263 Os statutes de alguns Estados reconhecem a negligência grosseira na seara dos acidentes de trabalho e em casos de erro médico. In VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à Punição e Dissuasão – Os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, pp.51/52. 106 Os jurados decidiam de acordo com seus próprios valores e predileções, punindo mais severamente os réus impopulares e abastados264. Não conseguiam eles discernir a função retributiva da função preventiva, de forma que fundamentavam suas decisões unicamente no grau de repreensividade da conduta ilícita, ou seja, de sua gravidade, deixando de se ater ao aspecto da prevenção265. Por esse motivo que os valores das indenizações passaram a ser alvo de acirrada controvérsia entre partidários e opositores da tort reform, sustentando-se, de um lado, que os montantes indenizatórios estariam fora de controle, o que seria atribuído a esse excessivo poder discricionário entregue ao júri e, de outro, a falta de preparo desses mesmos jurados para estabelecer o quantum266. Nos Estados Unidos, os punitive damages pareciam não admitir comparações que levassem em conta os danos efetivamente sofridos pela vítima, mas sim os danos hipotéticos que poderiam resultar da conduta do ofensor, não fosse a imposição de uma sanção eficaz em sua função preventiva ou inibitória.267 Teve, então, a Suprema Corte do Alabama que alinhar parâmetros de fixação dessas indenizações, com o intuito de repelir essas vultosas indenizações e retomar a confiança da população no instituto268. Em caso paradigmático (BMW of North America, Inc. vs. Gore269), em que se percebia claramente o exagero da condenação, reconhecendo-se a 264 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 235. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 247. 266 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 267 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., pp. 236/237. 268 No início, a jurisprudência americana, especialmente a Suprema Corte, negava os recursos contra as decisões de revisão ou não dos valores de indenização. WINTERSHEIMER, Donald C. Does cooper industries v. leatherman tool group, inc. require denovo review by state appellate courts?. in https://litigationessentials.lexisnexis.com/webcd/app?action=DocumentDisplay&crawlid=1&srctype=smi&srcid=3B15&doct ype=cite&docid=59+N.Y.U.+Ann.+Surv.+Am.+L.+357&key=9dbf66443fc12f0f4fd10e987883a41d, consultado em 17/6/2012. 269 Após adquirir um veículo automotor da BMW de uma concessionária autorizada da marca, localizada no Alabama, pelo valor de $40,750.88, e dirigi-lo por nove meses, sem notar qualquer problema, o Senhor Ira Gore resolveu leva-lo para uma oficina, para que fosse aperfeiçoada a aparência do automóvel. O profissional que o atendeu constatou que o veículo havia sido repintado, motivando, então, o ajuizamento de ação do Senhor Gore contra a BMW, no valor de $ 500,000, a título de indenização de natureza reparatória e punitiva, alegando que o fato de a fornecedora do produto não ter informado a ocorrência de repintura constituiria violação da boa-fé contratual (suppression of a material fact), o que constituiria fraude, segundo a legislação do Alabama. No julgamento, a BMW reconheceu que havia adotado uma política nacional, em 1983, a 265 107 afronta ao Due Process Clause, a Suprema Corte traçou linhas para a concessão dos punitive damages, as quais deveriam ser seguidas pelas demais Cortes estaduais: 1) o grau de reprovabilidade da conduta do réu, que, por sua vez, seria aferível mediante a observação dos seguintes fatores: a) se o prejuízo causado foi físico ou meramente econômico; b) se o ato ilícito foi praticado com indiferença ou total desconsideração com a saúde ou a segurança dos outros; c) se o alvo da conduta é pessoa vulnerável economicamente; d) se a conduta envolveu ações repetidas ou foi um incidente isolado; e) se o prejuízo foi resultado de uma ação intencional ou fraudulenta, ou se decorreu de mero acidente. Deve-se ressaltar que a existência desses fatores em favor do autor da ação nem sempre são suficientes para sustentar uma condenação por punitive damages. A ausência de todos, por outro lado, torna qualquer condenação temerária. Efetivamente, os punitive damages apenas deveriam ser deferidos, segundo a decisão, quando 1) a culpabilidade do réu, após o pagamento dos compensatory damages, for tão repreensível que importe a imposição de outras sanções, para que se atinjam as finalidades punitiva e preventiva; 2) constatar-se disparidade entre o dano efetivo ou potencial sofrido pelo autor e os punitive damages; 3) verificar-se a diferença entre os respeito de automóveis que foram danificados durante a sua manufatura ou transporte: se o custo do reparo excedesse 3% do valor sugerido de venda, o carro permanecia dentro da empresa por determinado tempo e, depois, era vendido como usado. Entretanto, se não houvesse excedente de 3%, o carro era vendido sem qualquer aviso à concessionária, sem que fosse dada qualquer explicação sobre os reparos que haviam sido feitos. E, com efeito, o caso do veículo adquirido pelo Senhor Gore se enquadrava nessa segunda hipótese, não tendo sido a concessionária cientificada sobre essa repintura. Assim, o Senhor Gore alegou que o seu veículo valia menos do que um carro novo, que não houvesse sofrido essa repintura, tendo sofrido danos materiais de, aproximadamente, $4,000. Além disso, o Senhor Gore apresentou prova no sentido de que, desde 1983, a BMW havia vendido 983 carros, cujos custos de reparação não superavam aquele percentual de 3%. Dessa forma, fazendo a conta de $4,000 vezes 1.000 veículos, chegou ele ao valor de $500,000, que constituiriam um valor razoável de punitive damages. Ao apreciar o caso, o júri entendeu ser a BMW responsável pelo prejuízo sofrido pelo Senhor Gore, no valor de $4,000, além de condenar a empresa ao pagamento da quantia de $4,000,000, a título de punitive damages, sob o entendimento de que teria ocorrido uma fraude. Dessa decisão apelou a BMW, alegando que havia leis, em ao menos 25 Estados, regulamentando a desnecessidade de informar os consumidores sobre reparos que não consubstanciassem percentagem significante do valor do bem. Esse fundamento utilizado pela BMW serviu para mostrar o exagero de sua condenação, pelo fato de que foram considerados os veículos comprados por consumidores de todos os Estados, sendo certo de que, em vários deles, essa prática de não informar esse prejuízo insignificante era legal. Embora a Suprema Corte do Alabama, ao analisar a questão, tenha entendido que os punitive damages haviam sido fixados com razoabilidade, e que esse valor não geraria grande impacto à BMW, acabou reduzindo a indenização para $2,000,000, por ser mais razoável constitucionalmente, de acordo com a Emenda 14 da Constituição (Due Process Clause), com base em análise comparativa com outros casos. In http://www.law.cornell.edu/supct/html/94-896.ZO.html, consultado em 16/06/2012. 108 punitive damages concedidos pelo júri e as multas civis autorizadas ou impostas em casos semelhantes. Pelo que se nota da decisão, a Suprema Corte baseou-se em diversos argumentos no sentido de determinar a redução da indenização, entendendo que a conduta da BMW causou dano puramente econômico, que não afetou a segurança ou a saúde da vítima, não havendo indícios de má-fé, mas sim de interpretação de leis estaduais pelo executivo da corporação. Nessa mesma esteira, apurou-se a desproporção entre os danos compensatórios atribuídos à vítima e a indenização a título de punitive damages; e a desproporção entre as sanções estabelecidas nas leis do próprio Estado, como multas administrativas, e o valor da indenização. Após a fixação desses critérios, as decisões do júri vêm constantemente sendo modificadas pelas Cortes estaduais norte-americanas, retirando-se a ampla liberdade que até então apresentavam para fixar indenizações. Note-se que, no caso Campbel x Farm270, foi decidido que deveria existir uma relação de proporção entre indenização compensatória e indenização punitiva, não podendo esta ser dez vezes maior do que aquela. Além disso, a Suprema Corte reconheceu outros critérios para enquadrar os casos de indenização punitiva: i) se o dano causado foi físico ou moral; ii) se a vítima estava em situação de debilidade; e iii) se o ofensor agiu com indiferença pela segurança alheia271. É importante salientar que, atualmente, a indenização punitiva, nos EUA, é concedida em apenas 4% dos casos em que é pleiteada272. Ou seja, há um controle na atribuição desse tipo de indenização, sendo certo que até ocorreu tentativa de limitar, por meio de Lei federal, o valor atribuído aos punitive damages, o que já vinha sendo praticado 270 Tratava-se de um acidente automobilístico – cujo culpado era Campbel – que resultou na morte de um indivíduo e lesões permanentes a outro. Campbel teve negada a cobertura de seu seguro (State Farm Mutual Automobile Insurance Co.), fazendo com que ele não conseguisse pagar o valor ajustado em acordo de $50,000, sofrendo, posteriormente, condenação muito superior, de $185,849. Por esse motivo, Campbel processou a seguradora, alegando má-fé e fraude, obtendo condenação de U$ 145 milhões, a título de punitive damages. 271 In http://www.casebriefs.com/blog/law/civil-procedure/civil-procedure-keyed-to-yeazell/incentives-tolitigate/state-farm-mutual-automobile-insurance-co-v-campbell/, consultado em 17/8/2012. 272 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009,p p. 217/218. 109 em alguns Estados. Mesmo aprovado o Projeto de Lei pela Câmara e pelo Senado, foi ele obstado por veto presidencial. Fechados os parênteses, nota-se que, ainda que haja regras diversas de aplicação dos punitive damages para cada Estado federativo, é possível a constatação de alguns fundamentos comuns para a sua atribuição: “(a) compensação do ofendido (redress for the plaintiff); (b) a punição do ofensor; e (c) a prevenção de novos danos”273. A função compensatória é mais facilmente verificável em casos de dano moral, levando-se em conta o limite bastante singelo existente entre punição e reparação. Lembrese que, inicialmente, os punitive damages eram destinados à punição do ofensor em razão da humilhação e insulto provocados à vítima. Assim, com o reconhecimento da reparação por danos morais, alguns Estados passaram a reconhecer os punitive damages não mais como instrumento de punição, mas para compensar o abalo psíquico da vítima. Essa confusão é percebida em razão da inexistência, no direito norte-americano, de uma categoria de dano moral, ao contrário do que ocorre no direito inglês, em que há os aggravated damages. Todavia, a ideia dos punitive damages como verdadeiro instrumento de punição é bem definida, defendida por 38 Estados americanos, que entendem servir tal instituto, ao menos em parte, como sanção do ofensor. Alguns Estados enxergam os punitive damages como mero reconforto da vítima, como é o exemplo de North Dakota, ao passo que outros, numa visão mais socializante, vêem nos punitive damages um instrumento de paz e ordem social, como é o caso de Wyoming. Como antes mencionado, a função preventiva dos punitive damages parece ser uma nova tendência norte-americana, numa visão de função social do litígio, para que a punição aplicada sirva de exemplo a outros eventuais ofensores. 273 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 190. 110 Com efeito, o tort law norte-americano tem por finalidade não somente a reparação ou compensação do dano ocorrido, mas também a prevenção de danos futuros274. Atesta Nelson Rosenvald que os punitve damages são deferidos com duas finalidades: retributiva (punishment) e desestímulo (deterrence). Assim, a retribuição reclama que a conduta revele extrema reprovação social, representada por uma malícia – dolo ou grave negligência do agente –, cumulada ao desestímulo, no sentido de que a pena servirá para afligir o ofensor, induzindo-o a não reiterar o comportamento antissocial275. Por isso que os punitive damages são utilizados como ferramenta de prevenção específica (dissuadir o ofensor da reiteração da conduta) e prevenção geral da conduta ilícita (alertar a sociedade a respeito da intolerabilidade da prática ilícita)276. De se ressaltar, também, a importância dos elementos atinentes à gravidade da conduta do agente, o que parece ser uma unanimidade em todos os Estados, fazendo-se necessária a configuração do dolo, definido tanto como o ato intencional de alcançar o resultado, quanto se, mesmo não alcançado, o autor da conduta esteja certo de que ele se concretizará. Outra hipótese decorre da culpa grave (reckless) que, nos termos da Seção 500 do Second Restatement of Torts, deve ser separada das condutas meramente negligentes ou imprudentes. O agente deve não apenas ter consciência da gravidade do dano ou do risco que seu ato possa gerar o dano, mas também um comportamento indiferente que, no ordenamento brasileiro, aproximar-se-ia das figuras do dolo eventual ou da culpa consciente277. Por isso que nenhum Estado americano permite a aplicação de indenizações punitivas em casos de simples negligência ou de responsabilidade objetiva, salvo algumas 274 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 275 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 144. 276 BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP p. 107, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/10/2013. 277 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 193. 111 exceções quanto a essa última hipótese278. Certamente, as condutas lesivas decorrentes de ignorância (ignorance), culpa simples (mere negligence) ou engano (mistake) ficam fora do âmbito dos punitive damages279. Na maioria dos Estados norte-americanos, a concessão dos punitive damages fica, como antes dito, a cargo do júri, que, embora ausente de paradigmas expressos, deve balizar-se de acordo com alguns critérios, utilizados em grande parte desses Estados, definidos, sobretudo, a partir daquele julgado da Suprema Corte do Alabama (BMW of North America, Inc. vs. Gore): a) capacidade econômica do ofensor; b) a proporção entre danos compensatórios e danos punitivos; c) a natureza e a gravidade do dano; d) o grau de culpa do agente; e e) qualquer outro fator relevante. Em diversos Estados, muito em razão do elevado poder discricionário dado ao júri, aliado ao seu aparente despreparo para fixar o quantum indenizatório referente à punição, há limitação desse valor. Dezoito Estados fixam tetos indenizatórios, enquanto outros estabelecem a necessidade de proporção entre os danos compensatórios e os punitive damages. Além disso, as indenizações punitivas concedidas pelas Cortes americanas – fato que já ocorre há vários anos – não são mais destinadas integralmente às vítimas. Pelo contrário, como acontece em, ao menos, treze Estados, que exigem a destinação de parte do quantum a fundos públicos, grande parte dessa indenização é revertida ao Estado, como, por exemplo, em Indiana (75% da indenização). De fato, o autor da ação acaba figurando como verdadeiro ator social, representante da coletividade. Verifica-se ainda que, nos últimos 20 anos, a perplexidade e o medo existentes a respeito dos punitive damages vêm sendo refreados pelo sistema judicial, que já há algum 278 Aponta Carolina Vaz que, em algumas situações, os tribunais norte-americanos têm reconhecido a necessidade de aplicação de indenizações punitivas, mesmo em casos de responsabilidade objetiva, sobretudo quando houver colocação de produtos defeituosos ou perigosos no mercado, pelo produtor que conhece o vício ou não faz os testes de segurança necessários, demonstrando flagrante indiferença pela segurança, saúde ou bem-estar dos consumidores. In VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à Punição e Dissuasão – Os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 54. 279 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 112 tempo questionava os desvios desse instituto em relação aos princípios constitucionais, mostrando-se cada vez mais balizada e equilibrada a sua aplicação. Tome-se também por certo que um dos objetivos do tort law americano é impedir a possibilidade de visualizar uma lógica econômica, numa razão de custo/benefício, nas condutas danosas praticadas pelas grandes empresas. É justamente contra essa lógica econômica que se insurge esse sistema, ao impor indenizações que refletem não apenas uma punição ou prevenção, mas, sobretudo, que impeçam o ofensor de prevê-las, logo, de incorporá-las em seus custos fixos, a fim de considerá-las na consecução do ilícito e mesmo repassar tal custo para seus consumidores. Em vários julgados é possível perceber a aplicação dos critérios antes mencionados, assim como os tipos de casos decididos pelas Cortes americanas, na concessão de indenizações punitivas. Como exemplo de vinculação dos julgados àqueles limites traçados pelo caso Gore, é possível citar a decisão do caso Cooper Industries, Inc v. Leatherman Tool Group, Inc, a respeito de duas empresas fabricantes de ferramentas, em que foi revisada a decisão, com a conseqüente redução da indenização. A Leatherman acusava a Cooper de ter copiado uma ferramenta por ela desenvolvida, alegando violação do Trademark Act. O júri, ao analisar a questão, concedeu o valor de $ 50.000,00, a título de compensatory damages, e a cifra de $ 4.500.000,00 em punitive damages, além de proibir a Cooper de colocar a ferramenta no mercado. Por meio de decisão dividida da Suprema Corte, foi determinada a reapreciação da questão pela Corte de apelação, segundo os critérios anteriormente fixados no caso Gore, pelo excessivo valor de punitive damages arbitrado. Importante notar que foi delineada, nesse julgado, a diferenciação entre os compensatory e os punitive damages, prestando-se os primeiros a reparar perdas concretas, enquanto os segundos tratariam de instituto quasi-criminal, operado por penalidade privada, destinada à punição do lesante, como também para impedir repetições futuras desses maus procedimentos. Não apenas isso, mas a avaliação dos compensatory damages 113 seria meramente factual, ao passo que os punitive damages seriam expressão de uma condenação de natureza moral (ética). Esse julgado foi importante por ter permitido que diversos Estados mudassem seus posicionamentos, para que fossem limitadas as indenizações por punitive damages, a exemplo de Alabama, Kentucky, Novo México e Oregon280. Em outro caso, julgado em 7 de abril de 2003 pela Suprema Corte, em que eram partes State Farm Mutual Automobile Insurance Co. v. Campbell et al, e pelo qual se discutia a má-fé e perturbação emocional intencional causada pela seguradora aos consumidores, o júri conferiu indenização de $2.6 milhões em compensatory damages e $145 milhões em punitive damages. Em grau de recurso, a Corte de Apelação reduziu os valores para $1 milhão em compensatory damages, e $25 milhões em punitive damages. Ao apreciar a questão, a Suprema Corte verificou a violação do Due Process Clause, por meio também da utilização dos parâmetros traçados no caso Gore, assentando a necessidade de correlação entre os compensatory damages e os punitive damages281. Além dessas decisões que se consubstanciaram nos limites traçados pelo caso Gore, outros casos apontam claramente os mecanismos e limites utilizados para a fixação dos punitive damages, como indicam Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler 282: 1) Ford Corporation v. Grimshaw (1981) – Um automóvel produzido pela Ford, de nome Pinto, explodiu, após colisão com outro veículo, ocasionando a morte de três ocupantes. Constatou-se, posteriormente, que, embora a Ford tivesse acesso a um novo design, que faria decrescer a possibilidade de seu veículo explodir em eventuais colisões, e que teria custado a ela $ 11,00 por automóvel, preferiu utilizar-se do antigo sistema de combustível 280 WINTERSHEIMER, Donald C. Does cooper industries v. leatherman tool group, inc. require denovo https://litigationreview by state appellate courts?. In essentials.lexisnexis.com/webcd/app?action=DocumentDisplay&crawlid=1&srctype=smi&srcid=3B15&doct ype=cite&docid=59+N.Y.U.+Ann.+Surv.+Am.+L.+357&key=9dbf66443fc12f0f4fd10e987883a41d, consultado em 17/6/2012. 281 Ficou decidido que “To determine a defendant’s reprehensibility–the most important indicium of a punitive damages award’s reasonableness–a court must consider whether: the harm was physical rather than economic; the tortious conduct evinced an indifference to or a reckless disregard of the health or safety of others; the conduct involved repeated actions or was an isolated incident; and the harm resulted from intentional malice, trickery, or deceit, or mere accident.” In http://www.law.cornell.edu/supct/html/011289.ZS.html. 282 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., pp. 19/21. 114 que agravava esse risco de explosão. Isso ocorreu mesmo depois da apresentação de uma análise que demonstrava que a adoção do novo design salvaria por volta de 180 vidas. Ao tomar conhecimento do caso, o corpo de jurados decidiu pela condenação da Ford em compensatory damages, estipulados em $ 560.000,00 para uma das famílias e $ 2.500.000,00 para a outra, assim como ao pagamento de $ 125.000.000,00 em punitive damages, por considerar que o comportamento da empresa havia sido altamente reprovável. Constatou-se, ao longo do processo, que a Ford havia efetuado uma análise fria do custo/benefício que iria ter ao realizar essa modificação do design, baseando-se apenas na estatística de quantas pessoas ingressariam com demandas em juízo para serem ressarcidas, em caso de algum dano resultante dessa falha, deixando de lado o custo social que essa modificação traria. O juiz presidente acabou reduzindo essa verba indenizatória para $3.5 milhões, como condição para poder negar o pedido de realização de um novo julgamento. Dois anos após, essa decisão foi confirmada pela Corte de Apelação, em todos os aspectos, tendo sido denegado pela Suprema Corte o pedido de audiência feito pela Ford283. Adverte Paula Meira Lourenço que esse caso constitui um dos mais importantes marcos da jurisprudência norte-americana, na medida em que abriu a porta à condenação de punitive damages em casos de responsabilidade civil do produtor, sempre que este tiver agido com negligência grosseira ou com indiferença à segurança do consumidor. Além disso, após esse caso, os consumidores americanos passaram a confiar aos punitive damages a tutela do direito à vida e à integridade física, porquanto nem a atribuição de uma compensação pecuniária pelos danos sofridos pelos lesados, nem as normas legais acerca da segurança dos produtos seriam suficientes para dissuadir os agentes económicos de descumprirem a lei284 2) Texaco x Pennzoil (1984) – Nesse caso, a Pennzoil negociava com os principais acionistas da Getty Oil, para se tornar, juntamente com Sarah C. Getty Trust, um dos únicos acionistas daquela empresa. Foi, inclusive, firmada uma carta de intenções entre as partes, pela qual se estabeleceu o valor de 110 dólares por ação da Getty Oil. No dia 4 de janeiro, foi anunciada ao público a existência desse referido acordo. Ocorre que a Texaco, 283 In http://www.wfu.edu/~palmitar/Law&Valuation/Papers/1999/Leggett-pinto.html, consultado em 10/4/2012. 284 LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória. 115 principal concorrente da Pennzoil, começou a negociar secretamente com os acionistas da Getty Oil, tendo sido ajustado entre essas partes o pagamento de 128 dólares por ação. Assim, em 6 de janeiro, foi lançada uma nota à imprensa, assinada pela Texaco, que anunciava o acordo firmado entre ela e os acionistas da Getty Oil. Por conta disso, a Pennzoil ingressou com ação contra a Texaco baseada no tort of induction into breach of contract (responsabilidade pela indução à violação de contrato), tese que foi acolhida, tanto em razão da falha na estratégia da assessoria jurídica da empresa, ocasionando na condenação da Texaco em 7.53 bilhões de dólares a título indenizatório, acrescida da verba de 3 bilhões de dólares em punitive damages. Ficou evidenciado que a Texaco nem conseguiria pagar aquele valor de 128 dólares por ação, o que demonstrava a sua inequívoca má-fé em atrapalhar aquela outra transação. A Suprema Corte do Texas, ao analisar o recurso da Texaco, acabou reduzindo a indenização dos punitive damages para 1 bilhão de dólares, resultando, então, numa condenação de 8.53 bilhões de dólares. Após três dias da publicação dessa decisão, a Texaco apresentou pedido de falência285. 3) Midler v. Ford Motor Co (1988) – A cantora e atriz Bettie Midler recusou-se a participar de um anúncio publicitário da Ford, em razão dos valores que lhe foram oferecidos. No entanto, a Ford acabou contratando uma sósia da atriz, que realmente fez com que o público imaginasse ser a própria Bettie Midler. O Tribunal, ao decidir o caso, considerou ter ocorrido um contractual bypass, em razão de ter a Ford escolhido utilizar, abusivamente, a imagem de Bettie Midler, sem celebrar qualquer contrato com a cantora, argumentando, ainda, que a voz, assim como a face, são elementos identificadores da pessoa protegidos pela lei286. 4) Browing-Ferris Industries of Vermont v. Kelco Disposal Inc. (1989) – Após a empresa Browing-Ferris tentar excluir do mercado a Kelco Disposal, foi reconhecido pelas cortes de primeiro grau e de apelação uma conduta ilícita relacionada às práticas contratuais. Como a Browing-Ferris agiu com o único propósito de causar um dano à Kelco, sofreu condenação no valor de $ 6.000.000,00 em punitive damages e $ 51.146,00 em compensatory damages. Embora a Browing-Ferris tenha recorrido à Corte de apelação, sob 285 In http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=us&vol=481&invol=1, consultado em 15/6/2012. 286 In http://www.scribd.com/doc/31160187/16/Midler-v-Ford-Motor-Company, consultado em 30/10/2012. 116 a alegação de valores excessivos da condenação, decidiu-se que os argumentos utilizados pelo júri fundamentavam a quantia indenizatória e punitiva287. 5) Pacific Mutual Life Insurance v. Cleopatra Haslip et al. (1991) – Após um contrato de seguro-saúde ter sido resilido, em virtude de apropriação dos prêmios pagos pelo contratante, por um indivíduo chamado Ruffin e outro, que eram os agentes que trabalhavam para a operadora de seguros Pacific Mutual Life Insurance e outra seguradora, houve condenação, a título de compensatory e punitive damages, não apenas ao agente de seguros, em razão da fraude que cometeu, mas também contra a Pacific Insurance, por sua responsabilidade pelos atos de seus empregados, em valor superior a $ 1,000,000288. O valor arbitrado por punitive damages foi fixado ao equivalente a quatro vezes a quantia pedida pela autora da ação por compensatory damages. 6) TXO Production Corp. V. Alliance Resources Corp. (1993) – Esse foi um importante paradigma relativo aos punitive damages, na medida em que foi formulada de maneira mais ampla a questão de sua constitucionalidade. Tratava-se o caso de um acordo firmado pelas duas empresas, cujo fim era a extração de petróleo, pela TXO, de uma área arrendada pela Alliance. Verificou-se no processo que a TXO adotou comportamento fraudulento, no curso da execução do contrato, com a única finalidade de acrescentar uma modificação no acordo, por meio de adições que só a ela favoreciam. Houve, assim, condenação da TXO de $ 19.000,00 em actual damages e de $ 10.000.000,00 em punitive damages. Ao final, em que pese a indenização punitiva ter sido estipulada em 526 vezes o valor da verba compensatória, a Suprema Corte de Virgínia decidiu que ”It is appropriate to consider the magnitude of the potential harmthat the defendant's conduct would have caused to its intended victim if the wrongful plan had succeeded, as well as the possible harm to other victims that mighthave resulted if similar future behavior were not deterred”289. A principal razão adotada, portanto, para a fixação do valor, foi a má-fé da TXO. Além disso, a Suprema Corte definiu como deveria proceder o juiz, ao analisar caso que envolvesse punitive damages290. Admite-se, então, a variação dos valores indenizatórios a partir da 287 In http://supreme.justia.com/cases/federal/us/492/257/, consultado em 27/6/2012. In http://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/499/1, consultado em 16/7/2012. 289 In http://www.law.cornell.edu/supct/html/92-479.ZO.html, consultado em 11/4/2012. 290 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 20. Como destacam as autoras, a partir da leitura e interpretação do julgado, o juiz “deve colocar em evidência, diante do júri, o montante do dano concretamente realizado e a conduta lesiva do responsável do 288 117 análise da gravidade e do tipo de comportamento ilícito, devendo ser observados tais critérios para garantir a efetividade do due process. 7) Honda Motors Corp. V. Karl Oberg (1994) – Esse emblemático caso virou um precedente histórico na jurisprudência norte-americana, quando a Suprema Corte anulou a decisão da Corte estadual de Oregon, em razão de violação do devido processo legal previsto na Emenda 14 da Constituição. Verificou-se que houve uma violação ou ataque à garantia legal do direito de propriedade. Isso porque a Corte estadual havia fixado indenização milionária de punitive damages, correspondente a cinco vezes mais do que o valor destinado à reparação dos compensatory damages. Constatou-se, ainda, que o sistema legal dos punitive damages de Oregon violava o devido processo legal por não permitir a redução da indenização fixada pelos jurados, mesmo nos casos em que a condenação apresentava-se excessiva. Consignou, destarte, a Suprema Corte que os punitive damages eram uma forma perigosa de castigo, e que mereciam controle pelos tribunais, pelo evidente risco de decisões abusivas e parciais291. Verifica-se, assim, pela breve análise desses casos, que o próprio sistema norteamericano de punitive damages encontra critérios, fixados pela Constituição ou pela jurisprudência, de forma a evitar abusos e condenações excessivas. Decerto, os punitive damages, nos Estados Unidos, não se vinculam exclusivamente ao arbítrio do julgador ou se aplicam à generalidade dos casos, levando-se em consideração tanto esses critérios fixados pela Constituição e pela jurisprudência, quanto os limites de aplicação do próprio instituto. Não se pune, por exemplo, e no mais ilícito; deve tomar em consideração não somente a censurabilidade, a duração e a frequência da conduta, mas também o comportamento do responsável após o cometimento do ilícito; para fixar o montante dos punitive damages, é preciso determinar se o sujeito lesado teve uma vantagem econômica da própria conduta ilícita; assumindo os punitive damages função dissuasória, é essencial medir-lhes de modo que sejam superiores com relação a tais vantagens; em qualquer caso, deve-se considerar a situação econômica do causador do dano; outros fatores importantes para a ponderação judicial consistem nas despesas legais suportadas pelo lesado; a imposição de uma sanção penal sobre o causador do dano; a existência de outras ações pelo mesmo ilícito; a idoneidade da condenação dos punitive damages para favorecer transações equitativas e razoáveis, nos casos em que seja patente a responsabilidade do autor do ilícito”. 291 In http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=US&vol=000&invol=u10375, consultado em 27/6/2012. 118 das vezes, casos em que o que se discute é a responsabilidade objetiva do agente, na medida em que a conduta culposa não é apreciada para a atribuição da responsabilidade292. Da mesma forma, não se punem os casos em que a ação não foi acompanhada de particular gravidade, que mereça a repreensão ante o “fundado e grave juízo de reprovação” que ele acarreta. De igual sorte, o mito das indenizações milionárias já foi há muito abandonado, havendo limites para a concessão dos punitive damages que, caso não respeitados, são retificados pelas Cortes superiores. Constata-se, então, a importância que teve a evolução da jurisprudência, para que se instituíssem critérios – às vezes bastante objetivos – de fixação dos punitive damages, fazendo com que o instituto e a sua aplicação pelos Tribunais passasse a receber aceitação de seus jurisdicionados. A grande diferença entre o sistema americano e o sistema britânico está na ótica muito mais econômica que orienta a aplicação dos punitive damages no primeiro, enquanto o último se preocupa muito mais com a limitação de abusos. O fato é que, nos dois casos, o ilícito lucrativo é o principal fundamento das indenizações punitivas. Mas, “Se nos EUA se observa uma tendência de limitação dos danos punitivos, na Inglaterra, ao contrário, há um arrefecimento dos filtros de aferição”293. O que aproxima as duas escolas é, justamente, a construção de um instituto por meio de tentativas, acertos e erros, sendo clara a necessidade do estabelecimento de critérios objetivos, que norteiem a aplicação dos punitive damages, fazendo com que sejam cumpridas as suas funções, de forma a efetivamente proteger a coletividade, e não simplesmente tornar mais rico cada indivíduo que busque a condenação dos ofensores. 292 Conforme destacam Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler, nos casos de responsabilidade do produtor (products liability), em que a responsabilidade é objetiva, há aplicação dos punitive damages, quando o lesado, já ressarcido do prejuízo sofrido, comprove a particular gravidade da conduta do produtor. MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 21. 293 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 202. 119 Note-se, ainda, que alguns outros países têm adotado, pontualmente, a doutrina dos punitive damages – não utilizando, entretanto, os mesmos requisitos –, especialmente quando relacionado o caso aos meios de comunicação social, como é o caso de Alemanha e Itália. Na Alemanha, ainda que não exista previsão expressa para aplicação de uma sanção punitiva, sempre que se trata da utilização de direitos à imagem de personalidades públicas, sem sua autorização, para fins publicitários, observa-se o lucro obtido pelo agente, primordialmente se ele é superior quer à compensação atribuída ao lesado, quer ao preço do consentimento ou preço da licença (Lizenzanalogie), aplicando os tribunais indenizações com verdadeira feição de pena civil. Na fundamentação jurídica das decisões, afirma-se que importa aumentar, de forma significativa, a indenização, para prevenir a conduta (função preventiva) e punir o lesante (função punitiva)294. Por sua vez, a jurisprudência italiana tem aumentado o montante das indenizações sancionatórias ou punitivas por danos não patrimoniais sempre que ocorre a violação de direitos de personalidade através dos meios de comunicação295. Refere Paolo Gallo que o desenvolvimento da pena privada, na Itália, ocorreu somente a partir da metade da década de 70, em decorrência da expansão dos direitos da personalidade, influenciado pelo direito anglo-saxão, existindo entendimento favorável à sua utilização quando o mero ressarcimento do dano, ou a ausência de dano, ou o lucro excedente ao dano não for idôneo a desenvolver uma suficiente função de dissuasão296. Conclui Anderson Schreiber que a argumentação utilizada volta-se à tutela dos interesses da pessoa humana, argumentando-se que a proteção da pessoa, como valor prioritário do ordenamento jurídico, justifica a condenação em uma indenização adicional àquela simplesmente compensatória. Assim, a função punitiva é defendida nessas hipóteses ao argumento de que, sendo intrinsecamente grave e incalculável o prejuízo gerado pela 294 VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à Punição e Dissuasão – Os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 70. 295 LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória. 296 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p. 53/58. 120 violação de um interesse da personalidade, “a tutela reservada pelo ordenamento a tais lesões possui natureza não compensatória, mas eminentemente punitivo-satisfativa”297. Faz-se, tal como ocorre no Brasil, uma análise de funções sancionatória, satisfativa e de deterrence do dano moral, para aplicação de indenizações punitivas, no âmbito civil, valendo-se da análise da proporcionalidade ou da equidade na utilização de critérios jurídicos e, posteriormente, da valoração de suas consequências298. Na Argentina, da mesma forma, a indenização punitiva, ante a ausência de previsão legal, é autorizada por vias laterais, acrescida ao mesmo valor compensatório destinado à reparação por danos morais. Atestam os julgadores que, em algumas situações, deve ser potencializado o aspecto sancionatório do dano moral (que teria uma natureza mista: indenizatória e sancionatória, ao mesmo tempo), para que a indenização tenha um efeito exemplificador no mercado, evitando-se também a impunidade perpétua na efetivação de um efeito persuasivo299. Andou bem, ao entanto, o ordenamento argentino, ao inserir expressa previsão de indenização punitiva na lei de defesa do consumidor, criada em 2008 (Ley 26.361300 – LDC), facultando ao julgador, a partir da análise da gravidade da conduta do fornecedor e demais circunstâncias relacionadas ao caso, a imposição de uma multa civil. 3.2 OS SOCIETAL DAMAGES 297 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 201/202. 298 BROGGINI, Gerardo. Compabilità di Sentenze Statunitensi di Condanna al Risarcimento di “Punitive Damages” com il Dirito Europeo Della Responsabilità Civil, p. 483 e 487. In BONELL, Joachim et alli. Europa e diritto privato. Milão: Giuffrè, Rivista trimestral, nº 45, 1998, pp. 479/507. 299 CHAMATROPULOS, Demetrio Alejandro. Los Daños Punitivos en la Argentina: Legislación. Jurisprudencia. Doctrina. Buenos Aires: Errepar, 2009, pp. 43/46 300 “Artículo 52 – Al proveedor que no cumpla sus obligaciones legales o contractuales con el consumidor, a instancia del damnificado, el juez podrá aplicar una multa civil a favor del consumidor, la que se graduará em función de la gravedad del hecho y demás circunstancias del caso, independientemente de otras indemnizaciones que correspondan. Cuando más de um proveedor sea responsable del incumplimiento responderán todos solidariamente ante el consumidor, sin perjuicio de las acciones de regresso que les correspondan. La multa civil que se imponha no podrá superar el máximo de la sanción de multa prevista em el artículo 47, inciso b, de la ley”. 121 Atualmente, nos EUA, discute-se os punitive damages a partir de um viés de “social harm measure”301, vislumbrando-se uma nova categoria de dano, denominada por Catherine M. Sharkey de societal damages302, delineada entre as categorias dos punitive damages e dos compensatory damages. A teoria do societal damage estaria presente quando o dano provocado à vítima ultrapassasse a sua esfera pessoal, pulverizando-se num grupo de indivíduos ou na sociedade, o que levaria a uma compensação social, fazendo valer também as funções de punição e dissuasão, aproximando, destarte, o Judiciário do Legislativo, no sentido de que a lei é aplicada em benefício de todos, o que seria alcançado pela indenização, ou melhor, pela forma como ela é efetivada: em benefício coletivo e não individual. Afirma Catherine M. Sharkey que a figura do societal damage é uma categoria de dano escondida dentro dos punitive damages, mas que, pela sua importância e abrangência, deveria ser vista agora de forma explícita303. Esse dano poderia restar configurado em duas distintas situações: 1) um único ato ilícito que afeta múltiplas vítimas, ou 2) a prática de um padrão de ato ilícito, uma reiteração danosa, que também afeta diversas pessoas, resultando, ambos os casos, na majoração da indenização304. Ou seja, compensar-se-iam virtualmente aqueles que também sofreram com os danos discutidos em processo do qual não fizeram parte. Seria possível, grosso modo, dividir os societal damages em duas categorias: 1) danos específicos, quando possível identificar-se os indivíduos atingidos; e 2) danos difusos, quando afeta a sociedade. A categoria dos danos difusos primaria pela proteção do bem-estar social305. Criar-se-ia, assim, um fundo de societal damages, por meio do qual outros indivíduos que sofressem o dano pudessem ser ressarcidos, se assim o decidissem. 301 BUDYLIN, Sergey. Punitive Damages as a Social Harm Measure:Economic Analysis Continues. In http://works.bepress.com/sergey_budylin/1, consultado em 30/3/2013. 302 SHARKEY. Catherine M. Punitive damages as societal damages. In Yale Law Journal, nov./2003. 303 SHARKEY. Catherine M. Punitive damages as societal damages. In Yale Law Journal, nov./2003. 304 SHARKEY. Catherine M. Punitive damages as societal damages. In Yale Law Journal, nov./2003. 305 SHARKEY. Catherine M. Punitive damages as societal damages. In Yale Law Journal, nov./2003. 122 O viés dos societal damages voltar-se-ia para restaurar a ligação entre a compensação e a dissuasão, além de colocar uma ênfase maior nas consequências distributivas. Avançar-se-ia também em relação aos ideais de justiça corretiva, na medida em que se permitiria a distribuição dos punitive damages para todos aqueles que sofreram danos iguais ou similares, e não mais somente para a vítima. 3.3 AS FAUTES LUCRATIVES O direito francês, atento a essa nova configuração social e os problemas dela decorrentes, não ficou para trás da tradição da Comonwealth. Isso porque foi apresentado, em setembro de 2005, ao Ministro da Justiça, o Anteprojeto de Reforma do Direito das Obrigações, que traz novos instrumentos de proteção relacionados à responsabilidade civil, destacando-se aquele que procura reprimir a prática de “ilícitos lucrativos”, ou seja, aquele cálculo, feito especialmente pelas empresas, do lucro obtido, ainda que pagas as indenizações oriundas do dano causado; em outras palavras, a opção pela prática lesiva, em virtude do evidente lucro que ela proporciona; ou “apesar dos danos e juros que o responsável é condenado a suportar, e que são calcados nos prejuízos suportados pela vítima, deixam a seu autor uma margem de benefício suficiente para que ele não tenha nenhuma razão para deixar de cometê-la”306. Em presença de falhas muito graves ou que revelem inconsciência total do perigo, a privação de lucros teria caráter realmente punitivo, de tal modo que, se a falta é lucrativa para o agente causador do dano, ficaria confiscado esse seu lucro, realizado de forma ilícita307. 306 [...] malgré les dommages et intérêts que le responsable est condamné à payer - et qui sont calquées sur le préjudice subi par la victime - laissent à leur auteur une marge bénéficiaire suffisante pour qu’il n’ait aucune raison de ne pas les commettre. In CHANIAL, Jean-Baptiste; MASSOT, Pierre. L’aggravation des sanctions pénales en matière de contrefaçon: coup dans l’eau dans la lutte contre la contrefaçon?. In http://www.legalbiznext.com/droit, consultado em 2/7/2012. 307 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 55. 123 Com efeito, as indenizações punitivas, na prática, nunca existiram no direito francês, tendo sempre a Corte de Cassação insistido no princípio do restitutio in integrum. Como visto, na família da common Law e nos ordenamentos jurídicos vinculados à tradição romano-germânica, as penas privadas trilharam caminhos distintos. Nessa última, que previa uma rigorosa separação entre responsabilidade civil e penal, sobretudo após a edificação do Code Civile, as penas privadas eram enxergadas como “resquícios da barbárie, entrando em desuso”308. Ocorre que, atualmente, evidencia-se a insuficiência deste princípio no âmbito de uma responsabilidade civil socializante. Até mesmo esse sistema jurídico francês, tão apegado aos limites rigorosos da responsabilidade civil, acaba se rendendo a essa evidente necessidade de ampliação. Fato curioso, que se percebe na França, refere-se à desnecessidade de o magistrado justificar a quantificação dos danos concedidos em casos de responsabilidade civil. De fato, a Corte de Cassação não pode controlar essa discricionariedade do juiz, podendo atuar, apenas, quando violado o princípio da reparação integral. Dessa forma, torna-se tormentoso o trabalho de verificação da verdadeira intenção da condenação por indenização: se meramente restitutória ou com caráter de punição ou de prevenção, embora ainda apareça denominada como uma restituição, nesses últimos dois casos. O fato é que, em estudo realizado em 1983, verificou-se que as indenizações compensatórias em casos de morte decorrente de conduta culposa do réu eram, em sua média, maiores do que aquelas atribuídas aos casos de responsabilidade objetiva, revelando, portanto, a verdadeira atuação da magistratura francesa em, mesmo sem regras permissivas, extravasar o seu desejo de sanção das pessoas que teriam causado danos de forma culposa, ou se enriquecido com o ato lesivo, mesmo que irrelevante a verificação da culpa309. Mesmo antes do anteprojeto de reforma do Direito das Obrigações, por conseguinte, observava-se a tendência da jurisprudência em aplicar indenizações punitivas para os casos de maior gravidade. 308 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70. 309 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 204. 124 Em razão do princípio da restituição integral, as indenizações punitivas vinham mascaradas sob a forma de dano moral, que acabavam assumindo, especialmente nos casos de pessoas jurídicas, verdadeira função de prevenção. Havia – e isso ainda ocorre – uma punição velada, porquanto não admitida a superação da barreira do restitutio in integrum. Agora, com o Anteprojeto Catala, percebe-se o maior avanço do direito francês em relação à internalização e permissão das indenizações punitivas, trazendo-se, para este ordenamento consular, a ideia de punição contra as fautes lucratives (ilícitos que geram lucros). Certamente, o artigo destinado à repreensão da “culpa lucrativa” ou “ilícito lucrativo” (art. 1371310) merece atenção, na medida em que determina, primeiramente, que se volte para a conduta do ofensor, tanto para qualificá-la como culposa (culpa manifestamente deliberada), quanto para que seja verificado o lucro obtido (uma culpa voltada à intenção de lucrar), consubstanciando, destarte, os ensinamentos apontados pelas doutrinas americana e inglesa. Na sequência, constata-se a incorporação da moderna tendência norte-americana de autorizar o julgador a destinar, de acordo com a sua discricionariedade, parte da indenização ao Poder Público (ou a um fundo ou à Fazenda Pública). Um terceiro ponto de extrema importância que se tira do mencionado artigo referese à fundamentação que deve preceder a aplicação das indenizações punitivas, para que haja segurança jurídica na sua utilização, de modo que o instituto não apresente, logo em seu nascimento, fragilidade. O mesmo citado artigo deixa clara a intenção da lei em separar essa indenização punitiva de todas as outras verbas eventualmente recebidas pela vítima, além de ter que apresentar razões específicas para ser aplicada. Por fim, o mesmo artigo prevê a impossibilidade de securitização dos riscos derivados da indenização punitiva, como já era tendência na França e nos EUA, para os 310 “Art. 1371: A person who commits a manifestly deliberate fault, and notably a fault with a view to gain, can be condemned in addition to compensatory damages to pay punitive damages, part of which the court may in its discretion allocate to the Public Treasury. A court’s decision to order payment of damages of this kind must be supported with specific reasons and their amount distinguished from any other damages awarded to the victim. Punitive damages may not be the object of insurance”. 125 casos de indenização compensatória. O intuito é justamente não permitir que as empresas internalizem esse custo, tornando-o previsível e transformando-o em despesa fixa, por meio de cálculos atuariais. A referida norma, portanto, “torna praticamente real uma concepção que já vinha subliminar há certo tempo, de que a responsabilidade civil tende a se tornar exclusivamente punitiva”311. Essa evolução do Direito francês, especificamente quanto à responsabilidade civil, em verdadeira superação a antigos paradigmas, parece ser a tendência que será doravante seguida pelos demais ordenamentos jurídicos, que se preocupam em encontrar novas ferramentas para a repreensão de condutas que causam mal a toda a coletividade. De fato, o Direito não pode mais ser visto de maneira atômica, na figura de cada indivíduo, mas no interesse de toda a sociedade. Como revela Geneviève Viney, esboça-se hoje nos países de direito escrito um movimento em favor da admissão, em certas áreas e com a adoção de certas precauções, da privação de lucros com caráter não reparatório312. 311 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 206. VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 55. 312 126 CAPÍTULO IV O DANO SOCIAL A partir de toda a análise anteriormente realizada, a respeito dos instrumentos de repressão e prevenção utilizados no Brasil e também por diferentes culturas jurídicas para combater essas novas categorias de danos, especialmente aqueles que atingem toda a sociedade, direta ou indiretamente, partir-se-á para a análise da necessidade de reconhecimento de uma nova categoria de lesão, ponderando-se se é possível a sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, se os instrumentos por ela fornecidos seriam suficientes para conter esses danos de massa e, por fim, se é possível admitir a sua existência. Parece que o estudo já realizado sobre os instrumentos que poderiam ser utilizados para a reversão dessas situações danosas mostrou que, atualmente, os mecanismos de proteção são insuficientes, sendo necessária a adoção de medidas para ativar novamente o bem-estar de uma sociedade claramente angustiada. Explica Yussef Said Cahali que o Direito vem passando por profundas transformações, sintetizadas pela palavra “socialização”, que traduz o impacto da revolução tecnológica em geral e das alterações havidas no tecido social, conduzindo esse mesmo Direito ao primado do coletivo sobre o individual313. Não é possível, portanto, enxergar o Direito sem apreender as transformações coletivas operadas a uma velocidade antes não imaginável. Como afirma Geneviève Viney, uma das tendências principais da responsabilidade civil, hoje, refere-se à organização de um sistema de indenização próprio para o combate ao que denomina “danos de massa”, figura ainda não bem assimilada pelo vocabulário 313 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 352. 127 jurídico, mas que define os danos devidos a uma causa única que atingem simultânea ou sucessivamente grande número de pessoas314. Embora o termo “dano de massa” pareça adequado, a nomenclatura “dano social” reflete melhor o significado que se busca neste estudo, querendo significar os danos, individuais ou coletivos, que irradiam os seus efeitos sobre toda a coletividade, o que passará a ser, doravante, analisado. 4.1 O CONCEITO DE ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO Antonio Junqueira de Azevedo, por meio de parecer publicado originalmente na Revista Trimestral de Direito Civil, ano 5, v. 19, jul-set, em 2004, trouxe ao Brasil, pela primeira vez, o que resolveu chamar de “dano social”, elencando-o como uma nova categoria de dano na responsabilidade civil. Com efeito, a preocupação do autor debruçava-se na incansável luta dos juristas brasileiros – para ele, um tanto quanto vencidos pelo cansaço – em traçar critérios unívocos para a quantificação dos danos morais. A dificuldade, conforme revelava Antonio Junqueira de Azevedo, cingia-se – e é o que ainda ocorre – à falta de acordo entre os estudiosos do direito sobre os exatos fundamentos da responsabilidade pelos danos morais, ou melhor, a dificuldade em explicar a indenização advinda dessa modalidade de dano somente como uma espécie de compensação pelo sofrimento psíquico tido pela vítima do dano e lesões a seus direitos personalíssimos ou se também comportaria essa figura uma punição ao agente ofensor (punitive damages) que, segundo a doutrina e a jurisprudência, ora perfaz o papel de efetiva pena, ora de dissuasão ou desestímulo à reiteração da conduta. Inicialmente, por meio de diversos artigos pinçados do Código Civil, o autor demonstrou não haver mais como conceber a tradicional separação entre direito civil e direito penal, pela qual o primeiro ficaria encarregado da reparação, enquanto o último se 314 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 51/52. 128 voltaria à questão da punição. Em diversas passagens do Código Civil é possível mesmo encontrar o emprego da palavra pena315, não se admitindo, portanto, que o direito civil não se preocupa também com punições316. Mas, mesmo reconhecida a intenção do legislador em punir em determinados casos, não se permitiriam acréscimos à indenização por dano patrimonial ou moral, na medida em que ela ocorre no limite do dano, nos termos do artigo 944 do Código Civil. No rigor da Lei, portanto, ao dano moral não se poderia atribuir um plus indenizatório, referente a uma punição ou dissuasão do agente lesivo. Tanto porque não guardam essas funções relação com o lesado, mas sim com o causador do dano, além de não servirem à indenização dos danos sofridos pela vítima. No entanto, a solução encontrada pelo jurista foi o reconhecimento de uma nova categoria de dano: o dano social. Notadamente, o juiz não precisaria mais se ater àquela clássica dicotomia dano patrimonial-dano moral, na medida em que o artigo 944 do Código Civil limita a indenização à extensão do dano, mas não impede o reconhecimento de novos tipos de dano. Essa nova modalidade de dano, que reflete uma preocupação coletiva e sacramenta a noção de função social que a Responsabilidade Civil atualmente assume, fundada no solidarismo social, referir-se-ia, segundo Antonio Junqueira de Azevedo, ao prejuízo sofrido pela coletividade em geral, caracterizado pelo rebaixamento do patrimônio moral, especialmente em razão da inobservância do dever de segurança, pela ação praticada com dolo ou culpa grave pelo lesante, como também pela diminuição da qualidade de vida e bem-estar da população, alcançada mediante condutas reprováveis e negativamente exemplares. 