FABRÍCIO ANGERAMI POLI
O DANO SOCIAL
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Orientadora: Professora Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO – 2014
FABRÍCIO ANGERAMI POLI
O Dano Social
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Departamento de Direito Civil da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de
Mestre, sob a orientação da Professora
Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos.
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO – 2014
"E aqueles que foram vistos dançando
foram julgados insanos por aqueles que
não podiam escutar a música."
Friedrich Nietzsche
Agradecimentos
A parte mais difícil de um trabalho não é inicia-lo, executá-lo ou concluí-lo, mas
conseguir agradecer todos aqueles que contribuíram com o resultado final. Palavras, na
maioria das vezes, são insuficientes para demonstrar essa gratidão.
Inicialmente, agradeço à minha orientadora, Professora Patrícia Faga Iglecias Lemos,
que acreditou no meu potencial, mesmo sem muito me conhecer, e me conduziu, sempre
com apontamentos inteligentes e perspicazes, a chegar ao final deste trabalho, iluminando
o meu caminho quando, em alguns momentos, ele parecia sombrio. As suas correções e
sugestões guiaram-me no sentido certo, e trouxeram mais lucidez e precisão aos conceitos
aqui trazidos. Foi uma honra ter sido orientado por pessoa tão brilhante.
À minha mãe também não poderia faltar semelhante agradecimento e homenagem. Não
somente pela formação, com base em valores de justiça e ética, que me tornaram o que
hoje sou, mas também por me fazer acreditar que sempre posso ser um vencedor. Orgulhome em dizer que, em razão dos ensinamentos sempre corretos por ela transmitidos, fui
sempre, em todas as situações que enfrentei, um vencedor, não no sentido de ser o
campeão, de estar sempre em primeiro lugar, mas de ter dado o melhor de mim, ainda que
o resultado esperado não tenha sido alcançado. O modelo de retidão de caráter e a
agudeza de espírito que ela apresenta servir-me-ão para o resto da vida.
Agradecimento especial também à minha namorada, Cássia, que conseguiu suportar os
momentos de estresse, além de me ouvir, quando precisei desabafar, distrair-me, quando
precisei relaxar, e me fazer sorrir, quando precisei me alegrar. O companheirismo em
toda essa jornada foi essencial.
Do restante da minha família veio o apoio nas horas fáceis e difíceis, sobre o qual não há
palavras suficientes para agradecer.
E, se os meus pais me deram a vida, a vida me deu novos pais. Muito mais do que colegas,
chefes e, hoje, sócios, os amigos João e Gilberto contribuíram para a minha formação
profissional, educacional, incentivando-me sempre a buscar conhecimento, além de terem
colaborado sobremaneira com a formação do meu caráter. Mais do que um privilégio em
com eles trabalhar, considero-os como parte de minha família, com quem sempre poderei
contar.
Aos demais membros do escritório Marques e Bergstein Advogados Associados: Alan, meu
outro sócio, e Pietro, manifesto enorme gratidão pela prontidão em sempre ajudar, a
debater dúvidas e encontrar uma solução, e, especialmente, fazer com que nada tivesse eu
com que me preocupar durante os períodos de ausência.
Finalmente, a todos os amigos que verdadeiramente me acompanham e me apoiam por
todos esses anos.
Muito obrigado!
Resumo
O atual cenário da sociedade, caracterizada pela vigilância, exploração dos recursos
naturais e consumo desenfreado de bens, que acabam por produzir danos de massa, traz à
Responsabilidade Civil papel de oferecer instrumentos que garantam proteção dessa
mesma coletividade contra esses ilícitos que prejudicam a qualidade de vida geral,
rebaixando o patrimônio social. Assim, desempenhar unicamente o papel de reparação ou
compensação do dano não se mostra mais suficiente à Responsabilidade Civil, que é
demandada a apresentar soluções que coloquem em prática as suas funções punitiva e
preventiva. Nesse contexto, em que o coletivo sobrepõe-se ao individual, e que os danos
ultrapassam as relações interpessoais, os mecanismos de proteção apresentados pelo atual
ordenamento jurídico brasileiro não se mostram mais suficientes para combater os novos
tipos de lesões que atingem a sociedade, mostrando-se necessário o aprofundamento sobre
a questão de danos extrapatrimoniais, em âmbito coletivo, especialmente no que tange ao
seu controle em um cenário em que os representantes da coletividade não conseguem
suprir a demanda de ações que deveriam promover. O enfrentamento de tal questão levou à
proposição do reconhecimento de uma nova modalidade de dano, que vem sendo,
paulatinamente, encarada e debatida pelo Poder Judiciário. Para isso, foi necessário
recorrer-se a apontamentos históricos a respeito da Responsabilidade Civil, seu
desenvolvimento e, especialmente, necessidade de reconhecimento de vários tipos de
danos ao longo dos anos, além de análise conceitual, axiológica e funcional do dano
extrapatrimonial, e o estudo sobre a experiência estrangeira, os resultados obtidos por
outros ordenamentos jurídicos na aplicação de figuras similares a que se propôs fosse
reconhecida neste estudo. Todo esse esforço foi necessário para legitimar o
reconhecimento de um dano social, ou seja, sedimentar as bases de uma nova categoria de
dano, para que seja ela aceita e aplicada na solução de casos que demandam medidas mais
efetivas, que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não foi capaz de apresentar.
Palavras-chave: Dano social. Interesses coletivos e difusos. Punição. Prevenção.
Patrimônio social. Qualidade de vida. Segurança.
Abstract
The present scenario of society characterized by vigilance, exploitation of natural resources
and rampant consumerism end up producing massive damages. That phenomena forces
civil liability to offer tools that guarantee society protection against those illicit acts that
harm general life quality, lowering social standards. Therefore, providing compensation for
damages caused is no longer enough for social liability, which is faced with the challenge
of presenting solutions that take into consideration both punitive and preventive aspects. In
this context, in which society prevails the individual, as well as damages surpass
interpersonal relationships, protection mechanisms provided by the Brazilian judicial
system are no longer sufficient to combat newer kinds of damages, that affect society as a
whole. Hence, it is necessary to deepen the studies on the matter of moral damages on a
social bias, specially its control of a situation in which society representatives can´t cope
with the proposition of law suits that they are expected to. The study of this question led to
proposing a new category of damage, that has been gradually faced and discussed by
Brazilian Courts. In order to achieve that, it was necessary to make use of historic studies
on the development of civil liability and specially the need to recognize several different
kinds of damages throughout the years. That also included a conceptual, axiological and
functional analysis of moral damages, as well as a study on the foreign experiences and the
results they obtained when making use of similar institutes to the one proposed in the core
of this study. All this effort was necessary to legitimize the acknowledgement of social
damage, in order to create the basis for a new damage category, so that it be accepted and
used on the solution of cases that demand more effective measures that the Brazilian legal
system hasn´t been able to present yet.
Key-words: Social damage. Collective and social interests. Punishment. Prevention. Social
patrimony. Life quality. Security.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ________________________________________________________9
CAPÍTULO I - EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL E OS NOVOS
DANOS ______________________________________________________________12
1.1. UMA BREVE ANÁLISE HISTÓRICA SOBRE O SURGIMENTO DA
RESPONSABILIDADE CIVIL E O SEU DESENVOLVIMENTO _______________12
1.2. O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DO RISCO NO BRASIL ____________28
1.3. O APARECIMENTO DO ABUSO DE DIREITO __________________________32
1.4. A ATUAL VISÃO DA RESPONSABILIDADE: SUAS NOVAS
FUNÇÕES ____________________________________________________________40
CAPÍTULO II - A COMPENSAÇÃO DO DANO EXTRAPATRIMONIAL E AS
SUAS FUNÇÕES ______________________________________________________50
2.1. O DANO EXTRAPATRIMONIAL _____________________________________50
2.2. DANO EXTRAPATRIMONIAL E A SUA EVOLUÇÃO: A SUA ADEQUADA
CONCEITUAÇÃO _____________________________________________________51
2.3.
AS
FUNÇÕES
PUNITIVA
E
PREVENTIVA
DO
DANO
EXTRAPATRIMONIAL: É POSSÍVEL QUE ELE EXERÇA ESSAS FUNÇÕES? __65
2.4. O DANO MORAL COLETIVO: UMA TENTATIVA DE INDENIZAÇÃO
PUNITIVA____________________________________________________________77
CAPÍTULO III – A EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA NA PUNIÇÃO E NA
PREVENÇÃO DA PRÁTICA DO ILÍCITO _______________________________88
3.1. OS PUNITIVE DAMAGES ____________________________________________88
3.2. OS SOCIETAL DAMAGES ___________________________________________121
3.3. AS FAUTES LUCRATIVES __________________________________________123
CAPÍTULO IV – O DANO SOCIAL _____________________________________127
4.1. O CONCEITO DE ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO _______________128
4.2. POR UMA BREVE ANÁLISE FILOSÓFICA E SOCIOLÓGICA DA
QUESTÃO ___________________________________________________________133
4.3. INDENIZAÇÃO PUNITIVA NO BRASIL: DA REJEIÇÃO À APARENTE
ACEITAÇÃO ________________________________________________________149
4.4. O FENÔMENO DO DANO SOCIAL __________________________________161
4.5. O DANO SOCIAL COMO FONTE AUTÔNOMA DE INDENIZAÇÃO: A SUA
CONCEITUAÇÃO, NECESSIDADE DE AMPLIAÇÃO E PRESSUPOSTOS _____171
4.5.1. dano social e abuso de direito _______________________________________213
4.5.2. critérios balizadores para a verificação do dano social e apuração do quantum
indenizatório _________________________________________________________218
4.6. ALGUMAS SITUAÇÕES EM QUE PODE SER VERIFICADA A
OCORRÊNCIA DE UM DANO SOCIAL __________________________________232
4.6.1. dano social no ambiente ____________________________________________235
4.6.2. dano social no consumo ____________________________________________247
4.6.3. dano social e a nova visão da intimidade _______________________________258
4.7. A DECISÃO QUE RECONHECE O DANO SOCIAL _____________________264
4.8. LEGITIMAÇÃO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO: O PROBLEMA DA
ATOMIZAÇÃO PROCESSUAL _________________________________________267
4.9. A DESTINAÇÃO DA INDENIZAÇÃO ________________________________273
4.10. O PROBLEMA DA REPARAÇÃO PECUNIÁRIA ______________________279
4.11. DANO SOCIAL X DANO MORAL COLETIVO ________________________283
CONCLUSÃO _______________________________________________________288
BIBLIOGRAFIA _____________________________________________________291
INTRODUÇÃO
O Direito vem testemunhando inúmeras e intensas transformações ao longo do
último século, que podem ser atribuídas a também constante mudança da configuração da
sociedade, em que, cada vez mais, engrandece-se a pessoa e, consequentemente, a sua
dignidade, ao patamar mais elevado de proteção, que antes era reservado mais à
propriedade e à posse.
Assim, noções como a impossibilidade de alteração do contrato (pacta sunt
servanda) ou a proteção absoluta da propriedade são gradativamente substituídas por uma
exigência de adoção de conduta leal, em respeito ao valor da confiança, assim como à
necessidade de assunção de um papel social do bem ou do negócio jurídico.
Da mesma forma, a culpa, antes essencial para a configuração de um dever de
reparação de dano, cede lugar a uma visão objetiva da responsabilidade civil, baseada
numa teoria em que o risco da atividade é preponderante para determinar a obrigação de
indenizar.
Essa análise objetiva da responsabilidade civil e do próprio dano distancia, mais e
mais, os antigos sentimentos de vingança observados nos primórdios da civilização – base
de um dever de indenizar –, trazendo ao direito, principalmente pela atuação da
jurisprudência, quase que uma fórmula de um direito de danos: sabe-se qual conduta gera
responsabilidade de indenizar e qual será o valor dessa reparação, cabendo ao julgador, em
grande parte das vezes, fazer quase que uma aplicação aritmética para chegar a um produto
final (fatos + lei = sentença).
No entanto, com o avanço tecnológico da sociedade, com a produção em massa e o
consequente incremento dos meios de fiscalização quanto aos danos gerados por atividades
de risco, ou por condutas egocêntricas que procuram diretamente a produção de um dano, o
Direito, em um movimento pendular, volta-se novamente aos primórdios da civilização, lá
buscando socorro, tomando emprestadas antigas noções de pena privada ou sanção civil,
associadas a um sentimento não mais tão relacionado a uma vingança, mas a uma resposta
9
exigida pela sociedade, tentando se aproximar de um conceito de justiça como solução à
intolerância da camada social em relação a essas práticas danosas.
De um lado, ainda é presente o dano como concebido, atrelado a uma lesão material
ou a um prejuízo não econômico. De outro, surgem situações relacionadas a microlesões,
em que não se permite visualizar um prejuízo individual, ou a ilícitos lucrativos, pelos
quais a simples reparação ainda trará inequívoco lucro ao ofensor, ou mesmo lesões de
gravidade exacerbada, que aviltam o patrimônio coletivo e o senso comum de justiça, sem
resposta adequada no ordenamento jurídico.
Os instrumentos conhecidos pelo Direito, assim, tornam-se insuficientes à
retificação dessas situações, erigindo-se novas categorias de danos, agora coletivos ou
difusos, marcados por uma clara intenção não somente de reparar, mas de punir e
dissuadir.
Esse movimento, que sai da reparação de um dano – sem com ela se descuidar – em
direção a uma punição é retomado, inicialmente, na Inglaterra e nos Estados Unidos da
América1, não sem sofrer candente crítica.
Passadas diversas décadas da retomada da aplicação de uma pena civil, percebe-se
o seu assentamento e maior aceitação em uma grande variedade de casos, com
indenizações controladas e limitadas.
Assim que diversos outros ordenamentos jurídicos, vítimas dos mesmos problemas,
passam a adotar uma noção voltada à prevenção de condutas lesivas. A responsabilidade
civil que, inicialmente, repousava seus cuidados somente na compensação de um dano,
passa a se preocupar com a sua prevenção.
Surgem, nessa esteira, dúvidas a respeito de quais mecanismos podem se valer os
aplicadores do direito para efetivar as funções preventiva e punitiva da responsabilidade
civil. Pode o dano moral servir a essa finalidade? É possível visualizar um caráter punitivo
1
A figura dos punitive damages traz à tona, novamente, a ideia de aplicação de uma sanção civil, como será
verificado neste estudo, no capítulo III
10
ou preventivo ao dano moral? As soluções atuais, encontradas pela jurisprudência, de
aplicação de uma sanção punitiva são adequadas?
Para chegar a essas respostas, pretende-se mostrar, inicialmente, a evolução da
responsabilidade civil, mediante o aparente abandono da culpa, centrando-se na ideia de
prejuízo e sua necessária reparação, com a sua posterior e necessária retomada, pela análise
da ética das relações e da conduta das partes.
Ao final, pretende-se apresentar uma solução para a questão, talvez não definitiva e,
muito menos, milagrosa, já que a sedimentação de uma nova teoria depende dos ajustes
que somente o empirismo pode conferir. Com a utilização de novos critérios – nem tão
novos, porquanto já utilizados, mas de forma indevida –, a busca pela apresentação de uma
solução, com o reconhecimento de uma nova categoria de dano, encontrará em sua
aplicação o melhor termômetro para a sua eficácia, devendo haver mais audácia e menos
conservadorismo da doutrina e dos Tribunais na busca de instrumentos de proteção tão
ressentidos pela coletividade.
11
CAPÍTULO I
EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL E OS NOVOS DANOS
1.1 UMA BREVE ANÁLISE HISTÓRICA SOBRE O SURGIMENTO
DA RESPONSABILIDADE CIVIL E O SEU DESENVOLVIMENTO
Nos primórdios da civilização, os danos causados aos particulares não eram objeto
de preocupação nem nos costumes arraigados entre a população, tampouco eram tratados
pela legislação existente. A liberdade dos indivíduos encontrava seus limites na força
exercida por seus semelhantes. Assim, aquele que era lesionado tratava de se vingar do
lesante, combatendo a força com a força, o mal com o mal, sendo este, então, o mecanismo
de reparação dos danos sofridos pelos primitivos2, selvagem talvez, mas humano, de
reação espontânea e natural contra o mal sofrido3. O ofensor, dessa forma, ficava exposto à
vingança do ofendido ou de seu clã, reconhecida tal prática como lícita, sem sofrer
qualquer limitação4. Essa vingança, portanto, não era feita à revelia ou mediante a
desaprovação das autoridades sociais ou religiosas; antes, contava com a sua anuência5.
Aos poucos, a justiça feita pelas próprias mãos (autotutela) foi cedendo lugar à
preocupação, pelo ordenamento jurídico, na regulamentação dessas hipóteses de danos ao
âmbito privado do indivíduo.
Dessa forma, o talião se converteu em regra com o Código de Hamurabi, advindo
da Mesopotâmia do início do segundo milênio, compreendido antes do nascimento de
Cristo. A vingança, que antes ficava a cargo daquele que sofreu o dano, nas hipóteses e da
forma como a quisesse empreender, passou, por meio da lei escrita, a ser reduzida a
específicos casos passíveis de compensação. Esse mesmo Código dispôs também sobre a
2
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil
Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 36.
3
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume I, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.
23.
4
FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p. 99.
5
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey,
2005, p. 45.
12
forma como a compensação devia ser feita, retirando, assim, o julgamento do âmbito
particular. A vítima, a partir de então, teve o seu direito de vingança previsto em lei.
Contudo, com o desenvolvimento e complexidade que as relações sociais tomaram,
o orgulho imperativo do homem começou a ser suavizado da mesma forma que o seu
sentido brutal de honra6. Assim, em vez de vingar-se pelo dano sofrido, a vítima começou
a achar mais interessante cobrar do lesante uma compensação sobre o seu patrimônio.
Com efeito, foi por meio do Código de Manu que a noção de compensação não
violenta dos danos primeiro se assentou. A ideia de compensação pelo pagamento de uma
multa ou uma indenização deixava evidente que o dano sofrido poderia ser resolvido sem
uma nova agressão.
Mas também desde a época das Leis das XII Tábuas, a vítima de um delito privado
tinha liberdade, em algumas das vezes, para se satisfazer mediante a vingança corporal ou
pela obtenção de uma soma em dinheiro, cujo valor era fixado livremente7. Em outras
situações, a vítima era obrigada a aceitar o pagamento de uma quantia previamente fixada
na Lei. O costume de optar por aceitar a indenização em dinheiro levou ao ofendido o
direito de escolher a aceitação da quantia ou a socorrer-se da vingança. Desse modo, pouco
a pouco se foi entendendo que do dano nascia, em princípio, sempre uma obrigação de
reparar, isto é, a obrigação de se cumprir com a disposição legal da composição,
recorrendo-se ao talião somente caso não adimplida a dívida fixada8. Esse foi o início da
reação contra a vingança privada, que é assim abolida e substituída pela composição
obrigatória9.
Embora não se conhecesse o termo “responsabilidade civil” àquela época, percebese que a sua noção já existia no direito romano. Não foi a responsabilidade traçada como
6
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil
Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 36.
7
Uma das passagens das Leis das XII Tábuas assim mencionava: “Tábua VIII, 2: Mutilado um membro, se
não há transação, impõe-se ao autor a pena do talião”. In FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad
Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p. 100.
8
FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p.
100.
9
LIMA, Alvino. Culpa e Risco. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 21.
13
um instituto jurídico, como um princípio geral fundado na culpa; ao contrário, ela era
puramente casuística, fundamentada na busca de um “justo equilíbrio”10.
Pelo esforço dos legisladores romanos – e em razão do aparecimento de novos tipos
de delitos e, consequentemente, novas formas de danos – por meio da criação da Lex
aquilia de damno, aprovada no final do século III a.C., foi introduzida a ideia de
causalidade do agente, pela concepção de que todo autor de um ato ilícito estaria obrigado
a compensar o dano que causou. E foi na Lei Aquília que se esboçou, afinal, um princípio
geral regulador da reparação do dano11. Partiu-se, destarte, de uma situação que, muitas
vezes, levava mais à impunidade do autor do que à reparação da vítima - na medida em que
esta deveria fazer a prova da lesão -, para uma realidade totalmente diferente, na qual o
imperium detinha a autoridade para exigir a prova e impor uma penalização: “O Estado
assume assim ele só, a função de punir”12. Dessa maneira, surge a ação de indenização e a
responsabilidade civil passa a tomar lugar ao lado da responsabilidade penal.
O problema que se encontrava na Lex Aquilia era o reduzido número de hipóteses
de danos reparáveis por ela previstas. Coube, então, ao pretor e aos jurisconsultos ampliar
a noção de damnum: “qualquer atentado material contra uma coisa ou uma pessoa se
encontra reprimido”13.
E, pelos mesmos jurisconsultos, foi substituída a noção de damnum pela de
perjuicio: não importa a constatação de um atentado material contra uma determinada
coisa, mas sim o prejuízo sofrido em razão dessa conduta. Ficou decidido, dessa sorte, que
o simples damnum que não causava perjuicio não daria lugar à reparação. No entanto, esse
sistema não irradiou seus efeitos a todas as situações de prejuízos, em virtude das limitadas
hipóteses de danos apresentadas pelo texto legal.
10
SEGUÍ, Adela M. Aspectos Relevantes de la Responsabilidad Civil Moderna. In: MARQUES, Claudia
Lima (coord.). Revista de Direito do Consumidor nº 52, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 269.
11
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume I, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.
25.
12
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 2ª edição, São Paulo:
Saraiva, vol. IV, p. 7.
13
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil
Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 36.
13
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey,
2005, p. 40.
14
Constatado o prejuízo, nas hipóteses previstas em lei, dava-se ao ofendido o direito
de ação contra o ofensor. O que se verificava, porém, era a ausência de necessidade de
constatação da culpa do lesante; antes se procurava a reparação do prejuízo à constatação
da reprovabilidade da conduta pela culpa.
Em que pese o afastamento da responsabilidade civil ou penal romana da ideia da
culpa, reconheceu-se desde cedo que não era crível a vingança contra certas pessoas
ausentes da razão, como as crianças e os loucos, os quais não teriam uma noção exata do
bom e do mau.
Ato contínuo, ao final do período da República, sob a influência dos ideais gregos,
os jurisconsultos firmaram a concepção da culpa aquiliana. Enquanto a ação de dolo
supunha necessariamente uma culpa caracterizada para ser exercida, a culpa propriamente
dita passava ao primeiro plano, assumindo mais importância, talvez, que o próprio dano
absorvido pela vítima: “o que se pune é a culpa, muito mais do que a ação causadora do
prejuízo”14.
Há grande discussão doutrinária sobre a implementação da culpa na lei Aquília.
Enquanto alguns incluem a culpa como indispensável, sem a qual não estaria caracterizado
o delito, outros entendem ter sido esse elemento introduzido pouco a pouco, por força de
interpretação e à vista das necessidades sociais.15
Com efeito, a introdução do elemento subjetivo da culpa serviu para estabelecer a
diferenciação entre a responsabilidade civil da penal. O domínio da ação penal, para os
casos de delito privado, passou a diminuir, com a admissão, cada vez mais crescente, de
obrigações delituais, e com a criação de uma ação mista ou simplesmente reipersecutória.
Dessa forma, a função da pena passou a ter o fim de indenizar nas ações reipersecutórias,
malgrado o seu modo de cálculo ainda se inspirasse na função primitiva de vingança.
14
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey,
2005, p. 43.
15
Alvino Lima cita como exemplos dos adeptos da indispensabilidade da culpa como elemento
caracterizador do delito os autores Girard, Gaston May, E. Cuq, Pirson et Vilé, Contardo Ferrini, Ihering e
Leonardo Colombo. Por sua vez, o grupo defensor da ideia de que a culpa não seria elemento constitutivo do
delito da lei Aquília é constituído por Emilio Betti, Mario Cozzi, Leon e Henri Mazeaud e Frederico Pezella.
In LIMA, Alvino. Culpa e Risco. 2ª, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 23.
15
Durante toda a Idade Média, a influência do direito canônico reforçou o tom de
infração moral atribuído à culpa. O dano vinha mitigado em favor da ideia de infração,
muito semelhante ao que ocorre na responsabilidade criminal: o dano não é cometido por
um indivíduo contra outro; o dano é visto como uma ofensa contra a sociedade, contra o
Estado. Essa culpa ligada à infração moral chegou ao início da Modernidade sob a
influência da ideia de pecado, como violação de uma ordem superior16.
Essa noção de culpa ganhou contornos especialmente nos países que sofreram
influência direta da cultura cristã. Nesses países, a culpa passou a ser determinável não
mais por um querer contra a lei, mas por um querer contra o bom caminho, determinado
pelos costumes dessa sociedade cristã. Dessa sorte, “a culpa não é uma conseqüência
prática do ilícito: a culpa é, agora, pela primeira vez, o fundamento da prática do
ilícito...”17.
Para Jean Domat, a culpa mostrava-se elemento indispensável à configuração do
dever de indenizar, podendo-se até mesmo afirmar que não havia responsabilidade sem
culpa18. Apoiado na escola de direito natural, Domat afirmava que os atos ilícitos não eram
somente aqueles proibidos pela lei, mas também aqueles que afetavam a equidade, a
honestidade ou os bons costumes, pautados na culpa de quem os cometiam19. Dessa
maneira, aquele cuja conduta era irreprovável não poderia ser condenado a reparar o dano
que tivesse causado; a vítima que arcaria com o azar que a acometeu e nada justificaria a
inversão dessa situação20.
Os irmãos Mazeaud e André Tunc, em seu Tratado de Responsabilidade Civil,
identificam uma passagem de Tarrible, em que era reconhecida a culpa pela negligência ou
imprudência do agente causador do dano. Para essas hipóteses, bastava uma culpa qualquer
16
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 14.
17
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey,
2005, p. 59.
18
VINEY, Geneviève. Traité de Droit Civil: Introducion à la Responsabilité. Paris: Librairie Générale de
Droit et de Jurisprudence, 1995, pp. 11/12.
19
FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p.
124.
20
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil
Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 60
16
para a caracterização do dever de reparação, sendo desnecessária a vontade de cometer
aquele dano (culpa delitual) ou de ter agido com alguma malícia21.
A culpa passou a ser, então, a base da responsabilidade civil concebida pelos
juristas da Modernidade. Os ideais da liberdade e individualidade, tão arraigados na
sociedade do século XVIII22, impuseram a construção de um sistema fundado justamente
na má utilização dessa liberdade individual. As noções de responsabilidade e liberdade
passaram a ser encaradas como intimamente vinculadas, servindo uma como fundamento
da outra. E, para o controle dessa liberdade, não mais se mostravam suficientes os
mecanismos de responsabilidade coletiva e vingança familiar da era medieval. Tampouco o
sistema de responsabilidade delitual, que era delimitado às hipóteses típicas de delitos e
penas, em grande parte das vezes de natureza corporal, mostrava-se adequado à
responsabilização do transgressor. Daí porque necessária a concepção de um sistema de
responsabilidade puramente civil, desvinculado das formas de punição da tradição
medieval e não mais fundado na violação de normas penais expressas, senão no exercício
ilegítimo da liberdade individual, este identificado com a noção de culpa.23
Como adverte Giselda Maria F. Novaes Hironaka, são dois filósofos do direito do
século XVIII – Hugo Grotius e Jean Domat – que trazem inovações à concepção da
responsabilidade civil. Embora sob a influência da culpa cristã, não apresentam eles uma
concepção de responsabilidade civil fundada na culpa. A culpa, então, embora fosse um
fato real, não era, por si apenas, motivo suficiente para a imputabilidade do dever de
indenizar24.
21
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André, Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil..., p.
61.
22
Esse movimento liberal, político e social é mais sentido na França, a partir do reconhecimento, pela
Revolução Francesa, da exacerbada interferência que o Estado exercia sobre as relações civis. Como refere
Claudio Luiz Bueno de Godoy, o Code atendeu a reclamo de afirmação dos direitos de primeira geração, dos
direitos subjetivos, em razão da necessidade e mesmo exigência de nítida separação e segurança “de uma
esfera privada de atuação jurídica, de uma liberdade jurídica que, posto formal, a todos se reconhecia”. In
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 9.
23
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 12/13.
24
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey,
2005, pp. 60/61.
17
Nas lições de Geneviève Viney, embora a culpa não fosse mais elemento único do
dever de indenizar, continuou sendo um dos elementos à caracterização da
responsabilidade. Ocorre que a culpa, a partir de então, seria indenizável quando
acarretasse um dano, advindo, assim, o dever de reparação. Mesmo reconhecida a culpa
como elemento constituinte do processo de identificação da causalidade, não era ela
relevante para a determinação da imputabilidade, que se verificava a partir da existência
real do dano e não da existência pura e simples de uma culpa25.
Foi com base principalmente nas lições de Jean Domat26 e Pothier que o Código
Civil francês espraiou a ideia de uma responsabilidade civil fundamentada na culpa, por
meio da inserção do artigo 1382, que determinou a responsabilidade por danos causados a
terceiros em razão de um agir culposo intencional (culpa delitual)27, e, sequentemente, um
segundo artigo (art. 1383), em que sucedeu o mesmo com a culpa quasedelitual,
caracterizada pela negligência ou imprudência28. De um modo ou de outro, a culpa, no
Code Napoleón, é ainda elemento indispensável à verificação do dever de reparação.
Da mesma forma que se exigia a culpa para os eventos danosos não advindos de
uma relação contratual, para as relações contratuais também esse elemento era necessário.
Para os irmãos Mazeaud e Tunc, todo inadimplemento da obrigação era necessariamente
culposo: o artigo 1.147 do Código Civil francês libera o devedor, ainda que tenha
25
VINEY, Geneviève. Responsabilité. Archives de Philosophie Du Droit nº 35, Paris: Sirey, 1990, p. 281.
É curioso observar que o termo “responsabilité” não era utilizado por Jean Domat, embora já bastante
presente a ideia de uma responsabilidade civil. Com efeito, a primeira menção contemporânea ao termo
ocorre em 1788, mas é apenas reconhecida oficialmente em 1798, pela Academia Francesa, quando
publicada a quinta edição do dictionnaire de l'académie française. Mesmo diante do reconhecimento da
expressão, o Código Civil Francês, promulgado em 1804, não utilizou-a em seu texto. Mencionava-se apenas
a palavra responsable, sem a força da expressão “responsabilidade civil”, esta sim a designar um instituto
jurídico e não uma mera característica do agente. Esse termo “responsável”, mencionado no Código de
Napoleão, deriva etimologicamente do latim “respondere”, que remete a “sponsio”, uma instituição do
direito romano arcaico. “Sponsor” era o devedor, reconhecido como tal no procedimento exigido para a
estipulação. Em uma primeira fase, ao responder afirmativamente à indagação do estipulante, futuro credor, o
“sponsor” assumia a obrigação. Ato contínuo, uma terceira pessoa se comprometia a honrar a dívida
principal, recebendo o título de “responsor”. A expressão “respondere”, portanto, traz consigo a idéia de
afiançar, de garantir o curso dos acontecimentos que estão por vir.
27
Jean Domat afirmava que a palavra ato, prevista no artigo 1382 do Código Civil francês, era uma
abreviação para ato ilícito, a qual se opunha à culpa por imprudência. Nessa esteira, os irmão Mazeud citam
que se o artigo 1383 do Code Napoleón traz a figura de uma culpa fundada na imprudência ou negligência,
uma culpa não intencional, resulta evidente que o “ato” referido no artigo 1382 corresponde a outra categoria
de culpa, a saber, a culpa intencional. MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático
de la Responsabilidade Civil Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América,
1957, v. 1, t. I, p. 63.
28
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume I, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.
28.
26
18
descumprido a obrigação, sempre que justifique que esse inadimplemento provém de uma
causa alheia, que não lhe pode ser imputada. Nesse caso, não há descumprimento da
obrigação em sentido estrito, não tendo o devedor incorrido em culpa29.
Em contrapartida, o artigo mantém a responsabilidade do devedor quando não
consegue provar esse fato alheio que culminou no descumprimento da obrigação, porque é
de presumir o inadimplemento da obrigação em sentido estrito, em razão de uma culpa.
E, com efeito, a apreciação dessa culpa, tanto em matéria delitual ou quasedelitual,
quanto para a matéria contratual, era feita in abstracto. Essa ideia da culpa, que era tanto
para a responsabilidade civil quanto para a responsabilidade penal analisada in abstracto,
logo deixava claro, aos aplicadores do direito, a insuficiência desse modo apriorístico de
apuração, especialmente na área penal. Assim, passou-se a verificar uma modificação
estrutural da responsabilidade penal, enquanto a responsabilidade civil continuou a se
caracterizar pelos mesmos requisitos inicialmente delineados, com base em uma culpa
analisada em abstrato.
Essa iniciativa parte da escola neoclássica, ante a dificuldade de punir aquele a
quem a consciência não reprova. A atenuação da responsabilidade em face dos loucos já
não se mostrava mais suficiente. Encarava-se, então, a realidade de que era preciso
individualizar a pena dos agentes delituosos, por meio da substituição da apreciação em
abstrato da culpa pela apuração em concreto, puramente subjetiva.
De fato, essas considerações de ordem moral iluminaram o legislador, que passou, a
partir de 1824, a permitir ao juiz a gradação da pena pela admissão de algumas
circunstâncias atenuantes. Com a promulgação da lei penal de 28 de abril de 1832, erigiuse a regra de que “Ao conceder-lo o benefício das circunstâncias atenuantes, o juiz trata de
proporcionar o castigo com a culpa moral, na medida da justiça”30.
29
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André , Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil..., pp.
72/74.
30
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André , Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil..., p.
81.
19
Com o advento dessa regra, assentou-se o posicionamento da escola neoclássica, e a
culpa penal e a culpa civil passaram, por conseguinte, a apresentar noções distintas: a
primeira fundava-se ainda no caráter abstrato de apreciação, ao passo que a segunda exigia
a apuração de maneira subjetiva e em concreto, a partir da análise casuística.
A essa altura, a responsabilidade civil já estava alijada da ideia de pena. Muitos
tentaram desmontar a culpa civil, para adequá-la à nova visão com que a culpa penal era
encarada, mas sem sucesso, já que a responsabilidade civil não mais se vinculava à pena,
porém à indenização.
É dessa noção de culpa que derivou a responsabilidade subjetiva, em que o critério
de imputação da obrigação de indenizar se assenta na ocorrência de um ilícito advindo de
um erro de conduta do lesante. Como adverte Claudio Luiz Bueno de Godoy, esse foi o
modelo jurídico levado a todas as codificações da família romano-germânica do direito do
século XIX31.
No entanto, a partir de 1880, verificou-se um fenômeno de igual natureza a ambos
os institutos. Tornou-se insuficiente a necessidade de uma culpa moral para a
responsabilização do agente, em virtude da também necessidade de perquirição do estado
espiritual do acusado. Essa aferição da culpa impunha tarefa extremamente árdua, a exigir
do magistrado uma capacidade quase que divina de previsivibilidade do dano e análise
psicológica do transgressor32. Além disso, em razão das condições do acusado, atenuava-se
ou mesmo suprimia-se a sua responsabilização. Via-se, então, que essa concepção acabava
expondo a sociedade a um perigo mais grave: a multiplicação das infrações.
Por essa concepção, a escola positivista italiana insurgiu-se contra essa
individualização da pena, afirmando que a finalidade desta não consiste no castigo pelo ato
cometido, senão na defesa da sociedade, pela intimidação daqueles que pretendem imitar o
delinqüente. Dessa forma, passou-se a defender que não se tratava mais de dosificar a pena
segundo a responsabilidade moral do agente, mas segundo a gravidade do ato cometido: o
31
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 10.
32
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 17.
20
juiz não devia perguntar se o agente merecia aquela sanção; devia indagar se era útil à
sociedade aplicá-la.
Embora essa nova concepção não tenha sido acolhida na França, muito em razão do
individualismo que estava impregnado na sociedade daquele tempo, teve o condão de
mostrar o perigo para a sociedade na utilização dessa noção de culpa penal apreciada em
concreto, assim como recordar o juiz de não se olvidar do caráter social de seu trabalho.
Malgrado não tenha sido aplicada na responsabilidade penal, essa teoria italiana
buscou lograr êxito na esfera civil da responsabilidade. Se a responsabilidade civil não
mais guardava relação com a ideia de castigo, por que seria mantida a noção de culpa? É
esse o berço, portanto, da teoria do risco, que busca dissociar, em algumas situações, a
responsabilidade civil da ideia de culpa.
A tentativa de ruptura do modelo tradicional da responsabilidade civil coincidiu
com a fase do advento do maquinismo33 e a dificuldade de prova da culpa nos acidentes de
trabalho. Com efeito, as vítimas dos acidentes de trabalho que, em princípio, deveriam
comprovar a culpa do empregador, esbarravam sempre na impossibilidade de obter
reparação, já que o acidente guardava relação, geralmente, ao próprio funcionamento das
máquinas, fora, então, da esfera de culpa do patrão.
Essa dificuldade facilitou a busca por saídas que abrandassem o rigor lógico do
mecanismo de responsabilização. Inicialmente, buscaram-se meios oblíquos para atingir
esse resultado: foi dada uma interpretação extensiva ao artigo 1.386 do Código Civil
francês, que dispõe sobre a responsabilidade do proprietário de um edifício que desmorona,
33
Cláudio Luiz Bueno de Godoy ensina que, a partir da Revolução Industrial, com a consequente
massificação e universalização das relações entre as pessoas, ocorre um declínio das relações essencialmente
individualizadas, que cedem lugar às relações de massa, envolvendo um público indistinto de consumidores
de produtos e serviços. A produção industrializada e o desenvolvimento das atividades de indústria e de risco
fizeram proliferar a poterncialidade da ocorrência de acidentes, daquilo que ele denomina danos anônimos,
em que dificilmente se conseguia identificar um culpado. Cita, ainda, que na Europa era comum falar na
“civilização dos acidentes” ou na “era dos acidentes”, a ensejar o que se passou a chamar de “massificação
dos danos”. Houve uma alteração na configuração do evento danoso, a partir das relações trabalhistas,
produção industrializada, manuseio de insumos perigosos, circulação de veículos, o que determinou o
surgimento de múltiplos e multifacetários acidentes, que traziam à vítima uma especial dificuldade de provar
o nexo com a conduta culposa de algum específico lesante. GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
Responsabilidade Civil pelo Risco da Atividade : Uma Cláusula Geral no Código Civil de 2002 : Coleção
professor Agostinho Alvim : Coordenação Renan Lotufo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 13.
21
quando esse acidente é afeito a um vício de construção. Era preciso assimilar essa situação
à do proprietário da máquina que, por seu defeito, causava danos aos obreiros. Não era
mais necessário, dessa forma, estabelecer a culpa do patrão, mas o vício apresentado pela
máquina.
Em vista dessa dificuldade de comprovação do vício da máquina, procurou-se
assegurar aos obreiros uma proteção mais eficaz: transmudou-se o problema da área da
responsabilidade delitual para a área da responsabilidade contratual. Foram Sauzet e
Sainctelette que se esforçaram para demonstrar que o empregador estaria obrigado a
reparar o obreiro, por decorrência do contrato de trabalho firmado, que lhe garantiria
segurança: se o empregado se lesiona, o patrão faltou com a sua obrigação. Ficava o
empregador responsável, ao menos que demonstrasse que o acidente possuía uma causa
alheia. Era a inversão, portanto, do ônus da prova34.
Malgrado esse esforço da doutrina, a jurisprudência francesa jamais admitiu que o
empregador, em função do contrato firmado com o empregado, comprometera-se à higidez
deste.
Todavia, esse movimento passou a ganhar força com a doutrina de Saleilles35, para
quem a própria noção de culpa deveria ser alargada, sob a justificativa de que o Código
Civil teria empregado a expressão em dois sentidos, um dos quais se confundia com nexo
causal. Propunha ele que o princípio da imputabilidade fosse substituído por um princípio
de simples causalidade, livre da necessidade de se aferir o comportamento do causador do
dano36. Pretendia, pois, que aquele que criasse o risco deveria responder por suas
consequências. A culpa, assim, recairia automaticamente àquele que criou o risco, devendo
ela ser analisada a respeito da conduta do indivíduo que levou o ato a cabo 37. O passo foi
importante, mas acabou por conservar a culpa como fundamento da responsabilidade civil.
34
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil
Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I, p. 94/96.
35
SALEILLES, Raymond. Les Accidents de travail et la responsabilité civile essai d'une théorie objective de
la responsabilité délictuelle. Paris: Ed. A. Rousseau, 1897.
36
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 19.
37
FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, pp.
147/148.
22
Foi Josserand quem, no mesmo ano da publicação da tese de Saleilles, efetivamente
rompeu com o tratamento tradicional que a matéria recebia, reclamando pela efetiva
substituição da culpa na teoria da responsabilidade, nos casos daquele que possuía uma
coisa em sua custódia (responsabilidade pelas coisas inanimadas). A partir de interpretação
realizada no artigo 1384 do Código Civil francês, entendeu o autor que, no momento em
que ocorresse um dano, o guardião seria responsável pela reparação, quer tivesse obrado
com culpa, quer não38. Essa foi a consagração de um ponto de vista objetivo, livre de toda
consideração subjetiva. Essa teoria de Josserand, inclusive, foi apoiada e incentivada por
Salleiles, que contribuiu com a sua elaboração. Porém, quase que no dia seguinte à
publicação da obra de ambos os autores, cujo precípuo era acudir as vítimas de acidentes
de trabalho, o legislador interveio a favor dos obreiros, trazendo para eles algumas regras
de exceção, por meio de legislação promulgada em 9 de abril de 1898.