315 V.g. o artigo 1.993, que se refere à pena cominada pelo artigo 1.992, nos casos em que o herdeiro sonegador perde o direito à herança; ou o artigo 941, quando menciona “as penas” arroladas nos artigos 939 e 949, para o credor que cobra o devedor antes do vencimento da dívida. 316 Em vários artigos, o Código Civil, em que pese abstenha-se de utilizar a palavra “pena”, prevê sanções como multas, exclusão da sucessão, deserdação., v.g. do artigo 608, que prevê situações de verdadeira dissuasão do agente causador do dano: “Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”. 129 A esse dano estaria embutida a pena que deveria revestir a indenização relacionada às condutas reprováveis, que atingem a sociedade, “num rebaixamento imediato do nível de vida da população”317. Essa pena privada ora cumpriria uma função punitiva, ora se referiria a um desestímulo do lesante e dos demais agentes causadores do mesmo dano. Punir-se-ia, consequentemente, um fato passado e coibir-se-ia um comportamento futuro (punição x prevenção). Neste ponto, surge uma objeção à aplicação do dano social, conforme admitido pelo próprio autor da teoria, revelada pela sua suposta limitação aos casos de responsabilidade subjetiva, já que necessária a análise da conduta do agente. No entanto, defendia ele que, mesmo nos casos de responsabilidade objetiva, poderia o juiz proceder ao exame do dolo ou da culpa grave, já que a legislação, ao criar essa modalidade de responsabilização, não eliminou aquela atrelada ao subjetivismo, podendo ser cumulada uma a outra como causa de indenização. Não obstante, se a finalidade da indenização é só a dissuasão, desnecessária qualquer análise de dolo ou culpa grave. Superada essa questão, o citado autor teorizava, então, que o dano social teria configuração a partir de uma quebra grave do dever de segurança ou da prática de uma conduta negativamente exemplar. Constatado esse dano, recompõe-se à sociedade aquilo que dela foi retirado, por meio de indenização severa. Essa quebra do dever de segurança representaria um evidente rebaixamento do nível de qualidade de vida da coletividade, na medida em que uma sociedade poderia ser mensurada em melhor ou pior de acordo com o nível de seguridade apresentado: quanto mais segurança, melhor a sociedade e vice-versa. Isso porque a obrigação de segurança, antes vista como resultante de contrato, por cláusula explícita ou implícita, assumiria hoje, segundo o autor, condição de obrigação autônoma, de forma tal que, até mesmo em relações alheias a um contrato, em que uma pessoa tenha poder físico sobre a outra, estaria presente esse dever de segurança, de cuidado (v.g. os contratos de transporte totalmente gratuitos, em que o transportador é 317 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 380. 130 responsável pelos danos ocorridos no percurso, ou em situações em que não há absolutamente contrato, como a do visitante que escorrega no saguão de entrada de um prédio de escritório)318. Destarte, se ocorresse lesão praticada por alguém, especialmente à integridade física e psíquica de outrem, em que reconhecida conduta gravemente culposa ou mesmo dolosa, restaria configurado não apenas dano às esferas patrimonial e moral do lesado, mas um dano à sociedade como um todo, acarretando responsabilidade do agente à reparação de todo o prejuízo verificado. De fato, essa reparação pelo dano social faria as vezes de punição (pena), mas, na realidade, não passaria de reposição daquilo de que a sociedade efetivamente foi privada, com o intuito de restauração do “nível social de tranqüilidade diminuída pelo ato ilícito”319. Nessa mesma esteira, a partir da mesma linha de raciocínio, os atos negativamente exemplares, que rebaixam o nível da qualidade de vida da sociedade – e que, por isso mesmo, não devem ser repetidos –, seriam passíveis de configurar também esses danos sociais. Esses atos negativamente exemplares, segundo o autor, seriam aqueles que, vistos sob a ótica do homem comum da sociedade, seriam sempre rejeitados e repudiados (deverse-ia indagar o seguinte para a sua caracterização: “Imagine se todas as vezes fosse assim!”). Com efeito, a permissão de práticas dessa natureza deveria ser afastada, na medida em que causam um rebaixamento do nível coletivo de vida, como é o exemplo da companhia aérea que atrasa reiteradamente os seus vôos ou do artista que, vinculado por contrato a uma determinada marca, para representá-la em campanhas publicitárias, desonra-o, injustificadamente, para, recebendo valores mais vultosos, aparecer em publicidade de marca da empresa concorrente. 318 319 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil..., p. 381. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil..., p. 381. 131 Nessas hipóteses, a ação individual da vítima contra o ofensor certamente levaria ao reconhecimento dos danos patrimoniais e morais advindos dessa lesão. Mas isso não seria suficiente para impedir a imitação da conduta danosa por outro agente ou mesmo a reiteração do ato pelo mesmo causador desse dano, que, a olhos vistos, diminui a qualidade de vida e bem estar da sociedade, que antes apresentava expectativa legítima de que os compromissos firmados seriam cumpridos, mas, com a adoção de expedientes tão odiosos, passaria a viver na opressão dolorosa do imprevisível. Certamente, o pagamento somente das perdas e danos realizada pelo agente ofensor levaria à falta de conseqüência e reprovação do comportamento inadequado, com o conseqüente estímulo ao descumprimento dos contratos, fato que ocorre frequentemente na sociedade e acaba por diminuir o bem-estar coletivo. Necessária seria, por esses motivos, a imposição de uma sanção. Diante dessas duas vertentes de incidência de danos sociais, aplicar-se-ia indenização punitiva e acréscimo dissuasório. Ou seja, penalizar-se-ia o fato passado e desestimular-se-ia a adoção de um comportamento futuro. Ter-se-ia, então, punição de um lado e prevenção do outro, evidenciando-se, assim, os papéis do dano social de punir e prevenir, cabendo ao julgador discriminar a que título as verbas indenizatórias seriam aplicadas. É importante ressaltar que, para o autor, o reconhecimento do dano social seria feito em um dissídio individual, carecendo de propositura de ação civil pública pelo parquet, que já se encontra extremamente assoberbado e não consegue fazer frente a todas as mazelas da população. E é justamente nesse aspecto que o autor relata uma grande dificuldade relacionada à identificação do destinatário da indenização: se deveria ela ser entregue à vítima que promoveu à ação ou a um fundo, como nos casos de danos ambientais. Para Antonio Junqueira de Azevedo, todo o valor relativo à indenização do dano social deveria ser destinada à vítima que pleiteou a ação de reparação, per ter sido ela 132 quem laborou no processo, que enveredou os esforços para o reconhecimento do prejuízo sofrido pela sociedade. Então, nada mais justo que obter a recompensa de seu trabalho. Dessa forma, a vítima do dano, autora da ação, funcionaria como um defensor da sociedade, como um promotor público-privado, figura conhecida no direito norteamericano, nas ações de punitive damages, como private attorney general. A indenização, portanto, serviria não apenas para remunerar o trabalho do indivíduo que exerceu um munus público, mas também como forma de estímulo das ações promovidas em benefício da sociedade, um “incentivo para um aperfeiçoamento geral”320. 4.2 POR UMA BREVE ANÁLISE FILOSÓFICA E SOCIOLÓGICA DA QUESTÃO Antes de se adentrar na discussão central desse trabalho, e analisar se, no cenário atual da civilização e da Responsabilidade Civil, seria realmente importante o reconhecimento de uma nova categoria de dano, mostra-se primacial o entendimento, de forma breve, sobre a parte filosófica detrás do surgimento da sociedade e legitimação de um Estado representante do povo, para perceber a importância do combate às atividades danosas à coletividade, que acabam por desmoralizar o poder deste mesmo Estado, num regresso à origem do indivíduo vivendo isoladamente, num estado de guerra permanente, assim também uma breve visão sociológica e psicológica dos efeitos danosos que as práticas atuais causam no homem. O filósofo inglês Thomas Hobbes, por meio de sua famosa – e muitas vezes mal interpretada321 – obra o Leviatã, parece ter sido o primeiro a conseguir explicar adequadamente o estado de natureza do indivíduo, que o leva a conviver socialmente. A primeira coisa a ser registrada quanto ao estado de natureza idealizado por Hobbes é a igualdade. Os homens, segundo a sua concepção, são iguais tanto em 320 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil..., p. 383. Embora muitos creiam que pregava ele o regime absolutista do Estado, o absolutismo pretendido por Hobbes era do Estado em função de seus indivíduos, diferente do regime totalitarista. 321 133 capacidade322 quanto em esperança de satisfação de seus desejos. Ou seja, o homem não é apenas capaz de realizar aquilo que qualquer homem poderia, mas também possui a esperança de que consegue alcançar os mesmos fins de seus pares. Disso se depreende a impossibilidade de evitar conflitos, “pois, resultando da igual capacidade uma igual expectativa, os homens que em muitos casos têm o mesmo desejo estarão em choque, porquanto nem sempre é possível compartilhar ou repartir o consumo do que se deseja”323. Este querer conjunto de algo desejado por dois homens ao mesmo tempo acaba levando um a querer a destruição do outro. Outro ponto de semelhança entre os homens é a igualdade do medo que sentem de uma morte violenta causada por outrem. Por ser a autopreservação um instinto básico do ser humano, impõe-se a exigência de antecipação dessa morte violenta em mãos alheias através da força e da astúcia. É mediante a força e a astúcia que se pode fazer frente a um estado em que a ameaça de morte violenta em mãos alheias está sempre presente. Verifica-se, dessa forma, que o homem é um ser que vive em desconfiança, marcada por essa constante competição com o outro, e a busca da glória. Essas três características do homem (busca pela competição, desconfiança e tentativa de glória) são os três principais pilares da discórdia. Os homens, seres competidores, querem o lucro e a glória; querem ser “senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens”324. Por isso que, nesse estado natural vislumbrado por Hobbes, o homem, visando defender os seus próprios interesses, deve atacar o outro, justamente para a obtenção da segurança necessária. 322 Não quer isso significar que os homens sejam fisiologicamente iguais, dotados do mesmo poder físico ou intelectual, porquanto ser possível reconhecer indivíduos dotados de mais desenvolvidas faculdades do corpo ou do espírito. A igualdade referida por Hobbes diz respeito à possibilidade de realização de coisas iguais, como matar, por exemplo. Essa fundamental igualdade é justamente verificada na possibilidade de um homem poder matar o outro, pouco importando que seja mais fraco, já que é possível compensar essa deficiência por meio de artefatos ou alianças com outros homens. 323 PAVÃO, Aguinaldo. Apontamentos sobre o Estado de Natureza em Hobbes E Locke. In Dissertatio – Revista de Filosofia, número 9, Universidade Federal de Pelotas, Departamento de Filosofia, http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/antigas/dissertatio9.pdf, consultado em 8/5/2012, p. 75. 324 HOBBES DE MALMESBURY, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1997, cap. XIII, p. 109. 134 Como ser que sempre almeja a glória, o homem necessita da reputação, também para afastar os outros que têm similares interesses. Essa condição natural da humanidade (natural condition of mankind) de Hobbes leva a crer que os homens, quando vivem sem um poder comum que mantenha o respeito mútuo, encontram-se numa condição de guerra de todos contra todos. Não uma guerra determinada pela luta, “mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida”325, ou seja, uma guerra virtual. Nessa situação, não há espaço para a indústria, porquanto incerto o seu fruto, nem cultivo da terra, navegação ou mercancia marítima, conhecimento científico, artístico, sociológico etc., já que apenas existe um constante temor e perigo de morte violenta326. Partindo-se dessa presunção de que o homem, em seu estado natural, vive, na realidade, em constante estado bélico, de se reconhecer que a condição de vida só pode ser miserável. De fato, com a inexistência de uma sociedade, aliada ao incessante medo de morte violenta, “a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”327. O fato é que, sendo o homem um ser que procede por cálculos que levam em conta a sua autoconservação, o estado de natureza não lhe convém. É racional que acabe ele buscando a paz, pois se os homens são naturalmente iguais, o estado de guerra não pode terminar pela vitória de um indivíduo sobre o outro. Assim, a única alternativa que possibilita a garantia de segurança está simplesmente na negação do estado de guerra. Em razão do zelo extremado que os homens têm com a sua própria conservação, apresenta-se indesejável a insegurança do estado de natureza. Pondera, assim, Thomas 325 HOBBES DE MALMESBURY, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1997, cap. XIII, p. 109. 326 A essa conclusão acaba chegando também Jean Jacques Rousseau, em sua obra “Contrato Social”. A diferença reside no ponto em que, segundo o autor, em estado de natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, pelo grito e pelo canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: "É meu". A divisão entre o “meu e o teu”, isto é, a propriedade privada, dá origem ao estado de sociedade, que corresponde, agora, ao estado de natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos. In CHAUÍ, Marilena. Filosofia. Ática: São Paulo, 2000, p. 220. 327 HOBBES DE MALMESBURY, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1997, cap. XIII, p. 109. 135 Hobbes, que, sem um superior comum na terra que garanta a paz, os homens viverão num estado perpétuo de guerra. Este estado de guerra não significa o conflito empírico, mas a disposição para tal enquanto não existe outra garantia de segurança, exceto a força e a astúcia que cada um pode empregar por conta própria em seu benefício328. Por isso que o homem decide viver em sociedade: para se livrar desse receio contínuo de morrer violentamente por mãos alheias, já que o Estado constituído passará a regulamentar a atividade das pessoas. Essa breve digressão filosófica serve para justificar as consequências perniciosas que a ausência de um controle estatal firme pode gerar. Esmaecido o poder do Estado, ante a ausência de controle das situações que colocam no homem novamente o temor da possibilidade constante de um confronto, opera-se a um retorno a esse estado natural ou estado de guerra do ser humano. Ocorre que, dessa vez, é o próprio Estado que acaba entrando em estado de guerra com cada indivíduo. Para John Locke, na constância de um governo tirânico, manter-se-ia o estado de guerra do qual o homem procurou se livrar, ao viver em sociedade, representado agora pelo conflito entre o Estado e os indivíduos (quer dizer, exorbitaria a confiança do governo depositada pelos cidadãos)329. Adaptadas essas situações aos dias atuais, percebe-se que a falta de controle, atualmente, das situações lesivas aos indivíduos e, consequentemente, à coletividade, operam, justamente, esse conflito entre o próprio Estado e a sociedade, não por totalitarismo ou tirania, mas por omissão. 328 PAVÃO, Aguinaldo. Apontamentos sobre o Estado de Natureza em Hobbes E Locke. In Dissertatio – Revista de Filosofia, número 9, Universidade Federal de Pelotas, Departamento de Filosofia, http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/antigas/dissertatio9.pdf, consultado em 8/5/2012, pp. 75/76. 329 Note-se, no entanto, que, para John Locke, o estado de natureza é bem diferente daquele apresentado por Thomas Hobes. Para Locke, o estado de natureza comportaria a convivência pacífica entre os homens, regulamentada por um direito natural. Haveria, no entanto, um estado de guerra em potencial, e que “evitar o estado de guerra ... é uma das razões principais porque os homens abandonaram o estado de natureza e se reuniram em sociedade”. Assim, entre um governo tirânico e o estado de natureza é preferível o estado de natureza, pois assim se evitariam o estado de guerra e a tirania - embora, propriamente, a tirania seja uma espécie do gênero estado de guerra. In LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa, Vozes: Petrópolis, 2008. 136 Se o Estado não consegue enfrentar os conflitos que figuram como causadores de danos à sociedade que ele busca proteger, passa-se a preferir ou a troca total dos representantes do povo ou a ausência de controle de um governo, voltando-se a essa situação de estado de natureza que, aparentemente, ao menos na visão apresentada por Locke, mostra-se melhor aos indivíduos. Basta observar a ocorrência, em todo o Brasil, de conflitos entre o Estado e a sociedade, desencadeados pelo aumento da tarifa de ônibus330, que, na realidade, demonstravam a insatisfação da população em relação a diversos outros pontos sobre os quais o governo mostrou-se omisso, tal como a precariedade na assistência à saúde, ausência no combate à corrupção, falta de empregos etc., e que geraram sério distúrbio social, com depredações, violência e mortes, colocando em xeque a atuação do Estado para a resolução desses problemas sociais. Notadamente, conforme explicado, os danos causados diretamente à sociedade, num rebaixamento de vida coletivo, não refletem apenas no patrimônio de cada um. Como mostra a psicologia social, esses são fatores de doença populacional. Assim, se não são controlados pelo Estado, coloca-se cada membro da coletividade novamente naquela situação de receio de perder sua vida por mãos alheias (não mais num estado selvagem e primitivo, mas muito mais psicológico e social, da derrota iminente em relação às grandes empresas ou burocracias intermináveis). Este é o atual paradoxo do direito: a necessidade de repreensão de condutas ante a aparente ausência de suporte jurídico traçado pelos representantes do povo. A conclusão a que se chega é voltada à realização de políticas de combate a esses atentados contra a coletividade, não sob pena de se voltar a um estado natural das coisas, mas de haver verdadeiro conflito entre os indivíduos entre si e entre estes e o próprio Estado, esmaecendo a coesão coletiva por ele proporcionada, de forma a trazer de volta esse constante receio de enfrentamento, que já ocorre nos dias atuais. 330 In http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,fogo-bombas-e-depredacao-no-maior-protesto-contratarifa,1041335,0.htm. 137 Não é estranho ao cotidiano da coletividade ver nos noticiários ou mesmo ouvir de pessoas conhecidas histórias que, num primeiro momento, parecem ser invenções criadas pela mente humana, de tão elaboradas e, a uma primeira vista, pouco plausíveis, mas que, de fato, ocorrem todos os dias com grande parcela da população. Certamente, a rotina de grande parte da população brasileira é bastante árdua: começa ainda antes do raiar do sol e se estende dia afora, com a preparação da refeição familiar, a realização de tarefas diárias, como levar, em segurança, os filhos à escola – o que acaba se tornando uma missão penosa, em razão da precariedade do sistema de transporte público, ineficiente e abarrotado de pessoas –, ir ao trabalho, limpar a casa etc. Não bastassem esses estafantes obstáculos do dia-a-dia, ainda é preciso encontrar tempo para resolver os problemas criados, por exemplo, com as prestadoras de serviços, que incluem indevidamente o nome de um consumidor no cadastro de inadimplentes. Inscrito no cadastro, o indivíduo, sem a possibilidade de utilização de crédito no mercado de consumo, fica privado de realizar as compras cotidianas ou até ao pagamento de uma conta de luz, de plano de saúde, e acaba ficando à mercê de assistência pública básica referente à saúde, moradia ou alimentação, em virtude da precariedade do setor público. Por mais que possa parecer dramática, essa é a infausta e corriqueira história de milhares de cidadãos brasileiros. Mais e mais, com o crescimento populacional desenfreado, associado à falta de estrutura metropolitana e a falsa ilusão de melhor vida nas cidades grandes, as pessoas são submetidas a situações cada vez mais estressantes, como trânsito, má condição do transporte público, filas, má prestação de serviços etc. Associado a isso, com a globalização, desenvolvimento das “redes sociais”, cresce a exigência de que os membros da sociedade estejam sempre em contato – ainda que sobremaneira efêmero –, a partir de uma superexposição de suas vidas privadas, excluindose socialmente aqueles que não se adéquam a essa nova realidade. Ou seja, o atual indivíduo que quer conviver em sociedade, especialmente aquele dos grandes centros urbanos, é atacado diariamente por fontes variadas de estresse. Não apenas o trânsito, a poluição, a má prestação de serviços contribuem para uma vida 138 estressante, mas a necessidade de aceitação, cada vez mais evidente, do indivíduo por seus pares, da necessidade de estar sempre “conectado”331, de ser igual ao outro para obter a tão desejada aprovação do grupo, é capaz de desencadear reações orgânicas que acabam irradiando efeitos na psique332. De fato, essas situações convergem para o aumento da ansiedade, levando a situações de estresse intenso, que, por sua vez, desembocam nos chamados transtornos de ansiedade (v.g., Síndrome do Pânico, Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Distúrbio de Ansiedade Generalizada). Bem aponta Geraldo José Ballone que a simples participação do indivíduo na sociedade contemporânea já preenche, por si só, um requisito suficiente para o surgimento da Ansiedade. “Viver ansiosamente passou a ser considerado uma condição do homem moderno ou um destino comum ao qual todos estamos, de alguma maneira, atrelados”333. Decerto, esse fato se justifica em razão da abrupta necessidade de adaptação do ser humano à nova realidade da vida urbana. Antes da Revolução Industrial, as pessoas, predominantemente habitantes das zonas rurais, eram pouco exigidas, o trabalho era muito mais braçal do que intelectual, e finalizava-se ao deitar do sol. 331 O uso da rede social denominada facebook é tão intenso, que foi fruto de pesquisas recentes, realizadas pela Universidade de Bergen, na Noruega, que constatou que o vício provocado por essa rede social assemelha-se ao da dependência química. Matéria publicada em 10/5/2012, no sítio eletrônico da revista Época, In http://revistaepoca.globo.com/Ciencia-e-tecnologia/noticia/2012/05/voce-e-viciado-em-facebookciencia-responde-faca-o-teste-e-descubra.html, consultado em 10/5/2012. 332 Como adverte a médica Waleska Teixeira Caiaffa, ”Violência, estresse social, mudanças no clima urbano, poluição (ar, solo, água e ruído) combinados com os contrastes sociais e econômicos fazem com que a vida urbana seja um fardo significativo para a saúde, e tem sido considerada pela Organização Mundial da Saúde um dos mais significativos problemas de saúde global”. In http://dssbr.org/site/opinioes/determinantes-sociais-da-saude-e-determinantes-sociais-das-iniquidadesintraurbanas-em-saude-a-mesma-coisa-o-debate-continua-e-sera-tema-da-10a-conferencia-internacional-desaude-urbana-icuh-2011/, disponibilizado em 20/9/11, consultado em 7/5/2012. 333 BALLONE, Geraldo José. Estresse – Introdução. In http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=11, revisado em 2008, consultado em 7/5/2012. Interessante notar a definição trazida pelo autor a respeito do estresse: “Em termos científicos, o estresse é a resposta fisiológica e de comportamento de um indivíduo que se esforça para adaptar-se e ajustar-se a estímulos internos e externos. Como a energia necessária para esta adaptação é limitada, se houver persistência do estímulo estressor, mais cedo ou mais tarde o organismo entra em uma fase de esgotamento. (...) Uma "dose baixa" de Estresse é normal, fisiológico e desejável. Trata-se de uma ocorrência indispensável para nossa saúde e capacidade produtiva. As características desse Estresse positivo são: aumento da vitalidade, manutenção do entusiasmo, do otimismo, da disposição física, interesse, etc. Por outro lado, o Estresse patológico e exagerado pode ter conseqüências mais danosas, como por exemplo o cansaço, irritabilidade, falta de concentração, depressão, pessimismo, queda da resistência imunológica, mau-humor etc.” 139 Além disso, o foco de estresse também sofreu uma reviravolta imensa com a civilidade do homem. Antigamente, o estresse era identificado em ocasião da luta pela vida do indivíduo, pelas guerras tribais, pela escassez de alimentos etc., ou seja, era ele advindo de situações objetivas e palpáveis. Atualmente, a maioria dos estímulos desencadeadores desta emoção são intangíveis e não podem ser localizados no tempo e no espaço. As situações de estresse se desencadeiam, nos dias de hoje, pelo temor da competitividade social, da segurança social, da competência profissional, da sobrevivência econômica, enfim, apenas situações abstratas que “dormem” e “acordam” com o indivíduo, para as quais é difícil, senão impossível, encontrar um remédio. A própria transição de uma sociedade industrial moderna para a sociedade de consumo atual contribui para essa maior angústia do indivíduo: “o fim do emprego tradicional, que proporcionava segurança e estabilidade, diminuiu o espaço da vida fruída como um projeto de planejamento a longo prazo...”334. Houve, portanto, uma comutação na própria forma de combater o estresse, que antes ocorria mediante o emprego de força física ou fuga da situação. Hoje, tem-se como socialmente inaceitável que o indivíduo manifeste comportamentos típicos de fuga ou luta, que era a função natural e o objetivo biológico original do estresse, não existindo, portanto, uma “válvula de escape”. Com efeito, ao ser humano moderno é impedido manifestar reações de agressão ou de medo sincero, estando obrigado a um comportamento emocional politicamente correto, ao entanto, incongruente com sua real situação neuroendócrina. Como explica Geraldo José Ballone, a situação estressante que persiste indefinidamente pode desempenhar um papel social incompatível com a natureza biológica do estresse. “Haverá um elevado desgaste do organismo, predispondo certas doenças psicossomáticas”335. Então, é bem possível que, diante dessa reformulação muito rápida da formatação da sociedade, o desenvolvimento da capacidade neuropsicofisiológica de adaptação do ser 334 BELLI, Benoni. Polícia, “Tolerância Zero” e Exclusão Social. P. 168. In Revista Novos Estudos, CEBRAP, nº 58, novembro/2000, pp. 157/171. 335 BALLONE, Geraldo José. Estresse – Introdução. In http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=11, revisado em 2008, consultado em 7/5/2012. 140 humano não tenha acompanhado o mesmo ritmo, levando a essas situações patológicas de estresse. O mesmo antes citado autor relata quais são os fatores de estresse social mais comuns: “o fracasso, a carga, a manutenção, monotonia e a satisfação com o trabalho, a pressão para corrida contra o tempo, as ameaças sociais e financeiras, indução do medo através da violência urbana, as situações involuntárias de competição, os trabalhos em condições de perigo, a submissão involuntária aos tabus, a contestação e contrariedade com certos valores, a contrariedade ou privação de vida social e submissão contrariada às normas”336. De acordo com pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia (UCLA), nos Estados Unidos, constatou-se que as pessoas submetidas a fatores de estresse social, além dos transtornos de ansiedade já mencionados, podem apresentar elevação na atividade neural inflamatória, o que permite um aumento do risco de uma variedade de desordens, incluindo asma, artrite reumatoide, doença cardiovascular, certos tipos de câncer e depressão337. A partir dessa brevíssima análise dos fatores sociais que levam a situações de estresse, é possível constatar que, hodiernamente, o homem vive em um círculo de ansiedade, atacado, de todos os lados, por situações que podem desencadear um processo de rebaixamento de sua qualidade de vida e, até mesmo, de doenças psíquicas e orgânicas que lhe afastam do convívio social. O conhecido jargão “crença vira biologia” mostra-se mais verdadeiro do que nunca. Contudo, parece que o Estado, especialmente quanto aos Poderes Legislativo e Judiciário, ainda não percebeu o efetivo alcance dos prejuízos que o estresse social pode causar a todos os indivíduos da sociedade. 336 BALLONE, Geraldo José. Estresse – Introdução. In http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=11, revisado em 2008, consultado em 7/5/2012. 337 Estresse social é capaz de influenciar negativamente o sistema imunológico. In http://www.isaude.net/ptBR/noticia/9959/geral/estresse-social-e-capaz-de-influenciar-negativamente-o-sistema-imunologico, disponibilizado em 10/8/2012, consultado em 7/5/2012. 141 Certamente, na situação anteriormente engendrada, não seria incomum que a questão fosse tratada como um mero aborrecimento, para o qual não haveria dever de indenizar. Se houvesse condenação, pelos danos extrapatrimoniais causados ao consumidor, seria ela sobremaneira ínfima, incapaz tanto de compensar os danos sofridos, como de prevenir a reiteração da conduta. É comum verificar situações como a anteriormente relatada em que, embora reconhecido o erro operacional da instituição financeira, ou mesmo o dever evidente de cobertura do procedimento cirúrgico, não haja condenação das empresas, a não ser àquilo que elas já deveriam ter pago inicialmente ou, ao menos, não deveriam ter lançado indevidamente. Parcela da culpa atribui-se ao Poder Judiciário, por não julgar adequadamente esse tipo de ação, principalmente pela alegação de ausência de texto normativo que regulamente adequadamente o caso apresentado, sobrando, dessa forma, ao Poder Legislativo a outra parcela da culpa. Talvez o ato danoso possa ser mesmo caracterizado como um mero aborrecimento, ou não representar um ataque aos direitos personalíssimos daquele indivíduo isoladamente considerado. Contudo, analisada a questão sob o ponto de vista da coletividade, a lógica não pode seguir esse mesmo raciocínio. Diante da verificação desse tipo de situação, em que não há qualquer controle sobre a atividade danosa do particular, os membros da sociedade apresentam dois sentimentos iguais de frustração, para duas questões diversas: a) a falha na conduta da prestadora de serviços, fazendo-os ter que interromper todos os seus afazeres para correr atrás dessas “falhas de sistema”, como será posteriormente explicado e exemplificado; e b) a prestação defeituosa do serviço público, consubstanciada na falta de acesso da população à Justiça (seja no sentido de instituição que reconhece e pacifica os conflitos levados ao seu conhecimento, ou ainda de decisão capaz de dirimir os problemas de acordo com as necessidades da sociedade). Manifestamente, não apenas as condutas lesivas a que está sujeita a sociedade diariamente podem ser causas efetivas de estresse social, mas também a má prestação do serviço público338 (pela falta de transparência política ou de Leis que regulamentem 338 Em pesquisa elaborada pelo UOL, verificou-se que os paulistanos queixam-se a respeito da piora na qualidade de vida, sendo a desconfiança sobre o poder público municipal um dos principais fatores. 142 adequadamente o funcionamento da sociedade, ou ainda a dificuldade do acesso à Justiça), que desampara a população, quando deveria remediar essas consequências perniciosas advindas desse rebaixamento da qualidade de vida, facilita o desdobramento desse dano. É bastante evidente que situações como as que foram descritas, somadas aos demais eventos de estresse aos quais é submetido o indivíduo rotineiramente, podem levar a doenças psicológicas muito mais graves, que acabam mesmo retirando aquele indivíduo do convívio social, pelo medo e trauma que lhe foram causados, representando um comprometimento de sua situação existencial do ser-aí (obsta-se "o encontrar-se no mundo e com o outro"339): essas doenças acabam provocando um injusto empecilho à liberdade de coexistir com os demais (ser-com-os-outros) e de participar do mundo circundante e do mundo humano (ser-no-mundo)340. E, como também é sabido, a estagnação econômica de uma sociedade pode decorrer, excetuando-se os casos de má gestão dos recursos públicos pela Administração e crises econômicas mundiais, do medo. Com efeito, o medo afligido à população, decorrente de atentados terroristas, da iminência da guerra, de uma possível crise econômica pode, facilmente, estagnar a economia de um País, ante a ausência de investimento tanto do exterior, quanto da própria população que faz circular a riqueza. Contudo, atualmente, não parece ser preciso ir a situações tão extremas para que esse medo se espalhe na população. Essas próprias situações de estresse social antes descritas, associadas à tolerância ou mesmo permissão da prática, cada vez mais frequente, de condutas lesivas, que atingem valores transindividuais, e apenas acarretam maior temor à população, podem levar a uma conjuntura insustentável num futuro próximo. http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/01/18/para-o-paulistano-qualidade-de-vida-caiu-edesconfianca-sobre-poder-publico-municipal-cresceu.htm, consultado em 8/5/2012. 339 MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 83. 340 Conforme explicação de Fernanda Leite Bião e Hidemberg Alves da Frota, in http://jus.uol.com.br/revista/texto/17564/o-fundamento-filosofico-do-dano-existencial, consultado em 20/1/2011. 143 É certo que as condutas ilícitas, quando não punidas, e especialmente quando lucrativas, acabam sendo repetidas, tanto pelo agente causador do dano, quanto por outros que também pretendem locupletar-se dessa forma indevida. Assim, a permissão desenfreada de condutas lesivas, que apenas fazem aumentar o lucro daqueles que agem desarrazoadamente perante aqueles com quem negociam ou travam outros tipos de relação, ou mesmo deixam impunes aqueles que praticaram o mal, acabarão por criar uma situação de tamanha insegurança, que não mais fomentarão o desenvolvimento das relações interpressoais. Aparentemente, parece haver uma inversão de valores que se opera no cotidiano brasileiro. Conforme assente, os valores, especialmente relacionados à moral, variam de acordo com o tempo e local, às vezes configurando um movimento pendular, com a retomada de antigos preceitos que, ao longo do tempo, haviam dado lugar a outros. Está-se, aqui, fazendo referência à mudança de conceito dos juízos “bom e ruim”, “bom e mau”. De acordo com o filólogo e filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche, o juízo “bom” não adveio daqueles aos quais se praticou o “bem”. Pelo contrário, foram os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, ou seja, os “bons”, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, “em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu” 341. A criação de tais valores, a criação de nomes para esses valores, tinha o intuito de apresentar essa relação distante entre a “elevada estirpe senhorial” e a “estirpe baixa”, sendo esta, portanto, a origem de “bom” e “ruim”. Procurava-se, então, atribuir ao “nobre”, ao “aristocrático” o sentido de “espiritualmente bem-nascido”, “espiritualmente privilegiado”, em contraposição ao lado “plebeu”, “comum”, “baixo”342. 341 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 6. 342 O filósofo até mesmo acrescenta um exemplo para explicar essa sua teoria, utilizando o termo alemão schlecht (ruim), que é idêntido a schlicht (simples), este último a designar, originalmente, o homem simples, ainda sem olhar depreciativo, que veio a modificar-se no sentido atual, durante a Guerra dos Trinta Anos. Ainda, a palavra “bom”, que aparece inicialmente para a nobreza grega, por seu poeta porta-voz Teógnis, significa, segundo sua raiz, alguém que é real, verdadeiro. Depois, numa mudança subjetiva, passa a significar o verdadeiro enquanto veraz, passando a se tornar o distintivo da nobreza e assumir o sentido de “nobre”, diferenciando-se do homem comum mentiroso. Por sua vez, na palavra mau/feio enfatiza-se a covardia. A própria palavra latina malus poderia caracterizar o homem de pele escura, sobretudo de cabelos 144 Percebe-se, dessa forma, que, originalmente, a palavra “bom” não era ligada necessariamente a ações “não egoístas”. Apenas com o declínio dos juízos de valor aristocráticos que essa oposição “egoísta” e “não egoísta” passa a se assentar na consciência humana e a integrar os conceitos de “bom” e “ruim”. Também no âmbito espiritual – notadamente, a casta mais elevada da sociedade era simultaneamente a casta sacerdotal – é possível encontrar as significações de “puro” e impuro” como predecessoras do desenvolvimento de “bom” e “ruim”, completando, então, a equação bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses. Contudo, esse juízo de “bom” e “ruim” foi perdendo esse matiz, para sofrer uma completa modificação de sentido. Com o esforço do povo judeu, o juízo de “bom” passou a ligar-se aos pobres, sofredores, necessitados, feios, que seriam os únicos abençoados, ao passo que “mau” passou a ser atrelado aos nobres e poderosos, caracterizados como cruéis, lascivos e desaventurados. Embora Nietzsche prossiga com uma análise bastante racional de tais juízos, traçando os pontos de divergência entre o conceito primitivo de “bom e ruim”, para a sua transmudação em “bom e mau”, serve a referência para estabelecer a volatilidade dos valores em relação ao tempo e espaço. Atualmente, esse juízo de “bom e ruim” ou “bom e mau” parece ter atingido novas dimensões, talvez bastante perigosas. Parece que esses valores, na atual sociedade de consumo – embora ainda não se distanciem da visão cristã do “bom e mau” –, estão cada vez mais ligados ao “ter” e ao “não ter”. “Bom”, então, é aquele que possui determinada coisa, enquanto “ruim” é o que não possui. Encara-se, portanto, como “bom” aquele que contribui para a sociedade, que ajuda a economia e que facilita a esse mercado de consumo do “ter”. Contudo, parece que essa facilidade voltada ao consumo não tem mais passado por um filtro, para que se avalie se foi praticada de modo bom ou mau. negros, que através da cor se distinguia claramente da raça ariana, dos conquistadores tornados senhores. Bonus, por sua vez, significaria o homem da disputa, o guerreiro. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 7. 145 Com efeito, há um incentivo – quase irracional – da sociedade a pessoas (físicas ou jurídicas) que, embora contribuam com o crescimento desse mercado de consumo, fazemno sem o respeito a essa coletividade. É tão recorrente, nas manchetes de jornal, notícias de consumidores que reclamam dos maus tratos sofridos no mercado de consumo, ou na impossibilidade de utilização dos espaços públicos etc., quanto matérias que abordam o crescimento desenfreado de determinadas empresas que são justamente as autoras dessas condutas lesivas343. Não há uma efetiva regulamentação do setor, que prefere permitir a reiteração de condutas lesivas a punir essas pessoas que, teoricamente, contribuem para o incremento da sociedade. Observa-se, portanto, uma nova inversão do juízo de “bom e ruim”, ocupando o papel de “bom”, dessa vez, aqueles que efetivamente alimentam esse mercado de consumo, ainda que mediante a adoção de políticas ilícitas, ao passo que “ruim” são aqueles que vão contra esse perverso sistema. O problema é que, agora, essa aproximação de “bom e ruim” ao mercado de consumo não vem acompanhada de outros valores antes atribuídos à nobreza (respeito a seus iguais, gratidão, educação, reverência ao inimigo 344). Deve-se, assim, ser feita uma reflexão sobre quais valores, atualmente, estão sendo transmitidos às novas gerações345, e qual a mensagem que está sendo passada, ao não se punirem essas pessoas que apenas prejudicam o convívio e a paz coletiva. Talvez essa inversão de valores e permissão de condutas lesivas não seja, simplesmente, uma falta de combatividade do Poder Público, mas um querer cego da própria sociedade. Essa questão, analisada sob o ponto de vista da teoria das “janelas quebradas” (broken windows), também parece justificar uma mudança de comportamento. Em análise 343 A empresa Apple, por exemplo, famosa pela produção do Ipod, Ipad, Iphone, sempre presentes em listas de desejos aquisitivos dos consumidores, é conhecida por desrespeitar o Código de Defesa do Consumidor, deixando muitas vezes de atender, por exemplo, ao direito de garantia ou troca do produto defeituoso. No entanto, é a marca que mais cresce em popularidade e, consequentemente, em valor de mercado. 344 Pelo contrário, o desrespeito ao consumidor e, especialmente, aos concorrentes, é flagrante. Hoje há uma verdadeira indústria de quebras de patentes. 345 Interessante obra de Paul Bloom, intitulada Just Babies: The Origins of Good and Evil (Apenas Bebês: as origens do bem e do mal) mostra que bebês de poucos meses de idade já exibem clara preferência por personagens bons, até mesmo arriscando-se a punir os maus, revelando que esse juízo de valores é inato ao ser humano, que tem a sua ética modificada ao longo de sua formação. 146 realizada pelo sociólogo Benoni Belli, em que procurava apontar os principais traços da política de “tolerância zero” adotada pela Polícia de Nova York, para o combate à criminalidade, foi trazida a metáfora das janelas quebradas, que funcionaria da seguinte forma: “se as janelas quebradas em um edifício não são consertadas, as pessoas que gostam de quebrar janelas assumirão que ninguém se importa com seus atos de incivilidade e continuarão a quebrar as janelas”346. Como sabido, a utilização extrema dessa teoria, pela Polícia de Nova York, em implementação a uma política concreta de “tolerância zero” com a criminalidade, provocou efeitos nefastos naquela sociedade, a saber: aumento da brutalidade policial, o que resultou em um maior número de confrontos entre policiais e civis; opção preferencial da polícia pelo ataque a representantes da minoria, em especial jovens negros e latinos; repressão aos jovens “gazeteiros”, culminando em faltas escolares dos retardatários, que preferiam perder o dia de aula a correr o risco de serem encaminhados à delegacia; superlotação carcerária, em virtude da prisão cada vez maior de pequenos delinquentes, que acabavam voltando às ruas sem que qualquer esforço adicional de mudança de suas condições de vida fosse implementada pelo poder público. Em que pese ter sido aplicada, em Nova York, de forma sobremaneira exacerbada, essa metáfora das janelas quebradas é, de fato, verdadeira no Brasil, onde proliferam as condutas ilícitas não repreendidas pelo Poder Público de forma efetiva. Se forem criados filtros de repressão, deixando-se de abandonar as “janelas quebradas”, com a fixação de critérios para a aplicação de indenizações que visam repor a qualidade de vida da sociedade, possivelmente não haverá falhas cruciais nesse sistema, ou, se ocorrerem, não terão o condão de descredenciar o processo de aplicação dessas compensações e punições, por que passarão por um processo rigoroso de verificação, com o único intuito de tornar saudáveis novamente as práticas sociais. De fato, pelos pontos ora abordados, de forma breve – breve porque as retóricas filosófica e sociológica apresentam diversos ângulos de análise sobre a mesma questão, o 346 BELLI, Benoni. Polícia, “Tolerância Zero” e Exclusão Social. p. 160. In Revista Novos Estudos, CEBRAP, nº 58, novembro/2000, pp. 157/171. 147 que pode retirar do estudo o foco que pretende ser dado –, denota-se a extrema necessidade de que sejam “retomadas as rédeas” da sociedade, que assim decidiu se reunir para não sofrer justamente a violência (física ou psicológica) que tem sido verificada, com a ausência de controle do Estado em relação às práticas lesivas premeditadas de determinadas pessoas, o que importará também na rejeição de uma inversão de valores que pode culminar num convívio comum viciado. Como sabido, a prática reiterada pode virar um hábito, e um hábito é muito difícil de ser modificado. É possível que nunca as situações aqui abordadas, de forma até extrema, venham a se concretizar. Todavia, certamente, o País poderá atrair investimentos muito mais significativos, assim como controlar parte desses problemas relacionados à segurança e, como visto, à própria saúde da população, caso demonstre a seriedade necessária como trata dos negócios e da própria proteção de seus administrados, combatendo essas injustiças que aviltam o senso comum e os valores coletivos. A credulidade da população frente ao seu País e de outras nações em face de uma bandeira tem que partir de dentro para fora, e não o inverso. A exploração dessas situações que não encontram qualquer tipo de freio, além de provocar o medo ou a ira de uma população, só faz atrair novos maus intencionados (bad players), que terão um terreno fértil para a prática dos mesmos ilícitos. Apesar de haver um crescimento das indenizações punitivas concedidas pelos Tribunais pátrios, há ainda muita timidez frente aos inúmeros casos lesivos que se perpetuam nas práticas da coletividade, especialmente em razão da ausência de justificativa legal que guarneça essa pretensão. De fato, as condenações sofridas pelos causadores desses danos cingem-se, normalmente, à reposição daquilo que foi perdido pelo lesado, mais expressivamente no tocante ao dano patrimonial. Quando há condenação à reposição de danos morais sofridos, ainda que aplicada uma carga punitiva, não é ela significativa, como antes mencionado, não se prestando sequer à compensação da própria lesão. 148 Assim, a “penalidade” aplicada ao causador do dano reflete, na realidade, uma impunidade. Como ainda há resistência da população em procurar o Poder Judiciário – seja pela ignorância de seus direitos, seja pelo descrédito que tal órgão apresenta –, o agente transgressor acaba lucrando ainda mais, à custa dos indivíduos que não procuram haver o que lhes é devido. Essa matemática é até mesmo utilizada pelo lesante, quando decide transgredir o direito de outrem. Observa-se, dessa forma, o cuidado que se deve ter com a saúde da população, para o próprio desenvolvimento da economia do País. Essa saúde parece guardar, atualmente, relação direta com essas condutas odiosas, esses atentados contra a coletividade, cujo remédio, como demonstrado, não pode ser apresentado pelo próprio ser humano que é por elas atacado, por não estar preparado para com lidar com tais condutas. Por isso que devem essas ações lesivas contra a coletividade ser paulatinamente rechaçadas, para que possa haver vivência e convivência saudável, prosperidade da nação. Ou, nas palavras de Nelson Rosenvald, “O ideal é que se assuma um novo realismo jurídico, em que se reconheça a norma jurídica efetiva como aquela capaz de condicionar modelos de comportamento”347. 4.3 A INDENIZAÇÃO PUNITIVA NO BRASIL: DA REJEIÇÃO À APARENTE ACEITAÇÃO Antes de se adentrar na análise da existência de um dano social, para a verificação de se é o reconhecimento dessa figura a resposta para alguns desses problemas anteriormente apresentados, como solução para o emprego adequado das funções punitiva e preventiva da Responsabilidade Civil, mostra-se quiçá preciso tecer algumas considerações a respeito dessa ideia de punição, sobre o porquê de seu exílio do ordenamento jurídico brasileiro e, agora, aparente surgimento, e, mais importante, se é possível e necessária a introdução dessa figura no Brasil. 347 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 168. 149 A ideia de punição, consubstanciada mais marcadamente, nos dias atuais, na figura dos punitive damages, parece não ter encontrado aderência no Brasil por diversos motivos, diferentemente do que ocorreu com os países de tradição anglo-saxã. Isso se deve, principalmente, em virtude das extremas diferenças culturais que separam especialmente os países latinos da Inglaterra e dos Estados Unidos da América. Com efeito, a primeira diferença encontrada entre o Brasil e a Inglaterra e os EUA aparece no aspecto religioso, em que repousam, para o povo brasileiro, muito mais as ideias do catolicismo – presentes em grande parte dos países latinos –, ao contrário dos ideais protestantes na tradição anglo-saxã348. Parece haver consenso na doutrina ao entender que a dificuldade em dissociar o dano moral do dano punitivo, no Brasil, ser resultado da condenação ao enriquecimento indevido – ideia introjetada pelo repúdio da moral cristã à própria ideia de enriquecimento, ainda mais aquele advindo da dor. Existe um evidente receio quanto à imposição de uma sanção que ultrapasse a medida dos danos, fazendo com que a vítima receba uma vantagem que não lhe deveria ser destinada, porquanto ao lesado seria vedado o enriquecimento no confronto com o ofensor349. Por esse motivo que a ideia dos punitive damages foi recebida mais naturalmente nos países anglo-saxões, apartada da categoria de danos morais – esta voltada exclusivamente à compensação da dor e do sofrimento. De fato, os ideais protestantes conseguiram trazer à cultura anglo-saxã uma visão de menor condenação da compensação pecuniária da dor, como também a ideia de vingança pessoal, contrariamente ao maior repúdio observado pela tradição católica, que sempre defendeu o perdão. 348 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo, Atlas, 2012, p. 93/95. Explica o autor que o conceito americano de self made man, advindo também da influência rigorosa do calvinismo, em que se valoriza o esforço individual e, o que é mais importante, recompensa-se o homem por isso, permitiu ao Judiciário americano destinar as indenizações punitivas àquele que se esforçou em levar a conhecimento a causa de um dano. 349 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 12. 150 Por essa ótica, tornou-se crível à Inglaterra e aos EUA a aceitação de uma punição, baseada apenas na vingança, assim como a noção de um dano moral fundado unicamente na compensação financeira do sofrimento; duas figuras bastante destacadas350. No Brasil, ao entanto, não ocorrida essa cisão, doutrina e jurisprudência, como antes visto, justificam a aplicação de uma punição por meio de indenizações por danos morais, falando-se ora em caráter de desestímulo, ora em dano moral punitivo ou dano moral profilático etc. Decerto, as culturas católicas sempre condenaram a ideia da reparabilidade financeira de uma dor da alma, repugnando, assim, o enriquecimento sem causa 351. O direito civil brasileiro, influenciado pelos ideais da justiça comutativa lançados por São Tomás de Aquino, pelos quais se bania qualquer transferência injustificada de riqueza de um sujeito ao outro, do que derivou a figura do enriquecimento sem causa, passou a limitar, cada vez mais, a obrigação de indenizar, que ficou circunscrita ao mero ressarcimento do dano efetivamente sofrido, regra que foi esculpida no caput do artigo 14 do Código Civil352. De fato, as questões que envolvem dinheiro, atribuídas à ideia de imoralidade, como quis fazer crer a religião católica, refogem, no mais das vezes, ao sentimento de pecado. Dessa forma, parece incomodar o fato de que seja destinada à vítima uma indenização superior ao seu efetivo prejuízo353, ao contrário do que ocorre nos países de cultura protestante. A aversão à ideia de enriquecimento sem causa e de compensação financeira do sofrimento ajudou na justificativa da atribuição de função punitiva do dano 350 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 208. MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. In Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 18, abr/jun 2004, p. 66. A autora evidencia que o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa apresenta bastante relevância no ordenamento brasileiro, ao contrário do que ocorre nos sistemas de common law. “Seja em decorrência de nossa herança cultural católica, seja em virtude da influência direta do direito canônico nos ordenamentos romano-germânicos, fato é que no sistema da common law, ao contrário do nosso, o instituto do unfair enrichessement é marginal e pouco relevante”. 352 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 18. 353 Ressalta Orlando Soares que até mesmo a reparação por dano moral encontrava resistência doutrinária e jurisprudencial, pelo receio de uma exagerada reparação pecuniária capaz de gerar um enriquecimento sem causa. In SOARES, Orlando. Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro: teoria, prática forense e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 76. 351 151 moral, levando a uma sobreposição entre esses dois conceitos totalmente díspares, causa da confusão que até hoje prevalece354. Outro aspecto que evidencia a diferença cultural entre o Brasil e, especialmente, os EUA, é a forma de construção e organização do Estado e da sociedade. A sociedade brasileira foi erguida “em virtude de sua forma centralizada de colonização, de cima para baixo, onde a figura do Estado, materializada inclusive em um imperador, foi responsável pelo provimento da nação”355. Portanto, o Estado brasileiro é transcendente aos seus cidadãos; há uma relação de dependência, pela qual o povo depende do Estado tanto para a manutenção de suas relações como – e sobretudo – para a resolução de seus conflitos. Por sua vez, nos EUA, a colonização descentralizada e fundada não apenas na exploração desenfreada do povo e dos recursos, mas no estabelecimento social, permitiu a construção de um Estado contrário ao que se erigiu no Brasil, de baixo para cima356, a partir de um federalismo em sentido estrito. Assim, o indivíduo aparece como átomo fundador da sociedade e o Estado se comporta apenas como mero instrumento de ajuste dessas relações interindividuais. “A liberdade democrática, tão alardeada naquele país, torna o Estado não transcendente, mas imanente, em uma visão que, embora por outras razões, acaba por aproximar EUA e França”357. A partir dessa elucidação, percebe-se a maior dificuldade do ordenamento brasileiro em distanciar o público do privado, capaz de possibilitar a visualização da responsabilidade civil como instrumento de correção das irregularidades socioeconômicas. 