No entanto, os partidários da teoria do risco não se contentaram com as disposições
excepcionais daquela referida lei, adotando cada vez mais adeptos da mudança de
paradigma da teoria da responsabilidade civil. Entrementes, ainda eram muitos os
adversários da teoria do risco, como adverte Jorge Peirano Facio, dentre eles Planiol, para
quem as conseqüências de sua aplicação pareciam monstruosas, porquanto destruída a
justiça, quando não apreciada a culpa. Dessa forma, a teoria do risco sofreu uma derrocada,
perdendo terreno novamente para a teoria da culpa39.
Diante dessa crise da responsabilidade civil, o legislador francês acabou por
elaborar inúmeras leis, não apenas para assentar ainda mais a ideia da culpa na
responsabilidade, mas também para refrear a jurisprudência que, embora não afastasse a
necessidade da culpa, introduzia indiretamente algumas atenuantes para a sua verificação.
Não obstante, algumas leis continuavam a excepcionar a teoria do risco, como a
promulgada em 9 de abril de 1898, que tratava dos acidentes de trabalho. Essa lei não
chegou a adotar, pura e simplesmente, a teoria do risco. Foi mais como uma transição entre
a responsabilidade objetiva e subjetiva, na medida em que, pese a desnecessidade do
38
JOSSERAND, Étienne Louis. De la responsabilité du fait des choses inanimées, Paris: A. Rosseau, 1897.
FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, pp.
154/155.
39
23
empregado de comprovar a culpa do empregador, não obtinha a reparação integral do
dano.
Mais adiante, a partir de uma extensão da esfera de aplicação do artigo 1.386 do
Código Civil francês e da criação do parágrafo primeiro do artigo 1.384 do mesmo
Diploma, o legislador pareceu haver compreendido ser útil a facilitação da ação da vítima.
Por meio dos artigos 1.384 (responsabilidade por fato alheio), 1.385 (danos causados por
animais) e 1.386 (danos causados pela ruína do imóvel), regulamentaram-se algumas
situações nas quais o autor de um dano deveria ser responsável pela lesão cometida,
dispensando-se à vítima comprovar a culpa do ofensor. O legislador, embora não afastando
a ideia da culpa, criou uma presunção de culpa, com a inversão da carga probatória,
concedendo à vítima uma situação quase tão favorável à que lhe proporcionaria a teoria do
risco. Traçada, assim, a ideia do risco nesses artigos, coube à jurisprudência estender a sua
aplicação a casos semelhantes, em que também poderia estabelecer presunções de culpa.
Nesse esforço de extensão da regra pela jurisprudência, partiu-se primeiro do artigo
1.385 do Código Civil francês, que, por tratar de danos causados por animais, não poderia
ser utilizado nesse processo de interpretação extensiva. Foi-se, de logo, para o artigo 1.386;
porém, embora tenha se esforçado a jurisprudência, não conseguiu aplicá-lo em situações
que poderiam lhe ser semelhantes.
Restava o artigo 1.384 que, mediante a audácia de alguns julgadores, contrários à
interpretação tradicional dada ao seu parágrafo primeiro, afirmavam haver nesse
dispositivo um princípio geral de responsabilidade pelas coisas40. Essa era, justamente, a
tese idealizada e sistematizada por Saleilles e Josserand. Daí para frente, a maior parte das
Cortes de Apelação e dos Tribunais passaram a declarar, juntamente com a Corte de
Cassação, que se o dano fosse causado por uma coisa, a condenação devia ser fundada na
culpa, mas a vítima ficava livre dessa demonstração, cabendo ao guardião essa
incumbência.
40
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil
Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I, p. 97.
24
Ademais, a jurisprudência reconheceu que tanto fazia se a coisa estivesse sob a
guarda da pessoa ou não, porquanto a aplicação do parágrafo primeiro do artigo 1.384 valia
para ambas as hipóteses. E a conseqüência prática dessa interpretação demonstrava-se
capital: a vítima não teria mais que provar a culpa do condutor do veículo - disposição que
antes era regida pelo artigo 1.382 e, em razão desse entendimento, passou a orientar-se
pelo parágrafo primeiro do artigo 1.384. Entretanto, a jurisprudência impôs limites às
hipóteses para as quais se poderia aplicar essa regra do parágrafo primeiro do artigo 1.384,
não a admitindo em qualquer caso de danos em função de uma coisa.
Ao passo de admitir uma presunção de culpa do ofensor, a qual a jurisprudência
chamava de presunção de responsabilidade, coube aos Tribunais e Cortes decidirem
quando era possível afastar essa responsabilização.
Inicialmente, admitia-se ao guardião da coisa demonstrar que não agira com culpa,
ou seja, que a sua conduta foi irreprovável, para livrar-se do dever de reparar o dano.
Contudo, aos poucos a jurisprudência aproxima as hipóteses de excludente do artigo 1.384,
§ 1º, das do artigo 1.385, para o qual o agente livra-se do dever de indenizar somente se
provar a ocorrência de força maior ou de culpa exclusiva da vítima.
Em 13 de fevereiro de 1930, uma decisão das Câmaras reunidas entendeu que a
presunção de responsabilidade prevista no artigo 1.384, § 1º, não poderia ser afastada, a
não ser pela prova de um caso fortuito ou força maior, ou de uma causa alheia, que não se
imputava ao guardião da coisa41.
Mas não parou por aí a jurisprudência francesa, passando a entender que a causa de
terceiros deveria apresentar as mesmas condições da força maior: teria que ser um fato de
terceiro imprevisível e irresistível para a liberação do guardião.
Nessa esteira, a Corte de Cassação apresentou entendimento de que também a culpa
exclusiva da vítima deveria ser imprevisível e irresistível para a liberação do guardião do
dever de indenizar. Quando não apresentava essas características, não poderia gerar outra
41
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil
Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I, pp. 98/99.
25
conseqüência, senão uma divisão da responsabilidade. Por fim, restringindo a noção de
força maior, exigiu que o acontecimento fosse exterior à atividade do guardião: ora, se o
agente não podia mais livrar-se do dever de indenizar pela demonstração de ausência de
culpa, a sua responsabilidade existia à margem de culpa, com base na assunção dos riscos
da coisa. Parece, então, que a partir de tal reconhecimento, adotou-se na jurisprudência a
teoria do risco42.
Apenas a título de curiosidade, atualmente, na França, o uso da teoria da guarda
tem sido largamente estendido para alcançar, muitas vezes, vítimas de danos casuais.
Anderson Schreiber43 aponta uma decisão, datada de abril de 2003, proferida pela Corte de
Cassação, que, em boa medida, reformou o acórdão exarado pela Corte de Apelação de
Paris, pela qual se concedeu indenização a um alpinista que foi atingido por uma pedra
deslocada acidentalmente por um colega que seguia acima dele na escalada. A Corte de
Apelação entendera que o alpinista que havia procedido a esse deslocamento era o
“guardião da pedra” e, dessa sorte, responsável pelos danos derivados dessa ação.
Mas houve também um segundo dado fundamental para a modificação de
tratamento da responsabilidade civil, que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial: a
elevação da dignidade do homem a valor básico do ordenamento, cuja tutela passou a
ocupar posição central nas leis constitucionais.
Essa valorização da pessoa humana fez com que a responsabilidade passasse a se
preocupar não apenas com a recomposição do patrimônio da vítima, desfalcado pelo
evento danoso, “mas, antes, à sua preservação pessoal, à preservação de sua existência
digna”. Desenvolve-se, a partir dos novos problemas sociais e da valorização da dignidade
humana, um modelo objetivo, pautado no risco, “não raro coletivizado, vale dizer, diluído
na sociedade, dessarte a ensejar até uma responsabilidade socializada, além de voltada à
preservação da existência digna da vítima, em que a finalidade fundamental é a
42
Mazeaud e Tunc entendiam não ter a jurisprudência reconhecido a aplicação direta da teoria do risco,
embora essa teoria tenha influenciado indiretamente o direito francês. A justificativa baseava-se na
necessidade de participação ativa da coisa na realização do dano, não estando ausente, portanto, a ideia da
culpa.
43
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil- Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 32
26
valorização da dignidade da pessoa humana”44. Não se procura mais um culpado, mas um
responsável pela indenização.
De acordo com Geneviève Viney, foi a consciência nos novos riscos criados no
âmbito social, como o desenvolvimento do maquinismo, depois o dos transportes, além do
desenvolvimento de novas tecnologias, cada vez mais complexas e sofisticadas, que se
mostrou serem insuficientes os princípios clássicos da responsabilidade individual fundada
na atitude culposa de assegurar proteção insuficiente às vítimas45.
Como arremata Jorge Ferreira Sinde Monteiro, essa mudança de foco da
responsabilidade civil, do elemento subjetivo ao objetivo, pode ser explicada pela
concorrência de quatro causas: a multiplicação de acidentes anônimos, decorrentes da
atividade industrial; a ascensão social da burguesia, para quem o dano oriundo de um
acidente de trabalho representaria o fim de seu foco de renda, podendo mesmo levar à
miséria, sendo, assim, necessário um modelo mais amplo de imputação e reparação; uma
maior consciência jurídica dos lesados vitimados pelos acidentes de trabalho; e, por fim, o
desenvolvimento do seguro de responsabilidade civil46.
Verificou-se, então, a partir do esforço doutrinário e jurisprudencial, uma
verdadeira revolução na matéria da responsabilidade civil, que passou a comportar dois
pólos: um objetivo, baseado no risco, e um subjetivo, pautado na culpa, girando toda a
teoria em torno desses dois extremos.
Foram até mesmo separados os conceitos de ato ilícito e de dano ilícito (ou dano
injusto). Um dano que o lesado não deveria ter experimentado e, portanto, suportado,
poderia decorrer de certa atividade que, abstratamente considerada, fosse lícita e
regulamentada pela Lei. Como explica Claudio Luiz Bueno de Godoy, desloca-se da
44
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, pp. 15/16.
45
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, p. 42.
46
MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde. Estudos Sobre a Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedina, 1983,
pp. 17/19.
27
perspectiva do regramento do conceito de culpa do ofensor para o de dano injusto sofrido
pelo ofendido, mesmo que advindo de atividade lícita47.
Ante o desequilíbrio causado em razão do dano sofrido pela vítima inocente, por
conduta lícita praticada pelo ofensor inocente, o legislador preferiu fazer prevalecer o
equilíbrio entre as pessoas, na medida em que a lesão coloca a vítima em posição de
desequilíbrio frente ao lesante. Verifica-se, de fato, a opção do legislador em escolher
fatores de imputação da responsabilidade, anteriormente pautada somente na culpa, agora
desempenhada por outros critérios.
A responsabilidade civil começou, assim, a ser enxergada não mais dependente da
presença de um ato ilícito, pautado na culpa – embora ainda presente e preponderante essa
modalidade de responsabilização –, mas também configurável no desenvolvimento de
atividades lícitas. Passou a responsabilidade civil a se preocupar com o dano e a vítima;
não mais com a culpa e o agente48.
1.2 O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DO RISCO NO BRASIL
Em que pese a aceitação e desenvolvimento da teoria do risco nos ordenamentos
jurídicos estrangeiros, com a caracterização da responsabilidade civil objetiva, o Código
Civil de 1916 (que começou a ser redigido em 1899), fruto do liberalismo do século XIX,
não assentou a ideia do risco como pressuposto da responsabilidade, fundando-a na ideia
da culpa.
Conforme os apontamentos de Caio Mário da Silva Pereira, a doutrina do risco não
penetrou no direito positivo brasileiro, senão em incidências específicas. O Código Civil de
47
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 25.
48
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito como sistema complexo e de 2ª ordem. Ato nulo e ato ilícito.
Diferença do espírito entre responsabilidade civil e penal. Necessidade de prejuízo para haver direito de
indenização na responsabilidade civil. In: Estudos e pareceres de direito privado: Com remissões ao novo
Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2012). Saraiva: São Paulo, 2004, p. 27.
28
1916, embora tenha guardado fidelidade temática à teoria da culpa, ofereceu, contudo,
disposições cuja exegese revelava um entendimento coordenado com a teoria do risco49.
A hipótese citada por Caio Mário é a da responsabilidade pelo fato das coisas, em
que, para ele, apoiando-se nas lições de outros juristas como Alvino de Lima e José de
Aguiar Dias, entendia ser o caso de dispositivo já alicerçado na teoria do risco.
Embora a parca referência, no Código Civil de 1916, à teoria do risco, pelo esforço
doutrinário e jurisprudencial, em detrimento de previsão clara desse Diploma, criou-se um
sistema de presunções de culpa50, que acabava por facilitar demasiadamente a defesa da
vítima em algumas situações51.
Ainda que presente de forma sobremaneira tímida essa teoria no Código Civil
Brasileiro de 1916, esse movimento de evolução da responsabilidade civil, da culpa ao
risco, é iniciado ainda antes da promulgação dessa Lei, com a edição do Decreto nº 2.681,
de 7 de dezembro de 1912 (Diploma que regulou a responsabilidade civil das estradas de
ferro, mas acabou estendendo-se a outras formas de transporte terrestre), e completa-se
com a entrada em vigor do Código Civil de 200252.
Teresa Ancona Lopez cita, entre as etapas que intermediaram os dois extremos da
linha evolutiva, os artigos 1.527, 1.528 do Código Civil de 1916, que tratavam de
49
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil de acordo com a Constituição de 1988. 3ª edição,
Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 23.
50
Cláudio Luiz Bueno de Godoy refere-se à importância do trabalho da jurisprudência para a construção de
uma teoria da responsabilidade independente de culpa no Código Civil de 1916. Referido autor menciona a
evolução dos julgados no tocante à responsabilidade do dono do animal que, pelo inciso I do art. 1.527,
facultava ao dono isentar-se da obrigação de indenizar, caso comprovasse ter vigiado o animal com o cuidado
necessário. No entanto, passou-se a entender, em interpretação evolutiva, a partir de uma presunção de culpa
que caminhava para o campo do risco, que se o animal houvesse provocado qualquer dano, sem que por
culpa da vítima ou fortuito, seria porque o dono não o guardava ou vigiava com cuidado preciso. Também o
art. 1.528, acerca da responsabilidade pela ruína de edifício ou construção. A disposição previa a
responsabilização do dono do edifício pelos danos resultantes de sua ruína, mas desde que atribuíveis à falta
de reparos cuja necessidade fosse manifesta. Essa era uma hipótese de responsabilidade subjetiva, ainda que
com culpa presumida, que a jurisprudência se encarregou de interpretar objetivamente, sob o argumento de
que, se a ruína não deriva de fortuito ou culpa de terceiro, só pode ser imputada à falta de reparos de
necessidade manifesta. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade.
São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 13/14.
51
Um exemplo desse sistema de presunções foi a edição da Súmula 341, pelo Supremo Tribunal Federal, que
assim definia: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”.
52
BORGHI, Hélio. Responsabilidade civil: reflexões doutrinárias sobre o Estado. P. 250/251. In NERY,
Rosa Maria de Andrade et DONNINI, Rogério (coord.). Responsabilidade Civil: estudos em homenagem ao
professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 234/284.
29
presunções de culpa, e o artigo 1.529 – que, na mesma esteira de Caio Mario, entende
tratar-se já de uma responsabilidade objetiva –, as leis esparsas que surgiram em meados
do século XX, como a lei de acidentes do trabalho, a lei de responsabilidade civil por
danos nucleares etc. 53, e, principalmente, o Código de Defesa do Consumidor, promulgado
em 1990 e tido como uma das leis mais modernas e protetivas do ordenamento jurídico
brasileiro54. Houve, assim, uma verdadeira evolução legislativa, até que se concebesse a
responsabilidade objetiva, com base no risco, no ordenamento brasileiro.
A mesma citada autora conclui que o Código Civil de 2002 adotou a teoria da culpa
como orientação geral (artigo 186 combinado com artigo 927, caput), mas consagrou a
responsabilidade fundada no risco55 na cláusula geral que dá conteúdo ao polêmico
parágrafo único do artigo 92756.
Mas não é somente com a adoção da teoria do risco que o Código Civil de 2002
assegurou a possibilidade de responsabilização de forma objetiva. De fato, a
responsabilidade objetiva nem sempre apresenta relação de sinonímia com a teoria do
risco. A responsabilidade é objetiva, em algumas situações, porque a lei assim determina,
ao passo que o risco é inferido da atividade. Dessa sorte, o Código Civil, em seus artigos
932, 933, 936, 937, 938, traz hipóteses de responsabilidade objetiva alheias à noção de
53
O Código Brasileiro do Ar (Decreto-lei 483), por exemplo, promulgado em 8 de junho de 1938, adota de
maneira mais clara a teoria do risco: estabelece uma responsabilidade desatrelada da culpa, em relação aos
danos causados às pessoas ou bens na superfície pela aeronave. Diz o art. 97: “Dará direito à reparação,
qualquer dano que uma aeronave em vôo, manobras de partida ou chegada, causar a pessoas ou bens que se
encontrem à superfície do solo”. Acrescenta o parágrafo único: “Essa responsabilidade só se poderá atenuar,
ou excluir, na medida em que à pessoa lesada couber culpa”.
54
LOPEZ, Teresa Ancona. Principais Linhas da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro
Contemporâneo. In AZEVEDO, Antonio Junqueira de; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo
(coord.). Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Tullio Ascarelli. São
Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 662.
55
Em relação ao risco, criam-se algumas teorias que procuraram interpretar o parágrafo único do art. 927 do
Código Civil. Cláudio Luiz Bueno de Godoy explica que dentre as interpretações atribuídas ao parágrafo, a
doutrina inicia sua jornada com o risco integral, passa pelo risco de empresa ou profissional, pelo risco
proveito, pelo risco mitigado, pelo risco perigo, até chegar à noção de risco especial, ou seja, que a
periculosidade da atividade desenvolvida deve ser especial; indutiva de um risco especial. GODOY, Claudio
Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 50/109
56
LOPEZ, Teresa Ancona. Principais Linhas da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro
Contemporâneo. In AZEVEDO, Antonio Junqueira de; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo
(coord.). Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Tullio Ascarelli. São
Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 663.
30
risco57. Revela-se, destarte, que a teoria do risco é apenas um dos tipos de responsabilidade
objetiva.
Com a nova estruturação do Código Civil, mediante a separação entre o ato ilícito e
a responsabilidade civil, fica evidenciado o dano como requisito fundamental para a
responsabilização. O dever de responsabilizar, assim, não surge mais apenas da prática do
ilícito (art. 186), mas também do lícito (art. 927, parágrafo único).
Para Teresa Ancona Lopez, o novo Código Civil, seguindo a tendência mais atual
do Direito Civil, desvinculou até mesmo o ato ilícito (ato antijurídico) da noção de culpa.
Essa distinção fica evidente no artigo 187, que trata do abuso do direito, para o qual foi
adotada a teoria objetiva58.
Não se pretende, contudo, defender que o sistema da responsabilidade civil deva
pautar-se apenas no risco, de modo a desconsiderar a culpa como nexo de imputação.
Como salienta Claudio Luiz Bueno de Godoy, a análise da culpa será necessária nos casos
de direito regressivo exercido por quem responda objetivamente. Ou, ainda, mais
importante, deve-se levar em conta o papel educativo ou profilático que ela exerce – ou,
pelo menos, deveria exercer –, para a coibição da reiteração da conduta danosa. O que não
se permite, atualmente, é que a culpa cumpra, sozinha, o papel de nexo de imputação da
obrigação de indenizar, devendo, portanto, coexistirem culpa e risco. Por meio de critérios
diversos de imputação oferecidos pelo sistema normativo, levanta-se uma reação a um
57
Ao comentar a responsabilidade por fato de terceiro, prevista no art. 932 do Código Civil, Silvio Rodrigues
define, ao contrário do entendimento apresentado, que a ideia de risco é a que mais se aproxima da realidade.
Assim, “Se o pai põe filhos no mundo, se o patrão se utiliza do empregado, ambos correm o risco de que a
atividade daqueles surja para terceiros”. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 20ª edição, revista e atualizada
de acordo com o novo Código Civil, 5ª tiragem, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 63. Parece que, em se tratando
da responsabilidade pelo fato da coisa ou por fato de terceiros, excluído o caso do menor, pode ser levado em
conta tal entendimento. Contudo, não se pode afirmar que o pai responde pelo ‘risco decorrente da existência
de uma criança’, salvo grave desnaturação do conceito. De mais a mais, nem o tutor nem o curador ensejaram
a criação desse suposto ‘risco-criança’, razão pela qual é incoerente afirmar que eles são responsáveis sob
esse fundamento.
58
LOPEZ, Teresa Ancona. Principais Linhas da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro
Contemporâneo. In AZEVEDO, Antonio Junqueira de; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo
(coord.). Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Tullio Ascarelli. São
Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 664.
31
dano injusto, materializado pela atribuição ressarcitória de determinado sujeito, para que se
busque o reequilíbrio do dano59.
1.3 O APARECIMENTO DO ABUSO DE DIREITO
Assim como ocorreu com a evolução da teoria da culpa e aparecimento de novos
nexos de imputação, que culminaram, consequentemente, no aperfeiçoamento da
Responsabilidade Civil – antes pautada apenas no ato ilícito e na culpa, passando a
comportar a noção de risco –, que passou a garantir a indenização da vítima mesmo para os
casos de desenvolvimento de atividade lícita, não ficou alheio a esse movimento o
surgimento de novas fattispecie jurídicas, relacionadas, especialmente, às situações
comportamentais, como é o caso do abuso de direito.
Conquanto ainda restassem discussões a respeito da influência da teoria do risco na
responsabilidade civil para afastar a culpa em determinadas situações ou corrigir extravios
em certas ocasiões, o aparecimento da teoria do abuso de direito deu-se de forma bastante
clara.
Conforme orienta Renan Lotufo, a noção do instituto encontra as suas raízes
históricas no Direito Romano, na figura da aemulatio, que consistia no exercício de um
direito sem finalidade própria, com o único objetivo de lesar e/ou prejudicar outrem60.
Como é notório, no Direito Romano vigiam amplamente os princípios previstos nos
brocardos “neminem laedit qui iure suo utitur”, “feci, sed iura fec”i e “nullus videtur dolo
facere qui iure suo utitur”. Contudo, mesmo em Roma, e especialmente a partir do séc. II
do Império, sempre existiu a concepção – ao menos intuitiva – do abuso de direito,
representada pela impossibilidade de exercer determinado direito com o único objetivo de
lesar patrimônio alheio. Há, nesse sentido, referência na Lei das XII Tábuas a partir da
inscrição “non omne quod licet honestum est”.
59
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 26.
60
LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 2, p. 499.
32
Essa teoria romana dos atos emulativos foi melhor desenvolvida na doutrina
medieval, e pode ser vista como precursora da teoria do abuso de direito. Eram chamados
atos de emulação aqueles praticados pelo proprietário sem qualquer vantagem econômica,
mas com o objetivo de prejudicar terceiros. A partir dos litígios observados nas relações de
vizinhança, desenvolveu-se a tese da necessidade de limitar-se o exercício de direitos
subjetivos, rompendo-se a concepção absolutista até então dominante61.
Inacio de Carvalho Neto aponta que a doutrina do abuso de direito foi também
desenvolvida nos direitos Canônico e Muçulmano, relacionada, à época, principalmente,
com a limitação ao direito subjetivo da propriedade62.
É no Direito Francês, entretanto, que a expressão abuso de direito, em sua
concepção atual, foi cunhada, com origem em discussões jurisprudenciais atinentes
essencialmente ao direito de propriedade, conhecidas pelos casos “Doerr” (construção de
uma chaminé falsa em terreno próprio com o objetivo de retirar a iluminação do terreno
vizinho) e “Clément-Bayard” (construção, pelo proprietário, de dispositivo com espigões
de ferro, visando impedir o lançamento de aeróstatos pelo vizinho)63.
A teoria do abuso de direito nasce como uma resposta à maneira pela qual os
direitos subjetivos, estampados a partir do fim do século XIX, eram exercidos: em caráter
absoluto e ilimitado, em razão do pensamento liberal dominante à época, e em decorrência
dos ideais presentes no Iluminismo e consagrados na Revolução Francesa.
Do absolutismo, não como reação, pois a reação seria a negação do direito
subjetivo, porém como conseqüência, surgiu a doutrina do abuso de direito. Aos poucos, a
noção do exercício ilimitado de direitos subjetivos alterou-se, com a conscientização de
que mesmo os direitos individuais deveriam ser praticados de forma útil, harmoniosa e de
acordo com os interesses da sociedade.
61
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 243.
CARVALHO NETO, Inacio de. Abuso do direito. 5ª edição, Curitiba: Juruá, 2010, p. 30.
63
LOPEZ, Teresa Ancona . Exercício do direito e suas limitações: abuso do direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 885, 2009, pp. 49/68.
62
33
A teoria do abuso de direito veio, pois, alargar o âmbito da responsabilidade civil.
Com ela, o exercício dos direitos subjetivos foi deixando de se restringir tão somente ao
texto da lei. De fato, a noção de abuso de direito procura limitar o poder dos indivíduos de
modo a que se conciliem com os interesses da sociedade.
De forma inequívoca, o sistema jurídico como um todo vem passando por uma
significativa alteração, distanciando-se o seu núcleo do individual para o coletivo, social.
Especificamente no Direito Civil contemporâneo, não há mais espaços para conceitos
egoístas, individualistas, e as normas que dele emanam buscam precipuamente o equilíbrio,
em detrimento a interesses puramente particulares.
Trata-se, conforme orientação de Teresa Ancona Lopez, de uma ruptura do
individualismo e do voluntarismo que dominaram a sociedade nos séculos XVIII e XIX,
por meio da atuação do Estado e da jurisprudência, que principiaram a intervir nas relações
privadas, com vista ao equilíbrio entre os interesses particulares e coletivos. Desse
momento em diante, começa a relativização do exercício dos direitos subjetivos, com os
trabalhos desenvolvidos pelos tribunais e pela doutrina, fundamentados em valores morais
- geralmente alicerçados na dignidade e lealdade64. Embora essa nova concepção tenha
sofrido críticas por alguns autores, foi fortalecida com o apoio que encontrou sobretudo em
Saleilles e Josserand65.
Essa mesma evolução jurisprudencial fez-se também em outros países, como na
Bélgica, na Itália e até mesmo na Espanha. Pode-se afirmar, contudo, que a evolução
jurisprudencial francesa é o ponto de partida para a moderna construção dogmática do
conceito de abuso de direito.
No século XX, a teoria a respeito do abuso de direito se concretiza e se desenvolve
cientificamente (doutrina e jurisprudência), como consequente reação ao exercício
ilimitado dos direitos subjetivos, típico do liberalismo e individualismo presentes à época.
64
65
LOPEZ, Teresa Ancona . Exercício do direito e suas limitações..., p. 52.
JOSSERAND, Étienne Louis. De l’abus Du droit. In Bulletin de la Société d’Éstudes législatives, 1905.
34
Em que pese o Código Civil da Prússia de 1794 ter previsto a reparação dos danos
decorrentes do exercício de direito praticado com a intenção de prejudicar outrem 66, e o
Código Civil alemão de 1896 (BGB), em seu § 22667, ter abarcado a ideia da proibição dos
atos emulativos, a inovação da teoria só esteve presente a partir do Código Civil Suíço de
1907, onde foi incorporada a atual concepção acerca do abuso de direito, vinculada às
regras da boa-fé
68
. Os dispositivos desse Diploma iluminaram o Código Civil Português
de 1966 (artigo 33469), que, por sua vez, foi inspirado no Código Civil Grego de 1940. O
Artigo 187 do Código Civil Brasileiro de 2002 é fruto direto do antes referido artigo 334
do Código Civil Português, e tem como fonte indireta o artigo 281 do Código Civil
Grego70.
Não há notícias de que haja no direito pré-codificado (anterior ao Código Civil de
1916) um dispositivo que apontasse para a teoria do abuso de direito71. Dessa forma, a
teoria consolidou-se de fato a partir da promulgação do Código Beviláqua, mediante a
compreensão do artigo 160, inciso I, que preconizava: “Não constituem atos ilícitos: os
praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”.
Giza Judith Martins-Costa que o abuso de direito, ao contrário do que ocorreu em
outros países, apareceu no ordenamento jurídico brasileiro primeiramente por iniciativa
legislativa e pela ação corajosa de uma ínfima gama de doutrinadores, que romperam os
paradigmas de sua época. O regramento da matéria, abrigada entre as disposições da Parte
Geral do Código Civil referente aos Atos Ilícitos, foi fórmula adotada por Clóvis
66
§§ 36 e 37: “O que exerce o seu direito dentro dos limites próprios não é obrigado a reparar o dano que
causa a outrem, mas deve repará-lo, quando resulta claramente, das circunstâncias, que entre algumas
maneiras possíveis de exercício de seu direito, foi escolhida a que é prejudicial a outrem, com intenção de
lhe acarretar dano”.
67
“§ 226: É inadmissível o exercício de um direito, quando o objetivo for o de causar dano a outrem.”
68
O art. art. 2º do Código Civil suíço assim dispôs: "Todos têm, no exercício dos seus direitos e na execução
das suas obrigações, de agir de acordo com a boa-fé. O abuso evidente de um direito não encontra proteção
legal.".
69
“Art. 334: É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites
impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
70
Note-se que, malgrado a concepção moderna do abuso de direito tenha se originado a partir do esforço
doutrinário e jurisprudencial francês, no Código Napoleônico observou-se um retrocesso quanto ao
desenvolvimento da teoria, porquanto prevalecente o pensamento individualista, esvaindo-se, assim, as
noções que limitavam o exercício absoluto e antissocial do direito.
71
CARVALHO NETO, Inacio de. Abuso do direito. 5ªedição, Curitiba: Juruá, 2010, p.30.
35
Beviláqua, autor do Projeto resultante do Código de 1916, para que fosse condenado o
abuso de direito, na esteira da doutrina de Saleilles72.
Percebe-se, assim, que, no revogado Código Civil, não há uma previsão específica
acerca do abuso de direito. Mas, a partir da interpretação inversa do artigo 16073, que
contempla a licitude do direito praticado em exercício regular, concluía-se que o seu
exercício irregular era antijurídico.
Além do artigo 160 do CC/16 permitir a conclusão de que o ordenamento já
adotava a teoria do ato abusivo, outros dispositivos do direito positivo brasileiro
corroboravam também essa ideia. Como exemplo, basta citar os artigos 16, 17 e 18 do
CPC, como também a antiga Lei de Falências (Decreto-Lei n. 7.661/45), que, em seu
artigo 20, consagrava o pedido abusivo de falência em ato que gerasse indenização, dentre
outros. Há ainda quem sustente que a teoria do abuso de direito foi inserida no artigo 5º74
da Lei de Introdução ao Código Civil75.
Contudo, alerta Judith Martins-Costa que somente após a enxurrada de leis
especiais que derivaram dos novos rumos políticos adotados posteriormente à Revolução
de 1930, especialmente depois de o Código de Obrigações de 1941 ter expurgado a
intenção emulativa do abuso, os Tribunais, em meados do Século XX, passaram a
examinar recorrentemente a aplicação da teoria do abuso de direito, em especial no que se
refere às ações locatícias76.
72
MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo indicado pela Boa-fé. in
TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo: Novos problemas à luz da legalidade
constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 59/60.
73
“Art. 160. Não constituem atos ilícitos:
I. Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.
II. A deterioração ou destruição da coisa alheia, afim de remover perigo iminente (arts. 1.519 e 1.520).
Parágrafo único. Neste último caso, o ato será legítimo, somente quando as circunstâncias o tornarem
absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”
74
“Artigo 5º: Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum”.
75
CARVALHO NETO, Inacio de. Abuso do direito. 5ª edição, Curitiba: Juruá, 2010, p.33
76
MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo indicado pela Boa-fé. in
TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo: Novos problemas à luz da legalidade
constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 61.
36
Relata a mesma autora que, às vésperas da promulgação do Código Civil de 2002, o
abuso de direito se revelava, ainda, uma figura tímida, especialmente se comparado com a
sua aplicação em outros países, com cunho ainda subjetivo, assistemático, “posto quase
como um apêndice da cláusula geral de responsabilidade civil aquiliana do artigo 159 do
Código Civil (1916)”77.
Da análise do artigo 187 do CC, depreende-se que o ato ilícito invocado no
dispositivo é sui generis, porquanto a análise da conduta é feita objetivamente, sem
necessidade da constatação do elemento culpa. O termo “manifestamente” incluído no
artigo suscita inúmeras discussões doutrinárias, porque só gera dúvidas sobre seu alcance.
Com efeito, os limites ao exercício de um direito devem ser impostos segundo a “justiça da
situação”, nas fronteiras da conduta lícita, ou seja, esse termo “manifestamente” deve
servir de equilíbrio para a aplicação da teoria no caso em concreto, e opera como
instrumento a reprimir injustiças manifestas.
Nesse exato sentido, Fernando Noronha refere que o ato abusivo não é
necessariamente ilícito subjetivamente, mas é sempre atuação contrária ao direito, atuação
antijurídica. Segundo este autor, abusa de seu direito quem faz dele uso desconforme,
restando ao lesado fazer a prova de que o direito foi exercido desproporcionadamente78.
Na mesma linha, a posição adotada por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona
Filho, ao definirem que basta o excesso manifesto no exercício de um direito, que
sobrepuje sua finalidade econômica ou social, ou a boa-fé, ou os bons costumes, para que
se caracterize o abuso, não havendo necessidade de demonstração da intenção de
prejudicar terceiro79.
Teresa Ancona Lopez definiu o abuso de direito como o “ato antijurídico exercido
pelo titular de um direito que ao praticá-lo excede os limites impostos pelos valores éticos
77
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp.
67/68.
78
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à
Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 371.
79
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume I: parte
geral. 7ª edição, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 501.
37
e sociais do sistema, violando a boa-fé, os bons costumes e a finalidade social e
econômica do direito80”
Conceitualmente, então, pode-se definir o abuso de direito como “exercício
inadmissível de posições jurídicas81”, ou como “um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo
exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se
considera ilícito”82, ou, por fim, como o “ato antijurídico exercido pelo titular de um
direito que ao praticá-lo excede os limites impostos pelos valores éticos e sociais do
sistema, violando a boa-fé, os bons costumes e a finalidade social e econômica do
direito”83.
As conseqüências jurídicas da aplicação do artigo 187 do Código Civil, segundo
Bruno Miragem, cingem-se à remoção do ato que se pratica em abuso, com a eliminação
de suas conseqüências, bem como a reparação civil. Sobrevindo danos – sejam
patrimoniais ou extrapatrimoniais – em decorrência de um direito exercido abusivamente,
exsurge o dever de repará-lo. Para o referido autor é possível ainda a invalidade do ato
praticado, por se tratar de nulidade por ofensa à ordem pública (ofensa à boa-fé, bons
costumes e fim econômico ou social do direito) e ineficácia da conduta, em virtude da dita
nulidade (não produção de efeitos como resultado da ilicitude)84.
Como arremata Francisco Amaral, a sanção para o abuso de direito pode ser direta,
compelindo-se o infrator a restaurar o estado anterior – extinguindo, portanto, a situação
abusiva – ou direta, impondo-se ao devedor a obrigação de reparar o dano85.
Verifica-se, assim, que a evolução do Direito levou à adoção de princípios pautados
na eticidade, na melhor defesa da vítima, em contrapartida a repulsa pela adoção de
condutas contraditórias ou que expõem a sociedade a riscos desnecessários. Notadamente,
80
LOPEZ, Teresa Ancona . Exercício do direito e suas limitações..., p. 547.
CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007,
p. 661 e seguintes. O autor coloca ainda terminologia mais precisa para descrever o abuso de direito: o abuso
de posições jurídicas.
82
FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de direito civil. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 889.
83
LOPEZ, Teresa Ancona . Exercício do direito e suas limitações: abuso do direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 885, 2009, p. 55.
84
MIRAGEM, Bruno. Abuso de Direito: proteção da confiança e limite ao exercício das prerrogativas
jurídicas no direito privado. 1ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 177.
85
AMARAL, Francisco. Direito civil : introdução. 7ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 246.
81
38
o Direito Civil contemporâneo impôs ao aplicador do direito o desafio de harmonizar a
autonomia individual e a solidariedade social, somente merecendo tutela a atividade
econômica privada que atende concretamente aos valores constitucionais. Todo e qualquer
ato jurídico que desrespeite tais valores, ainda que não seja ilícito, pode ser qualificado
como abusivo, ensejando a correspondente responsabilização86.
A vedação à prática abusiva de um direito, pois, caminha em consonância com a
contemporânea concepção do Direito Civil: as realizações relevantes para o mundo do
Direito devem, antes de tudo, revelarem-se úteis à sociedade; o detentor de uma
determinada faculdade jurídica deve exercer o seu direito tendo em vista o bem estar da
coletividade; mesmo numa relação privada restrita; entre dois sujeitos, os direitos devem
ser praticados segundo um padrão de comportamento objetivamente concebido, devendose observar, ainda, os aspectos morais socialmente inseridos.
Ou seja, essa mudança de paradigma da concepção da teoria do abuso de direito
mostra também a evolução da responsabilidade civil acerca do tema. Isso porque não
apenas mudou-se o foco do abuso para uma concepção eminentemente objetiva, mas
porque também se passou a admitir a atuação da responsabilidade civil preteritamente à
ocorrência do dano (v.g., os casos de repressão à publicidade abusiva).
De fato, verifica-se que a importante figura do abuso de direito ingressou no
ordenamento
jurídico
brasileiro
como
mais
uma
forma
de
manifestação
da
responsabilidade civil – embora a ela não se restrinja –, para prevenir e regular o exercício
inadequado de uma conduta, que embora aparentemente permitida por Lei, acaba se
revelando indevida, frente aos princípios éticos e sociais do direito.
Na atual sociedade de massa e de consumo, o abuso de direito ganha contornos
ainda mais especiais, de proteção do bem individual e coletivo. Por existir, muitas vezes,
uma linha tênue entre o permitido e o proibido, cabe ponderar a atuação dos agentes sociais
de acordo com as regras de boa-fé e probidade, no sentido de não prejudicar outrem87.
86
TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil: Estudos na perspectiva civilconstitucional. 3ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 418.
87
A ideia do abuso de direito regulamentando a massa social ficará mais bem delineada no tópico que tratar
dos danos coletivos, em especial, o dano social, com a proibição das práticas danosas e ilícitos lucrativos.
39
1.4 A ATUAL VISÃO DA RESPONSABILIDADE: SUAS NOVAS
FUNÇÕES
O breve apanhado histórico acerca da evolução da Responsabilidade Civil é
importante para explicar a constante necessidade de ampliação e renovação deste instituto,
assim como para afastar a afirmação, já trazida há tempos, de que a responsabilidade civil
estaria em crise, não comportando exercer os papéis que a sociedade dela exige.
De fato, a consagração de uma sociedade caracterizada pelo risco e a insuficiência
de alguns conceitos clássicos acabaram por colocar em xeque a sustentação da própria
responsabilidade civil.
É bastante claro que a universalização das relações de massa, notadamente
impessoais, acaba por dificultar a apreensão ao modelo tradicional da responsabilidade
civil, em especial pela dificuldade de comprovação da causalidade entre um dano e uma
conduta culposa do agente. No entanto, esse novo enquadramento da sociedade, da
individualização à universalização, encerra por permitir a renovação da responsabilidade
civil, com a inclusão de temas de grande importância no panorama jurídico contemporâneo
em sua pauta, afastando qualquer possibilidade de falência do instituto.
O esforço doutrinário e as dificuldades apresentadas pelos Tribunais na solução de
novas situações que são levadas ao seu escrutínio acarretam uma ampliação das funções da
responsabilidade civil, que antes se preocupava apenas com a reparação dos danos e, agora,
passa a se preocupar também com a punição e dissuasão da conduta danosa, e ainda com a
sua prevenção, até mesmo antecipando-se à ocorrência do dano.
Neste passo, a responsabilidade civil, que antes se preocupava com a proteção de
cada indivíduo considerado de forma isolada na sociedade, passa a ser embasada na ideia
trazida pelo princípio da solidariedade, presente na Constituição Federal de 198888. Com a
88
“Art. 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
40
implementação da responsabilidade objetiva, por meio da adoção da teoria do risco, partese do individualismo jurídico para a regulamentação dos problemas sociais.89
Como explica Teresa Ancona Lopez, o princípio da solidariedade traz consigo a
ideia de socialização dos riscos: as conseqüências danosas são repartidas entre todos os
membros da sociedade, na medida em que os riscos são sociais, não sendo justo que os
homens por ele respondam individualmente. Assim, o risco se coletiviza, como também a
responsabilidade90.
A própria noção de culpa, antes alicerce fundamental da responsabilidade civil,
acaba sendo relegada a segundo plano, especialmente com a ascensão do princípio ético da
boa-fé objetiva. Com os padrões de conduta impostos pela boa-fé objetiva, a culpa “acaba
por desempenhar papel meramente formal como categoria de enquadramento de atos que
atingem valores impostos substancialmente por outra cláusula geral”, conforme adverte
Anderson Schreiber91.
Para o mesmo autor, atualmente há também uma perda de nitidez na distinção entre
responsabilidade subjetiva e objetiva. Isso porque, muitas vezes, uma questão tratada pelo
regime da responsabilidade subjetiva acaba encontrando solução jurisprudencial em
expedientes bastante objetivistas, e vice-versa. Essa perda de nitidez estaria vinculada à
gradual reunificação entre a antijuridicidade e o dano92.
Essa transferência do foco da responsabilidade civil em direção ao dano 93, com a
relativa perda de importância da culpa e do nexo causal na filtragem das demandas
indenizatórias, denota um afastamento do paradigma de imputabilidade moral em favor de
89
MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Solidariedade. In Revista do Departamento de Direito,
PUC, Rio de Janeiro, p. 11.
90
LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo:
Quartier Latin, 2010, p. 51.
91
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 46.
92
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 210/211.
93
Nesse sentido, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka defende uma responsabilidade pressuposta, pela
qual se deve buscar primeiramente a reparação da vítima, para depois verificar-se o responsável pelo dano.
Essa tese seria também uma das novas modalidades de aplicação e evolução da responsabilidade civil.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey,
2005.
41
um sistema de reparação capaz de efetivamente proteger as vítimas dos comportamentos
lesivos. Com base na solidariedade, a matriz individualista da responsabilidade civil vai
dando lugar a soluções mais sociais e coletivas, fundada num dever solidário de reparação.
Daí advém a distribuição equitativa dos prejuízos pela própria sociedade. Essa diluição dos
danos, como denomina Anderson Schreiber94, já pode ser observada em três meios:
ampliação das hipóteses de responsabilidade solidária; desenvolvimento dos seguros de
responsabilidade; e crescente importância da prevenção e precaução dos danos.
A construção jurisprudencial da teoria da causalidade alternativa, em que os
potenciais causadores do evento lesivo são, à falta de identificação do causador específico,
considerados solidariamente responsáveis perante a vítima, além de ampliar as hipóteses de
responsabilidade solidária, assentou a ideia de diluição do prejuízo, que seria repartido
entre os agentes potencialmente ofensores. Sustenta-se, ainda, que tal ônus econômico
poderia ser repassado aos consumidores de modo geral, por meio, por exemplo, do
aumento direto do preço do produto ou serviço.
Para Teresa Ancona Lopez, a verdadeira socialização dos riscos é aquela na qual há
a difusão do seguro obrigatório e a criação dos Fundos estatais. Dessa sorte, sem a adoção
geral do seguro obrigatório, não se poderia falar nessa socialização dos riscos95. A própria
adoção de securitização privada de responsabilidade, bastante presente na cultura norteamericana, por meio da qual o segurado contrata a assunção econômica pelo segurador de
sua eventual responsabilização, possibilitaria essa diluição dos custos, na medida em que,
pela cobrança do prêmio, os danos seriam repartidos, também, pelos potenciais agentes
danosos. Há, assim, uma busca espontânea dos agentes potencialmente lesivos – e, em
última análise, da sociedade – por uma repartição de riscos, com a distribuição entre si dos
danos advindos de sua atividade.
Por motivo dessa propagação dos instrumentos assecuratórios, mais comuns nos
países centrais, chega-se a reforçar aquela ideia de crise da responsabilidade civil, na
medida em que haveria, supostamente, uma limitação do campo de incidência de suas
regras.
94
SCHREIBER, Anderson, Novos Paradigmas da Responsabilidade..., p. 213.
LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo:
Quartier Latin, 2010, p. 51.
95
42
Contudo, essa tentativa de limitação das regras da responsabilidade às ordens
jurídicas em que o seguro obrigatório ou as indenizações sociais não sejam difundidos só
encontra razão se realizada uma interpretação restritiva desse ramo do direito. Conforme
apontamento de Teresa Ancona Lopez, com o desenvolvimento do seguro obrigatório e
dos fundos de garantia, foi, de fato, enxergada a grande vantagem de reparação da vítima
do dano, sem que o lesante tivesse que arcar com o custo integral da indenização, mas o
imenso inconveniente de desestimular a adoção de medidas para evitar o evento danoso. O
foco deixa de ser a causa (dano) e passa a ser a conseqüência (ressarcimento), perdendo
importância a responsabilização da teoria com base na culpa ou no risco. Pago o seguro de
responsabilidade civil, o potencial lesante pode se sentir desestimulado a atuar de modo
preventivo96.
Todavia, explica a autora que a socialização dos riscos e a aplicação generalizada
do seguro de responsabilidade civil jamais conseguiriam limitar o campo de aplicação da
responsabilidade civil, a começar pelas conseqüências econômicas e sociais que
acompanham a adoção desse sistema. Ademais, nada impedirá que o lesado ajuíze uma
ação indenizatória em face do causador do dano, caso não se sinta integralmente
reparado.97
Além do mais, as ações de responsabilização constituem pré-requisito ao
pagamento pelo seguro. Nesse mesmo sentido, Geneviève Viney menciona que o seguro de
responsabilidade passa a tomar a forma de seguro direto, o qual esteve na origem dos
sistemas de seguro social e, posteriormente, de seguridade social, que, por sua vez,
procederam a aparição de fundos de garantia ou de indenização destinados a cobrir certos
riscos particularmente graves em apelo à solidariedade nacional ou mesmo internacional.
Alerta a mesma autora que esses procedimentos diversos justapõem-se e se integram,
criando, em numerosos países, um verdadeiro direito de acidentes, no qual a
96
LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo:
Quartier Latin, 2010, pp. 49/55.
97
LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo:
Quartier Latin, 2010, pp. 58/59.
43
responsabilidade civil continua a ocupar lugar não menos importante de outrora, embora
agora em concorrência ou completada por outros tipos de garantia98.
Mas, principalmente, com a consagração dos princípios da prevenção e da
precaução, além de restar verificada a atual tendência do direito da socialização dos danos,
atribui-se um novo rumo ao direito da responsabilidade civil no século XXI.
O mesmo princípio da solidariedade, que serviu de fundamento à implementação do
seguro de responsabilidade civil (analisada a partir de sua função meramente ressarcitória),
serve, agora, como base da função preventiva da responsabilidade civil.
Portanto, essas novas preocupações da sociedade, longe de decretarem a falência da
responsabilidade civil, apresentam novas pautas ao instituto, expandindo o seu campo de
atuação.
Maria Celina Bodin de Moraes aduz que, no campo da responsabilidade civil, o
princípio da proteção da pessoa humana provocou a sistemática expansão da tutela da
pessoa da vítima, fazendo com que perdesse importância a função moralizadora, antes tida
como um dos aspectos nucleares da responsabilidade civil99. Esse aspecto moralizador, que
antes orientava a responsabilidade civil, é substituído pela concepção de existência de um
dever geral de solidariedade presente no instituto. E esse mesmo dever de solidariedade
passa agora a atuar como alicerce da função preventiva da responsabilidade civil.
Esse campo, na lição de Teresa Ancona Lopez, vem sendo ampliado ao longo da
história de evolução da responsabilidade civil: o direito da responsabilidade civil, que
sempre se preocupou com a reparação ou compensação do dano já causado – e esse ainda é
o papel predominante da responsabilidade civil – passa a visar o futuro, na tentativa de
evitar acontecimentos danosos, muitas vezes irreparáveis.100. Como ensina Patrícia Faga
98
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, pp. 42/43.
99
MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a
responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A
constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, pp. 235 e 238.
100
LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da Precaução e Evolução... pp. 62/76 e 124/125.
44
Iglecias Lemos, “fundado na idéia basilar de proibição de causar dano a outrem (alterum
non laedere), o sistema de responsabilidade civil passa a assumir uma função
antecipatória, calcada na prevenção (risco conhecido) e na precaução (risco hipotético)
de danos”101.
Decerto, esse novo paradigma da responsabilidade civil revela ainda mais a sua
importância em relação àquelas situações em que é impossível a reparação integral do
dano, como nos tão conhecidos e recorrentes danos ao meio ambiente, à saúde, à
integridade física. Para essas situações, mais do que indenizações pesadas (punitive
damages), faz-se necessária a utilização de instrumentos de prevenção anteriores ao dano.
Afinal, a indenização como resultado prático da aplicação da prevenção poderia resultar na
dispensa dessa função, que estaria melhor abarcada pela difusão do seguro de
responsabilidade102.
O reconhecimento e a aplicação dessa nova função da responsabilidade civil, no
sentido de antecipar-se ao cometimento do dano, que se mostra, muitas vezes, irreparável,
apresentam-se como uma tendência inevitável do sistema.
Notadamente, o que se observa é uma gradual desvinculação da figura do dano da
responsabilidade civil, reconhecendo-se tanto as hipóteses de reparação de um dano por
um seguro público ou privado, ou seja, sem se utilizar dos instrumentos oferecidos pela
responsabilidade civil, como também a aplicação desse instituto sem a ocorrência
específica de um dano, v.g. os casos de prejuízos ambientais e propaganda enganosa.
Mas, longe ainda o ordenamento quanto à efetividade para a antecipação do
cometimento de danos, e da criação de um modelo de solidariedade na divisão do prejuízo,
com a criação de seguros universais, mais preocupante, atualmente, são as novas formas de
lesão à coletividade, que surgem como uma das preocupações mais candentes do direito.
Manifestamente, a assunção de novos papéis e funções, pela responsabilidade civil,
em razão das novas formas de interação da sociedade, deu-se também em virtude das
101
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Resíduos Sólidos e Responsabilidade Civil Pós-Consumo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 183.
102
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias , Resíduos Sólidos e Responsabilidade Civil..., p. 186.
45
novas modalidades de danos reconhecidos pela doutrina e jurisprudência, para os quais
também aplicáveis as funções reparatória e preventiva. Citam-se, apenas como exemplos,
as figuras do danno biologico, criado pelos tribunais italianos, como referência aos danos
causados à saúde da vítima, como também os posteriormente reconhecidos “danos
existenciais”, caracterizados como danos à dignidade, em que há comprometimento das
atividades diuturnas da pessoa e de sua qualidade de vida103.
O reconhecimento desses novos anseios da sociedade leva, invariavelmente, ao
reconhecimento de novas modalidades de danos, antes inexistentes ou encarados como de
somenos relevância pela própria coletividade. A exemplo disso, a figura da perda de uma
chance, importada do direito francês pelo ordenamento brasileiro104.
Aliás, é natural esperar que, na época da pós-modernidade, marcada pela superação
de fronteiras, pela crise da soberania, pela comunicação globalizada, pela multiplicação das
fontes normativas, pelo avanço científico e tecnológico, permeadas por soluções tópicas
vazadas por cláusulas gerais ou conceitos indeterminados de conteúdo não cientificamente
construído, surjam novas manifestações de eventos lesivos105.
103
Essa profusão de nomenclaturas e possibilidades de reparação vislumbradas pela doutrina e jurisprudência
levou a falar-se em “danos de etiqueta”, na medida em que a cada novo dano apreendido, um novo nome lhe
era atribuído.
104
Trata-se da chance perdida pela vítima, em função de ação ou omissão do agente ofensor. Essa
modalidade de dano é configurável de acordo com a verificação dos seguintes elementos: i) um resultado
positivo futuro, cuja verificação não se apresenta certa, podendo consistir ou na obtenção de uma vantagem
ou na não concretização de uma desvantagem; ii) a pessoa deve se encontrar numa situação em que pode vir
a alcançar esse resultado, porque reúne um conjunto de condições de que depende a sua verificação; iii) um
comportamento de terceiro suscetível de gerar a sua responsabilidade e que elimina de forma definitiva as
existentes possibilidades de o resultado se vir a produzir. O que se indeniza é a chance perdida, e não o
evento futuro que não se atingiu. Com efeito, essa teoria da indenização pela perda de uma chance, criada na
França na década de 60, surgiu como forma de desnaturação do nexo causal para decidir casos de
responsabilidade civil do médico. Dadas as dificuldades naturais em dizer que um fato constituía a causa
jurídica de um dano, e perante o binômio da concessão integral da indenização ou sua exclusão – em outras
palavras, binômio do tudo ou nada –, os juízes optaram por algo intermediário, baseados na teoria da perda
de uma chance. Após esse reconhecimento para os casos de erro médico, a teoria passou a ser aplicada em
diversas outras situações, vislumbrada como um dano autônomo, que deveria ser indenizado sempre que a
chance perdida fosse real e concreta, com alta probabilidade de ocorrer. De fato, a aplicação e mesmo
definição do instituto ainda se apresenta bastante insipiente no Brasil. Não se chega a um consenso geral no
sentido de classificar a teoria como uma nova modalidade de dano ou como um modulador do nexo de
causalidade. E justamente em razão dessa confusão, a aplicação da teoria pela jurisprudência ainda apresenta
inegáveis problemas conceituais. No entanto, não se nega o fato de que a aplicação dessa doutrina tem
crescido em nosso sistema jurídico, caracterizando um novo desdobramento sobre o qual a responsabilidade
civil deve se debruçar, atendendo aos problemas que, embora não sejam novos, começam a aparecer com
maior evidência.
105
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Alguns apontamentos sobre o dano moral, sua configuração e o
arbitramento da indenização. p. 379. In CASSETTARI, Christiano. 10 anos de vigência do Código Civil
Brasileiro de 2002. Saraiva: São Paulo, 2013, p.378.
46
Com efeito, a discussão atual acerca da responsabilidade civil circunscreve-se a
definir quais funções pode ela adotar, e se é possível, mesmo que reconhecidas diversas
funções, desempenhá-las todas.
Assim, ao lado de engendrar-se uma nova configuração da sociedade, marcada por
seguros universais de responsabilidade ou na antecipação do acontecimento do dano, a
responsabilidade civil, adaptando-se ao seu tempo, em vez de abandonar as suas primitivas
preocupações, voltadas à conduta do lesante e à reparação da vítima, retoma antigos
conceitos, para amoldar-se à formatação coletiva do agora.
Por isso que, mais que reconhecer a existência de direitos transindividuais, difusos
ou coletivos, ampliam-se, por força de lei ou pelo esforço da doutrina e da jurisprudência,
as formas de sua proteção, aplicando-se, ainda, quando necessário, medidas que pareciam
estar há muito esquecidas, cujo intuito, declarado ou não, é punir o agente e prevenir o
dano futuro.
Ao lado da função clássica da reparação, Fernando Noronha reconhece a
possibilidade de aplicação de uma pena privada, atribuindo, então, à responsabilidade civil
uma função sancionatória, que servirá de instrumento de punição e de dissuasão à
reiteração de conduta censurável106.
Maria Celina Bodin de Moraes bem define que a teoria da pena privada, defendida
em meados do século XX por Boris Starck, vem ganhando cada vez mais adeptos no
ordenamento brasileiro, tanto por parte da doutrina quanto da jurisprudência. Essa pena
privada passa a ser computada no cálculo da reparação por danos morais, que começa a
exercer uma função dúplice: reparação da vítima e sancionamento do ofensor, como meio
de se punir ou desestimular ou inibir.107
106
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à
Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, pp. 439/441.
107
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 224.
47
No entanto, a mesma autora alerta que a solução mais condizente com o instituto da
pena privada é a normatização das fattispecie merecedoras de sua aplicação, para que a sua
autorização não constitua um “cheque em branco” ao julgador.108
Embora ainda um pouco insipiente a aplicação das indenizações punitivas no
Brasil, não tendo sido a sua ideia dissociada da de reparação do dano, como aconteceu no
Reino Unido e Estados Unidos da América, é possível ver-se a aplicação de medidas
corretivas às situações negativamente exemplares, que afetam a coletividade.
Verifica-se, assim, uma evidente preocupação da responsabilidade civil em relação
não apenas aos danos causados à coletividade, que, muitas vezes, carecem de adequada
proteção ou iniciativa do Poder Judiciário em controlá-los, ao mesmo tempo em que se
levanta uma função de punir e dissuadir, acompanhada, também, de uma função de
prevenção do próprio dano109.
Atualmente, essa preocupação social sobre a qual a responsabilidade civil
atualmente se debruça, e que também é fundada no solidarismo social, é o que Antonio
Junqueira de Azevedo denominou “dano social”110, como medida de recomposição, à
sociedade, daquilo que dela foi retirado. A reparação desse dano representa a confirmação
das funções punitiva e dissuasória, traduzindo, via de conseqüência, uma função também
preventiva da reiteração do ato lesivo.
No entanto, malgrado plantada essa ideia, parece ainda haver relutância em sua
aplicação, muito embora, hodiernamente, sejam esses danos transindividuais e
multifacetários os principais problemas apresentados pela coletividade, que acaba
padecendo de um rebaixamento de sua qualidade de vida, sem um instrumento eficaz que
lhe garanta a paz almejada.
108
MORAES, Maria Celina Bodin de, Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 227.
109
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à
Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, pp. 441/442.
110
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 377/384.
48
Como asseveram Judith Martins-Costa e Mariana de Souza Pargendler, a
preocupação atual dos estudiosos volta-se à procura de um instituto “apto a coibir ou
desestimular certos danos particularmente graves cuja dimensão é transindividual, ou
comunitária...”111. Voltam-se, então, os olhos para a procura de uma solução a esses
problemas que afetam a coletividade como um todo, ainda que causados pontualmente a
cada indivíduo, sendo certa a insatisfação com a linearidade do princípio da reparação
nessa sociedade atual.
Todo esse encadeamento histórico serve não apenas para afastar a falência da
responsabilidade civil, mormente essas novas e urgentes preocupações ora apresentadas,
mas também para justificar a necessidade do amoldamento do próprio instituto à existência
desses novos danos ou mesmo à exigência de novas regulações, de forma que a sociedade
fique protegida e pacificada, atendendo aos princípios éticos e sociais positivados pela
Constituição Federal. Longe de apresentar uma crise de identidade, a responsabilidade civil
parece renovar-se a cada novo desafio que lhe demanda solução.
111
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva
(punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 16.
49
CAPÍTULO II
A COMPENSAÇÃO DO DANO EXTRAPATRIMONIAL E AS SUAS
FUNÇÕES
2.1 O DANO EXTRAPATRIMONIAL
A evolução da responsabilidade civil, como visto, apenas ocorreu em razão da
diversificação do dano, ou seja, do surgimento de novas situações e realidades, que
provocaram a necessidade de expansão das hipóteses de dano até então existentes.
Com efeito, nessa mesma esteira, o dano extrapatrimonial foi decorrência lógica da
insuficiência da indenização às lesões meramente patrimoniais, na medida em que qualquer
dano não economicamente aferível ficava à mingua de uma justa compensação.
Não se pretende, justamente por não ser esse o escopo deste trabalho, traçar uma
longa linha histórica acerca do dano moral, de seus primeiros passos desconfiados até à
completa aceitação no direito. O que se pretende demonstrar é apenas a modificação da
ótica sob a qual era vislumbrado esse dano, capaz, agora, de transcender a aplicação
puramente individualista em que era empregado, para garantir a reparação de uma lesão,
não aferível economicamente, que atinja a uma coletividade.
Apenas importante destacar, inicialmente, que se entende correta a utilização do
termo “dano extrapatrimonial” no lugar de “dano moral”, por ser o primeiro mais
abrangente do que o segundo. Como mesmo destacam José Rubens Morato Leite e Patryck
de Araújo Ayala, a doutrina ainda é muito vacilante quanto a essa nomenclatura,
denominando-o dano moral, e, mais recentemente, usando a designação de dano
extrapatrimonial112. Como refere Mário Júlio de Almeida Costa, a distinção entre os danos
patrimoniais e extrapatrimoniais ou não patrimoniais reside na verificação de se a lesão é
112
LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo
extrapatrimonial. Teoria e prática. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 260.
50
ou não suscetível de avaliação pecuniária. Os primeiros incidiriam “sobre interesses de
natureza material ou econômica, refletem-se no patrimônio do lesado, ao contrário dos
últimos, que se reportam a valores de ordem espiritual, ideal ou moral”113
Por essa razão que a denominação “dano extrapatrimonial” revela-se mais acertada,
justamente por ser menos restritiva. Como atestam os mesmos citados autores José Rubens
Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala, o termo extrapatrimonial “não vincula a
possibilidade do dano à palavra moral, que pode ter várias significações e torna-se, desta
maneira, falha por imprecisão e abrangência semântica”, sendo suficiente, portanto, a
utilização da nomenclatura dano não econômico, não patrimonial (strictu sensu) ou
extrapatrimonial114. Como aquilata Paulo de Tarso Sanseverino, “A expressão dano
extrapatrimonial abrange, fundamentalmente, os prejuízos sem conteúdo econômico que
violam ‘a esfera existencial da pessoa humana’”115.
Entende-se, então, que o dano extrapatrimonial pode ser o gênero, do qual o dano
moral, o dano estético, o dano da perda da chance, o dano moral coletivo e o dano social
podem ser espécies116.
Ao entanto, apenas para fins didáticos, utilizar-se-ão outras expressões, como dano
não patrimonial, dano não econômico, até mesmo dano moral etc.
2.2 O DANO EXTRAPATRIMONIAL E A SUA EVOLUÇÃO: A SUA
ADEQUADA CONCEITUAÇÃO
113
COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 6ª edição, Coimbra: Livraria Almedina, 1994,
p. 407.
114
LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo
extrapatrimonial. Teoria e prática. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 260.
115
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 257.
116
Explica Leonardo Roscoe Bessa que dano moral e dano extrapatrimonial não podem ser confundidos,
porquanto traduzir este último, em contraposição ao dano patrimonial, qualquer violação de interesses não
suscetíveis de avaliação pecuniária, podendo englobar, assim, outros tipos de danos, que não apenas o dano
moral individual. In BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, p. 97.
51
Aponta Américo Luís Martins da Silva que, muito antes de o Direito romano tratar
do dano e de sua reparação, já existiam, na Suméria, na Babilônia e na antiga Índia
codificações de leis regulamentando o dano moral, ainda que de forma incipiente. Assim
que os Códigos de Ur-Nammu, Manu e Hamurabi faziam referências a lesões não
econômicas, que eram compensadas por meio de penas pecuniárias.ou pelo direito de
vindita. Da mesma forma, era possível reconhecer a reparação do dano moral em fatos
históricos da Grécia antiga, ou mesmo de passagens do Alcorão, sendo, posteriormente,
discutido pelo Direito romano, pelo Direito canônico, Direito hebraico e Direito
talmúdico117.
Da mesma forma lembra Jorge Peirano Facio, ao comentar que a reparação por
dano moral remonta às mais antigas etapas de evolução da responsabilidade civil. Ainda
nas épocas mais primitivas, o instituto da vingança privada protegia qualquer atentado
contra a personalidade, especialmente aqueles que atacavam à honra e não se traduziam em
prejuízo pecuniário. Também no direito romano havia uma tendência em reparar os danos
morais, quando o ofendido recebia uma reparação tanto pelas perdas pecuniárias quanto
pelas restrições que sofria em seu bem-estar, desagrados, agitações de espírito etc., não se
tratando somente de disciplina determinada pela lei, mas cabendo ao juiz a fixação, a partir
das peculiaridades do caso, de indenização que satisfizesse o ofendido118.
No Brasil, durante muitos anos, houve dúvida a respeito da aplicação de
indenização para a reparação de dano extrapatrimonial, já que a legislação nada dizia a
respeito ou não era suficientemente clara. Deveras, a lacuna deixada nas legislações do
final do século XIX, ao redor do mundo, também pode ser observada no Código Civil de
1916, que, seguindo a mesma estrutura das codificações baseadas no Código de Napoleão,
manteve-se silente sobre a reparação por danos não econômicos. O Código Civil de 1916
não tornou a reparação dependente do crime, mas remeteu os casos de proteção às figuras
contidas na Lei penal119.
117
SILVA, Américo Luís Martins da. O Dano Moral e a Sua Reparação Civil. 2ª edição, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, pp. 65/92.
118
FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, pp.
381/382.
119
MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de
mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p.34.
52
Ocorre que, mesmo antes da elaboração do Código Civil de 1916, havia corrente
que defendia, no Brasil, a existência de uma lesão não econômica. No Decreto nº 2.681/12,
ainda em vigor, que regulamenta a responsabilidade civil nas estradas de ferro, há previsão,
no artigo 21, além do pagamento das despesas com o tratamento e os lucros cessantes
sofridos pela vítima do dano, de que seja arbitrada uma “indenização conveniente” pelo
juiz, que já podia, àquela época, levar a uma interpretação de reparação por um dano não
patrimonial sofrido pelo lesado.
Por esse motivo, parte da doutrina afirmava que a indenização por dano
extrapatrimonial, embora existente à época da promulgação do Código, não fora nele
positivada como princípio geral, enquanto outra corrente via a regra de forma clara,
especialmente nos artigos 76120 e 159121122123.
Fato é que a jurisprudência, especialmente a do Supremo Tribunal Federal, não
adotava um posicionamento concreto sobre a reparabilidade ou não dos danos morais. Fato
é que essa questão somente foi, finalmente, encerrada com o advento da Constituição
Federal de 1988, que, no artigo 5º, fez constar expressamente a possibilidade de uma
reparação por uma lesão não patrimonial124, seguida, três anos após, pelo advento do
Código de Defesa do Consumidor e, posteriormente, pelo Código Civil de 2002.
120
“Art. 76. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legitimo interesse econômico, ou moral.
Parágrafo único. O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou á sua
família.”
121
“Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou
causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.
122
Clayton Reis explica que o artigo 76 do Código Civil era preciso ao possibilitar a reparação por dano
moral, já que condicionava a ação ao consequente interesse moral e econômico. Se o interesse moral era
requisito indispensável para postular em juízo, também devia esse mesmo interesse poder ser objeto de
reparação. Por seu turno, o artigo 159, em virtude de sua enorme amplitude, autorizaria a reparação de
qualquer dano, não se podendo excluir aquela referente à lesão a direitos da personalida. REIS, Clayton.
Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, pp. 63/66.
123
Silvio Rodrigues afirmava até mesmo que, em inúmeras hipóteses, o Código Civil admitia a indenização
por danos extrapatrimoniais, como no caso do esbulhador que, não podendo devolver a coisa esbulhada,
ficava obrigado a pagar não apenas o seu preço, mas também o seu valor de afeição (art. 1.543), ou nos casos
de injúria ou calúnia, em que a vítima, sem conseguir comprovar o prejuízo patrimonial, ainda tinha direito a
uma reparação em dinheiro (art. 1.547, parágrafo único). RODRIGUES, Silvio. Direito Civil:
Responsabilidade Civil. 14ª edição, volume 4, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 197.
124
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”.
53
Leonardo Roscoe Bessa traça uma divisão a respeito da evolução em direção ao
reconhecimento do dano moral, apresentando quatro fases distintas: 1) a fase de sua
irreparabilidade; 2) a sua admissão, desde que reflexo do dano material; 3) o seu
reconhecimento independentemente do dano material; e 4) a possibilidade de cumulação
de dano moral e material125.
Atualmente, a dicotomia dano patrimonial e dano moral está bem delineada: o
primeiro representa o prejuízo que atinge o patrimônio palpável da vítima, ou seja, aferível
em valor, ao passo que e o segundo representa perda do patrimônio não econômico.
Na realidade, explica José de Aguiar Dias, ao fazer a diferenciação entre o dano
patrimonial e o dano não econômico, que todo dano é uno, e não se discrimina em material
e extrapatrimonial em atenção à origem, mas aos efeitos. Assim, a “distinção, ao contrário
do que parece, não decorre da natureza do direito, bem ou interesse do lesado, mas do
efeito da lesão, do caráter de sua repercussão sobre o lesado”. Dessa forma, será possível
constatar tanto um dano patrimonial em consequência de lesão a um bem não patrimonial,
quanto um dano extrapatrimonial em vista de uma ofensa a bem material126.
Quanto à sua definição, a doutrina comumente traz o sentido de dano moral sob a
forma negativa, em contraposição ao dano material, atribuindo-lhe um caráter residual.
Procura-se, desse modo, conceituar o dano moral por exclusão.
Já demonstrava Wilson Mello da Silva que o dano moral é a lesão sofrida pelo
sujeito em seu “patrimônio ideal”, entendendo por patrimônio ideal “o conjunto de tudo
aquilo que não seja suscetível de valor econômico"127, ou seja, atribuía ao dano
extrapatrimonial esse aspecto residual que ele possui, além da dor, do direito
personalíssimo, mas como qualquer dano que não possa ser economicamente aferível.
125
BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, p. 94.
126
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume II, Rio de Janeiro: Forense, 1979,
pp. 414 e 428.
127
SILVA, Wilson Mello da. O Dano Moral e a sua Reparação, 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1969, p.
13.
54
Nesse mesmo sentido, Silvio Neves Baptista diz que o dano é extrapatrimonial
quando a lesão agride bens imateriais “insuscetíveis de avaliação em dinheiro, e que
compõe o núcleo dos direitos da personalidade”, que acarreta a privação ou diminuição
desses bens fundamentais ao homem128.
No entanto, a pacificação quanto à existência de um dano moral reparável não
significou a ausência de controvérsias em outros pontos sobre esse mesmo instituto.
Durante muitos anos, os danos extrapatrimoniais foram – e continuam ainda sendo –
relacionados à ideia de “dor, a mágoa, a tristeza infligida injustamente a outrem”129, ou
seja, os “danos d’alma”130, “tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana”131.
Pontes de Miranda tentou, ainda, estabelecer que não é a dor, em si, que se
indeniza, “é o que a dor retira à normalidade da vida, para pior, e pode ser substituído
por algo que o dinheiro possa pagar”, acrescentando, também, que se exige, como
pressuposto comum da reparabilidade do dano não patrimonial, a gravidade, além da
ilicitude, ou melhor, que seja ele oriundo de fato que também é crime ou contravenção132.
Não se conseguia – como ainda alguns não conseguem –, consequentemente, vislumbrar a
hipótese de um dano moral desatrelado de uma dor, uma aflição, uma angústia, um vexame
– por vezes devendo-se até mesmo comprovar esse sentimento133.
Embora ainda admitida a caracterização dos danos morais por uma dor ou
humilhação, fato é que não se parece conceber, ainda mais após a edição da Constituição
Federal de 1988, esteja ele desatrelado da ideia de lesão a direitos personalíssimos. Orienta
128
BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria Geral do Dano: De acordo com o Novo Código Civil Brasileiro. São
Paulo: Atlas, 2003, pp. 78/81.
129
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 14ª edição, volume 4, São Paulo: Saraiva,
1995, p. 188.
130
REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 76.
131
CAHALI, Youssef Said. Dano Moral. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 20.
132
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo 26, Rio
de Janeiro: Editor Borsoi, 1971, pp. 32/34.
133
O Tribunal de Justiça de São Paulo, ainda hoje, apresenta, em algumas de suas Câmaras, entendimento
segundo o qual essa dor relacionada aos danos morais deve ser comprovada para que encontre reparação:
“Seguro Saúde Preliminar afastada Exclusão da cobertura das sessões de fisioterapia Tratamento prescrito
pelo médico que se configura fundamental para o controle do quadro clínico ao autor Cláusula abusiva
Aplicação do Código de Defesa do Consumidor Danos morais não caracterizados Reforma da sentença, tãosó para afastar os danos morais e reconhecer a sucumbência recíproca. Dá-se parcial provimento ao
recurso. (...) A cobrança efetuada caracteriza mero aborrecimento, não passível de indenização, anotandose, ademais, que sequer foram comprovados os alegados danos morais sofridos pelo espólio-autor”. In
www.tjsp.jus.br, Apelação Cível nº 0177777-51.2009.8.26.0100, 5ª Câmara de Direito Privado, Relatora
Christine Santini, julgado em 14/12/2011, consultado em 20/2/2012.
55
Yussef Said Cahali que o dano moral, em sua versão mais atualizada, vai paulatinamente
se afastando de seus “contingentes exclusivamente subjetivos de dor, sofrimento,
angústia”, partindo para uma análise mais objetiva, de forma a compreender também “as
lesões à honorabilidade, ao respeito, à consideração e ao apreço social, ao prestígio, e à
credibilidade nas relações jurídicas do cotidiano”134, ou seja, os direitos personalíssimos.
Atualmente, alguns doutrinadores entendem, inclusive, não existir dano moral sem
que haja lesão a um direito da personalidade, prescindindo-se da hipótese de ter a lesão
causado um abalo psíquico na vítima, atribuindo a esse tipo de agravo um aspecto residual,
sem atribuição econômica.
Apenas para ilustrar essa evolução de pensamento da doutrina, Maria Celina Bodin
de Moraes traça um retrato da atual visão doutrinária e jurisprudencial brasileira, que
divide o dano moral em subjetivo (efeito não-patrimonial de lesão a direito subjetivo) e
objetivo (afronta a direito de personalidade). No primeiro caso (dano moral subjetivo), o
dano é considerado moral quando os efeitos da ação originam angústia, dor, sofrimento,
constrangimento intensos, a ponto de poderem facilmente distinguir-se dos aborrecimentos
cotidianos; no segundo (dano moral objetivo), o dano fere direitos personalíssimos, como a
honra, atividade profissional, reputação, entre outros135.
Ao optar por fazer decorrer o dano moral dos sentimentos de dor, humilhação,
vexame, a autora diz que a jurisprudência teve acertada intuição acerca de sua real natureza
jurídica, já que, normalmente, o que humilha, ofende, constrange as pessoas é justamente o
que fere a dignidade. E derivando os direitos personalíssimos da dignidade humana, revelase correta a aplicação do dano moral para essas situações de ataque à dignidade136.
A fim de tomar partido e orientar a aplicação de indenização por dano
extrapatrimonial, diversos autores emitiram conceitos próprios, tentando trazer uma
fórmula definitiva sobre o instituto.
134
Yussef Said Cahali. Dano Moral. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 351/352.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.157.
136
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., pp. 117/132.
135
56
Para Sílvio de Salvo Venosa, o dano moral é definido como o “prejuízo que afeta o
ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Sua atuação é dentro dos direitos da
personalidade”137. Embora admita que a atuação dos danos morais dá-se dentro dos
direitos personalíssimos, não descarta o autor a dor física ou psíquica para a sua
configuração, que gere um distúrbio anormal na vida do indivíduo. O juiz, portanto,
segundo o autor, deve se pautar pela “sintomatologia do sofrimento” – já que o dano
psicológico pressupõe modificação de personalidade, com sintomas palpáveis –,
quantificando-a economicamente.
Teresa Ancona Lopez, por sua vez, suscita que a definição de dano moral deveria
ser dada em contraposição ao dano material, sendo este o que lesa bens pecuniariamente
apreciáveis, ao passo que aquele reflete o prejuízo a bens ou valores sem conteúdo
econômico138.
A mesma autora divide o dano moral em três espécies: danos morais objetivos,
caracterizados na ofensa aos direitos da pessoa tanto no seu aspecto privado (integridade
física, corpo, nome, honra, segredo, intimidade, imagem), quanto em seu aspecto público
(vida, liberdade, trabalho), assim como nos direitos de família, o qual é presumido, por
acontecer in re ipsa; danos morais subjetivos (pretium doloris), identificado como o
sofrimento d’alma, porque afetada a pessoa em seus valores íntimos, em suas afeições
(como no caso dos pais que perdem um filho), e também no prejuízo pelos prazeres da
vida; e, por fim, os danos morais ligados à imagem social, identificado, pelo constituinte,
no art. 5º, V da Constituição Federal, separado do dano patrimonial e moral, que protege o
indivíduo de não ver reproduzida nem desrespeitada sua imagem física139.
De fato, os danos morais, quando começaram a ser aplicados, ressentiam-se de
parâmetros materiais seguros – o que propiciava a crítica mais dura que sempre receberam
–, motivo pelo qual eram sempre deixados ao arbítrio judicial e à verificação de um fator
psicológico de aferição problemática: a dor moral. A Constituição Federal de 1988, ao
admitir a indenização por danos extrapatrimonais, procurou resolver essa problemática, ao
137
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 9ª edição, São Paulo: Atlas, 2009, p. 41.
LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 24.
139
LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 28/32.
138
57
definir, expressamente, que a sua constatação basear-se-ia numa violação a direitos
personalíssimos.
Diz Paulo Luiz Netto Lôbo que a inserção constitucional dos direitos da
personalidade e dos danos morais consagrou a evolução pela qual ambos os institutos
jurídicos têm passado. Os direitos da personalidade, por não apresentarem conteúdo
econômico, encontram excelente campo de aplicação nos danos morais, que possuem a
mesma natureza não patrimonial: “Ambos têm por objeto bens integrantes da interioridade
da pessoa, que não dependem da relação com os essenciais à realização da pessoa, ou
seja, aquilo que é inato à pessoa e deve ser tutelado pelo direito”.140
Como sustenta Sergio Cavalieri Filho, a Constituição Federal, em seu artigo 5º,
incisos V e X, diz expressamente que o dano moral apenas se verifica quando houver lesão
a um bem integrante da personalidade, não se relacionando, portanto, com a dor, vexame,
sofrimento, embora esses elementos possam ser verificados numa situação em que o dano
moral ocorre141.
Matilde Zavala de González diferencia o dano patrimonial do dano moral da forma
seguinte: o primeiro repercute sobre o que o sujeito tem, enquanto o segundo incide sobre
o que a pessoa é, implicando um defeito existencial. Sob uma ótica ressarcitória, esses
prejuízos existenciais significam descompensações que trazem um menoscabo injusto à
vida das pessoas. Ou seja, o dano moral vai além da equivocada limitação que lhe é dada a
sofrimento ou dor. A partir da prática lesiva, modifica-se para a vítima a maneira de estar
“em sí y em el mundo, con motivo de una modificación disvaliosa de su integridad
espiritual que empeora su existencia”. Esse dano existencial, dessa forma, não equivale a
transtornar animicamente a pessoa, já que ele independe da dor, sofrimento ou qualquer
alteração psíquica – embora, verificadas perturbações afetivas, possa ser intensificado o
140
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n.
119, 31 out. 2003. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/4445, consultado em 29/2/2012.
141
CAVALIERI FILHO, Sergio. Os Danos Morais no Judiciário Brasileiro e sua Evolução desde 1988. In
TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade
constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 99/100.
58
prejuízo moral –, bastando verificar-se um dano ao viver cotidiano, à livre e serena
existência 142.
Para a mesma autora, não há que se falar em divisão ou classificação do dano moral
(v.g. dano moral objetivo e subjetivo), na medida em que, em geral, o rebaixamento
existencial afeta tanto o psiquismo como os vínculos relacionais da pessoa. Essa
pluralidade de vertentes que acentua o negativo impacto existencial do indivíduo. Além
disso, é também factível um dano moral sem uma especial perturbação anímica, como a
utilização ilegítima de imagem pessoal, que encerra por não violentar a intimidade ou
ofender a honra do lesado, cabendo, da mesma forma, a reparação. Por esse motivo, o dano
moral deve ser enxergado de forma única, dimensionado subjetiva e objetivamente: a
perspectiva subjetiva surge da necessidade de personalizar a nocividade causada pela lesão,
ao passo que a ótica objetiva, sem qualquer contradição, impõe a verificação de “pautas
generalizadas para el común de los seres humanos”143.
A seu turno, Carlos Roberto Gonçalves atesta que o dano extrapatrimonial designa
exclusivamente o agravo que não produz efeito patrimonial, ou melhor, se houver
consequências de ordem patrimonial, ainda que mediante repercussão, o dano deixa de ser
extrapatrimonial. Continua dizendo que é lesão de bem que integra os direitos da
personalidade, e que acarreta dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação ao lesado. Na
realidade, explica ele que o dano moral não é propriamente a dor, na medida em que o
direito não repara qualquer padecimento, perfazendo esses estados de espírito a
consequência da lesão144.
Esse arcabouço diferenciado de entendimentos permite que se faça crítica ao
posicionamento de parte da doutrina e da jurisprudência, em relação a essa necessidade de
associação do dano moral a um sentimento. Certamente, aquelas lesões não aferíveis
economicamente, e que causarem dano aos direitos de personalidade, são enquadradas
142
GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009,
pp. 1/2.
143
GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, p.
18.
144
AZEVEDO, Antônio Junqueira de (coord.). Comentários ao Código Civil: Parte especial do direito das
obrigações. Volume 11, 2002, pp. 339/340.
59
como dano extrapatrimonial ressarcível, podendo ou não ser verificada uma dor ou
humilhação.
O segundo ponto de crítica, que se liga ao primeiro, refere-se à conceituação
negativa empregada pela doutrina, ao tentar definir o dano moral 145. Numa tentativa de
retirar do dano extrapatrimonial essa conceituação negativa, por pensar que ela apenas
permite estabelecer a característica que esse tipo de dano não detém: conteúdo econômico
ou patrimonial, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino procurou não apenas trazer um conceito
positivo, mas cravar os direitos personalíssimos como a verdadeira bandeira desse tipo de
lesão.