354 Como aponta Paula Cristina Lippi Pereira de Barros, os magistrados acabam ridicularizando o valor das compensações por danos extrapatrimoniais, ainda que pretendam aplicar alguma carga de punição ao ofensor, justamente em razão da vedação ao enriquecimento do lesado. Dessa maneira, o lesado, que já não pode ter reparado o dano extrapatrimonial que sofreu, por ser intangível o bem lesado, recebe uma compensação irrisória, que não cumpre a sua função compensatória, ao mesmo tempo em que não apresenta qualquer forma de dissuasão ao ofensor ou à sociedade. BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP p. 115, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/10/2013. 355 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 209. 356 Os EUA foram fundados de uma forma que poderia gerar uma inversão política, já que o homem possui direitos preexistentes à instituição do Estado. Assim, observa-se “a relação política não mais do ponto de vista do governante, mas do governado, não mais de cima para baixo, mas de baixo para cima, onde o ‘baixo’ não é mais o povo como entidade coletiva, mas são os homens, os cidadãos que se agregam com outros homens, com outros cidadãos, para formar uma vontade geral...”. In BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª Tiragem, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 225. 357 LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 209. 152 Nos EUA tem-se evidente essa necessidade de regulação social. O tort Law nasce como forma de resolver questões puramente interindividuais, ao passo que os punitive damages surgem justamente quando se constata que essas relações individuais podem afetar o equilíbrio de outras relações, apelando-se, então, à interferência do Estado. Essa noção de indenização punitiva apresenta nítido caráter publicizador, o que acaba explicando a maior aceitação das indenizações extravagantes e, mais ainda, a sua destinação a particulares, já que o intuito é a eliminação dos bad players. A outro lado, no Brasil, há o discurso da pena privada como forma de autotutela punitiva estabelecida pelos particulares, que configuraria um próprio ato ilícito, na medida em que, ao fazer justiça “de por si implica lesão a direito de terceiro, como ofensa ao princípio da paridade jurídica”358. Revela-se, então, que aquele que recebe a indenização, nos EUA, não o faz como mero indivíduo isoladamente considerado, mas como cidadão responsável pelos demais membros da coletividade, por ter levado ao conhecimento do Estado a existência de um comportamento antissocial que pudesse afetar o equilíbrio coletivo, o que não é aceito pela cultura brasileira. Essa ideia de indivíduo social, cuja atuação procura garantir o equilíbrio do sistema econômico, e que se mostra essencial nos EUA, parece justificar uma série de concepções do tort Law que a sociedade brasileira não consegue internalizar, especialmente em razão dessa configuração cidadão/Estado. Ainda, nos EUA, verifica-se uma necessária ligação entre os indivíduos, de forma que o Estado apenas garanta a sua organização. No Brasil, por outro lado, a responsabilidade civil apenas cria diversos vínculos entre o indivíduo e o Estado, que desaparece tão logo é ele indenizado. A própria existência do indivíduo social nos EUA se mostra de forma bastante clara, e aparece em diversos julgados americanos, passando-se a ideia de que o litigante não participa daquela relação processual apenas para a satisfação de interesses próprios, mas também para alertar o Estado sobre uma potencial situação prejudicial aos interesses 358 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 12. 153 de outros sujeitos. E o fundamento para a fixação das indenizações punitivas parece também levar muito em conta critérios sociais, numa estimativa do prejuízo sofrido não apenas pelo autor da ação, mas por outros indivíduos da sociedade. Não se pode desprezar, também, a importância do case Law, nos EUA, que obriga a percepção do litígio como um potencial gerador de norma consuetudinária, e não apenas na resolução do conflito individual. Além disso, esse sistema, fundado na experiência, baseiase na ideia de exemplo, ou seja, de prevenção e precaução, o que não acontece com o ordenamento brasileiro. Por último, a atuação do júri nos processos relacionados ao tort Law também constitui elemento de especial distinção ao julgamento realizado sempre pelo magistrado, no Brasil. No sistema do júri, cabe a esse corpo de indivíduos, que são membros da coletividade, e podem integrar à justiça civil as normas sociais e culturais, a decisão pela punição do réu, embora possam ser eles mais influenciáveis – e, assim, maiores serão as indenizações – pelo teatro que invariavelmente ocorre nas sessões de julgamento, sendo, então, alvo fácil para críticas. Fácil, portanto, perceber no júri a figura da indignação social provocada pela conduta, o que facilita a aceitação dos punitive damages e sua destinação para a vítima. Essas as principais diferenças culturais que tornam fácil de verificar a dificuldade de aceitação de uma figura isolada, no ordenamento jurídico brasileiro, de punição civil do ofensor, especialmente em relação à tese de violação da igualdade pelo enriquecimento sem causa, utilizada como justificativa para apoiar um sistema de responsabilidade unicamente voltado a repor o equilíbrio patrimonial entre as duas esferas jurídicas que o ilícito tratou de perturbar, fazendo com que doutrina e jurisprudência, quando querem aplicar uma sanção associada à indenização, distorçam conceitos já tão arraigados, para, em última análise, aplicar uma pena privada ao agente, em vista de mostrar à sociedade a lição que foi dada. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche estudou afundo essa característica punitiva da responsabilização do homem. Segundo a sua consciência, é necessário haver martírio e sacrifício, quando o homem sente a necessidade de criar em si uma memória. Ou melhor, 154 para que uma ideia se torne indelével, inesquecível, fixa, seria necessário o sacrifício. Com efeito, a frase por ele utilizada expressa com precisão esse mandamento: “Grava-se algo com fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória”359. Assim, quanto pior essa “memória” da humanidade, tanto mais terrível serão os aspectos de seus costumes. O próprio rigor das leis penais acaba demonstrando o esforço no afastamento desse esquecimento. A exemplo disso, o autor cita a nação alemã, que teve de passar por uma dura evolução da legislação, para amoldar-se à realidade de hoje: pensese, então, nos velhos castigos, como o apedrejamento, a roda, o empalamento, o dilaceramento, a fervura do criminoso, o esfolamento etc. Essas imagens, portanto, contribuíram para lembrar aos indivíduos os benefícios de viver em sociedade, e os efeitos que o descumprimento em relação à “promessa” feita por cada um deles, ao aceitar participar dessa “comunidade”, pode acarretar. Na análise das comunidades históricas, afigurava-se não apenas entre particulares o relacionamento entre credores e devedores. Ao escolher conviver em sociedade, a comunidade também mantinha com seus membros essa importante relação credor/devedor. Vive-se numa comunidade para desfrutar-se das vantagens que ela oferece: de proteção, de cuidado, de paz e confiança, para livrar-se da preocupação com as hostilidades a que está exposto o homem de fora desse convívio, comprometendo-se o indivíduo a empenhar-se no papel que deve desempenhar. Quando há descumprimento desse papel pelo indivíduo, é considerado ele um infrator, alguém que quebra sua palavra e o contrato com o todo. Assim, não será ele apenas privado desses benefícios e vantagens de que desfrutava, como será lembrado do quanto valem esses benefícios. A ira do credor prejudicado (a comunidade) devolve-o ao estado selvagem do qual ele foi até então protegido360. Aí também aparece a ideia de pena, de castigo a esse elemento contraventor ao bem-estar social. 359 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 20. 360 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral ..., p. 25. 155 Ou seja, essa ideia de dano causado à coletividade, que apresenta a devida resposta ao ofensor, serve para não se ver enfraquecido o Estado. Essa ideia de justiça, portanto, não é nova. Ocorre que, aumentando-se o poder de uma comunidade, ela não mais atribui tanta importância aos desvios do indivíduo, porque eles já não podem ser considerados tão subversivos e perigosos para a existência do todo: o malfeitor não é mais privado da paz e expulso. Pelo contrário, a partir de então ele é cuidadosamente defendido e abrigado pelo todo, protegido em especial da cólera daqueles que prejudicou diretamente. O acerto com as vítimas imediatas da ofensa; o esforço de circunscrever o caso e evitar maior participação e inquietação; as tentativas de achar equivalentes e acomodar a questão (composição); sobretudo a vontade cada vez mais firme de considerar toda infração resgatável de algum modo e, assim, isolar, ao menos em certa medida, o criminoso de seu ato - estes são os traços que determinam cada vez mais nitidamente a evolução posterior do direito. “Se crescem o poder e a consciência de si de uma comunidade, torna-se mais suave o direito penal; se há enfraquecimento dessa comunidade, e ela corre grave perigo, formas mais duras desse direito voltam a se manifestar”361. Percebe-se, claramente, que, nos dias atuais, o enfraquecimento da sociedade pela permissão de práticas abusivas daqueles bad players acabou trazendo à tona, novamente, a discussão da aplicação de uma pena privada no ordenamento jurídico brasileiro. Certamente, a ausência de repreensão veemente a atos prejudiciais cometidos contra a sociedade acaba levantando a suspeita dos indivíduos em relação ao convívio coletivo e à representatividade do Estado. Esse enfraquecimento de poder e consciência de si, por conseguinte, levam a um desfacelamento da própria coletividade, devendo ser implementados novos mecanismos de ajustes, ainda que duros, para que essa confiança seja retomada. Diante do cenário atual, obviamente, não se trata mais de banir o ofensor da sociedade, porquanto novos meios de solução dos conflitos apresentam-se como melhor 361 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral ..., p. 26. 156 forma de pacificação. No entanto, diante da constatação de novas modalidades de condutas causadoras de danos injustos, deve haver, como resposta, um endurecimento dos mecanismos de repreensão, com a finalidade de corrigir e educar. O que mais importa, na realidade, é modificar o ceticismo impregnado nos aplicadores do direito de que a implantação de sanções punitivas civis ocasionará retrocesso aos tempos primitivos, da barbárie, em detrimento da conquista da liberdade dos indivíduos perante o Estado nas sociedades modernas. Como explica Nelson Rosenvald, até hoje, respeitável parte da doutrina se refere à recuperação da pena privada como um instrumento dotado de um mirabolante efeito de desestímulo, que inauguraria um absoluto far west no plano do direito civil. Contudo, refere ele que toda essa intransigência decorre de como as penas eram aplicadas no passado, mas não aquilo que se pretenda delas atualmente362. Na análise histórica, as medidas punitivas eram elaboradas pelos particulares e por eles mesmos aplicadas contra outros particulares, em próprio benefício, em resposta a agressões a situações jurídicas subjetivas individuais, sem qualquer controle preventivo ou sucessivo do ordenamento jurídico. Por sua vez, agora se pretende utilizar tal ferramenta em prol da coletividade, contra lesões a ela acarretadas, e como mecanismo de prevenção de novos comportamentos antijurídicos, certo de que a aplicação de tal pena privada receberá o devido controle do ordenamento jurídico. Certamente, “A atitude de negar relevância às sanções civis de caráter punitivo significa excluir pela raiz a aptidão de normas de direito privado explicitarem uma função preventiva, de desestímulo à prática de condutas ilícitas”363. Complementa esse entendimento Paula Cristina Lippi Pereira de Barros, ao expor que a nomenclatura sanção ou pena é utilizada coloquialmente, como representação de punição ou castigo, de forma equivocada. Assim, a sanção jurídica – da qual a pena 362 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 13/14. 363 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 13/14. 157 privada é uma espécie – representa a consequência jurídica da violação da norma, cumprindo esta uma função de desencorajamento à prática do ato violador da norma364. No Brasil, a ideia de punição, como mencionado, está tomando corpo na doutrina e na jurisprudência – notadamente na aplicação de danos morais –, e, ao que se mostra, na própria consciência da população, seja em razão do aumento das condutas ilícitas praticadas com dolo e culpa grave, especialmente no mercado de consumo e contra o meio ambiente, que fazem provocar o rebaixamento da qualidade de vida da coletividade, seja também pela diminuição do número de católicos365, parecendo ser mais aceitável a ideia de punição no lugar do perdão, e de enriquecimento366 em vez de permissão do dano. Mas, em especial, a pena privada vem ressurgindo com força em razão da insuficiência das respostas oferecidas pela Responsabilidade Civil, que, em sua função ressarcitória, limitada apenas ao dano sofrido pela vítima, deixa de modular outras situações, com base, principalmente, em antigos dogmas religiosos. Isso sem contar com a tendência de tração do Direito Penal367, que deve limitar-se às ofensas mais graves à ordem social, o que facilita a reapreciação do caráter punitivo da responsabilidade civil. Com efeito, ao estudar o assunto, constatou Paolo Gallo cinco hipóteses de utilização da pena privada no direito contemporâneo368: 364 BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP p. 63 e 68/74, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/10/2013. 365 Uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas aponta que não apenas o número de católicos está diminuindo no Brasil, como há um crescente aumento do número de pessoas sem religião. In FGV: País tem queda de 7,26% no número de católicos em 6 anos, http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,fgv-pais-temqueda-de-726-no-numero-de-catolicos-em-6-anos,762518,0.htm, matéria veiculada em 23 de agosto de 2011, e consultada em 24/8/2011. A mesma análise foi feita pelo jornal O Estado de São Paulo, cuja matéria foi intitula “Igreja Católica tem queda recorde e perde 465 fiéis por dia em uma década”. In versão impressa, Vida, p. A24, de 30 de junho de 2012. 366 Explica Nelson Rosenvald que não se pode cogitar de locupletamento sem causa quando o montante destinado à vítima é proveniente de uma decisão judicial. Se a pena é justa em si, o enriquecimento apresenta uma base legal, eliminando a crítica. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 196/197. 367 De fato, o sistema criminal não traz uma solução adequada (pena) a todos os danos graves que afligem a sociedade. Demais disso, a sua forma de punição não resolve todos os problemas da coletividade, em face desses tipos de lesão. A segurança social, muitas das vezes, não é resolvida com o encarceramento do ofensor. Outras medidas devem ser utilizadas no auxílio e complemento dessa repressão. 368 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, pp.60/63 e 175 e ss. 158 (1) casos de dolo ou culpa grave; (2) casos de responsabilidade civil “sem dano”, isto é, sem dano de natureza econômica imediatamente perceptível, como ocorre no vasto setor das lesões aos direitos de personalidade, ou quando o mero ressarcimento não for suficiente; (3) situações em que o lucro obtido com o ilícito é superior ao dano; (4) hipóteses em que a probabilidade de condenação a ressarcir os danos é inferior relativamente à probabilidade de causar danos; (5) os chamados “crimes de bagatela”. De fato, pelo esforço jurisprudencial dos Tribunais brasileiros, a primeira e a segunda hipóteses já são comumente verificadas, embora sua reparação seja embutida, como anteriormente referido, às indenizações por danos morais. As outras hipóteses, direcionadas tanto aos danos em série no consumo quanto ao meio ambiente, também são objeto de reflexão dos estudiosos e de decisões pontuais dos Tribunais, por meio da aplicação de indenização por danos morais coletivos, tal como os crimes de bagatela, representados, na realidade, pelo universo das microlesões, quando verificado o claro intuito de lucro. Como refere Maria Celina Bodin de Moraes, a função punitiva da indenização apenas apresenta lógica razoável quando atribuída a hipóteses excepcionais e a hipóteses taxativamente previstas em lei. E uma dessas hipóteses de aplicação do dano punitivo, em sua função de exemplaridade, refere-se aos casos em que for imperioso “dar uma resposta à sociedade”, quando diante de “conduta particularmente ultrajante, ou insultuosa, em relação à consciência coletiva, ou, ainda, quando se der o caso, não incomum, de prática danosa reiterada”. Além desse caso, se aceita o caráter punitivo, na sua função preventivoprecautória, para “situações potencialmente causadoras de lesões a um grande número de pessoas, como ocorre nos direitos difusos, tanto na relação de consumo quanto no Direito Ambiental”369. Fato é que há, no sistema jurídico brasileiro, regras pontuais que, expressamente, permitem a “correlação entre a censurabilidade da conduta do agente e a elevação do 369 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 263. 159 montante indenizatório!”370, como obtemperam Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler. Mas alertam as mesmas autoras para o fato de que toda a discussão entre o caráter exemplar da responsabilidade civil atém-se à problemática da reparação do dano moral. E, em razão das tormentosas discussões acerca do dano moral, ao menos até o advento da Constituição Federal de 1988, parece que o tema acaba se vinculando, paradoxalmente, àqueles antigos debates acerca da viabilidade de se conceder indenização face à inexistência de prejuízo de ordem patrimonial371. Malgrado se perceba um evidente equívoco cultural na associação do modelo brasileiro de reparação do dano extrapatrimonial aos punitive damages372 – este último já não mais atrelado à ideia de dano moral –, especialmente pela jurisprudência, que faz menção indevidamente a tal figura norte-americana, sem que sejam preenchidos os requisitos socioculturais e legais presentes naquele ordenamento jurídico, não é preciso fugir às regras já presentes na legislação brasileira para a imposição de uma punição, quando diante de danos especialmente graves. Não é preciso aplicar institutos de outros países, de forma completamente ilógica e desnaturada, porquanto ser possível reconhecer, no próprio ordenamento jurídico brasileiro, mecanismos de repreensão às condutas perniciosas que assolam a sociedade. Tampouco se faz necessária a desvirtuação do próprio dano moral, que, embora cumpra função também preventiva e dissuasória, não pode ser utilizado como imposição de 370 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 22. Para chegar a essa conclusão, as autoras fazem um apanhado sobre o sistema da responsabilidade civil do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor, demonstrando, inclusive, a evidente distinção da lei civil entre a culpa e o dolo (na responsabilidade contratual, ex vi, do art. 392) e entre os graus de culpa (na responsabilidade aquiliana, v.g., art. 929), assim como a previsão da equidade na fixação da indenização (arts. 944, parágrafo único, 953, parágrafo único e 954, com remissão ao parágrafo único do art. 953), e também a ausência de tarifação da indenização, em virtude de decisões do STJ. 371 MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 22. 372 O próprio Supremo Tribunal Federal, ao decidir pela responsabilização de um hospital público, cuja responsabilidade é objetiva, nos termos do art. 37, parágrafo 6 o da CF, utilizou-se dos ensinamentos da doutrina norte-ameriacana dos punitive damages para impor uma indenização punitiva, a fim de justificar uma medida sancionatória e dissuasória da indenização, em evidente confusão conceitual entre o caráter punitivo da indenização e a indenização punitiva. (in www.stf.jus.br, Agravo de Instrumento no 455.846/RJ, j. 11/10/2004, DJ de 21/10/2004, p. 00018, relator Ministro Celso de Mello, consultado em 20/11/2012). 160 penalidade, justamente em razão de sua vinculação ao próprio dano e à desnecessidade de averiguação da gravidade da conduta. Urge, sim, a necessidade de punição aos danos cometidos à coletividade, para que ela não esmaeça, não perca a sua força e consciência de si própria. Certamente, a tolerância de condutas lesivas leva à sua internalização como regra pelo agente causador, sendo certo que, não havendo correção, não haverá, consequentemente, modificação de comportamento. Contudo, essa correção deve ocorrer de acordo com os instrumentos fornecidos pelo ordenamento jurídico, em atenção aos limites impostos pela Lei. Serve essa análise, portanto, para mostrar que a ideia de punição não é apenas uma preocupação atual da doutrina e da jurisprudência, mas medida impositiva para a preservação da coesão social, não bastando importar um instituto estrangeiro a um ordenamento jurídico erigido na base de uma sociedade pavimentada por dogmas e conceitos bastante diferentes. Mas que essas diferenças sejam o ponto de partida para a construção de teorias e Leis que tornem possível a formulação de um instrumento que cumpra os anseios da coletividade em sua configuração atual, com o abandono de dogmas e preconceitos que não podem mais se sobrepor à saúde da vida social. 4.4 O FENÔMENO DO DANO SOCIAL Como sustenta Agustín Álvarez, existem situações intoleráveis e irritantes nas quais o ressarcimento do prejuízo não silencia as repercussões de inequidade e insegurança que essas condutas acarretam. Essas situações são aquelas que se verificam quando há produção de prejuízos graves, com sério menosprezo aos interesses alheios373. Essa necessidade de criação de um novo mecanismo, cuja finalidade é a dissuasão ou a punição, num sistema em que os antigos instrumentos de proteção do indivíduo e da sociedade parecem não mais corresponder às novas modalidades de dano verificadas, 373 ÁLVAREZ, Agustín. Repensando la Incorporación de los Daños Punitivos. Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba. In http://www.acaderc.org.ar/doctrina/articulos/repensando-laincorporacion-de-los-danos-punitivos, consultado em 2/10/2013. 161 revela, inicialmente, um fenômeno doutrinário e jurisprudencial, não exclusivo do Brasil, como antes visto. Nos EUA, a figura do societal damage, que representa uma compensação virtual daqueles que também sofreram com os danos discutidos em processo do qual não fizeram parte, ou mesmo de decisões relativas aos punitive damages, em que há majoração da condenação justamente em razão do dano coletivo causado, analisando-se, então, a questão de forma não-linear, revela essa preocupação de doutrina e jurisprudência por um mecanismo de proteção que não mais se compreende no âmbito individual. Também em outros países, como França, Alemanha, Itália e, até mesmo, Argentina, têm sido muito discutidas e aplicadas, pontualmente, as indenizações punitivas. No Brasil, esse movimento em direção à punição do ofensor, num sentido de disciplina e exemplo à coletividade, de reparação do bem comum, de tutela a um valor coletivo tão presente no século XXI, tem ganhado força, podendo ser sentido nas decisões exaradas pelos Tribunais. Como exemplo dessa preocupação dos Tribunais, permite-se citar os seguintes exemplos, que abarcam diferentes tipos de aviltamentos à sociedade, cuja solução encontrada – direta ou indiretamente – foi em direção à punição do agente causador do dano: 1) Em decisão do Juizado Especial Cível, da Comarca do Rio de Janeiro/RJ374, o magistrado condenou a empresa de vendas coletivas Groupon a ressarcir o autor de uma ação de reparação de danos patrimoniais e morais, pelo serviço inadequadamente prestado, sopesando as demais vendas efetivadas pela empresa, para arbitrar o valor da indenização. Explica-se: o consumidor adquiriu da empresa de vendas coletivas um cupom, no valor de quinze reais, que serviria para o consumo de uma pizza grande em determinado restaurante. Após efetuar a compra, o consumidor foi surpreendido com o débito duplicado do valor do cupom. Além disso, recebeu, em vez de apenas um, dois tickets relativos à pizza que comprara. 374 www.tjrj.jus.br, Juizado Especial Cível - Copacabana - Rio de Janeiro/RJ, Processo 001430076.2011.8.19.0001, julgado em 6/5/2011, Juiz FLAVIO CITRO VIEIRA DE MELLO, consultado em 20/1/2011. 162 Por essa razão, entrou ele em contato com o Groupon, que admitiu, por email juntado aos autos do processo, a cobrança em duplicidade, assim como o orientou a utilizar o segundo cupom emitido. No entanto, ao se deslocar ao restaurante e tentar utilizar o ticket que adquirira, não logrou êxito, sendo constrangido ao pagamento de toda a conta. Assim, foi a empresa condenada ao ressarcimento do valor gasto pelo autor da ação com a aquisição do cupom, acrescido de juros e correção monetária. Não apenas isso – e essa é a parte relevante –, foi condenada a empresa ao pagamento de danos morais, valendo-se o magistrado da estimativa do número de vendas, da mesma natureza, por ela realizados, para majorar o valor do quantum, sob a justificativa de que fosse dada uma lição ao infrator. Verifica-se verdadeira carga social na decisão, cujo intuito era repelir o ilícito lucrativo praticado pela empresa, em lesão à coletividade. 2) Semelhante, e até mesmo curioso, foi o decisum do Tribunal de Justiça de Minas Gerais375, ao apreciar questão relativa à publicidade enganosa, em que eram ludibriados os consumidores de produtos de empresa do ramo hoteleiro e de turismo. Em que pese ter reconhecido o Tribunal o dano causado à coletividade, assim como a necessidade de aplicação de medida punitiva, reduziu a indenização de R$ 200.000,00 para R$ 35.000,00, levando em conta a atuação proativa da empresa em tentar resolver o problema causado aos consumidores de seus produtos. Vê-se que o Tribunal, apesar de reconhecer a afronta causada à sociedade, que era enganada pela empresa, ainda assim entendeu por bem reduzir o quantum indenizatório, em virtude desse “bom comportamento” na tentativa de minorar o dano causado, em evidente análise da repercussão da lesão para a sociedade, assim como das medidas apaziguadoras posteriormente adotadas. 3) Em outro julgado, dessa vez do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro376, foi aumentado o valor da indenização, para atender ao caráter punitivo da indenização, em razão da ampla repercussão do crime praticado pelo réu, mediante extrema brutalidade e total repúdio por parte da consciência social e da Justiça, o 375 www.tjmg.jus.br, TJMG, 15ª Câmara Cível, Apelação Cível n° 1.0702.02.029297-6/001, Julgado em 23/6/2006, Relator Desembargador Guilherme Luciano Baeta Nunes, consultado em 2/2/2013. 376 www.tjrj.jus.br, TJRJ, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 9.825/98, Julgado em 2/7/2001, Relator Desembargador A. Vieira Macabu, consultado em 15/3/2011. 163 que evidencia a intenção do Judiciário em justamente repelir as condutas que potencialmente rebaixam a qualidade de vida da coletividade. 4) Ao invocar – indevidamente – a doutrina dos punitive damages, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul377, para que uma instituição bancária corrigisse, de forma efetiva, as falhas de sistema, quando da inserção indevida de consumidores nos cadastros de restrição ao crédito, decidiu que “se o registro em banco de dados de consumidor é fato essencialmente difamatório excepcionalmente tornado lícito, se no plano individual ele só produz malefícios e não traz ganhos palpáveis, ou esses são moralmente ilegítimos, o credor deve ter muita cautela ao exercer essa faculdade, justamente o que não houve aqui”. Verificou-se a intenção do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em fazer cessar esse “total descontrole sobre rotinas internas potencialmente maléficas a interesses individuais de terceiros”, assim como repreender a “atitude imperial de pouco caso para com os direitos do consumidor de crédito e, até mesmo, para com ordens judiciais”. Assim, foi estimada indenização por dano extrapatrimonial, com clara carga de punição, em 50 salários mínimos, tomando-se por base o valor de multa aplicada em caso de condenação por crime de difamação. 5) Da mesma forma com que foi repelida essa falha cometida pela instituição financeira no caso acima, foi também utilizada, pelo mesmo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul378, a teoria dos punitive damages, para a repreensão de conduta reiterada de seguradora, que aviltava o valor das indenizações contratualmente estipuladas, para, assim, “forrar seus cofres com as sobras”. 6) O Superior Tribunal de Justiça manifestou-se sobre a proteção de idosos, gestantes, deficientes físicos e pessoas com dificuldade de locomoção a acesso facilitado aos caixas bancários de atendimento convencional. Em ação promovida contra instituição financeira que mantinha os caixas de atendimento convencional no segundo piso, o que dificultava o acesso, foi reconhecido dano extrapatrimonial 377 www.tjrs.jus.br, TJRS, Sexta Câmara Cível, Apelação Cível nº 70001991314, Julgado em 29/10/2003, Relator Desembargador João Batista Marques Tovo, consultado em 15/3/2011. 378 www.tjrs.jus.br, TJRS, Sexta Câmara Cível, Apelação Cível nº 70005349865, Julgado em 10/12/2003, Relator Desembargador João Batista Marques Tovo, consultado em 15/3/2011 164 coletivo, com a seguinte conclusão pela Turma Julgadora379: “(...) Todavia, não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral difuso. É preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva. Ocorrência, na espécie...De qualquer sorte, registra-se que a indenização por dano moral tem caráter propedêutico e possui como objetivos a reparação do dano e a pedagógica punição...”. Repara-se que o intuito da indenização concedida não era apenas de compensação pelos danos sofridos, mas de punição e educação do agente transgressor a direitos de outrem, em caráter socializante da condenação. 7) Importante mencionar decisão também do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, em que era discutido o direito à indenização por danos extrapatrimoniais em razão de exigência indevida de empresa concessionária de transporte público de cadastro dos usuários idosos, para a concessão da gratuidade. Com efeito, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul orientava-se pela não concessão da indenização, por ter ficado caracterizado mero aborrecimento dos usuários, incapaz de configurar um dano extrapatrimonial. Em que pese não ter sido modificada a decisão, por tecnicalidades processuais, e após colacionar, em seu voto, decisões exaradas pela 1ª Turma do STJ, no sentido de não conceder esse tipo de indenização, apoiando-se no fato de o dano moral ser personalíssimo, a mencionada relatora manifestou entendimento contrário, por entender não ser essencial à caracterização do dano extrapatrimonial coletivo prova de que houve dor, sentimento, lesão psíquica, afetando a parte sensitiva do ser humano, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Ainda mais, consignou que “as relações jurídicas caminham para uma massificação e a lesão aos interesses de massa não podem ficar sem reparação, sob pena de criar-se litigiosidade contida que levará ao fracasso do Direito como forma de prevenir e reparar os conflitos sociais”. Nesse passo, salientou-se no julgado que a reparação civil segue em seu processo de evolução iniciado com a negação do direito à 379 www.stj.jus.br, STJ, Terceira Turma, REsp 1221756/RJ, julgado em 2/2/2012, Relator Ministro Massami Uyeda, consultado em 12/12/2012. 165 reparação do dano moral puro para a previsão de reparação de dano a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, ao lado do já consagrado direito à reparação pelo dano moral sofrido pelo indivíduo e pela pessoa jurídica. Assim, o dano extrapatrimonial deveria ser averiguado de acordo com as características próprias aos interesses difusos e coletivos, distanciando-se quanto aos caracteres próprios das pessoas físicas que compõem determinada coletividade ou grupo determinado ou indeterminado de pessoas, “sem olvidar que é a confluência dos valores individuais que dão singularidade ao valor coletivo”. Na visão da relatora, o dano moral extrapatrimonial atinge direitos de personalidade do grupo ou coletividade enquanto realidade massificada, que a cada dia mais reclama soluções jurídicas para sua proteção. Trouxe, como exemplo, uma coletividade indígena, que pode sofrer ofensa à honra, à sua dignidade, à sua boa reputação, à sua história, costumes e tradições, não importando isso exigir que a coletividade sinta a dor, a repulsa, a indignação tal qual fosse um indivíduo isolado. “Estas decorrem do sentimento coletivo de participar de determinado grupo ou coletividade, relacionando a própria individualidade à idéia do coletivo”. Embora não concedido o dano extrapatrimonial no caso concreto, ficou evidente o posicionamento do STJ, no sentido de reprimir as condutas antijurídicas causadas à coletividade, e não mais apenas ao indivíduo, em evidente passo evolutivo da responsabilidade civil. 8) Em outro julgado bastante interessante380, em que duas empresas promoviam, ilicitamente, a atividade de jogos e bingo, o Julgador entendeu ter ocorrido um dano à sociedade, asseverando que “Uma empresa criada para explorar o jogo obviamente não foi criada para nada senão o lucro, lucro que se aufere tanto mais quanto mais as pessoas se viciarem e gastarem suas economias no local”. Ou seja, na visão do magistrado, as empresas de jogos haviam sido criadas com o único propósito de ludibriar as pessoas e auferir lucro, sem nenhum benefício para a coletividade. Por esse motivo, entendeu que “Uma das maneiras de se prestigiar o trabalho e incentivar a desistência ao jogo, é reduzir a lucratividade das empresas de jogatina”. E a fórmula utilizada para o cálculo da indenização se revela bastante 380 www.trf2.gov.br, TRF 2ª Região, Oitava Turma Especializada, Apelação Cível nº 200351020070183, julgado em 31/8/2010, Relator Desembargador Federal Raldênio Bonifacio Costa. 166 peculiar: “Sendo assim, como o cidadão trabalhador está sujeito à alíquota de 27,5% de seus rendimentos tributáveis, utilizo esta porcentagem como parâmetro, e fixo, para fins de indenização por danos morais, o percentual de 27,5% do lucro auferido pelas empresas MJJCC PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA e IBIZA ENTRETENIMENTOS LTDA, a ser calculado em sede de execução”. Assim como fica claro o alcance social do caso concreto, com o desprestígio do jogo ilícito e o reconhecimento de um elemento coletivo que serviu como aspecto moralizador das empresas, que é o pagamento dos tributos pelos trabalhadores (honestos), vê-se ter sido desenvolvido um critério inédito e, ainda assim, razoável, que serviu à finalidade a que se destinava. Na falta de elementos legais balizadores, conseguiu o Julgador extrair, do caso concreto, um método de orientação para a aplicação da indenização. 9) Outro importante precedente a respeito da iniciativa dos Tribunais pátrios em reconhecer uma função social à indenização da coletividade refere-se à proteção ao direito ambiental. Em julgamento de ação em que ocorreram danos ao meio ambiente, o STJ381 entendeu que, pela conformação que o Direito dá ao bem ambiental, ele afeta, necessariamente, uma pluralidade difusa de vítimas, mesmo quando certos aspectos particulares da sua danosidade atingem individualmente certos sujeitos. Afetada essa pluralidade de vítimas, representantes da sociedade, deve ser compensado o prejuízo sofrido, não apenas pela recomposição do patrimônio, mas pelo prejuízo não patrimonial sentido por cada uma dessas pessoas inseridas nessa coletividade. 10) Quiçá a decisão mais marcante desse movimento rumo ao reconhecimento de um dano social foi proferida pelo Juízo Recursal do Rio Grande do Sul382, reformando parcialmente o julgado de primeira instância, ao analisar um caso em que uma loteria fraudava os resultados de seus sorteios, auferindo, assim, lucro ilícito à custa de seus consumidores. A autora da ação pedia a reparação pelos danos materiais e morais sofridos em razão dessa fraude, esta comprovada por perícia judicial. Os 381 www.stj.jus.br, Recurso Especial nº 625.249/PR, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 15/8/2006, consultado em 17/6/2012 382 www.tjrs.jus.br, TJRS, Primeira Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio Grande do Sul, Recurso Inominado nº 71001281054, Relator Ricardo Torres Hermann, julgado em 12/7/2007, consultado em 10/7/2010. 167 danos materiais alegados referiam-se ao valor gasto na aquisição das cartelas do sorteio, assim como à perda da chance de ganhar o prêmio oferecido. Sobre essa questão, a Turma Julgadora decidiu afastar os danos materiais referentes à perda da chance de ser sorteado, por entender que a hipótese era muito remota de se concretizar. Por outro lado, em relação às cartelas, o Tribunal concedeu a restituição dos valores pagos (R$ 10,00, equivalentes a 10 cartelas de jogo 383). A respeito dos danos morais, o Juízo Recursal do Rio Grande do Sul entendeu que não seria cabível qualquer indenização, porquanto não vislumbrada a presença de “dor física, sofrimento moral, situações de forte angústia, estresse, exposição a graves desconfortos, situações de vulnerabilidade, etc.” Contudo, mesmo afastando os danos morais puros, a Turma Julgadora reconheceu a necessidade de aplicação de uma indenização punitiva, “ainda que os danos individuais pudessem ter sido pequenos, fragmentados e dispersos pela população”. Alicerçaram-se os Julgadores no fato de que a fraude perpetrada permitia uma vantagem absurdamente grande, mas ilícita, à empresa, que vendia, semanalmente, 750.000 cartelas relativas aos sorteios de loteria que realizava, ao preço de R$ 1,00 cada, assim como na possível ineficácia de uma repressão penal, e, principalmente, para a manutenção da vida social pautada em condutas éticas e morais, em vista da proteção coletiva. Reconheceu-se, assim, a ocorrência de um dano social384, passível de compensação, arbitrada no valor de R$ 10.400,00 (40 salários mínimos), que seria destinada, entretanto, a um fundo de proteção ao consumidor, e não à autora da demanda judicial, para que se evitasse o enriquecimento sem causa. 383 Interessante a conclusão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quanto à indenização por danos materiais concedida: Todavia, obviamente que se fosse apenas esse o valor em disputa, a parte autora seria inclusive considerada carecedora de ação por falta de interesse de agir – isso porque o custo da demanda, para o contribuinte que paga a estrutura do PJ e os vencimentos de todos os atores da cena judiciária, superaria, e muito, o valor final a ser obtido, o que significaria uma absurda irracionalidade econômica, que um país já com tantas carências como o nosso não poderia suportar. 384 Cumpre destacar trecho do acórdão que reflete o entendimento da Turma Recursal, a respeito do reconhecimento do dano social: “Por último, esclareça-se que esta decisão não fere o disposto no art. 944 do CC (“A indenização mede-se pela extensão do dano”.). Isso porque o codificador não explicitou o que entende por dano. E no caso em tela, entende-se que se está a indenizar o “dano social” causado, na esteira das experiências jurídicas contemporâneas de outros países. A expressão “dano”, constante do art. 944, é suficientemente elástica, portanto, para abranger também os danos sociais. Trata-se, portanto, de solução perfeitamente compatível com nosso Direito.” 168 11) Nessa mesma esteira, posteriormente ao caso antes comentado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul385 veio reconhecer novamente a hipótese de danos sociais, em razão de cobrança indevida, por operadora de telefonia, de serviços não contratados pelo consumidor. Julgada parcialmente procedente a demanda em Primeiro Grau, afastando a pretensão indenizatória por danos morais pretendida pelo autor, restou consignado, no voto do Relator do recurso de apelação, que não assistia realmente razão ao pleiteante, pelo fato de que a cobrança do serviço não era suficiente para caracterizar dor, sofrimento, constrangimento, afastando, também, a hipótese de dano extrapatrimonial. Mas esse entendimento não foi acompanhado pelo revisor, que, embora não tenha vislumbrado a presença de um dano moral puro, reconheceu a ocorrência de um dano social, levando em conta “o desmesurado número de demandas semelhantes à presente, que chega aos vários milhares”, a apontar ausência de simples falha de sistema alegado pela empresa, mas de verdadeira estratégia empresarial, adotada também por outras grandes companhias, que contêm enorme número de clientes. O raciocínio utilizado pelo revisor partiu do pressuposto de que boa parte dos clientes não revisava minuciosamente suas faturas, e que, boa parte daqueles que revisavam, não entendia alguns códigos de serviços faturados, e ainda, muitos daqueles que entendiam não chegavam a reclamar administrativamente (para não perderem tempo e paciência no enlouquecedor sistema de call center, também utilizado para alimentar essa estratégia), nem judicialmente (uma vez que os diminutos valores cobrados não compensariam o trabalho e os gastos de uma demanda judicial). Dessa forma, concluiu que, “quando a demanda é ajuizada, a resposta do Direito a uma situação do gênero não pode passar por uma simples devolução dobrada dos valores cobrados, pois tal apenas serve de incentivo para a estratégia empresarial adotada, pois os benefícios obtidos com ela é muito superior aos valores despendidos com o ressarcimento daqueles que reclamam”. Por esses argumentos, ficou o terceiro julgador convencido também da existência de um dano, ao que foi reformada a decisão de Primeiro Grau, contrariamente ao entendimento do Relator. No entanto, concedeu indenização à vítima no módico valor de R$ 2.000,00. 385 www.tjrs.jus.br, TJRS, Décima Nona Câmara Cível, Apelação Cível nº 70040936841, Julgado em 13/3/2012, Relatora Desembargadora Mylene Maria Michel, consultado em 5/3/2013. 169 O que se observa dos exemplos ora mencionados é que essa tendência, do individual ao coletivo, do reconhecimento de um dano social, vem, de fato, ganhando cada vez mais força. Ocorre que, talvez e justamente por ser novo e ainda pouco explorado no ordenamento jurídico brasileiro, esse movimento acontece de forma acanhada e atabalhoada, sem lastros ou critérios que definam quando e como aplicar uma indenização de reparação coletiva e punição ao ofensor, assim como e, principalmente, o valor que deverá ser atribuído ou para quem o montante se destinará. Note-se, no primeiro exemplo, que o Juiz, à mingua de informação precisa e sem partir de qualquer dado concreto, justificou a aplicação de indenização majorada por um plus pedagógico, baseado em vendas que teriam sido realizadas pela empresa causadora do dano. No entanto, sem saber o valor total dessas vendas ou mesmo a recorrência do problema, aplicou um valor de indenização que entendeu condizente ao dano sofrido, sem saber a sua efetiva extensão, e sem destiná-lo às eventuais demais vítimas, ou mesmo sem justificar por que aquele numerário seria suficiente para desestimular uma prática futura da mesma conduta. Por sua vez, no décimo exemplo, mesmo tendo, aparentemente, todos os elementos em mãos, como uma estimativa razoável da quantidade de bilhetes de loteria vendidos, que poderia precisar o valor do lucro obtido ilicitamente, das punições impingidas por órgãos administrativos etc., os Julgadores aplicaram indenização bastante ínfima, que, certamente, não compensou os danos sofridos pela coletividade, tampouco se mostrou capaz de servir como punição ao agente, prestando-se, em realidade, como estímulo para que a prática ilícita fosse reiterada. Certo é que, quanto mais abstrata a situação, ou seja, em que não se envolva um prejuízo patrimonial ou um lucro ilícito, capaz de pautar uma indenização por dano extrapatrimonial, chegar-se a um valor equânime e justo, que cumpra as funções indenitária, punitiva e preventiva da responsabilidade civil, será tarefa bastante árdua ao Julgador. Também não se permite a aplicação de uma indenização dessa natureza a qualquer tipo de pretensão, servindo o direito norte-americano de exemplo, quando desacreditado 170 em virtude de indenizações extremamente elevadas, na aplicação de seus punitive damages, devendo o magistrado partir de certos requisitos e parâmetros, a justificar a imposição de uma penalidade ao agente causador do dano social. Além disso, em outras situações, mostra-se bastante clara a distorção ou importação de conceitos estrangeiros, para justificar um acréscimo à indenização, o que não parece guardar relação com o ordenamento jurídico brasileiro nem a ele se conformar. Embora louvável a iniciativa empreendida pela jurisprudência, não é necessário torcer conceitos e transpor regras já bem definidas para a aplicação de indenizações que atendam aos anseios atuais da sociedade. Também, não devem servir as funções punitiva e pedagógica somente como um enfeite na decisão judicial. Deve haver condenação em valores que realmente desestimulem o ofensor e os potenciais lesantes, impedindo que seja realizada uma lógica lucrativa, diferentemente do que se repara das decisões analisadas. Enfim, verifica-se um verdadeiro direcionamento atual para um fenômeno do dano social, em que são aplicadas indenizações punitivas, com expresso caráter de prevenção de danos, revelando, ainda, uma forte carga socializante. Entrementes, esse fenômeno, carente de balizas, ocorre ainda de forma bastante atrapalhada, sem se valer, no mais das vezes, de qualquer critério para a fixação do quantum, além de importar conceitos e pressupostos de outros ordenamentos, de raízes, jurídicas e culturais, totalmente diferentes. 4.5 O DANO SOCIAL COMO FONTE AUTÔNOMA DE INDENIZAÇÃO: A SUA CONCEITUAÇÃO, NECESSIDADE DE AMPLIAÇÃO E PRESSUPOSTOS Por tudo o que foi até agora exposto, constatou-se que os mecanismos de punição e prevenção utilizados na atual configuração da responsabilidade civil brasileira não correspondem à resposta almejada, pelo Direito e pela coletividade, contra os atentados praticados por aqueles que preferem não se adequar às regras de conduta social, rebaixando 171 a qualidade de vida da comunidade e quebrando o dever de segurança e lealdade que deles se esperava. Em que pese já existir um verdadeiro fenômeno da aplicação de um dano social, utilizado pela jurisprudência para a efetivação, sobretudo, de sanções punitivas, sob a justificativa da função social do processo judicial e garantia das funções punitiva e preventiva da Responsabilidade Civil, o seu emprego ocorre ainda de forma desordenada e com base em instituto (dano moral) que não deveria comportar um aspecto punitivo – ao menos não da forma como é utilizado –, revelando-se imperioso, portanto, o reconhecimento de uma nova categoria de dano, como fonte autônoma de indenização, tanto para tornar legítima a propagação dessas indenizações coletivas, quanto para evitar-se o atropelo dos requisitos exigidos por Lei para a sua formatação. Não se está aqui defendendo que o reconhecimento de uma nova categoria de dano seja a solução para todos os problemas atuais enfrentados pela responsabilidade civil. Mas o passo é importante, para que os estudiosos e aplicadores do direito consigam fundamentar suas decisões (de ajuizar uma ação ou de decidir uma causa) em bases mais sólidas do que aquelas apresentadas pelo cenário jurídico atual. Certamente, ao se confundir a função compensatória com a função de desestímulo, numa mesma condenação – como ocorre, atualmente, na fixação da indenização por danos morais –, obtém-se uma insatisfatória reparação dos danos, assim como uma insuficiente prevenção e punição pela prática de atos antijurídicos. Prestando-se o dano moral a compensar uma ofensa a um direito da personalidade, não cabe a verificação do comportamento do ofensor (culpa grave ou dolo) para a sua majoração, tampouco ao incremento da indenização, que deve corresponder à lesão, ou mesmo a verificação da condição econômica do ofensor ou da vítima, já que esses elementos não alteram a essencial dignidade da vítima, ou quanto dela foi machucado pela lesão causada386. Não pode, dessa maneira, o julgador desviar o seu foco do fato objetivo 386 Pense-se, como exemplo, no caso de acidente ocorrido em viagem turística. Logicamente, não terão direito a maior indenização por danos morais aqueles que adquiriram pacotes com preço mais elevado, porquanto todos sofreram o mesmo dano, não estando o valor da dignidade associado à condição social. Essa 172 do dano e de seu impacto sobre a vítima, para aplicação de indenização por lesão moral, já que esta deve ser medida em sua extensão. Como refere Claudio Luiz Bueno de Godoy, o ordenamento jurídico de hoje não mais imputa a responsabilidade necessariamente a um culpado. Ou seja, começa a ganhar corpo essa ideia de coletivização, de socialização da Responsabilidade Civil, tendo-se em conta a solidariedade social em que é constituída a nação. Consigna ele que, para muitos autores, trata-se de corolário forçoso da lógica do risco: “Ter-se-ia o que se convencionou chamar de Estado de Seguridade, erigido ao pressuposto de que o dano afeta toda a sociedade e, da mesma maneira, a sua recomposição”. Tem-se claro, assim, que o dano reduz o ofendido a uma situação de desigualdade, que precisa ser reequilibrada, pressuposto do solidarismo previsto no texto constitucional, com a determinação de construção de uma sociedade justa e solidária. “Daí a idéia, que ganha corpo, de assentar a responsabilidade civil sobre um fundamento que é mesmo de solidarismo-cooperativo, verdadeiramente uma revelação da eticidade, princípio caro à nova codificação brasileira...”387. De fato, a Constituição Federal de 1988 promoveu um enorme giro paradigmático, deixando de centrar-se na proteção do patrimônio para privilegiar a tutela da pessoa, sua existência e dignidade, apontada, no Direito alemão, como “princípio do livre desenvolvimento da personalidade”. Certamente, a Magna Carta tem forte embasamento na solidariedade388, e determina que as relações se travem com base na probidade e eticidade, inspiração humanista que contrasta com o forte viés individualista presente, por exemplo, no Código Civil de 1916, que bem refletia o pensamento da época em que vigorou389. Desloca-se o foco da responsabilidade da recomposição do patrimônio da vítima – sem que se deixe de se preocupar também com isso, frise-se – para, antes, preservar-se a pessoa do ofendido, de sua existência digna, higidez física e psíquica. Destaque-se, ainda, análise teria sentido no cômputo dos lucros cessantes, em que realmente se discutem os valores obtidos com o exercício da atividade, caso o dano não tivesse ocorrido. 387 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 8/19. 388 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, artigo 3º, I: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;” 389 BERGSTEIN. Gilberto. A informação na relação médico-paciente. São Paulo: Saraiva, p. 90 173 que a proteção da dignidade humana foi alçada a princípio fundamental da República (art. 1o., incisos III, e IV), assim como trouxe a Magna Carta, como objetivo, construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, inciso I), regendo-se o País, em suas relações, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4o, inciso II)390. No contexto dessa nova ordem constitucional, perdem importância as concepções de direitos subjetivos enquanto realização de seus exclusivos interesses, de forma egoística, sem levar em conta a alteridade e os interesses da comunidade. A ordem pública, a moral e os bons costumes deixaram de ser os únicos princípios fundantes do ordenamento jurídico ou, pelo menos, tiveram seu desenho alterado. O conceito de ordem publica é alargado para tutelar também a dignidade humana, em vez de meramente impor limites ao livre atuar do indivíduo. Assim, os direitos subjetivos receberão tutela do ordenamento jurídico quando, além de estarem em conformidade com a vontade do titular, estiverem também de acordo com o interesse social, esse diretamente ligado à lealdade, à boa-fé e à solidariedade391. E é exatamente por esse motivo que, diante da massificação dos danos, doutrina e jurisprudência tentam conformar a Responsabilidade Civil a essa visão “solidarista”, investindo na criação de novas ferramentas de proteção à coletividade. Há, pois, uma clara tendência da doutrina e da jurisprudência em frear esses atos que rebaixam a qualidade de vida da população ou quebram um dever de segurança e lealdade, pelo reconhecimento de funções punitiva e preventiva dos danos extrapatrimoniais, como forma de preservar a ordem pública, a moral, os bons costumes, em vista do interesse social. No entanto, esse caminho trilhado pelos juristas e julgadores aparenta ser muito tortuoso, na medida em que parece não se adequar aos requisitos exigidos pela norma. Tampouco apresentam tais instrumentos uma solução satisfatória aos problemas que buscam remediar. Como antes visto, embora tenha havido tentativas legislativas em atribuir-se uma função punitiva aos danos morais, esses projetos ou caíram no 390 MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Dano Social e sua Reparação. In http://www.nucleotrabalhistacalvet.com.br/artigos, publicado em 13/10/2007, p. 1, consultado em 1º/5/2013. 