Na opinião do autor, por meio da conceituação negativa, fica difícil estabelecer, no
caso concreto, a ocorrência ou não de dano extrapatrimonial, a exemplo dos problemas
ocorridos no transporte aéreo, como os transtornos ensejados pelos atrasos de voos. Dessa
forma, um conceito positivo mostra-se fundamental para a definição do instituto: o dano
extrapatrimonial é o prejuízo, sem conteúdo econômico, derivado de uma ofensa a direitos
da personalidade, ou seja, é a violação de um ou vários direitos inerentes à personalidade
de um sujeito de direito. Notadamente, a noção de direito de personalidade não pode ser
aplicada de forma restritiva, mas deve ser ampliada para abranger o mais importante desses
direitos, que é a tutela da vida humana146.
Em síntese, pode-se definir o dano moral pelos seus próprios elementos; “como a
privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que
são a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a
integridade física, a honra e os demais sagrados afetos”; como fez Yussef Said Cahali147.
Assim, atualmente, o dano moral foge daquela noção de dor, aproximando-se,
intrinsecamente, como quis a Constituição Federal, dos direitos de personalidade, na
145
Luis Díez-Picazo explica que conceituar negativamente o dano moral se trata de puro escapismo de
problemas decorrentes da lógica ou da pura exegese do ordenamento jurídico, que resultam muito difíceis de
serem resolvidos. In DÍEZ-PICAZO, Luis. Em Torno al Daño Moral. P. 248, In ANDRADE, Manuel da
Costa et al (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Vol. IV, Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, pp. 241/256.
146
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 262/263.
147
CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 20.
60
medida em que eles oferecem um conjunto de situações definidas pelo sistema jurídico,
inatas à pessoa, cujo dano faz surgir, de forma direta, a pretensão aos danos morais, “de
modo objetivo e controlável, sem qualquer necessidade de recurso à existência da dor ou
do prejuízo. A responsabilidade opera-se pelo simples fato da violação (damnu in re
ipsa)”148. Dessa sorte, constatada a lesão a direito de personalidade, fato consequente é a
necessidade de reparação do dano moral.
Certamente, esses estados psicológicos de que padece a vítima de um dano
extrapatrimonial constituem não o dano em si, mas suas consequências ou repercussão. É
normal e até aceitável essa confusão do dano com o resultado por ele provocado. Dano
moral e dor (física ou moral) acabam sendo vistos como um só fenômeno. No entanto, é
certo que essa noção deva ser afastada, de forma que o dano – fato logicamente
antecedente – não deve ser confundido com a impressão que ele causa na mente ou na alma
da vítima – fato logicamente subsequente.
É exatamente para esse ponto que André Gustavo Corrêa de Andrade chama
atenção, explicando que “as dores, angústias, aflições, humilhações e padecimentos que
atingem a vítima de um evento danoso não constituem mais do que a conseqüência ou
repercussão do dano (seja ele moral ou material)”. Dessa forma, assim como nem todo
mal-estar gera um dano moral, nem toda lesão extrapatrimonial é capaz de configurar um
mal-estar. A falha da argumentação, para o autor, reside na necessidade de aproximação
que se pretende fazer entre o dano moral e o dano patrimonial. Com efeito, a diversidade
de natureza dos bens atingidos impossibilita a aproximação das duas espécies de dano.
Essa associação do dano moral à dor, ao sofrimento ou a outros sentimentos negativos
decorre da concepção usual de que o dano deva ser identificado com alguma alteração
naturalística, provocada por algum comportamento ou acontecimento149.
148
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n.
119, 31 out. 2003. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/4445, consultado em 29/2/2012.
149
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A Evolução do Conceito de Dano Moral. In
http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_civil/a_evolucao_do_conceito_de_dano
_moral.pdf, consultado em 13/2/2012, pp. 5/6 e 13.
61
Seria válido, portanto, concluir que o dano moral não está associado ao sentimento,
mas relacionado à violação de uma classe especial de direitos, fundamentais para o
homem, denominados direitos personalíssimos150.
De fato, a dor ou, mais amplamente, a afetação do bem-estar psicofísico não deve
ser considerada pressuposto necessário para caracterização do dano moral, como refere
Leonardo Roscoe Bessa: “Naturalmente, a perturbação do estado anímico da pessoa, bem
como sua intensidade, são elementos que devem servir de ponderação na quantificação da
indenização por dano moral”151.
Nesse mesmo sentido, Eduardo Zannoni fundamenta que o dano moral não é
representado pela dor ou outros padecimentos, que são variáveis em cada caso e sentidos
de forma diferente por cada indivíduo, e que podem estar vinculados tanto a direitos
patrimoniais como a direitos extrapatrimoniais. O dano extrapatrimonial ocorrerá quando
houver lesão a uma faculdade de atuar que impede ou frustra a satisfação ou gozo de
interesses não patrimoniais reconhecidos à vítima do evento danoso pelo ordenamento
jurídico152. Certamente, a dor que experimentam os pais pela morte do filho, ou o
padecimento ou complexo de quem suporta um dano estético são estados de espírito
contingentes e variáveis em cada caso, pois cada pessoa sente a seu modo153.
Assim, no dano moral, a lesão a um interesse tutelado repercute de forma
inteiramente diferenciada sobre cada pessoa, não havendo um critério objetivo que permita
a sua precisa aferição. Por esse motivo que não é crível fazer depender a configuração do
dano moral a um momento consequencial (dor, sofrimento), tampouco defini-lo por via
negativa, como todo prejuízo economicamente incalculável, eis que isso acaba por
convertê-lo em figura receptora de todos os anseios, dotada de uma vastidão tecnicamente
insustentável. O correto, portanto, é defini-lo como a lesão a um interesse tutelado, que
150
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na
experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009, p. 38.
151
BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, p. 96.
152
ZANNONI, Eduardo A. El Daño en la Responsabilidad Civil. 2ª edição, Buenos Aires: Astrea, 1993, p.
289/290.
153
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição,
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 548.
62
estimula a investigação sobre o objeto da lesão, com a finalidade de aferir-se o seu
merecimento de tutela ou não, para que sejam selecionados os danos ressarcíveis154.
Novamente recorrendo-se à lição de Maria Celina Bodin de Moraes, que traça com
clareza esse debate atual acerca da noção de dano ressarcível: de um lado, há aqueles que
identificam o dano com a antijuridicidade, ou seja, com a violação culposa de um direito
ou de uma norma, e, de outro, aparecem os defensores da teoria do interesse, atualmente
majoritária, que o vinculam à lesão de um interesse juridicamente protegido155.
A primeira corrente acaba interpretando o sistema da responsabilidade civil como
se fora típico, uma vez que somente da violação de normas que reconhecem direitos
subjetivos absolutos admite-se o surgimento da sanção civil.
Por outro lado, a outra teoria desvincula o conceito de dano da noção de
antijuridicidade, adotando critérios mais amplos, que englobam não apenas direitos, mas
também interesses que, considerados dignos de tutela jurídica, obrigam à reparação sempre
que lesionados. E é aí que reside a tutela ressarcitória com base na clausula geral de
responsabilidade. Deve-se, porém, segundo essa ótica, indicar os critérios para a
identificação da qualidade do interesse, se e quando deve ser considerado digno de tutela
jurídica, procedendo-se a essa ponderação de interesses à luz dos princípios
constitucionais.
Como demonstra a autora, aquela visão de dano moral subjetivo, associado à
antijuridicidade, cedeu lugar à definição de dano moral como a lesão a um direito da
personalidade, concebendo-o como a lesão a interesse juridicamente protegido. Isso porque
“melhor do que se restringir a modelos típicos específicos de direitos subjetivos é recorrer
a uma cláusula geral de tutela da personalidade”, conceituando-se, então, o dano moral
como a lesão à dignidade da pessoa humana, ou melhor, como a “lesão a algum desses
aspectos ou substratos que compõem, ou conformam, a dignidade humana, isto é, a
154
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 101/102.
155
MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a
responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A
constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 240/247.
63
violação à liberdade, à igualdade, à solidariedade ou à integridade psicofísica de uma
pessoa humana”. Apenas alerta a autora que, quando estes princípios entrarem em colisão
entre si, será preciso ponderar, através do exame dos interesses em conflito, tais princípios
em relação a seu fundamento, isto é, a própria dignidade humana156.
Por corresponder à lesão a um interesse juridicamente protegido, analisado no caso
concreto, mostra-se também sem rigor técnico admitir-se que o dano extrapatrimonial
ocorra in re ipsa, para que seja procedida à reparação sem a necessidade de produção de
prova, resultando essa observação na terceira crítica ora apontada. De fato, a prova da dor
deve, sim, ser dispensada, não porque seja inerente à ofensa sofrida pela vítima, mas
porque o dano moral independe da dor, consistindo, antes, na própria lesão, e não nas
consequências negativas que tal lesão pode vir a gerar.
Dessa forma, a pretendida dispensa da prova do dano moral abarca tão-somente as
consequências da lesão sobre a sensibilidade da vítima, não já a lesão em si. Assim, quem
tem sua imagem utilizada em um outdoor, por exemplo, tendo as suas virtudes ressaltadas,
pode, na prática, alegrar-se com a exposição, mas o simples fato de não tê-la autorizado
configura, por si só, uma lesão concreta a seu direito personalíssimo de imagem, tratandose, portanto, de dano indenizável. Nada disto quer significar que baste a alegação em tese
da lesão. Exige-se a prova da concreta afetação do direito personalíssimo para que derive a
obrigação de compensação. Ocorre que, em alguns danos, a prova é relativamente simples,
porque vem dotada de materialidade 157.
Atualmente, portanto, ainda que se admita um dano moral vinculado à ideia de um
abalo psíquico, de uma dor, um sentimento, não há como, em contrapartida, deixar de
156
MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a
responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A
constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 240/247. Importante ressaltar a irresignação da autora em relação à vinculação do dano
moral à ideia de sentimento, impondo severa crítica a essa conceituação: “O fato é que a reparação dos
danos morais não pode mais operar, como vem ocorrendo, no nível do senso comum. Sua importância no
mundo atual exige que se busque alcançar um determinado grau de tecnicidade, do ponto de vista da ciência
do direito, contribuindo-se para edificar uma categoria teórica que seja elaborada o suficiente para
demarcar as numerosas especificidades do instituto. A ausência de rigor científico e objetividade na
conceituação do dano moral têm gerado obstáculos ao adequado desenvolvimento da responsabilidade civil
além de perpetrar, cotidianamente, graves injustiças e incertezas aos jurisdicionados” (p. 244).
157
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 193/194.
64
defini-lo como a lesão a um interesse tutelado, representado por um direito de
personalidade, o que denota a contemporânea visão sob a qual é enxergado esse instituto,
de forma objetiva e atenta à tutela dos interesses juridicamente protegidos pelo
ordenamento. Deve, dessa forma, ser afastada a ideia de que todo dano extrapatrimonial
decorra de um sentimento da vítima, e que dispense comprovação de ocorrência. Da
mesma forma como qualquer prejuízo, deve o dano extrapatrimonial ser comprovado,
mediante a demonstração da afetação de um direito da personalidade.
2.3 AS
FUNÇÕES
PUNITIVA
E
PREVENTIVA
DO
DANO
EXTRAPATRIMONIAL: É POSSÍVEL QUE ELE EXERÇA ESSAS
FUNÇÕES?
Superada a questão a respeito da classificação do dano moral, mediante a sua
correta conceituação, volta-se à discussão sobre a possibilidade de punição e prevenção
que deve – ou deveria – ser alcançada com a indenização dessa lesão.
Em razão da falta de instrumentos repressivos da conduta do agente, e ante a
falência do sistema penal brasileiro, atualmente, doutrina e jurisprudência encontraram, no
dano extrapatrimonial, um mecanismo de desestímulo e punição ao ofensor, retirando da
indenização o seu viés único de compensação à violação a um direito de personalidade da
vítima. Com a retomada da culpa na análise da conduta do agente, ampliou-se a aplicação
do dano moral para dar guarida tanto a uma ideia de punição quanto de prevenção.
Tanto doutrina quanto jurisprudência mostram-se vacilantes a respeito da adoção de
uma carga punitiva ao dano moral, que, ao acrescer um plus à indenização, acabaria
assegurando o cumprimento da função preventiva da Responsabilidade Civil.
Como explica Maria Celina Bodin de Moraes, pela análise da jurisprudência do
STJ, aderiu-se recentemente à tese do caráter punitivo, em sua faceta de desestímulo ao
ofensor. Já há algum tempo, o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira tentava inserir a
orientação a ser seguida pelo magistrado nos casos de reparação do dano moral, como se
65
observa do resultado do julgamento do Recurso Especial nº 85.205, de abril de 1997, que
afirmava ter o juiz, na fixação dos danos morais, de se orientar pelos critérios
recomendados “pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua
experiência e bom-senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades do caso”. A partir
de 1998, o entendimento dessa Corte Superior mudou, e as ementas dos acórdãos passaram
a fazer referência à fixação proporcional ao “grau de culpa” e ao “porte econômico das
partes” – critérios de punição em si mesmos –, além da indicação expressa à necessidade
de “desestimular o ofensor a repetir o ato” – critério este eminentemente preventivo158.
Obtempera Anderson Schreiber que a doutrina dos punitive damages norteamericanos tem sido discutida e utilizada no Brasil, vivendo-se, entretanto, uma situação
claramente anômala, na medida em que eles não vêm admitidos como parcela adicional de
indenização, mas aparecem embutidos na própria compensação do dano moral. A doutrina
fundamenta um duplo caráter da reparação do dano moral: caráter compensatório, para
assegurar o sofrimento da vítima; caráter punitivo, para que o causador do dano se veja
castigado pela ofensa que praticou159.
Nesse mesmo sentido, grande parte das cortes brasileiras não só tem chancelado o
duplo caráter do dano moral, como tem aplicado, na sua quantificação, critérios
deliberadamente punitivos, amparando-se, usualmente, em quatro requisitos: gravidade do
dano; capacidade econômica da vítima; grau de culpa do ofensor; e capacidade econômica
do ofensor. Esses dois últimos critérios denunciam uma função exclusivamente punitiva, já
que não dizem respeito ao dano em si, mas à conduta e, mais gravemente, à pessoa do
ofensor.
Ao combinar critérios punitivos e critérios compensatórios, a prática brasileira
distancia-se do modelo norte-americano, que distingue claramente compensatory damages
e punitive damages. Com isso, cria-se, no Brasil, uma espécie bizarra de indenização, em
que ao responsável não é dado conhecer em que medida está sendo apenado, e em que
158
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 225.
159
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 199.
66
medida está simplesmente compensando o dano, atenuando, exatamente, o efeito
dissuasivo que consiste na principal vantagem do instituto160
Por essas e outras razões, a doutrina é dividida a respeito da possibilidade de
aplicação de uma sanção punitiva, atrelada a um dano moral, ou mesmo de um acréscimo
dissuasório na indenização.
Mas já de há muito que o dano moral é também considerado como uma espécie de
instrumento expiatório, carregado de caráter exemplar, sendo a soma em dinheiro paga
pelo ofensor utilizada “para que ele sinta de alguma maneira o mal que praticou”161.
Há algumas décadas, Carlos Alberto Bittar apontava para a conscientização da
doutrina sobre a necessidade de fazer o agente sentir as consequências da resposta do
ordenamento jurídico, para que o próprio sistema tivesse eficácia, como também de dotar a
reparação cabível de expressão que servisse de exemplo para a sociedade, “tudo para a
realização efetiva de sua função inibidora162”.
Teresa Ancona Lopez também acenou para essa ideia “de pena ou expiação, em
relação ao culpado, e a de satisfação, relativa à vítima”. Suscita a autora que a soma em
dinheiro paga a título de satisfação deve ocupar um lugar intermediário entre a indenização
e a pena, devendo-se avaliar o tamanho do dano, como também o grau de culpa do ofensor,
sem se olvidar da aferição sobre a participação da vítima na concretização da lesão163.
Por sua vez, Carlos Roberto Gonçalves constata que tem prevalecido o
entendimento de que a reparação do dano moral apresenta duplo caráter: compensatório
para a vítima e punitivo para o ofensor. Assim, ao mesmo tempo em que serve de consolo
para a vítima, atua como fator de desestímulo ao infrator, como forma de sanção. No
160
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 199/201.
161
MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Ressarcimento de Danos. 3ª edição, Rio de Janeiro: Âmbito
Cultural Edições Ltda., 1985, p. 129.
162
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.
217.
163
LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 139/140.
67
entanto, garante que a função principal do dano moral é a recomposição dos bens lesados
da vítima164.
Ao estudar a validade da indenização por danos morais, José de Aguiar Dias
apontava para a ligação entre reparação e pena, quando resolvida em dinheiro, porquanto
empregada na satisfação do prejudicado, “proporcionando-lhe o solatium, apaziguamento,
e conseguindo alteração do sentimento e da vontade”. Essa função, para ele, ofereceria
satisfação “à consciência de justiça e à personalidade do lesado, e a indenização pode
desempenhar um papel múltiplo, de pena, de satisfação e de equivalência”165.
Para Matilde Zavala de González é possível existir uma função dissuasória da
indenização por dano moral, em cumprimento à função punitiva do Direito de Danos.
Afirma ela que não se deve aumentar o valor indenizatório, para que se impila o ofensor a
não reiterar o ato, mas também que o montante não pode ser ínfimo, de forma a nem
mesmo indenizar a vítima. No entanto, consigna que toda condenação por danos
extrapatrimoniais, ainda que imediatamente sirva à compensação da vítima, deve,
mediatamente, desestimular futuras atividades lesivas. Se o causador do dano sabe,
antecipadamente, que não lhe recairão gravosas consequências, continuará agindo com
indiferença, devendo ser dimensionada a indenização na exata medida do dano causado,
sem um plus excessivo para a vítima166.
Entende a mesma autora que, por vezes, são impostas pelos magistrados cargas
indenizatórias tão elevadas que evidenciam esse plus, donde subjaz uma finalidade
punitiva da indenização, o que seria inconstitucional, por distorcer a reparação de danos e
impor uma carga ao responsável, que lesiona indevidamente seu direito de propriedade. Se
a indenização possui o jaez de punição, deve ser explícita – não embutida no montante dos
danos morais –, além de preencher os pressupostos usualmente requeridos (v.g. ilícito
lucrativo)167.
164
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição,
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 566/568.
165
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume II, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.
423.
166
GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009,
pp. 56/57.
167
GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, p.
328/329.
68
Já Caio Mário da Silva Pereira sustenta que na reparação por dano moral estão
conjugados dois motivos, ou duas concausas: I) uma punição ao infrator pelo fato de haver
ofendido um bem jurídico da vítima, posto que imaterial; e II) assegurar ao ofendido uma
soma que não é o pretium doloris, “porém o meio de lhe oferecer a oportunidade de
conseguir uma satisfação de qualquer espécie, seja de ordem intelectual ou moral, seja
mesmo de cunho material o que pode ser obtido “no fato” de saber que esta soma em
dinheiro pode amenizar a amargura da ofensa e de qualquer maneira o desejo de
vingança”168.
Para Mário Moacyr Porto, adepto do exercício de uma função punitiva nos danos
morais, a indenização revela uma “reparação satisfatória doublé de pena privada”,
perfazendo função de atenuar as consequências do sofrimento injusto e castigar o
responsável de ter causado o sofrimento que abateu a vítima169170.
Na doutrina de Antonio Jeová Santos é possível claramente encontrar aquela
anomalia descrita por Anderson Schreiber, ao determinar que a indenização por danos
morais, além do caráter ressarcitório, serve também como sanção exemplar. Assim,
determina-se o montante, segundo o autor, tendo em vista a gravidade objetiva da lesão,
assim como a repercussão que o dano teve na vida do prejudicado, apurando-se um valor
que faça com que o ofensor se evada de novas indenizações, evitando outras infrações
danosas171. Ou seja, pune-se o ofensor, sem levar-se em consideração a gravidade de sua
conduta, já que a análise é objetiva e voltada à gravidade da lesão, não se dando a ele saber
por que e em que grau está sendo apenado.
Demonstra Paula Cristina Lippi Pereira de Barros que essa tendência de aplicação
de uma punição associada ao dano moral é fomentada por duas razões: uma de ordem
qualitativa, que consiste no fato de que cada pessoa sofre o dano de forma diversa, já que
168
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, de acordo com a Constituição de 1988. 3ª
edição, Rio de Janeiro: Forense, 1992, pp. 315/316.
169
PORTO, Mário Moacyr. Temas de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 32.
170
Nesse mesmo sentido, Américo Luís Martins da Silva aponta uma dupla função da compensação do dano
moral: de expiação e de satisfação. Essa função expiatória atribui à compensação um caráter de pena, cuja
finalidade é acarretar perda ao patrimônio do culpado e, ainda mais, faz parte de um complexo pedagógico
para o desenvolvimento das relações sociais, tal como no caso da aplicação de uma multa de trânsito. In
SILVA, Américo Luís Martins da. O Dano Moral e a Sua Reparação Civil. 2ª edição, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 62.
171
SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. São Paulo: Lejus, 1997, p. 58.
69
ele ocorre na esfera íntima e moral; e outra de ordem quantitativa, na medida em que o
valor em pecúnia não poderá reparar a mácula moral, sendo impossível retornar ao status
quo ante. Assim, observa-se uma valoração das indenizações a partir de critérios punitivos
aplicados ao ofensor, com o objetivo de satisfazer o dano extrapatrimonial provocado no
lesado. Cria-se, dessa forma, uma figura estranha aos punitive damages, assim como à
própria estrutura da responsabilidade civil do sistema romano-gêrmanico, porquanto o
ofensor é condenado ao pagamento de um valor pecuniário que para ele representa uma
punição, ao mesmo tempo em que é esse mesmo numerário destinado ao lesado, para
compensação da lesão que sofreu172.
Notadamente, o legislador não é indiferente a essa realidade, que abarca cada vez
mais adeptos a uma função punitiva do dano moral, muito embora não tenham sido ainda
aprovados os Projetos de Lei que tentaram trazer o aspecto punitivo a esse tipo de
indenização. A exemplo disso, cite-se o Projeto de Lei nº 6.960/2002, do Deputado
Ricardo Fiuza, apresentado em junho de 2002, que sugeria a inclusão de um segundo
parágrafo ao artigo 944 do Código Civil, referindo um caráter de compensação e
desestímulo do dano moral173.
Na mesma esteira foi o Projeto de Lei nº 2.496/2007, do Deputado Vital do Rêgo
Filho, que pretendia a inserção de um parágrafo único ao artigo 6º do Código de Defesa do
Consumidor, também com a formulação de um aspecto punitivo à indenização por dano
moral174.
Ocorre que ambos os referidos Projetos de Lei apresentavam caráter sobremaneira
genérico, o que foi visto como um “cheque em branco” ao magistrado para o aumento da
indenização, porquanto não previstos critérios para a concretização desse desestímulo ou
punição.
172
BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial
do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC/SP p. 109, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf,
consultado em 7/10/2013.
173
“A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao
lesante”.
174
“Parágrafo único. A fixação do valor devido a título de efetiva reparação de danos morais atenderá,
cumulativamente, à função punitiva e à função compensatória da indenização."
70
Tanto assim foi que o Deputado Júlio Delgado, relator designado pela Comissão de
Defesa do Consumidor, em que pese tenha reconhecido os “aspectos irrecusavelmente
relevantes para a defesa do consumidor e para as relações de consumo” do Projeto de Lei
nº 2.496/2007, entendeu ser ele “vago no tocante à forma como tal proposta deve ser
implementada na prática, perpetuando a dificuldade atual em mensurar-se a extensão dos
danos morais”, apresentando, dessa forma, um substitutivo. Curioso notar que, dentre as
proposições sugeridas, na fixação da indenização, o magistrado deveria levar em conta “a
situação social, política, econômica e creditícia das pessoas envolvidas, as condições em
que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral, a intensidade do sofrimento ou humilhação”, e,
ainda, “o grau de dolo ou culpa, a existência de retratação espontânea, o esforço efetivo
para minimizar a ofensa ou lesão e o perdão, tácito ou expresso”, sem deixar de se balizar
pelo impedimento do enriquecimento sem causa.
O fato é que, como ressalta Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, no Brasil, a
primeira dificuldade encontrada na utilização da indenização punitiva é justamente essa
ausência de texto legal autorizador dessa prática. Para o autor, sem texto legal expresso, a
indenização punitiva acaba encontrando óbice na função indenitária do princípio da
reparação integral175.
No entanto, atualmente, longe de se aproximar da figura dos punitive damages, os
Tribunais brasileiros têm aplicado indenizações por danos extrapatrimoniais com natureza
punitiva. Isso ocorre, também, em função dos problemas práticos enfrentados atualmente
pelo direito criminal, que passa por uma grave crise de identidade, em razão dos obstáculos
encontrados para uma adequada execução das penas impostas pelos juízes. Certamente, as
penas privativas de liberdade, aplicadas aos crimes mais graves, têm se mostrado
sobremaneira rigorosas, tomando um caminho contrário ao escopo de sua função: a
ressocialização do criminoso.
Por outro lado, nos casos menos graves e pequenos delitos, as soluções oferecidas
pelos juizados especiais criminais ocasionam, para a vítima, um sentimento de impunidade
do ofensor, o que acaba levando o ofendido à procura de uma solução indenizatória, em
175
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 74 e 273.
71
virtude desse descontentamento com o resultado final da ação penal. Nessas ações, em
grande parte das vezes, as vítimas não buscam apenas a compensação pelos prejuízos que
sofreram, mas uma verdadeira punição econômica para o ofensor, que constitui uma
verdadeira pena privada. Dessa forma, “o agravamento ou redução da indenização em
conformidade com o dolo ou o grau de culpa do ofensor confere à indenização uma
inequívoca natureza de pena privada”. De igual forma, a função preventiva da
indenização, ligada umbilicalmente à sua função punitiva, surge, na jurisprudência, para
fazer valer o aspecto didático-pedagógico dessas decisões, especialmente nas ações de
indenização promovidas contra as grandes empresas, fazendo com que elas passem a
adotar medidas preventivas, justamente para evitar a repetição do ilícito de mesma
natureza176.
Retomando o magistério de Maria Celina Bodin de Moraes, a distinção feita entre
função punitiva e função preventiva – esta última utilitarista, na medida em que utilizada
para prevenir danos futuros, e não para retribuir danos passados – acaba trazendo certa
carga de injustiça nas sentenças. Isso porque é possível que uma conduta gravemente
dolosa possa não constituir pré-requisito necessário e suficiente à imposição de penalidade,
justamente por ser de difícil repetição. Por outro lado, uma conduta menos grave, mas de
fácil imitação, mereceria, na finalidade preventiva, uma condenação maior, o que acaba
não sendo bem apreciado pelas “sentenças exemplares”. A solução para a aplicação da
pena privada seria normatizar as fattispecie merecedoras, indicando claramente os critérios
que devem ser levados em conta, para que a autorização não se transmude em um “cheque
em branco”177.
A adoção, sem restrições, do caráter punitivo, ao arbítrio do juiz, coloca em risco o
princípio da legalidade, que dispõe nullum crimen, nulla poena sine lege. Grande parte dos
danos morais, aos quais é possível impor uma indenização punitiva, configura-se também
como crime, motivo pelo qual acaba sendo desrespeitado o bis in eadem, já que o ofensor
estaria sendo punido duplamente178.
176
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 74 e 273/275.
177
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 225/227.
178
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 260.
72
Não apenas a antes referida autora, mas também Gustavo Tepedino e Heloisa
Helena Barbosa, contrários à atribuição de caráter punitivo à indenização por danos
morais, elencam diversos motivos impeditivos à materialização dessa função: i) a adoção
da função punitiva violaria o princípio da legalidade, segundo o qual nulla poena sine
praevia lege, resultando, ainda, em menor número de garantias ao réu, em decorrência de
aplicação da pena em âmbito de processo civil e não penal; ii) traria risco de grave bis in
idem, pela cumulatividade da responsabilidade civil com a responsabilidade criminal; iii) a
majoração da indenização, a título de punição, pode recair sobre outra pessoa, que não o
agressor, a exemplo das hipóteses de responsabilidade por fato de terceiro; iv) pode o
ofensor ter afastado o risco da pena por meio de um seguro; v) toda a sociedade pode vir a
arcar com o custo da pena privada, v.g. em casos de responsabilidade do agente público;
vi) poderia haver subversão do sistema de responsabilidade civil, desestimulando-se a
invocação da responsabilidade objetiva179.
Além disso, André Gustavo Corrêa de Andrade elenca outro problema, relacionado
à desnecessidade de punição de todos os tipos de conduta. Desempenhando esse papel
misto que doutrina e jurisprudência procuram lhe empregar, o dano moral sempre acabaria
desempenhando as funções compensatória e punitiva, mesmo que o comportamento do
ofensor não tenha sido reprovável ou particularmente grave. Esse problema é percebido na
jurisprudência, em que, sempre que há possibilidade de majorar a indenização, em razão de
conduta ultrajante, não é aumentado o seu valor pelo Superior Tribunal de Justiça. Pelo
contrário, verifica-se uma reiterada limitação dos valores indenizatórios por esta Corte
Superior que, embora acene com a possibilidade de incrementar o valor indenizatório,
raramente encontra oportunidade de fazê-lo, enquanto, de modo oposto, com bastante
frequência, exercita o poder de reduzir o quantum fixada pelas instâncias inferiores, por
considera-los abusivos180.
Por conseguinte, essa generalização da função punitiva da indenização por dano
moral, ao contrário de cumprir a sua função primordial de exemplificar e prevenir, acaba
anulando ou, no mínimo, enfraquecendo esse papel que deveria ser exercido pela
179
TEPEDINO, Gustavo et alli. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Volume
II, Rio de Janeiro: Renovar, pp. 863/864.
180
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do
Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
73
Responsabilidade Civil, tornando-se um “simples jargão, vazio de conteúdo”181. De nada
vale ao julgador, então, mencionar que a indenização por dano moral está cumprindo as
finalidades compensatória e punitiva, se na fixação do montante não levou em
consideração critérios punitivos, imprimindo um valor padronizado.
Assim, defende Renata Chade Cattini Maluf, embora recusando reconhecer à
responsabilidade civil uma função punitiva, que o direito brasileiro acaba, por via indireta,
valendo-se de aberturas laterais para excepcionar o caráter punitivo puramente ressarcitório
da reparação do ato ilícito, devendo o legislador instituir novas sanções civis, além
daquelas já existentes, com o fim de punir algumas espécies de condutas que levam ao
dano moral, levando-se também em conta a aceitação da responsabilidade punitiva pela
doutrina e jurisprudência182.
Por esse mesmo motivo que, atento a essa realidade, mas valendo-se, como visto,
do tratamento teórico equivocado, o Superior Tribunal de Justiça tem definido o valor das
indenizações por danos morais com a expressa consideração da necessidade de impor
àquele que praticou o ilícito: (a) a retribuição proporcional à ofensa perpetrada; e (b)
condenação que puna ou desestimule a reincidência tanto do próprio ofensor como de
outros potenciais ofensores183.
Certamente, além das reclamações anteriormente mencionadas por parte da
doutrina, percebe-se que as decisões que acabam se valendo dessa função punitiva
apresentam grave falha material, na medida em que, no mais das vezes, esse plus
indenizatório não vem claro em sua redação, impossibilitando ao ofensor discutir a sua
imoderação em outras instâncias. Também, atribuir à pena privada uma relação direta com
uma medida expiatória acaba fazendo com que se retorne à época da barbárie, em que os
problemas eram solucionados de acordo com o instrumento de vingança que a vítima
pretendia utilizar.
181
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do
Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
182
MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de
mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pp.149/150.
183
Como exemplo, veja-se o Recurso Especial nº 283.319, que decidiu: “A indenização por dano moral
objetiva compensar a dor moral sofrida pela vítima, punir o ofensor e desestimular este e a sociedade a
cometerem atos dessa natureza” in www.stj.jus.br, Terceira Turma, Relator Min. Pádua Ribeiro, julgado em
8/5/2001, consultado em 3/10/2011.
74
Além do mais, ante a rejeição ou protelamento desses Projetos de Lei que
procuraram atribuir ao dano moral uma função punitiva, é de se ver que não recebem eles
aceitação do Poder Legislativo, razão pela qual não se permite a utilização dessa via para a
inserção de uma pena privada no ordenamento jurídico brasileiro.
Tampouco parece ser da natureza do dano moral, malgrado o entendimento
doutrinário a favor, a imposição de indenização que não sirva apenas para compensar a
vítima, já que a ideia primordial das indenizações relacionadas a essa lesão, tal qual como
concebida, é repor aquilo que se perdeu, ou minorar ou compensar o prejuízo verificado.
Como coloca Nelson Rosenvald, é bastante comum encontrar decisões nos tribunais
superiores em que o quantum do dano moral é remetido a uma fórmula em que se levam
em conta a extensão da lesão ao bem jurídico da personalidade, a condição econômica do
ofensor e a punição que deve ser aplicada a ele, em razão da gravidade do seu agir. No
entanto, considera que constitui grave erro do magistrado aferir a malícia do agente ou o
seu desprezo pelas situações existenciais alheias ao momento da justificação e do cálculo
do valor do dano moral, porque, ao se confundir a função desestimuladora e a
compensatória, na mesma e única condenação, gera-se uma insatisfatória reparação dos
danos, como também uma insuficiente ou imperceptível prevenção e punição de
comportamentos lesivos184.
Misturar compensação e punição numa única indenização acaba não se prestando
para nenhuma das duas intenções: não há punição adequada, porque não se sabe qual o
valor destinado ao efeito profilático, tampouco, por vezes, é analisada a conduta do agente
(dolo ou culpa grave), assim como não há indenização razoável, porque, destinada
unicamente ao particular, não repara a sociedade que também padeceu do mesmo dano.
Nota-se da jurisprudência que os valores de condenações a danos morais, mesmo
quando analisados os elementos que teoricamente levariam à punição do agente, atendem a
um padrão que mal compensa a vítima pelo dano efetivamente sofrido. Com efeito, os
valores destinados à indenização por dano moral parecem obedecer um limite, como antes
184
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 182/184.
75
dito, ainda que se afirme estar-se aplicando uma penalidade, revelando, a toda evidência, o
despropósito de cumulação das funções compensatória e punitiva ao dano moral.
Essa visão contrária à cumulação de funções fica ainda mais clara nas situações em
que o dano causado, individualmente, não representa agressão ao direito da personalidade,
embora atinja, claramente, um grupo de pessoas. Nesse caso, nem se poderia cogitar a
aplicação de um dano moral para punição do ofensor e prevenção da repetição da conduta,
por que não atingida a esfera existencial do autor da ação, ficando tal situação
marginalizada de proteção àqueles efetivamente atingidos.
Assim, a imposição de uma função punitiva apenas seria correta quando, diante da
conduta particularmente ultrajante, mostrar-se necessário apresentar resposta à
coletividade, e não à vítima isoladamente considerada, já que a pena visa afastar aquela
conduta que se pretende expurgar da sociedade, que não representa um modelo a ser
seguido.
Certamente, a aplicação de indenização por dano moral, se se prestasse a,
realmente, considerar a extensão da lesão, compensando a vítima de forma digna, tornaria
desnecessária essa discussão sobre o aspecto punitivo e dissuasório, porque tanto o
ofendido já se sentiria reparado, quanto a vítima arcaria com valor considerável, que
serviria de desestímulo à reiteração do ato. O problema, portanto, na verificação das
indenizações por danos morais, é o seu valor ínfimo.
Pelos elementos demonstrados, o dano moral não pode se prestar, como ocorre
atualmente, a exercer funções punitiva e preventiva. A deturpação do dano moral, para que
se faça valer uma indenização punitiva, acaba tornando perigosa a estrutura sobre a qual se
pretende erigir um novo mecanismo de proteção da sociedade, colocando-a em xeque.
Certo é que a indenização por danos morais “deve ser suficiente para reparar o dano, o
mais completamente possível, e nada mais. Qualquer quantia a maior importará
enriquecimento sem causa, ensejador de novo dano”185.
185
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007, p.
90.
76
2.4 O
DANO
MORAL
COLETIVO:
UMA
TENTATIVA
DE
INDENIZAÇÃO PUNITIVA
Por certo, o Direito vem sofrendo profundas transformações, que, nas palavras de
Carlos Alberto Bittar Filho, podem ser sintetizadas pela palavra “socialização”,
conduzindo-o ao “primado claro e insofismável do coletivo sobre o individual”, cujos
reflexos fazem-se sentir – como não poderia deixar de ser – na teoria do dano moral186.
É o dano moral (referente à espécie do dano extrapatrimonial), aparentemente, a
válvula de escape da Responsabilidade Civil, servindo, atualmente, como a panaceia para
os problemas apresentados pela atual sociedade da tecnologia.
Assim, diante dos problemas sociais, que fogem do âmbito individual, recaindo
sobre a órbita coletiva – hoje se defendem os direitos dos grupos –, criou-se a figura do
dano moral coletivo.
Xisto Tiago de Medeiros Neto refere que o surgimento do dano moral coletivo
apenas acompanhou a própria evolução das espécies de danos e bens juridicamente
tutelados, que antes atingiam e reconheciam apenas pessoas físicas e jurídicas, passando a
abarcar grupos, categorias, classes de pessoas ou mesmo toda a coletividade, aos quais o
ordenamento jurídico conferiu titularidade de direitos e a prerrogativa jurídica de obter a
sua proteção judicial. Foi, então, a partir de novos interesses transindividuais, com a
visualização de inéditos e graves conflitos sociais, que se reconheceram novas
configurações de danos injustos, que demandaram imediata reação e resposta eficaz do
sistema jurídico187.
Parece claro que, se o indivíduo pode ser vítima de um dano moral, não há por que
não possa sê-lo a coletividade. Nas palavras de María Fabiana Compiani, dano coletivo,
186
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus
Navigandi, Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/
edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em:
http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013.
187
MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, p. 146/151.
77
em sentido amplo, é aquele que afeta várias pessoas, simultânea ou sucessivamente. Ou
seja, há uma pluralidade de vítimas de uma mesma lesão, podendo cada um ter sofrido
prejuízo a um interesse subjetivo diferente. Ou, em sentido estrito, denomina-se dano
coletivo aquele experimentado por um conjunto de pessoas que possuem um interesse
grupal ou social. Nesse caso, o prejuízo coletivo é único, ainda que seja ele estendido
indivisivelmente a uma pluralidade de indivíduos insertos que detenham um interesse
comum. Esse dano é verificado mesmo quando não haja qualquer prejuízo individual 188.
Mas, para falar sobre dano moral coletivo, deve-se ter em mente o sentido de
coletividade, que se define pelo “grupo mais ou menos extenso de indivíduos que possuem
interesses comuns”189. Verifica-se, assim, que da composição do tecido da coletividade
emergem os valores, que resultam, em última instância, da amplificação dos valores dos
indivíduos da coletividade. Assim como cada indivíduo carrega sua carga de valores,
também a comunidade, justamente por ser um conjunto de indivíduos, tem uma dimensão
ética. E esses valores coletivos dizem respeito à comunidade como um todo,
independentemente de suas partes, apresentando um caráter nitidamente indivisível, não
podendo, por isso mesmo, ser decompostos num feixe de interesses individuais. Esses
valores enquadram-se numa categoria maior, no “fenômeno cultural”190.
A categoria do dano moral coletivo foi criada, portanto, para proteção dos direitos
emergentes referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao
patrimônio comum da comunidade, aos quais Paulo Bonavides define como direitos de
terceira geração191.
Verifica-se, desse modo, que a proteção dos valores morais não está mais restrita
aos valores morais individuais da pessoa física, reconhecendo-se valores morais próprios a
188
COMPIANI, María Fabiana. Responsabilidad por daños colectivos. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, SP, ano 9, n. 36, p. 185-198, out.-dez. 2000, p. 191.
189
Houaiss Eletrônico, versão monousuário 1.0, junho de 2009.
190
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus
Navigandi, Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/
edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em:
http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013.
191
BONAVIDES, Paulo. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6.
78
outros entes que, caso lesados, também merecerão a devida compensação 192. Trata-se,
desse modo, da proteção a interesses transindividuais, que podem ser coletivos ou difusos,
segundo a sua titularidade esteja circunscrita a um grupo ou a uma generalidade
indeterminada de sujeitos193194.
Dessa sorte, para tratar de uma ação coletiva ou mesmo de um dano coletivo
(patrimonial ou moral), é preciso que se tenha em mente um bem coletivo. Não é
suficiente, para a caracterização de bem coletivo, que o bem não pertença a uma única
pessoa, mas a muitas pessoas; nem que pertença a muitas pessoas e seja indivisível. Com
efeito, o bem coletivo se caracteriza pela indivisibilidade dos benefícios, ou seja, de que
não haja apropriação privada; que seja de uso comum (propriedade difusa); e que detenha
status normativo, que seja reconhecido em Lei, tenha reconhecimento deontológico, no
sentido de que sua proteção deve estar ordenada, trazendo, como exemplos, o meio
ambiente, o patrimônio cultural, direitos de proteção ao consumidor, transparência na
informação, a liberdade etc.195.