391 MORAES, Maria Celina Bodin de, Danos à pessoa..., p.105. 174 esquecimento ou não foram aprovados pelo Congresso Nacional392, o que identifica a vontade do Poder Legislativo em não relacionar, aos danos morais, uma indenização punitiva. Foi observado, também, que a conduta do agente, ou seja, a apreciação do grau de sua culpa deve influenciar outros âmbitos do fato ilícito, mas não o valor da indenização por um dano moral. Ademais, a doutrina clássica, viu-se, não atribuía aos danos morais uma função punitiva, para servir como pena privada, seja porque não desenvolvidas ainda essas novas modalidades de danos, para que fosse necessária a adoção de tal medida, seja porque, realmente, essa não era a mens legislatoris, já que, em nenhuma norma, foi vinculado o dano extrapatrimonial à ideia de punição ou dissuasão. Entretanto, atualmente, defender unicamente a função meramente reparatória da responsabilidade civil exclui qualquer reflexão que se pretenda fazer para além do dano e do lesado, justificando assim a manutenção de certas situações que afligem a sociedade, como a prática desenfreada de microlesões, ou mesmo ilícitos lucrativos, já que não restará consubstanciado qualquer dano produzido na esfera jurídica do lesado. Nessa perspectiva, o direito civil mostrar-se-ia incapaz de impor a interrupção da lesão ou a restituição do lucro obtido pela prática de ilícito, porque tal reação punitiva seria característica do direito penal393. Da mesma forma, demonstrou-se que misturar compensação e punição numa única indenização acaba não se prestando para nenhuma das duas intenções. 392 Como se sabe, o veto presidencial excluiu do Código de Defesa do Consumidor o artigo do texto legal original que contemplava a indenização punitiva, cuja redação comportava o seguinte texto: “Art. 16. Se comprovada a alta periculosidade do produto ou serviço que provocou o dano, ou grave imprudência, negligência ou imperícia do fornecedor, será devida multa civil de até um milhão de vezes o Bônus do Tesouro Nacional- BTN, ou índice equivalente que venha substituí-lo, na ação proposta por qualquer dos legitimados à defesa do consumidor em juízo, a critério do juiz, de acordo com a gravidade e a proporção do dano, bem como a situação econômica do responsável”. A justificativa do veto foi no sentido de que “O art. 12 e outras normas já dispõem de modo cabal sobre a reparação do dano sofrido pelo consumidor”. O argumento que o embasava aduzia que “os dispositivos ora vetados criam a figura da 'multa civil', sempre de valor expressivo, sem que sejam definidas a sua destinação e validade.” 393 Esse é o mesmo entendimento trazido por André Gustavo Corrêa de Andrade, ao mencionar que “O ‘paradigma reparatório’, calcado na teoria de que a função da responsabilidade civil é, exclusivamente, a de reparar o dano, tem-se mostrado ineficaz em diversas situações conflituosas, nas quais ou a reparação do dano é impossível, ou não constitui resposta jurídica satisfatória, como se dá, por exemplo, quando o ofensor obtém benefício econômico com o ato ilícito praticado, mesmo depois de pagas as indenizações pertinentes, de natureza reparatória e/ou compensatória; ou quando o ofensor se mostra indiferente à sanção reparatória, vista, então, como um preço que ele se propõe a pagar para cometer o ilícito ou 175 Além disso, tanto a doutrina quanto os Tribunais ainda associam, no mais das vezes, o dano moral à ideia de uma dor, um sentimento, motivo pelo qual diversos danos causados à coletividade ficam sem proteção, na medida em que impossível a verificação de um sentimento negativo da coletividade. Pior ainda, os efeitos nefastos da ausência de reconhecimento de um dano moral, para os casos enquadrados como simples aborrecimento da vítima, culminam numa “mina de ouro” para a prática das microlesões. Da mesma forma, os novos danos morais coletivos e difusos, cada vez mais abordados pelos intérpretes e aplicadores da Lei, não são capazes de resolver todos os problemas ora mencionados. Isso porque as suas hipóteses de reconhecimento somente advém de medidas coletivas propostas pelos poucos representantes legitimados pela norma, sobretudo pelo Ministério Público, que se encontra bastante assoberbado. Não bastasse isso, os critérios utilizados para o reconhecimento de danos morais coletivos ou difusos, pelos tribunais, no mais das vezes, são aqueles mesmos apontados para a concessão de indenização por danos morais, apresentando, portanto, os mesmíssimos problemas de configuração. Não parece, também, comportar a Lei uma indenização majorada de qualquer verba que não esteja relacionada à extensão do dano, nos termos do artigo 944 do Código Civil, malgrado o esforço doutrinário em contrário394. A ideia da restitutio in integrum, trazida nesse artigo, é justamente da reposição somente daquilo que se perdeu, não havendo, então, margem ao acréscimo de qualquer nova verba. Assim, mesmo em face dos gravíssimos problemas sociais, não aparenta ser admissível o atropelo da norma jurídica, da forma como se pretende, ainda mais quando persistir na sua prática”. In ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478f-a346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 394 Para Claudio Luiz Bueno de Godoy, é inaplicável a regra do art. 944 para a fixação de danos morais, já que a sua indenização vem despida de natureza ressarcitória ou reparatória. In PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 5ª edição, Manole: São Paulo, 2011, p. 957. Na mesma esteira é o entendimento de Judith Martins-Costa e Mariana Pargendler, no sentido de que a regra da simetria do artigo 944, caput do Código Civil apenas se aplica a danos patrimoniais, porquanto não ser possível a mensuração monetária da extensão do dano extrapatrimonial: “nesse caso, o que cabe é uma ponderação axiológica, traduzida em valores monetários”. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 22. 176 aprovada ela, em última análise, pela própria sociedade. Parece também ser de pouca técnica jurídica a distorção de conceitos para a inserção de novas funções a institutos que, durante toda a sua longeva existência, nunca a isso se prestaram. O reclamo ao alargamento de aplicação da responsabilidade civil não pode partir de tratamentos teóricos inadequados, eis que fadados à insatisfação de muitos ou mesmo ao seu próprio insucesso. Esses diversos problemas do atual modelo da responsabilidade civil, que se assemelha a um terreno muito acidentado, com alicerces mal assentados, e que acarreta sérias dificuldades tanto para os estudiosos do tema, quanto para os seus intérpretes e aplicadores, que não possuem uma firme base conceitual na qual se apoiar, ou não apresentam conforto doutrinário suficiente para fundamentar adequadamente seus pleitos ou decisões, traduzem o sentimento de angústia que se aprofunda diante do “descompasso existente entre a velocidade do progresso tecnológico e a lentidão com a qual amadurece a capacidade de organizar, social e juridicamente, os processos que acompanham esse progresso”395. Percebe-se, dessa maneira, a obsolescência das soluções jurídicas para fazer frente a um novo dado técnico ou a uma nova situação conflituosa. E é essa crise do “paradigma reparatório” que leva o operador do direito a buscar a superação do modelo tradicional396. Nesse cenário, especialmente em relação a essas novas modalidades de danos coletivos, que se apresenta indispensável o reconhecimento de uma nova categoria de dano. Aos anseios da sociedade devem corresponder normas adequadas, que sirvam à resolução dos problemas apresentados. Muitas vezes, em que pese novas situações necessitem de novas soluções, a resposta ao problema encontra-se na legislação e princípios já existentes, que devem, ao entanto, ser enxergados ou interpretados de forma a amoldar-se à realidade material apresentada naquela determinada época da sociedade. Ou, como afirmou Ricardo Luis Lorenzetti, em muitos casos, não é preciso se buscar uma nova qualificação para os danos, já que podem eles ser tratados com as tradicionais normas relativas às obrigações com 395 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 237. 396 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 177 pluralidade de sujeitos397. O dado que faltava à solução do problema acha-se na mudança de interpretação do mesmo conjunto normativo, sem que se desvirtue a sua equação. Seria suficiente, então, assumir a ocorrência de um dano já existente, um dano extrapatrimonial, atribuindo-lhe uma nova roupagem e amplitude, sem se desgarrar de seus consolidados atributos. Em linguagem mais clara: basta admitir a existência de um mesmo dano, que é extrapatrimonial, mas alçado a um novo patamar, posto em uma nova categoria, para que a nova situação fática da sociedade se conforme a mesma legislação vigente que tão bem ajustou anteriormente as suas condutas. Nesse sentido, como pondera Matilde Zavala de González, o dano extrapatrimonial é único, mas substancialmente múltiple. “Efectivamente y en tanto categoría jurídica, no se configura más que un daño moral, lo cual significa que no hay otros perjuicios “al lado” de aquél. Pero su composición es usualmente densa e compleja, como la vida misma, em cuya virtude el desmedro existencial de una víctima puede oferecer artistas varias”398. Há, portanto, no dano extrapatrimonial uma vasta possibilidade de reconhecimento de categorias múltiplas de danos, que não apenas aquele dano moral puro. Já disseram também Mazeaud e Tunc, de há muito, que a reparação é mais ampla que o prejuízo, eis que admitida a ideia de uma pena privada, utilizada, por vezes, para apaziguar uma antiga sede de vingança que dorme no fundo do coração da vítima, outras como uma pena pública à culpa, castigando-a se ela se produz399. Decerto, a responsabilidade civil é um dos instrumentos jurídicos mais flexíveis, dotado de extrema simplicidade, mostrando-se apta a oferecer a primeira forma de tutela a interesses novos, tão logo sua presença seja identificada pela consciência social, e que, de outra maneira, ficariam desprotegidos, porque ainda não suficientemente amadurecidos para receberem atenção e, portanto, regulamentação própria por parte do legislador 397 LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D, 1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, p. 1. 398 GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, p. 19. Em tradução livre: Efetivamente, enquanto categoria jurídica, configura-se apenas um dano moral, o que significa que não há outros prejuízos além deste. Entretanto, a sua composição é usualmente densa e complexa, como a própria vida, na qual o dano existencial de uma vítima pode oferecer variadas representações. 399 MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 543 178 ordinário. Por se constituir, basicamente, de cláusulas gerais, além de conceitos não determinados e vagos, a responsabilidade civil confere ao magistrado o preenchimento valorativo desses conceitos, pela análise do caso concreto, mediante a aplicação dos princípios e valores constitucionais, sempre em atenção a uma única constante a ser seguida, encontrada na prevalência da tutela da pessoa humana, considerada a dignidade como o valor precípuo do ordenamento, configurando-se como a própria finalidade-função do Direito400. Mas, examinar os danos atuais apenas sob a ótica da tutela da dignidade revela-se insuficiente. Anderson Schreiber sustenta que os pressupostos da responsabilidade civil relacionados à imputação do dever de indenizar perdem relevância em face de uma certa ascensão do dano, com o reconhecimento de um maior número de pretensões indenizatórias. Em parte, o aumento das hipóteses de dano ressarcível encontra lugar no ocaso da culpa e na flexibilização do nexo de causalidade; de outra parte, verifica-se a presença de novos interesses, sobretudo de natureza existencial e coletiva, que passam a ser considerados pelos tribunais como merecedores de tutela401. Por isso que, mais do que encontrar justificativa na cláusula geral de tutela da dignidade humana, ou na gravidade da lesão, ou ainda na dor sentida pela vítima, devem-se observar outros critérios para a verificação de um interesse jurídico que mereça tutela: “O problema do dano ressarcível exige uma outra abordagem. O juízo do merecimento de tutela, a cargo das cortes, somente pode derivar de uma análise concreta e dinâmica dos interesses contrapostos em cada conflito particular, que não resulte em aceitações gerais pretensamente válidas para todos os casos, mas que se limite a ponderar interesses à luz das circunstâncias peculiares. Deixa-se, assim, de se perseguir a enumeração de novos interesses protegidos pelo ordenamento jurídico de forma geral e abstrata – tarefa exclusiva do Poder Legislativo – e se passa simplesmente a definir, em cada caso concreto, o âmbito de prevalência dos diversos interesses contrapostos. Com isto, revela-se 400 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 238/239. 401 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 79/81. 179 uma faceta do dano até então desprezada pela doutrina: a de funcionar como uma espécie de cláusula geral, que permite ao Poder Judiciário, em cada caso concreto, verificar se o interesse alegadamente violado consiste, à luz do ordenamento jurídico vigente, em um interesse digno de proteção, não apenas em abstrato, mas, também e sobretudo, face ao interesse que se lhe contrapõe”402. Erige-se, portanto, uma cláusula geral do dano, autorizando o Poder Judiciário a utilizar-se de ferramentas oferecidas pela Responsabilidade Civil, para que, da análise do caso concreto, possa implementar a solução mais satisfatória. Com efeito, essa cláusula geral de dano já foi reconhecida e vem sendo utilizada com certa frequência. O próprio dano moral, que não tinha existência clara na legislação anterior à Constituição Federal de 1988, era aplicado pelos tribunais, a partir de uma interpretação sistemática de dispositivos legais. Mais recentemente, o reconhecimento, ainda tímido – e ainda bastante equivocado pela doutrina e jurisprudência pátrios –, do dano oriundo da teoria da perda de uma chance, surgida desde o século passado na França, é exemplo da desnecessidade de criação de 402 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil..., p. 134. Importante mencionar que, para o mesmo autor, nem o recurso à cláusula geral de tutela da dignidade humana nem as suas especificações conceituais comuns têm se mostrado aptas a servir direta e definitivamente de critério para a seleção dos interesses merecedores de tutela. A alusão descomprometida à dignidade humana periga resultar na banalização justamente daquilo que mais se pretende proteger. Tampouco a alusão à gravidade da ofensa – que tem ganhado força na doutrina e jurisprudência – pode orientar a verificação de um dano ressarcível. Em primeiro lugar, muitas vezes a gravidade da ofensa é confundida com a gravidade da conduta do ofensor, certo que condutas graves podem não dar margem a um dano extrapatrimonial, ao passo que uma conduta não reprovável pode produzi-lo. Além disso, não parece legítimo distinguir as lesões que se apresentam como graves daquelas que assim não se mostram, ressarcindo apenas as primeiras. Isso porque um semelhante critério não é aplicado aos danos patrimoniais, onde mesmo a lesão mais leve ao patrimônio afigura-se ressarcível. Isso acaba representando uma verdadeira inversão axiológica, privilegiando o patrimônio frente à pessoa, pelo emprego de um critério puramente quantitativo, sem nenhum respaldo normativo. Por fim, a dor associada ao dano moral também deriva de uma confusão conceitual, associada à tradição do pretium doloris ou pecúnia doloris, ainda utilizada pela doutrina e pela jurisprudência, para a caracterização desse tipo de lesão. O dano moral, assim, se resumiria na dor suficientemente grave. No entanto, o problema inicial se encontra na própria dificuldade de aferição do dano não patrimonial diante da configuração absolutamente subjetiva da dor e do sofrimento. Ademais, o masoquista e o insensível também fazem jus à reparação do dano moral. A toda evidência, a dor não representa elemento ontológico do dano moral, mas puro “reflexo consequencialístico”, que pode ou não se manifestar. Afastam-se, assim, critérios equivocados utilizados para definir o bem tutelado pela verificação de um dano extrapatrimonial, com a definição de uma cláusula geral de dano. (pp. 120/125). 180 novas leis e distorção de conceitos e institutos já bastante consolidados no ordenamento jurídico, para a adequação dos novos problemas sociais. Mesmo o dano estético, ainda mais antigo no sistema jurídico brasileiro, que representa uma categoria específica de dano extrapatrimonial403, foi resultado do esforço doutrinário e jurisprudencial, apresentando, hodiernamente, atuação determinante no cômputo das indenizações. É certo que essa expansão da ressarcibilidade corresponde a uma legítima ampliação de tutela dos interesses individuais e coletivos. No entanto, essa expansão acaba encontrando do outro lado crítica da comunidade jurídica, unicamente em razão de um número contido de casos esdrúxulos. Essa resistência e todas as medidas que têm sido propostas contra a expansão do dano em geral, que vão desde a restrição a interesses previamente tipificados até a limitação das indenizações a tetos máximos inteiramente despropositados e mesmo inconstitucionais, mostram-se totalmente incorretas, já que a causa das angústias que afligem a doutrina e banalizam a atuação dos tribunais reflete-se somente na invocação sem fundamento das hipóteses de ampliação do dano ressarcível404. Mais válido, no atual contexto, e certamente mais lógico e eficiente que pretender a exclusão da ressarcibilidade de diversas novas modalidades de prejuízos, é difundir a compreensão do dano como meio de seleção dos interesses merecedores de tutela. Não há dúvida de que, em um cenário de gradual objetivação da responsabilidade civil e de flexibilização da prova do nexo causal, a aferição do dano se eleva a único filtro capaz de, legitimamente, funcionar como instrumento de seleção das demandas de responsabilização. A melhor via parece ser, portanto, a de reconhecer o dano ressarcível como cláusula geral, operando uma efetiva ponderação de interesses em conflito para fins de configuração de elemento imprescindível à deflagração do dever de reparar. 405. 403 Como explica Teresa Ancona Lopez, o dano estético é uma das espécies de dano extrapatrimonial, caracterizado por “qualquer modificação duradoura ou permanente na aparência externa de uma pessoa, modificação esta que lhe acarreta um ‘efeamento’ e lhe causa humilhações e desgostos, dando origem, portanto, a uma dor moral”. In LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 21/46. 404 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 186. 405 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 186/187. 181 Como já alertava São Tomás de Aquino, a Lei Positiva é a lei feita pelo homem para possibilitar a vida em sociedade. Entrementes, essa Lei Positiva subordina-se à Lei Natural, não podendo contrariá-la, sob pena de se tornar uma lei injusta, não existindo obrigação de obedecer à lei injusta406. Havendo lacuna na Lei ou sendo ela injusta, não há, portanto, dever de subordinação, preferindo-se a imposição do Direito Natural, que se rege, conforme entende o mesmo autor, pela ética, traduzida pelo agir de acordo com a natureza racional. O homem, dotado de livre-arbítrio, orientado pela consciência e com capacidade inata de captar, intuitivamente, os ditames da ordem moral, escolhe fazer o bem e evitar o mal. Não ocorrendo essa situação, impõe-se a necessidade de formalização da Justiça, consistente na disposição de dar a cada um o que é seu. Dessa sorte, verifica-se ser inata ao Direito Natural essa ordem moral de se evitar o mal, pela preferência do bem. Existindo, ainda, previsão autorizadora, na Constituição Federal407, de proteção à lesão a bens extrapatrimoniais, mas, especialmente, de tutela da pessoa e de sua dignidade, com a efetiva preservação do patrimônio moral coletivo, assim como por outras leis específicas, que garantem a proteção aos bens morais de determinado grupo qualificado da sociedade (v.g. consumidores408)409, e, apelando-se a esse mesmo Direito Natural, como imperativo de consecução da Justiça, não há como não se reconhecer a existência de um Dano Social410. O que se busca proteger, em realidade, é a própria vida, que, atualmente, assume uma importância bem diferente, como revela Norberto Bobbio, estendendo-se cada vez 406 AQUINO, Tomás de. Suma de Teologia. Vol. III, Parte II-II, versão digital da Biblioteca de Autores Cristianos, in http://www.bac-editorial.com, consultado em 27/5/2013, pp. 457/528. 407 Artigos 1º, II e 5º, V e X. 408 Código de Defesa do Consumidor, art. 6º, VI e VII. 409 Além do Código de Defesa do Consumidor, a Lei nº 7.347/85 reconhece, em seu artigo 1º, a existência de danos extrapatrimoniais a qualquer interesse difuso ou coletivo, em especial àqueles relacionados ao meio ambiente ou às relações de consumo. 410 André Gustavo Corrêa de Andrade explica que a indenização punitiva, aqui inserida no âmbito do Dano Social, encontra respaldo no princípio de proteção da dignidade humana, surgindo como reação legítima e eficaz contra a lesão e a ameaça de lesão a princípios constitucionais da mais alta linhagem. In ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 238. 182 mais para abarcar um conceito de qualidade de vida, resultado dos mais recentes documentos internacionais e da Igreja411. Assim que, seja pela legislação que já comporta proteção a interesses transindividuais, seja por um Direito natural, a cláusula geral de proteção da dignidade humana caminha ao lado da cláusula geral de dano para o reconhecimento desses novos interesses merecedores de tutela. A problemática que circunscreve essa questão surge na configuração desse Dano Social, que se refere à análise da lesão a um bem difuso – difuso porque é de toda a sociedade –, mediante as categorias elaboradas para a verificação dos danos a bens individuais, o que revela a dificuldade enfrentada pelos estudiosos para o seu reconhecimento. Conforme mencionado, não se deve valer das categorias elaboradas para a verificação dos danos a bens individuais. Dessa sorte, não se pode pensar que é o indivíduo que sofre, porque muitas vezes o legitimado será uma pessoa jurídica, que não apresenta sentimentos. Assim, se o dano extrapatrimonial é identificado com o abalo ao estado de espírito, a solução é reconhecer-se ao indivíduo uma esfera social, integrada por bens de incidência coletiva. Dessa forma, em geral, trata-se sempre da preservação do bem coletivo, não apenas como um elemento de afetação da esfera social de um indivíduo, mas como uma parte fundamental do funcionamento social. Por isso que, quando afetado, o dano moral fica constituído pela lesão ao próprio bem, independentemente das repercussões patrimoniais que possa apresentar, de tal modo que o prejuízo imaterial surge pela lesão ao interesse sobre o bem, de natureza extrapatrimonial e coletiva412. 411 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª tiragem, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 228. LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D, 1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, pp. 15/16. 412 183 Essa nova categoria de dano extrapatrimonial, derivado dessa cláusula geral de 413 dano , pautado na proteção da dignidade humana, a que se pretende chamar de Dano Social, representa justamente aquela lesão que atinge o patrimônio coletivo de uma determinada sociedade – sendo este o âmbito de prevalência do interesse contraposto – reverberando em seus valores morais –, o que será avaliado em cada caso concreto. Como ressalta André Gustavo Corrêa de Andrade, o dano ao patrimônio coletivo, seja ele voltado ao ambiente, cultura etc., acarreta mais do que um prejuízo material, eis que atinge toda a coletividade que, apesar de ente despersonalizado, possui valores morais e um patrimônio ideal que merece proteção414. Cabe observar a lesão a direito personalíssimo de cada indivíduo daquela coletividade, ou seja, do ferimento causado às expectativas sociais por eles depositadas naquela conduta, que se mostrou danosa, criandose, dessa forma, a ficção de um direito de personalidade coletivo, de uma dignidade coletiva representada por cada integrante que a compõe. Obviamente, o direito geral de personalidade deve ser vislumbrado segundo uma visão ampla, dentro da noção de que os direitos fundamentais constituem uma ordem de valores constitucionais fundada na liberdade e na dignidade do ser humano e na democracia pluralista, seguindo o redimensionamento dado à noção de pessoa, que passa a ser vislumbrada em sua totalidade415. Todos os valores apontados como relativos à personalidade (existências mentais, existências corpóreas e existências cívicas) formam o estatuto pessoal, perfazem o invólucro do eu, e demandam a devida proteção416. 413 Nesse mesmo sentido, Judith Martins-Costa e Mariana Pargendler destacam que a possibilidade de satisfazer, indenizar ou compensar os danos extrapatrimoniais é amplíssima, “pois o tema é regulado por meio de uma curiosa combinação de cláusulas gerais, já verificada sob a vigência do Código de 1916 mas, por igual, pela conexão intersistemática entre a Constituição Federal que contempla, expressamente, a irrestrita indenizabilidade do dano moral. Vigora, pois, também nessa matéria, o princípio da atipicidade do ilícito”. In MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p.22. 414 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A Evolução do Conceito de Dano Moral. In http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_civil/a_evolucao_do_conceito_de_dano _moral.pdf, consultado em 13/2/2012, p. 25. 415 SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 122/126. 416 REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, pp. 75/77. 184 Limongi França define esses direitos relativos à personalidade como “(...) faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos”417. E, como apresenta Maria Celina Bodin de Moraes, não é possível estabelecer uma identificação fechada e taxativa dos direitos da personalidade, sendo eles reconhecidos “a partir do princípio constitucional da dignidade, de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana”418. A personalidade é, dessa forma, um valor, e não um direito; valor fundamental do ordenamento, que se encontra na base de uma série indefinida de situações existenciais. Ou seja, tutelado é o valor da pessoa, sem limites, motivo pelo qual não pode existir um número fechado de hipóteses tuteladas. Nessa mesma esteira, Teresa Ancona Lopez obtempera que a regra fundamental que garante respeito aos direitos da personalidade é a do artigo 1º, III da Constituição Federal, que protege a dignidade humana, e que o Código Civil, ao regulamentar e sistematizar os direitos personalíssimos, não o fez de maneira completa e exaustiva, deixando “ao julgador a tarefa de enquadrar dentro dessas regras básicas todas as hipóteses que se definirem como direitos da personalidade”, por meio de uma cláusula geral que impede a limitação de seu exercício419. Ao esmiuçar o artigo 5º, X da Constituição Federal, Caio Mário da Silva Pereira aponta que a enumeração traçada pela norma constitucional é meramente exemplificativa, não se tendo querido fazer dela numerus clausus, cabendo à jurisprudência e à lei ordinária aditar outros casos de violação sujeitos à reparação420. Em complemento a esse raciocínio, André Gustavo Corrêa de Andrade informa que a cada dia um novo aspecto da personalidade humana é “destacado e elevado à condição de interesse juridicamente protegido”. Por esse motivo que estaria fadada ao fracasso qualquer tentativa de enumeração exaustiva desses direitos421. 417 FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos privados de personalidade: subsídios para a sua especificação e sistematização. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 55, n. 370, agosto, 1966, p. 8. 418 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp.118/119. 419 LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 58/59. 420 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil de acordo com a Constituição de 1988. 3ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 58. 421 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A Evolução do Conceito de Dano Moral. In http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_civil/a_evolucao_do_conceito_de_dano _moral.pdf, consultado em 13/2/2012, p. 9. 185 Mencionava Pontes de Miranda que “Com a teoria dos direitos da personalidade, começou, para o mundo, nova manhã do direito”422. E essa nova manhã do direito parece ainda irradiar a sua luminosidade para novas situações que demandam proteção da dignidade humana, mostrando-se forçoso reconhecer uma ou diversas novas hipóteses de valores caros à pessoa, em relação a essa sua expectativa social, que é comum a todos os membros integrantes dessa coletividade. Importante observar que na IV Jornada de Direito Civil, organizada e promovida pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, foi aprovado o Enunciado nº 274, que reconheceu “Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana...”. Ou seja, trilhou-se um caminho para o reconhecimento de uma cláusula geral de direitos relativos à personalidade, que é preenchida conforme seja necessário tutelar os interesses humanos. In casu, está-se falando em tutelar os interesses coletivos, na pessoa de cada indivíduo que a compõe, considerando-se todos como parte dessa sociedade, reconhecendo-se, assim, novas possibilidades de lesões a esses interesses, que devem encontrar novas formas de proteção. Como acentua Gustavo Tepedino, a tutela da personalidade não pode se conter em setores estanques, devendo superar a perspectiva setorial (direito público e direito privado), na medida em que a pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere essa dicotomia e atenda à cláusula geral fixada pela Constituição Federal, de promoção da dignidade humana423. Assim que, interpretados como especificação analítica da cláusula geral de tutela da personalidade prevista na Carta Maior que o intérprete, afastando-se da ótica tipificadora seguida pelo Código Civil, e ampliando, assim, a tutela da pessoa não apenas no sentido de contemplar novas hipóteses de ressarcimento, mas no intuito de promover a tutela da personalidade mesmo fora do rol de direitos subjetivos previstos pelo direito codificado, 422 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo 7, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971, p. 6. 423 TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. In Temas de Direito Civil, 3ª edição, pp. 23/58, Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 37/45. 186 poderá vislumbrar instrumentos de promoção do homem, considerado em qualquer situação jurídica de que participe. Parece, então, “lícito considerar a personalidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercido a sua titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de validade”424. Sob essas bases, mediante o reconhecimento de uma cláusula geral de personalidade, voltada à coletividade, para a afirmação da dignidade humana, como também de uma cláusula geral de dano, que se assentará o dano social. Em recentíssimas decisões, ressentido o Tribunal de Justiça de São Paulo das categorias ordinárias de dano (material e moral), reconheceu a existência e necessidade de afirmação de um dano social. Tratava-se de ação promovida por segurado contra operadora de seguros de assistência à saúde, em que se discutia a negativa de cobertura a procedimento médicohospitalar, em atendimento de urgência, por motivo de suposta ausência de cumprimento das carências contratuais. Entendeu o referido Tribunal que a operadora de seguros havia descumprido as determinações trazidas pela Lei que regulamenta o setor, além de ter agido contrariamente ao entendimento fixado na jurisprudência e consolidado em súmula exarada pelo próprio TJSP. No entanto, apontou-se, na decisão, que o método tradicional para a condenação da operadora seria “falível”, motivo pelo qual se justificava uma indenização punitiva. Deixou bastante claro o relator da decisão que a seguradora auferia lucro “com o não uso do capital que vem da contribuição dos segurados durante o tempo que não deseja ou, enquanto não é obrigada a custear esse ou aquele tratamento”. Assim, em face de um dano reiterado, que atinge milhares de pessoas, seguradas ou não, e como forma de prestigiar o interesse coletivo, além da celeridade processual, levando-se em conta as ações similares ou idênticas promovidas por outros segurados, e tendo em conta também a função social da responsabilidade civil, mediante a imposição de uma medida pedagógica, verificou o TJSP a necessidade de imposição de indenização pelo verificado dano social, no valor de R$ 1.000.000,00. Alertou-se, ainda, ao final, sobre a 424 TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. In Temas de Direito Civil, 3ª edição, pp. 23/58, Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 40/53. 187 “...tentativa de fazer com que a responsabilidade civil cumpra a função que a sociedade exige, qual seja, a de encontrar fórmulas subsidiárias para acabar com os efeitos da crise provocada pelos chamados efeitos repetitivos da ilicitude. Quando o Estado não observa as transformações sociais e os demais ramos do direito não enxergam solução, cabe ao intérprete inventar a diretriz que constitua o antidoto contra a recidiva e que, também, puna o agente contraventor com a retirada de lucro desmedido que se obteve à custa das transgressões dos contratos massificados e que vitimizam consumidores impotentes. Então, se não há como remediar a desafiadora atitude da seguradora, que, a despeito de minguadas indenizações individuais, continua a praticar os mesmos e reconhecidos ilícitos, agravando a noção de insegurança e propagando danos que nem sempre são reclamados em Juízo, cabe impor método diverso de reparação para tentar por cobro ao desmando. A indenização punitiva é uma ideia que nasceu e cresceu pela obrigatoriedade de fazer com que a responsabilidade civil chegue ao objetivo da pacificação e, no caso da seguradora, está provado que o método tradicional é falível e foi vulnerado pelas práticas seguintes e iguais. Ainda que assim não fosse, a reparação punitiva é independente da ação do segurado, porque é emitida devido a uma somatória de atos que indicam ser a hora de agir para estabelecer respeitabilidade e equilíbrio nas relações”425. Numa segunda ação, dessa vez julgada pela Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Jales/SP, em que se discutia a qualidade do serviço de telefonia móvel prestado pela operadora TIM, apontou-se para a necessidade de o direito acompanhar as mudanças sociais, por meio da normatização da realidade, reconhecendo-se uma tendência coletiva, ainda que na análise de processos individuais, com a aplicação de indenização pela prática de dano social, em razão da gravidade e reiteração da conduta danosa. 425 www.tjsp.jus.br, TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n° 0027158-41.2010.8.26.0564, Julgado em 18/7/2013, Relator Desembargador Teixeira Leite, consultado em 2/9/2013. 188 Da análise do processo, constatou-se uma prática reiterada da operadora de telefonia móvel em interromper as ligações telefônicas de seus consumidores, para que fossem forçados a repeti-las, gastando novos créditos. Ficou constatado, assim, que, somente com a condenação por danos morais e materiais, não interromperia a operadora essa prática ilegal, porquanto já ter sido condenada a vultosos valores pela agência reguladora desse serviço (ANATEL), assim como pelo Procon de outros Estados, além de inúmeros outros processos judiciais com o mesmo objeto, o que não surtiu resultado. Reconheceu-se que, reiterado o dano, além de enriquecer indevidamente o ofensor, empraia-se por todo o corpo social, tornando-se difuso, não mais individual. Para, então, afastar essa “paixão do lucro”, que move os grandes conglomerados, levando a coletividade à ruína, mostrou-se necessária a aplicação da teoria do dano social, elevandose a dignidade humana, para perfazer funções preventiva (impede-se a reiteração do dano), punitiva (penaliza-se o ofensor pela gravidade da conduta praticada), distributiva (distribui-se a renda da empresa para a população), além de compensatória ou reparatória da coletividade. A partir desse entendimento, a operadora foi condenada a compensar os danos morais sofridos pela vítima, na razão de R$ 6.000,00, e a pagar indenização por danos sociais, fixada em R$ 5 milhões, que seria repartida entre a Santa Casa de Jales e o Hospital do Câncer de Jales – instituições desprovidas de fundos, que dependiam, segundo o julgador, de ajuda constante de terceiros426. Portanto, a constatação dessa lesão acaba importando na verificação da diminuição do patrimônio moral social ou no rebaixamento da qualidade de vida da sociedade, mediante a indagação de se aquele dano fez com que a dignidade de cada indivíduo daquela comunidade tenha sido atingida, tornando pior o convívio comunitário. Com efeito, a Constituição Federal estabelece a configuração do Estado Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa, na igualdade substancial e na solidariedade social, e determina, como meta prioritária, a correção das desigualdades 426 www.tjsp.jus.br, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Jales, Processo n° 1507/2013, Julgado em 10/10/2013, Relator Fernando Antônio de Lima, consultado em 30/10/2013. 189 sociais e regionais, com o propósito de reduzir os desequilíbrios, buscando, justamente, melhorar a qualidade de vida de todos os cidadãos427. Destarte, basta a análise das normas constitucionais, sob o aspecto da proteção da pessoa e da coletividade, para a constatação da ocorrência de um dano social. Tudo aquilo que ferir o interesse coletivo, rebaixando a sua qualidade de vida ou descumprindo o dever de segurança e lealdade, poderá, potencialmente, causar um dano social, passível de reparação428. E a resposta a essas investidas atentatórias ao patrimônio social deve ser a aplicação de uma medida que previna e puna429, capaz de educar o ofensor ou potenciais ofensores, pelo desassossego geral trazido por sua conduta imprópria, revertida em forma de compensação à sociedade – revelando também a sua função distributiva –, que será capaz de prevenir futuros eventuais atentados semelhantes. Não cabe mais deixar somente ao Direito Penal – em razão de sua evidente falência, como antes visto – essa ideia de punição. Renata Chade Cattini Maluf aduz que o Direito Civil, por meio da Responsabilidade Civil, busca, incessantemente, a retribuição e educação, tal qual ocorre no Direito Penal, numa ideia de prevenção futura do ato danoso. Deve, portanto, haver uma interpenetração entre o Direito Penal e o Direito Civil, devendo esses ramos do direito sustentar-se mutuamente, de modo que o primeiro favoreça a reparação, e o segundo ajude na repressão430431. 427 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.110. 428 Lembra Elisabete Aloia Amaro que foi abandonado o caráter privado e patrimonialista de outrora, dandose lugar à busca da dignidade da pessoa, como membro inerente da família e da sociedade. In AMARO, Elisabete Aloia. Responsabilidade civil por ofensa aos direitos da personalidade. p. 158. In NERY, Rosa Maria de Andrade et DONNINI, Rogério (coord.). Responsabilidade Civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 157/171. 429 Caroline Vaz refere que, para a verificação da possibilidade de uma sanção punitiva, basta notar que os artigos 186 e 187 do Código Civil prescrevem, ainda que de forma genérica, os balizamentos para a aferição da ilicitude dos atos civis, não havendo conflito entre o mundo civilista privado e o mundo criminalista público, “sendo perfeitamente cabível a imposição de prestação pecuniária aflitiva ao causador dos danos desta natureza, tal como indica o caráter punitivo que lhe é impresso já implicitamente o sistema como um todo e os artigos referidos”. In VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à Punição e Dissuasão – Os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.131. 430 MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pp.153/154. 431 Complementa esse raciocínio André Gustavo Corrêa de Andrade, ao determinar que “a lei tipicamente penal não tem como prever, em tipos delituosos fechados, todos os fatos que podem gerar danos injustos, 190 De fato, a mera compensação dos danos significa tratar o ser humano como “objeto do mercado”, passível de ressarcimento, como se fosse possível, no plano do direito, retomar a pessoa da forma como era. Ao contrário, sancionar punitivamente o autor do ilícito transforma a pessoa em “sujeito do mercado”, digno de cuidado e respeito em uma ordem de pluralidade de interesses432. Pesem as críticas da doutrina a respeito de uma sanção punitiva, que, por prever uma pena, deveria estar prevista e categorizada em Lei, mostrou-se que a própria lei civil traz diversas hipóteses de penalização. Ao mesmo tempo, a mesma lei deixa clara a intolerância ao cometimento de ilícitos, condutas abusivas, desrespeito à boa-fé objetiva etc. Assim, mostra-se necessária a utilização de um instrumento que faça valer essa vontade da lei, para que se efetive a tutela desses interesses protegidos. Além do mais, a ideia de sanção do juízo penal reflete, no mais das vezes, uma privação da liberdade do infrator, com a ideia de ressocialização do criminoso na sociedade. Por ser medida de tamanha rigorosidade, que priva o homem de um de seus direitos mais preciosos, além de abatê-lo com um estigma talvez insuperável, aos olhos de sua comunidade, revela-se necessária a sua tipificação, com melhores mecanismos de proteção processual. Logicamente, uma medida mais grave demanda um sistema hermético de tipificação de hipóteses de incidência da norma, assim como do tamanho da pena, cabendo ao julgador pouca margem de discricionariedade. O contrário não significa com a imposição de uma pena civil; muito mais branda, cujo único objetivo é assegurar interesses jurídicos, com vista a uma prevenção433. razão pela qual muitas ofensas à dignidade humana e a direitos da personalidade constituem indiferentes penais e, por conseguinte, escapam do alcance da justiça criminal. Além disso, por razões diversas, nem sempre a sanção propriamente penal, oriunda de uma sentença penal condenatória, se mostra suficiente como forma de prevenção de ilícitos”. In ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478f-a346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 432 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 84. 433 Sobre esse tema, André Gustavo Corrêa de Andrade, dentre os diversos argumentos apresentados para refutar a aplicabilidade do princípio da legalidade às penas pecuniárias civis, aduz que a sanção pecuniária não se diferencia da sanção reparatória ou indenizatória no que se refere à sua qualidade ou à forma pela qual se materializa; diferenciam-se apenas pelos fundamentos e finalidade. Ambas, assim, são representadas por 191 Assim que, porque o réu, em um processo criminal, tem muito mais a perder do que o réu em um processo civil, não se mostra necessária a concessão, a este último, das mesmas garantias processuais disponibilizadas ao primeiro. O erro, aqui, está em afirmar que toda e qualquer punição, apenas por ter um caráter retributivo, possui uma natureza criminal. Tanto é assim que, para aplicar uma punição administrativa, ou mesmo impor uma verba múltipla no âmbito civil, não se mostra necessário o cumprimento dos mesmos requisitos incidentes no processo criminal434. Ainda, como admite Vitor Fernandes Gonçalves, o próprio ato de deferir danos compensatórios já implica em uma punição ao réu – ou seja, o simples pagamento de indenização compensatória já constitui uma sanção –, afastando, também, a ideia de uma dupla condenação pelo mesmo ilícito. O que deve existir é uma harmonização entre esfera penal e civil, para que não haja uma punição excessiva. Por isso que a objeção quanto a uma dupla prossecução tem de ser baseada na alegação de injustiça, e não em inconstitucionalidade435. Certamente, a não admissão de uma nova ferramenta, trazida pelo reconhecimento de um novo tipo de dano, afasta a possibilidade de o direito privado salvaguardar interesses que ultrapassem a esfera subjetiva dos particulares, para realizar a importante função de mediação de conflitos que não se resumem ao reequilíbrio da posição jurídica de um dano causado por um sujeito ao outro. Tal referência, é bem de ver, remete a essa terceira e controvertida função que ocasionalmente se reconhece à responsabilidade civil, de sancionar, de punir condutas dinheiro, bem fungível por excelência, certo de que a imposição de uma sanção pecuniária, tanto quanto a condenação ao pagamento de uma indenização, é uma consequência ou resposta natural a um dano. Além disso, afirma que as sanções impostas na esfera penal são, em regra, mais graves que as impostas na esfera civil ou, pelo menos, mais desonrosas, o que lhes acentua o caráter repressivo e preventivo. As diferenças, portanto, entre as esfera penal e civil são, por conseguinte, de grau, não de substância, explicando esse fato a existência de regras distintas de competência e procedimento entre as duas jurisdições. Por isso que, em virtude de sua natureza peculiar, a sanção pecuniária não se submete a todas as restrições feitas às demais sanções penais, em especial às penas corporais. ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 287/292. 434 GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, pp. 178/179. 435 GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, pp. 170/171. 192 lesivas, espaço que, na prática, não raro se preenche no arbitramento do dano moral, e, repita-se, não sem candente crítica. Na mesma linha de raciocínio, Sérgio Severo afirma que, atualmente, vem se constatando na doutrina uma aproximação dos planos cível e penal, de forma que, por um lado, admite-se a reparação cível pelo juízo penal e, de outro, se aceita a função punitiva da reparação436. Quando se torna clara a intenção da indenização (punir ou compensar), o fim colimado pela sanção mostra-se muito mais eficaz. Tanto a vítima saberá que, além de devidamente indenizada, conseguiu também disciplinar o ofensor em prol da coletividade, quanto terá conhecimento o lesante do tamanho da desproporção de seu ato em relação às normas de conduta que deveriam ser seguidas, assimilando que não deverá mais assim agir, além de servir de exemplo a semelhantes infratores. Constata-se, então, que o objetivo único da sanção punitiva deve se voltar à prevenção. Aduz Paula Meira Lourenço que apenas com a possibilidade de punição do agente, por meio da condenação do lesante na entrega do lucro ao lesado (ou a repartição entre o lesado e o Estado, em partes iguais), é possível prevenir e punir as condutas baseadas na mera racionalidade econômica, reforçando, assim, a tutela da pessoa humana437. O escopo principal da pena é o de orientar a conduta dos membros da coletividade, fazendo com que estes se abstenham de cometer certos atos, consentindo com uma vida social que esteja de acordo com certos modelos de comportamento considerados desejáveis. André Gustavo Corrêa de Andrade ensina que a distinção entre a indenização punitiva e a indenização compensatória é justamente a circunstância de que, na primeira, a fixação do montante leva em consideração a gravidade do comportamento do ofensor, 436 SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 186/187. LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória. 437 193 enquanto, na segunda, o quantum é estabelecido com base na gravidade do dano sofrido pelo lesado. Assim, ao mudar-se o foco da vítima para o lesante, “a indenização punitiva atende a um imperativo ético, porque possibilita a realização de um juízo valorativo diferenciado para comportamentos merecedores de diferente censura”. Permite-se, via de separar o comportamento mais reprovável de um menos reprovável, introduzir um critério de justiça no âmbito da responsabilidade civil438. Faz-se apenas um complemento a esse entendimento, no sentido de que a gravidade do comportamento do agressor é verificada em consonância com a gravidade do dano, assim como do bem que foi atingido. Dessa maneira, maior será a gravidade quanto maior for a lesão e mais importante for o interesse jurídico lesado, impondo-se um valor indenizatório mais elevado. É precisamente atendendo à relevância dos bens jurídicos abrangidos pelo princípio da tutela geral da pessoa humana que se defende a aplicação de uma medida mais severa, admitindo-se a condenação do lesante num montante punitivo – pela análise do desvio de sua conduta –, que visa sancioná-lo439. Como salientava Carlos Alberto Bittar, “em momento em que crises de valores e de perspectivas assolam a humanidade, fazendo recrudescer as diferentes formas de violência, esse posicionamento [aplicação de uma sanção punitiva] constitui sólida barreira jurídica a atitudes ou condutas incondizentes com os padrões médios da sociedade. Segundo o autor, a imposição de um valor de desestímulo é fórmula que atende às graves consequências que de atentados à moralidade individual ou social podem advir, devendo imperar o respeito humano e a consideração social como elementos necessários para a vida em comunidade440. Certamente, o papel desempenhado pelas sanções punitivas civis nos sistemas que presentemente a acolhem é totalmente diverso daquele de outrora, em que a sanção posta à disposição dos privados era de livre disposição do lesado. Atualmente, a adoção da pena no 438 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 239. 439 LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória. 440 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, pp. 220/221. 194 direito privado é uma exigência de integração ao sistema de uma tutela efetiva para aqueles casos em que o ressarcimento mostra-se pouco idôneo para prevenir determinadas formas de ilícitos civis. Em vez de constituir um retorno ao passado, esse instituto representa um índice de evolução dos sistemas jurídicos, já que a pena civil abandonou qualquer conotação de exclusividade, resta desprovida de qualquer caráter aniquilador, “podendo simplesmente atuar como um instrumento subsidiário, se não residual ao sistema de ressarcimento”. O que se busca é desencorajar o ofensor e demais potenciais infratores. Há, dessa forma, uma dissuasão mediante a ameaça de um mal como reação a um ilícito. Entretanto, falhando a ameaça intimidativa pela prática do ilícito, surge a pena, como retribuição moral em face do agente. A pena civil define-se, então, como a capacidade do direito privado se servir da justiça retributiva (punição ao autor da conduta reprovável) para afirmar a justiça distributiva (pela tutela de interesses coletivos)441. Bem se sabe que, atualmente, a Responsabilidade Civil volta-se, cada vez mais, à precaução e prevenção do dano, numa forma de antecipar a ocorrência do fato lesivo, para abranger um conhecimento que também é provável, mas não totalmente certo ainda442. Ocorre que, na constatação do dano, a indenização punitiva aplicada presta-se também a cumprir uma função preventiva, agindo como forma de dissuasão da reiteração pelo próprio ofensor, ou como modelo à sociedade, pela demonstração de que danos de tal natureza não serão tolerados, respeitando-se sempre o limite de valor que “não pode exceder, em valor, o que seja suficiente para assegurar sua função preventiva”, como já definiu o artigo 1.621 do Código Civil de Québec. Por certo, a responsabilidade civil não tem natureza unicamente ressarcitória, cumprindo também uma função preventiva e uma função punitiva. “Estas últimas, se manifiestan en las indemnizaciones punitivas que buscan el castigo de una conducta 441 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 16, 26 e 47. 442 Sobre o tema, verificar a doutrina de LOPEZ, Teresa Ancona, Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010. 195 reprochable y la disuasión de conductas similares, tanto para el condenado como para la colectividad”.443 A responsabilidade civil assume, dessa maneira, papel “de erigir mecanismos de garantia da indenidade da pessoa humana, preservando-lhe a existência digna, afinal valor básico do ordenamento, no Brasil elevado a princípio fundamental da República (art. 1º, III)”, mediante a implementação de um sistema cada vez mais voltado não apenas à recomposição do dano, mas, antes, à prevenção de sua ocorrência, que encerra uma função indiscutível, “quer pelo efeito dissuasório de condutas antissociais, dessarte num papel que se pode dizer profilático, quer, na atualidade dos danos anônimos e acidentais, pela exigência que induz de qualidade e cuidado no desempenho de atividades que imponham riscos aos direitos de outrem”444. Percebe-se, desse modo, que punição e prevenção acabam ligando-se umbilicalmente, mostrando, muitas vezes, que a indenização representará a repreensão a uma conduta ao mesmo tempo em que servirá de prevenção à reiteração do ato danoso. Na realidade, tanto quanto possível, deve preferir-se essa linha de raciocínio que procure mais assegurar a efetivação de uma prevenção do que de uma mera punição, representativa de um espírito de vingança ou de moralização da sociedade. Esse objetivo de deterrence, como antes visto, é até mesmo a principal finalidade dos punitive damages nos EUA, demonstrando muito mais uma preocupação social do que a satisfação de interesses individuais das vítimas dos danos. Assim que o dano social traz um elemento preventivo muito intenso. Sabedor da possibilidade de aplicação de uma indenização por dano social previne-se a conduta lesiva do potencial ofensor, que não a praticará. Caso decida ultrapassar essa linha e causar o dano, surge, então, a punição de sua conduta, por meio dos mecanismos de reparação. 