Leonardo Roscoe Bessa explica que o surgimento de movimentos sociais, nas
últimas décadas, gerou o reconhecimento de um direito social, e mostrou que a
configuração processual clássica, individualizada, era absolutamente incapaz de absorver e
dar resposta satisfatória aos novos litígios, que ficavam marginalizados e acabavam
gerando mais conflituosidade. Esse direito social, que não podia mais ser encarado como
mera expressão de garantias dos indivíduos, mas como garantia de grupos, necessitava de
192
RAMOS, André de Carvalho. A ação civil pública e o dano moral coletivo. In
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/6772-6771-1-PB.htm, consultado em 2/10/2013, p.
2.
193
COMPIANI, María Fabiana. Responsabilidad por daños colectivos. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, SP, ano 9, n. 36, p. 185-198, out.-dez. 2000, p. 192
194
Segundo Fernando Noronha, foi o Código de Defesa do Consumidor que deu uma disciplina jurídica aos
direitos transindividuais, dividindo-os em coletivos e difusos. A diferença entre ambos se dá na
indeterminação dos titulares, que é característica dos direitos difusos, enquanto nos direitos coletivos é
possível determina-los, ainda que não no momento da propositura da ação. Dessa forma,os interesses difusos
são de todos em geral, e de ninguém em particular, ao passo que os coletivos são das pessoas pertencentes a
um grupo ou a uma categoria. Assim, os interesses coletivos poderiam ser representados pelo exemplo dos
membros de uma associação de classe ou dos contribuintes de um mesmo tributo, enquanto os difusos
poderiam ser enquadrados, por exemplo, nas vítimas de publicidade enganosa ou abusiva, ou da colocação no
mercado de produtos com alto grau de nocividade. NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações :
Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v.
1, pp. 573/574.
195
LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D,
1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, pp. 13/14.
79
novas ferramentas de proteção, que foram asseguradas tanto pela Constituição Federal
quanto por leis ordinárias196197.
Esse grupo social nada mais é do que o homem em sua dimensão social, “não se
distinguindo a sua natureza (coletiva) da de seus integrantes. Assim, a positivação da
coletividade, como titular de interesses jurídicos, seria a expressão de ser das pessoas no
plano social, como partícipes de um vasto elenco de interesses comuns, que,
compartilhados por todos, “são-lhes essenciais à vida, integrando, assim, a esfera da
dignidade de cada um dos respectivos membros da coletividade, de maneira a ensejar a
sua plena proteção jurídica“. Verifica-se, assim, que não apenas o indivíduo é dotado de
determinado padrão ético, mas também o são as coletividades, que titularizam direitos.
Mesmo não detendo personalidade, ao menos nos moldes clássicos concebidos pela teoria
do Direito, as coletividades possuem valores e um patrimônio ideal, que gozam de
proteção jurídica198.
Desse modo, vê-se que o dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de
uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de
valores coletivos. Quando diante de um dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao
fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade, idealmente considerado, é
injustamente agredido; “quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria
cultura, em seu aspecto imaterial”199.
Diante da afronta a valores comuns ou bens da coletividade, podem ser
vislumbradas
consequências
imateriais
que
são
coletivas,
ou
difusas,
“assim
indeterminadas, todavia nem por isso um dano a ninguém. Muito ao contrário, erige-se
potencialidade lesiva extrapatrimonial a todo um grupo”200.
196
BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, pp. 82/83
197
Citem-se, apenas como exemplo, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública.
198
MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, pp. 154/157.
199
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus
Navigandi, Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/
edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em:
http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013.
200
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Alguns apontamentos sobre o dano moral, sua configuração e o
arbitramento da indenização. P. 379. In CASSETTARI, Christiano. 10 anos de vigência do Código Civil
Brasileiro de 2002. Saraiva: São Paulo, 2013, pp.373/388.
80
Mediante o reconhecimento de direitos coletivos, passou-se a categorizar o dano de
acordo com os interesses jurídicos verificados, da seguinte forma: i) de interesse
individual, que ocorre no âmbito individual do lesado, decorrendo daí a sua legitimação
para a propositura da ação; ii) interesses pluri-individuais homogêneos, no qual o interesse
continua sendo individual, assim como a legitimação para a propositura da ação, mas há
uma homogeneidade de interesses, suscetíveis de uma decisão única; iii) interesse
transindividual coletivo, no qual o titular do direito é o grupo, que resulta legitimado para
pleiteá-lo judicialmente, certo de que os seus efeitos obrigam o próprio grupo; iv)
interesses transindividuais difusos, que importam a sociedade em seu conjunto ou uma
generalidade indeterminada de sujeitos, que detêm um interesse geral, indivisível, com a
designação de um representante legitimado: o Estado201.
Mas, tal qual ocorreu com o dano moral individual, o dano moral coletivo não
apresentou aceitação inicial, especialmente pela jurisprudência pátria, que, ainda vinculada
à ideia de dor e sofrimento, não conseguia vislumbrar a compatibilidade entre um dano
extrapatrimonial e direitos transindividuais. O reconhecimento de uma ofensa moral,
portanto, estaria restrita a uma pessoa, e não a um grupo ou a sociedade, como ficou claro
no julgamento do Recurso Especial nº 598.281, do Superior Tribunal de Justiça:
“É perfeitamente viável a tutela do bem jurídico salvaguardado pela
Constituição (meio ambiente ecologicamente equilibrado), tal como a realizada
nesta ação civil pública, mediante a determinação de providências que
assegurem a restauração do ecossistema degradado, sem qualquer referência a
um dano moral”202.
No entanto, como se verá ao longo deste trabalho, o entendimento dos Tribunais
brasileiros, paulatinamente, começou a se adequar à ideia de um dano moral coletivo – que
201
LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D,
1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, p. 6.
202
In www.stj.jus.br, 1ª Turma, relator Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 2/5/2006, consultado em
10/3/2011. É importante mencionar que o resultado não foi unânime. O Ministro Luiz Fux apresentou voto
divergente, sob o argumento de que “o meio ambiente ostenta na modernidade valor inestimável para a
humanidade, tendo por isso alcançado a eminência de garantia constitucional”, frisando ainda que “a
Constituição Federal e a Lei 7.347/95 estabelecem a possibilidade de reparação civil por danos morais
causados ao meio ambiente, além do dever de indenizar os danos patrimoniais”.
81
já estava previsto em Lei e na própria Constituição Federal –, muito mais como uma forma
de repreender o ofensor, do que propriamente compensar a vítima da lesão.
Essa evolução lógica e racional da jurisprudência nada mais é do que o reflexo dos
anseios da sociedade por novas ferramentas de proteção. Ricardo Luis Lorenzetti
argumenta que, em que pese o direito privado tenha se ocupado, tradicionalmente, com as
condutas individuais em relação intersubjetiva, ainda que sub-repticiamente o
comportamento coletivo esteve sempre presente. Notadamente, é a conduta social que traz
sentido aos comportamentos individuais e, via de consequência, dá conteúdo às abstrações
normativas. Ou seja, os modelos de bonus pater familia, homem de negócios, médico
prudente, nada mais são do que módulos abstratos que se integram ao serem examinadas as
condutas dos grupos. Não se toma por base, na confecção da Lei, o que faz um único
homem, senão um conjunto de pessoas203.
Com efeito, a maior resistência apresentada pelos Tribunais, inicialmente, para
afastar a existência de um dano moral, especialmente de natureza difusa, relacionava-se ao
mesmo problema encontrado inicialmente na verificação do dano moral individual: a
impossibilidade de aferição de um sofrimento, de uma dor, ou seja, um sentimento da
coletividade204205.
Entretanto, acentua Xisto Tiago de Medeiros Neto que, diferentemente do dano
moral, o dano moral coletivo prescinde da demonstração de efeitos negativos, como a
repulsa, o abalo psíquico etc. – embora possam esses efeitos ser apreendidos em dimensão
203
LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D,
1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, pp. 9/10.
204
"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLETIVO.
NECESSÁRIA VINCULAÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO DE DOR, DE SOFRIMENTO PSÍQUICO, DE
CARÁTER INDIVIDUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE TRANSINDIVIDUALIDADE
(INDETERMINABILIDADE DO SUJEITO PASSIVO E INDIVISIBILIDADE DA OFENSA E DA
REPARAÇÃO). RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO”. In www.stj.jus.br, REsp 598.281/MG, Primeira
Turma, Relator Ministro Luiz Fux, Relator p/ Acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 2/5/2006,
consultado em 4/12/2012.
205
Esse entendimento foi posteriormente modificado pelo Superior Tribunal de Justiça, que passou a
entender que “O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica
ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos
indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma
relação jurídica-base. 2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento
e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses
difusos e coletivos”. In www.stj.jus.br, REsp 1057274 / RS, Segunda Turma, Relatora Ministra Eliana
Calmon, julgado em 1/12/2009, consultado em 4/12/2012.
82
subjetiva –, tendo em vista que constituem mera consequência do dano produzido pela
conduta do agente, não se apresentando como pressuposto para a sua configuração.
Considerado tal dano pela ofensa a padrões éticos dos indivíduos, considerados em sua
dimensão coletiva, desvincula-se da dor física e psíquica206.
Assim, a dor psíquica, que alicerçou a teoria do dano moral individual, acaba
cedendo lugar à verificação de um sentimento de desapreço e de perda de valores
essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade, quando da análise do dano
moral coletivo. E essa intranquilidade e sentimento de desapreço gerados pelos danos
coletivos, por serem indivisíveis, acarretam lesão extrapatrimonial de reparação coletiva207.
Demais disso, ainda segundo o entendimento de Xisto Tiago de Medeiros Neto, a
análise do dano moral coletivo prescinde da verificação da intenção do ofensor – ainda que
seja possível enxergar o elemento culposo –, na medida em que decorre do próprio fato
violador do direito, bastando a demonstração do fato antijurídico e do nexo causal direto
com o dano coletivo emergente para a sua constatação, carecendo, também, da
apresentação de qualquer prova, por ser observado in re ipsa, emergindo objetiva e
diretamente do evento causador do dano208.
Em que pese inclinar-se a doutrina pela defesa da desnecessidade da intenção do
ofensor ou ainda o caráter de compensação da coletividade, acaba-se sempre mostrando o
verdadeiro intuito para o qual se destina a indenização por um dano moral coletivo: uma
punição.
Afirma Leonardo Roscoe Bessa que o objetivo de se prever a condenação por um
dano moral coletivo só encontra justificativa pela “relevância social e interesse público
inexoravelmente associados à proteção e tutela dos direitos metaindividuais”, mediante a
imposição de novas e graves sanções jurídicas para determinadas condutas que se busca
atender ao princípio da prevenção e precaução, de modo a conferir real e efetiva tutela ao
206
MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, pp. 159/160.
RAMOS, André de Carvalho. A ação civil pública e o dano moral coletivo. In
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/6772-6771-1-PB.htm, consultado em 2/10/2013, p.
3.
208
MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, pp. 178 e
181.
207
83
patrimônio coletivo, aproximando-se, assim, do direito penal, cuja finalidade é a
prevenção209.
No mesmo sentido, Xisto Tiago de Medeiros Neto aduz que o que se almeja com a
caracterização de um dano moral coletivo é a imposição de uma sanção pela prática ilícita,
com pretensão dissuasória, por ser inconcebível visar à recomposição ou compensação dos
interesses transindividuais. Apenas de forma subsidiária seria possível conceber uma
finalidade compensatória indireta, por que voltada a indenização à restituição dos bens
lesados210211.
Dessa forma que André Gustavo Corrêa de Andrade traça uma ligação
intrinsecamente necessária entre o dano moral coletivo e a ideia de punitividade da
indenização, ao ressaltar ser possível a concepção de uma compensação ou satisfação em
âmbito coletivo, mas que a falta de uma vítima concreta, individualizada, realça essa ideia
de punição212.
Segundo Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, a única exceção admitida no sistema
jurídico brasileiro à teoria da indenização punitiva aparece nas hipóteses de danos
extrapatrimoniais coletivos, ou seja, quando a ofensa atinja os interesses coletivos ou
difusos de um grande universo de pessoas. “Mesmo nesse caso, porém, a indenização não
se confunde com os punitive damages, pois não se destina à parte lesada, mas a um fundo
público, cujos recursos serão destinados à reconstituição dos bens lesados (consumidor,
meio ambiente, patrimônio histórico)”213.
Ou seja, partindo de elementos trazidos doutrinária e jurisprudencialmente para a
caracterização do dano moral individual, pretende-se a aplicação de um dano moral
209
BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, p. 89.
210
MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, pp. 202/203
211
Essa, também, a visão de Leonardo Roscoe Bessa, para quem a punição representaria papel preventivo na
proteção aos direitos metaindividuais. BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. In Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, jul./set., 2006, pp. 98/99.
212
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na
experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009, pp. 164/165.
213
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 75.
84
coletivo, que faça a função de punir ou dissuadir, mas sem levar em conta a intenção do
ofensor ou mesmo qualquer tipo de prova da ocorrência da lesão.
Mais grave do que atribuir uma função punitiva ao dano moral individual é imporse uma indenização por dano moral coletivo, cujo único intuito revelado pela doutrina é a
punição, com base em elementos utilizados para o reconhecimento de uma lesão em um
dissídio de natureza totalmente diversa.
Verifica-se, assim, uma espécie completamente bizarra de reparação, cujo intuito é
a punição do agente, sem a necessidade de aferição de sua conduta ou de produção de
qualquer prova. Bastaria, então, a ocorrência de qualquer dano ao patrimônio coletivo, por
mais tênue que fosse, para que surgisse uma indenização que, repita-se, não visa, segundo
o que foi trazido, compensar, mas somente punir. Logicamente, caso assim fosse, o
ordenamento jurídico tornar-se-ia caótico, desestimulando qualquer tipo de atividade
voltada à produção ou ao consumo.
Por óbvio que, da mesma forma como ocorre com a verificação de um dano moral
individual, deve também haver prova suficiente para a constatação de um dano moral
coletivo. O que ocorre é que alguns tipos de dano já trazem a materialidade que leva à
responsabilização. Mas isso não significa que a prova dessa infração não esteja lá.
Demais disso, para a aplicação de uma sanção punitiva, mostra-se necessária a
análise da conduta do agente, mesmo que não propriamente a verificação de uma culpa,
mas de uma simples constatação sobre a pouca importância que foi dada em relação à
possibilidade de evitar o dano ou de impedir que ele ocorresse, para que se possa taxa-la de
socialmente reprovável.
Orienta, nesse sentido, Daniel de Andrade Levy, que o dano moral coletivo aparece
para a Responsabilidade Civil como uma “forma subliminar de instrumentalização da
função punitiva”, uma vez que o seu caráter nebuloso tem levado doutrina e jurisprudência
a encontrar critérios de compensação pautados mais na conduta do agente do que no
prejuízo sofrido pelas vítimas. Isso porque a indenização não consegue compensar o dano
sofrido pela coletividade ou por seus membros, não sendo mais essa reparação, por
85
conseguinte, considerada do lado da vítima, que a recebe, mas do lado do agente, que a
paga214.
Traçando o real cenário que circunscreve o dano moral coletivo, Nelson Rosenvald
aponta que essa lesão, única espécie de dano moral em que implicitamente o legislador
admite um caráter punitivo à atividade do causador do dano, não passa de “peculiar
espécie de pena civil criativamente desenhada no ordenamento brasileiro, em nada se
assemelhando com a natureza do dano extrapatrimonial”. O dano moral coletivo,
verificado em situações que desbordem dos limites da tolerabilidade, produzindo
verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem
patrimonial coletiva, prescindindo da prova do dor, sentimento ou abalo psicológico,
busca, em realidade, um valor pelo desestímulo ao ofensor e potenciais lesantes, mesmo
que esta sanção também sirva como uma espécie de satisfação coletiva, apresentando essa
figura, então, o mesmo desvio de perspectiva que remete a doutrina e os tribunais a
considerar que o dano moral individual possui dupla função: compensatória e profilática215.
Pela análise da jurisprudência, é fácil perceber esse direcionamento à punição,
quando do reconhecimento de um dano moral coletivo. Em caso julgado pelo Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, cujo objeto de discussão era a comercialização de
combustível adulterado, restou assentado que “Os danos morais difusos representam
punição para o apelante, inescrupuloso por vender combustível adulterado para a
população, com isto criando desconforto, transtornos e raiva”, e, na fixação do quantum,
apontou-se que “Montante que deve se revestir do caráter compensatório, sem prejuízo da
índole pedagógica, razão porque não pode alcançar cifras irrisórias ou escorchantes”216.
Em outro exemplo, de lavra do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, debatiase a penalidade que seria aplicada aos autores de morte de animal “com requintes de
inaudita crueldade”. Além da reprimenda penal, definiu-se pela existência de um dano
moral coletivo, por motivo da agressão a “valores que dizem respeito a um mínimo de
214
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas
Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 88/89.
215
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 200/2002.
216
In www.tjsp.jus.br, Apelação nº 0024660-54.2007.8.26.0506, 32ª Câmara de Direito Privado, Relator
Desembargador Luis Fernando Nishi, Julgado em 25/4/2013, consultado em 10/10/2013.
86
padrão civilizatório, onde se inclui o respeito à vida, inclusive quanto a animais próximos
às criaturas humanas. não se podendo aceitar infligir-se a eles tratamento cruel”, que
culminaram na “perda da paz” daquela coletividade. Assim, aplicou-se indenização com
evidente carga punitiva ao autor do ilícito, levando-se em conta mais a agressividade da
conduta praticada, que fulminou essa paz social, do que o dano realmente causado217.
Do Tribunal Regional Federal da 3ª Região não se pode deixar de mencionar o
debate travado quanto à utilização indevida de informação privilegiada (insider trading).
Apontou-se ser o caso de utilização da teoria do dano moral coletivo pelo seu aspecto
preventivo e punitivo. Ressaltou-se que “o dano moral coletivo reveste-se também de
caráter punitivo pela qual sempre esteve presente também nas relações privadas
individuais, v.g., astreintes e cláusula penal compensatória”. Na fixação do valor da
indenização, um dos parâmetros utilizados foi estabelecer um “montante que desestimule o
infrator para a prática de conduta delitiva”218.
Dessa forma, verifica-se que, aplicado aos mais variados tipos de conflitos, o
verdadeiro intuito do dano moral coletivo é a imposição de uma sanção punitiva,
demonstrando, entretanto, que a utilização dessa figura não consegue desempenhar nem
propriamente a função de punição, nem de dissuasão, já que a referência à reprovabilidade
da conduta é, normalmente, implícita, além de ser baixo o valor da indenização, e
tampouco se verifica compensação do dano à coletividade, tendo em vista a sua destinação
que não é aproveitada ou mesmo ao valor, que é insuficiente na compensação da lesão.
217
In www.tjrs.jus.br, Apelação nº 70037156205, 21ª Câmara Cível, Relator Desembargador Arminio José
Abreu Lima Da Rosa, Julgado em 11/8/2010, consultado em 10/10/2013.
218
Interessante, ainda, expor alguns critérios utilizados pelo julgador para a aplicação de indenização por
dano moral coletivo: “em razão da gravidade do ato ilícito cometido pelos acusados, que colocou em risco o
correto funcionamento do mercado de valores mobiliários, a astúcia de um dos réus, ao se utilizar de uma
empresa offshore com o propósito de ocultar das autoridades brasileiras a negociação de valores
mobiliários, e o grande lucro potencialmente auferido, fixo o valor mínimo a título de reparação de danos
morais coletivos, em consonância com as disposições contidas no artigo 11, §1º, inciso III, da Lei nº
6.385/76, em R$ 254.335,66 (duzentos e cinquenta e quatro mil, trezentos e trinta e cinco reais e sessenta e
seis centavos) para o acusado Luiz Murat, e de R$ 305.036,36 (trezentos e cinco mil, trinta e seis reais e
trinta e seis centavos) para o acusado Romano Ancelmo, em virtude da vantagem econômica obtida,
conforme foi apurada na decisão de primeiro grau”. In http://www.trf3.jus.br/, Apelação Criminal nº
0005123-26.2009.4.03.6181/SP, Quinta Turma, Relator Desembargador Federal Luiz Stefanini, Julgado em
4/2/2013, consultado em 10/10/2013.
87
CAPÍTULO III
A EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA NA PUNIÇÃO E NA PREVENÇÃO
DA PRÁTICA DO ILÍCITO
Parece que, atualmente, os ordenamentos jurídicos de diversos países clamam pela
regulamentação dessas novas configurações relacionais, transindividuais, especialmente
quando causadoras – ou potencialmente causadoras – de danos à sociedade.
No entanto, antes de, simplesmente, hastear-se uma bandeira pela reivindicação de
uma nova modalidade de dano no ordenamento jurídico brasileiro, parece prudente a
análise da experiência estrangeira, sobretudo de países que procuraram justamente regular
essas situações, para a proteção da coletividade.
3.1 OS PUNITIVE DAMAGES
A figura dos punitive damages, bastante conhecida da tradição anglo-saxã, e
também conhecida como exemplar damages, vindictive damages ou smart money,
relaciona-se, de forma geral, a uma ideia de indenização punitiva consistente “na soma em
dinheiro conferida ao autor de uma ação indenizatória em valor expressivamente superior
ao necessário à compensação do dano, tendo em vista a dupla finalidade de punição
(punishment) e prevenção pela exemplaridade da punição (deterrence) opondo-se – nesse
aspecto funcional – aos compensatory damages, que consistem no montante da
indenização compatível ou equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de
ressarcir o prejuízo”, como explicam Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler219.
Ou seja, a indenização punitiva apresenta tanto a função de punir o autor de um dano,
quanto de dissuadir a prática de certo comportamento social: uma função de
exemplaridade.
219
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva
(punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 16
88
Assim, o que antes era afeito apenas ao juízo penal (esse papel de punir), agora vem
chamando atenção de doutrina e jurisprudência de diversos países, mediante a superação
dessa cisão entre direito penal e direito civil, com a introdução, na responsabilidade civil,
da ideia de uma pena privada, voltada ao castigo do ofensor e à dissuasão de novas
tentativas similares.
Para Maria Celina Bodin de Moraes, o instituto dos punitive damages constitui uma
figura anômala, intermediária entre o direito civil e o direito penal, pois apresenta o
objetivo principal de punir o agente causador de um dano, por meio de uma pena
pecuniária revertida à vítima220.
Verifica-se, então, que a responsabilidade civil, antes voltada a reparar os danos
injustamente sofridos, em razão das sociedades hiperindustrializadas ou mesmo das
escolhas jurídico-axiológicas dessas mesmas comunidades, não estaria imune à criação de
um instituto capaz de coibir ou desestimular certos danos particularmente graves, de
dimensão transindividual. É por esse motivo que os punitive damages têm chamado a
atenção dos estudiosos, que passaram a entender como insuficiente o linear princípio da
reparação. É bem sabido que muitas empresas, cujos produtos são danosos em escala
massiva, continuam a produzi-los, amparadas por um raciocínio de custo/benefício entre o
lucro obtido com as vendas e o custo das indenizações eventualmente pagas aos indivíduos
que ingressam em juízo, vítimas dos danos causados por esses produtos 221, mostrando-se
extremamente relevante o reconhecimento de uma figura que consiga afastar e corrigir esse
tipo de conduta.
Historicamente, a responsabilidade civil, em sua origem, não apresentava a
configuração como se conhece hoje, como visto no primeiro capítulo deste trabalho. Basta
relembrar que a própria indenização não foi a primeira função apresentada pela
responsabilidade civil.
Com efeito, nas sociedades primitivas, o dano aparecia principalmente como um
rompimento da ordem social e mesmo natural, dependendo, assim, de uma recomposição,
220
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 258.
221
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 16
89
que ocorria normalmente por um ato de sacrifício. Essa “reparação”, portanto, era próxima
à noção de vingança, possibilitando a perseguição do agente causador do dano deixada à
iniciativa da vítima ou do grupo ao qual ela pertencia222. Tem-se, dessa forma, que o dano
injusto e a vingança privada nunca foram figuras muito distantes.
Como refere o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ao explicar a origem da
punição, o próprio conceito moral de “culpa” teve início em outro conceito, bastante
material, de dívida. Com efeito, o devedor, para infundir confiança em sua promessa de
restituição, para reforçar na consciência a restituição como dever e obrigação, oferece ao
credor, para o caso de inadimplência, algo que possua, sobre o qual ainda tenha poder,
como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo a sua vida, ou ainda, em certas
circunstâncias religiosas, a salvação de sua alma e a paz no túmulo (no Egito, o cadáver do
devedor não encontrava sossego, diante do devedor, nem em seu túmulo). Sobretudo, o
credor podia infligir ao devedor toda sorte de humilhações e torturas, como, por exemplo,
cortar membros e partes do corpo tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da
dívida. A equivalência do prejuízo, nesse caso, estava em substituir uma vantagem
diretamente relacionada a um dano patrimonial por uma espécie de satisfação íntima,
concedida ao credor como reparação e recompensa. Compensava-se o dano com a dor223.
E é nesta esfera, das obrigações legais, que está, para o mesmo autor, o foco de
origem dos conceitos morais de culpa, consciência, dever, surgidos por um processo
largamente banhado de sangue. Percebe-se, então, que é nesse sentimento de pena, de
castigo, que surge o primeiro conceito de compensação do credor, baseado em sua
vingança pessoal224, que leva à justiça da situação, sendo esta, portanto, a função primitiva
da responsabilidade civil.
222
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 5.
223
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009, p. 22.
224
Para Friedrich Nietzsche, o conceito de vingança obscurece e cobre a verdadeira visão acerca da punição
imposta pelo credor ao devedor. Para o autor, não se tratava de uma vingança pessoal, que, na realidade, não
trazia compensação para o credor (“em que medida pode o sofrimento ser compensação para a ‘dívida’?”). O
gratificante era o fazer-sofrer, na medida em que o prejudicado trocava o dano e o desprazer pelo dano por
um contraprazer: causar o sofrer. Essa, portanto, a efetiva recompensa do credor: o prazer em causar a dor do
devedor. Afirma o autor que a crueldade constituía o “grande prazer festivo da humanidade antiga”, sendo
ingrediente de quase todas as suas alegrias. A exemplo disso, o autor cita as execuções e suplícios, que
estavam sempre presentes em casamentos de príncipes e grandes festas públicas, em passado não tão distante.
90
Nessa esteira, o ilícito e a sanção sempre estiveram ligados, sendo quase impossível
dissociar essas duas figuras. Para o homem existe um desejo de vingança, que remonta
talvez não à vindicatio romana, mas a uma formação natural animalesca do próprio ser
humano, em sua luta pela sobrevivência, “apoiada no desvalor de seu próximo”225.
Os antigos acreditavam que a vida de cada um era tecida de um complexo de bens e
de males, cuja distribuição fatal constituía o perfeito equilíbrio social. O ato ilícito era,
pois, verificado no rompimento desse equilíbrio e as reações que provocava tendiam ao seu
restabelecimento, por meio da imposição de um mal simétrico ao que havia causado a
outrem. Esperava-se, mais, que os deuses operassem o restabelecimento desse equilíbrio
rompido. Estimulado o zelo dos deuses na correção da injustiça, através de devotiones ou
imprecações, a vítima se encarregava de restabelecer o equilíbrio, fazendo confundirem-se
vingança com justiça226.
Inicialmente, essa vingança era exercida pelos grupos familiares – divididos em
clãs –, pelo dano causado a qualquer um de seus membros, o que foi progressivamente
alterado para uma configuração que permitia ao próprio indivíduo exercer tal direito, tudo
de acordo com a Lei de Talião, que regulamentava essas formas de resposta ao dano
injusto. De fato, a vingança apresenta-se, a essa época, como verdadeira ferramenta de
resolução de conflitos, com regras próprias e organizada socialmente, capaz de conduzir à
reconciliação e à paz da sociedade.
A evolução desse sistema, que traduz uma segunda fase do processo evolutivo da
pena privada, ocorre quando o ofendido passa a ter direito de, em alguns casos, escolher
entre a vingança privada e o pagamento de determinada soma227. A vingança incidia como
agressão ao corpo do ofensor, ao passo que a composição pecuniária era revestida de
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras,
2009, pp. 21/23.
225
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive Damages. In Revista de Direito Privado –
RDPriv. NERY JUNIOR, Nelson et NERY, Rosa Maria de Andrade (coord.), ano 12, nº 45, janeiro-março,
2011, p. 166.
226
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume II, Rio de Janeiro: Forense, 1979,
pp. 416/417.
227
Esse abrandamento da violência já era verificado no Código de Hamurabi, na Babilônia, que fez a
primeira referência à figura da indenização, seguido pelas leis do reino babilônico de Eshnunna e pelo
Código de Manu, na Índia. MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano
Moral. Dissertação de mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
p. 14.
91
arbitrariedade, já que não era fixado nenhum valor ou critério de reparação, cabendo aos
interessados o acordo sobre o quantum228.
Em Roma, foram elaborados instrumentos que substituíam essa vingança privada,
os quais representavam sanções ao ato ilícito: de um lado, havia figuras de sanções que
buscavam uma resposta direta e imediata à situação criada ou ainda por surgir do ato
ilícito, com o fim de neutralizar os seus efeitos, como era o caso do ressarcimento do dano
e da reparação; por outro lado, uma outra figura tinha a pretensão não de reparar a vítima,
mas de reprimir o ódio ao agente que cometeu o ato ilícito, sendo este o âmbito da pena,
voltada mais para a conduta do ofensor do que para a vítima.
Verifica-se, então, que a origem dos punitive damages remonta ao direito romano,
em que não havia uma clara separação entre responsabilidade civil e penal, permitindo a
utilização de penas privadas sem conteúdo propriamente ressarcitório229.
Essa técnica de punir, mais adiante, foi apreendida de forma diversa por duas
distintas tradições jurídicas: a tradição romanística, base dos sistemas jurídicos europeucontinentais e latino-americanos, e o direito anglo-saxão, verificado nos sistemas de
common law, notadamente no norte-americano.
De fato, essa “pena privada”, que não guarda relação com “justiça privada” ou
“vingança privada” ou pena aplicada “pelos privados”, era, no Direito Romano clássico, a
forma de punição atrelada ao delictum, conceito originalmente próprio ao ius civile e, dessa
razão, distinto do crimen, ato contrário ao direito castigado pelo Direito Penal público230.
Decerto, o Direito Romano não limitava os termos poena, punire e outros derivados
à pena em sentido técnico, aplicando-os a todas as figuras de sanção. A pena em sentido
técnico correspondia mais fielmente à actio poenalis, que guardava relação a um dos
instrumentos destinados a concretizar a função de punir.
228
FACIO, Jorge Peirano. Responsabilidad Extracontratual. Montevideo: Barneiro y Ramos S.A., 1954, p.
100.
229
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, p.70.
230
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p.
17.
92
Ato contínuo, a terceira fase dessa evolução é verificada no reconhecimento do
delito, com o conseqüente abandono da vingança pessoal, pelo qual o Estado assume o
papel de mediador dos conflitos, mediante a fixação de valores para a composição das
partes e a instituição da poena.
Nessa fase, a própria figura do magistrado assume maior importância, deixando ele
de simplesmente garantir o direito do ofendido de executar a pena, para efetivamente julgar
e arbitrar a indenização. Esse novo modelo era verificado na Lei das XII Tábuas, cujo
precípuo eram as composições, em que pese haver nela ainda resquícios daquele sistema de
vingança pessoal. É nesse mesmo momento que, na Grécia, ocorre a transformação do
genos na polis, em que o sobrelevo da figura do Estado passa a impedir as guerras
consubstanciadas nas vinganças familiares.
Essa função de punir era assegurada em duas frentes: a das penas privadas e a das
penas públicas. A pena privada era utilizada para a repreensão dos ilícitos contra a pessoa
ou seus bens, ou seja, no âmbito dos delitos privados (delicta). Com efeito, pena privada,
nessa época, era a sanção que mirava infligir um mal ao réu, “golpeando-o em seu
patrimônio”, ou seja, era o direito, em alguns casos, de agir em ódio ao culpado, alterando
a sua situação pessoal ou patrimonial231.
Por seu turno, as penas públicas eram a forma de punição às infrações praticadas
contra o Estado e contra a paz do reino, os delitos públicos (crimen). Diante de um delito
privado, o Estado, apesar de quedar-se inerte, assegurava à vítima o direito de ação para
obter a condenação do ofensor ao pagamento de determinada quantia, caracterizada,
destarte, como a sanção a um ato privado, derivada de uma ação intentada por um privado
(actio poenalis), resultando na restrição patrimonial do réu, imposta com caráter punitivo,
não ressarcitório.
Deveras, as soluções fundadas nesse sentimento de ódio ao ofensor estavam
ancoradas no que hoje se apresentaria como o “princípio da adequação”. Ao dano sofrido
231
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 6.
93
pela vítima deveria corresponder, a título de pena, um múltiplo econômico equivalente ao
seu dobro, triplo ou quádruplo232.
Isso que distinguia a pena privada daqueles outros instrumentos que visavam
impedir ou neutralizar os efeitos do ilícito, embasados em critérios econômicos, com o
ressarcimento na exata medida do dano (actiones rem persequentes). O objetivo das
actiones poenales privadas era a sanção ou a repressão a determinadas condutas lesivas de
interesses privados, como, por exemplo, o furto ou o roubo, obrigando o ofensor a entregar
à vítima valores maiores do que o correspondente à simples compensação.
Por fim, a quarta fase é caracterizada por um sistema fundado na indenização,
perdendo força a poena, o que culminou numa dissociação dessas duas figuras. Fica claro,
também, nesse momento, a separação entre o direito público, regulamentador do crimen,
que perfazia as infrações ao Estado e à paz pública, e o direito privado, que tratava do
delicta, constituído pelo conjunto de ilícitos praticados contra a pessoa ou contra o seu
patrimônio. O Estado passou a dispor tanto de instrumentos que assegurassem a reparação
da vítima, quanto para a aplicação de penas privadas, com evidente função punitiva233.
Ocorre que se passou a verificar um processo de despenalização da
responsabilidade civil, tanto pelos ideiais da justiça comutativa lançados por São Tomás de
Aquino, pelos quais se bania qualquer transferência injustificada de riqueza de um sujeito
ao outro, que acabou limitando, paulatinamente, a obrigação ressarcitória aos danos
efetivamente sofridos, quanto pela necessidade de se tornar cada vez mais uniforme esse
instituto. Além disso, o sucesso da pena pública, inaugurada pelo juízo penal mediante
demanda do ofendido também contribuiu a essa progressiva crise da pena privada234.
Esse processo conduziu ao cancelamento da originária função penal da
responsabilidade civil, ao mesmo tempo em que eliminou as diferenças com que eram
antes tratados os diversos tipos de delitos, segundo a sua gravidade e de acordo com o
232
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p.
17.
233
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 170.
234
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 8.
94
elemento subjetivo do autor da lesão. Passou-se, então, durante vários séculos, a
considerar-se irrelevante o grau de culpa para a fixação da indenização.
Além disso, ante a inexistência de uma divisão do trabalho bem estabelecida nas
primeiras sociedades, a partir de uma consciência coletiva bastante evidente, justificava-se
a importância de uma responsabilidade penal, garantidora da ordem pública. Contudo, a
divisão do trabalho e a conseqüente organização da sociedade trouxe uma maior ideia de
individualidade, o que fez com que o direito perdesse o seu caráter exclusivamente penal,
para se fragmentar em outras diversas disciplinas, marcando, então, o surgimento de um
direito muito mais restitutivo do que punitivo.
Gradualmente, a feição reparatória toma lugar no direito das obrigações, separando
não apenas a esfera civil da penal, como reclamando, em matéria contratual, somente o
equivalente ao valor do bem alienado.
Verificou-se, então, inicialmente no Código Civil francês, a adoção de uma rigorosa
separação entre as matérias civis e penais, o que foi seguido pelas demais codificações
surgidas nos anos posteriores. Assim, a pena privada romana passou a ser vista como um
indício da barbárie das civilizações mais remotas235.
A esse fato, some-se a contribuição religiosa para o entendimento da
responsabilidade civil punitiva. Os canonistas e teólogos acabam por trazer uma ideia de
moral à responsabilidade civil, apontando a culpa como seu elemento visceral. A moral
cristã alça a culpa ao mais alto patamar, determinando que o homem responde pelos seus
atos não apenas em relação aos seus semelhantes, mas também a Deus. Essa ideia de culpa
acaba sendo associada a um pecado, praticado no exercício do livre-arbítrio.
Por esses motivos, a ideia de pena privada foi abandonada por tempo demasiado,
porquanto ligada à ideia de barbárie, além de ser contrária à moral cristã.
235
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p.
17.
95
Contudo, já na época de Eduardo I, no século XIII, os legisladores ingleses, em
busca de uma indenização associada às ações penais, passaram a se valer da condenação
por múltiplos financeiros do dano, tal qual ocorria no Direito romano.
Nesse modelo construído na Inglaterra, o autor do dano sofria uma sanção,
caracterizada pela privação de seu patrimônio equivalente a um múltiplo do dano causado
à vítima, que tinha, ao seu dispor, a previsão de uma ação civil justamente para esta
finalidade236.
No século XIII, portanto, em algumas hipóteses específicas, dava-se ao juiz a
possibilidade de condenar o réu ao pagamento de indenizações punitivas. Verifica-se,
dessa forma, ser a Inglaterra o berço dos punitive damages. Em 1278, a primeira previsão
legal de indenização multiplano no Direito anglo-saxônico veio a aparecer, no Statute of
Councester, da Inglaterra, sendo essa a raiz da tradição punitiva237.
Acontece que, do século XIII até meados do século XVIII, foram as funções
compensatória e punitiva da indenização confundidas pelas Cortes inglesas e norteamericanas. De fato, os exemplary damages eram incluídos na categoria de compensatory
damages, em razão da recusa de se atribuir um caráter compensatório às indenizações por
danos morais238.
Em 1760, algumas cortes inglesas passaram a justificar as vultosas somas
concedidas pelos júris como não apenas uma compensação oferecida à vítima de um dano,
mas também como uma forma de punir o ofensor pela sua conduta antijurídica. Na
Inglaterra, em situações de graves abusos de autoridade por parte de funcionários públicos
e entes privados, evidenciados nos casos Huckle vs. Money e Wilkes vs. Wood, ambos
datados de 1763, reconheceu-se que o tort law comportava uma função de pena privada,
consagrando-se o princípio da reparação dos danos causados por funcionários do Rei239240.
236
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 228/229.
237
VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à Punição e Dissuasão – Os punitive
damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 41.
238
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 173.
239
LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra
realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema
96
Quando se cria, então, essa doutrina dos exemplary damages – expressão utilizada,
pela primeira vez, em 1763, no julgamento dos citados casos Huckle vs. Money e Wilkes
vs. Wood –, que servia para justificar a atribuição de indenização quando não havia
prejuízo tangível, o instituto dos punitive damages apresenta especial desenvolvimento,
principalmente pelo esforço dos Tribunais.
É bem verdade que, atualmente, os punitive damages, especialmente no Direito
norte-americano, são também atribuídos à responsabilidade patrimonial, revestidos de
caráter de exemplaridade social. Ao entanto, sua origem é marcada pela função punitiva,
aplicável apenas aos casos de danos extrapatrimoniais.
Como mostra Maria Celina Bodin de Moraes, é no final do século XIX que a
concepção liberal, marcada pela autonomia da vontade individual, começa a sofrer
considerável transformação, em virtude do recrudescimento do modo de produção
capitalista. A partir daí, começam a ocorrer múltiplas manifestações intervencionistas na
economia por parte do Estado, mas ainda com a preservação da autonomia privada,
momento em que pode se observar a nítida separação entre Direito Público e Direito
Privado241.
Essa nova fase, marcada também pela demarcação entre o lícito e o ilícito, que
deveria facilitar o seu reconhecimento pelos cidadãos comuns, configurando-se como meio
de garantir a liberdade dos indivíduos, ao mesmo tempo em que servia como meio de
Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do
painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória.
240
Fora esses casos, Vitor Fernandes Gonçalves cita ainda outros julgados em que, posteriormente, foi
aplicada a doutrina dos punitive damages, concernentes a condutas ofensivas ou vergonhosas sob a ótica dos
costumes sociais vigentes à época, como Tukkidge vs. Wade, que puniu um caso de sedução, Grey vs. Grant e
Benson vs Frederik, que impôs uma sanção punitiva em razão de agressões físicas perpetradas contra as
vítimas, Leith vs. Pope, que reprimiu uma falsa acusação, e Duberley vs. Gunning, que castigou a indução de
um crime. GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano
moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 34.