443 ÁLVAREZ, Agustín. Repensando la Incorporación de los Daños Punitivos. Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba. In http://www.acaderc.org.ar/doctrina/articulos/repensando-laincorporacion-de-los-danos-punitivos, consultado em 2/10/2013. Em tradução livre: Estas últimas se manifestam nas indenizações punitivas que buscam o castigo para uma conduta reprovável e a dissuasão de condutas similares, tanto para o condenado quanto para a coletividade. 444 GODOY Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 6/7. 196 De fato, a dissuasão é, hoje, uma das funções que tem obtido maior penetração na responsabilidade civil, destinada a coibir a repetição de igual prática danosa, quer pelo lesante, quer por quaisquer pessoas, em um papel de prevenção especial e geral445. Então, a aplicação de uma sanção civil punitiva acaba por superar a visão patrimonialista e individualista dos direitos subjetivos em prol de uma noção eminentemente solidária da responsabilidade civil, porquanto o desestímulo se aplica a todos os potenciais causadores do mesmo dano, ofensores da norma jurídica. “Ao contrário, a sanção civil punitiva é uma demonstração de que, pela potestade dos privados, o direito civil pode ser chamado a realizar tarefas de proteção a interesses difusos e coletivos, transcendendo as esferas estritamente individuais”446. De acordo com o já mencionado, a própria Lei civil traz regras que preveem a penalização do ofensor, como meio para uma prevenção em prol da sociedade. É o caso, por exemplo, da aplicação das astreintes, que acresce ao valor da indenização e só se efetiva depois de descumprida a obrigação, repetindo-se até que o devedor a cumpra. Assumem as astreintes uma função preventiva, antes do descumprimento da obrigação, e punitiva, após o seu descumprimento, com atribuição de todo o montante ao credor da obrigação. Em que pese destinar-se o valor a um particular, ela atende inegável interesse que ultrapassa essa relação interpartes, ainda mais quando estabelecida na proteção de interesses difusos ou coletivos. Ou seja, o próprio legislador não é alheio à figura de sanções punitivas privadas, voltadas mesmo à prevenção e ao apenamento do ofensor, em prol da coletividade, para evitar a repetição do ato danoso447. 445 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 7. 446 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 29. 447 Defendendo uma dupla natureza da Responsabilidade Civil, reparatório-preventiva, e ao analisar a legislação brasileira, Sérgio Severo aponta que não apenas o Código Civil traz a ideia de pena, por exemplo, em seu artigo 1.538, mas também a Lei de Imprensa, o Código Brasileiro de Telecomunicações e o Código Eleitoral aquilatam a intensidade do dolo ou do grau de culpa do ofensor. Caso não houvesse um caráter punitivo subsidiário, não seria necessária qualquer aferição a respeito da conduta do agente, motivo pelo qual o próprio ordenamento aceita e incorpora essa ideia de pena. In SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 190/191. 197 Em diversos outros dispositivos do Código Civil é possível encontrar hipóteses de indenização múltipla, constatando-se, em evidência, a intenção de punição a algum comportamento doloso e reprovável por parte do ofensor, como no artigo 773, que impõe ao segurador o pagamento do dobro do prêmio, quando expedir a apólice, sabendo estar passado o risco que o segurado pretende cobrir, ou nos artigos 939 a 941, que tratam da cobrança de dívida não vencida, cuja pena é o pagamento do dobro das custas ou da dívida ou o seu equivalente. Essa ideia de pena, já introjetada no Código Civil, visa, claramente, uma prevenção da prática de condutas reprováveis448. Por isso que, na aplicação de um Dano Social, o objetivo maior, como explicam Rodolfo Martín González Zavala e Matilde Zavala de González, como em qualquer sistema de reação contra prejuízos injustos, é impedir que eles ocorram. Uma indenização punitiva conseguiria, portanto, satisfazer essa ideia de prevenção, dotando esse princípio de eficácia, atuando, então, para sancionar, eliminar os benefícios auferidos por meio da conduta ilícita e prevenir a sua repetição449. Ou, na visão de Fernando Noronha, a função sancionatória da responsabilidade civil, na esteira da responsabilidade criminal, tem por objetivo, com a imposição ao infrator de uma pena, retribuir o ilícito, com castigo proporcional (finalidade retributiva), mais dissuadir outras pessoas da prática de atos similares (prevenção geral) e ainda dissuadir o próprio criminoso da prática de novos crimes (prevenção especial) 450. O cumprimento dessas funções (punitiva e preventiva), como antes dito, oferece satisfação “à consciência de justiça e à personalidade do lesado, e a indenização pode desempenhar um papel múltiplo, de pena, de satisfação e de equivalência”451. 448 Vai além Vitor Fernandes Gonçalves, ao analisar o artigo 945 do Código Civil, expondo que a lei, nesse caso, autoriza o juiz a utilizar um elemento estranho à mera quantificação do prejuízo para o cálculo da indenização nos casos de culpa, pela análise da gravidade da conduta, deslocando, assim, o critério da reparação do efeito da lesão para a causa da lesão, introduzindo, dessa forma, um elemento punitivo, típico do direito penal, abrindo ao julgador a possibilidade de levar em conta esse elemento nas hipóteses de responsabilidade civil extracontratual. GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 202. 449 ZAVALA, Rodolfo Martín González, GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Indemnización punitiva. Responsabilidad por daños em el tercer milenio. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, pp. 74 e 188/193. 450 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 439. 451 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume II, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.423. 198 Trazendo às claras essa intenção de punir e prevenir, além de resguardar expressamente direitos transindividuais, em proteção ao patrimônio cultural, ambiental etc. da sociedade, para prevalência da dignidade humana, e reconhecendo-se uma cláusula geral de dano, admite-se a existência de um dano social, que prima pela aplicação de uma sanção civil, cujo efeito indireto é a compensação da sociedade. Ao tratar das sanções punitivas privadas, Nelson Rosenvald aquilata o que representa a imposição de uma pena civil no direito privado, “Destarte, para a formulação do papel da pena civil, contentamo-nos com o efeito preventivo, geral e especial. Especial no sentido do objetivo pedagógico de impor uma lição ao autor do ilícito para impedir a reincidência; geral no sentido de que a população seja moralmente reforçada pelo conhecimento de valores que devam ser compartilhados coletivamente e, consequentemente, sinta-se desestimulada a praticar ilícitos. Em ambos os casos o viés inibitório se fará sentir pela ameaça de uma pena de natureza patrimonial, seja pela condenação ao pagamento de um determinado montante ou pela perda de uma posição jurídica de vantagem econômica. A pena, como previsão de uma reação do sistema jurídico, já é o bastante para desencorajar a agressão com eficácia preventiva de direcionamento de comportamentos, por isto, retribuir é, por definição, prevenir. O termo retribuir, explica D’AGOSTINO, não significa impor ao réu o mesmo sofrimento que ele causou à vítima tal e qual o conceito de Talião, ou mesmo repristinar ao status quo, porém, criar uma nova situação de equilíbrio coexistencial. (...) No direito civil, particularmente, a utilização de sanções punitivas é determinada pela necessidade de operar uma maior proteção a alguns atributos da personalidade”452. Esse é o exemplo que se tira da aplicação dos punitive damages, em que a pena civil aplicada pelo magistrado em razão da ilicitude da conduta do ofensor não se 452 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 123 e 125. 199 restringirá a atender interesses particulares da vítima, mas trazer uma prevenção e dissuasão da conduta, com o objetivo de tutelar o interesse geral de evitar que o potencial ofensor pratique qualquer comportamento de perigo social. Ou seja, o interesse particular apenas será relevante enquanto coincidir com o interesse público de intimidar uma pessoa natural ou jurídica, por medida de desestímulo, a adotar um comportamento que não coloque em risco interesses metaindividuais. Por isso mesmo que a vítima não se apropria da totalidade da pena, sendo ela também destinada ao Estado ou instituições assistenciais453. Trata-se, então, de atrair a aplicação do provimento jurisdicional reconhecido pela experiência americana como fluid recovery, ou ressarcimento fluído ou global, como ensina Jorge Luiz Souto Maior, que ocorre quando o juiz condena o réu de forma que também o dano coletivo seja reparado, ainda que não se saiba quantos e quais foram os prejudicados e mesmo tendo sido a ação intentada por um único individuo que alegue o próprio prejuízo, de forma a evitar a precarização completa das relações sociais, que se baseiam na lógica do capitalismo de produção, afastando a prática desse dumping social, que prejudica toda a sociedade e, via de consequência, o aparato judiciário, incapaz de atender às inúmeras demandas individuais, que buscam a mera recomposição da ordem jurídica privada, incentivando, assim, o descumprimento das normas sociais454 Ainda que delineado em um atentado tipicamente difuso (v.g., uma lesão ao meio ambiente), poderá, também, restar configurado o dano social – e esse é o seu maior atrativo – na análise de uma lesão aparentemente individual, mas que traz reflexos para toda a sociedade (por exemplo, uma quebra contratual entre particulares). De acordo com o que argumenta Daniel de Andrade Levy, a sociedade acaba transferindo para a relação linear as suas expectativas sociais, aproximando-se, destarte, dessa ideia de dano social. Seria preciso, portanto, trazer para a relação processual linear todos aqueles que foram ou serão atingidos pelo resultado, sem que se criem litisconsórcios multitudinários, mas apenas considerando essa universalidade de lesados em tese, para que 453 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 44/45. 454 MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Dano Social e sua Reparação. In http://www.nucleotrabalhistacalvet.com.br/artigos, publicado em 13/10/2007, p. 5/8, consultado em 1º/5/2013. 200 se defina quem arcará com os custos de um dano, de que forma deverá fazê-lo e qual será o montante da indenização455. Não apenas do lado do dano sofrido, mas também do agente causador do dano deve repousar a preocupação em relação à aplicação do Dano Social. Geneviève Viney giza, como antes mencionado, que uma das preocupações atuais da responsabilidade civil voltase ao que ela chama “danos de massa”, cujas duas variantes essenciais seriam, de um lado, os danos seriais do consumo, devidos a um produto largamente difundido junto ao público e que se revela defeituoso e, de outro lado, os atentados graves ao ambiente. Para a reflexão completa sobre essa modalidade de dano, seria necessário, primeiro, atribuir as responsabilidades aos verdadeiros autores.456. Essa atribuição de responsabilidades aos verdadeiros autores, ou seja, àqueles que têm a iniciativa da atividade que se mostrou danosa e dela auferem lucro, impõem-se não somente por zelo de justiça, mas também para favorecer a prevenção de danos. Com efeito, os riscos externos devem ser internalizados por aquele que desenvolve a atividade, o que revela a necessidade de buscar-se o verdadeiro causador do dano. Entrementes, muitas vezes, quando do acontecimento de um dano de massa, não é o autor material o verdadeiro responsável, como, por exemplo, no caso de uma filial que tem suas atividades controladas pela matriz. Deve-se, portanto, ir atrás do verdadeiro responsável – que normalmente tem condições melhores de arcar com a indenização –, para que se inicie, a partir de então, a prevenção daquele dano457. De fato, as Cortes americanas deram um passo à frente nesse sentido. Como exemplifica Geneviève Viney, um juiz de Chicago, no famoso caso da maré negra 455 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 174. 456 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 52. 457 Fernando Noronha explica que a função preventiva da responsabilidade civil mostra-se importante, especialmente, no que se refere a danos que podem ser evitados (danos culposos), ganhando mais corpo na análise dos danos transindividuais, com destaque para aqueles resultantes de infrações ao meio ambiente, em que são aplicadas indenizações que trazem a ideia de um valor de desestímulo. NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 441. 201 provocada na Bretanha pelo naufrágio do navio Amoco-Cadiz, admitiu que a pequena sociedade Amoco Transport, proprietária do navio, não era a única responsável pelo derramamento, e que o grupo Standard Oil, do qual ela era filial, deveria também responder pelos danos causados, atendendo assim não apenas à justiça da situação, mas entrando também em harmonia com o princípio ambiental do poluidor-pagador. Em outras situações, relativas aos danos seriais causados pela distribuição massiva de um produto defeituoso, cuja produção e distribuição eram feitas por algumas empresas, certas decisões americanas indicaram a responsabilidade solidária de todas, com a repartição da reparação entre os corresponsáveis em função da importância da parte de mercado detida por cada um458. Dessa forma, o segundo passo, após a constatação do dano, será o de verificar o(s) principal(is) causador(es) do dano ou, na falta de um único responsável direto, um daqueles que tenha participado dessa cadeia lesiva, e que tenha condições de atender à compensação esperada pela sociedade, além de servir como exemplo para a não repetição do dano. Identificado o causador do dano, faz-se necessária a análise de sua conduta, já que escopo indenizatório é a educação do agente e dos demais potenciais causadores de danos similares, sendo a compensação o reflexo da indenização que será apurada. Ou seja, a gravidade da conduta, tal como a dimensão do dano, será fundamental não apenas para a caracterização do dever de reparar, como também para a fixação do montante da indenização. Decerto, a culpa, mais e mais, sobretudo na ampliação que foi dada ao instituto do dano moral, ante a necessidade de fazer prevalecer um caráter pedagógico ao causador de um dano, acaba adquirindo papel, ainda tímido, mas determinante na fixação da indenização. Nesse sentido, jurisprudência e doutrina fixam até mesmo os critérios de reparação do dano moral, como a reprovação da conduta, a gravidade ou intensidade da culpa do 458 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 52/53. 202 agente, a repercussão social do dano, as condições socioeconômicas da vítima e do ofensor459, e, por vezes, das repercussões do ato danoso para a sociedade460. Verifica-se, cada vez mais, a ocupação, pelo ofensor, do papel principal da reparação por danos morais, para a apuração de sua conduta e repreensão, não apenas para a interrupção e não repetição do ato, mas também para que sirva de modelo à sociedade, numa reaproximação da análise da culpa. E, de fato, a fixação desses critérios, ainda para aqueles que levantem a bandeira da impossibilidade de instituição de indenizações punitivas, apenas leva o magistrado à aplicação da repreensão, na medida em que, invariavelmente, fará a análise dessa gravidade de conduta – representada por uma culpa grave ou dolo –, ou seja, da ausência de verificação de um standard de conduta, assim como das características socioeconômicas do ofensor e da vítima, para que possa adequar o quantum. Daniel de Andrade Levy aponta a incoerência do rigor dogmático, na responsabilidade civil, que considera a culpa como condição do an debeatur, mas não a leva em consideração no quantum debeatur. Se o desejo de vingança ainda constitui a natureza humana, não pode a lei ignorá-lo. Não há dúvidas de que, atualmente, a Responsabilidade Civil, que, na criação da teoria do risco, acabou ocasionando um esfacelamento da figura do agente, agora se reaproxima da culpa como variável da indenização461, e o vínculo entre o ilícito civil e a sanção voltam à tona462. Ao tratar do que denominou a “erosão dos filtros tradicionais da reparação”, Anderson Schreiber aponta para uma contraofensiva da culpa, defendida por diversos 459 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 162. 460 STJ, Terceira Turma, Recurso Especial nº 335.392/RJ, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 26/3/2002, consultado em 13/3/2013. 461 A análise da culpa do lesante nas hipóteses de responsabilidade objetiva foi, inclusive, objeto de Enunciados da I e IV Jornadas de Direito Civil, que assim determinaram: “Enunciado da I Jornada de Direito Civil: 46 – Art. 944: A possibilidade de redução do montante da indenização em face do grau de culpa do agente, estabelecida no parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil, deve ser interpretada restritivamente, por representar uma exceção ao princípio da reparação integral do dano[,] não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva. (Alterado pelo Enunciado 380 – IV Jornada)”. “Enunciado da IV Jornada de Direito Civil: 380 — Art. 944: Atribui-se nova redação ao Enunciado n. 46 da I Jornada de Direito Civil, pela supressão da parte final: não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva”. 462 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 35/36. 203 autores, sobretudo daqueles que, “preocupados com o excessivo afastamento da concepção ética da responsabilidade civil, vêm propor a recuperação do seu caráter sancionatório ou punitivo, em prol de um efeito dissuasivo sobre as condutas culposas“. Dessa forma, pesem os benefícios trazidos pela objetivação da responsabilidade, que dá ensejo a um maior número de reparações, em geral, as mantém em valor indenizatório mais reduzido, porque desvinculado o resultado reparatório de intuitos punitivos ou moralizantes que, tradicionalmente, se vinculam à responsabilidade por culpa.463. Define, ainda, Nelson Rosenvald que a aplicação de uma sanção punitiva civil permite resgatar para a responsabilidade civil a distinção entre a culpa e o dolo, que culminou por ser abandonada pelo monopólio da função reparatória, direcionada à aferição exclusiva do pressuposto do dano464. Não se trata, evidentemente, de rejeitar-se a teoria objetiva da responsabilização. De fato, enquadrado o caso concreto à hipótese de responsabilidade objetiva, a compensação da vítima estará garantida, independentemente da análise de seu atuar. Com efeito, essa análise (de sua culpa) apenas determinará a possibilidade de aplicação de uma nova indenização, por uma causa diversa, embora advinda de uma mesma conduta. Como explicou Antonio Junqueira de Azevedo, até mesmo nos casos de responsabilidade objetiva o juiz pode perfeitamente fazer o exame do dolo ou da culpa grave, porquanto não ter essa modalidade de responsabilização excluído a responsabilidade subjetiva, continuando essa a atuar em todas as brechas em que não cabe a análise objetiva e, além disso, podendo ser cumulada como causa de indenização nos casos de responsabilidade objetiva. Aliás, quando a finalidade da indenização é a dissuasão de um comportamento futuro, nem é preciso examinar dolo ou culpa grave, na medida em que o desestímulo é permitido mesmo que se fique exclusivamente no campo da responsabilidade objetiva465. 463 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 47 e 210. 464 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 19. 465 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 380. 204 Ou melhor, a função sancionatória da responsabilidade civil, em casos de responsabilidade objetiva, mostra-se possível nos casos em que for possível incentivar as pessoas a adotar medidas de segurança preventivas, para evitar a ocorrência de danos466. Além disso, orienta Anderson Schreiber que alguns autores chegam mesmo a afirmar expressamente a possibilidade de convergência entre a responsabilidade civil subjetiva e objetiva. Aponta ele que, pela análise dos diversos sistemas de responsabilização, verifica-se uma gradativa perda de nitidez na distinção entre a responsabilidade objetiva e subjetiva. Com efeito, a doutrina comparatista tem constatado extraordinária semelhança entre as soluções alcançadas em diferentes ordenamentos, com a aplicação ora da responsabilidade subjetiva, ora da responsabilidade objetiva. Mesmo no Brasil, onde a matéria era tradicionalmente regida pela responsabilidade subjetiva, as cortes já recorriam a expedientes bastante objetivistas, como a presunção, tomada quase em sentido absoluto, da responsabilidade do motorista que atinge a parte traseira do automóvel alheio. Outros exemplos evidenciam que a responsabilidade subjetiva pode, na prática, adquirir alto grau de objetividade por meio da simples adoção de parâmetros bastante elevados e rígidos de comportamento diligente, ou ainda por força de uma inversão insuperável do ônus probatório na demonstração da culpa467. Observa-se, sobretudo na jurisprudência, uma clara convergência entre essas duas responsabilidades, aplicando-se, em não raras situações, os pressupostos da responsabilidade subjetiva em casos de enquadramento da responsabilidade objetiva e vice-versa. Tem-se também que a pesquisa sobre o elemento volitivo do causador do dano não mais se relaciona com a reparação de danos, mas diretamente com essa ideia de imposição de uma sanção punitiva. Ou seja, uma coisa é a abordagem do nexo de imputação, ou melhor, da razão pela qual se atribui uma obrigação de indenizar – é diminuta a importância da culpa nesse campo, em relação às relações de mercado, prevalecendo a teoria do risco, com a imputação objetiva –, outra é trocar o foco da finalidade reparatória 466 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 439. 467 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 210/211. 205 da responsabilidade civil em direção a uma outra forma de se conferir efetividade a este modelo jurídico, como forma de concretizar a função preventiva468. Assim, por exemplo, a vítima de uma empresa aérea que tenha atrasado um voo estará garantida, independentemente da demonstração de culpa ou dolo, sobre a reparação do dano material e/ou moral que tenha sofrido. No entanto, a verificação de se esse atraso ocorre de forma reiterada e constante, mediante o emprego de culpa grave ou mesmo dolo, para, quiçá, um alavancamento de lucros, ante a ausência de investimento em infraestrutura, possibilitará a aplicação de uma nova indenização, por dano social, em razão do prejuízo sofrido não apenas pelo indivíduo, mas por toda a coletividade, em razão dessa insegurança contínua que rebaixa a qualidade de vida geral. Preserva-se, então, a indenização do indivíduo, partindo-se para a análise da conduta do ofensor em relação ao dano causado à sociedade. Trata-se da aplicação do instituto às hipóteses de indiferença, demonstrada pelo prestador de serviços ou produtor, com a segurança, saúde ou bem-estar dos consumidores, ou também em outras áreas passíveis de lesões semelhantes, como aquelas que degradam o meio ambiente. Dessa forma, num primeiro momento parece apenas ser admitida a indenização por um dano social quando configurado o dolo ou a culpa grave469 no atuar do agente470471. Sua 468 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 172. 469 Para Jorge Mosset Iturraspe há culpas que, por razão das circunstâncias, da posição das partes em relação às obrigações que lhes são impostas, são mais ou menos graves; mas não existe culpa que, considerada em si mesma, prescindindo das circunstâncias do lugar, do tempo e das pessoas, possa ser classificada por dados abstratos e por uma medida invariável e absoluta, como culpa grave, leve ou levíssima. A gravidade da culpa e a sua própria existência está sempre relacionada à sua imputabilidade, é dizer, com as cicunstâncias pelas quais ela se produz. Assim, a comparação de um standard de conduta com aquela sujeita ao julgamento se enriquece com as circunstâncias do tempo e do lugar. As condutas humanas, portanto, devem ser examinadas de acordo com o seu tempo existencial e no meio em que se apresentam ou se desenvolvem. ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por Daños: responsabilidade de los profesionales. Tomo VIII, Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores, 2004, pp. 355/357. 470 Interessante lição de André Gustavo Corrêa de Andrade mostra que a conduta dolosa verificar-se-á na ação dirigida de forma consciente à produção de determinado resultado lesivo; a culpa grave, por sua vez, é aquela decorrente de imprudência ou negligência grosseira, em que o agente atua com grosseira falta grave. Pode ser constatada a culpa grave sem haver previsão da ocorrência do resultado, sendo suficiente, para a sua caracterização, a inobservância do dever mínimo de cuidado que a todos incumbe. É possível, ainda, que a gravidade da culpa decorra da reiteração da conduta do agente ou da circunstância de constituir um padrão de conduta negligente. Nessa esteira, embora o ato, isoladamente considerado, configure apenas uma culpa leve, quando admitido como padrão de comportamento revelará uma culpa grave. In ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, 206 conduta, portanto, deve desbordar do razoável, configurando ou um agir intencional ou sem a observância das consequências que seus atos poderiam causar. No entanto, como define Paulo de Tarso Sanseverino, não se trata de verificar, na consecução do dano, uma culpa grave ou um dolo, para que haja compensação e punição do agente, mas, por outro lado, deve-se levar em conta a análise da dimensão danosa coletiva, na pessoa de cada um dos atingidos, e se tal dano poderia ser evitado ou minorado pelo lesante.472. Ou seja, o que determinará o surgimento dessa lesão será justamente a conduta comissiva ou omissiva adotada pelo agente, a ausência de adoção de medidas preventivas, verificando-se se ele deixou de atenuar ou mesmo operou ou pouco se importou para o agravamento do dano, restando demonstrado, assim, o seu agir doloso ou extremamente negligente. Assim, o núcleo do ilícito ora tratado contentar-se-á em analisar a antijuridicidade do ato comissivo ou omissivo, a partir da verificação de uma indiferença do agente em relação ao cumprimento da norma, intolerável do ponto de vista social, e não propriamente de uma análise profunda de sua culpa ou dolo473. Aproxima-se essa análise das figuras da http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478f-a346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 471 Também Carlos Roberto Gonçalves informa que a culpa é grave quando imprópria ao comum dos homens, decorrente de uma violação mais séria do dever de diligência que se exige do homem mediano, equiparando-se à figura do dolo. In GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 475/476. 472 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012, p.107. 473 Sobre a culpa, importante lição de Nelson Rosenvald merece destaque: “A transformação do papel da culpa deve ser concebida como a transposição de uma ‘culpa ética’ para uma ‘culpa social’. A noção de culpa foi progressivamente depurada dos elementos éticos individuais para se configurar em termos objetivos como desconformidade do comportamento do agente a respeito de parâmetros que se manifestam em grau de tolerabilidade social do risco introduzido pela conduta do agente. Trata-se então de medir a conduta desenvolvida pelo agente com padrões objetivos. (...) Dolo e culpa graves teoricamente pressupõem subjetividades distintas: uma coisa é a intenção de praticar o ato antijurídico; outra, a extrema negligência, Porém, por uma questão de política legislativa poderá o ordenamento lhe proporcionar idênticas consequências jurídicas. Não se trata de uma equiparação que possa partir do intérprete, mas uma consciente escolha do sistema sobre as áreas em que a grave desídia repercuta efeitos similares aos do comportamento intencional. A nosso viso, a razão para se instalar a culpa grave no mesmo patamar sancionatório que o dolo é a natureza difusa dos danos produzidos pelos ilícitos que a sanção pretende retribuir”. In ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 171 e 174/175. 207 culpa consciente e do dolo eventual do Direito Penal474, caracterizados por essa indiferença do agente em relação à observância da norma. É o que, atualmente, o common law define como uma implied malice, aplicada excepcionalmente, bastando a demonstração de uma ação injustificada e grosseiramente irresponsável, caracterizada por uma extrema negligência e completa desconsideração com os direitos de terceiro, que caracteriza, justamente, essa indiferença em relação às consequências do ato praticado475. Justamente por esse motivo que a análise deve se voltar mais à antijuridicidade do ato em relação ao não atendimento de um padrão de conduta, tendo em vista a proporção do dano causado, do que à análise da gravidade da culpa em si476 – embora a análise da culpa possa ser determinante para o cômputo da indenização e, até mesmo, para a caracterização do dever de indenizar, como antes demonstrado477. Dessa forma, verificada a antijuridicidade da conduta do agente em relação a um dano de grande gravidade à dignidade da pessoa, representada pela falta de empenho ou pouca importância demonstrada pelo infrator478, parece estar bem delineado o cenário de aplicação de um dano social. Seria até desarrazoado impor à vítima a demonstração do dolo ou da culpa grave do agente causador do dano, na medida em que, possivelmente, não conseguiria ela 474 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007, p. 37. 475 GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, pp. 67/68. 476 Revela Paula Meira Lourenço que essa ponderação da culpa grave do agente deve ser feita no âmbito de um critério geral orientador: a equidade. In LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória. 477 Paolo Gallo entende que as penas privadas só podem ser aplicadas nas hipóteses de dolo, em razão da excessiva elevação dos níveis de prevenção e consequente aumento do custo social global, como também com o aumento significativa da riqueza em favor do lesado. In GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.63 478 Explica André Gustavo Corrêa de Andrade que a indenização punitiva deve ser aplicada quando constatada a intenção lesiva ou, ao menos, esse desprezo ou indiferença pelo direito alheio. In ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478f-a346ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 208 comprová-la, por não dispor dos meios (financeiros e operacionais) para produzir essa prova. Com efeito, muitas vezes a gravidade do dano e a importância dos bens atingidos já automaticamente demonstrarão essa quebra de um dever de segurança ou boa-fé, capaz de revelar o atuar com culpa grave ou dolo do agente, devendo ele próprio produzir a prova necessária para ilidir essa responsabilização. Quando não for possível inferir, da conduta do agente, essa culpa grave ou dolo, no mais das vezes representados pela sua possibilidade de conhecimento ou indiferença quanto à ilicitude de sua conduta, temerária será qualquer condenação por dano social. Confirma-se, desse modo que, o dano social é uma eficaz ferramenta para a efetivação da prevenção dos efeitos danosos de uma conduta. Mais do que prevenir, buscase incentivar a adoção de condutas que previnam a consequência danosa ou mesmo a atenuem, servindo as atitudes positivas do agente ofensor como fator de redução da indenização. É nesse momento que a Responsabilidade Civil assume papel primordial, porquanto ser ela que “definirá o custo a ser assumido pelo causador do dano segundo os seus níveis de prevenção”479. Sobre essa função não são alheios os Tribunais pátrios, como já se manifestou o Tribunal de Justiça de São Paulo em ação em que se discutia a ocorrência de plágio, reduzindo-se o valor da indenização por danos morais, que continha evidente carga punitiva, em razão de conduta proativa da editora, que, tão logo soube que a obra publicada continha evidentes sinais de cópia de um outro trabalho, providenciou o recolhimento dos exemplares dos centros de distribuição480. Ou seja, constatada a lesão a direito de outrem, sem a necessidade de decisão judicial o ofensor agiu, na tentativa de diminuir o dano causado à vítima. Não se trata, verdadeiramente, de uma política preventiva da empresa, mas a sua ação proativa teve o efeito de diminuir o prejuízo da vítima, restando acertada a decisão de diminuir a indenização, que levou em conta o caráter preventivo da Responsabilidade Civil. 479 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil...p. 138. In www.tjsp.jus.br, TJSP, Apelação Cível nº 9069919-11.2009.8.26.0000, 7ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Ramon Mateo Júnior, julgado em 13/3/2013, consultado em 23/3/2013. 480 209 Como explica Sérgio Severo, a Responsabilidade Civil tem como função principal a indenização, por meio da reparação e da satisfação, comportando, ainda, uma função secundária, destinada à prevenção. Revela o autor que a característica dos danos extrapatrimoniais favorece essa teoria da dupla natureza de satisfação. Ou melhor, por se tratar de interesse sem conteúdo econômico, o dano extrapatrimonial é auferido de forma aproximada, mediante “o maior número de critérios que auxiliem na busca do quantum satisfatório”, motivo pelo qual o caráter preventivo acaba penetrando, em maior ou menor escala, e ajudando na baliza desse montante481. Nesse ponto, procura avançar o Poder Legislativo, por meio no PLS nº 282/2012, de autoria do Senador José Sarney, que pretende a reforma do Código de Defesa do Consumidor, no tocante às ações coletivas, ao prever, nos casos de reparação de danos, sem a necessidade de pedido do autor, condenação “em medidas para minimizar a lesão ou evitar que se repita”, além da própria indenização por danos materiais e extrapatrimoniais. Evidencia-se, dessa forma, a intenção do legislador em inserir, no âmbito dos danos em massa, a figura da duty to mitigate the loss, compreendendo, literalmente, e sem a necessidade de formulação de pedido específico, não apenas a reparação ou compensação pela lesão sofrida, mas também uma medida socioeducativa, para que o dano não se repita. Basta, então, que se reconheça uma nova categoria de dano, advinda de um dano extrapatrimonial, assegurado pela Constituição Federal, para que seja possível a aplicação das funções punitiva e preventiva da Responsabilidade Civil. Esse dano, consubstanciado na reparação social, pela imposição de uma sanção, independerá da existência de outros danos eventualmente apurados em relação ao ilícito praticado pelo ofensor. Inexiste liame obrigatório entre o dano social e os demais danos reparáveis, já que o seu escopo é a inibição de condutas análogas, com a exclusão de determinado comportamento que aflija a sociedade, que seja reprovável, podendo restar configurado até mesmo em ações que não prevejam o pagamento de um dano patrimonial ou moral. 481 SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 189/192. 210 No entanto, a indenização aplicada em casos de dano social é medida residual, utilizada apenas quando preenchidos requisitos determinados, para fazer valer uma função preventiva da responsabilidade civil. Se ela já tiver sido alcançada com a reparação ordinária de danos materiais e morais, não deve ser aplicada indenização por dano social. Condensando todos os argumentos até agora trazidos, Demetrio Alejandro Chamatropulos apresenta as diversas finalidades – e benefícios – que a aplicação de uma sanção punitiva poderia trazer: i) em primeiro lugar, trata-se da imposição de um castigo, para separar a conduta razoável daquela desvaliosa; parte-se também em busca de uma ii) dissuasão, que é o objetivo principal da aplicação de uma multa civil, pois que diversos bens são irreparáveis, sendo antes necessário prevenir o acontecimento dos danos do que repará-los ou compensá-los; além disso, tenta-se iii) eliminar os benefícios injustamente obtidos por meio da atividade danosa, já que a mera reposição da vítima ao status quo ante da lesão não é suficiente, muitas vezes, para eliminar o lucro angariado pelo autor do dano; iv) a promoção da firmeza e da probidade das sentenças judiciais, na medida em qu realçados o valor e a força legal dos julgamentos; v) melhorar as práticas corporativas em matéria de controle de fraude; e, por fim, vi) o restabelecimento do equilíbrio emocional do lesado, pela completude e satisfação de seu desejo de justiça482. De fato, essa sanção punitiva, conforme referido, representará o próprio valor da indenização. Ou melhor, não haverá, em verdade, um plus indenizatório. O quantum variará de acordo com a gravidade e extensão da lesão, assim como pelo comportamento do agente antes, durante e após a ocorrência do dano, obedecendo, também, à regra do artigo 944 do Código Civil. Justamente em razão dessa dificuldade em apurar-se a extensão de um dano extrapatrimonial – como demonstrado, parte da doutrina defende até mesmo que não se impõe essa limitação do artigo 944 aos danos de natureza não econômica – é que a sanção punitiva encontra seu maior campo de aplicação. Como a sociedade foi vítima de um dano não patrimonial, mostrando-se incalculável o prejuízo sofrido por cada indivíduo que a compõe e quanto seria necessário para compensá-lo, a indenização por dano social alcança 482 CHAMATROPULOS, Demetrio Alejandro. Los Daños Punitivos en la Argentina: Legislación. Jurisprudencia. Doctrina. Buenos Aires: Errepar, 2009, pp. 47/55. 211 qualquer medida que se mostrar necessária para que seja feita essa reparação. Utiliza-se, assim, essa reposição à sociedade pelo dano sofrido como forma de sanção punitiva ao agente causador do dano. Deve ficar claro que o objetivo principal dessa modalidade de dano não é a recomposição do status quo ante da sociedade, vez que impossível, mas a sanção do agente, como meio de prevenção de danos. Certamente, a indenização auferida acabará proporcionando, indiretamente, compensação à sociedade pelo dano causado. Essa punição, consequentemente, variará de acordo com a própria conduta do agente e a gravidade da lesão, assim como pelos seus esforços em aumentar ou diminuir o dano, certo de que a indenização acabará respeitando a extensão dessa lesão, não trazendo nenhum plus questionável. Não há razão, dessa forma, para o não reconhecimento de uma nova categoria de dano, já que, pela análise do ordenamento jurídico, não se encontra qualquer empecilho para a legitimação de um dano social. E esse dano social, nas palavras de Claudio Luiz Bueno de Godoy, pode ser definido como um dano de dimensão supra ou metaindividual; uma resposta, além da reparação, que se volta à punição e à dissuasão, que atinge qualquer forma de vida ou de qualquer elemento dela integrante, visando o favorecimento “do eixo da tutela inerente à responsabilidade civil e do sujeito da pretensão que ela suscita”, significando o corolário de uma realidade complexa de proliferação de danos, reconfigurados nos elementos de sua ocorrência, na dimensão de seus efeitos e nas vítimas que a ele se sujeitam483. Dessa sorte, por tudo o que foi aqui tratado, e para firmar-se um conceito a respeito do instituto, pode-se entender que o dano social é a lesão causada a toda a sociedade – assumindo, portanto, a dimensão dos interesses difusos –, aos seus direitos metaindividuais ou transindividuais, de maneira isolada ou repetida, mediante a ruptura, complementar ou alternativamente, da lealdade, da boa-fé, da segurança e da solidariedade, que acarrete o 483 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Alguns apontamentos sobre o dano moral, sua configuração e o arbitramento da indenização. P. 280/383. In CASSETTARI, Christiano. 10 anos de vigência do Código Civil Brasileiro de 2002. Saraiva: São Paulo, 2013, pp. 373/388. 212 rebaixamento do patrimônio moral ou diminuição da qualidade de vida social, praticado com culpa grave ou dolo484 do agente. Essa nova modalidade de dano prestar-se-á a identificar, na sociedade, condutas voluntárias e deliberadamente antijurídicas que simultaneamente violam interesses subjetivos privados e também metaindividuais, apresentando, como resposta, uma dissuasão ou punição, mediante o instrumento de reparação daquilo de que a coletividade foi tolhida, com o fim de assegurar um interesse de prevenção social de condutas danosas. 4.5.1 dano social e abuso de direito Embora o dano social, no mais das vezes, decorra de situações em que há uma clara ilicitude praticada pelo agente infrator, não é possível atribuí-lo apenas à categoria dos atos ilícitos propriamente ditos, na medida em que situações limítrofes, entre o exercício escorreito ou não de um direito, também podem gerar um semelhante dano de proporção difusa. De fato, o dano social pode decorrer de situações em que há abuso de um direito485, quando ficar clara a intenção do agente de invadir o limite do direito de outrem, ainda que seja permitida, abstratamente, a conduta ocasionadora da lesão. É fácil pensar em exemplos que, em um primeiro momento, poderiam levar até mesmo à discussão de se o agir foi correto ou não, já que traçado no limite da Lei, mas que, analisando-os do ponto de vista do bem violado, configuram típicos casos de abuso de um direito, geradores de um dano social. Basta observar as condutas adotadas pelas operadoras de seguro-saúde. Embora prevista no contrato a ausência de cobertura a medicamentos utilizados no domicílio do segurado, é notório o fato de que os Tribunais pátrios já pacificaram o entendimento no 484 A culpa grave ou o dolo, como visto, são, por vezes, inferidos da conduta do agente, da gravidade do dano e da importância do bem lesado, demonstrados pela possibilidade de conhecimento ou pouca importância a respeito da ilicitude da conduta. 485 Sobre a conceituação de abuso de direito, veja-se o tópico 1.2 deste trabalho. 213 sentido de estar contido nas obrigações das operadoras de seguros, por exemplo, o fornecimento de quimioterápicos para tratamento de câncer. O raciocínio utilizado é sempre o de fazer prevalecer o bem maior que o contrato protege, assim como verificar o sistema em que a avença se insere, não podendo ela conter previsões que contrariem a sua própria lógica. Percebe-se que, num primeiro momento, a cláusula de exclusão de cobertura ao medicamento poderia assistir razão à seguradora. No entanto, o bem da vida do segurado em contraposição ao proveito econômico da empresa, assim como a lógica e finalidade do sistema em que se insere o contrato de assistência privada à saúde, fazem com que a conduta adotada revele o abuso de um direito. E esse abuso, somado ao conhecimento da seguradora acerca do posicionamento adotado para casos idênticos pelos Tribunais, assim como à repetição da conduta abusiva, criam campo especial de aplicação da teoria do dano social. Notadamente, as operadoras, ao adotarem essa postura, não o fazem por falta de informação acerca da jurisprudência solidificada ou por má administração empresarial. Pelo contrário, justamente por terem sempre assessorias jurídicas especializadas, sabem elas que, quando condenadas, terão de pagar somente o valor do material ou medicamento e, talvez, as verbas sucumbenciais. Repara-se também serem poucos os Tribunais brasileiros que concedem indenizações por danos morais aos segurados, fazendo valer uma função punitiva ou dissuasória da responsabilidade civil. Ainda mais: sabem as seguradoras que o número de segurados que procura o Poder Judiciário é ínfimo, seja pelo desconhecimento da possibilidade de ingressar com uma ação possivelmente exitosa, pelo ludibrio perpetrado pelas próprias operadoras, de que os termos contratuais são claros acerca da exclusão, seja ainda por medo de futuras retaliações, quando se mostrar necessária a realização de outros procedimentos. 214 Não é difícil perceber, dessa maneira, que a conta feita pelas operadoras é puramente aritmética, pelo balanço, de um lado, do número de segurados e valores de indenização, quando existem, e, de outro, do valor economizado com o não pagamento dessas despesas cuja cobertura era obrigatória. Infaustamente, ao afastarem os Tribunais as condenações por dano moral, ancoramse, no mais das vezes, na justificativa, levantada pelas operadoras, de que o problema reside em interpretação divergente de cláusulas contratuais. Ou seja, não há dano se é legítima a dúvida acerca do dever ou não de cobertura do material ou do medicamento, o que colocaria a seguradora no exercício regular de seu direito, ao negar com base no contrato firmado. Decerto, essa justificativa talvez até pudesse se sustentar há vinte ou mesmo dez anos atrás, quando, realmente, havia discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito desse dever de cobertura. Contudo, atualmente, a ausência de cobertura desses medicamentos situa-se num verdadeiro limite entre a ilicitude e o abuso de direito. Por qualquer ângulo que se analise a questão, verificar-se-á que a ausência de cobertura dos materiais ou medicamentos é abusiva, e que tal abusividade era conhecida pelas operadoras de seguros, que agiram tanto para causar dano a seus segurados, quanto para locupletarem-se indevidamente. É evidente que o desvio do standard de lisura, expresso pela boa-fé objetiva, foi claramente desrespeitado nesse caso. E foi ainda mais além, pela reiteração da conduta, em evidente prejuízo coletivo. Por sinal, como antes mencionado, uma recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo486 condenou uma operadora de seguros e planos de saúde ao pagamento de indenização por dano social, na razão de R$ 1.000.000,00, justamente pelo conhecimento a respeito da jurisprudência, reiteração da conduta, e abuso do direito de recurso. 486 TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n° 0027158-41.2010.8.26.0564, Relator Desembargador Teixeira Leite, julgado em 18/7/2013, consultado em 2/9/2013. 215 Outros exemplos podem ser tirados de outras áreas do Direito, que não apenas o Direito Civil. Adentrando-se na seara trabalhista, toma-se como exemplo a empresa empregadora que, dentro do seu direito de demitir, com ou sem justa causa, desliga o funcionário, alegando motivo justo, em razão de única falta leve por ele perpetrada, ou ainda acaba criando situações desconfortáveis e embaraçosas para que os seus empregados peçam demissão, ou, mais, abusa de seu direito de revista íntima, de forma a constranger os funcionários487. De acordo com o que apresenta Judith Martins-Costa, a boa-fé objetiva, expressão do civiliter agere que deve pautar as relações intersubjetivas regradas pelo Direito, atua, concomitantemente, como fonte de deveres de conduta no terreno obrigacional, cânone para a interpretação dos negócios jurídicos, e baliza para a averiguação da licitude no modo de exercício de direitos, como escudo contra o comportamento contraditório ou desleal. A confiança, por conseguinte, encontra a sua eficácia jurídica como “fundamento de um conjunto de princípios e regras, entre os quais está justamente a boa-fé como baliza das situações de exercício jurídico inadmissível”488. Justamente em razão da confiança, que assegura a preservação das expectativas criadas pelos responsáveis por informações, conselhos e recomendações, e que apresenta um destacado fundamento ético, enquanto valor fundamental das relações privadas, cristalizado nessa forma de proteção das expectativas489, permite-se verificar ainda outras situações mais específicas de aplicação de um dano social. 487 Em interessante decisão, exarada pela 11ª Vara do Trabalho do Recife, oriunda de ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Trabalho, o magistrado condenou a empresa Arcos Dourados, maior franquia da rede de fast-food McDonald’s no Brasil, ao pagamento de indenização de R$ 7,5 milhões por dano moral coletivo. A Arcos Dourados foi acionada por obrigar funcionários a submeterem-se a jornada móvel, o que acarretava disponibilidade do empregado à empresa muito maior do que a jornada regular de trabalho, além de consumir apenas os lanches do McDonald’s no horário das refeições. In http://m.g1.globo.com/pernambuco/noticia/2013/03/acordo-judicial-obriga-mcdonalds-pagar-r-75-milhoesem-indenizacao.html, portal G1, disponibilizado em 21/3/2013 e consultado na mesma data. 488 MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo indicado pela Boa-fé. in TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo: Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 80/82 489 AGUIRRE. João Ricardo Brandão. Responsabilidade e Informação – Efeitos jurídicos das informações, conselhos e recomendações entre particulares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 57/58. 216 Basta pensar no dever jurídico de prestação de informações ou de aconselhamento de um médico ou advogado para com o seu cliente. Desrespeitados de forma grave ou reiteradamente esses deveres, mostra-se possível a configuração de um dano social. Espera-se da parte a adoção de conduta proba, que vise a melhor execução do negócio entabulado, em cumprimento às expectativas criadas pela contraparte, estabelecendo-se um padrão de conduta. Como adverte Antonio Junqueira de Azevedo, “...convém salientar que o princípio da boa-fé, que veio corrigir eventuais excessos do subjetivismo individualista, além de impedir o venire contra factum proprium, impõe também a manutenção de uma linha de conduta uniforme, quer a pessoa esteja na posição de credor quer na de devedor.”490 Ou seja, a atuação do agente contrariamente às expectativas criadas pela parte contrária, ou do que se deveria esperar de seu agir, transbordam do exercício regular de seu direito, revelando abuso, que pode ser enquadrado na figura do dano social, quando for ele excessivo e flagrante. Com a principiologia trazida pelo Código Civil de 2002, que alçou a pessoa ao posto mais alto de proteção, mitigando diversas máximas que anteriormente serviam para a solução dessas questões – cite-se, como exemplo, o pacta sunt servanda, que, atualmente, é bastante mitigado pelos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva –, possibilitou-se um amplo campo de atuação à teoria do abuso de direito. Certamente, o artigo 187 do Código Civil, ao impor genericamente limites ao exercício de toda situação jurídica subjetiva, “criou uma inédita manifestação possível à ilicitude civil decorrente da inobservância manifesta dos limites referidos no texto legal, que, assim, poderá ensejar a responsabilidade civil do titular do direito”491. É possível, destarte, ligar estritamente a figura do dano social ao abuso de direito. Verificada a situação de exercício jurídico inadmissível, que defraude a expectativa de 490 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Interpretação do Contrato pelo exame da vontade contratual. O comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da boa-fé objetiva. Impossibilidade de venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a impossibilidade de fugir do “Programa Contratual” estabelecido. pp. 159/172 Estudos e Pareceres de Direito Privado – Com remissões ao novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2004, p.168 491 GUERRA, Alexandre. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito: entre o exercício inadmissível de posições jurídicas e o direito de danos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 291. 217 confiança – mesmo aquele grau mínimo de confiança que torna pensável a vida social –, apura-se a sua gravidade e exteriorização em relação à sociedade, podendo essa situação caminhar para um dano social. Diversas outras situações, que se encontram no limiar do direito, mas que revelam exercícios inadmissíveis de posições jurídicas, mostram-se merecedoras de proteção, por meio da aplicação de indenização por danos sociais, como, por exemplo, o exercício abusivo de posição dominante no mercado, no Direito da Concorrência, a invasão abusiva da esfera da privacidade492, ou abuso do direito de informação493, ou do direito de narrar matéria jornalística494, ou ainda no caso antes mencionado, de abuso na aplicação de cláusulas contratuais contrárias ao sistema em que elas se inserem, ou mesmo nos casos atuais de corrupção495 etc. 4.5.2 critérios balizadores para a verificação do dano social e apuração do quantum indenizatório 492 Como exemplo, pode-se imaginar o caso da empresa que intercepta os e-mails trocados nas contas pessoais de seus funcionários ou viola correspondência pessoal a eles direcionada. 493 O meio de comunicação que inventa fatos sobre pessoas, principalmente, famosas, para alavancar as vendas de seu periódico, pratica também abuso do direito de informação. É o exemplo do julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial nº 556.291, julgado em 14/12/2004, e consultado em 27/11/2012, da Terceira Turma, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, em que ficou evidenciado o abuso do direito de informar, sob o seguinte fundamento: “Publicações a respeito de um mesmo fato, por empresas jornalísticas diversas, podem ter conseqüências jurídicas também diferentes, pois uma empresa jornalística pode agir com abuso de direito e causar danos morais indenizáveis a determinada pessoa, enquanto outra empresa pode atuar dentro do exercício regular do direito”. 494 O Superior Tribunal de Justiça já decidiu caso em que ficou constatado o abuso do direito de narrar os fatos, o que acarretou danos extrapatrimoniais às vítimas desse exercício ilegal. “RESPONSABILIDADE CIVIL. LEI DE IMPRENSA. NOTÍCIA JORNALÍSTICA. REVISTA VEJA. ABUSO DO DIREITO DE NARRAR. ASSERTIVA CONSTANTE DO ARESTO RECORRIDO. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME NESTA INSTÂNCIA. MATÉRIA PROBATÓRIA. ENUNCIADO N. 7 DA SÚMULA/STJ. DANO MORAL. RESPONSABILIDADE TARIFADA. INAPLICABILIDADE. NÃO-RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. PRECEDENTES. QUANTUM . EXAGERO. REDUÇÃO. RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE. I – Tendo constado do aresto que o jornal que publicou a matéria ofensiva à honra da vítima abusou do direito de narrar os fatos, não há como reexaminar a hipótese nesta instância, por envolver análise das provas, vedada nos termos do enunciado n. 7 da súmula/STJ.” (in www.stj.jus.br, REsp 578777 / RJ, Terceira Turma, Relator Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, julgado em 24/8/2004, DJ 25/10/2004 p. 342, RSTJ vol. 192 p. 360, consultado em 14/1/2013). 495 Cite-se, como exemplo, o caso do “mensalão”, em que políticos participaram de um esquema de desvio de verbas públicas, para benefício próprio, tendo sido apenados pelo Supremo Tribunal Federal com a privação da liberdade. No entanto, muitos deles receberam penas sobremaneira brandas, em que pese o volume de verba pública que desviaram. Certamente, uma sanção punitiva cível poderia, ao lado da pena criminal, cumprir função verdadeiramente preventiva, além de abrandar a preocupação social quanto à impunidade. 218 Traçada uma definição a respeito do Dano Social e verificados os seus pressupostos, cumpre apresentar critérios que possibilitem ao julgador a verificação de ocorrência e aplicação desse instituto, com a maior objetividade possível, para que não se extrapolem nem se diminuam desarrazoadamente as hipóteses de aplicação ou os valores de indenização, fato que poderia levar essa categoria de dano ao ocaso ou ostracismo. De fato, pelo que foi demonstrado até o momento, a dificuldade de aplicação de uma sanção punitiva situa-se, no mais das vezes, nos critérios utilizados para a sua aplicação. O problema dos Tribunais é que, ao aplica-las, não apresentam o embasamento adequado, mesmo que inseridas justificativas para o aumento da indenização por danos morais, como a gravidade da conduta do agente. No mais das vezes, a indenização fica mesmo aquém de compensar o próprio dano sofrido, quanto mais prevenir uma conduta futura ou punir o agente496. Mas, pelos critérios trazidos nas normas presentes no ordenamento jurídico, assim como por aqueles adotados em decisões dos Tribunais brasileiros, com acréscimo dos ensinamentos doutrinários antes analisados, alinhados, sobretudo, à experiência ocorrida em outros Países, é possível traçar certos limites com razoabilidade. Pela própria legislação brasileira, é possível encontrar critérios que podem ser utilizados na verificação de um dano social. Embora de forma equivocada, como antes referido, quando se disse que a condição econômica das partes ou a intensidade da culpa não devem influenciar o cálculo da indenização por danos morais, a Lei nº 4.117/62 (Código Brasileiro de Telecomunicações), em seu artigo 84, apresentava critérios para que o julgador balizasse a sua decisão na imposição de indenização nos casos de calúnia ou difamação: “na estimação do dano moral, o juiz terá em conta, notadamente, a posição social ou política do ofendido, a situação econômica do ofensor, a intensidade do ânimo de ofender, a gravidade e repercussão da ofensa”. 496 É certo dizer que muitos dos problemas na aplicação de uma sanção punitiva poderiam ser resolvidos pelo cálculo acertado de um valor indenizatório justo. Ao compensar o dano extrapatrimonial de forma correta, levando-se em conta realmente a extensão da lesão, seria, na maioria dos casos, até dispensável a aplicação de sanções punitivas. No entanto, trabalhando os Tribunais com valores pré-fixados para cada situação – retirados de outras decisões semelhantes –, acaba-se nem reparando, nem punindo adequadamente. 219 Da mesma forma, a Lei de Imprensa trouxe critérios que deveriam ser levados em conta pelo magistrado na aplicação da indenização (art. 53): I – a intensidade do sofrimento do ofendido, a gravidade, a natureza e repercussão da ofensa e a posição social e política do ofendido; II – a intensidade do dolo ou grau de culpa do responsável, sua situação econômica e sua conduta anterior em ação criminal ou cível fundada em abuso no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação; III – a retratação espontânea e cabal, antes da propositura da ação penal ou cível, a publicação ou transmissão da resposta ou pedido de retificação nos prazos previstos na lei e independentemente de intervenção judicial, e a extensão da reparação por esse meio obtida pelo ofendido. Explica, nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves, que, ainda que revogados os dispositivos de ambas as leis, algumas recomendações continuam a ser aplicadas na generalidade dos casos, como a situação econômica do lesado; a intensidade do sofrimento; a gravidade, a natureza e a repercussão da ofensa; o grau de culpa e a situação econômica do ofensor, bem como as circunstâncias que envolveram os fatos497. Mas a norma que melhor condensa os critérios que serão doravante tratados é o Decreto nº 2.181/1997, que trata da organização do Sistema Nacional do Consumidor – SNDC, que assim dispõe: “Art. 26. Consideram-se circunstâncias agravantes: I - ser o infrator reincidente; II - ter o infrator, comprovadamente, cometido a prática infrativa para obter vantagens indevidas; 497 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 570/572. 220 III - trazer a prática infrativa conseqüências danosas à saúde ou à segurança do consumidor; IV - deixar o infrator, tendo conhecimento do ato lesivo, de tomar as providências para evitar ou mitigar suas conseqüências; V - ter o infrator agido com dolo; VI - ocasionar a prática infrativa dano coletivo ou ter caráter repetitivo; VII - ter a prática infrativa ocorrido em detrimento de menor de dezoito ou maior de sessenta anos ou de pessoas portadoras de deficiência física, mental ou sensorial, interditadas ou não; VIII - dissimular-se a natureza ilícita do ato ou atividade; IX - ser a conduta infrativa praticada aproveitando-se o infrator de grave crise econômica ou da condição cultural, social ou econômica da vítima, ou, ainda, por ocasião de calamidade. (...) Art. 28. Observado o disposto no art. 24 deste Decreto pela autoridade competente, a pena de multa será fixada considerando-se a gravidade da prática infrativa, a extensão do dano causado aos consumidores, a vantagem auferida com o ato infrativo e a condição econômica do infrator, respeitados os parâmetros estabelecidos no parágrafo único do art. 57 da Lei nº 8.078, de 1990”. Mesmo que os critérios sejam utilizados indevidamente – em sua maioria – para a apuração e quantificação de um dano moral, não são estranhos ao ordenamento jurídico brasileiro, podendo enquadrar-se aos casos de dano social. 221 Inicialmente, quanto à análise da conduta do agente causador do dano, é possível definir que poderão ser verificados os danos sociais, especialmente, a partir da constatação do conhecimento do réu acerca de sua conduta contrária à lei ou pelo desprezo quanto à ilegalidade de seu ato, ou ainda quando tomar ele a decisão de prosseguir com a conduta lesiva (a intensidade do ânimo de ofender, prevista no CBT, também presente no julgamento do caso Broome VS. Cassel & Co. Ltda), sob a perspectiva de que a vantagem material obtida seja maior do que a indenização eventualmente paga. Ou seja, a ilicitude da conduta do agente causador do dano é por ele sabida ou pouco se importa ele com a sua eventual ilegalidade, agindo sem se preocupar ou mesmo com o intuito de prejudicar outrem ou obter vantagem indevida498. Obviamente, há casos em que a atividade voltada ao dano mostra-se evidente, sem a necessidade de uma análise mais profunda a respeito da conduta, especialmente quando há repetição da mesma ação ou omissão lesiva. Nas outras situações, não se tratará de verificar a real intenção do lesante, na prática do dano, já que seria tortuoso à vítima conseguir comprová-la, mas mais de constatar se deveria ele ter conhecimento da ilicitude de sua conduta ou mesmo se deveria ter adotado condutas preventivas, com o intuito de afastar ou diminuir o dano, caso possível, ainda que remota499 a sua verificação, mas preferiu não fazê-lo ou demonstrou indiferença na adoção da proteção que poderia implementar. É em razão dessa verificação que, nos EUA, os punitive damages são aplicados apenas nos casos de dolo ou culpa grave, não cabendo indenizações para os casos de simples negligência ou imprudência. No ordenamento jurídico brasileiro estar-se-ia próximo das figuras do dolo eventual e da culpa consciente, como antes referido, o que 498 San Tiago Dantas, há várias décadas, já apontava para a tendência de admissão de uma gradação da culpa, para graduar o montante da reparação, exercendo uma função repressiva, punitiva, ordenando uma “reparação maior quando a culpa for lata, quando a culpa for pesada, e uma reparação menor à medida que se atinge a esfera mais leve da culpa”. DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. Vol II, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1983, p. 102. 499 A ocorrência remota de um dano deverá ser analisada a partir do caso concreto. Se essa hipótese de dano tiver relação com a atividade do agente, poderá ser verificada a ocorrência de dano social, mesmo se adotadas as medidas de proteção exigidas por Lei. Do contrário, caso não haja qualquer relação, deverá ser verificada a conduta do agente, para saber se era seu dever prever essa remota hipótese de dano e adotar as medidas de prevenção cabíveis. 222 deve ser levado em conta pelo julgador. A análise da culpa ou dolo do agente, então, deve ser apurada tanto em relação à consciência sobre a ilicitude de sua conduta, quanto à ausência de adoção das medidas preventivas. Nessa esteira, o caso BMW of North America, Inc. vs. Gore traz outros importantes fundamentos, relacionados ao grau de reprovabilidade da conduta do réu, para a aplicação de indenização punitiva, que podem ser transportados para a análise do dano social, a respeito da repetição da atividade danosa (a conduta anterior em ação criminal ou cível referida na Lei de Imprensa), que também deve ser acrescida à equação para a verificação da conduta, assim como para o cômputo da indenização, na medida em que demonstrará ser o réu recalcitrante, confirmando a pouca importância que apresenta em relação à sua ilicitude, assim como a sua intenção de prejudicar outrem ou auferir vantagem indevida. Essa também a lição trazida por Maria Celina Bodin de Moraes, ao explicitar as hipóteses de aplicação de indenizações punitivas, quando da verificação de “prática danosa reiterada”500. Da mesma forma, deve-se apurar se o prejuízo foi resultado de uma ação intencional ou fraudulenta (a intensidade do dolo ou grau de culpa do responsável presente na Lei de Imprensa e também no julgamento do caso Broome VS. Cassel & Co. Ltda), ou se decorreu de mero acidente. Como antes dito, a análise da culpa do agente apenas dificultará a indenização das vítimas, ainda mais quando se tratar de responsabilidade objetiva. No entanto, há casos em que fica evidente a prática intencional ou fraudulenta, sendo desnecessária qualquer perscrutação por parte do ofendido, de modo a permitir a utilização de tal critério, podendo-se afastar a hipótese de mero acidente, passível de configurar um caso fortuito ou uma força maior. Mas a constatação de ação intencional ou fraudulenta em direção ao dano verificado delineará a lesão social, assim como poderá majorar o valor indenizatório. Decerto, a reunião de um ou vários desses fatores em desfavor do agente causador do dano nem sempre configurará um dano social, dependendo essa afirmação da análise do caso concreto. Por outro lado, a ausência de qualquer desses fatores tornará qualquer 500 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 263. 223 condenação temerária, e deverá eximir o agente de responsabilidade, ao menos por dano social, podendo-se eventualmente discutir a ocorrência de danos moral e/ou patrimonial causados às vítimas diretas. Por esse motivo que não pode passar sem atenção o alerta feito no julgado do caso Rookes vs. Barnard, antes esmiuçado, no sentido de que qualquer elemento que agrave ou atenue a conduta do réu deve ser levado em consideração para a aplicação de uma sanção punitiva. Assim a sua reincidência na mesma prática lesiva ou mesmo a participação em outras atividades ilícitas, ou, por outro lado, a adoção de medidas protetivas ou auxílio às vítimas. Parece bastante clara a intenção da Responsabilidade Civil na reparação dos prejudicados com a prática de condutas danosas e, atualmente, na prevenção da ocorrência ou reiteração dos danos501. Por óbvio, devem ser prestigiados aqueles que obram pela mitigação do prejuízo alheio, na adoção de condutas preferencialmente antes da ocorrência do dano, mas também após a sua efetivação, como forma de contribuir para o restabelecimento da vítima, no aspecto individual ou coletivo. Certamente, é necessário que o ordenamento jurídico prestigie aqueles que adotam medidas extraordinárias de prevenção, caso contrário, qual será a ênfase de um agente econômico ao destinar recursos que poderiam ser direcionados a diversas outras finalidades para obtenção de lucro, quando ciente de que isto de nada valerá na eventualidade de um julgamento desfavorável em uma demanda de responsabilidade civil, ainda mais quando a condenação atingir o mesmo patamar daqueles mesmos empreendedores que adotaram as medidas ordinárias de prevenção de riscos ou, pior, que nenhuma providência tomaram para mitigar esses riscos de danos? Parece até mesmo que o incentivo à adoção de tais medidas mostra-se mais eficaz para o agente evitar o dano do que simplesmente aplicar-se uma pena em caso de ocorrência da lesão. 501 O parágrafo único do artigo 944 do Código Civil dispõe que a indenização será reduzida, caso se verifique desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. 224 Dessa forma, a apuração do quantum que será destinado à indenização por dano social deverá levar em conta as medidas preventivas adotadas pelo agente causador da lesão, ou mesmo se contribuiu para que o prejuízo fosse minorado. Saindo da análise da conduta do agente e partindo-se à análise da dimensão do dano, deve-se analisar se o prejuízo causado foi físico ou meramente econômico. Logicamente, a lesão física será capaz de revelar com mais veemência a ocorrência de um dano social, por importar dano à bem de suprema importância, reverberando também no valor da indenização. Da mesma sorte, a natureza e a gravidade do dano servirão (a gravidade e repercussão da ofensa são previstas no CBT), muitas vezes, como critério definidor da ocorrência de um dano social. Utilizando-se o exemplo de uma plataforma de petróleo que proporciona um derramamento, e que torna impróprio o mar para banho, pesca e outras atividades, e, pior, causa doenças à população, pode ser verificada uma lesão social, mesmo que comprovada a adoção das medidas preventivas e de proteção contra acidentes. De fato, por se tratar de dano gravíssimo, e de possível ocorrência, relacionado à atividade do agente, poderá haver constatação de dano social, se outras medidas, além daquelas mínimas exigidas em Lei ou pelos órgãos que regulamentem o setor, pudessem ter sido implementadas e não o foram. Manifestamente, a natureza e gravidade da lesão são fatores preponderantes na constatação do ocorrido, na medida em que, mesmo constatada atitude insultuosa do agente ofensor, que seria capaz de provocar um mal à coesão social, pode ser que o dano ocorrido seja tão simplório que seja ele compensado pela mera reposição patrimonial, assim como pela vergonha trazida ao lesante em razão da ação judicial que sofreu. Imagine-se, nesse sentido, uma tentativa de fraude em cartelas de jogo de quermesse, realizada em um determinado clube, mas que fosse aberta ao público, sendo o lesante conhecido e querido pelos presentes e organizadores do evento. Descobre-se não apenas a fraude, mas que foi ela praticada nos últimos eventos similares, pelo mesmo fraudador. Possivelmente, a reposição do prejuízo material sofrido pelas pessoas lá 225 presentes e o vexame sofrido pelo fraudador sejam suficientes para satisfazer a consciência coletiva, ainda que possam estar presentes os elementos caracterizadores de um dano social. Não é possível desvincular a reprovabilidade da conduta da gravidade da lesão. Os fatores subjetivos relacionados ao lesante devem estar relacionados com elementos objetivos do evento lesivo, para que se apure o tamanho da indenização. Por isso que, por exemplo, uma conduta negligentemente grosseira, que traga lesão à integridade física da vítima, poderá apresentar indenização superior a uma outra ação, cometida com dolo, que afete a sua privacidade. Esses elementos subjetivos devem, portanto, ser avaliados de acordo com a espécie de interesse jurídico violado e a extensão e a intensidade do dano502. Assim, deve ser levada em conta a gravidade e a repercussão desse dano, se ele de fato trouxe constrangimento e mal estar social, se ultrapassou a esfera individual das vítimas, como também o bem que foi atingido, se de maior ou menor importância, ou seja, se foi ferido o patrimônio social e aviltada a dignidade humana. Aqui se encaixam os requisitos trazidos por Matilde Zavala de Gonzáles, para quem se deve avaliar, inicialmente, a entidade afetada e a gravidade da lesão; o valor do bem lesado em seu aspecto extrapatrimonial (valor artístico, histórico etc.), quando não for possível atribuir um valor de mercado; o tempo necessário para a restauração do bem; a possibilidade de reparação do bem e a dimensão social do interesse afetado503. Quanto à dimensão social do interesse afetado, deve-se levar em conta também o patrimônio físico da coletividade que tenha sido atingido. Tratando-se de lesão à bem cultural, natural etc., importante ter em conta o tempo necessário para a sua restauração. A conta, então, deve também se basear no tempo em que a sociedade ficará privada de 502 André Gustavo Corrêa de Andrade explica que, caso desvinculados esses fatores subjetivos dos elementos objetivos, a responsabilidade civil estaria desempenhando um papel que é próprio da moral, não do Direito, preocupada apenas com as boas e más intenções do homem, e não com as ações e suas consequências. In ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.307. 503 GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, p. 360. 226 usufruir do bem atingido. Dessa sorte, apura-se o tempo de privação em relação ao bem social atingido e qual a dimensão e repercussão social desse bem atingido. Demais disso, pela experimentação inglesa a respeito dos punitive damages, onde a ideia de punição é aplicada de forma balizada e coerente, também se mostra pertinente a utilização de alguns critérios, que podem ser incorporados para a aplicação do Dano Social, no sentido que a indenização advinda desse tipo de lesão deve ser atribuída somente quando a verba relativa à compensação da vítima (em danos materiais e morais) não for suficiente para preencher a finalidade da Responsabilidade Civil (a regra “if, but only if”). Como antes dito, a sanção civil punitiva deve ser aplicada excepcionalmente, como sanção por ter o ofendido incorrido em condutas sumamente demeritórias, com vistas ao seu desencorajamento e dos demais potenciais transgressores das normas, visando o aspecto preventivo da responsabilidade civil504. Ou seja, ela é subsidiária à retribuição proporcionada pela indenização505. Isso porque, por diversas vezes, verifica-se que a indenização da vítima, nas categorias de danos já existentes (dano material e moral), é suficiente para integrar tanto a função reparadora, quanto preventiva da Responsabilidade Civil. Com efeito, principalmente em atenção às condições financeiras do lesante, o valor por ele despendido no pagamento da vítima direta do dano, além de ser suficiente para compensá-la, já revela a sua efetiva punição, mostrando-se desnecessária a destinação de uma outra indenização, relacionada aos danos sofridos pela sociedade, porquanto satisfeita ela pela real possibilidade de que eles não serão novamente praticados. Ao analisar os critérios trazidos pelo Código Civil de Québec, Daniel de Andrade Levy informa que esse referido elemento apresenta-se especialmente necessário, já que a análise de se a reparação dos danos material e moral, por si só, já não seria suficiente para 504 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 26. 505 Consigna João Casillo que a sanção punitiva é secundária, funcionando mais com caráter intimidatório para evitar o dano, porém, também para fazer com que o causador sinta uma verdadeira pena após a prática de seu ilícito. CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 83. 227 desestimular o agente a repetir a conduta é essencial, sob o risco de haver uma punição generalizada506. E, logicamente, o afastamento de uma eventual repetição do dano e a demonstração da reprovação social perante aquela conduta são a finalidade principal da indenização por dano social, para que se retome a tranquilidade e bem-estar coletivos. Daí advém um novo critério, utilizado também na Inglaterra, como também pelo ordenamento jurídico brasileiro, na aplicação de danos extrapatrimoniais – ainda que ocorra indevidamente, como alhures exposto –, a respeito da condição econômica do ofensor. Não seria crível aplicar uma indenização/sanção que não seja sentida pelo ofensor, e que já esteja integrada nos seus cálculos econômicos. Quanto maior a corporação ou a empresa, ou se ela é dominante no mercado, maior será o seu potencial ou melhores serão os seus mecanismos de causar danos, devendo-se levar em conta o seu poder econômico, para que realmente remova-se o lucro obtido e puna-se o seu comportamento, visando o desestímulo e a prevenção507. Por outro lado, não seria interessante à própria sociedade, a não ser que o causador do dano tenha a única intenção ou não se importe em provocar o mal, como, por exemplo, uma empresa que, reiteradamente, polua o meio ambiente, não importem as multas e restrições a ela impostas, excluir alguém que traga investimentos e empregos à economia, por motivo de impossibilidade de continuidade das atividades em razão do valor da indenização. Com efeito, o princípio constitucional da solidariedade social, como reflexo da dignidade humana, impõe restrição à regra de reparação integral do dano. O montante da indenização não pode privar o ofensor dos bens necessários à manutenção de uma vida 506 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 117/118. 507 Nessa mesma linha, André Gustavo Corrêa de Andrade consigna que a condição econômica do ofensor deve ser levada em consideração porque relacionada diretamente com a função retributivo-dissuasória da indenização punitiva. Somente será desempenhado eficazmente o papel de prevenir a prática de novos ilícitos se a punição for fixada em montante suficiente para afetar ou incomodar o lesante. ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 302. 228 digna, devendo ser dada interpretação extensiva ao parágrafo único do art. 928 do Código Civil508. É nessa esteira também que entra a análise do lucro auferido pelo lesante com a prática danosa, devendo ser esse fator devidamente escrutinizado para o cálculo do quantum. Caso a decisão que o condene ao pagamento de indenização pelo cometimento de um dano social arbitre valor inferior ao lucro obtido, certamente de nada ela valerá. Assim, caso tenha havido lucro, a indenização partirá exatamente do montante auferido pelo lesante, utilizando-se, a partir de então, os demais critérios para o cálculo do quantum. Não apenas esse lucro, mas deve a indenização se prestar a impedir que seja realizada uma lógica econômica pelo agente, para não se permitir que o custo do risco seja aplicado ao custo do produto, coletivizando, assim, a sua perda. O montante, então, deve superar qualquer possibilidade de raciocínio econômico feito anteriormente pelo ofensor para a prática do dano509. Dessa forma, deve ser feita uma profunda análise da situação financeira do lesante, para que se apure um valor que possa ser suportado, sem levá-lo à falência ou impedir o bom andamento de suas atividades – caso a sua atividade seja séria, sem buscar apenas as práticas maliciosas ou desarranjo do mercado –, mas que, de outra forma, também seja capaz de balizar uma indenização que não seja inofensiva ou inócua, que incentive a não praticar mais o ato e investir em formas de proteção e prevenção dos riscos. Tal como 508 TEPEDINO, Gustavo et alli. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Volume II, Rio de Janeiro: Renovar, pp. 861/862. 509 Agustín Álvarez define alguns dos critérios ora tratados, presentes no artigo 51 da Lei de Defesa do Consumidor argentina, que permitiu a aplicação de uma multa civil, pelo juiz, em determinados casos, e que vem permitindo a aplicação de indenização punitiva pela jurisprudência, a saber: “la gravedad del hecho se relaciona directamente con el juicio de reprochabilidad alagente dañador: una grave indiferencia, una violación conciente y deliberada a los estándares de seguridad, graves omisiones al deber de información, en fin, cualquier actitud que importe intercambiar la seguridad del producto por el aumento de las ganancias(...)la solvencia del proveedor: es necesario disuadir la conducta, por lo que debe ser un “apriete al bolsillo”, sin resultar confiscatória; la cuantía del beneficio obtenido: esto se relaciona directamente con la institución del enriquecimiento si causa; la reincidencia: se propone que se agrave la multa para el reincidente, ya que em esos casos, ocurre que la primera no ha cumplido su función disuasoria" in ÁLVAREZ, Agustín. Repensando la Incorporación de los Daños Punitivos. Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba. In http://www.acaderc.org.ar/doctrina/articulos/repensando-laincorporacion-de-los-danos-punitivos, consultado em 2/10/2013. 229 ocorre no Direito Penal, quando da aplicação da pena de multa510, deve ser verificada a condição econômica do réu511, pela análise de sua renda média, incluído o salário, bens e capitais. Américo Luís Martins da Silva explica que uma pena pecuniária deve servir ao ofensor como um “exemplo marcante”, traduzida por uma importante diminuição de seu patrimônio material, eis que, se assim não for, de nada valerá a sua condenação e, consequentemente, o desestímulo que a indenização pretendia impor. Dessa forma, sugere que seja feita uma pesquisa no patrimônio do ofensor, a fim de que possa o juiz arbitrar uma indenização suficiente para atender ao caráter punitivo da Responsabilidade Civil, reprimindo o impulso de agir novamente de maneira condenável512. Também, as multas civis autorizadas para a punição da empresa ou impostas em casos semelhantes devem servir como critério para a aplicação da indenização pelo dano social. Certamente, os órgãos governamentais de regulamentação dos diversos setores da economia impõem, em determinados casos, rigorosas multas às empresas que deixem de atender as regras de mercado, revelando-se, assim, um bis in idem a imposição de uma indenização, caso já atendida a função de punição e desestimulo pela pena administrativa. Mas, da mesma forma como devem impedir a aplicação de indenizações extravagantes, essas multas civis devem servir como baliza ao julgador, para a apuração do quantum indenizatório em ações cujo objeto seja semelhante ao que levou à aplicação da penalidade. Por não ser uma ciência exata, o direito depende muito da casuística, como um balão de ensaios, até que seja atingido um ponto certo equilíbrio. Com efeito, na aplicação dessas multas, muitas das vezes, os órgãos governamentais realizam estudos a respeito das empresas, e chegam a um valor que que acaba cumprindo a sua função de impedir a continuação do resultado lesivo. Até mesmo essas multas, por vezes, tem que ser 510 Código Penal Brasileiro “Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa”. 511 Código Penal Brasileiro “Art. 60 - Na fixação da pena de multa o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica do réu”. 512 SILVA, Américo Luís Martins da. O Dano Moral e a sua Reparação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 321/322. 230 novamente aplicadas ou majoradas, em razão de reiteração da conduta irregular da empresa. Assim, deve existir essa troca de experiências entre Poderes que procuram uma mesma finalidade. Finalmente, devem ser levadas em conta as demais ações promovidas por outras vítimas, para o cálculo da indenização, ou seja, deve existir um inter-relacionamento entre as ações individuais, para evitar, também, a ruína do ofensor (overkill), tanto também em razão da natureza preventiva de tal verba. Destinada ao pagamento de uma das ações, torna-se difícil justificar concessões ulteriores, pelo pressuposto de que cumprido o seu papel513. Pela análise de todos esses critérios, vê-se que a indenização deve atender ao princípio da moderação, como aquilo necessário para cuidar ao interesse público, ao mesmo tempo em que não deve ser menosprezada, de modo a adentrar aos custos regulares do agente causador do dano. Nota-se que muitos dos critérios ora utilizados já apresentavam até mesmo previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro, sendo que outros são admitidos pela doutrina e jurisprudência para o cômputo de danos morais. Apenas necessitam eles de complementação e adequação, para que possam também ser estabelecidos em uma nova categoria de dano. Na realidade, parecem ter sido eles elaborados, inicialmente, para a aplicação na análise de um dano social. Além disso, percebe-se que a indenização por dano social apenas deve ser deferida quando a conduta do réu, assim como a gravidade do dano, após o pagamento dos danos 513 GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 91/92. O mesmo autor apresenta diversas opções de solução para esse problema: proibição de concessão de indenização punitiva em caso de desastre em massa; concessão da indenização punitiva apenas para a primeira vítima que deduzir corretamente sua pretensão em juízo; concessão da indenização para todas as pessoas que ingressaram com a ação, mas em valor reduzido; conceder, em primeiro lugar, as verbas compensatórias, uma vez pagas, destinar um único valor a título de indenizações punitivas, a ser dividido entre todas as vítimas que tenham sido compensadas; recolher o valor da indenização para um fundo, somente acessível para as vítimas depois de determinado prazo de tempo; conceder indenização para todas as vítimas até atingir um plafond limite, com um mecanismo de compensação para tornar igual o valor de todas as indenizações punitivas concedidas; conceder indenização punitiva a todas as vítimas, até ficar provada a iminência da falência ou insolvência do réu, quando, então, interrompem-se as punições; postular uma única indenização punitiva em ação coletiva. (p. 93). 231 pessoais (danos morais e materiais), forem tão repreensíveis que importem a imposição de outras sanções, para que se atinjam as finalidades retributiva, punitiva e preventiva. A aplicação da indenização, portanto, deverá obedecer certas regras, para que o magistrado não estabeleça, à sua própria consciência e liberalidade, o valor que bem entender como forma de punição ao agente causador do dano. Como visto, a atuação do agente e a gravidade do dano, assim como as medidas preventivas adotadas serão critérios de definição do quantum indenizatório. No entanto, deverá ser levada em conta a condição econômica do lesante, a partir de análise séria de sua capacidade financeira. Mediante essa fórmula, será mais seguro definir um valor de indenização que não extrapole a sua finalidade, tampouco leve à ruína o agente lesante. 4.6 ALGUMAS SITUAÇÕES EM QUE PODE SER VERIFICADA A OCORRÊNCIA DE UM DANO SOCIAL Em diversos campos e áreas do direito é possível a materialização do dano social, podendo aparecer tanto numa infração a um direito relacionado ao consumo de produtos ou serviços, ou a um dano causado ao meio ambiente, bem como numa concorrência desleal etc. Mas é importante apresentar algumas situações, alguns exemplos de molduras, sobre as quais seja possível enquadrar esse dano social, para que os aplicadores do direito saibam tenham exemplos de situações passíveis da verificação de um dano social. Não significa dizer que haverá uma taxação das possibilidades de ocorrência do dano social. Pelo contrário, o seu campo de atuação é vastíssimo. Apenas se procura facilitar a aplicação do instituto, por meio da apresentação de algumas hipóteses e exemplos. Talvez, a maneira de concretização de um dano social mais bem delineada ocorra naquelas situações já há muito combatidas pelos EUA e que vêm sendo observadas atentamente na França, quando da prática de um ilícito lucrativo (faute lucrative), em que os lucros auferidos pelo agente causador do dano são maiores do que os eventuais 232 prejuízos que, eventualmente, terá ele de suportar, estimulando, então, a prática dessa conduta lesiva. Certamente, o autor do dano age levando em conta o eventual prejuízo que terá de suportar, caso tenha contra si promovida uma ação judicial que seja julgada procedente, formulando um verdadeiro raciocínio econômico514. Note-se que, nesse tipo de situação, a mera estipulação de uma indenização, a título de dano moral, na maior parte dos casos, não será suficiente para desestimular a reiteração do ato, na medida em que o lucro auferido será superior ao prejuízo causado ao agente. Assim, impõe-se uma condenação à indenização que não apenas compense os danos verificados, mas suplante o valor do lucro obtido, de forma a efetivamente trazer uma punição ao agente causador do dano515. Certamente, o dano social apresenta campo de atuação bastante vasto na ideia dos ilícitos lucrativos, especialmente aqueles praticados por grandes empresas em detrimento dos consumidores de seus produtos ou do meio ambiente. Alguns exemplos de julgados anteriormente examinados, como o da montadora de veículos que decidiu não implementar medida de segurança em seus automóveis, o que representaria um custo mínimo, aumentando, assim, sobremaneira, as mortes em acidentes, ou a empresa que polui o rio, contando já com um valor determinado de multa que irá receber, são exemplos típicos de ilícitos lucrativos que evidenciam, também, um dano social. Também no campo das lesões reiteradas de menor expressão ou microlesões, que, isoladamente consideradas, possivelmente não são passíveis de configurar um dano de natureza extrapatrimonial, pode estar enquadrado um dano social. 514 Em importante precedente do Superior Tribunal de Justiça, em caso de difamação ocorrida em matéria veiculada pela imprensa, ficou bem delineada essa matemática utilizada para a publicação de fatos, verazes ou não, que acabam lesando direitos personalíssimos. Restou consignado que a imprensa leva em conta a expectativa de receita que o ilícito irá lhe proporcionar, sopesada com os valores fixados pelos Tribunais, a título de indenização por danos morais, impondo-se reparação de caráter pedagógico. STJ, Terceira Turma, REsp nº 355.392/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 26/3/2002, consultado em 26/3/2013. 515 Nelson Rosenvald comenta sobre uma nova figura sobre a qual se comenta hoje na Inglaterra e nos EUA, denominada disgorgement, instituída para superar a lacuna deixada pelos compensatory damages, os quais apenas propiciam à vítima aquilo que ela perdeu em termos patrimoniais e extrapatrimoniais. No disgorgement, o ofendido tem acesso a todos os valores indevidamente obtidos pelo ofensor (lucro), a partir da lesão causada. Procura-se, assim, combater não apenas a execução de lucros através de um comportamento antijurídico, como também o de evitar que outros sujeitos sejam incentivados a perseguir comportamentos análogos. In ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 106/107. 233 Explica-se: em muitas lesões, cujo grau de ilicitude pode chegar a ser praticamente insignificante, quando isoladamente consideradas, não se vislumbraria a necessidade de arbitramento de indenização por dano moral, até mesmo por não se vislumbrar uma agressão aos direitos personalíssimos da vítima. Pode ocorrer, entretanto, de essas mesmas lesões, praticadas de forma reiterada por uma determinada pessoa (física ou jurídica), numa visão macroscópica, acarretarem um dano extrapatrimonial a uma coletividade. Assim, o que seria enxergado pelo magistrado como um mero aborrecimento ao indivíduo, numa visão de dimensão vertical, será visto como uma lesão homogênea da sociedade, para o que deverá haver compensação e punição. É notadamente a soma dessas lesões de pouca intensidade que justifica a condenação do agente. Assim, por exemplo, uma instituição financeira que lance cobranças indevidas, de valores insignificantes, na fatura de seus clientes – o que esbarraria até nas hipóteses de ilícito lucrativo –, ou ainda uma pessoa jurídica que oferece serviço de atendimento ao cliente claramente defeituoso, como é o caso das operadoras de televisão paga, em que o consumidor apenas consegue resolver alguma pendência – quando resolve – após horas de ligação telefônica. Possivelmente, individualizadas, não são condutas capazes de gerar dano moral. Mesmo se a vítima consegue qualquer condenação nesse tipo, ela se mostra insuficiente a compelir à prestação de um serviço melhor, devendo, então, reconhecer-se um dano social, cuja indenização seja capaz de estimular a otimização do serviço ou a prevenção de defeitos516. 516 Um julgado do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a hipótese de que ”a condenação à composição dos danos morais teve relevância social”, por ausência de informação adequada prestada por companhia de telefonia fixa, em pacote telefônico cheio de limitações, configurando “ofensa à dignidade dos consumidores e aos interesses econômicos”, o que levou a empresa à condenação por danos morais coletivos e difusos. STJ, Terceira Turma, REsp nº 1.291.213/SC, relator Ministro Sidnei Beneti, julgado em 30/8/2012, consultado em 26/3/2013. Em outra decisão, de lavra do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na qual a empresa era processada por ter fechado os postos de atendimento pessoal dos usuários, substituindo-os pelo modelo de Central de Atendimento Telefônico ao usuário (call center), o Relator conseguiu traduzir a compensação trazida pelo dano moral coletivo a essas lesões reiteradas de menor expressão: “Assim, penso que o dano moral coletivo tem lugar nas hipóteses onde exista um ato ilícito que, tomado individualmente, tem pouca relevância para cada pessoa; mas, frente à coletividade, assume proporções que afrontam o senso comum.” TRF 4ª Região, Terceira Turma, Apelação Cível nº 2002.71.09.000115-2/RS, Relatora Vânia Hack de Almeida, julgado em 3/10/2006, consultado em 20/1/2013. 234 Com efeito, a lógica dessas microlesões, cujo grau de ilicitude é, individualmente considerado, pouco significante, o que acaba até mesmo por levar a vítima a não adotar qualquer medida judicial, em razão da diminuta ou mesmo inexistente indenização e pequeno prejuízo sofrido, permite a sua prática desenfreada pelos agentes. Nesse campo, deve o Poder Judiciário valer-se da aplicação de indenizações por evidente dano social praticado, de forma a punir a prática lesiva proposital e incentivar a adoção de melhores serviços. É, inclusive, nessa seara que Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes encontram campo para a aplicação de indenizações punitivas, quando “a extensão do dano é insignificante e as indenizações, por reflexo, atingem valores irrisórios, se comparados ao lucro obtido pelo próprio agente com a conduta danosa”517. Por fim, os danos de excepcional gravidade, a que Maria Celina Bodin de Moraes refere como aquela “conduta particularmente ultrajante, ou insultuosa, em relação à consciência coletiva, ou, ainda, quando se der o caso, não incomum, de prática danosa reiterada”518. Nesse caso, verifica-se o dano social pela conduta particularmente ultrajante e grave, praticada pelo agente, sem a observância da proteção e segurança que se esperava em seu agir, pela qual a mera reparação de cada uma das vítimas mostra-se insuficiente perante a magnitude do dano. Há, portanto, considerável impacto à sociedade, rebaixando a sua qualidade de vida. Em cada uma dessas molduras podem ser enquadrados danos de diversas naturezas, voltados ao meio ambiente, relações de consumo, direito comercial etc., certo de que algumas dessas hipóteses serão doravante abordadas com maior profundidade. 4.6.1 dano social no ambiente 517 TEPEDINO, Gustavo et alli. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Volume II, Rio de Janeiro: Renovar, p. 864. 518 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 263. 235 Foi em razão do incontido crescimento das populações e do progresso científico e tecnológico – que permitiu ao homem a completa dominação do meio ambiente –, que houve um agravamento da ação destruidora da natureza. Essas conquistas humanas vieram acompanhadas de contaminação de rios, lagos, destruição de florestas e reservas biológicas, o que afetou, diretamente, a saúde pública, com a proliferação de doenças decorrentes dessas agressões ao ecossistema519. Certamente, em razão desse rebaixamento da qualidade de vida social, com prejuízo ao patrimônio ambiental, a aplicação da teoria do dano social pode ser sentida também, e até de maneira mais evidente, ao contrário do que entendia Antonio Junqueira de Azevedo520, no direito ambiental, a partir das condutas lesivas causadas ao meio ambiente que, a toda evidência, acabam sendo um verdadeiro fator de estresse e, por conseguinte, de rebaixando da qualidade de vida da população. De fato, o dano ambiental não se limita àqueles que usufruem diretamente da área atingida pela conduta lesiva. Pelo contrário, por se tratar de bem difuso e, por isso mesmo, transcendental à tradicional divisão político-jurídica público/privado, os danos a ele causados atingem, direta ou indiretamente, toda a coletividade. A lesão não ocorre num simples bem público, mas no patrimônio ambiental, que é afeto a toda população. Com efeito, ainda que o impacto resultante da lesão não seja prontamente percebido e sentido por parcela dos cidadãos, as notáveis variações climáticas, na qualidade do ar, na transmissão de doenças e no próprio ecossistema, que perde o seu natural balanço, revelam o prejuízo que é sofrido, ao longo dos anos, por todos aqueles que compartilham desse sistema equilibrado que o meio ambiente preservado procura proporcionar, o que acaba influenciando diretamente na vida de todos os membros da coletividade, eis que acometidos, ainda que por vias transversas, dos males que tais danos podem representar. 519 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 86. 520 Entendia o autor que o dano ambiental é “material”, verificável pela biologia e ecologia, enquanto o dano social representa um elemento “social”, apurável pela sociologia e estatística, o que impediria a confusão. In AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 383. 236 Esse desequilíbrio socioambiental aparece, consequentemente, como mais um dos gatilhos do estresse e do rebaixamento da qualidade de vida da coletividade, merecendo, então, o devido balanceamento. Apenas a título de curiosidade, a poluição ambiental urbana, a exemplo dos lixos lançados nas vias públicas, mostra-se, atualmente, uma das causas que mais gera estresse entre a população. Tome-se a poluição sonora, figura tão presente na sociedade urbana, que foi até mesmo tipificada como crime ambiental521, e é, hoje, um dos grandes vilões do prejuízo causado à saúde humana, como revela Hélio Schwartsman, ao referir que acadêmicos agindo na intersecção entre economia, psicologia e sociologia estudaram o impacto de fatores como dinheiro, emprego, liberdade, ambiente e filhos na percepção de bem-estar do indivíduo, sendo uma das conclusões obtidas a de que o barulho ao qual o indivíduo pode ser submetido diariamente configura uma das situações com a qual ele não consegue se habituar522. 521 Lei 9.605/98, “Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1º Se o crime é culposo: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa. § 2º Se o crime: I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana; II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população; III - causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade; IV - dificultar ou impedir o uso público das praias; V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena - reclusão, de um a cinco anos. § 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível.” 522 In jornal Folha de São Paulo, 15 de abril de 2012, p. 12. 237 Da mesma forma a poluição por emissão de odores mal cheirosos, quando verificado o abuso no direito do uso de propriedade, afetando bem socioambiental, fazendo com que haja “comprometimento da qualidade de vida das futuras gerações”, também pode resultar em grave lesão ao patrimônio ambiental, como revela Patrícia Faga Iglecias Lemos523. Por esses motivos que, ao falar em dano ambiental, é praticamente instantânea a ligação feita com os danos sociais. Ao tratar desse específico tema, na tentativa de expor o cabimento do dano moral coletivo ligado ao direito ambiental, Marcos Paulo de Souza Miranda pondera que o dano moral coletivo não surge da reunião de danos individuais isoladamente considerados, na medida em que possui autonomia, justamente por constituir uma lesão a valores compartilhados pela sociedade como um todo524. De acordo com o que explicam José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala, o dano extrapatrimonial está muito vinculado ao direito da personalidade, mas não a ele restringido, ao menos da forma como ele é conhecido tradicionalmente. Notadamente, os direitos personalíssimos são tidos como atinentes à pessoa física; contudo, deve ele também englobar uma caracterização mais abrangente e solidária, especialmente no que diz respeito ao dano ambiental, tratando-se, dessa forma, ao mesmo tempo, de um direito individual e um direito da coletividade525. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está ligado a um direito fundamental de todos e se reporta à qualidade de vida, que se configura, por sua vez, como valor imaterial da coletividade. Como consignam os autores, “...os direitos de personalidade manifestam-se como uma categoria da história, por serem mutáveis no tempo e no espaço. O direito de personalidade é uma categoria que foi idealizada para satisfazer exigências da tutela da pessoa, que são determinadas pelas contínuas mutações 523 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Meio Ambiente e Responsabilidade Civil do Proprietário. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 135/136. 524 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Configuração e indenizabilidade de danos morais coletivos decorrentes de lesões a bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro. In Revista de Direito Ambiental, ano 14, nº 54, abr-jun/2009, p. 232. 525 LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e prática. 3ª edição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pp. 261/269. 238 das relações sociais, o que implica a sua conceituação como categoria apta a receber novas instâncias sociais”.526. Evidentemente, o patrimônio ambiental é integrado por bens dotados de um especial e significativo valor para a comunidade e que são verdadeiros marcos referenciais – tangíveis ou intangíveis – das formas de ser, fazer e viver dos diferentes grupos formadores da nação. Esse patrimônio ambiental mostra-se, então, elemento indispensável para assegurar a saúde e a qualidade de vida das pessoas e, além disso, e mais, de sua própria dignidade, garantida a sua fruição, acesso e proteção pela própria Carta Maior. Com efeito, a tutela dos interesses metaindividuais implica o reconhecimento de toda uma coletividade como sujeito de direitos, logo, portadora também de atributos subjetivos527. A proteção do meio ambiente, assim, acaba ficando intrínseca aos direitos personalíssimos coletivos, pois “Trata-se de um direito fundamental, intergeracional, intercomunitário, constitucionalmente garantido e ligado a um direito da personalidade, posto que diz respeito à qualidade de vida da coletividade”528. É inegável, portanto, que o meio ambiente ecologicamente equilibrado seja um dos bens e valores indispensáveis à personalidade humana. Esse equilíbrio pode garantir a qualidade de vida da população e, consequentemente, a dignidade social. É nessa toada que João Menezes Leitão explica existirem direitos da personalidade ligados à pessoa ou intrínsecos, como a integridade física e moral, direito à liberdade etc., e, de outro lado, os direitos da personalidade periféricos ou extrínsecos – por oposição ao centro representado pela própria pessoa – relativos às relações com as coisas e com os outros, como é o caso do direito ao meio ambiente529. E é na lesão desse patrimônio ambiental que a coletividade pode ser afetada quanto a seus valores imateriais, em razão do sentimento coletivo de desapreço e de 526 LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e prática. 3ª edição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pp. 269/275. 527 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Configuração e indenizabilidade de danos morais coletivos decorrentes de lesões..., pp. 233/250. 528 LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo extrapatrimonial..., p. 276. 529 LEITÃO, João Menezes. Instrumentos de Direito Privado para proteção do ambiente. In Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, v. 7, p. 59, Coimbra, jun. 1997. pp. 31/65. 239 intranquilidade que surge na apresentação de tamanha afronta a esses direitos, delineandose, assim, os danos sociais. A proteção dos valores morais não fica, então, adstrita aos valores individuais da pessoa física. De fato, a coletividade pode ser afetada quanto a seus valores extrapatrimoniais, que devem ser reparados. Adverte André Gustavo Corrêa de Andrade que o direito ao meio ambiente saudável e equilibrado deve ser reconhecido como integrante da personalidade humana, por ser essencial ao seu pleno desenvolvimento530. Assim, o dano ambiental extrapatrimonial configura-se, nas palavras de Patrícia Faga Iglecias Lemos, como a “injusta lesão da esfera moral de determinada comunidade, ou seja, a violação antijurídica de determinado círculo de valores coletivos531”. Manifestamente, o problema no reconhecimento, pela doutrina e jurisprudência, desse dano extrapatrimonial causado à coletividade, parece ficar mais atenuado na hipótese de dano ambiental. Isso porque, como indica Marcos Paulo de Souza Miranda, nem toda lesão ao patrimônio ambiental implicará na consequente configuração desses danos morais coletivos, na medida em que estes surgem exatamente naqueles casos em que a ofensa perpetrada seja marcada pela destacada significância, superando os limites da tolerabilidade social, “afrontando relações de aceitabilidade média ou afetando a tranquilidade anímica e espiritual da coletividade, que tem alterada negativamente a sua qualidade de vida e, ademais, vê seus valores mais caros (patrimônio ideal) afetados”532. Parece óbvio concluir, assim, que o dano ambiental acarreta lesão a todos esses valores considerados tão indispensáveis pela sociedade. Como mostra Carlos Alberto Bittar Filho, o dano ambiental não consiste somente na lesão ao equilíbrio ecológico, mas afeta também outros valores precípuos da coletividade a ele ligados, como a qualidade de vida e a saúde. Esse dano é particularmente 530 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A Evolução do Conceito de Dano Moral. In http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_civil/a_evolucao_do_conceito_de_dano _moral.pdf, consultado em 13/2/2012, pp. 24/25. 531 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental: Responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 149. 532 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Configuração e indenizabilidade de danos morais coletivos decorrentes de lesões..., p. 234. 240 perverso porque rompe o equilíbrio do ecossistema, colocando em risco todos os seus elementos, ao mesmo tempo em que agride a saúde e a qualidade de vida da comunidade533 Nesse sentido, José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala distinguem o dano extrapatrimonial ambiental subjetivo e objetivo: o dano extrapatrimonial ambiental subjetivo é aquele que atinge a pessoa do indivíduo, provocando sofrimento psíquico, de afeição ou físico à vítima. Por outro lado, o dano extrapatrimonial ambiental objetivo é aquele difuso, e se caracteriza pelo prejuízo proporcionado a patrimônio ideal da coletividade534, relacionado, portanto, à ideia de um dano social. Annelise Monteiro Steigleder divide ainda o dano extrapatrimonial ambiental da seguinte forma: a) dano moral coletivo, caracterizado pela diminuição da qualidade de vida e bem-estar da coletividade; b) dano social, identificado pela privação imposta à coletividade de gozo e fruição do equilíbrio ambiental proporcionado pelos microbens ambientais degradados; e c) dano ao valor intrínseco do meio ambiente, vinculado ao reconhecimento de um valor ao meio ambiente em si considerado – e, portanto, dissociado de sua utilidade ou valor econômico, já que “decorre da irreversibilidade do dano ambiental, no sentido de que a Natureza jamais se repete”535. Parece, ao entanto, que todas as categorias podem se ligar a uma única espécie de dano, o dano social, muito embora seja nítida essa possibilidade de identificação de diversas espécies de prejuízos, resultantes de uma única ação ou omissão. Demais disso, essa possibilidade de indenização pelos danos extrapatrimoniais decorrentes da lesão ao meio ambiente aparece na própria legislação ambiental. Na linha do estatuído no texto constitucional, o art. 4º da Lei 6.938/1981 dispõe que a Política Nacional do Meio Ambiente visará, entre outras medidas, a “imposição, ao poluidor e ao 533 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus Navigandi , Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/ edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005), Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013. 