241
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., pp. 197/198. Explica, ainda, a autora que
a teoria da “pena privada” foi defendida, em meados do século XX, por Boris Starck, pela qual se procurou
atribuir à faute a consequência da pena privada. Essa teoria apresentou utilidade quando se percebeu a
necessidade de buscar fundamentos com maior poder de adesão para fortalecer a ideia de reparação do dano
moral, neutralizando o argumento moral que a afastava, pois que, não havendo como submeter a qualquer
tipo de aferição em concreto a extensão do dano, o pagamento da quantia em dinheiro pelo ofensor poderia
ter, pura e simplesmente, caráter de sanção. Argumentava-se também que a ideia de compensação apenas
serviria à reparação do dano moral sofrido pelas vítimas de classes mais favorecidas, porque possível a
substituição da tristeza pelos prazeres que o dinheiro proporcionaria. Contudo, insuficiente esse resultado a
uma pessoa rica, devendo haver uma condenação do agressor a título de pena. pp. 219/221.
97
proteção dos direitos subjetivos de cada um, demonstrava claramente a posição da
liberdade do cidadão quanto à circulação dos bens e sua posição frente ao poder estatal.
Mas, para a burguesia que estava no poder, não se revelava vantajoso conceder ao
juiz grande independência, de modo que pudesse avaliar o dano, mas somente um papel de
“boca da lei”, com a aplicação, se possível, de seu texto literal242.
A separação, portanto, entre pena e indenização acabou sendo uma consequência
dessa mentalidade, porquanto imprescindível retirar da indenização qualquer conotação
punitiva, à medida que eventual exagero nas indenizações, além de contrariar ao interesse
da classe dominante burguesa, pudesse limitar excessivamente a liberdade dos privados,
refreando o desenvolvimento econômico e industrial243.
Em 1851, no caso Morse v. Auburn & Syracuse R.R., afasta-se o pain and suffering
da categoria dos exemplary damages, fazendo com que os prejuízos morais passassem a
integrar exclusivamente a categoria compensatória dos actual damages, ao passo que a
indenização relativa à punição seria destinada à repressão de conduta deliberadamente
desrespeitosa.244
Desse modo, estabelece-se na Inglaterra o conceito de actual damages para abarcar
também
os
prejuízos
extrapatrimoniais.
Consequentemente,
retirada
a
função
compensatória dos exemplary damages, foi tal figura utilizada exclusivamente na sua
função de punishment e deterrence, de modo que as suas finalidades precípuas passaram a
242
Vitoriosa a classe burguesa, surgiu, logicamente, uma necessidade de reafirmação jurídica de seu modelo
de cidadão. A própria codificação do direito foi o instrumento por ela utilizado para decretar a morte jurídica
do sistema feudal até então vigente. Com efeito, este regime fundava-se na existência de uma sociedade
fragmentada em 3 estamentos: nobreza, clero e terceiro estado, cada qual submetido a um regime jurídico
diferente. Além disso, o Estado era dividido politicamente em condados, ducados e outras unidades, muitas
vezes possuidoras de ordens jurídicas próprias. A classe burguesa contrapôs-se a esse modelo, oferecendo um
novo, no qual figurava um único “tipo” de cidadão, membro de uma comunidade estatal, submetida às
mesmas regras, independentemente de sua origem. Acresça-se a isso o fato de que o liberalismo filosófico
trouxe à tona a idéia de que o direito só seria legítimo quando decorresse diretamente da vontade geral,
obtida por meio das leis deliberadas pelo parlamento – que atuava exatamente como representante da nação.
O Direito era, portanto, reduzido à lei, que procedia do parlamento, que representava a vontade geral. Por
isso que o juiz exercia um papel de “boca da lei”, na medida em que não se aceitava qualquer tipo de
interferência na vontade do povo. In BART, Jean. Histoire du droit, 2ª edição, Paris: Dalloz, 2001, p. 81; e
CARBASSE, Jean-Marie. Manuel d’introduction historique au Droit. 3ª edição, Paris: PUF, 2001, pp.
279/304.
243
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., pp. 199/202.
244
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas
Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 49.
98
ser a punição do ofensor e a prevenção a futuras novas práticas lesivas245. O foco do
instituto passa a incidir não mais sobre a espécie do dano, mas sobre a conduta de seu
causador.
A partir de então, os danos materiais decorrentes de ilícito (actual damages)
passam a incluir também a categoria dos danos extrapatrimoniais (aggravated damages),
apartando-os da indenização punitiva, que passa a ser considerada como uma categoria
separada, denominada punitive ou exemplary damages. Então, tem-se que o direito inglês
consagrou as categorias de aggravated, exemplary e restitutionary damages, trazidos pelos
relatórios elaborados pela Comissão de Direito da Inglaterra e de Wales, numa tentativa de
uniformizar a matéria.
Verificou-se, dessa forma, uma perda progressiva de importância dos punitive
damages ao longo dos séculos, até que essas penas ressurgissem com bastante força.
Notadamente, até 1964, embora já reconhecida a figura dos punitive damages, a sua
aplicação ainda não apresentava critérios bem definidos. No entanto, nesse mencionado
ano, quando da decisão do caso Rookes VS. Barnard, pela House of Lords, em que se
discutia a atuação de um sindicato, que havia se valido de meios ilegais para induzir a
British Airways a demiti-lo, foi trazida, por fim, uma baliza à aplicação do instituto.
Inicialmente, caracterizou-se de forma clara a distinção entre a indenização punitiva
e os danos morais (aggravated damages). Em seguida, foram determinados os critérios de
aplicação dos punitive damages, que incidiriam em três situações distintas: i) atos
opressivos, arbitrários ou inconstitucionais advindos de servidores do governo; ii) condutas
lesivas que fossem economicamente vantajosas para o réu, sob o ponto de vista econômico,
levando-se em conta a condenação a ser imposta em termos puramente compensatórios; iii)
casos expressos em lei246.
Esse balizamento proporcionou, em primeiro lugar, o reconhecimento de que o ato
coator praticado pelos membros do governo – justamente porque eles são os servidores do
245
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p.
17.
246
Rookes v. Barnard, In http://www.bailii.org/uk/cases/UKHL/1964/1.html, consultado em 17/5/2012.
99
povo e o uso de seu poder sempre deve ser subordinado a suas obrigações públicas –,
quando opressivo, ou arbitrário, ou inconstitucional, seria capaz de ocasionar a aplicação
dos punitive damages. Ou seja, a verificação alternativa desse desvio de conduta do
membro do governo seria capaz de proporcionar uma indenização punitiva. Esse fato abriu
margem para que diversos atos praticados por esses membros do governo, ainda que não
violentos ou opressores, levassem à aplicação dos punitive damages, como no caso de
prisão indevida, em que o detento, mesmo tratado “à base de filé e cerveja”, foi preso por
equívoco, conforme assentado em Huckle VS. Money247, não tendo o juiz se referido à
extensão do dano sofrido pela vítima, mas abordado apenas a extrema gravidade da falta
cometida248.
No entanto, essa abertura logo foi minorada pela mesma House of Lords, que
passou a entender que a violação deveria resultar em danos físicos, mentais ou financeiros,
para que fosse possível atribuir indenização punitiva, não bastando a simples violação a
direito da vítima, como ficou decidido em Walkins VS. Secretary of Home Department and
Others249.
Ato contínuo, a segunda categoria que passou a ensejar a aplicação de indenizações
punitivas na Inglaterra refere-se às condutas ilícitas praticadas pelo agente que lhe geram
um benefício maior do que a eventual indenização a ser paga à vítima, a título puramente
compensatório. A visão sob a qual se enxergou essa situação é, na realidade, uma
discussão, extremamente atual, de Law & economics.
Posteriormente, a jurisprudência inglesa, numa tentativa de equilíbrio dessa
categoria, para que não fosse impedido o desenvolvimento empresarial, pelo risco de que
qualquer conduta lucrativa, mas danosa, pudesse se enquadrar nessa hipótese de
condenação por punitive damages, criou dois requisitos para a aplicação do instituto nesses
casos, verificados na decisão paradigmática do caso Broome VS. Cassel & Co. Ltda250: i) a
prova do conhecimento do réu acerca de sua conduta contrária à lei, ou um desprezo
247
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 175.
MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de
mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p.131.
249
In http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200506/ldjudgmt/jd060329/watkin.pdf, consultado em
24/5/2012.
250
In http://uniset.ca/other/rossminster/broome.html, consultado em 24/5/2012.
248
100
quanto à ilegalidade de seu ato; e ii) uma decisão de prosseguir com a conduta lesiva, sob a
perspectiva de que a vantagem material obtida seja maior do que a indenização
eventualmente paga.
Por fim, a terceira categoria trata dos casos expressamente previstos em lei, que
autorizariam a aplicação da indenização punitiva, merecendo destaque o Copyright,
Designs and Patents Act 1998 e o Patents Act 1977.
Até o ano de 2002, além de ter de se enquadrar numa dessas três categorias, para
que fosse concedida indenização punitiva, havia que ser respeitado o Cause of Action Test,
requisito trazido do caso AB VS. South West Services Ltd., julgado em 1993, pelo qual
apenas seriam consideradas causas de pedir passíveis de punitive damages aquelas que,
antes do caso paradigmático de 1964, também o fossem. Ou seja, apenas se enquadravam
nesse requisito situações bastante específicas, como: falso aprisionamento, assalto,
difamação, violação relativa a bens móveis ou imóveis e interferência culposa no comércio
e nos negócios, contanto que essas situações fossem assim caracterizadas antes do
mencionado acórdão de 1964251. Após o julgamento desse citado caso, diversos tipos de
novos danos não poderiam mais ser reconhecidos como ensejadores de punitive damages.
Mas, a partir de 2002, no caso Kuddus (AP) vs. Chief of Leicestershire
Constabulary252, foi afastado o Cause of Action Test, reconhecendo os julgadores o perigo
de engessamento do sistema de responsabilidade, principalmente em razão das novas
figuras lesivas que surgiam ao longo dos anos. A partir desse novo paradigma, passou-se a
reconhecer a aplicação do instituto às novas formas de danos, anteriormente não permitidas
pelo sistema, mas sempre em observância àquelas três categorias fixadas pela decisão de
1964.
Assim, na Inglaterra, os punitive damages, tal qual previstos na decisão do leading
case Rookes vs. Barnard, apresentam não apenas categorias, que devem ser preenchidas,
para que se verifique a aplicação do instituto, mas também critérios, que devem ser levados
em consideração pelo júri e pelo magistrado na determinação de seu quantum.
251
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 179.
In http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200001/ldjudgmt/jd010607/kuddus-1.htm, consultado em
28/5/2012.
252
101
Inicialmente, o autor da demanda deve ser, necessariamente, a vítima da lesão, o
que afasta a ideia de que os punitive damages sirvam unicamente para punir o agente
causador do dano. Por segundo, a indenização deve atender ao princípio da moderação,
como o mínimo para cuidar ao interesse público. Por fim, a indenização deve ser sopesada
de acordo com a capacidade econômica das partes, sobretudo a do réu.
A consagração desses três critérios também vem acompanhada do que a doutrina
inglesa posteriormente chamaria de “if, but only if”. Essa expressão quer significar que a
indenização punitiva deve ser atribuída quando, e somente quando a verba relativa à
compensação da vítima não for suficiente para preencher a finalidade da responsabilidade
civil. Ou seja, a regra do “if, but only if” trouxe a ideia da não existência dos punitive
damages como categoria autônoma, independente da compensação, traduzindo esta última
também o seu caráter de prevenção.
Importante também o alerta feito no julgado do caso Rookes vs. Barnard, no
sentido de que qualquer elemento que agrave ou atenue a conduta do réu deva ser levado
em consideração para a aplicação dos punitive damages. Assim a sua reincidência na
mesma prática lesiva ou mesmo a participação em outras atividades ilícitas.
Pesem as críticas acerca do instituto, fato é que os punitive damages, no sistema
inglês, mostram-se bastante controlados, com critérios claros de causa de pedir,
indenizações equilibradas, aplicados a partir de um estudo técnico aprofundado a respeito
dos casos paradigmas, levando segurança jurídica necessária à população 253, e sancionando
os danos mais graves às liberdades fundamentais dos indivíduos254.
253
Daniel Andrade Levy orienta que “Para nós, interessa naquele direito insular perceber (a) a importância
da fundamentação dos punitive damages como instrumento de segurança jurídica, por meio de bem
detalhados casos paradigmas; (b) a separação entre dano moral e dano punitivo; (c) a necessidade de se
pensar no binômio “critérios restritos de reparação e resultados ilógicos” ou “generalidade da reparação e
insegurança jurídica”; (d) a importância de uma tradição de case Law, fundada na experiência, na
atribuição de um caráter exemplar à indenização, e a importância do exemplo como fundamento do case
Law; e (e) a ideia do “indivíduo social”, como aquele que tem o múnus de levar ao conhecimento do Poder
Judiciário o causador do dano”. In Revista de..., LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos
Punitive..., p. 185.
254
MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de
mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p.134
102
Se, por um lado, na Inglaterra, os punitive damages acabaram não assumindo
tamanha importância, em razão desse controle exercido pela House of Lords, por outro
lado, nos EUA, tiveram eles uma expansão bastante significativa, principalmente em
relação aos danos decorrentes de acidentes de consumo255.
Ao analisar o mesmo instituto sob a ótica norte-americana, verifica-se que a
tendência das indenizações dos punitive damages foi inversa, verificada a partir da década
de 70 até meados dos anos 90, em que os valores apresentavam quantia sobremaneira
elevada, ultrapassando, muitas vezes, o valor da própria compensação destinada aos danos
materiais ou morais sofridos pela vítima256.
Contudo, para o estudo dos punitive damages nos EUA, deve-se levar em
consideração a real divisão federativa que lá ocorre, em que há diferentes regramentos e
ordenamentos em cada Estado, que garantem ou vedam a aplicação do instituto. Cinco
Estados proíbem, em maior ou menor grau, a aplicação de punitve damages: Luisiania,
Massachusetts e Washington, que permitem a utilização do instituto apenas nos casos
previstos em lei; e Nebrasca e New Hampshire, que o proíbem integralmente.
Alguns Estados, por sua vez, conquanto permitirem a aplicação dos punitive
damages, limitam o seu valor, como é o caso do Alabama (250 mil dólares) e Idaho (250
mil dólares ou três vezes o valor dos danos materiais, o que for maior).
Certamente, os punitive damages nos EUA demonstram o desenvolvimento quase
que isolado do tort system norte-americano das demais nações do Commonwealth, partindo
muito mais de uma análise financeira do direito, e deixando clara a sua passagem entre o
dano moral e a sanção.
255
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 71.
256
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 229.
103
Basta voltar no tempo para perceber que os primeiros casos de punitive damages,
na Inglaterra e nos EUA, foram fruto da humilhação sofrida pelos réus, numa ligação
intrínseca entre a ideia de sanção e o abalo moral sofrido257.
De fato, as decisões relacionadas aos punitive damages dos séculos XVIII e XIX
são ligadas sempre à noção de honra que, violada, acarretaria o direito de compensação da
vítima. A sanção imposta em resultado da humilhação sofrida pela vítima representava,
assim, a vingança de toda a coletividade.
Como revela Renata Chade Cattini Maluf, inicialmente, a aplicação dos punitive
damages era restringida aos casos de tutela da pessoa e vida privada, da honra, da
reputação e naquelas situações em que fosse permitido reconhecer um ganho expressivo
em relação aos danos efetivamente causados, e quando o comportamento do ofensor
apresentasse uma carga de culpa elevada258.
Com o passar dos anos, novas condutas injustas ou odiosas, mas que não
acarretavam, necessariamente, a humilhação da vítima, passaram a demandar, também, a
imposição de sanções, ao mesmo tempo em que a teoria dos danos compensatórios
apresentava evolução doutrinária e jurisprudencial. Passa-se, destarte, a admitir-se que a
humilhação, que antes era ligada à ideia dos punitive damages, poderia estar associada, na
realidade, a um dano moral compensatório. Sob essa linha de raciocínio, as Cortes norteamericanas lançam suas reflexões sobre essa questão, para diferenciar e estremar as figuras
do dano moral e dos punitive damages259.
Dessa forma, com a contribuição da Revolução Industrial, que proporcionou o
avanço da tecnologia, assim como a intensificação do movimento operário, verificou-se
uma mudança de visão em direção a um aspecto social dos punitive damages, para
sancionar não apenas os casos de abuso do poder econômico, como também as situações
de acidentes do trabalho e as hipóteses em que ficava manifesto um tratamento injusto ao
257
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas
Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 54/55.
258
MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de
mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p.127
259
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 187.
104
cidadão pelas companhias. Sai-se da ideia de humilhação para adentrar-se à concepção de
reprimenda ao tratamento injusto.
Mais adiante, ainda no século XX, mas agora em sua segunda metade, pós-Segunda
Guerra Mundial, verifica-se uma terceira fase de evolução dos punitive damages, ligada à
expansão do consumo e da responsabilidade decorrente do produto (product liability).
Mas logo se constatou uma aparente incompatibilidade entre a aplicação dos
punitive damages, sempre voltada à análise da culpa do ofensor, e a responsabilidade pelo
fato do produto, que dispensava essa aferição subjetiva260.
Não obstante, a insuficiência das regras da responsabilidade civil, para a disciplina
de tais casos, demandou uma ampliação da interpretação jurisprudencial, o que resultou na
aplicação de indenizações punitivas sempre que se verificasse ter sido a conduta do ofensor
intencional (willful) ou irresponsável (reckless), em clara atenção à função preventiva da
responsabilidade civil (deterrance). Observa-se, portanto, uma visão socializante do dano,
cuja indenização se apresenta como ferramenta para a defesa da sociedade, e não mais com
vista à satisfação do interesse individual. Essa nova face dos punitive damages é a utilizada
atualmente nos EUA, que denota mais a necessidade de prevenção do dano e exclusão dos
bad players, do que propriamente indenizar a vítima.
Realmente, a expansão da tese punitiva pode ser verificada pelo fato de que o
pagamento pela dor, anteriormente, era considerado imoral (o chamado “dinheiro da dor”),
sendo então preciso buscar outra motivação para evitar que as condenações à compensação
dos danos causados a direitos extrapatrimoniais apresentassem caráter meramente
simbólico. A pena privada seria, portanto, um fundamento de grande aceitação diante de
certas categorias de danos extrapatrimoniais261.
Passando-se aos requisitos de aplicação do instituto, como regra geral, nos EUA,
receber a indenização relacionada aos punitive damages não constitui um direito subjetivo
da vítima, salvo previsão legal em contrário, dependendo da discricionariedade do júri, que
260
261
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., 188.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p.223.
105
decidirá sobre a sua concessão. Em algumas jurisdições, no entanto, quando há alegações e
provas suficientes, a indenização punitiva é, sim, considerada um direito subjetivo,
perfazendo, então, dever do júri concedê-la.
Nessa mesma esteira, como regra geral, não é permitida a condenação em punitive
damages por violação de um contrato, pouco importando os motivos que levaram o réu a
perpetrar a quebra. A concessão dos punitive damages depende da prova das
“circunstâncias subjetivas que se assemelham à categoria continental do dolo, quais
sejam: malice, wantonness, willfulness, oppression, fraud, entre outras”262. Percebe-se,
então, que a simples negligência do agente ofensor, quando não associada a essas outras
circunstâncias agravantes, não é motivo para a concessão de punitive damages, sendo certo
que a gross negligence (culpa grave), em alguns estados, é capaz de ensejá-los263.
Cabe também ao júri, como regra, a fixação dos punitive damages, podendo,
entrementes, haver revisão do valor fixado, por uma Corte superior, em determinadas
hipóteses, sempre que constatada excessiva arbitrariedade.
Esse é justamente o problema dos punitive damages, que começa a despontar em
razão dos exorbitantes valores fixados pelo júri, que não possuíam uma baliza para sua
aplicação, e, no mais das vezes, eram movidos por um sentimento de vingança até mesmo
pessoal contra a companhia causadora do dano, pelo que a histórica confiança antes nele
depositada acabou por, de certa forma, ruir.
Essa exacerbação inicial das indenizações punitivas levou a severas críticas ao
instituto pela doutrina, em razão da ausência desses critérios e limites para sua fixação. De
fato, ao júri não eram atribuídos parâmetros objetivos a respeito do cabimento e do valor
dos punitive damages, de forma a guiar sua decisão e, assim, proporcionar julgamentos
imparciais.
262
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p.
20.
263
Os statutes de alguns Estados reconhecem a negligência grosseira na seara dos acidentes de trabalho e em
casos de erro médico. In VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à Punição e
Dissuasão – Os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009, pp.51/52.
106
Os jurados decidiam de acordo com seus próprios valores e predileções, punindo
mais severamente os réus impopulares e abastados264. Não conseguiam eles discernir a
função retributiva da função preventiva, de forma que fundamentavam suas decisões
unicamente no grau de repreensividade da conduta ilícita, ou seja, de sua gravidade,
deixando de se ater ao aspecto da prevenção265.
Por esse motivo que os valores das indenizações passaram a ser alvo de acirrada
controvérsia entre partidários e opositores da tort reform, sustentando-se, de um lado, que
os montantes indenizatórios estariam fora de controle, o que seria atribuído a esse
excessivo poder discricionário entregue ao júri e, de outro, a falta de preparo desses
mesmos jurados para estabelecer o quantum266.
Nos Estados Unidos, os punitive damages pareciam não admitir comparações que
levassem em conta os danos efetivamente sofridos pela vítima, mas sim os danos
hipotéticos que poderiam resultar da conduta do ofensor, não fosse a imposição de uma
sanção eficaz em sua função preventiva ou inibitória.267
Teve, então, a Suprema Corte do Alabama que alinhar parâmetros de fixação dessas
indenizações, com o intuito de repelir essas vultosas indenizações e retomar a confiança da
população no instituto268. Em caso paradigmático (BMW of North America, Inc. vs.
Gore269), em que se percebia claramente o exagero da condenação, reconhecendo-se a
264
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 235.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 247.
266
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do
Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
267
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., pp. 236/237.
268
No início, a jurisprudência americana, especialmente a Suprema Corte, negava os recursos contra as
decisões de revisão ou não dos valores de indenização. WINTERSHEIMER, Donald C. Does cooper
industries v. leatherman tool group, inc. require denovo review by state appellate courts?. in
https://litigationessentials.lexisnexis.com/webcd/app?action=DocumentDisplay&crawlid=1&srctype=smi&srcid=3B15&doct
ype=cite&docid=59+N.Y.U.+Ann.+Surv.+Am.+L.+357&key=9dbf66443fc12f0f4fd10e987883a41d,
consultado em 17/6/2012.
269
Após adquirir um veículo automotor da BMW de uma concessionária autorizada da marca, localizada no
Alabama, pelo valor de $40,750.88, e dirigi-lo por nove meses, sem notar qualquer problema, o Senhor Ira
Gore resolveu leva-lo para uma oficina, para que fosse aperfeiçoada a aparência do automóvel. O profissional
que o atendeu constatou que o veículo havia sido repintado, motivando, então, o ajuizamento de ação do
Senhor Gore contra a BMW, no valor de $ 500,000, a título de indenização de natureza reparatória e punitiva,
alegando que o fato de a fornecedora do produto não ter informado a ocorrência de repintura constituiria
violação da boa-fé contratual (suppression of a material fact), o que constituiria fraude, segundo a legislação
do Alabama. No julgamento, a BMW reconheceu que havia adotado uma política nacional, em 1983, a
265
107
afronta ao Due Process Clause, a Suprema Corte traçou linhas para a concessão dos
punitive damages, as quais deveriam ser seguidas pelas demais Cortes estaduais: 1) o grau
de reprovabilidade da conduta do réu, que, por sua vez, seria aferível mediante a
observação dos seguintes fatores: a) se o prejuízo causado foi físico ou meramente
econômico; b) se o ato ilícito foi praticado com indiferença ou total desconsideração com a
saúde ou a segurança dos outros; c) se o alvo da conduta é pessoa vulnerável
economicamente; d) se a conduta envolveu ações repetidas ou foi um incidente isolado; e)
se o prejuízo foi resultado de uma ação intencional ou fraudulenta, ou se decorreu de mero
acidente.
Deve-se ressaltar que a existência desses fatores em favor do autor da ação nem
sempre são suficientes para sustentar uma condenação por punitive damages. A ausência
de todos, por outro lado, torna qualquer condenação temerária.
Efetivamente, os punitive damages apenas deveriam ser deferidos, segundo a
decisão, quando 1) a culpabilidade do réu, após o pagamento dos compensatory damages,
for tão repreensível que importe a imposição de outras sanções, para que se atinjam as
finalidades punitiva e preventiva; 2) constatar-se disparidade entre o dano efetivo ou
potencial sofrido pelo autor e os punitive damages; 3) verificar-se a diferença entre os
respeito de automóveis que foram danificados durante a sua manufatura ou transporte: se o custo do reparo
excedesse 3% do valor sugerido de venda, o carro permanecia dentro da empresa por determinado tempo e,
depois, era vendido como usado. Entretanto, se não houvesse excedente de 3%, o carro era vendido sem
qualquer aviso à concessionária, sem que fosse dada qualquer explicação sobre os reparos que haviam sido
feitos. E, com efeito, o caso do veículo adquirido pelo Senhor Gore se enquadrava nessa segunda hipótese,
não tendo sido a concessionária cientificada sobre essa repintura. Assim, o Senhor Gore alegou que o seu
veículo valia menos do que um carro novo, que não houvesse sofrido essa repintura, tendo sofrido danos
materiais de, aproximadamente, $4,000. Além disso, o Senhor Gore apresentou prova no sentido de que,
desde 1983, a BMW havia vendido 983 carros, cujos custos de reparação não superavam aquele percentual
de 3%. Dessa forma, fazendo a conta de $4,000 vezes 1.000 veículos, chegou ele ao valor de $500,000, que
constituiriam um valor razoável de punitive damages. Ao apreciar o caso, o júri entendeu ser a BMW
responsável pelo prejuízo sofrido pelo Senhor Gore, no valor de $4,000, além de condenar a empresa ao
pagamento da quantia de $4,000,000, a título de punitive damages, sob o entendimento de que teria ocorrido
uma fraude. Dessa decisão apelou a BMW, alegando que havia leis, em ao menos 25 Estados,
regulamentando a desnecessidade de informar os consumidores sobre reparos que não consubstanciassem
percentagem significante do valor do bem. Esse fundamento utilizado pela BMW serviu para mostrar o
exagero de sua condenação, pelo fato de que foram considerados os veículos comprados por consumidores de
todos os Estados, sendo certo de que, em vários deles, essa prática de não informar esse prejuízo
insignificante era legal. Embora a Suprema Corte do Alabama, ao analisar a questão, tenha entendido que os
punitive damages haviam sido fixados com razoabilidade, e que esse valor não geraria grande impacto à
BMW, acabou reduzindo a indenização para $2,000,000, por ser mais razoável constitucionalmente, de
acordo com a Emenda 14 da Constituição (Due Process Clause), com base em análise comparativa com
outros casos. In http://www.law.cornell.edu/supct/html/94-896.ZO.html, consultado em 16/06/2012.
108
punitive damages concedidos pelo júri e as multas civis autorizadas ou impostas em casos
semelhantes.
Pelo que se nota da decisão, a Suprema Corte baseou-se em diversos argumentos no
sentido de determinar a redução da indenização, entendendo que a conduta da BMW
causou dano puramente econômico, que não afetou a segurança ou a saúde da vítima, não
havendo indícios de má-fé, mas sim de interpretação de leis estaduais pelo executivo da
corporação. Nessa mesma esteira, apurou-se a desproporção entre os danos compensatórios
atribuídos à vítima e a indenização a título de punitive damages; e a desproporção entre as
sanções estabelecidas nas leis do próprio Estado, como multas administrativas, e o valor da
indenização.
Após a fixação desses critérios, as decisões do júri vêm constantemente sendo
modificadas pelas Cortes estaduais norte-americanas, retirando-se a ampla liberdade que
até então apresentavam para fixar indenizações. Note-se que, no caso Campbel x Farm270,
foi decidido que deveria existir uma relação de proporção entre indenização compensatória
e indenização punitiva, não podendo esta ser dez vezes maior do que aquela.
Além disso, a Suprema Corte reconheceu outros critérios para enquadrar os casos
de indenização punitiva: i) se o dano causado foi físico ou moral; ii) se a vítima estava em
situação de debilidade; e iii) se o ofensor agiu com indiferença pela segurança alheia271.
É importante salientar que, atualmente, a indenização punitiva, nos EUA, é
concedida em apenas 4% dos casos em que é pleiteada272. Ou seja, há um controle na
atribuição desse tipo de indenização, sendo certo que até ocorreu tentativa de limitar, por
meio de Lei federal, o valor atribuído aos punitive damages, o que já vinha sendo praticado
270
Tratava-se de um acidente automobilístico – cujo culpado era Campbel – que resultou na morte de um
indivíduo e lesões permanentes a outro. Campbel teve negada a cobertura de seu seguro (State Farm Mutual
Automobile Insurance Co.), fazendo com que ele não conseguisse pagar o valor ajustado em acordo de
$50,000, sofrendo, posteriormente, condenação muito superior, de $185,849. Por esse motivo, Campbel
processou a seguradora, alegando má-fé e fraude, obtendo condenação de U$ 145 milhões, a título de
punitive damages.
271
In http://www.casebriefs.com/blog/law/civil-procedure/civil-procedure-keyed-to-yeazell/incentives-tolitigate/state-farm-mutual-automobile-insurance-co-v-campbell/, consultado em 17/8/2012.
272
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na
experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009,p p. 217/218.
109
em alguns Estados. Mesmo aprovado o Projeto de Lei pela Câmara e pelo Senado, foi ele
obstado por veto presidencial.
Fechados os parênteses, nota-se que, ainda que haja regras diversas de aplicação
dos punitive damages para cada Estado federativo, é possível a constatação de alguns
fundamentos comuns para a sua atribuição: “(a) compensação do ofendido (redress for the
plaintiff); (b) a punição do ofensor; e (c) a prevenção de novos danos”273.
A função compensatória é mais facilmente verificável em casos de dano moral,
levando-se em conta o limite bastante singelo existente entre punição e reparação. Lembrese que, inicialmente, os punitive damages eram destinados à punição do ofensor em razão
da humilhação e insulto provocados à vítima.
Assim, com o reconhecimento da reparação por danos morais, alguns Estados
passaram a reconhecer os punitive damages não mais como instrumento de punição, mas
para compensar o abalo psíquico da vítima. Essa confusão é percebida em razão da
inexistência, no direito norte-americano, de uma categoria de dano moral, ao contrário do
que ocorre no direito inglês, em que há os aggravated damages.
Todavia, a ideia dos punitive damages como verdadeiro instrumento de punição é
bem definida, defendida por 38 Estados americanos, que entendem servir tal instituto, ao
menos em parte, como sanção do ofensor.
Alguns Estados enxergam os punitive damages como mero reconforto da vítima,
como é o exemplo de North Dakota, ao passo que outros, numa visão mais socializante,
vêem nos punitive damages um instrumento de paz e ordem social, como é o caso de
Wyoming.
Como antes mencionado, a função preventiva dos punitive damages parece ser uma
nova tendência norte-americana, numa visão de função social do litígio, para que a punição
aplicada sirva de exemplo a outros eventuais ofensores.
273
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 190.
110
Com efeito, o tort law norte-americano tem por finalidade não somente a reparação
ou compensação do dano ocorrido, mas também a prevenção de danos futuros274. Atesta
Nelson Rosenvald que os punitve damages são deferidos com duas finalidades: retributiva
(punishment) e desestímulo (deterrence). Assim, a retribuição reclama que a conduta
revele extrema reprovação social, representada por uma malícia – dolo ou grave
negligência do agente –, cumulada ao desestímulo, no sentido de que a pena servirá para
afligir o ofensor, induzindo-o a não reiterar o comportamento antissocial275. Por isso que os
punitive damages são utilizados como ferramenta de prevenção específica (dissuadir o
ofensor da reiteração da conduta) e prevenção geral da conduta ilícita (alertar a sociedade a
respeito da intolerabilidade da prática ilícita)276.
De se ressaltar, também, a importância dos elementos atinentes à gravidade da
conduta do agente, o que parece ser uma unanimidade em todos os Estados, fazendo-se
necessária a configuração do dolo, definido tanto como o ato intencional de alcançar o
resultado, quanto se, mesmo não alcançado, o autor da conduta esteja certo de que ele se
concretizará.
Outra hipótese decorre da culpa grave (reckless) que, nos termos da Seção 500 do
Second Restatement of Torts, deve ser separada das condutas meramente negligentes ou
imprudentes. O agente deve não apenas ter consciência da gravidade do dano ou do risco
que seu ato possa gerar o dano, mas também um comportamento indiferente que, no
ordenamento brasileiro, aproximar-se-ia das figuras do dolo eventual ou da culpa
consciente277.
Por isso que nenhum Estado americano permite a aplicação de indenizações
punitivas em casos de simples negligência ou de responsabilidade objetiva, salvo algumas
274
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do
Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
275
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 144.
276
BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial
do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC/SP p. 107, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf,
consultado em 7/10/2013.
277
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 193.
111
exceções quanto a essa última hipótese278. Certamente, as condutas lesivas decorrentes de
ignorância (ignorance), culpa simples (mere negligence) ou engano (mistake) ficam fora
do âmbito dos punitive damages279.
Na maioria dos Estados norte-americanos, a concessão dos punitive damages fica,
como antes dito, a cargo do júri, que, embora ausente de paradigmas expressos, deve
balizar-se de acordo com alguns critérios, utilizados em grande parte desses Estados,
definidos, sobretudo, a partir daquele julgado da Suprema Corte do Alabama (BMW of
North America, Inc. vs. Gore): a) capacidade econômica do ofensor; b) a proporção entre
danos compensatórios e danos punitivos; c) a natureza e a gravidade do dano; d) o grau de
culpa do agente; e e) qualquer outro fator relevante.
Em diversos Estados, muito em razão do elevado poder discricionário dado ao júri,
aliado ao seu aparente despreparo para fixar o quantum indenizatório referente à punição,
há limitação desse valor. Dezoito Estados fixam tetos indenizatórios, enquanto outros
estabelecem a necessidade de proporção entre os danos compensatórios e os punitive
damages.
Além disso, as indenizações punitivas concedidas pelas Cortes americanas – fato
que já ocorre há vários anos – não são mais destinadas integralmente às vítimas. Pelo
contrário, como acontece em, ao menos, treze Estados, que exigem a destinação de parte
do quantum a fundos públicos, grande parte dessa indenização é revertida ao Estado, como,
por exemplo, em Indiana (75% da indenização). De fato, o autor da ação acaba figurando
como verdadeiro ator social, representante da coletividade.
Verifica-se ainda que, nos últimos 20 anos, a perplexidade e o medo existentes a
respeito dos punitive damages vêm sendo refreados pelo sistema judicial, que já há algum
278
Aponta Carolina Vaz que, em algumas situações, os tribunais norte-americanos têm reconhecido a
necessidade de aplicação de indenizações punitivas, mesmo em casos de responsabilidade objetiva, sobretudo
quando houver colocação de produtos defeituosos ou perigosos no mercado, pelo produtor que conhece o
vício ou não faz os testes de segurança necessários, demonstrando flagrante indiferença pela segurança, saúde
ou bem-estar dos consumidores. In VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à
Punição e Dissuasão – Os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009, p. 54.
279
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do
Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
112
tempo questionava os desvios desse instituto em relação aos princípios constitucionais,
mostrando-se cada vez mais balizada e equilibrada a sua aplicação.
Tome-se também por certo que um dos objetivos do tort law americano é impedir a
possibilidade de visualizar uma lógica econômica, numa razão de custo/benefício, nas
condutas danosas praticadas pelas grandes empresas. É justamente contra essa lógica
econômica que se insurge esse sistema, ao impor indenizações que refletem não apenas
uma punição ou prevenção, mas, sobretudo, que impeçam o ofensor de prevê-las, logo, de
incorporá-las em seus custos fixos, a fim de considerá-las na consecução do ilícito e
mesmo repassar tal custo para seus consumidores.
Em vários julgados é possível perceber a aplicação dos critérios antes mencionados,
assim como os tipos de casos decididos pelas Cortes americanas, na concessão de
indenizações punitivas.
Como exemplo de vinculação dos julgados àqueles limites traçados pelo caso Gore,
é possível citar a decisão do caso Cooper Industries, Inc v. Leatherman Tool Group, Inc, a
respeito de duas empresas fabricantes de ferramentas, em que foi revisada a decisão, com a
conseqüente redução da indenização.
A Leatherman acusava a Cooper de ter copiado uma ferramenta por ela
desenvolvida, alegando violação do Trademark Act. O júri, ao analisar a questão, concedeu
o valor de $ 50.000,00, a título de compensatory damages, e a cifra de $ 4.500.000,00 em
punitive damages, além de proibir a Cooper de colocar a ferramenta no mercado. Por meio
de decisão dividida da Suprema Corte, foi determinada a reapreciação da questão pela
Corte de apelação, segundo os critérios anteriormente fixados no caso Gore, pelo excessivo
valor de punitive damages arbitrado.
Importante notar que foi delineada, nesse julgado, a diferenciação entre os
compensatory e os punitive damages, prestando-se os primeiros a reparar perdas concretas,
enquanto os segundos tratariam de instituto quasi-criminal, operado por penalidade
privada, destinada à punição do lesante, como também para impedir repetições futuras
desses maus procedimentos. Não apenas isso, mas a avaliação dos compensatory damages
113
seria meramente factual, ao passo que os punitive damages seriam expressão de uma
condenação de natureza moral (ética). Esse julgado foi importante por ter permitido que
diversos Estados mudassem seus posicionamentos, para que fossem limitadas as
indenizações por punitive damages, a exemplo de Alabama, Kentucky, Novo México e
Oregon280.
Em outro caso, julgado em 7 de abril de 2003 pela Suprema Corte, em que eram
partes State Farm Mutual Automobile Insurance Co. v. Campbell et al, e pelo qual se
discutia a má-fé e perturbação emocional intencional causada pela seguradora aos
consumidores, o júri conferiu indenização de $2.6 milhões em compensatory damages e
$145 milhões em punitive damages. Em grau de recurso, a Corte de Apelação reduziu os
valores para $1 milhão em compensatory damages, e $25 milhões em punitive damages.
Ao apreciar a questão, a Suprema Corte verificou a violação do Due Process Clause, por
meio também da utilização dos parâmetros traçados no caso Gore, assentando a
necessidade de correlação entre os compensatory damages e os punitive damages281.
Além dessas decisões que se consubstanciaram nos limites traçados pelo caso Gore,
outros casos apontam claramente os mecanismos e limites utilizados para a fixação dos
punitive damages, como indicam Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler 282:
1) Ford Corporation v. Grimshaw (1981) – Um automóvel produzido pela Ford, de nome
Pinto, explodiu, após colisão com outro veículo, ocasionando a morte de três ocupantes.
Constatou-se, posteriormente, que, embora a Ford tivesse acesso a um novo design, que
faria decrescer a possibilidade de seu veículo explodir em eventuais colisões, e que teria
custado a ela $ 11,00 por automóvel, preferiu utilizar-se do antigo sistema de combustível
280
WINTERSHEIMER, Donald C. Does cooper industries v. leatherman tool group, inc. require denovo
https://litigationreview
by
state
appellate
courts?.
In
essentials.lexisnexis.com/webcd/app?action=DocumentDisplay&crawlid=1&srctype=smi&srcid=3B15&doct
ype=cite&docid=59+N.Y.U.+Ann.+Surv.+Am.+L.+357&key=9dbf66443fc12f0f4fd10e987883a41d,
consultado em 17/6/2012.
281
Ficou decidido que “To determine a defendant’s reprehensibility–the most important indicium of a
punitive damages award’s reasonableness–a court must consider whether: the harm was physical rather
than economic; the tortious conduct evinced an indifference to or a reckless disregard of the health or safety
of others; the conduct involved repeated actions or was an isolated incident; and the harm resulted from
intentional malice, trickery, or deceit, or mere accident.” In http://www.law.cornell.edu/supct/html/011289.ZS.html.
282
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., pp.
19/21.