534 LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo extrapatrimonial..., pp. 287/289. 535 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no Direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 174. 241 predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”. Por sua vez, o art. 14, § 1º da mesma Lei estabelece a responsabilidade objetiva do poluidor, determinando a indenização ou reparação dos danos causados ao meio ambiente e a terceiros. Importante salientar que esses deveres de indenização e recuperação ambientais são providências ressarcitórias de natureza civil, que buscam, simultânea e complementarmente, a restauração do status quo ante do meio ambiente afetado e a reversão à coletividade dos benefícios econômicos auferidos com a utilização ilegal e individual de bem que, nos termos do art. 225 da Constituição, é “de uso comum do povo”. Então, por contemplar o direito ambiental essa regra da reparação integral, de rigor a imposição não apenas da obrigação de reparação da área danificada, pelo poluidor, mas também a compensação por esse dano extrapatrimonial sentido pela sociedade, tanto pela lesão em si, como pela privação de utilização desse bem difuso, ainda também pelo período que intercalará a degradação da biota e a sua reconstituição, como menciona Álvaro Luiz Valery Mirra536. Fato é que se mostra indiscutível a possibilidade de a coletividade ser afetada, em seus valores extrapatrimoniais, não só em decorrência da existência de sentimentos subjetivos de perda – esses sentimentos, na realidade, não devem nem ser apurados –, mas também em razão da violação a uma carga de valores éticos comuns, verificáveis objetivamente, especialmente quando violados bens a ela tão caros e raros. Como revela Patrícia Faga Iglecias Lemos, trata a responsabilidade por danos extrapatrimoniais ambientais de uma possibilidade de “efetiva e integral compensação do dano”, perfazendo a função não apenas de recuperar o meio ambiente afetado, mas de impor verdadeiro caráter punitivo e pedagógico ao agente degradador que volte a praticar tal ato danoso537. 536 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação Civil Pública e a Reparação do Dano Ambiental. 2ª ed., São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, pp. 314/315. O Autor ainda explica que essa reparação integral deve conduzir o meio ambiente e a sociedade a uma situação, na medida do possível, equivalente a de que seriam beneficiários se o dano não tivesse sido causado. 537 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental..., p. 150. 242 Da análise da jurisprudência a respeito desse assunto, verifica-se caso emblemático, de repercussão internacional, julgado pela Cámara de Apelaciones em lo Civil y Comercial de Azul, Sala A, na Argentina, em que litigavam a Municipalidad de Tandil e a T.A. La Estrella AS538, em que houve condenação a danos morais coletivos, pela diminuição dos bens que tem valor fundamental na vida do homem: a paz, a tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade física, a honra e os mais caros afetos. Tratava-se de caso em que o ônibus da empresa demandada chocou-se com uma fonte e algumas esculturas tradicionais da cidade, o que provocou danos de grande monta em tais bens. Além de pleitear os danos materiais sofridos pela Municipalidade, foi também formulado pedido de indenização pelos danos morais acarretados à comunidade. Por certo, o magistrado julgou inteiramente procedente a ação, assentando que o bem coletivo trata-se de um componente do funcionamento social, na medida em que, quando afetado, configurado resta o dano extrapatrimonial, pela lesão do bem em si mesmo, independentemente das repercussões patrimoniais que tal fato possa acarretar. A lesão surge, assim, a respeito do interesse extrapatrimonial e coletivo que recai sobre o bem atingido. Interessante também ressaltar que a verba atribuída à compensação desses danos extrapatrimoniais, conforme constante da decisão, foi destinada para “obras de ornato y salubridad del presupuesto municipal”539. Analisada a questão sob o ponto de vista dos Tribunais brasileiros, percebe-se que a jurisprudência, até pouco tempo, era ainda bastante vacilante. Embora alguns Tribunais, de forma tímida, reconhecessem essa dimensão atual apresentada pelo direito ambiental, a reparação desses danos extrapatrimoniais encontrava óbice no posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que não os reconhecia. 538 In http://wp.cedha.net/wp-content/uploads/2011/07/1996-10-22-municipalidad-de-tandil.pdf, consultado em 20/12/2012. 539 GLOBAL JUDGES SYMPOSIUM ON SUSTAINABLE DELOPMENT AND THE ROLE OF LAW, Johannesburg, South África,18-20 August 2002: El caso de Argentina, in http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=municipalidad%20de%20tandil%20e%20a%20t.a.%20la%20e strella%20as&source=web&cd=21&ved=0CFcQFjAAOBQ&url=http%3A%2F%2Fwww.unep.org%2Flaw %2FSymposium%2FDocuments%2FCountry_papers%2FARGENTINA.doc&ei=_lPaT4PsD8ms2gXsmJH MBg&usg=AFQjCNGXIIZDvrNvnOEwGSkHPzSoSgIYIA, consultado em 14/6/2012. 243 No entanto, esse cenário começou a se modificar, a partir da, quiçá, mais emblemática decisão, que ateou fogo a esse estopim, proferida pela 2ª Câmara de Direito Civil, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos autos da Apelação Cível de nº 2001.001.14586, julgada em 7 de agosto de 2002540. Tratava-se de ação civil pública promovida pelo Município do Rio de Janeiro contra Artur da Rocha Mendes Neto, para reparação por danos materiais e morais sofridos pela coletividade em virtude de desmatamento, sem autorização, de área preservada. Após ter o juízo monocrático dado provimento parcial à ação, condenando o réu ao desfazimento das obras até então executadas, retirada do entulho e replantio de 2800 mudas de espécies nativas, no prazo de 90 dias, acabando, no entanto, por afastar o pedido de indenização por danos extrapatrimoniais sofridos pela coletividade, a Municipalidade recorreu, buscando haver a compensação dessa lesão. Atendendo ao pleito da Municipalidade, o TJRJ reformou a decisão, para condenar o réu ao pagamento equivalente a 200 salários mínimos, referentes a danos extrapatrimoniais, com o reconhecimento da “perda de valores ambientais pela coletividade”. Constatada a impossibilidade de restituição do bem ao estado anterior, entendeu a Câmara Julgadora que “nesse interregno a degradação ambiental se prolonga com os danos evidentes à coletividade, pela perda de qualidade de vida nesse período”. Ao entanto, o STJ, quando teve a oportunidade de manifestar-se, podendo solidificar o posicionamento pela adoção da reparação dos danos extrapatrimoniais decorrentes da lesão ao meio ambiente, acabou apresentando linha de verdadeiro retrocesso, negando tal reparação, por maioria de votos541. O óbice encontrado por aqueles que rejeitaram o pedido de indenização por danos morais foi a necessidade de vinculação de tal prejuízo à noção de “dor, de sofrimento psíquico, de caráter individual”. Coube ao relator do voto – acompanhado pelo Ministro José Delgado – deixar a chama ainda acesa, ao aclarar que o ordenamento constitucional, respeitantemente à 540 In www.tjrj.jus.br, Relatora Desembargadora Maria Raimunda Teixeira De Azevedo, consultado em 18/6/2012. 541 In www.stj.jus.br, Recurso Especial nº 598.281/MG, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 2/5/2005, consultado em 18/6/2012. 244 proteção do dano moral, ultrapassou a barreira do indivíduo “para abranger o dano extrapatrimoninal à pessoa juídica e à coletividade”. Entendeu o Ministro que o meio ambiente se trata de interesse difuso, e que a lesão a esse patrimônio caracteriza diminuição da qualidade de vida da população, “pelo desequilíbrio ecológico, pela lesão a um determinado espaço protegido, acarreta incômodos físicos ou lesões à saúde da coletividade...”. O dano moral ambiental estaria, então, mais ligado à “transgressão do sentimento coletivo, consubstanciado no sofrimento da comunidade, ou do grupo social, diante de determinada lesão” do que à repercussão física da lesão no meio ambiente. Ocorre que, apresentada novamente a possibilidade de discussão da matéria ao mesmo relator desse anterior recurso, o Ministro Luiz Fux, fez-se prevalecer, no julgamento do Recurso Especial de nº 625.249/PR542, aquela anterior orientação por ele apresentada, quanto à possibilidade de cumulação de pedidos condenatórios de obrigação de prestação pessoal (fazer e não fazer), com obrigação de pagar quantia, em sede de ação civil pública, abrindo importante precedente para o reconhecimento do dano extrapatrimonial coletivo atrelado ao dano ambiental. A partir desse precedente, outros julgamentos favoráveis à adoção do dano extrapatrimonial coletivo relacionado ao dano ambiental sobrevieram, sendo interessante mencionar um em específico, julgado em meados de 2010543, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, que ordenou a devolução dos autos ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, para que apurasse se havia ou não ocorrido lesão extrapatrimonial coletiva oriunda de danos ambientais. Alguns trechos da referida decisão merecem maior destaque: “...a legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes seja mais favorável e melhor possa viabilizar, no plano da eficácia, a prestação jurisdicional e a ratio essendi de sua garantia. Logo, na exegese do art. 3º da Lei 7.347/85, a conjunção “ou” opera com valor aditivo, não introduz alternativa excludente. Aplica-se o princípio da reparação in integrum ao dano ambiental, que é 542 In www.stj.jus.br, Recurso Especial nº 625.249/PR, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 15/8/2006, consultado em 17/6/2012. 543 In www.stj.jus.br, Recurso Especial nº 1.114.893/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, julgado em 16/3/2010, consultado em 17/6/2012. 245 multifacetário (ética, temporal e ecologicamente falando, mas também quanto ao vasto universo das vítimas, que vão do indivíduo isolado à coletividade, às gerações futuras e aos próprios processos ecológicos em si mesmos considerados). Se a restauração ao status quo ante do bem lesado pelo degradador for imediata e completa, não há falar, como regra, em indenização. A obrigação de recuperar in natura o meio ambiente degradado é compatível e cumulável com indenização pecuniária por eventuais prejuízos sofridos, até a restauração plena do bem lesado, assim como por aqueles de natureza extrapatrimonial, como o dano moral coletivo. Além disso, devem reverter à coletividade os benefícios econômicos que o degradador auferiu com a exploração ilegal de recursos ambientais, “bem de uso comum do povo”, nos termos do art. 225, caput, da Constituição Federal, quando realizada em local ou circunstâncias impróprias, ou sem licença regularmente expedida ou em desacordo com os seus termos e condicionantes”. Esse entendimento do STJ representou não apenas um avanço da própria jurisprudência, mas a solidificação de conceitos que, desde a Constituição Federal de 1988, ingressaram ao ordenamento jurídico brasileiro, além de constatar a real situação que hoje se apresenta à sociedade, quanto à necessidade de preservação ambiental para a manutenção do próprio equilíbrio da vida social. Resta apenas atentar para o fato de que, tratando-se de direito ambiental, fica mais clara a destinação desses valores à própria coletividade que sofreu o dano, e não ao Estado, que nem poderia ser o destinatário dessa condenação pecuniária, por não ser o bem afetado público, mas difuso. Isso porque, nos termos do artigo 13 da Lei 7.347/85, os valores resultantes de condenação dos responsáveis pelo dano ambiental reverterão ao Fundo de Recuperação dos Bens Lesados, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens prejudicados. Verifica-se, então, que da análise do direito ambiental, em face de lesões ao patrimônio ambiental, capazes de provocar rebaixamento da qualidade de vida da coletividade, além de uma falha grave no dever geral de segurança, de rigor será o 246 reconhecimento de um dano social, para que seja adotada uma política de prevenção – pela punição ou dissuasão – desses gravíssimos danos. 4.6.2 dano social no consumo Com a derrocada do modelo individualista sobre o qual o direito era alicerçado, por razão da insuficiência da tutela individual privada como resposta à complexidade das relações estabelecidas a partir do século XIX, deu-se lugar a uma visão coletiva de resolução de conflitos, encarando-se a colevidade como verdadeiro sujeito de direito. As novas concepções ético-sociais do Estado de Direito Social e da sociedade solidária, acentuou, no direito privado, a noção de dimensão do social, com crescente eticização e número de normas imperativas reguladoras das relações particulares. De igual modo, vinca-se a necessidade da proteção do consumidor em geral, com especial realce para a prevenção dos acidentes, mediante a ampliação da normatização técnica de qualidade e de segurança dos produtos para salvaguarda da saúde e integridade física dos cidadãos544, assim como pelo controle das cláusulas abusivas, da publicidade enganosa ou abusiva, do direito de informar e receber informação etc. Assim que a Constituição Federal de 1988 expressamente reconhece a existência de direitos difusos e coletivos, determinando, ainda, a proteção dos interesses dos consumidores. Dando cumprimento ao disposto na Constituição Federal, que determinou a promoção, pelo Estado, da defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), em março de 1991 entrou em vigor o Código de Defesa do Consumidor, que provocou verdadeira revolução no campo da responsabilidade civil, com a criação de um microssistema de regras voltadas ao consumo de produtos e serviços, fundando-se no dever de segurança que deve observar o fornecedor, por meio da imputação de responsabilidade administrativa, civil e até penal de inobservância dessas normas. 544 SILVA, João Calvão da. Responsabilidade Civil do Produtor. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 99/101. 247 Baseado na prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, o Código de Defesa do Consumidor orienta-se pelo equilíbrio de uma relação em que numa das pontas figura um sujeito vulnerável e, muitas vezes, hipossuficiente, primando pela proteção dos conflitos individuais e coletivos daí surgidos, resguardando, de forma expressa, os interesses transindividuais (art 6º, VI; art. 81). Afirma-se, até mesmo, que a regulamentação jurídica das relações de consumo está voltada essencialmente para a tutela coletiva, no aspecto transindividual. Não existiriam, nesse sentido, lides verdadeiramente individuais no campo das relações de consumo. Mesmo aquelas demandas individuais apresentam uma problemática muito mais ampla, de caráter coletivo. “Portanto, a dimensão coletiva entranha-se na essência de qualquer matéria que envolva os direitos do consumidor”545. Verifica-se, então, que o Código de Defesa do Consumidor volta-se, essencialmente, à proteção da coletividade, mesmo que resolvendo conflitos aparentemente individuais. Mas, tal qual ocorreu no direito ambiental, em que as conquistas humanas abriram espaço para a devastação da fauna e da flora, em relação ao consumo, o crescimento da interatividade da população e da dispersão de produtos no mercado acabou resultando em diversas práticas danosas. Há, assim, expressa previsão de repulsa aos fatos violadores dos valores coletivos no Código de Defesa do Consumidor, que podem decorrer de variadas situações546, apresentando essa área um campo fértil para a aplicação da teoria dos danos sociais. Sergio Cavalieri Filho explica que o fundamento da responsabilidade do fornecedor é o dever de segurança – decorrente do risco da atividade –, que constitui verdadeira cláusula geral. Esse dever de segurança representa uma garantia de idoneidade, e depende do casamento de dois elementos: a desconformidade com uma expectativa legítima do consumidor e a capacidade de causar acidente de consumo. Outro aspecto desse dever é a 545 GARCIA, José Augusto. O princípio da dimensão coletiva das relações de consumo: reflexos no “processo do consumidor”, especialmente quanto aos danos morais e às conciliações. Revista de Direito do Consumidor, vol. 28, out/dez, pp. 90/91. 546 SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. Biblioteca de Direito do Consumidor – vol. 38, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 171/172. 248 sua natureza ambulatorial, ou seja, não circunscrita à relação contratual de compra e venda, mas, ao contrário, acompanha o produto ou serviço por onde circular durante toda a sua existência útil547. Não basta, dessa sorte, que o produto ou o serviço sejam simplesmente adequados aos fins a que se destinam (qualidade-adequação), mas também que sejam seguros (qualidade-segurança), protegendo-se a incolumidade física dos consumidores, em atenção à regra-objetivo do art. 4º, caput, que impõe o respeito à dignidade, à saúde e à segurança do consumidor548. Certamente, essa obrigação de segurança referida por Antonio Junqueira de Azevedo549, ainda que não ligada estritamente às relações de consumo, é mais facilmente compreendida no âmbito consumerista. De fato, o Código de Defesa do Consumidor deixa claro um dever geral de segurança, ao tornar responsável pelo dano o fornecedor, mesmo que inexista relação contratual, quando trata do consumidor por equiparação550. Dessa forma que, aquele que coloca um produto ou serviço em circulação no mercado de consumo tem a obrigação legal de ofertá-lo sem risco ao consumidor no que diz respeito à sua saúde, à sua incolumidade física ou psíquica, e ao seu patrimônio, devendo zelar pela segurança, pela integridade física e psíquica de seus consumidores ou potenciais compradores551. 547 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007, pp. 462/464. 548 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008, p. 80. 549 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 381. 550 “Art. 2º, § único Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que hajam intervindo nas relações de consumo." “Art. 17 Para os efeitos desta Seção, que cuida da responsabilidade dos fornecedores pelo fato do produto e do serviço, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento" “Art. 29 Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas" 551 MELO, Nehemias Domingos de. Dano Moral nas Relações de Consumo: doutrina e jurisprudência. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 95. 249 O defeito apresentado pelo produto ou serviço está relacionado justamente com essa falta de segurança que o consumidor podia esperar legitimamente, examinada de acordo com o modo de seu fornecimento, o resultado e o risco552. Da proteção da confiança, consagrada como princípio geral no Código de Defesa do Consumidor, decorre a expectativa de uma garantia de segurança razoável pelo consumidor, que apresenta natureza extracontratual553, ou seja, revela um verdadeiro dever específico que extrapola os limites da relação contratual. E é aí que entra a necessidade de prevenção de riscos, proporcionada por uma sanção punitiva aplicada ao fornecedor ou produtor. Ao demonstrar a insuficiência da sanção meramente compensatória nas relações de consumo, André Gustavo Corrêa de Andrade apresenta uma pesquisa feita pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com base em todos os processos que tramitaram na Justiça do Rio de Janeiro entre janeiro de 2002 e abril de 2004, pela qual se constatou que um terço se referia a ações de reparação de danos. Além disso, verificou-se que apenas dezesseis empresas figuraram como rés em 320.589 ações de reparação propostas nos juizados especiais cíveis, o que representava 44,9% de todas as ações de indenização distribuídas. Outros dados mostravam que 32,3% das ações de reparação diziam respeito a apenas 32 empresas, sendo que o índice de sucumbência delas beirava a totalidade das demandas. O valor a que foram condenadas excedia, em média, 923 dias para ser pago em cada demanda554. Destaque-se que, a partir dessa pesquisa, ficou fácil observar a contingência feita pelas empresas para o pagamento das indenizações que iriam suportar, preferindo esperar esses 923 dias ou mais a pagar os consumidores lesados, apontando, dessa maneira, para a 552 BDINE JUNIOR, Hamid Charaf. Responsabilidade civil pelo fato do serviço. P. 383. In LOTUFO, Renan et MARTINS, Fernando Rodrigues (coord.). 20 anos de Código de Defesa do Consumidor: conquistas, desafios e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 379/393. 553 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 5ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 1199. 554 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 257/258. 250 total insuficiência da sanção meramente compensatória para a prevenção de danos relacionados às condutas abusivas e ilegais por elas praticadas. A partir desses dados, repara-se que, no campo do direito consumerista, o dano social encontra amplo espaço de atuação, podendo ser verificado tanto em situações que, contrariando o valor da confiança – consubstanciado no princípio da boa-fé objetiva –, rebaixam a qualidade de vida da sociedade, até em outras que colocam em xeque a segurança coletiva, passando, também, pela prática das microlesões, que possibilita uma boa fonte para ilícitos lucrativos. Como assevera Fernando Noronha, foi o próprio Código de Defesa do Consumidor que disciplinou juridicamente a matéria relativa aos interesses transindividuais, classificando-os em coletivos e difusos (art. 81)555, justamente em razão da enormidade das lesões a direitos supraindividuais que essa área do direito parece comportar. Deveras, em diversas modalidades de contratos inseridos no mercado de consumo, os consumidores mantêm relações cativas de longa duração com fornecedores ou demandam bens essenciais. E, com efeito, tanto os contratos de longa duração, que acabam “aprisionando” o consumidor naquela relação, quanto a essencialidade do bem objeto desse “aprisionamento” depõem a favor da manutenção de práticas empresariais ofensivas a interesses metaindividuais, sem que existam mecanismos suficientes capazes de combater essa dinâmica perversa. A exemplo disso pode-se citar, novamente, os contratos de seguro, especialmente aqueles voltados à assistência privada à saúde, que, por sua essencialidade, acabam possibilitando a prática de evidentes abusividades. O seguro, a rigor, induz um grande mutualismo, em que a seguradora gere um fundo composto pela contribuição de uma massa de segurados, sujeitos ao mesmo tipo de risco, cujos prêmios não se calculam em função da situação individual de cada qual, mas 555 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 573. 251 por previsão estatística e atuarial que implique numa repartição proporcional das perdas globais. Isto significa que a maior potencialidade de sinistro ou uso dos benefícios do plano em função da idade deve ser fator considerado e calculado já nas contratações em geral, sempre tomado o caráter cooperativo e mutualístico do seguro. No entanto, observa-se que as seguradoras acabam impondo reajustes abusivos, especialmente àqueles segurados que se encontram em idade mais avançada, denunciando a sua clara intenção de desestimulá-los a permanecer na avença, por não ser interessante a sua manutenção em função da maior quantidade de sinistros. Dessa sorte, ainda que se admitisse que a idade fosse um fator de reajuste do prêmio do seguro, segundo faixas pré-estabelecidas, não poderia ela constituir uma real barreira a que o consumidor permanecesse sendo atendido pelo plano, ou seja, a que persistisse cobertura que no caso é essencial (contrato chamado existencial). Logicamente, essa intenção evidente de desestimular os segurados mais velhos em permanecer nos contratos acaba refletindo no patrimônio moral da coletividade, rebaixando a sua qualidade de vida. Isso porque, quando mais precisam se valer desse tipo de cobertura, ainda mais quando por longos anos pagaram o prêmio relativo ao seguro, são obrigados a abandonar o contrato, em razão da desarrazoabilidade dos reajustes. Cria-se insegurança na sociedade e, consequentemente, rebaixa-se a sua qualidade de vida. Fica-se com a impressão de que, pago o contrato por longuíssimos anos, quando mais dele se precisa, não é mais permitida a sua utilização, unicamente em razão do avançar da idade, ficando agora esses indivíduos condenados ao falido sistema público de saúde. Da mesma forma, caso emblemático refere-se à qualidade do serviço prestado pelas operadoras de telefonia móvel que, sabidamente, reduzem os investimentos no setor, proporcionando aos consumidores serviço deficiente. Isso se torna ainda mais grave quando a própria operadora, de forma intencional, provoca interrupções no sinal de 252 telefonia, justamente para fazer com que o consumidor tenha que efetuar novas ligações, gastando, assim, mais dinheiro em benefício da operadora. Ou, mais ainda, da empresa que não enjeita defeito conhecido de produto de sua fabricação, colocando em risco a saúde dos consumidores. Essa conduta representa a típica infração ao dever geral de segurança para a qual uma indenização relacionada a danos morais não se mostra suficiente. Bom lembrar que o defeito de segurança pressupõe uma periculosidade adquirida acima do normal, do previsível, quebrando a expectativa do destinatário 556, certo de que a continuidade ou repetição no desrespeito a esse dever não pode ser encarada como qualquer falta, devendo haver sanção que garanta a efetividade da prevenção. Em resumo, fabricantes e fornecedores de produtos que ofendem a saúde e a segurança de consumidores, órgãos de imprensa que golpeiam a dignidade do cidadão, empresas que se eximem do instrumento do contrato para obter ganhos ilícitos superiores aos danos que eventualmente pagarão aos ofendidos. Estas são algumas situações em que a reparação dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais não inibe os agentes de mercado a perpetuar o ilícito557. De fato, alguns fornecedores, para elevar sua margem de lucros, deixam de investir em mecanismos de prevenção e controle de qualidade mais rigorosos sobre os serviços prestados, enquanto outros colocam no mercado produtos de qualidade inferior ou que não atendem a determinados padrões de segurança, preferindo arcar com a reparação de danos causados aos consumidores, na certeza de que os valores indenizatórios serão muito inferiores ao investimento que teriam de realizar para o aperfeiçoamento de seus produtos e serviços. Nesse cálculo, levam eles em conta a circunstância de que muitas vítimas de danos decorrentes de fato do produto ou do serviço deixam de procurar o Poder Judiciário, por 556 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 93. 557 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 167/168. 253 razões variadas, que vão da dificuldade em identificar o responsável pelo dano à falta de disposição para enfrentar um processo judicial, com seus gastos, retardamentos e todas as suas vicissitudes. Além disso, os grandes fornecedores, por serem litigantes habituais, normalmente contam com um corpo de advogados preparados e especializados, o que também contribui para a redução dos valores indenizatórios. Os produtores ou fornecedores orientam-se, então, por uma racionalidade estritamente econômica, pautando-se pelo resultado de uma relação custo/benefício do seu comportamento em detrimento da lei e do direito alheio. Não é difícil, dessa forma, perceber por que a sanção meramente compensatória não se mostra suficiente para compelir os fornecedores a melhorar a qualidade de seus produtos ou aprimorar os seus serviços. Por conseguinte, a sanção pecuniária aparece como fator de reequilíbrio do mercado, por entregar aos consumidores, que constituem a parte sempre mais vulnerável na relação de consumo, instrumento que lhes estimularia a agir contra atos lesivos de seus direitos. De outra parte, a indenização punitiva compeliria produtores e fornecedores a colocar no mercado produtos mais seguros e adequados ao consumo, assim como a prestar serviços mais eficientes.558 Atualmente, a sociedade pós-moderna baseia-se na corrida pelo lucro, sobreposto a qualquer outro valor. Hoje não se compram bens, pagam-se parcelas. Os chamarizes publicitários estimulam um modo correto de se vestir, de comer, de ter. Ou seja, privilegiase mais o ter do que o ser; “passou-se de uma sociedade centrada na oferta para uma sociedade focada na procura”, numa verdadeira corrida “aos prazeres por meio do consumo hedonista individualista”, e vive-se em uma época na qual o “elo entre 558 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 254 desenvolvimento humano e consumo se rompeu”559. Inverte-se a lógica natural das coisas em prol do consumo desenfreado de bens e serviços. Afirma Marcelo Bennacchio que a regulação do mercado deve ocorrer por meio da exclusão dos fornecedores que não respeitem os ditames legais relativos aos direitos do consumidor por força da inviabilidade econômica de atividade empresarial contrária aos mandamentos normativos, cabendo comportamentos desses fornecedores 560 à responsabilidade civil a regulação dos . Por isso que, no cenário atual, ferramentas que previnam os danos provocados no e pelo consumo mostram-se tão essenciais. Deve-se primar pelo ser, por sua segurança, pela não exposição a situações que lhes são nocivas, para que não haja uma nova inversão axiológica, pela qual a propriedade constitui o indivíduo. Encontram-se diversos exemplos nos Tribunais brasileiros em que a intenção aclarada dos julgadores era de apresentar uma punição ao fornecedor, em razão de prática lesiva no consumo, que ficaria impune, caso somente compensado o dano. O caso mais emblemático, atualmente, refere-se à inscrição do nome do consumidor, de forma indevida, no rol de maus pagadores561. 559 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias et alli. Consumo Sustentável. Caderno de Investigações Científicas, volume 3, Secretaria Nacional do Consumidor – SENACON, Ministério da Justiça, Brasília, 2013, disponível em http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7BB5920EBA-9DBE-46E9-985E-033900EB51EB%7D, consultado em 8/1/2014. 560 BENNACCHIO, Marcelo. Responsabilidade civil do comerciante por defeito do produto. P. 359. In LOTUFO, Renan et MARTINS, Fernando Rodrigues (coord.). 20 anos de Código de Defesa do Consumidor: conquistas, desafios e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 357/377 561 “ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. RESPONSABILIDADE CIVIL. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. DANOS MORAIS. VERBA INDENIZATÓRIA FIXADA COM RAZOABILIDADE (R$ 10.000,00). IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. O quantum indenizatório fora estipulado em razão das peculiaridades do caso concreto, levando em consideração o grau da lesividade da conduta ofensiva e a capacidade econômica da parte pagadora, a fim de cumprir dupla finalidade: amenização da dor sofrida pela vítima e punição do causador do dano, evitando-se novas ocorrências. Assim, a revisão do valor a ser indenizado somente é possível quando exorbitante ou irrisória a importância arbitrada, em violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que não se observa in casu diante da quantia fixada em R$ 10.000,00 (dez mil reais). 2. Agravo Regimental da Companhia Energética de Pernambuco desprovido”. In www.stj.jus.br, AgRg no AREsp 361513 / PE, Primeira Turma, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Julgado em 22/10/2013, consultado em 2/12/2013. 255 Também em relação às operadoras de seguro-saúde e de telefonia celular é possível encontrar um sem número de ações. Em dois julgados paradigmáticos, aqui já tratados, proferidos pela Justiça paulista, em que ficou até mesmo reconhecida a prática de um dano social, com imputação de indenização punitiva pela gravidade da conduta e rebaixamento da qualidade de vida da sociedade, é possível observar essa tendência que leva à punição dos bad players. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em ação promovida por segurado contra operadora de seguros de assistência à saúde, em que se discutia a negativa de cobertura a procedimento médico-hospitalar, em atendimento de urgência, por motivo de suposta ausência de cumprimento das carências contratuais, entendeu por bem aplicar a teoria do Dano Social. Concluiu o referido Tribunal que a operadora de seguros havia descumprido as determinações trazidas pela Lei que regulamenta o setor, além de ter agido contrariamente ao entendimento fixado na jurisprudência e consolidado em súmula exarada pelo próprio TJSP. Contudo, apontou-se, na decisão, que o método tradicional para a condenação da operadora seria “falível”, motivo pelo qual se justificava uma indenização punitiva. Deixou bastante claro o relator da decisão que a seguradora auferia lucro “com o não uso do capital que vem da contribuição dos segurados durante o tempo que não deseja ou, enquanto não é obrigada a custear esse ou aquele tratamento”. Assim, em face de um dano reiterado, que atinge milhares de pessoas, seguradas ou não, e como forma de prestigiar o interesse coletivo, além da celeridade processual, levando-se em conta as ações similares ou idênticas promovidas por outros segurados, e admitindo-se, ainda, a função social da responsabilidade civil, com a imposição de uma medida pedagógica, verificou o TJSP a necessidade de imposição de indenização pelo verificado dano social, no valor de R$ 1.000.000,00562. 562 www.tjsp.jus.br, 4ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n° 0027158-41.2010.8.26.0564, Julgado em 18/7/2013, Relator Desembargador Teixeira Leite, consultado em 2/9/2013. 256 O outro precedente refere-se à conduta adotada por operadora de telefonia móvel, que interrompia as ligações dos consumidores, de maneira propositada, para que eles tivessem novos gastos com a repetição da chamada. Além da constatação de danos morais à vítima que ajuizou a ação, baseada justamente nessa quebra de confiança aqui tanto ressaltada, entendeu também o julgador ser o caso de reconhecimento de um dano social. Isso porque restou evidente a prática reiterada da lesão, pesem as aviltantes multas impostas pela agência regulatória de telefonia (ANATEL563) e pelos Procon de outros Estados, o que indicava uma conduta propositadamente fraudulenta. Traduzindo a realidade do País, na prática desenfreada de lesões aos consumidores que, quando repetidas, espraiam-se por todo o corpo social, julgou-se pela aplicação de indenização por dano social, para rebaixar o lucro indevido e elevar a dignidade humana564. Percebe-se, portanto, que o ponto central traçado pela norma permite inferir que o seu objetivo é resguardar a saúde do consumidor, propiciando-lhe um máximo de segurança diante de qualquer produto ou serviço, independentemente de sua natureza ou modo de fruição565, cabendo aos julgadores, por meio da principiologia por ela oferecida, aplicar os mecanismos mais eficazes para a efetivação desses mandamentos. Busca-se repelir as práticas danosas ilegais e abusivas, que rebaixam a qualidade de vida da sociedade, atentando contra o seu patrimônio moral, mediante grave ameaça à sua segurança, traindo a confiança depositada por cada membro da camada social na qualidade daquele produto ou serviço que é despejado no mercado. No sistema do Código de Defesa do Consumidor, leis imperativas protegem a confiança que o consumidor deposita no produto, na marca, na informação que o acompanha, na sua segurança ao uso e riscos normais ou que razoavelmente dele se espera, protegendo, em resumo, “a confiança que o consumidor deposita na segurança do produto 563 Em notícia, veiculada no sítio eletrônico da Folha de São Paulo, em 7/8/2012, intitulada TIM derruba sinal de propósito, diz Anatel, revelouse-se pesquisa feita pela Anatel, que constatou a variação do sinal, e verificou que a operadora "derrubou" 8,1 milhões de ligações, o que gerou faturamento extra de R$ 4,3 milhões. In http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1132964-tim-derruba-sinal-de-proposito-diz-anatel.shtml, consultado em 7/8/2012. 564 www.tjsp.jus.br, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Jales, Processo n° 1507/2013, Julgado em 10/10/2013, Relator Fernando Antônio de Lima, consultado em 30/10/2013. 565 SILVA FILHO, Artur Marques. Responsabilidade Civil por Fato do Produto ou do Serviço. In BITTAR, Carlos Alberto (coord.). Responsabilidade Civil por Danos a Consumidores. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 24. 257 ou do serviço colocado no mercado”. Essa garantia de segurança deve, justamente, ser interpretada enquanto reflexo do princípio geral de proteção da confiança566. 4.6.3 dano social e a nova visão da intimidade Além dessa verificação bastante clara da necessidade de proteção contra as práticas lesivas ao mercado de consumo e ao meio ambiente, outras aplicações do dano social são possíveis, especialmente ante a nova formatação das práticas e interações sociais. Como revela Norberto Bobbio, hoje, as ameaças à vida, à liberdade e à segurança podem vir do poder sempre maior que as conquistas da ciência e das aplicações dela derivadas dão a quem está em condições de usá-las, alertando que, na era pós-moderna, caracterizada pelo enorme progresso, vertiginoso e irreversível, os direitos da nova geração provêm todos desse aumento do progresso tecnológico567. Certamente, “software, hardware, leasing, telemática, engineering, franchising, joint-venture... É o orbe jurídico sendo invadido por um sem-número de palavras e expressões novas, todas frutos de uma árvore possante, vigorosa, imbatível, que se chama modernidade”568. Dentre essas preocupações, continua Carlos Alberto Bittar Filho, é citado o exemplo do direito à privacidade, “que é colocado em sério risco pela possibilidade que os poderes públicos têm de memorizar todos os dados relativos à vida de uma pessoa e, com isso, controlar os seus comportamentos sem que ela perceba”569. 566 MARQUES, Claudia Lima et alli. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 235/236 e 263. 567 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª tiragem, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 229. 568 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus Navigandi , Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/ edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013. 569 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus Navigandi , Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/ edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013, p. 230. 258 Nesse sentido, Stefano Rodotà vem alertando sobre a nova ótica sob a qual o direito à privacidade deve ser visto: não mais apenas como o direito de estar só, mas também uma veia condutora à garantia da autodeterminação informativa, ou seja, o direito de constituir livremente a própria esfera privada, de poder controlar a circulação das próprias informações570. Para Rodotà, houve uma inexorável reinvenção histórica da privacidade, baseada na implementação de valores democráticos. Essa evolução passou do “direito de ser deixado em paz”, indo em direção ao “direito a controlar a maneira na qual os outros utilizam as informações a nosso respeito”, culminando numa “proteção de escolhas de vida contra qualquer forma de controle público e estigma social”, como a “reivindicação dos limites que protegem o direito de cada indivíduo a não ser simplificado, objetivado, e avaliado fora de contexto”, com o reconhecimento, pela Corte Constitucional Alemã, por meio de decisão datada de 1983, da “autodeterminação informativa”571. Suscita o referido autor que, atualmente, vive-se num tempo em que as questões relacionadas à proteção de dados pessoais se caracterizam por uma abordagem marcadamente contraditória, o que ele define como uma “verdadeira esquizofrenia social, política e institucional”, na medida em que, se, de um lado, asseguram-se novos direitos com vistas à proteção da intimidade, de outro se criam novas medidas para contornar essas Leis, de forma a permitir a devassidão de informações referentes à personalidade do indivíduo572. Isso ocorre, infelizmente, em razão de uma maior consciência a respeito da “centralidade de uma política tendente a uma formulação, assim como a uma proteção, cada vez melhor dos direitos do homem”, que acaba ocasionando uma sistemática violação de direitos573. O homem, em razão dos clamores do grupo social que se sobrepõem aos interesses particulares, tende a ser reduzido a mera estatística. O controle do Estado, voltado a uma 570 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: A privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes, Renovar: Rio de Janeiro, 2008, pp. 13/292. 571 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 15. 572 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., pp. 14/15 573 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª tiragem, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 230. 259 política direcionada para os interesses da coletividade, tende a assumir posições marcantes, relegando a privacidade da pessoa, com sério comprometimento de sua individualidade, afetando os seus direitos de personalidade, rumando à descaracterização do homemindivíduo, detentor de patrimônio próprio, tornando-o massificado574. Além de não ser mais vista como um direito fundamental, a privacidade parece ser frequentemente considerada como um obstáculo à segurança. Desse modo, acaba sendo sempre relegada a plano inferior por legislações de emergência. Dessa forma, os dados relativos à intimidade do indivíduo, coletados para um fim específico, acabam sendo disponibilizados para propósitos diferentes e mesmo para órgãos do setor público ou privado diversos, tornando as pessoas cada vez mais “transparentes”, cada vez mais ameaçadas em sua esfera privada (esta vista agora como aquele “conjunto de ações, comportamentos, opiniões, preferências, informações pessoais, sobre os quais o interessado pretende manter controle exclusivo”575). Rodotà cita que a atual sociedade, a qual ele denomina sociedade de vigilância576, apresenta como figura central o “homem de vidro”. Ou seja, o homem, em razão dessa vigilância exacerbada, não consegue mais ter controle sobre a sua vida privada, intimidade e segredo. Por isso que, nos dias atuais, o direito à privacidade assume novo papel: o de garantir ao homem o controle sobre os seus dados, caracterizado pela liberdade das escolhas existenciais e identificado com a “tutela das escolhas de vida contra toda forma de controle público e estigmatização social”577. Com efeito, a inviolabilidade da pessoa deve ser reconfigurada e reforçada também na dimensão eletrônica, “segundo uma nova consideração ofertada ao respeito ao corpo humano. Devem ser rejeitadas todas as formas de reducionismo”578. 574 REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, pp. 78/79 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 92 576 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 113 577 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 92 578 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 19 575 260 Isso implica na impossibilidade de coleta de dados pessoais se o propósito específico possa ser alcançado sem o acesso a tais dados. Sem dúvida, a defesa do exercício da individualidade, traduzido no direito à personalidade, deve se constituir um dever do Estado579, seja coibindo afrontas a esse direito, seja não invadindo a esfera de privacidade de cada indivíduo. Ao mesmo tempo em que a tecnologia ajuda a incrementar a esfera privada, alargando sua definição, torna-a mais frágil, na medida em que a expõe a diversos novos tipos de ameaças. Nos Estados Unidos da América, inclusive, houve divulgação da intenção de empresas, que haviam coletado dados pessoais de milhões de consumidores, de espalhar no mercado essas informações, de vendê-las a empresas menores, o que tornaria impossível ao indivíduo ser excluído dessa “lista”, em virtude de sua enorme disseminação580, para citar apenas um exemplo dessa fragilidade que a tecnologia proporciona, o que demanda o aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção da privacidade. Efetivamente, reformula-se a visão antiga da intimidade, no sentido de instrumento para realizar a finalidade individual de ser deixado só – como ocorria, marcadamente, com a burguesia do século XIX, em que a privacidade era utilizada como instrumento de isolamento do indivíduo burguês em relação à sua própria classe, ou seja, como ferramenta de aquisição de privilégio por parte de um grupo –, ganhando corpo esse novo escopo de proteção desse direito, como ferramenta para que indivíduos ou grupos controlem o exercício dos poderes baseados na distribuição de informações581. Diante das novas questões que traduzem violações ao direito da privacidade, pelo conjunto de meios empregados e pelo número de sujeitos interessados, apenas podem ser corretamente propostas medidas de proteção em termos coletivos. Os cidadãos, então, devem ter o direito de exercer controle direto sobre aqueles sujeitos que receberam informações suas, e aos quais é atribuído “um crescente plus579 REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 80. Após mais de 30.000 ligações e cartas recebidas, as empresas decidiram cancelar a venda dessas informações pessoais. In http://www.nytimes.com/1991/01/24/business/company-news-new-data-baseended-by-lotus-and-equifax.html, publicado em 24/1/1991, consultado em 13/3/2011. 581 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., pp. 24/27 580 261 poder”582. Deve haver controle da sociedade sobre as informações que dela são colhidas, temperando-se não apenas o fornecimento da informação, mas de fato monitorando-se a sua exatidão pelo indivíduo. Isso porque tais informações, embora, num primeiro momento, possam parecer inofensivas, quando ligadas a outros dados a respeito do indivíduo, enxergado sob o ponto de vista de uma coletividade, podem gerar efeitos catastróficos, um verdadeiro dano em cascata. Surge, então, a privacidade como um direito de acesso à informação dinâmico: não mais como um simples direito de ser informado, mas de ter acesso a determinadas categorias de informações que estejam sob a guarda ou de órgãos públicos ou privados583. Uma das soluções encontradas por Rodotà seria a introdução de procedimentos de “avaliação de impacto sobre a privacidade”, tal qual ocorre com a avaliação de impacto ambiental, porquanto a poluição das liberdades civis não ser menos importante que a poluição do meio ambiente584. Bastante comum, atualmente, o surgimento misterioso de dívidas no nome de pessoas que nunca as contraíram, ou a cobrança de débitos já há muito liquidados. Ao tentar se informar sobre a origem de tais débitos, nem mesmo o suposto credor, que procedeu a esse apontamento e restringiu o crédito do hipotético devedor, consegue descrevê-lo. Tampouco se dispõe esse suposto credor a oferecer uma cópia da consulta realizada em seu banco de dados. Parece deveras fácil entender, nos dias de hoje, o incompreendido autor, em seu tempo, Franz Kafka, quando escreveu sua obra prima intitulada O Processo. De forma visionária, o referido autor aparenta ter previsto como seria o mundo atualmente. As pessoas são informadas sobre a existência de um processo (uma dívida, por exemplo), a respeito do qual não conseguem acesso, não sabem qual o seu objeto nem tampouco sua origem. A única certeza é a de que existe um processo e que há penas em virtude desse 582 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 37 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 69 584 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 20 583 262 fato, que são prontamente aplicadas (v.g. restrição ao crédito, impossibilidade de contratar etc.). Ocorre, então, uma devassidão da intimidade, na medida em que o homem tem seus dados expostos para o mundo, mas, ao mesmo tempo, não consegue controlá-los, tampouco verificar ou ratificar a sua veracidade ou a forma como serão despejados no mundo. Atualmente, as pessoas são prisioneiras de um “sistema” e, quando devassadas em sua intimidade e vida privada, acabam tendo de interromper todas as suas atividades para tentar solucionar os defeitos que esse mesmo “sistema” apresenta 585. Logicamente, essa devassidão aos direitos do homem, à sua própria intimidade, deve ser rechaçada também, por meio de instrumentos que não apenas corrijam essas constantes “falhas de sistema”, mas que previnam o seu acontecimento. Enquanto não há avanço e desenvolvimento suficiente – não em relação à tecnologia, mas às políticas adotadas pelos órgãos governamentais – para a implantação de um sistema de avaliação de impacto sobre a privacidade, certamente, sobre tais questões parecem não estar alheios os Tribunais brasileiros. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, teve a oportunidade de enfrentar questões de vazamento indevido de informação, atribuído a uma falha no sistema operacional da empresa, o que prejudicou sobremaneira determinado indivíduo, que teve contra si promovida investigação do Tribunal de Contas da União. Em sua decisão, aplicou-se indenização que, segundo a argumentação expendida, traduzia bastante a ideia de penalização da empresa que expôs indevidamente a intimidade do autor, fazendo-o correr o risco de sofrer condenação pecuniária expressiva e de perder o seu emprego586. 585 Qual administrado ou consumidor que, ao indagar um servidor de repartição pública ou um preposto de um fornecedor de produtos ou serviços a respeito de incongruências constantes em seu nome, nunca obteve como resposta algo como “esse problema decorreu de uma falha no sistema” ou “não constam informações a esse respeito”. 586 www.tjsp.gov.br, Apelação Cível n° 682.436-4/9-00, Oitava Câmara de Direito Privado, Presidente e Relator Desembargador Caetano Lagrasta, julgado em 16/12/2009. 263 Como afirmou o relator do acórdão, não interessa se curto ou longo o prazo de exposição da vítima “ao vexame de ter que explicar, sem qualquer prova, posto que não agira da forma ‘esclarecida’ pela requerida, não é objeto de imediata inversão da prova, vendo-se aquela a deixar seus afazeres para ‘correr atrás do sistema’”. Revela-se, assim, nessa atual sociedade de vigilância, a premência de maior diligência no trato das informações individuais e coletivas. Com a enorme facilidade no acesso, divulgação e propagação da informação, a pouca intimidade restante a cada indivíduo aparenta ganhar status de bem supremo. Violando-a, pode-se condenar a pessoa ao fracasso no emprego, nas relações pessoais e amorosas, motivo pelo qual a necessidade de repreensão às constantes falhas de sistema ou aos tráfegos ilegais de informação mostrase impositiva. Decerto, a aplicação da teoria do dano social a questões dessa natureza, longe de resolver definitivamente o problema, ao menos traria à sociedade o exemplo de comportamento que se repudia, com a instituição de sanção punitiva capaz de constranger os ofensores a não mais assim operar. Caso não seja sabido quem colheu e repassou, ilicitamente, a informação, repreende-se aquele(s) que a utilizou(aram), restringindo esse círculo vicioso, senão em seu começo, ao menos em seu fim. 4.7 A DECISÃO QUE RECONHECE O DANO SOCIAL Outro aspecto importante relacionado ao dano social refere-se à decisão que deferilo e arbitrar o quantum indenizatório. Certamente, o decisum que conceder indenização pela apuração de um dano social deve ser o mais completo possível, tanto no que diz respeito aos fatos, quanto ao cálculo realizado pelo magistrado, que o levaram a chegar naquele valor indenizatório. 264 Assim, deve ser descrita, de forma minudente, os fatores que adjetivam a gravidade do dano e a sua extensão, e como ele impactou de forma negativa para a sociedade, de forma a caracterizar um Dano Social587. Por sua vez, deve também ser perscrutada a conduta adotada pelo agente causador da lesão, mediante a exposição de sua contribuição significativa para a ocorrência do dano, de forma comissiva ou omissiva, além de eventual ausência de adoção de medidas que pudessem prevenir ou atenuar a sua extensão. Dessa forma, poderá o lesante ter a certeza dos parâmetros utilizados em sua condenação, o que autorizará apresentar recurso adequado contra a decisão, para demonstrar que adotou, por exemplo, as medidas de segurança necessárias ou tentou diminuir a extensão do dano, quando foi ele constatado. Ou, ainda, que pouco contribuiu com a ocorrência do dano, fazendo com que o valor da indenização seja minorado. Além disso, terá ciência não apenas o lesante, mas também os demais potenciais causadores de danos similares sobre os pontos de reprovação da conduta, sobre o que representa ela à coletividade, e sobre a postura do Poder Judiciário em não admitir a sua repetição. De fato, mais do que punir o agente e reparar a sociedade, a decisão deverá servir de exemplo aos demais potenciais causadores de danos semelhantes. Deve, portanto, ficar claro qual é o ponto de discordância em relação à conduta praticada e por que ela não será mais tolerada pela sociedade. Deve haver clareza no raciocínio utilizado para a obtenção do quantum, sobre quais foram os fatores que agravaram o valor da indenização e quais foram aqueles que o diminuíram, podendo a decisão ser até mesmo utilizada como exemplo positivo aos 587 André Gustavo Corrêa de Andrade salienta que é a fundamentação do julgado que possibilita o controle da sua racionalidade. Dessa sorte, cabe ao julgador, com a objetividade possível, “justificar o valor estabelecido, destacando as circunstâncias de fato relevantes para a estimativa da indenização”, tendo em mente que, para a fixação do montante da indenização punitiva, deve sempre ter em mente as finalidades que a conduzem: “punir a conduta lesiva e prevenir novos ilícitos”. ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 297/298. 