114
que agravava esse risco de explosão. Isso ocorreu mesmo depois da apresentação de uma
análise que demonstrava que a adoção do novo design salvaria por volta de 180 vidas. Ao
tomar conhecimento do caso, o corpo de jurados decidiu pela condenação da Ford em
compensatory damages, estipulados em $ 560.000,00 para uma das famílias e $
2.500.000,00 para a outra, assim como ao pagamento de $ 125.000.000,00 em punitive
damages, por considerar que o comportamento da empresa havia sido altamente
reprovável. Constatou-se, ao longo do processo, que a Ford havia efetuado uma análise fria
do custo/benefício que iria ter ao realizar essa modificação do design, baseando-se apenas
na estatística de quantas pessoas ingressariam com demandas em juízo para serem
ressarcidas, em caso de algum dano resultante dessa falha, deixando de lado o custo social
que essa modificação traria. O juiz presidente acabou reduzindo essa verba indenizatória
para $3.5 milhões, como condição para poder negar o pedido de realização de um novo
julgamento. Dois anos após, essa decisão foi confirmada pela Corte de Apelação, em todos
os aspectos, tendo sido denegado pela Suprema Corte o pedido de audiência feito pela
Ford283. Adverte Paula Meira Lourenço que esse caso constitui um dos mais importantes
marcos da jurisprudência norte-americana, na medida em que abriu a porta à condenação
de punitive damages em casos de responsabilidade civil do produtor, sempre que este tiver
agido com negligência grosseira ou com indiferença à segurança do consumidor. Além
disso, após esse caso, os consumidores americanos passaram a confiar aos punitive
damages a tutela do direito à vida e à integridade física, porquanto nem a atribuição de
uma compensação pecuniária pelos danos sofridos pelos lesados, nem as normas legais
acerca da segurança dos produtos seriam suficientes para dissuadir os agentes económicos
de descumprirem a lei284
2) Texaco x Pennzoil (1984) – Nesse caso, a Pennzoil negociava com os principais
acionistas da Getty Oil, para se tornar, juntamente com Sarah C. Getty Trust, um dos
únicos acionistas daquela empresa. Foi, inclusive, firmada uma carta de intenções entre as
partes, pela qual se estabeleceu o valor de 110 dólares por ação da Getty Oil. No dia 4 de
janeiro, foi anunciada ao público a existência desse referido acordo. Ocorre que a Texaco,
283
In http://www.wfu.edu/~palmitar/Law&Valuation/Papers/1999/Leggett-pinto.html, consultado em
10/4/2012.
284
LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra
realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema
Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do
painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória.
115
principal concorrente da Pennzoil, começou a negociar secretamente com os acionistas da
Getty Oil, tendo sido ajustado entre essas partes o pagamento de 128 dólares por ação.
Assim, em 6 de janeiro, foi lançada uma nota à imprensa, assinada pela Texaco, que
anunciava o acordo firmado entre ela e os acionistas da Getty Oil. Por conta disso, a
Pennzoil ingressou com ação contra a Texaco baseada no tort of induction into breach of
contract (responsabilidade pela indução à violação de contrato), tese que foi acolhida, tanto
em razão da falha na estratégia da assessoria jurídica da empresa, ocasionando na
condenação da Texaco em 7.53 bilhões de dólares a título indenizatório, acrescida da verba
de 3 bilhões de dólares em punitive damages. Ficou evidenciado que a Texaco nem
conseguiria pagar aquele valor de 128 dólares por ação, o que demonstrava a sua
inequívoca má-fé em atrapalhar aquela outra transação. A Suprema Corte do Texas, ao
analisar o recurso da Texaco, acabou reduzindo a indenização dos punitive damages para 1
bilhão de dólares, resultando, então, numa condenação de 8.53 bilhões de dólares. Após
três dias da publicação dessa decisão, a Texaco apresentou pedido de falência285.
3) Midler v. Ford Motor Co (1988) – A cantora e atriz Bettie Midler recusou-se a participar
de um anúncio publicitário da Ford, em razão dos valores que lhe foram oferecidos. No
entanto, a Ford acabou contratando uma sósia da atriz, que realmente fez com que o
público imaginasse ser a própria Bettie Midler. O Tribunal, ao decidir o caso, considerou
ter ocorrido um contractual bypass, em razão de ter a Ford escolhido utilizar,
abusivamente, a imagem de Bettie Midler, sem celebrar qualquer contrato com a cantora,
argumentando, ainda, que a voz, assim como a face, são elementos identificadores da
pessoa protegidos pela lei286.
4) Browing-Ferris Industries of Vermont v. Kelco Disposal Inc. (1989) – Após a empresa
Browing-Ferris tentar excluir do mercado a Kelco Disposal, foi reconhecido pelas cortes
de primeiro grau e de apelação uma conduta ilícita relacionada às práticas contratuais.
Como a Browing-Ferris agiu com o único propósito de causar um dano à Kelco, sofreu
condenação no valor de $ 6.000.000,00 em punitive damages e $ 51.146,00 em
compensatory damages. Embora a Browing-Ferris tenha recorrido à Corte de apelação, sob
285
In http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=us&vol=481&invol=1, consultado em
15/6/2012.
286
In http://www.scribd.com/doc/31160187/16/Midler-v-Ford-Motor-Company, consultado em 30/10/2012.
116
a alegação de valores excessivos da condenação, decidiu-se que os argumentos utilizados
pelo júri fundamentavam a quantia indenizatória e punitiva287.
5) Pacific Mutual Life Insurance v. Cleopatra Haslip et al. (1991) – Após um contrato de
seguro-saúde ter sido resilido, em virtude de apropriação dos prêmios pagos pelo
contratante, por um indivíduo chamado Ruffin e outro, que eram os agentes que
trabalhavam para a operadora de seguros Pacific Mutual Life Insurance e outra seguradora,
houve condenação, a título de compensatory e punitive damages, não apenas ao agente de
seguros, em razão da fraude que cometeu, mas também contra a Pacific Insurance, por sua
responsabilidade pelos atos de seus empregados, em valor superior a $ 1,000,000288. O
valor arbitrado por punitive damages foi fixado ao equivalente a quatro vezes a quantia
pedida pela autora da ação por compensatory damages.
6) TXO Production Corp. V. Alliance Resources Corp. (1993) – Esse foi um importante
paradigma relativo aos punitive damages, na medida em que foi formulada de maneira
mais ampla a questão de sua constitucionalidade. Tratava-se o caso de um acordo firmado
pelas duas empresas, cujo fim era a extração de petróleo, pela TXO, de uma área arrendada
pela Alliance. Verificou-se no processo que a TXO adotou comportamento fraudulento, no
curso da execução do contrato, com a única finalidade de acrescentar uma modificação no
acordo, por meio de adições que só a ela favoreciam. Houve, assim, condenação da TXO
de $ 19.000,00 em actual damages e de $ 10.000.000,00 em punitive damages. Ao final,
em que pese a indenização punitiva ter sido estipulada em 526 vezes o valor da verba
compensatória, a Suprema Corte de Virgínia decidiu que ”It is appropriate to consider the
magnitude of the potential harmthat the defendant's conduct would have caused to its
intended victim if the wrongful plan had succeeded, as well as the possible harm to other
victims that mighthave resulted if similar future behavior were not deterred”289. A
principal razão adotada, portanto, para a fixação do valor, foi a má-fé da TXO. Além disso,
a Suprema Corte definiu como deveria proceder o juiz, ao analisar caso que envolvesse
punitive damages290. Admite-se, então, a variação dos valores indenizatórios a partir da
287
In http://supreme.justia.com/cases/federal/us/492/257/, consultado em 27/6/2012.
In http://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/499/1, consultado em 16/7/2012.
289
In http://www.law.cornell.edu/supct/html/92-479.ZO.html, consultado em 11/4/2012.
290
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p.
20. Como destacam as autoras, a partir da leitura e interpretação do julgado, o juiz “deve colocar em
evidência, diante do júri, o montante do dano concretamente realizado e a conduta lesiva do responsável do
288
117
análise da gravidade e do tipo de comportamento ilícito, devendo ser observados tais
critérios para garantir a efetividade do due process.
7) Honda Motors Corp. V. Karl Oberg (1994) – Esse emblemático caso virou um
precedente histórico na jurisprudência norte-americana, quando a Suprema Corte anulou a
decisão da Corte estadual de Oregon, em razão de violação do devido processo legal
previsto na Emenda 14 da Constituição. Verificou-se que houve uma violação ou ataque à
garantia legal do direito de propriedade. Isso porque a Corte estadual havia fixado
indenização milionária de punitive damages, correspondente a cinco vezes mais do que o
valor destinado à reparação dos compensatory damages. Constatou-se, ainda, que o sistema
legal dos punitive damages de Oregon violava o devido processo legal por não permitir a
redução da indenização fixada pelos jurados, mesmo nos casos em que a condenação
apresentava-se excessiva. Consignou, destarte, a Suprema Corte que os punitive damages
eram uma forma perigosa de castigo, e que mereciam controle pelos tribunais, pelo
evidente risco de decisões abusivas e parciais291.
Verifica-se, assim, pela breve análise desses casos, que o próprio sistema norteamericano de punitive damages encontra critérios, fixados pela Constituição ou pela
jurisprudência, de forma a evitar abusos e condenações excessivas.
Decerto, os punitive damages, nos Estados Unidos, não se vinculam
exclusivamente ao arbítrio do julgador ou se aplicam à generalidade dos casos, levando-se
em consideração tanto esses critérios fixados pela Constituição e pela jurisprudência,
quanto os limites de aplicação do próprio instituto. Não se pune, por exemplo, e no mais
ilícito; deve tomar em consideração não somente a censurabilidade, a duração e a frequência da conduta,
mas também o comportamento do responsável após o cometimento do ilícito; para fixar o montante dos
punitive damages, é preciso determinar se o sujeito lesado teve uma vantagem econômica da própria
conduta ilícita; assumindo os punitive damages função dissuasória, é essencial medir-lhes de modo que
sejam superiores com relação a tais vantagens; em qualquer caso, deve-se considerar a situação econômica
do causador do dano; outros fatores importantes para a ponderação judicial consistem nas despesas legais
suportadas pelo lesado; a imposição de uma sanção penal sobre o causador do dano; a existência de outras
ações pelo mesmo ilícito; a idoneidade da condenação dos punitive damages para favorecer transações
equitativas e razoáveis, nos casos em que seja patente a responsabilidade do autor do ilícito”.
291
In http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=US&vol=000&invol=u10375, consultado em
27/6/2012.
118
das vezes, casos em que o que se discute é a responsabilidade objetiva do agente, na
medida em que a conduta culposa não é apreciada para a atribuição da responsabilidade292.
Da mesma forma, não se punem os casos em que a ação não foi acompanhada de
particular gravidade, que mereça a repreensão ante o “fundado e grave juízo de
reprovação” que ele acarreta.
De igual sorte, o mito das indenizações milionárias já foi há muito abandonado,
havendo limites para a concessão dos punitive damages que, caso não respeitados, são
retificados pelas Cortes superiores.
Constata-se, então, a importância que teve a evolução da jurisprudência, para que se
instituíssem critérios – às vezes bastante objetivos – de fixação dos punitive damages,
fazendo com que o instituto e a sua aplicação pelos Tribunais passasse a receber aceitação
de seus jurisdicionados.
A grande diferença entre o sistema americano e o sistema britânico está na ótica
muito mais econômica que orienta a aplicação dos punitive damages no primeiro, enquanto
o último se preocupa muito mais com a limitação de abusos. O fato é que, nos dois casos, o
ilícito lucrativo é o principal fundamento das indenizações punitivas.
Mas, “Se nos EUA se observa uma tendência de limitação dos danos punitivos, na
Inglaterra, ao contrário, há um arrefecimento dos filtros de aferição”293. O que aproxima
as duas escolas é, justamente, a construção de um instituto por meio de tentativas, acertos e
erros, sendo clara a necessidade do estabelecimento de critérios objetivos, que norteiem a
aplicação dos punitive damages, fazendo com que sejam cumpridas as suas funções, de
forma a efetivamente proteger a coletividade, e não simplesmente tornar mais rico cada
indivíduo que busque a condenação dos ofensores.
292
Conforme destacam Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler, nos casos de responsabilidade do
produtor (products liability), em que a responsabilidade é objetiva, há aplicação dos punitive damages,
quando o lesado, já ressarcido do prejuízo sofrido, comprove a particular gravidade da conduta do produtor.
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva..., p. 21.
293
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 202.
119
Note-se, ainda, que alguns outros países têm adotado, pontualmente, a doutrina dos
punitive damages – não utilizando, entretanto, os mesmos requisitos –, especialmente
quando relacionado o caso aos meios de comunicação social, como é o caso de Alemanha e
Itália.
Na Alemanha, ainda que não exista previsão expressa para aplicação de uma sanção
punitiva, sempre que se trata da utilização de direitos à imagem de personalidades
públicas, sem sua autorização, para fins publicitários, observa-se o lucro obtido pelo
agente, primordialmente se ele é superior quer à compensação atribuída ao lesado, quer ao
preço do consentimento ou preço da licença (Lizenzanalogie), aplicando os tribunais
indenizações com verdadeira feição de pena civil. Na fundamentação jurídica das decisões,
afirma-se que importa aumentar, de forma significativa, a indenização, para prevenir a
conduta (função preventiva) e punir o lesante (função punitiva)294.
Por sua vez, a jurisprudência italiana tem aumentado o montante das indenizações
sancionatórias ou punitivas por danos não patrimoniais sempre que ocorre a violação de
direitos de personalidade através dos meios de comunicação295.
Refere Paolo Gallo que o desenvolvimento da pena privada, na Itália, ocorreu
somente a partir da metade da década de 70, em decorrência da expansão dos direitos da
personalidade, influenciado pelo direito anglo-saxão, existindo entendimento favorável à
sua utilização quando o mero ressarcimento do dano, ou a ausência de dano, ou o lucro
excedente ao dano não for idôneo a desenvolver uma suficiente função de dissuasão296.
Conclui Anderson Schreiber que a argumentação utilizada volta-se à tutela dos
interesses da pessoa humana, argumentando-se que a proteção da pessoa, como valor
prioritário do ordenamento jurídico, justifica a condenação em uma indenização adicional
àquela simplesmente compensatória. Assim, a função punitiva é defendida nessas hipóteses
ao argumento de que, sendo intrinsecamente grave e incalculável o prejuízo gerado pela
294
VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à Punição e Dissuasão – Os punitive
damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 70.
295
LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra
realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema
Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do
painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória.
296
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p. 53/58.
120
violação de um interesse da personalidade, “a tutela reservada pelo ordenamento a tais
lesões possui natureza não compensatória, mas eminentemente punitivo-satisfativa”297.
Faz-se, tal como ocorre no Brasil, uma análise de funções sancionatória, satisfativa
e de deterrence do dano moral, para aplicação de indenizações punitivas, no âmbito civil,
valendo-se da análise da proporcionalidade ou da equidade na utilização de critérios
jurídicos e, posteriormente, da valoração de suas consequências298.
Na Argentina, da mesma forma, a indenização punitiva, ante a ausência de previsão
legal, é autorizada por vias laterais, acrescida ao mesmo valor compensatório destinado à
reparação por danos morais. Atestam os julgadores que, em algumas situações, deve ser
potencializado o aspecto sancionatório do dano moral (que teria uma natureza mista:
indenizatória e sancionatória, ao mesmo tempo), para que a indenização tenha um efeito
exemplificador no mercado, evitando-se também a impunidade perpétua na efetivação de
um efeito persuasivo299.
Andou bem, ao entanto, o ordenamento argentino, ao inserir expressa previsão de
indenização punitiva na lei de defesa do consumidor, criada em 2008 (Ley 26.361300 –
LDC), facultando ao julgador, a partir da análise da gravidade da conduta do fornecedor e
demais circunstâncias relacionadas ao caso, a imposição de uma multa civil.
3.2 OS SOCIETAL DAMAGES
297
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 201/202.
298
BROGGINI, Gerardo. Compabilità di Sentenze Statunitensi di Condanna al Risarcimento di “Punitive
Damages” com il Dirito Europeo Della Responsabilità Civil, p. 483 e 487. In BONELL, Joachim et alli.
Europa e diritto privato. Milão: Giuffrè, Rivista trimestral, nº 45, 1998, pp. 479/507.
299
CHAMATROPULOS, Demetrio Alejandro. Los Daños Punitivos en la Argentina: Legislación.
Jurisprudencia. Doctrina. Buenos Aires: Errepar, 2009, pp. 43/46
300
“Artículo 52 – Al proveedor que no cumpla sus obligaciones legales o contractuales con el consumidor, a
instancia del damnificado, el juez podrá aplicar una multa civil a favor del consumidor, la que se graduará
em función de la gravedad del hecho y demás circunstancias del caso, independientemente de otras
indemnizaciones que correspondan. Cuando más de um proveedor sea responsable del incumplimiento
responderán todos solidariamente ante el consumidor, sin perjuicio de las acciones de regresso que les
correspondan. La multa civil que se imponha no podrá superar el máximo de la sanción de multa prevista
em el artículo 47, inciso b, de la ley”.
121
Atualmente, nos EUA, discute-se os punitive damages a partir de um viés de
“social harm measure”301, vislumbrando-se uma nova categoria de dano, denominada por
Catherine M. Sharkey de societal damages302, delineada entre as categorias dos punitive
damages e dos compensatory damages.
A teoria do societal damage estaria presente quando o dano provocado à vítima
ultrapassasse a sua esfera pessoal, pulverizando-se num grupo de indivíduos ou na
sociedade, o que levaria a uma compensação social, fazendo valer também as funções de
punição e dissuasão, aproximando, destarte, o Judiciário do Legislativo, no sentido de que
a lei é aplicada em benefício de todos, o que seria alcançado pela indenização, ou melhor,
pela forma como ela é efetivada: em benefício coletivo e não individual.
Afirma Catherine M. Sharkey que a figura do societal damage é uma categoria de
dano escondida dentro dos punitive damages, mas que, pela sua importância e abrangência,
deveria ser vista agora de forma explícita303.
Esse dano poderia restar configurado em duas distintas situações: 1) um único ato
ilícito que afeta múltiplas vítimas, ou 2) a prática de um padrão de ato ilícito, uma
reiteração danosa, que também afeta diversas pessoas, resultando, ambos os casos, na
majoração da indenização304. Ou seja, compensar-se-iam virtualmente aqueles que também
sofreram com os danos discutidos em processo do qual não fizeram parte.
Seria possível, grosso modo, dividir os societal damages em duas categorias: 1)
danos específicos, quando possível identificar-se os indivíduos atingidos; e 2) danos
difusos, quando afeta a sociedade. A categoria dos danos difusos primaria pela proteção do
bem-estar social305.
Criar-se-ia, assim, um fundo de societal damages, por meio do qual outros
indivíduos que sofressem o dano pudessem ser ressarcidos, se assim o decidissem.
301
BUDYLIN, Sergey. Punitive Damages as a Social Harm Measure:Economic Analysis Continues. In
http://works.bepress.com/sergey_budylin/1, consultado em 30/3/2013.
302
SHARKEY. Catherine M. Punitive damages as societal damages. In Yale Law Journal, nov./2003.
303
SHARKEY. Catherine M. Punitive damages as societal damages. In Yale Law Journal, nov./2003.
304
SHARKEY. Catherine M. Punitive damages as societal damages. In Yale Law Journal, nov./2003.
305
SHARKEY. Catherine M. Punitive damages as societal damages. In Yale Law Journal, nov./2003.
122
O viés dos societal damages voltar-se-ia para restaurar a ligação entre a
compensação e a dissuasão, além de colocar uma ênfase maior nas consequências
distributivas. Avançar-se-ia também em relação aos ideais de justiça corretiva, na medida
em que se permitiria a distribuição dos punitive damages para todos aqueles que sofreram
danos iguais ou similares, e não mais somente para a vítima.
3.3 AS FAUTES LUCRATIVES
O direito francês, atento a essa nova configuração social e os problemas dela
decorrentes, não ficou para trás da tradição da Comonwealth. Isso porque foi apresentado,
em setembro de 2005, ao Ministro da Justiça, o Anteprojeto de Reforma do Direito das
Obrigações, que traz novos instrumentos de proteção relacionados à responsabilidade civil,
destacando-se aquele que procura reprimir a prática de “ilícitos lucrativos”, ou seja, aquele
cálculo, feito especialmente pelas empresas, do lucro obtido, ainda que pagas as
indenizações oriundas do dano causado; em outras palavras, a opção pela prática lesiva, em
virtude do evidente lucro que ela proporciona; ou “apesar dos danos e juros que o
responsável é condenado a suportar, e que são calcados nos prejuízos suportados pela
vítima, deixam a seu autor uma margem de benefício suficiente para que ele não tenha
nenhuma razão para deixar de cometê-la”306.
Em presença de falhas muito graves ou que revelem inconsciência total do perigo, a
privação de lucros teria caráter realmente punitivo, de tal modo que, se a falta é lucrativa
para o agente causador do dano, ficaria confiscado esse seu lucro, realizado de forma
ilícita307.
306
[...] malgré les dommages et intérêts que le responsable est condamné à payer - et qui sont calquées sur le
préjudice subi par la victime - laissent à leur auteur une marge bénéficiaire suffisante pour qu’il n’ait
aucune raison de ne pas les commettre. In CHANIAL, Jean-Baptiste; MASSOT, Pierre. L’aggravation des
sanctions pénales en matière de contrefaçon: coup dans l’eau dans la lutte contre la contrefaçon?. In
http://www.legalbiznext.com/droit, consultado em 2/7/2012.
307
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, p. 55.
123
Com efeito, as indenizações punitivas, na prática, nunca existiram no direito
francês, tendo sempre a Corte de Cassação insistido no princípio do restitutio in integrum.
Como visto, na família da common Law e nos ordenamentos jurídicos vinculados à
tradição romano-germânica, as penas privadas trilharam caminhos distintos. Nessa última,
que previa uma rigorosa separação entre responsabilidade civil e penal, sobretudo após a
edificação do Code Civile, as penas privadas eram enxergadas como “resquícios da
barbárie, entrando em desuso”308. Ocorre que, atualmente, evidencia-se a insuficiência
deste princípio no âmbito de uma responsabilidade civil socializante. Até mesmo esse
sistema jurídico francês, tão apegado aos limites rigorosos da responsabilidade civil, acaba
se rendendo a essa evidente necessidade de ampliação.
Fato curioso, que se percebe na França, refere-se à desnecessidade de o magistrado
justificar a quantificação dos danos concedidos em casos de responsabilidade civil. De
fato, a Corte de Cassação não pode controlar essa discricionariedade do juiz, podendo
atuar, apenas, quando violado o princípio da reparação integral. Dessa forma, torna-se
tormentoso o trabalho de verificação da verdadeira intenção da condenação por
indenização: se meramente restitutória ou com caráter de punição ou de prevenção, embora
ainda apareça denominada como uma restituição, nesses últimos dois casos.
O fato é que, em estudo realizado em 1983, verificou-se que as indenizações
compensatórias em casos de morte decorrente de conduta culposa do réu eram, em sua
média, maiores do que aquelas atribuídas aos casos de responsabilidade objetiva,
revelando, portanto, a verdadeira atuação da magistratura francesa em, mesmo sem regras
permissivas, extravasar o seu desejo de sanção das pessoas que teriam causado danos de
forma culposa, ou se enriquecido com o ato lesivo, mesmo que irrelevante a verificação da
culpa309. Mesmo antes do anteprojeto de reforma do Direito das Obrigações, por
conseguinte, observava-se a tendência da jurisprudência em aplicar indenizações punitivas
para os casos de maior gravidade.
308
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70.
309
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 204.
124
Em razão do princípio da restituição integral, as indenizações punitivas vinham
mascaradas sob a forma de dano moral, que acabavam assumindo, especialmente nos casos
de pessoas jurídicas, verdadeira função de prevenção. Havia – e isso ainda ocorre – uma
punição velada, porquanto não admitida a superação da barreira do restitutio in integrum.
Agora, com o Anteprojeto Catala, percebe-se o maior avanço do direito francês em
relação à internalização e permissão das indenizações punitivas, trazendo-se, para este
ordenamento consular, a ideia de punição contra as fautes lucratives (ilícitos que geram
lucros).
Certamente, o artigo destinado à repreensão da “culpa lucrativa” ou “ilícito
lucrativo” (art. 1371310) merece atenção, na medida em que determina, primeiramente, que
se volte para a conduta do ofensor, tanto para qualificá-la como culposa (culpa
manifestamente deliberada), quanto para que seja verificado o lucro obtido (uma culpa
voltada à intenção de lucrar), consubstanciando, destarte, os ensinamentos apontados pelas
doutrinas americana e inglesa.
Na sequência, constata-se a incorporação da moderna tendência norte-americana de
autorizar o julgador a destinar, de acordo com a sua discricionariedade, parte da
indenização ao Poder Público (ou a um fundo ou à Fazenda Pública).
Um terceiro ponto de extrema importância que se tira do mencionado artigo referese à fundamentação que deve preceder a aplicação das indenizações punitivas, para que
haja segurança jurídica na sua utilização, de modo que o instituto não apresente, logo em
seu nascimento, fragilidade. O mesmo citado artigo deixa clara a intenção da lei em separar
essa indenização punitiva de todas as outras verbas eventualmente recebidas pela vítima,
além de ter que apresentar razões específicas para ser aplicada.
Por fim, o mesmo artigo prevê a impossibilidade de securitização dos riscos
derivados da indenização punitiva, como já era tendência na França e nos EUA, para os
310
“Art. 1371: A person who commits a manifestly deliberate fault, and notably a fault with a view to gain,
can be condemned in addition to compensatory damages to pay punitive damages, part of which the court
may in its discretion allocate to the Public Treasury. A court’s decision to order payment of damages of this
kind must be supported with specific reasons and their amount distinguished from any other damages
awarded to the victim. Punitive damages may not be the object of insurance”.
125
casos de indenização compensatória. O intuito é justamente não permitir que as empresas
internalizem esse custo, tornando-o previsível e transformando-o em despesa fixa, por
meio de cálculos atuariais. A referida norma, portanto, “torna praticamente real uma
concepção que já vinha subliminar há certo tempo, de que a responsabilidade civil tende a
se tornar exclusivamente punitiva”311.
Essa evolução do Direito francês, especificamente quanto à responsabilidade civil,
em verdadeira superação a antigos paradigmas, parece ser a tendência que será doravante
seguida pelos demais ordenamentos jurídicos, que se preocupam em encontrar novas
ferramentas para a repreensão de condutas que causam mal a toda a coletividade. De fato,
o Direito não pode mais ser visto de maneira atômica, na figura de cada indivíduo, mas no
interesse de toda a sociedade. Como revela Geneviève Viney, esboça-se hoje nos países de
direito escrito um movimento em favor da admissão, em certas áreas e com a adoção de
certas precauções, da privação de lucros com caráter não reparatório312.
311
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 206.
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, p. 55.
312
126
CAPÍTULO IV
O DANO SOCIAL
A partir de toda a análise anteriormente realizada, a respeito dos instrumentos de
repressão e prevenção utilizados no Brasil e também por diferentes culturas jurídicas para
combater essas novas categorias de danos, especialmente aqueles que atingem toda a
sociedade, direta ou indiretamente, partir-se-á para a análise da necessidade de
reconhecimento de uma nova categoria de lesão, ponderando-se se é possível a sua
aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, se os instrumentos por ela fornecidos seriam
suficientes para conter esses danos de massa e, por fim, se é possível admitir a sua
existência.
Parece que o estudo já realizado sobre os instrumentos que poderiam ser utilizados
para a reversão dessas situações danosas mostrou que, atualmente, os mecanismos de
proteção são insuficientes, sendo necessária a adoção de medidas para ativar novamente o
bem-estar de uma sociedade claramente angustiada.
Explica Yussef Said Cahali que o Direito vem passando por profundas
transformações, sintetizadas pela palavra “socialização”, que traduz o impacto da
revolução tecnológica em geral e das alterações havidas no tecido social, conduzindo esse
mesmo Direito ao primado do coletivo sobre o individual313. Não é possível, portanto,
enxergar o Direito sem apreender as transformações coletivas operadas a uma velocidade
antes não imaginável.
Como afirma Geneviève Viney, uma das tendências principais da responsabilidade
civil, hoje, refere-se à organização de um sistema de indenização próprio para o combate
ao que denomina “danos de massa”, figura ainda não bem assimilada pelo vocabulário
313
CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 352.
127
jurídico, mas que define os danos devidos a uma causa única que atingem simultânea ou
sucessivamente grande número de pessoas314.
Embora o termo “dano de massa” pareça adequado, a nomenclatura “dano social”
reflete melhor o significado que se busca neste estudo, querendo significar os danos,
individuais ou coletivos, que irradiam os seus efeitos sobre toda a coletividade, o que
passará a ser, doravante, analisado.
4.1 O CONCEITO DE ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO
Antonio Junqueira de Azevedo, por meio de parecer publicado originalmente na
Revista Trimestral de Direito Civil, ano 5, v. 19, jul-set, em 2004, trouxe ao Brasil, pela
primeira vez, o que resolveu chamar de “dano social”, elencando-o como uma nova
categoria de dano na responsabilidade civil.
Com efeito, a preocupação do autor debruçava-se na incansável luta dos juristas
brasileiros – para ele, um tanto quanto vencidos pelo cansaço – em traçar critérios
unívocos para a quantificação dos danos morais. A dificuldade, conforme revelava Antonio
Junqueira de Azevedo, cingia-se – e é o que ainda ocorre – à falta de acordo entre os
estudiosos do direito sobre os exatos fundamentos da responsabilidade pelos danos morais,
ou melhor, a dificuldade em explicar a indenização advinda dessa modalidade de dano
somente como uma espécie de compensação pelo sofrimento psíquico tido pela vítima do
dano e lesões a seus direitos personalíssimos ou se também comportaria essa figura uma
punição ao agente ofensor (punitive damages) que, segundo a doutrina e a jurisprudência,
ora perfaz o papel de efetiva pena, ora de dissuasão ou desestímulo à reiteração da conduta.
Inicialmente, por meio de diversos artigos pinçados do Código Civil, o autor
demonstrou não haver mais como conceber a tradicional separação entre direito civil e
direito penal, pela qual o primeiro ficaria encarregado da reparação, enquanto o último se
314
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, pp. 51/52.
128
voltaria à questão da punição. Em diversas passagens do Código Civil é possível mesmo
encontrar o emprego da palavra pena315, não se admitindo, portanto, que o direito civil não
se preocupa também com punições316.
Mas, mesmo reconhecida a intenção do legislador em punir em determinados casos,
não se permitiriam acréscimos à indenização por dano patrimonial ou moral, na medida em
que ela ocorre no limite do dano, nos termos do artigo 944 do Código Civil. No rigor da
Lei, portanto, ao dano moral não se poderia atribuir um plus indenizatório, referente a uma
punição ou dissuasão do agente lesivo. Tanto porque não guardam essas funções relação
com o lesado, mas sim com o causador do dano, além de não servirem à indenização dos
danos sofridos pela vítima.
No entanto, a solução encontrada pelo jurista foi o reconhecimento de uma nova
categoria de dano: o dano social. Notadamente, o juiz não precisaria mais se ater àquela
clássica dicotomia dano patrimonial-dano moral, na medida em que o artigo 944 do Código
Civil limita a indenização à extensão do dano, mas não impede o reconhecimento de novos
tipos de dano.
Essa nova modalidade de dano, que reflete uma preocupação coletiva e sacramenta
a noção de função social que a Responsabilidade Civil atualmente assume, fundada no
solidarismo social, referir-se-ia, segundo Antonio Junqueira de Azevedo, ao prejuízo
sofrido pela coletividade em geral, caracterizado pelo rebaixamento do patrimônio moral,
especialmente em razão da inobservância do dever de segurança, pela ação praticada com
dolo ou culpa grave pelo lesante, como também pela diminuição da qualidade de vida e
bem-estar da população, alcançada mediante condutas reprováveis e negativamente
exemplares.
315
V.g. o artigo 1.993, que se refere à pena cominada pelo artigo 1.992, nos casos em que o herdeiro
sonegador perde o direito à herança; ou o artigo 941, quando menciona “as penas” arroladas nos artigos 939 e
949, para o credor que cobra o devedor antes do vencimento da dívida.
316
Em vários artigos, o Código Civil, em que pese abstenha-se de utilizar a palavra “pena”, prevê sanções
como multas, exclusão da sucessão, deserdação., v.g. do artigo 608, que prevê situações de verdadeira
dissuasão do agente causador do dano: “Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar
serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de
caber durante dois anos”.
129
A esse dano estaria embutida a pena que deveria revestir a indenização relacionada
às condutas reprováveis, que atingem a sociedade, “num rebaixamento imediato do nível
de vida da população”317. Essa pena privada ora cumpriria uma função punitiva, ora se
referiria a um desestímulo do lesante e dos demais agentes causadores do mesmo dano.
Punir-se-ia, consequentemente, um fato passado e coibir-se-ia um comportamento futuro
(punição x prevenção).
Neste ponto, surge uma objeção à aplicação do dano social, conforme admitido pelo
próprio autor da teoria, revelada pela sua suposta limitação aos casos de responsabilidade
subjetiva, já que necessária a análise da conduta do agente. No entanto, defendia ele que,
mesmo nos casos de responsabilidade objetiva, poderia o juiz proceder ao exame do dolo
ou da culpa grave, já que a legislação, ao criar essa modalidade de responsabilização, não
eliminou aquela atrelada ao subjetivismo, podendo ser cumulada uma a outra como causa
de indenização. Não obstante, se a finalidade da indenização é só a dissuasão,
desnecessária qualquer análise de dolo ou culpa grave.
Superada essa questão, o citado autor teorizava, então, que o dano social teria
configuração a partir de uma quebra grave do dever de segurança ou da prática de uma
conduta negativamente exemplar. Constatado esse dano, recompõe-se à sociedade aquilo
que dela foi retirado, por meio de indenização severa.
Essa quebra do dever de segurança representaria um evidente rebaixamento do
nível de qualidade de vida da coletividade, na medida em que uma sociedade poderia ser
mensurada em melhor ou pior de acordo com o nível de seguridade apresentado: quanto
mais segurança, melhor a sociedade e vice-versa.
Isso porque a obrigação de segurança, antes vista como resultante de contrato, por
cláusula explícita ou implícita, assumiria hoje, segundo o autor, condição de obrigação
autônoma, de forma tal que, até mesmo em relações alheias a um contrato, em que uma
pessoa tenha poder físico sobre a outra, estaria presente esse dever de segurança, de
cuidado (v.g. os contratos de transporte totalmente gratuitos, em que o transportador é
317
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 380.
130
responsável pelos danos ocorridos no percurso, ou em situações em que não há
absolutamente contrato, como a do visitante que escorrega no saguão de entrada de um
prédio de escritório)318.
Destarte, se ocorresse lesão praticada por alguém, especialmente à integridade
física e psíquica de outrem, em que reconhecida conduta gravemente culposa ou mesmo
dolosa, restaria configurado não apenas dano às esferas patrimonial e moral do lesado, mas
um dano à sociedade como um todo, acarretando responsabilidade do agente à reparação
de todo o prejuízo verificado.
De fato, essa reparação pelo dano social faria as vezes de punição (pena), mas, na
realidade, não passaria de reposição daquilo de que a sociedade efetivamente foi privada,
com o intuito de restauração do “nível social de tranqüilidade diminuída pelo ato
ilícito”319.
Nessa mesma esteira, a partir da mesma linha de raciocínio, os atos negativamente
exemplares, que rebaixam o nível da qualidade de vida da sociedade – e que, por isso
mesmo, não devem ser repetidos –, seriam passíveis de configurar também esses danos
sociais.
Esses atos negativamente exemplares, segundo o autor, seriam aqueles que, vistos
sob a ótica do homem comum da sociedade, seriam sempre rejeitados e repudiados (deverse-ia indagar o seguinte para a sua caracterização: “Imagine se todas as vezes fosse
assim!”).
Com efeito, a permissão de práticas dessa natureza deveria ser afastada, na medida
em que causam um rebaixamento do nível coletivo de vida, como é o exemplo da
companhia aérea que atrasa reiteradamente os seus vôos ou do artista que, vinculado por
contrato a uma determinada marca, para representá-la em campanhas publicitárias,
desonra-o, injustificadamente, para, recebendo valores mais vultosos, aparecer em
publicidade de marca da empresa concorrente.
318
319
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil..., p. 381.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil..., p. 381.
131
Nessas hipóteses, a ação individual da vítima contra o ofensor certamente levaria ao
reconhecimento dos danos patrimoniais e morais advindos dessa lesão. Mas isso não seria
suficiente para impedir a imitação da conduta danosa por outro agente ou mesmo a
reiteração do ato pelo mesmo causador desse dano, que, a olhos vistos, diminui a qualidade
de vida e bem estar da sociedade, que antes apresentava expectativa legítima de que os
compromissos firmados seriam cumpridos, mas, com a adoção de expedientes tão odiosos,
passaria a viver na opressão dolorosa do imprevisível.
Certamente, o pagamento somente das perdas e danos realizada pelo agente ofensor
levaria à falta de conseqüência e reprovação do comportamento inadequado, com o
conseqüente estímulo ao descumprimento dos contratos, fato que ocorre frequentemente na
sociedade e acaba por diminuir o bem-estar coletivo. Necessária seria, por esses motivos, a
imposição de uma sanção.
Diante dessas duas vertentes de incidência de danos sociais, aplicar-se-ia
indenização punitiva e acréscimo dissuasório. Ou seja, penalizar-se-ia o fato passado e
desestimular-se-ia a adoção de um comportamento futuro. Ter-se-ia, então, punição de um
lado e prevenção do outro, evidenciando-se, assim, os papéis do dano social de punir e
prevenir, cabendo ao julgador discriminar a que título as verbas indenizatórias seriam
aplicadas.
É importante ressaltar que, para o autor, o reconhecimento do dano social seria feito
em um dissídio individual, carecendo de propositura de ação civil pública pelo parquet,
que já se encontra extremamente assoberbado e não consegue fazer frente a todas as
mazelas da população.
E é justamente nesse aspecto que o autor relata uma grande dificuldade relacionada
à identificação do destinatário da indenização: se deveria ela ser entregue à vítima que
promoveu à ação ou a um fundo, como nos casos de danos ambientais.
Para Antonio Junqueira de Azevedo, todo o valor relativo à indenização do dano
social deveria ser destinada à vítima que pleiteou a ação de reparação, per ter sido ela
132
quem laborou no processo, que enveredou os esforços para o reconhecimento do prejuízo
sofrido pela sociedade. Então, nada mais justo que obter a recompensa de seu trabalho.
Dessa forma, a vítima do dano, autora da ação, funcionaria como um defensor da
sociedade, como um promotor público-privado, figura conhecida no direito norteamericano, nas ações de punitive damages, como private attorney general. A indenização,
portanto, serviria não apenas para remunerar o trabalho do indivíduo que exerceu um
munus público, mas também como forma de estímulo das ações promovidas em benefício
da sociedade, um “incentivo para um aperfeiçoamento geral”320.
4.2 POR UMA BREVE ANÁLISE FILOSÓFICA E SOCIOLÓGICA DA
QUESTÃO
Antes de se adentrar na discussão central desse trabalho, e analisar se, no cenário
atual da civilização e da Responsabilidade Civil, seria realmente importante o
reconhecimento de uma nova categoria de dano, mostra-se primacial o entendimento, de
forma breve, sobre a parte filosófica detrás do surgimento da sociedade e legitimação de
um Estado representante do povo, para perceber a importância do combate às atividades
danosas à coletividade, que acabam por desmoralizar o poder deste mesmo Estado, num
regresso à origem do indivíduo vivendo isoladamente, num estado de guerra permanente,
assim também uma breve visão sociológica e psicológica dos efeitos danosos que as
práticas atuais causam no homem.
O filósofo inglês Thomas Hobbes, por meio de sua famosa – e muitas vezes mal
interpretada321 – obra o Leviatã, parece ter sido o primeiro a conseguir explicar
adequadamente o estado de natureza do indivíduo, que o leva a conviver socialmente.
A primeira coisa a ser registrada quanto ao estado de natureza idealizado por
Hobbes é a igualdade. Os homens, segundo a sua concepção, são iguais tanto em
320
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil..., p. 383.
Embora muitos creiam que pregava ele o regime absolutista do Estado, o absolutismo pretendido por
Hobbes era do Estado em função de seus indivíduos, diferente do regime totalitarista.
321
133
capacidade322 quanto em esperança de satisfação de seus desejos. Ou seja, o homem não é
apenas capaz de realizar aquilo que qualquer homem poderia, mas também possui a
esperança de que consegue alcançar os mesmos fins de seus pares.
Disso se depreende a impossibilidade de evitar conflitos, “pois, resultando da igual
capacidade uma igual expectativa, os homens que em muitos casos têm o mesmo desejo
estarão em choque, porquanto nem sempre é possível compartilhar ou repartir o consumo
do que se deseja”323. Este querer conjunto de algo desejado por dois homens ao mesmo
tempo acaba levando um a querer a destruição do outro.
Outro ponto de semelhança entre os homens é a igualdade do medo que sentem de
uma morte violenta causada por outrem. Por ser a autopreservação um instinto básico do
ser humano, impõe-se a exigência de antecipação dessa morte violenta em mãos alheias
através da força e da astúcia. É mediante a força e a astúcia que se pode fazer frente a um
estado em que a ameaça de morte violenta em mãos alheias está sempre presente.
Verifica-se, dessa forma, que o homem é um ser que vive em desconfiança,
marcada por essa constante competição com o outro, e a busca da glória. Essas três
características do homem (busca pela competição, desconfiança e tentativa de glória) são
os três principais pilares da discórdia. Os homens, seres competidores, querem o lucro e a
glória; querem ser “senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros
homens”324.
Por isso que, nesse estado natural vislumbrado por Hobbes, o homem, visando
defender os seus próprios interesses, deve atacar o outro, justamente para a obtenção da
segurança necessária.