265 demais, com a demonstração de que a adoção de medidas preventivas ou que atenuem o dano serão levadas em consideração para a mitigação da responsabilização. Além da transparência em relação ao dano social, deve ficar muito bem definido na decisão como se chegou e o que representa cada tipo de lesão apurada, caso não haja condenação apenas pela reparação de um dano social. Assim, deve haver clara distinção entre a condenação por danos patrimoniais, morais e sociais, para que seja possível fazer valer o direito de recurso da parte que sofrer a condenação. Da mesma forma, feita essa discriminação, a própria vítima ficará satisfeita em ver que a conduta foi devidamente repreendida, destinando-se um valor unicamente para essa finalidade, assim como que ela servirá de exemplo para outros potenciais ofensores. Parece que a maior parte da reclamação dos agentes condenados a pagar indenizações punitivas refere-se ao fato de que não fica evidente, nas decisões, o motivo que levou à condenação por danos morais e por danos punitivos, certo de que tudo é atribuído a uma única indenização, dificultando, assim, a defesa. E com razão o reclamo. Logicamente, a motivação das decisões judiciais constitui princípio constitucional, insculpido no artigo 93, IX588 da Magna Carta. Ademais, como antes mencionado, essa falta de clareza impede até mesmo com que aquela decisão seja utilizada como exemplo aos demais potenciais causadores do dano, na medida em que não é permitido apreender o grau de reprovação da conduta danosa, o que foi levado a favor ou contra o agente, para a majoração ou redução da indenização. Por razões não apenas de conveniência, mas de necessidade, a operação realizada para a fixação do quantum correspondente à indenização por um dano social deve ser feita separadamente da realizada para a apuração do valor referente à indenização compensatória (para danos patrimoniais e morais) do mesmo dano. 588 “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” 266 Essa separação é sobremaneira importante para garantir verdadeira transparência e efetivo controle sobre a adequação dos critérios utilizados e sobre a justeza da valoração efetuada pelo julgador. Possibilita-se, assim, “a verificação do peso atribuído à compensação do dano e o conferido à reprovabilidade da conduta, permitindo, entre outras coisas, o exame da proporcionalidade da parcela punitiva em relação à parcela compensatória e até em relação à indenização do dano material eventualmente existente”. 589 Dessa sorte, apenas uma decisão completa, bem fundamentada e descritiva conseguirá fazer valer as verdadeiras funções da Responsabilidade Civil, de reparação social, punição e prevenção de danos. 4.8 A LEGITIMAÇÃO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO: O PROBLEMA DA ATOMIZAÇÃO PROCESSUAL A maior resistência na aplicação da teoria do Dano Social refere-se justamente à legitimidade de, num dissídio individual, reclamar-se um direito coletivo, de forma que a própria indenização seja destinada a outros agentes, que não aqueles que participaram da relação processual. No entanto, embora tenha sido conferida ao Ministério Público e alguns outros entes a árdua tarefa de representar a coletividade nas ações em que houver transgressão a direitos transindividuais, inúmeras situações ficam desacolhidas, justamente em razão do assoberbamento desses representantes da sociedade. Assim, de um lado, surge um grupo de pessoas carentes de proteção aos seus direitos mais caros e, de outro, há um órgão público que, dentre suas funções, está aquela de defender esses mesmos direitos, mas, ante o altíssimo volume de demandas, não consegue atender a todos esses anseios da sociedade. 589 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012. 267 Dessa forma, não parece crível deixar desprotegido o patrimônio coletivo, apenas por que não existem mãos suficientes para lutar contra as lesões a ele causadas. Permitir essa situação seria o mesmo que fazer morta a letra da Constituição Federal que, em seus inúmeros artigos, deixa clara a proteção a esses bens tão caros à população, elevando, como valor maior, a dignidade do ser humano, individual ou coletivamente considerado. Como revelou Mauro Cappelleti, há mais de trinta anos, a tutela jurisdicional será invocada não mais somente contra violações de caráter individual, mas mais frequentemente em situações de caráter essencialmente coletivo, enquanto envolvem grupos, classes e coletividades, ao que ele denominou “violações de massas”590. Com efeito, as atividades e relações atuais referem-se a categorias inteiras de indivíduos, e não mais a uma única pessoa, assim como os direitos e deveres apresentam-se não mais como essencialmente individuais, mas agora metaindividuais e coletivos. Por isso que o cidadão, isoladamente considerado, é praticamente impotente na defesa de seus direitos. Embora a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor tenham trazido um significativo avanço para a tutela dos interesses coletivos, ainda há escassez de agentes legitimados a representar a sociedade na defesa desses direitos, ficando muitas situações sem a devida proteção. Certamente, a Ação Popular, permitida a qualquer cidadão para a defesa do patrimônio público, compreendidos os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, aparenta ter dado um passo ainda maior. Todavia, não se mostrou tão efetiva, por atender, muitas vezes, mais a interesses políticos do que à sociedade, talvez pelo seu limitado rol de hipóteses permissivas. Nessa direção, o direito estrangeiro traz experiências positivas a respeito de classes de processos para a defesa do interesse coletivo, como as relator actions, utilizadas nos países de Common Law (raramente utilizadas nos EUA), em que o attorney general – 590 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. São Paulo, Revista de Processo, n. 5, p. 7, 1977, p. 130. 268 equivalente ao promotor de justiça – tem o poder de intentar a ação de proteção a interesse coletivo, mas, na sua inércia, podem agir um indivíduo ou uma associação privada, a partir do preenchimento de certos requisitos. Além disso, as class actions, largamente utilizadas nos EUA, em que o autor da demanda não tem qualquer necessidade de autorização pelo attorney general, recebendo controle somente do juiz que assumir a ação, garante a proteção desses interesses transindividuais. María Fabiana Compiani refere que a evolução jurisprudencial argentina proporcionou modificações na legislação, de forma a autorizar certos entes a defender direitos coletivos, como ocorreu no Brasil. Contudo, interessante mencionar que, em uma dessas decisões, “...el más alto Tribunal de la Nación em cuanto admitió el amparo para efectivizar un interés difuso permitiendo el ejercicio del derecho de réplica a un particular afectado em sus sentimientos religiosos591. Ou seja, quando necessário, é preciso reconhecer a incidência transindividual na ação de esfera particular, com o fim de proteger direitos difusos, de toda a coletividade. Mas mais importante que definir a titularidade do direito que confira a legitimidade para a ação de direitos sociais – até porque não é possível determinar o responsável ou detentor de um bem difuso ou coletivo, já que o seu titular tende a ser indeterminado –, é verificar se a parte realmente se mostra como um representante ideológico daquele interesse, ou seja, se é a justa parte agindo em prol do bem coletivo. O mesmo autor anteriormente citado, Mauro Cappelletti, define que, em sua visão, a melhor representatividade da coletividade adviria de uma combinação entre controle público associado à iniciativa privada, especialmente com a criação de órgãos governamentais específicos para cuidar de assuntos determinados, com o auxílio dos indivíduos ou grupos privados. Cita ele o exemplo positivo, ocorrido na Suécia, do ombudsman dos consumidores, em que as associações privadas também podem promover 591 COMPIANI, María Fabiana. Responsabilidad por daños colectivos. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, SP, ano 9, n. 36, p. 185-198, out.-dez. 2000, p. 192. Em tradução livre: O superior Tribunal da Nação reconheceu o direito de exercício de direito de réplica a um particular afetado em seus sentimentos religiosos, para efetivar um interesse difuso. 269 ações na Justiça, numa interação com esse personagem governamental, ou ainda na França, em que um indivíduo ou grupo, em determinadas situações e respeitados certos limites, podem fazer movimentos à ação penal, até mesmo contra a vontade do Parquet592. Entretanto, enquanto não implementada regulamentação acerca de figuras semelhantes de representação, não é permitido abandonar diversas situações de violações coletivas, até de forma contrária ao que prevê a Constituição Federal, ao não excluir do Poder Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça de direito593. Stefano Rodotà bem consigna que a lei não pode ser mais vista como um instrumento rígido, mas sim flexível, na medida em que “sua concreta atuação impõe um trabalho de adaptação atribuído a outros sujeitos, que não o legislador”594. Partindo-se, então, da ordem constitucional de apreciação, pelo Poder Judiciário, de qualquer lesão ou ameaça de direito, e carente o sistema de procedimentos ou representantes adequados que garantam a reparação coletiva, deve-se permitir, ainda que em ação individual, o reconhecimento de um dano que extrapole essa relação. Nelson Nery Junior encerra essa questão ao definir que “...caso o juiz decida a respeito de questão de ordem pública não agitada pelo autor-consumidor na petição inicial, não terá violado o princípio da congruência e, consequentemente, a sentença não conterá o vício de haver sido proferida extra ou ultra petita”. A abusividade, assim, é, ex lege, matéria de ordem pública, acarretando ao juiz e aos Tribunais “o dever de examiná-la ex officio, independentemente da alegação da parte ou interessado...”595 Esse dever do magistrado justifica e impõe, em casos determinados, o reconhecimento de um dano social, ainda que a análise seja realizada em dissídio individual. 592 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. São Paulo, Revista de Processo, n. 5, p. 7, 1977, pp. 143/144. 593 Constituição Federal, art. 5º, XXXV. 594 RODOTÀ, STEFANO. A Vida na Sociedade da Vigilância – A privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 136. 595 NERY JUNIOR, Nelson. Visão sobre a principiologia do Código de Defesa do Consumidor. pp. 95/102, in Revista do Advogado: 20 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor – Desafios atuais, ano XXXI, dezembro-de 2011, nº 114, São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, p. 97. 270 Note-se, aliás, que a Constituição da República impõe à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput, da CF), e, no caso da proteção à criança, ao adolescente e à pessoa idosa também estabelece o texto constitucional o dever da família e da sociedade em amparar e assegurar os seus direitos (arts. 227 e 230 da CF). Ora, cabendo à coletividade esse papel, qualquer indivíduo deve poder denunciar as violações aos direitos que atentem contra a própria sociedade da qual faz parte. Essa é a própria figura do private attorney general, presente nos EUA, pelo que o indivíduo ou grupo é impelido a agir não apenas por seu próprio interesse, mas pelos direitos da comunidade, certo de que sua ação apresenta um significado que transcende as partes do processo, atingindo todos os membros daquela coletividade. A parte age, sobretudo, no interesse da coletividade, já que é ela que deve ser reintegrada no gozo de seu direito coletivo. Como apontado por Antonio Junqueira de Azevedo, e referido no início deste capítulo, as condições concretas em que a sociedade vive não são favoráveis à criação de mais deveres para o Estado. Cabe, então, ao particular, na sua ação individual de responsabilidade civil, agir como defensor da sociedade, exercendo um munus público, como um “promotor público privado”596. Ao comentar sobre essas ações coletivas, Mauro Cappeletti afirma que o juiz deveria ter os seus poderes estendidos, de forma a irradiar os efeitos de sua decisão não mais apenas aos indivíduos que litigam no processo, mas para compreender a totalidade do dano produzido pelo réu. Obviamente, em uma série de situações, se cada indivíduo tivesse que ingressar com ação isoladamente, ou se o juiz tivesse que condenar a empresa a ressarcir somente o dano causado a um único indivíduo, que, diligentemente, promoveu a demanda judicial, o comportamento do lesante continuaria imperturbado, porque o dano a compensar ao autor esporádico seria sempre inferior aos custos necessários a evitar qualquer comportamento597. 596 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 383. 597 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. São Paulo, Revista de Processo, n. 5, p. 7, 1977, pp. 152/153. 271 Na realidade, o autor da ação, muitas das vezes, estará agindo na busca de interesses próprios, apenas alertando ao magistrado que aquele dano cometido pelo réu é passível de enquadramento na teoria do Dano Social. O julgador, por sua vez, analisando as evidências apontadas, e, principalmente, tendo conhecimento da gravidade da conduta ou da repetição da lesão, contestada em diversos outros dissídios individuais, poderá reconhecer a prática de um dano social. Por uma questão de ordem, para coibir novas ações, em virtude de reiteração do ato lesivo, o magistrado age em nome da sociedade, reconhecendo, na própria demanda individual, tratar-se de lesão a um bem maior, a um interesse difuso. Logicamente, o cenário ideal, como revela Geneviève Viney, seria o desenvolvimento de um procedimento específico para a concretização da indenização de danos de massa. Em primeiro lugar, a multiplicidade de vítimas traz o risco de provocar um entupimento dos tribunais, se cada um deles agir separadamente. Além disso, as ações individuais revelam-se muito onerosas para alguns e ameaçam desembocar em decisões contraditórias. Por isso ser necessária a criação de ações coletivas, como as class actions norte-americanas598. Andou nesse passo o Senado Federal, ao apresentar Projeto de Lei para a modificação do Código de Defesa do Consumidor (PLS nº 282/2012, de autoria do Senador José Sarney), que pretende instituir um expediente de reunião de demandas, organizando, assim, a ação coletiva, inclusive criando um cadastro geral de demandas coletivas. Contudo, embora palatável e até mesmo recomendável essa modificação, é possível a aplicação de indenizações por dano social em dissídios de natureza individual, quando o dano transcender às partes do processo, seja pelo permissivo constitucional anteriormente apresentado, seja pela necessidade do direito de flexibilizar-se ante a modificação da configuração da camada social. 598 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 52. 272 Para que não ocorram abusividades no atuar do magistrado, prudente seria a participação do Ministério Público, para atuar como fiscal da Lei, nos termos do que prevê o art. 5º, § 1º da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública). 4.9 A DESTINAÇÃO DA INDENIZAÇÃO O maior problema na admissão de um dano social parece estar intimamente relacionado à sua destinação. Logicamente, a doutrina e julgadores mais tradicionalistas encontrariam, no princípio do enriquecimento sem causa, uma vedação quanto à destinação da indenização à vítima. Por outro lado, a destinação da indenização a um fundo gerido pelo Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais (art. 13, Lei nº 7.347/1985) não tem se mostrado efetiva para a “reconstituição dos bens lesados”, na medida em que os valores nem sempre se revertem em benefício daquele grupo prejudicado ou se relaciona à área de interesse afetada. Por ser um tema muito recente, os seus estudiosos ainda não chegaram a um consenso sobre a destinação desse valor. Ao admitir a possibilidade de existência de um dano punitivo no Brasil, Maria Celina Bodin de Moraes consigna não ser possível a equiparação dessa figura indenizatória com caráter punitivo aos punitive damages, porquanto o valor obtido a maior da indenização, em função dessa pena privada, não deverá ser destinado ao autor da ação, mas, de acordo com a Lei nº 7.347/85, servirá para o benefício do maior número de pessoas, por meio do depósito em fundos próprios599. Da mesma forma, Matilde Zavala de González assevera que a indenização resultante da reparação de um dano extrapatrimonial coletivo satisfaça também um destino coletivo. Isso porque, se a indenização é repartida entre aqueles que forem prejudicados em seus interesses particulares, não será destinada à compensação pela perda do bem coletivo, 599 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 263. 273 mas, antes, da lesão que o indivíduo sofreu como consequência daquele dano. Dessa sorte, a indenização deveria ser dirigida a patrimônios públicos de afetação específica ou a um fundo de garantia, que permita uma política de retorno ou reciclagem dos importes de compensação, em favor da coletividade interessada, visando o cumprimento de finalidades conexas ao interesse difuso tutelado em juízo, como também, e especialmente, para evitar danos semelhantes ao produzido600. Também seguem essa linha Renata Chade Cattini Maluf, ao consignar que a indenização punitiva seja vertida à sociedade601, e Ricardo Luis Lorenzetti, quando defende que a indenização por dano moral coletivo deve ir a um fundo público ou, em um melhor cenário, a patrimônios públicos de afetação específica, que evitam os desvios de destinos dos fundos, em razão de que a lesão ocorre sempre a um bem público, de propriedade difusa, e não individual602. Ou melhor, ainda que admitida a destinação dos valores a um fundo público, prefere-se sempre que ele tenha uma afetação específica, “especificamente destinado à proteção do interesse difuso tutelado”, com a sua aplicação na recuperação de bens, promoção de eventos educativos, científicos e na edição de material informativo relacionado com a natureza do dano causado, bem como na modernização administrativa dos órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas relativas à defesa do interesse envolvido603. Por esse motivo que Xisto Tiago de Medeiros Neto discorre sobre a possibilidade de se destinar a indenização advinda de um dano moral coletivo a uma outra aplicação ou entidade beneficiária, que não seja um Fundo específico tratado pela Lei nº 7.347/85, aduzindo que essa opção mostra-se consonante com a racionalidade e os valores que presidem a tutela reparatória pertinente aos danos coletivos, além de conferir significativa relevância ao sistema de justiça, diante da maior eficácia social conferida à tutela 600 GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, pp. 358/359. 601 MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 207. 602 LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D, 1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales, VI, 01/01/2007, 925, p. 16. 603 GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 241. 274 jurisdicional a bens e interesses coletivos, mediante o direcionamento da condenação a um objetivo útil e de retorno direto, mais adequado e efetivo à sociedade604. Nesse mesmo sentido já decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região605, ao distribuir a indenização por danos morais coletivos a diversos fundos, inclusive à associação beneficente, para a aquisição de equipamentos e medicamentos destinados ao tratamento da doença que era discutida no julgamento. Em sentido oposto, Paula Meira Lourenço entende que o lucro deve ser integralmente entregue ao lesado, o qual tem “o impulso processual inicial”, salvo se for criado um Fundo de Garantia que “tenha por objectivo suportar os montantes indemnizatórios a pagar aos lesados, sempre que o lesante não tiver bens penhoráveis, caso em que entendemos que o lucro deverá ser repartido, em partes iguais, entre o lesado e o Estado”606. Parece, entretanto, que a indenização deve seguir uma lógica pela ponderação, destinando-se parcialmente à vítima que, além de ter também partilhado do dano, representou os interesses da sociedade, devendo-se recompensar o seu esforço, e a outra parte à coletividade, que teve interesses jurídicos golpeados, devendo ser compensada. Suscita, nesse sentido, Daniel de Andrade Levy, que, caso assim não ocorresse, destinando-se integralmente a indenização a um fundo público, as vítimas ficariam desestimuladas a levarem ao Poder Judiciário esse tipo de violação, em virtude de saírem ainda mais empobrecidas com a propositura da demanda, sem nenhum benefício haver para si. Assim, seria indispensável que ao menos um pedaço da indenização pudesse ser revertida àquele que apresenta a demanda ao Poder Judiciário. Por isso que, na esteira do Anteprojeto francês, prefere dividi-la entre o autor da demanda e o Tesouro Público, destinando-a, entretanto, não ao Estado, de forma genérica, mas a fundos públicos específicos, que possam garantir, futuramente, as reparações das vítimas de acidentes 604 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, p. 217. In , Recurso Ordinário nº 01042003019995020255, 6ª Turma, Relator Juiz Valdir Florindo, Julgado em 6/7/2007. 606 LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória. 605 275 semelhantes. Na ausência desse fundo, a verba poderia ser destinada a uma associação de proteção dos direitos dos lesados, que deveria comprovar o uso dos recursos naquele sentido607. Certamente, não se pretende a imposição da maior parte da indenização à vítima, mas que o incentivo de patrocinar uma causa social realmente exista, estimulando a denúncia a essas condutas que fulminam interesses coletivos. Note-se, por exemplo, que, no caso das microlesões, a vítima sentir-se-á pouco estimulada a procurar o Poder Judiciário, em virtude da dimensão do dano que lhe foi causado, seja também em razão dos gastos com o processo ou do seu alargado tempo de duração. Se não houver nenhum benefício à vítima, parece difícil que leve ela a notícia ao Poder Judiciário, para que se interrompam essas práticas maliciosas e claramente ilícitas. O avant-projet francês de reforma do Livro de Obrigações do Código Civil, ao tratar do ressarcimento dos danos oriundos de uma faute lucrative, define que poderá o juiz remeter metade dos valores pagos pelo ofensor ao tesouro, autorizando, então, que metade desse valor seja destinado à vítima que ajuizou a demanda. Além disso, como visto, a recente evolução do sistema legal norte-americano dos punitive damages também conseguiu contornar os problemas inicialmente apresentados na aplicação do instituto, quando as vultosas reparações implicavam em reparações ineficientes da sociedade, como também desincentivavam os consumidores na adoção de comportamento prudente, a fim de evitar danos, passando a proporcionar, atualmente, a distribuição dos valores da condenação (parte para a vítima, parte para o Estado ou fundos específicos), o que resultou em uma maior aceitação das indenizações e uma melhor aderência dos potenciais agentes lesivos a uma mentalidade de prevenção. De fato, indenizando-se tanto a vítima que propôs a ação, como a sociedade, estarse-á cumprindo a exata função que o dano social pretende desempenhar: tanto servir como ferramenta às práticas lesivas que ficam à margem de sanções adequadas, quanto o conhecimento do Poder Judiciário a respeito dessas lesões. 607 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 97 e 118. 276 Não se cogita, dessa forma, levantar a bandeira da proibição do enriquecimento sem causa, porquanto nenhuma incongruência terá a destinação da indenização. A teoria do enriquecimento sem causa, em realidade, mostra-se um contrassenso na jurisprudência, que, em que pese admitir funções compensatória e punitiva ao dano moral, adverte que o montante fixado não pode servir ao enriquecimento da vítima. Ora, se existe um plus indenizatório, destinado à punição da vítima, como é referido nas decisões dos Tribunais, estará ele locupletando indevidamente o ofendido, pouco importando o tamanho do valor. Mas, certamente, se o montante destinado à vítima provém de uma decisão judicial, não se pode cogitar de enriquecimento indevido, já que a pena, quando justa, torna legítimo esse enriquecimento ou empobrecimento, que terá base jurídica. Por isso que, agindo a vítima em parceria com o Estado e a sociedade, deve também receber a sua recompensa, já que atuou “como um porta-voz de um sentimento comum a uma coletividade de pessoas”; laborando para obter o resultado coletivo, “consumiu seu tempo, as suas energias, efetuou despesas processuais e profissionais, quando muitas vezes os danos patrimoniais individuais eram de pequena monta ou de difícil comprovação”, devendo tal valor ser fracionado entre o “Estado/órgãos públicos/entidades beneficentes e o agente”. Assim que a concessão parcial da condenação em prol da vítima é um evidente estímulo para que várias pessoas possam procurar o judiciário, conscientes de consequências positivas que excedam a simples reintegração patrimonial608. Afinal, ela também sofreu o dano e deve participar dessa divisão. Chega-se, dessa maneira, a um meio-termo na destinação da indenização pela prática de um dano social, destinando-se corretamente esses valores para as efetivas vítimas dos prejuízos causados. Aponta Nelson Rosenvald que, conceder uma parte da indenização ao Estado, suprimiria um dos aspectos teleológicos da condenação, que além de prevenir ilícitos e punir o agente, quer efetivamente demonstrar à sociedade que o montante apurado será revertido e aplicado em favor dessa mesma coletividade609. 608 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 197/198. 609 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 200. 277 Seria interessante, por esse motivo, e de acordo com a lição antes trazida, que esse valor fosse destinado não a um fundo público, mas a qualquer outra aplicação ou entidade beneficiária, sobre a qual fosse possível reconhecer a idoneidade, e que o destinasse – comprovando posteriormente tal fato – a melhor atender os interesses daquele grupo ou setor atingido (v.g., em um dano causado em relação de consumo reverter-se-ia o valor a uma associação que cuida dos interesses dos consumidores). Decerto, o próprio Código Civil traz previsão nesse sentido, bastando-se tomar emprestada essa regra insculpida no parágrafo único do artigo 883, que permite, a critério do julgador, a destinação de valores a estabelecimento de beneficência. Não parece prudente, entretanto, estabelecer uma fórmula fixa de destinação da indenização: se metade para a vítima e metade para a sociedade, devendo ser analisado cada caso concreto. Nelson Rosenvald estabeleceu uma fórmula para calcular o montante destinado à vítima e ao Estado ou outros fundos, distinguindo os danos de natureza imediatamente difusa das sanções civis que sirvam como respostas exemplares a ofensas a situações jurídicas existenciais promovidas por meios de comunicação ou outros potenciais ofensores com aptidão de comportamentos em face de um público considerável, que se enquadraria nos danos mediatamente difusos: “(a) dano imediatamente difuso – produto comercializado por empresa nas praias sem qualquer consideração quanto à higiene. O consumidor que ajuíza a demanda receberia ¼ da condenação pela pena civil, além da integralidade dos danos patrimoniais e morais; (b) dano mediatamente difuso – revista semanal dedicada a exibir a vida das ‘celebridades’. Eventual dano à honra ou à privacidade requer além da condenação pelo dano moral (integralmente destinada ao ofendido), uma sanção civil igualmente repartida entre a vítima e entidade(s) beneficente(s)”610. 610 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 199. 278 De fato, pré-estabelecer uma fórmula de destinação da indenização fará, uma vez mais, que críticas recaiam sobre o instituto, em especial daquela corrente mais conservadora, avessa à ideia de um enriquecimento indevido – ainda que ele não ocorra, como explicado. Contudo, o que se destaca dessa fórmula é a gravidade do bem social atingido, que deverá ser levado em conta no momento do estabelecimento da destinação. Assim, se se tratar de um dano imediatamente difuso, em que o prejuízo social foi maior e mais grave, uma parcela maior ficará com a sociedade. Por outro lado, se for o caso de um dano mediatamente difuso, em que o dano for de menor intensidade, levando à indenização uma carga muito mais punitiva, a maior parte poderá ser destinada ao autor da ação. Acresça-se a essa matemática a participação da vítima na obtenção da indenização por um dano social. Quanto mais contribuir na demonstração do dano, lutando em demonstrar a violação de um interesse social, maior será a parte que lhe será destinada da indenização. Apenas se deve evitar que o montante destinado à vítima seja ínfimo, que desestimule novas tentativas de outros ofendidos na demonstração, ao Poder Judiciário, de novas práticas de um dano social. 4.10 O PROBLEMA DA REPARAÇÃO PECUNIÁRIA Ainda que o escopo de uma indenização seja a reparação ou compensação da vítima em pecúnia, muitas vezes o dinheiro não é o melhor remédio para que se apaguem os vestígios deixados pela lesão. Aponta Anderson Schreiber que, atualmente, ocorre uma inversão axiológica, por meio da qual a dignidade humana e os interesses existenciais passam a ser invocados visando à obtenção de ganhos pecuniários, estimulando sentimentos mercenários, pelo oferecimento às vítimas de danos, como única solução, o pagamento de uma soma em 279 dinheiro. Não apenas isso, mas coloca-se um preço à lesão a interesses existenciais, autorizando-se a conduta lesiva mediante o seu pagamento611. Por isso que diversas culturas jurídicas vêm experimentando, ainda de forma acanhada, um movimento de despatrimonialização da reparação do dano. Isso se dá, principalmente, pela dificuldade encontrada na quantificação da indenização por dano moral, que também acaba revelando a inevitável insuficiência do valor monetário como meio de pacificação dos conflitos decorrentes de lesões a interesses extrapatrimoniais. Tais meios não necessariamente substituem ou eliminam a compensação em dinheiro, mas se associam a ela no sentido de efetivamente aplacar o prejuízo moral e atenuar a importância pecuniária no contexto da reparação. Também as cortes brasileiras têm se valido com relativa frequência do instrumento da retratação pública, que se mostra extremamente eficaz em seus efeitos de desestímulo à conduta praticada, sem a necessidade de se atribuir à vítima somas pecuniárias punitivas612. Conclui o mesmo autor que as formas não patrimoniais de compensação, longe de atenderem a uma preocupação exclusivamente econômica vinculada ao custo das reparações, satisfazem, na maior parte dos casos, e de forma mais plena, os anseios da vítima. Uma análise isenta da jurisprudência revela que, nos ordenamentos de civil law, o valor das indenizações monetárias por dano moral tem se mantido, em geral, baixo, o que é sentido pela vítima como nova afronta à sua dignidade, corroborada pela postura mercantilista muitas vezes adotada por seus ofensores habituais e seus representantes613. Esse, também, um dos principais reclamos de Marcius Geraldo Porto de Oliveira – e que reflete a opinião contrária de grande parte da doutrina, avessa à ideia de um enriquecimento injustificado –, ao negar a existência de uma sanção punitiva civil, pelo fato de que a indenização vista como punição transforma-se em mais um produto do mercado, na medida em que enriquece alguns da noite para o dia, e muitas vezes pelas mais insignificantes ofensas, desvirtuando a reparação civil. A responsabilidade, assim, SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 187. 612 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 187/188. 613 SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 189. 611 280 acaba se caracterizando como “a revelação do aspecto lúdico humano, num espetacular jogo de marketing”. Só interessa a punição imposta como ordem social quando o seu resultado reverter a toda a coletividade614. Ademais, a reparação pecuniária pode apresentar fator de estímulo extremamente prejudicial à sociedade, na medida em que a vítima, engendrando lucrar com o resultado da lesão, extrapola em seus pedidos. Isso se torna mais aparente quando é ela beneficiária da assistência judiciária gratuita ou pleiteia seus direitos nos Juizados Especiais, em que, por ausência do dever de recolhimento de custas processuais, admitem-se os pedidos de valores estapafúrdios, não condizentes com o tamanho da lesão. Dessa forma, a vítima vai à busca da lesão, procurando locupletar-se de situações em que não existe dano. Por outro lado, o ofensor, com base na média de indenizações aplicada pelo Poder Judiciário, consegue precificar a lesão, sopesando, assim, se vale ou não a pena cometê-la. De fato, essa preocupação deixa uma porta aberta à variedade de formas de compensação que o dano social pode trazer, que não apenas a indenização pecuniária, o que o tornaria muito mais palatável à doutrina mais resistente essa ideia de uma sanção punitiva. Há algumas décadas, Pontes de Miranda já acenava para a possibilidade de restituição em natura para alguns danos imateriais, sob o argumento de que nem o Código Civil nem o Código Comercial dispunham “que a indenização há de ser precipuamente em dinheiro”615. Certamente, a doutrina tem admitido outras formas de compensação não patrimonial616, especialmente em razão das condições econômicas do autor do dano. Roberto Senise Lisboa entende ser possível, na reparação de um dano extrapatrimonial, a 614 OLIVEIRA, Marcius Geraldo Porto de. Dano Moral: proteção jurídica da consciência. São Paulo: Editora de Direito, 1999, p. 56. 615 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo 26, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971, p. 27. 616 Esse também o posicionamento de Carlos Alberto Bittar, que defendia a imposição de obrigações de fazer ou de não fazer ao agente, quando não tivesse bens suficientes a garantir a reparação, por meio, por exemplo, da prestação de serviços, a abstenção de certas condutas, o cerceamento de certos direitos etc., podendo até mesmo valer-se desse expediente em cumulação com o ressarcimento pecuniário. In BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 217. 281 imposição de sanções não pecuniárias, que se mostram extremamente úteis quando o agente causador do dano não possui bens suficientes para proceder à reparação617. Mas não apenas para esse caso específico. A atribuição de compensação não pecuniária deve ser admitida especialmente nessas lesões que atingem a coletividade, que, muitas vezes, tirará maior proveito de uma obrigação de fazer a ser executada pelo lesante do que por eventual quantia depositada em um fundo, a que não se dê qualquer destinação. Manifestamente, essa orientação conforma-se às finalidades da reparação jurídica, que pode ser realizada mediante a reintegração específica ou a satisfação in natura, ou, ainda, “através da imposição de outra obrigação, ou seja, a de indenizar” que, por apresentar o significado de “satisfazer interesses lesados”, admite a imposição de uma sanção tanto pecuniária como não pecuniária618. Paula Cristina Lippi Pereira de Barros mostra que, pelos princípios da justiça restaurativa, é possível a reparação da lesão a interesses difusos, mediante a compensação em espécie ou em prestação de atividades, em favor da vítima ou de entidades públicas, como também por meio de medidas diversas, sem qualquer cunho patrimonial reparatório à vítima, como ministrar palestras em escolas públicas, atender entidades assistenciais etc.619. Pode a vítima, ainda, satisfazer-se com a reinserção social do ofensor, por meio de serviços de reabilitação oferecidos pelo Estado, ou com frequência obrigatória a cursos de educação formal, profissionalizante ou profissional etc. Isso porque, por vezes, a reparação pecuniária não interessa à vítima, mas somente a assunção do ato danoso ou a sua correição. Pode também não ter o ofensor capacidade para arcar com qualquer valor, sendo 617 LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. 4ª edição, São Paulo: Saraiva, 2009, v. 2, p. 253. BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 217. 619 BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP p. 136 e 143/144, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/102013. 618 282 viável a utilização de outros tipos de compensação, que podem até mesmo se mostrar mais proveitosos à sociedade e à própria vítima620. Em importante precedente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região 621, em que se averiguava a degradação ambiental provocada por um empreendedor, que teria recebido autorização de exploração da área por uma fundação responsável pelo controle e preservação do meio ambiente, contrariando, ainda, determinação do IBAMA, quanto à expedição dessa licença, foram tanto o explorador quanto a entidade que emitiu a autorização condenados à compensação em medidas sem cunho pecuniário. Assim, visando à prevenção de danos futuros, foi a fundação condenada à prestação de ação educativa junto à comunidade, especialmente junto às instituições de ensino fundamental e médio da região, “consubstanciada em curso de duração não inferior a uma hora, no qual deverá ser lecionada a importância do meio ambiente sadio e equilibrado, abordando-se, especialmente, as qualidades da área degradada e a necessidade de sua proteção para o benefício de toda a coletividade”. Por sua vez, o empreendedor foi condenado, para a recomposição do custo operacional da Polícia Ambiental, “a doar veículo utilitário, em boas condições de uso, para a fiscalização do IBAMA”. Dessa sorte, além de submeter o lesante aos efeitos do dano produzido, obrigando-o a determinado comportamento como meio de satisfação do interesse lesado, volta-se a reparação à efetivação de serviços voltados para o interesse da sociedade, ao mesmo tempo em que reeduca o infrator. Conscientiza-se, dessa forma, o infrator, trazendo um exemplo para a sociedade, ao mesmo tempo em que satisfaz moralmente as vítimas da lesão622. 4.11 DANO SOCIAL X DANO MORAL COLETIVO 620 BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP p. 136 e 143/144, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/102013. 621 www.trf4.gov.br, Apelação Cível nº 2005.72.07.002128-8/SC, 4ª Turma, Relatora Desembargadora Federal Marga Inge Barth Tessler, Julgado em 21/7/2010, consultado em 28/4/2013. 622 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, pp. 226/228. 283 Por tudo o que foi exposto, permite-se confrontar as figuras do dano social com o dano moral coletivo, para que não se visualize uma sobreposição de conceitos, que são distintos e aplicados em situações diversas. Notadamente, o escopo da indenização por dano moral, de acordo com o que se viu ao longo do trabalho, é a compensação de uma lesão a direito personalíssimo, sem a atribuição de qualquer plus, e independentemente da análise da gravidade da ofensa. Não se busca punir o agente, mas compensar o dano. Ou seja, o foco do dano moral deve ser sempre a compensação do dano, variando o quantum de acordo com a extensão da lesão, pouco interessando a gravidade da ofensa. Isso porque uma conduta de pouca relevância ou uma conduta grave são capazes de produção de um mesmo dano, que deve ser reparado de igual forma. Repõe-se, assim, aquilo que se perdeu, ou compensa-se na proporção daquilo que se entende como justo. Dessa forma, a gravidade da culpa do ofensor ou a vantagem que levou com a prática da lesão não devem importar para a configuração do dano ou para o cálculo da indenização. Da mesma forma, a gravidade da lesão não pode influenciar no an debeatur. Parece, assim, que se estão privilegiando apenas as lesões graves, em detrimento daquelas mais leves, sem se levar em consideração que até mesmo o arranhão mais leve é capaz de produzir dano. Isso sem contar que se confunde gravidade do dano com a gravidade da ofensa, deixando de se reparar uma lesão grave, em razão da ausência de gravidade da conduta. Por conseguinte, a indenização por dano moral coletivo, em razão de sua própria gênese, deve se prestar somente à compensação da lesão. Assim, quando atua para punir o ofensor - como ocorre na maior parte dos casos -, desvirtua o seu objetivo. Admite-se o dano moral coletivo, destarte, apenas quando a sua intenção seja realmente a de compensar o grupo atingido pela lesão, quando verificado o atentado a direito personalíssimo, sem que seja necessária a análise da gravidade da conduta do lesante ou mesmo a gravidade do dano. 284 O dano social, por sua vez, visa diretamente à punição, sendo a compensação uma consequência de sua aplicação. O intuito primordial é punir e dissuadir. Como a extensão desse dano – como também o dano moral coletivo – é imensurável, podendo atingir qualquer tamanho, porquanto envolvida toda a sociedade, a indenização apresentará o tamanho que for necessário para que cumpra a sua função, sem desvirtuar ou ferir a lei. A extensão do dano que será compensado é incalculável, assumindo a indenização o valor que for necessário para que cumpra o dever de punição, desde que devidamente justificada. Discorda-se do posicionamento de Flávio Murilo Tartuce Silva, quando tenta separar a figura do dano moral coletivo do dano social, apontando que este englobaria também as repercussões patrimoniais, enquanto aquele apenas se cingiria ao dano extrapatrimonial 623 . Certamente, tanto o dano social, quanto o dano moral coletivo atingem somente o patrimônio moral da coletividade. Embora se reconheça o dano social quando da ocorrência de um dano patrimonial, estará ele representado pelo rebaixamento do patrimônio moral ou na qualidade de vida da população, atingindo, assim, os direitos personalíssimos dos indivíduos daquela sociedade. Ele é um reflexo, portanto, da lesão aos direitos personalíssimos, constituindo, assim, modalidade de dano extrapatrimonial. Notadamente, não se mistura dano social com reparação patrimonial da lesão cometida, que será devidamente reparada, utilizando-se os critérios ordinários da Responsabilidade Civil para a restituição de um prejuízo material. Ressalta-se, dessa sorte, que o dano social e o dano moral coletivo não se distinguem pela espécie (dano extrapatrimonial), mas pelos fundamentos. O dano moral coletivo, por advir do dano moral, apresenta precipuamente a função de compensar a lesão sofrida por aquela coletividade, devendo, portanto, ter como parâmetro o tamanho e a extensão desse mesmo dano, compensando o que se achar necessário para o alívio da consciência coletiva. Por outro lado, a intenção primordial do dano social é a dissuasão e punição do lesante. A compensação, nesse caso, é reflexa da punição. Mas, também se 623 SILVA, Flávio Murilo Tartuce. Reflexões sobre o dano social. In http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3537, consultado em 20/11/2012. 285 utilizando da extensão do dano – que é incalculável –, o seu limite se baseará no quanto for necessário para que se chegue à medida punitiva-dissuasória-distributiva. Mascarando o seu interesse punitivo, o dano moral coletivo, quando aplicado, acaba levando em consideração não apenas a lesão configurada no caso concreto, mas a sua gravidade, assim como a situação econômica do agente e outras circunstâncias do fato, para que possa ser aplicada a indenização e, muitas vezes, até majorada, ressaltando-se o seu caráter de desestímulo624. Valendo-se de regramento específico do dano moral – já ele próprio equivocado –, é utilizado um instituto que serviria apenas para recomposição do patrimônio subtraído pela lesão como medida punitiva ao ofensor, buscando o dano moral coletivo, na maioria das vezes, fazer as vezes do dano social. Embora ambas as categorias de danos sejam aplicadas com base em um atentado ao patrimônio não econômico da sociedade, os seus pressupostos são completamente diversos, bastando, para o dano moral coletivo, a verificação de um dano a direito personalíssimo e o seu nexo de causalidade com a conduta. Apontou-se, anteriormente, que a doutrina entende ter esse dano de ser avaliado objetivamente. No caso do dano social, verificam-se outros inúmeros requisitos, especialmente quanto à análise da conduta do ofensor e de sua disponibilidade patrimonial. O que se busca, com o dano social, é que o lesante experimente uma verdadeira punição, para que não reitere o ato. Além disso, o dano social é aplicado somente nos casos em que a gravidade da conduta ou o atentado à segurança revelarem-se graves, que demandem uma imposição de uma medida mais séria. Ou seja, diferentemente do dano moral coletivo, o dano social é 624 Carlos Alberto Bittar Filho deixa bem clara essa função do dano moral coletivo, ao determinar que ”Em havendo condenação em dinheiro, deve aplicar-se, indubitavelmente, a técnica do valor de desestímulo, a fim de que se evitem novas violações aos valores coletivos, a exemplo do que se dá em tema de dano moral individual; em outras palavras, o montante da condenação deve ter dupla função: compensatória para a coletividade e punitiva para o ofensor; para tanto, há que se obedecer, na fixação do quantum debeatur, a determinados critérios de razoabilidade elencados pela doutrina (para o dano moral individual, mas perfeitamente aplicáveis ao coletivo), como, v.g., a gravidade da lesão, a situação econômica do agente e as circunstâncias do fato”. In BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus Navigandi , Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/ edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013. 286 instrumento residual da responsabilidade civil, aplicado apenas quando as ordinárias formas de compensação do dano não forem suficientes para afastar a lesão. Assim, por exemplo, um condutor de empresa de transporte que se distrai por poucos segundos, e é atrapalhado por outro veículo – o que poderia ter sido evitado, caso estivesse o condutor atento, configurando uma culpa leve –, e destrói um monumento cultural ou polui um rio utilizado para banho, poderá ser responsabilizado por um dano moral coletivo, pelo simples fato da lesão ao patrimônio ambiental, que afeta toda a sociedade, que ficará privada de usufruir do bem coletivo. Por outro lado, caso verificado que sempre esse condutor dirigia deliberadamente sem prestar a devida atenção, fazendo manobras perigosas, estando ciente a empresa quanto a esse risco, sem nenhuma providência adotar na formação de seus profissionais, poderão ambos responder por um dano social, já que a compensação, possivelmente, não se mostrará suficiente, porquanto necessária uma medida educativa, cuja intenção seja demonstrar que esse tipo de comportamento, grave e que coloca em risco a segurança coletiva, não pode ser tolerado. Ademais, o dano moral coletivo apenas pode ser pleiteado em ações de natureza coletiva, por figuras legitimadas segundo um rol taxativo previsto em lei, ao passo que o dano social não fica limitado às mesmas hipóteses de legitimação, podendo mesmo ser reconhecido em ações individuais. Em que pese o reconhecimento da distinção entre as duas categorias de dano, podendo-se até mesmo admitir a sua coexistência, verifica-se que, quando aplicadas sobre um mesmo interesse social (interesses difusos), não poderão ser cumuladas, para que não ocorra bis in idem, ou seja duas indenizações sobre um mesmo pressuposto ou fato gerador. Como o dano social acaba repondo à sociedade aquilo que dela foi retirado, ainda que o seu intuito maior seja a punição, não se mostra razoável impor-se nova indenização, pelo mesmo fundamento, mas para uma categoria diversa de dano. Quando ambos os institutos forem passíveis de aplicação, o dano social absorverá, portanto, o dano moral coletivo. 287 CONCLUSÃO A atual sociedade de consumo, delineada pela globalização, pelos constantes avanços tecnológicos, malgrado beneficie-se dessa era da tecnologia, é, ao mesmo tempo, alvo de danos de massa625, figura antes não conhecida ou apreendida pelo direito, mas que, atualmente, é objeto de grande preocupação. Como visto, os presentes instrumentos de proteção e prevenção desses novos tipos de danos não têm se mostrado adequados para o controle dessas lesões em cadeia, ou mesmo não foram tais danos profundamente analisados no ordenamento jurídico brasileiro, o que leva à sua ineficiente e deficitária remediação. Quanto a essa realidade não pode ficar alheio o ordenamento jurídico. A responsabilidade civil, que sempre enfrentou os conflitos que lhe demandaram resposta, deve se amoldar à realidade de seu tempo, como sempre o fez, reconhecendo novas categorias de danos, e ampliando as suas funções, ou fazendo valer aquelas que já há muito lhe foram reconhecidas. Certamente, a expressão “o menino é o pai do homem”626, de Machado de Assis, presente em sua clássica obra Memórias Póstumas de Braz Cubas, revela a preocupação com o futuro dos indivíduos, com a criação da pessoa, no sentido de que o menino é pai do homem que ele se tornará; o homem é filho dos sonhos pretéritos e perspectivas do menino que já foi. A ausência de combatividade às condutas ilícitas, que rebaixam a qualidade de vida da sociedade, e colocam em xeque a sua segurança, levam uma forte carga axiológica às pessoas afetadas, que é introjetada por cada membro atingido, e passa, após algum tempo, a ser vista talvez não como normal, mas usual. Essa é a mensagem que será passada ao 625 VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 51/52. 626 Essa expressão dá nome ao título do capítulo 11 da obra. 288 menino e, posteriormente, ao homem, caso não refreadas essas odiosas condutas, que danificam o patrimônio moral coletivo. Decerto, os atentados ao patrimônio social devem se tornar a exceção, e não a regra, como ocorre hodiernamente. Os consumidores de determinados produtos ou serviços sabem que não serão bem atendidos por certos produtores ou fornecedores, e muitas vezes com isso se conformam, já que sabem que não obterão do Poder Judiciário a resposta que precisam. Da mesma forma, os crimes ambientais não punidos dão a outros potenciais poluidores o exemplo de que não há sanção para esse tipo de crime. Também aquele que inadimple com as suas obrigações, e que não sofre qualquer punição, mostra à sociedade que a prática ilícita compensa, incentivando a sua reiteração. Por isso que as funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil mostram-se fundamentais para o reconhecimento de novos instrumentos de proteção contra esses danos de massa, ou melhor, para o reconhecimento de uma nova categoria de dano, que resulta não da doutrina ou da legislação, mas de efusivos movimentos da própria sociedade, em busca de uma resposta efetiva aos atentados contra o seu patrimônio. Ao cabo deste trabalho, repete-se aquilo que foi afirmado em seu começo: não se pretende aqui apresentar uma solução milagrosa para esses problemas. Mas, bem estruturada a figura de uma nova categoria de dano, com a solidificação das bases em que se assenta, definição de hipóteses de aplicação, e apontamento do real intuito de sua utilização, torna-se possível, por meio de seu reconhecimento e emprego no caso concreto, pela experimentação empírica, que se chegue a um ideal alcançável, atingível, não mais distante e intangível. Apenas com o reconhecimento de uma nova categoria de dano será possível aplicar, explicitamente, uma indenização punitiva, com vista à prevenção de danos, da adoção de um padrão de conduta esperado pela sociedade, deixando de se mascarar esse intuito em compensações que acabam não se prestando nem para reparar a vítima, muito menos para dissuadir o ofensor ou potenciais lesantes. 289 Também quanto ao caráter distributivo da indenização, a repartição dos valores ou dos benefícios trazidos pela compensação (por meio de obrigações de fazer) à sociedade torna mais factível a ideia de reparação coletiva, fugindo do aspecto individual, o que não apenas contorna o repúdio ao enriquecimento sem causa tanto combatido pelos Tribunais, quanto traz à reparação aqueles que, por falta de conhecimento, falta de interesse, ou falta de dinheiro, mas também vítimas do mesmo dano, não ingressariam com uma ação individual de reparação. Manifestamente, a aceitação de tal medida trará mais coesão e força a uma sociedade estressada, que perde, cada vez mais, a confiança em seus representantes, sobretudo no Estado, que deveria protegê-la e por ela zelar. Faz-se, da mesma forma, com que a sociedade possa agir em nome próprio, legitimando os seus direitos, sem precisar aguardar a boa intenção dos já assoberbados defensores da coletividade ou das desinteressadas associações na propositura de ações coletivas. E não é de esquecer que ampliar o espectro da resposta civil à ocorrência danosa é, de maneira mais clara, “prestigiar dado axiológico fundamental ao sistema, haurido desde a previsão do art. 3º, I, da Constituição Federal”. Se o objetivo básico da República é a construção de uma sociedade justa e solidária, admite-se que tal só se dê com o estabelecimento de relações que sejam equilibradas. “Sem razoável equilíbrio, nenhuma relação é justa, tampouco solidária”627. Que a sociedade não caminhe para o mesmo rumo de Braz Cubas, que, no ocaso da vida, ponderando os seus fracassos, contentou-se com o fato de não ter deixado filhos, para que não fosse transmitido “o legado de nossa miséria”. Somente com o exemplo das condutas leais – e, consequentemente, a repressão daquelas inidôneas –, da verdadeira solidariedade, será possível que a coletividade prospere, harmonizando-se de forma equilibrada e justa. 627 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 166. 290 BIBLIOGRAFIA AGUIRRE. João Ricardo Brandão. Responsabilidade e Informação – Efeitos jurídicos das informações, conselhos e recomendações entre particulares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ÁLVAREZ, Agustín. Repensando la Incorporación de los Daños Punitivos. Academia Nacional de Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba. 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