322
Não quer isso significar que os homens sejam fisiologicamente iguais, dotados do mesmo poder físico ou
intelectual, porquanto ser possível reconhecer indivíduos dotados de mais desenvolvidas faculdades do corpo
ou do espírito. A igualdade referida por Hobbes diz respeito à possibilidade de realização de coisas iguais,
como matar, por exemplo. Essa fundamental igualdade é justamente verificada na possibilidade de um
homem poder matar o outro, pouco importando que seja mais fraco, já que é possível compensar essa
deficiência por meio de artefatos ou alianças com outros homens.
323
PAVÃO, Aguinaldo. Apontamentos sobre o Estado de Natureza em Hobbes E Locke. In Dissertatio –
Revista de Filosofia, número 9, Universidade Federal de Pelotas, Departamento de Filosofia,
http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/antigas/dissertatio9.pdf, consultado em 8/5/2012, p. 75.
324
HOBBES DE MALMESBURY, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico
e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1997,
cap. XIII, p. 109.
134
Como ser que sempre almeja a glória, o homem necessita da reputação, também
para afastar os outros que têm similares interesses. Essa condição natural da humanidade
(natural condition of mankind) de Hobbes leva a crer que os homens, quando vivem sem
um poder comum que mantenha o respeito mútuo, encontram-se numa condição de guerra
de todos contra todos. Não uma guerra determinada pela luta, “mas naquele lapso de tempo
durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida”325, ou seja, uma
guerra virtual.
Nessa situação, não há espaço para a indústria, porquanto incerto o seu fruto, nem
cultivo da terra, navegação ou mercancia marítima, conhecimento científico, artístico,
sociológico etc., já que apenas existe um constante temor e perigo de morte violenta326.
Partindo-se dessa presunção de que o homem, em seu estado natural, vive, na
realidade, em constante estado bélico, de se reconhecer que a condição de vida só pode ser
miserável. De fato, com a inexistência de uma sociedade, aliada ao incessante medo de
morte violenta, “a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”327.
O fato é que, sendo o homem um ser que procede por cálculos que levam em conta
a sua autoconservação, o estado de natureza não lhe convém. É racional que acabe ele
buscando a paz, pois se os homens são naturalmente iguais, o estado de guerra não pode
terminar pela vitória de um indivíduo sobre o outro. Assim, a única alternativa que
possibilita a garantia de segurança está simplesmente na negação do estado de guerra.
Em razão do zelo extremado que os homens têm com a sua própria conservação,
apresenta-se indesejável a insegurança do estado de natureza. Pondera, assim, Thomas
325
HOBBES DE MALMESBURY, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico
e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1997,
cap. XIII, p. 109.
326
A essa conclusão acaba chegando também Jean Jacques Rousseau, em sua obra “Contrato Social”. A
diferença reside no ponto em que, segundo o autor, em estado de natureza, os indivíduos vivem isolados
pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo
gesto, pelo grito e pelo canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no
qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e
diz: "É meu". A divisão entre o “meu e o teu”, isto é, a propriedade privada, dá origem ao estado de
sociedade, que corresponde, agora, ao estado de natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos. In
CHAUÍ, Marilena. Filosofia. Ática: São Paulo, 2000, p. 220.
327
HOBBES DE MALMESBURY, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico
e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1997,
cap. XIII, p. 109.
135
Hobbes, que, sem um superior comum na terra que garanta a paz, os homens viverão num
estado perpétuo de guerra. Este estado de guerra não significa o conflito empírico, mas a
disposição para tal enquanto não existe outra garantia de segurança, exceto a força e a
astúcia que cada um pode empregar por conta própria em seu benefício328.
Por isso que o homem decide viver em sociedade: para se livrar desse receio
contínuo de morrer violentamente por mãos alheias, já que o Estado constituído passará a
regulamentar a atividade das pessoas.
Essa breve digressão filosófica serve para justificar as consequências perniciosas
que a ausência de um controle estatal firme pode gerar. Esmaecido o poder do Estado, ante
a ausência de controle das situações que colocam no homem novamente o temor da
possibilidade constante de um confronto, opera-se a um retorno a esse estado natural ou
estado de guerra do ser humano. Ocorre que, dessa vez, é o próprio Estado que acaba
entrando em estado de guerra com cada indivíduo.
Para John Locke, na constância de um governo tirânico, manter-se-ia o estado de
guerra do qual o homem procurou se livrar, ao viver em sociedade, representado agora pelo
conflito entre o Estado e os indivíduos (quer dizer, exorbitaria a confiança do governo
depositada pelos cidadãos)329.
Adaptadas essas situações aos dias atuais, percebe-se que a falta de controle,
atualmente, das situações lesivas aos indivíduos e, consequentemente, à coletividade,
operam, justamente, esse conflito entre o próprio Estado e a sociedade, não por
totalitarismo ou tirania, mas por omissão.
328
PAVÃO, Aguinaldo. Apontamentos sobre o Estado de Natureza em Hobbes E Locke. In Dissertatio –
Revista de Filosofia, número 9, Universidade Federal de Pelotas, Departamento de Filosofia,
http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/antigas/dissertatio9.pdf, consultado em 8/5/2012, pp. 75/76.
329
Note-se, no entanto, que, para John Locke, o estado de natureza é bem diferente daquele apresentado por
Thomas Hobes. Para Locke, o estado de natureza comportaria a convivência pacífica entre os homens,
regulamentada por um direito natural. Haveria, no entanto, um estado de guerra em potencial, e que “evitar o
estado de guerra ... é uma das razões principais porque os homens abandonaram o estado de natureza e se
reuniram em sociedade”. Assim, entre um governo tirânico e o estado de natureza é preferível o estado de
natureza, pois assim se evitariam o estado de guerra e a tirania - embora, propriamente, a tirania seja uma
espécie do gênero estado de guerra. In LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Tradução de
Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa, Vozes: Petrópolis, 2008.
136
Se o Estado não consegue enfrentar os conflitos que figuram como causadores de
danos à sociedade que ele busca proteger, passa-se a preferir ou a troca total dos
representantes do povo ou a ausência de controle de um governo, voltando-se a essa
situação de estado de natureza que, aparentemente, ao menos na visão apresentada por
Locke, mostra-se melhor aos indivíduos.
Basta observar a ocorrência, em todo o Brasil, de conflitos entre o Estado e a
sociedade, desencadeados pelo aumento da tarifa de ônibus330, que, na realidade,
demonstravam a insatisfação da população em relação a diversos outros pontos sobre os
quais o governo mostrou-se omisso, tal como a precariedade na assistência à saúde,
ausência no combate à corrupção, falta de empregos etc., e que geraram sério distúrbio
social, com depredações, violência e mortes, colocando em xeque a atuação do Estado para
a resolução desses problemas sociais.
Notadamente, conforme explicado, os danos causados diretamente à sociedade,
num rebaixamento de vida coletivo, não refletem apenas no patrimônio de cada um. Como
mostra a psicologia social, esses são fatores de doença populacional. Assim, se não são
controlados pelo Estado, coloca-se cada membro da coletividade novamente naquela
situação de receio de perder sua vida por mãos alheias (não mais num estado selvagem e
primitivo, mas muito mais psicológico e social, da derrota iminente em relação às grandes
empresas ou burocracias intermináveis). Este é o atual paradoxo do direito: a necessidade
de repreensão de condutas ante a aparente ausência de suporte jurídico traçado pelos
representantes do povo.
A conclusão a que se chega é voltada à realização de políticas de combate a esses
atentados contra a coletividade, não sob pena de se voltar a um estado natural das coisas,
mas de haver verdadeiro conflito entre os indivíduos entre si e entre estes e o próprio
Estado, esmaecendo a coesão coletiva por ele proporcionada, de forma a trazer de volta
esse constante receio de enfrentamento, que já ocorre nos dias atuais.
330
In http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,fogo-bombas-e-depredacao-no-maior-protesto-contratarifa,1041335,0.htm.
137
Não é estranho ao cotidiano da coletividade ver nos noticiários ou mesmo ouvir de
pessoas conhecidas histórias que, num primeiro momento, parecem ser invenções criadas
pela mente humana, de tão elaboradas e, a uma primeira vista, pouco plausíveis, mas que,
de fato, ocorrem todos os dias com grande parcela da população.
Certamente, a rotina de grande parte da população brasileira é bastante árdua:
começa ainda antes do raiar do sol e se estende dia afora, com a preparação da refeição
familiar, a realização de tarefas diárias, como levar, em segurança, os filhos à escola – o
que acaba se tornando uma missão penosa, em razão da precariedade do sistema de
transporte público, ineficiente e abarrotado de pessoas –, ir ao trabalho, limpar a casa etc.
Não bastassem esses estafantes obstáculos do dia-a-dia, ainda é preciso encontrar
tempo para resolver os problemas criados, por exemplo, com as prestadoras de serviços,
que incluem indevidamente o nome de um consumidor no cadastro de inadimplentes.
Inscrito no cadastro, o indivíduo, sem a possibilidade de utilização de crédito no mercado
de consumo, fica privado de realizar as compras cotidianas ou até ao pagamento de uma
conta de luz, de plano de saúde, e acaba ficando à mercê de assistência pública básica
referente à saúde, moradia ou alimentação, em virtude da precariedade do setor público.
Por mais que possa parecer dramática, essa é a infausta e corriqueira história de
milhares de cidadãos brasileiros. Mais e mais, com o crescimento populacional
desenfreado, associado à falta de estrutura metropolitana e a falsa ilusão de melhor vida
nas cidades grandes, as pessoas são submetidas a situações cada vez mais estressantes,
como trânsito, má condição do transporte público, filas, má prestação de serviços etc.
Associado a isso, com a globalização, desenvolvimento das “redes sociais”, cresce
a exigência de que os membros da sociedade estejam sempre em contato – ainda que
sobremaneira efêmero –, a partir de uma superexposição de suas vidas privadas, excluindose socialmente aqueles que não se adéquam a essa nova realidade.
Ou seja, o atual indivíduo que quer conviver em sociedade, especialmente aquele
dos grandes centros urbanos, é atacado diariamente por fontes variadas de estresse. Não
apenas o trânsito, a poluição, a má prestação de serviços contribuem para uma vida
138
estressante, mas a necessidade de aceitação, cada vez mais evidente, do indivíduo por seus
pares, da necessidade de estar sempre “conectado”331, de ser igual ao outro para obter a tão
desejada aprovação do grupo, é capaz de desencadear reações orgânicas que acabam
irradiando efeitos na psique332.
De fato, essas situações convergem para o aumento da ansiedade, levando a
situações de estresse intenso, que, por sua vez, desembocam nos chamados transtornos de
ansiedade (v.g., Síndrome do Pânico, Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Distúrbio de
Ansiedade Generalizada).
Bem aponta Geraldo José Ballone que a simples participação do indivíduo na
sociedade contemporânea já preenche, por si só, um requisito suficiente para o surgimento
da Ansiedade. “Viver ansiosamente passou a ser considerado uma condição do homem
moderno ou um destino comum ao qual todos estamos, de alguma maneira, atrelados”333.
Decerto, esse fato se justifica em razão da abrupta necessidade de adaptação do ser
humano à nova realidade da vida urbana. Antes da Revolução Industrial, as pessoas,
predominantemente habitantes das zonas rurais, eram pouco exigidas, o trabalho era muito
mais braçal do que intelectual, e finalizava-se ao deitar do sol.
331
O uso da rede social denominada facebook é tão intenso, que foi fruto de pesquisas recentes, realizadas
pela Universidade de Bergen, na Noruega, que constatou que o vício provocado por essa rede social
assemelha-se ao da dependência química. Matéria publicada em 10/5/2012, no sítio eletrônico da revista
Época, In http://revistaepoca.globo.com/Ciencia-e-tecnologia/noticia/2012/05/voce-e-viciado-em-facebookciencia-responde-faca-o-teste-e-descubra.html, consultado em 10/5/2012.
332
Como adverte a médica Waleska Teixeira Caiaffa, ”Violência, estresse social, mudanças no clima urbano,
poluição (ar, solo, água e ruído) combinados com os contrastes sociais e econômicos fazem com que a vida
urbana seja um fardo significativo para a saúde, e tem sido considerada pela Organização Mundial da
Saúde
um
dos
mais
significativos
problemas
de
saúde
global”.
In
http://dssbr.org/site/opinioes/determinantes-sociais-da-saude-e-determinantes-sociais-das-iniquidadesintraurbanas-em-saude-a-mesma-coisa-o-debate-continua-e-sera-tema-da-10a-conferencia-internacional-desaude-urbana-icuh-2011/, disponibilizado em 20/9/11, consultado em 7/5/2012.
333
BALLONE,
Geraldo
José.
Estresse
–
Introdução.
In
http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=11, revisado em 2008, consultado em
7/5/2012. Interessante notar a definição trazida pelo autor a respeito do estresse: “Em termos científicos, o
estresse é a resposta fisiológica e de comportamento de um indivíduo que se esforça para adaptar-se e
ajustar-se a estímulos internos e externos. Como a energia necessária para esta adaptação é limitada, se
houver persistência do estímulo estressor, mais cedo ou mais tarde o organismo entra em uma fase de
esgotamento. (...) Uma "dose baixa" de Estresse é normal, fisiológico e desejável. Trata-se de uma
ocorrência indispensável para nossa saúde e capacidade produtiva. As características desse Estresse
positivo são: aumento da vitalidade, manutenção do entusiasmo, do otimismo, da disposição física, interesse,
etc. Por outro lado, o Estresse patológico e exagerado pode ter conseqüências mais danosas, como por
exemplo o cansaço, irritabilidade, falta de concentração, depressão, pessimismo, queda da resistência
imunológica, mau-humor etc.”
139
Além disso, o foco de estresse também sofreu uma reviravolta imensa com a
civilidade do homem. Antigamente, o estresse era identificado em ocasião da luta pela vida
do indivíduo, pelas guerras tribais, pela escassez de alimentos etc., ou seja, era ele advindo
de situações objetivas e palpáveis. Atualmente, a maioria dos estímulos desencadeadores
desta emoção são intangíveis e não podem ser localizados no tempo e no espaço.
As situações de estresse se desencadeiam, nos dias de hoje, pelo temor da
competitividade social, da segurança social, da competência profissional, da sobrevivência
econômica, enfim, apenas situações abstratas que “dormem” e “acordam” com o indivíduo,
para as quais é difícil, senão impossível, encontrar um remédio. A própria transição de uma
sociedade industrial moderna para a sociedade de consumo atual contribui para essa maior
angústia do indivíduo: “o fim do emprego tradicional, que proporcionava segurança e
estabilidade, diminuiu o espaço da vida fruída como um projeto de planejamento a longo
prazo...”334.
Houve, portanto, uma comutação na própria forma de combater o estresse, que
antes ocorria mediante o emprego de força física ou fuga da situação. Hoje, tem-se como
socialmente inaceitável que o indivíduo manifeste comportamentos típicos de fuga ou luta,
que era a função natural e o objetivo biológico original do estresse, não existindo, portanto,
uma “válvula de escape”.
Com efeito, ao ser humano moderno é impedido manifestar reações de agressão ou
de medo sincero, estando obrigado a um comportamento emocional politicamente correto,
ao entanto, incongruente com sua real situação neuroendócrina. Como explica Geraldo
José Ballone, a situação estressante que persiste indefinidamente pode desempenhar um
papel social incompatível com a natureza biológica do estresse. “Haverá um elevado
desgaste do organismo, predispondo certas doenças psicossomáticas”335.
Então, é bem possível que, diante dessa reformulação muito rápida da formatação
da sociedade, o desenvolvimento da capacidade neuropsicofisiológica de adaptação do ser
334
BELLI, Benoni. Polícia, “Tolerância Zero” e Exclusão Social. P. 168. In Revista Novos Estudos,
CEBRAP, nº 58, novembro/2000, pp. 157/171.
335
BALLONE,
Geraldo
José.
Estresse
–
Introdução.
In
http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=11, revisado em 2008, consultado em
7/5/2012.
140
humano não tenha acompanhado o mesmo ritmo, levando a essas situações patológicas de
estresse.
O mesmo antes citado autor relata quais são os fatores de estresse social mais
comuns: “o fracasso, a carga, a manutenção, monotonia e a satisfação com o trabalho, a
pressão para corrida contra o tempo, as ameaças sociais e financeiras, indução do medo
através da violência urbana, as situações involuntárias de competição, os trabalhos em
condições de perigo, a submissão involuntária aos tabus, a contestação e contrariedade
com certos valores, a contrariedade ou privação de vida social e submissão contrariada às
normas”336.
De acordo com pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia (UCLA), nos
Estados Unidos, constatou-se que as pessoas submetidas a fatores de estresse social, além
dos transtornos de ansiedade já mencionados, podem apresentar elevação na atividade
neural inflamatória, o que permite um aumento do risco de uma variedade de desordens,
incluindo asma, artrite reumatoide, doença cardiovascular, certos tipos de câncer e
depressão337.
A partir dessa brevíssima análise dos fatores sociais que levam a situações de
estresse, é possível constatar que, hodiernamente, o homem vive em um círculo de
ansiedade, atacado, de todos os lados, por situações que podem desencadear um processo
de rebaixamento de sua qualidade de vida e, até mesmo, de doenças psíquicas e orgânicas
que lhe afastam do convívio social. O conhecido jargão “crença vira biologia” mostra-se
mais verdadeiro do que nunca.
Contudo, parece que o Estado, especialmente quanto aos Poderes Legislativo e
Judiciário, ainda não percebeu o efetivo alcance dos prejuízos que o estresse social pode
causar a todos os indivíduos da sociedade.
336
BALLONE,
Geraldo
José.
Estresse
–
Introdução.
In
http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=11, revisado em 2008, consultado em
7/5/2012.
337
Estresse social é capaz de influenciar negativamente o sistema imunológico. In http://www.isaude.net/ptBR/noticia/9959/geral/estresse-social-e-capaz-de-influenciar-negativamente-o-sistema-imunologico,
disponibilizado em 10/8/2012, consultado em 7/5/2012.
141
Certamente, na situação anteriormente engendrada, não seria incomum que a
questão fosse tratada como um mero aborrecimento, para o qual não haveria dever de
indenizar. Se houvesse condenação, pelos danos extrapatrimoniais causados ao
consumidor, seria ela sobremaneira ínfima, incapaz tanto de compensar os danos sofridos,
como de prevenir a reiteração da conduta. É comum verificar situações como a
anteriormente relatada em que, embora reconhecido o erro operacional da instituição
financeira, ou mesmo o dever evidente de cobertura do procedimento cirúrgico, não haja
condenação das empresas, a não ser àquilo que elas já deveriam ter pago inicialmente ou,
ao menos, não deveriam ter lançado indevidamente. Parcela da culpa atribui-se ao Poder
Judiciário, por não julgar adequadamente esse tipo de ação, principalmente pela alegação
de ausência de texto normativo que regulamente adequadamente o caso apresentado,
sobrando, dessa forma, ao Poder Legislativo a outra parcela da culpa.
Talvez o ato danoso possa ser mesmo caracterizado como um mero aborrecimento,
ou não representar um ataque aos direitos personalíssimos daquele indivíduo isoladamente
considerado. Contudo, analisada a questão sob o ponto de vista da coletividade, a lógica
não pode seguir esse mesmo raciocínio.
Diante da verificação desse tipo de situação, em que não há qualquer controle sobre
a atividade danosa do particular, os membros da sociedade apresentam dois sentimentos
iguais de frustração, para duas questões diversas: a) a falha na conduta da prestadora de
serviços, fazendo-os ter que interromper todos os seus afazeres para correr atrás dessas
“falhas de sistema”, como será posteriormente explicado e exemplificado; e b) a prestação
defeituosa do serviço público, consubstanciada na falta de acesso da população à Justiça
(seja no sentido de instituição que reconhece e pacifica os conflitos levados ao seu
conhecimento, ou ainda de decisão capaz de dirimir os problemas de acordo com as
necessidades da sociedade).
Manifestamente, não apenas as condutas lesivas a que está sujeita a sociedade
diariamente podem ser causas efetivas de estresse social, mas também a má prestação do
serviço público338 (pela falta de transparência política ou de Leis que regulamentem
338
Em pesquisa elaborada pelo UOL, verificou-se que os paulistanos queixam-se a respeito da piora na
qualidade de vida, sendo a desconfiança sobre o poder público municipal um dos principais fatores.
142
adequadamente o funcionamento da sociedade, ou ainda a dificuldade do acesso à Justiça),
que desampara a população, quando deveria remediar essas consequências perniciosas
advindas desse rebaixamento da qualidade de vida, facilita o desdobramento desse dano.
É bastante evidente que situações como as que foram descritas, somadas aos demais
eventos de estresse aos quais é submetido o indivíduo rotineiramente, podem levar a
doenças psicológicas muito mais graves, que acabam mesmo retirando aquele indivíduo do
convívio social, pelo medo e trauma que lhe foram causados, representando um
comprometimento de sua situação existencial do ser-aí (obsta-se "o encontrar-se no mundo
e com o outro"339): essas doenças acabam provocando um injusto empecilho à liberdade de
coexistir com os demais (ser-com-os-outros) e de participar do mundo circundante e do
mundo humano (ser-no-mundo)340.
E, como também é sabido, a estagnação econômica de uma sociedade pode
decorrer, excetuando-se os casos de má gestão dos recursos públicos pela Administração e
crises econômicas mundiais, do medo.
Com efeito, o medo afligido à população, decorrente de atentados terroristas, da
iminência da guerra, de uma possível crise econômica pode, facilmente, estagnar a
economia de um País, ante a ausência de investimento tanto do exterior, quanto da própria
população que faz circular a riqueza.
Contudo, atualmente, não parece ser preciso ir a situações tão extremas para que
esse medo se espalhe na população. Essas próprias situações de estresse social antes
descritas, associadas à tolerância ou mesmo permissão da prática, cada vez mais frequente,
de condutas lesivas, que atingem valores transindividuais, e apenas acarretam maior temor
à população, podem levar a uma conjuntura insustentável num futuro próximo.
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/01/18/para-o-paulistano-qualidade-de-vida-caiu-edesconfianca-sobre-poder-publico-municipal-cresceu.htm, consultado em 8/5/2012.
339
MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico
brasileiro. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 83.
340
Conforme explicação de Fernanda Leite Bião e Hidemberg Alves da Frota, in
http://jus.uol.com.br/revista/texto/17564/o-fundamento-filosofico-do-dano-existencial,
consultado
em
20/1/2011.
143
É certo que as condutas ilícitas, quando não punidas, e especialmente quando
lucrativas, acabam sendo repetidas, tanto pelo agente causador do dano, quanto por outros
que também pretendem locupletar-se dessa forma indevida.
Assim, a permissão desenfreada de condutas lesivas, que apenas fazem aumentar o
lucro daqueles que agem desarrazoadamente perante aqueles com quem negociam ou
travam outros tipos de relação, ou mesmo deixam impunes aqueles que praticaram o mal,
acabarão por criar uma situação de tamanha insegurança, que não mais fomentarão o
desenvolvimento das relações interpressoais.
Aparentemente, parece haver uma inversão de valores que se opera no cotidiano
brasileiro. Conforme assente, os valores, especialmente relacionados à moral, variam de
acordo com o tempo e local, às vezes configurando um movimento pendular, com a
retomada de antigos preceitos que, ao longo do tempo, haviam dado lugar a outros.
Está-se, aqui, fazendo referência à mudança de conceito dos juízos “bom e ruim”,
“bom e mau”. De acordo com o filólogo e filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche, o
juízo “bom” não adveio daqueles aos quais se praticou o “bem”. Pelo contrário, foram os
nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, ou seja, os “bons”, que sentiram e
estabeleceram a si e a seus atos como bons, “em oposição a tudo que era baixo, de
pensamento baixo, vulgar e plebeu” 341.
A criação de tais valores, a criação de nomes para esses valores, tinha o intuito de
apresentar essa relação distante entre a “elevada estirpe senhorial” e a “estirpe baixa”,
sendo esta, portanto, a origem de “bom” e “ruim”. Procurava-se, então, atribuir ao “nobre”,
ao “aristocrático” o sentido de “espiritualmente bem-nascido”, “espiritualmente
privilegiado”, em contraposição ao lado “plebeu”, “comum”, “baixo”342.
341
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009, p. 6.
342
O filósofo até mesmo acrescenta um exemplo para explicar essa sua teoria, utilizando o termo alemão
schlecht (ruim), que é idêntido a schlicht (simples), este último a designar, originalmente, o homem simples,
ainda sem olhar depreciativo, que veio a modificar-se no sentido atual, durante a Guerra dos Trinta Anos.
Ainda, a palavra “bom”, que aparece inicialmente para a nobreza grega, por seu poeta porta-voz Teógnis,
significa, segundo sua raiz, alguém que é real, verdadeiro. Depois, numa mudança subjetiva, passa a
significar o verdadeiro enquanto veraz, passando a se tornar o distintivo da nobreza e assumir o sentido de
“nobre”, diferenciando-se do homem comum mentiroso. Por sua vez, na palavra mau/feio enfatiza-se a
covardia. A própria palavra latina malus poderia caracterizar o homem de pele escura, sobretudo de cabelos
144
Percebe-se, dessa forma, que, originalmente, a palavra “bom” não era ligada
necessariamente a ações “não egoístas”. Apenas com o declínio dos juízos de valor
aristocráticos que essa oposição “egoísta” e “não egoísta” passa a se assentar na
consciência humana e a integrar os conceitos de “bom” e “ruim”.
Também no âmbito espiritual – notadamente, a casta mais elevada da sociedade era
simultaneamente a casta sacerdotal – é possível encontrar as significações de “puro” e
impuro” como predecessoras do desenvolvimento de “bom” e “ruim”, completando, então,
a equação bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses.
Contudo, esse juízo de “bom” e “ruim” foi perdendo esse matiz, para sofrer uma
completa modificação de sentido. Com o esforço do povo judeu, o juízo de “bom” passou a
ligar-se aos pobres, sofredores, necessitados, feios, que seriam os únicos abençoados, ao
passo que “mau” passou a ser atrelado aos nobres e poderosos, caracterizados como cruéis,
lascivos e desaventurados.
Embora Nietzsche prossiga com uma análise bastante racional de tais juízos,
traçando os pontos de divergência entre o conceito primitivo de “bom e ruim”, para a sua
transmudação em “bom e mau”, serve a referência para estabelecer a volatilidade dos
valores em relação ao tempo e espaço.
Atualmente, esse juízo de “bom e ruim” ou “bom e mau” parece ter atingido novas
dimensões, talvez bastante perigosas. Parece que esses valores, na atual sociedade de
consumo – embora ainda não se distanciem da visão cristã do “bom e mau” –, estão cada
vez mais ligados ao “ter” e ao “não ter”. “Bom”, então, é aquele que possui determinada
coisa, enquanto “ruim” é o que não possui.
Encara-se, portanto, como “bom” aquele que contribui para a sociedade, que ajuda
a economia e que facilita a esse mercado de consumo do “ter”. Contudo, parece que essa
facilidade voltada ao consumo não tem mais passado por um filtro, para que se avalie se
foi praticada de modo bom ou mau.
negros, que através da cor se distinguia claramente da raça ariana, dos conquistadores tornados senhores.
Bonus, por sua vez, significaria o homem da disputa, o guerreiro. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm.
Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 7.
145
Com efeito, há um incentivo – quase irracional – da sociedade a pessoas (físicas ou
jurídicas) que, embora contribuam com o crescimento desse mercado de consumo, fazemno sem o respeito a essa coletividade. É tão recorrente, nas manchetes de jornal, notícias de
consumidores que reclamam dos maus tratos sofridos no mercado de consumo, ou na
impossibilidade de utilização dos espaços públicos etc., quanto matérias que abordam o
crescimento desenfreado de determinadas empresas que são justamente as autoras dessas
condutas lesivas343.
Não há uma efetiva regulamentação do setor, que prefere permitir a reiteração de
condutas lesivas a punir essas pessoas que, teoricamente, contribuem para o incremento da
sociedade.
Observa-se, portanto, uma nova inversão do juízo de “bom e ruim”, ocupando o
papel de “bom”, dessa vez, aqueles que efetivamente alimentam esse mercado de consumo,
ainda que mediante a adoção de políticas ilícitas, ao passo que “ruim” são aqueles que vão
contra esse perverso sistema. O problema é que, agora, essa aproximação de “bom e ruim”
ao mercado de consumo não vem acompanhada de outros valores antes atribuídos à
nobreza (respeito a seus iguais, gratidão, educação, reverência ao inimigo 344).
Deve-se, assim, ser feita uma reflexão sobre quais valores, atualmente, estão sendo
transmitidos às novas gerações345, e qual a mensagem que está sendo passada, ao não se
punirem essas pessoas que apenas prejudicam o convívio e a paz coletiva. Talvez essa
inversão de valores e permissão de condutas lesivas não seja, simplesmente, uma falta de
combatividade do Poder Público, mas um querer cego da própria sociedade.
Essa questão, analisada sob o ponto de vista da teoria das “janelas quebradas”
(broken windows), também parece justificar uma mudança de comportamento. Em análise
343
A empresa Apple, por exemplo, famosa pela produção do Ipod, Ipad, Iphone, sempre presentes em listas
de desejos aquisitivos dos consumidores, é conhecida por desrespeitar o Código de Defesa do Consumidor,
deixando muitas vezes de atender, por exemplo, ao direito de garantia ou troca do produto defeituoso. No
entanto, é a marca que mais cresce em popularidade e, consequentemente, em valor de mercado.
344
Pelo contrário, o desrespeito ao consumidor e, especialmente, aos concorrentes, é flagrante. Hoje há uma
verdadeira indústria de quebras de patentes.
345
Interessante obra de Paul Bloom, intitulada Just Babies: The Origins of Good and Evil (Apenas Bebês: as
origens do bem e do mal) mostra que bebês de poucos meses de idade já exibem clara preferência por
personagens bons, até mesmo arriscando-se a punir os maus, revelando que esse juízo de valores é inato ao
ser humano, que tem a sua ética modificada ao longo de sua formação.
146
realizada pelo sociólogo Benoni Belli, em que procurava apontar os principais traços da
política de “tolerância zero” adotada pela Polícia de Nova York, para o combate à
criminalidade, foi trazida a metáfora das janelas quebradas, que funcionaria da seguinte
forma: “se as janelas quebradas em um edifício não são consertadas, as pessoas que
gostam de quebrar janelas assumirão que ninguém se importa com seus atos de
incivilidade e continuarão a quebrar as janelas”346.
Como sabido, a utilização extrema dessa teoria, pela Polícia de Nova York, em
implementação a uma política concreta de “tolerância zero” com a criminalidade, provocou
efeitos nefastos naquela sociedade, a saber: aumento da brutalidade policial, o que resultou
em um maior número de confrontos entre policiais e civis; opção preferencial da polícia
pelo ataque a representantes da minoria, em especial jovens negros e latinos; repressão aos
jovens “gazeteiros”, culminando em faltas escolares dos retardatários, que preferiam perder
o dia de aula a correr o risco de serem encaminhados à delegacia; superlotação carcerária,
em virtude da prisão cada vez maior de pequenos delinquentes, que acabavam voltando às
ruas sem que qualquer esforço adicional de mudança de suas condições de vida fosse
implementada pelo poder público.
Em que pese ter sido aplicada, em Nova York, de forma sobremaneira exacerbada,
essa metáfora das janelas quebradas é, de fato, verdadeira no Brasil, onde proliferam as
condutas ilícitas não repreendidas pelo Poder Público de forma efetiva.
Se forem criados filtros de repressão, deixando-se de abandonar as “janelas
quebradas”, com a fixação de critérios para a aplicação de indenizações que visam repor a
qualidade de vida da sociedade, possivelmente não haverá falhas cruciais nesse sistema,
ou, se ocorrerem, não terão o condão de descredenciar o processo de aplicação dessas
compensações e punições, por que passarão por um processo rigoroso de verificação, com
o único intuito de tornar saudáveis novamente as práticas sociais.
De fato, pelos pontos ora abordados, de forma breve – breve porque as retóricas
filosófica e sociológica apresentam diversos ângulos de análise sobre a mesma questão, o
346
BELLI, Benoni. Polícia, “Tolerância Zero” e Exclusão Social. p. 160. In Revista Novos Estudos,
CEBRAP, nº 58, novembro/2000, pp. 157/171.
147
que pode retirar do estudo o foco que pretende ser dado –, denota-se a extrema necessidade
de que sejam “retomadas as rédeas” da sociedade, que assim decidiu se reunir para não
sofrer justamente a violência (física ou psicológica) que tem sido verificada, com a
ausência de controle do Estado em relação às práticas lesivas premeditadas de
determinadas pessoas, o que importará também na rejeição de uma inversão de valores que
pode culminar num convívio comum viciado. Como sabido, a prática reiterada pode virar
um hábito, e um hábito é muito difícil de ser modificado.
É possível que nunca as situações aqui abordadas, de forma até extrema, venham a
se concretizar. Todavia, certamente, o País poderá atrair investimentos muito mais
significativos, assim como controlar parte desses problemas relacionados à segurança e,
como visto, à própria saúde da população, caso demonstre a seriedade necessária como
trata dos negócios e da própria proteção de seus administrados, combatendo essas
injustiças que aviltam o senso comum e os valores coletivos.
A credulidade da população frente ao seu País e de outras nações em face de uma
bandeira tem que partir de dentro para fora, e não o inverso. A exploração dessas situações
que não encontram qualquer tipo de freio, além de provocar o medo ou a ira de uma
população, só faz atrair novos maus intencionados (bad players), que terão um terreno
fértil para a prática dos mesmos ilícitos.
Apesar de haver um crescimento das indenizações punitivas concedidas pelos
Tribunais pátrios, há ainda muita timidez frente aos inúmeros casos lesivos que se
perpetuam nas práticas da coletividade, especialmente em razão da ausência de justificativa
legal que guarneça essa pretensão.
De fato, as condenações sofridas pelos causadores desses danos cingem-se,
normalmente, à reposição daquilo que foi perdido pelo lesado, mais expressivamente no
tocante ao dano patrimonial. Quando há condenação à reposição de danos morais sofridos,
ainda que aplicada uma carga punitiva, não é ela significativa, como antes mencionado,
não se prestando sequer à compensação da própria lesão.
148
Assim, a “penalidade” aplicada ao causador do dano reflete, na realidade, uma
impunidade. Como ainda há resistência da população em procurar o Poder Judiciário – seja
pela ignorância de seus direitos, seja pelo descrédito que tal órgão apresenta –, o agente
transgressor acaba lucrando ainda mais, à custa dos indivíduos que não procuram haver o
que lhes é devido. Essa matemática é até mesmo utilizada pelo lesante, quando decide
transgredir o direito de outrem.
Observa-se, dessa forma, o cuidado que se deve ter com a saúde da população, para
o próprio desenvolvimento da economia do País. Essa saúde parece guardar, atualmente,
relação direta com essas condutas odiosas, esses atentados contra a coletividade, cujo
remédio, como demonstrado, não pode ser apresentado pelo próprio ser humano que é por
elas atacado, por não estar preparado para com lidar com tais condutas.
Por isso que devem essas ações lesivas contra a coletividade ser paulatinamente
rechaçadas, para que possa haver vivência e convivência saudável, prosperidade da nação.
Ou, nas palavras de Nelson Rosenvald, “O ideal é que se assuma um novo realismo
jurídico, em que se reconheça a norma jurídica efetiva como aquela capaz de condicionar
modelos de comportamento”347.
4.3 A INDENIZAÇÃO PUNITIVA NO BRASIL: DA REJEIÇÃO À
APARENTE ACEITAÇÃO
Antes de se adentrar na análise da existência de um dano social, para a verificação
de se é o reconhecimento dessa figura a resposta para alguns desses problemas
anteriormente apresentados, como solução para o emprego adequado das funções punitiva
e preventiva da Responsabilidade Civil, mostra-se quiçá preciso tecer algumas
considerações a respeito dessa ideia de punição, sobre o porquê de seu exílio do
ordenamento jurídico brasileiro e, agora, aparente surgimento, e, mais importante, se é
possível e necessária a introdução dessa figura no Brasil.
347
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 168.
149
A ideia de punição, consubstanciada mais marcadamente, nos dias atuais, na figura
dos punitive damages, parece não ter encontrado aderência no Brasil por diversos motivos,
diferentemente do que ocorreu com os países de tradição anglo-saxã. Isso se deve,
principalmente, em virtude das extremas diferenças culturais que separam especialmente
os países latinos da Inglaterra e dos Estados Unidos da América.
Com efeito, a primeira diferença encontrada entre o Brasil e a Inglaterra e os EUA
aparece no aspecto religioso, em que repousam, para o povo brasileiro, muito mais as
ideias do catolicismo – presentes em grande parte dos países latinos –, ao contrário dos
ideais protestantes na tradição anglo-saxã348.
Parece haver consenso na doutrina ao entender que a dificuldade em dissociar o
dano moral do dano punitivo, no Brasil, ser resultado da condenação ao enriquecimento
indevido – ideia introjetada pelo repúdio da moral cristã à própria ideia de enriquecimento,
ainda mais aquele advindo da dor. Existe um evidente receio quanto à imposição de uma
sanção que ultrapasse a medida dos danos, fazendo com que a vítima receba uma vantagem
que não lhe deveria ser destinada, porquanto ao lesado seria vedado o enriquecimento no
confronto com o ofensor349.
Por esse motivo que a ideia dos punitive damages foi recebida mais naturalmente
nos países anglo-saxões, apartada da categoria de danos morais – esta voltada
exclusivamente à compensação da dor e do sofrimento.
De fato, os ideais protestantes conseguiram trazer à cultura anglo-saxã uma visão
de menor condenação da compensação pecuniária da dor, como também a ideia de
vingança pessoal, contrariamente ao maior repúdio observado pela tradição católica, que
sempre defendeu o perdão.
348
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas
Lesivas. São Paulo, Atlas, 2012, p. 93/95. Explica o autor que o conceito americano de self made man,
advindo também da influência rigorosa do calvinismo, em que se valoriza o esforço individual e, o que é
mais importante, recompensa-se o homem por isso, permitiu ao Judiciário americano destinar as indenizações
punitivas àquele que se esforçou em levar a conhecimento a causa de um dano.
349
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 12.
150
Por essa ótica, tornou-se crível à Inglaterra e aos EUA a aceitação de uma punição,
baseada apenas na vingança, assim como a noção de um dano moral fundado unicamente
na compensação financeira do sofrimento; duas figuras bastante destacadas350.
No Brasil, ao entanto, não ocorrida essa cisão, doutrina e jurisprudência, como
antes visto, justificam a aplicação de uma punição por meio de indenizações por danos
morais, falando-se ora em caráter de desestímulo, ora em dano moral punitivo ou dano
moral profilático etc.
Decerto, as culturas católicas sempre condenaram a ideia da reparabilidade
financeira de uma dor da alma, repugnando, assim, o enriquecimento sem causa 351. O
direito civil brasileiro, influenciado pelos ideais da justiça comutativa lançados por São
Tomás de Aquino, pelos quais se bania qualquer transferência injustificada de riqueza de
um sujeito ao outro, do que derivou a figura do enriquecimento sem causa, passou a
limitar, cada vez mais, a obrigação de indenizar, que ficou circunscrita ao mero
ressarcimento do dano efetivamente sofrido, regra que foi esculpida no caput do artigo 14
do Código Civil352.
De fato, as questões que envolvem dinheiro, atribuídas à ideia de imoralidade,
como quis fazer crer a religião católica, refogem, no mais das vezes, ao sentimento de
pecado. Dessa forma, parece incomodar o fato de que seja destinada à vítima uma
indenização superior ao seu efetivo prejuízo353, ao contrário do que ocorre nos países de
cultura protestante. A aversão à ideia de enriquecimento sem causa e de compensação
financeira do sofrimento ajudou na justificativa da atribuição de função punitiva do dano
350
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 208.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. In
Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 18, abr/jun 2004, p. 66. A autora evidencia que o princípio da
vedação ao enriquecimento sem causa apresenta bastante relevância no ordenamento brasileiro, ao contrário
do que ocorre nos sistemas de common law. “Seja em decorrência de nossa herança cultural católica, seja
em virtude da influência direta do direito canônico nos ordenamentos romano-germânicos, fato é que no
sistema da common law, ao contrário do nosso, o instituto do unfair enrichessement é marginal e pouco
relevante”.
352
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva
(punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 18.
353
Ressalta Orlando Soares que até mesmo a reparação por dano moral encontrava resistência doutrinária e
jurisprudencial, pelo receio de uma exagerada reparação pecuniária capaz de gerar um enriquecimento sem
causa. In SOARES, Orlando. Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro: teoria, prática forense e
jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 76.
351
151
moral, levando a uma sobreposição entre esses dois conceitos totalmente díspares, causa da
confusão que até hoje prevalece354.
Outro aspecto que evidencia a diferença cultural entre o Brasil e, especialmente, os
EUA, é a forma de construção e organização do Estado e da sociedade. A sociedade
brasileira foi erguida “em virtude de sua forma centralizada de colonização, de cima para
baixo, onde a figura do Estado, materializada inclusive em um imperador, foi responsável
pelo provimento da nação”355. Portanto, o Estado brasileiro é transcendente aos seus
cidadãos; há uma relação de dependência, pela qual o povo depende do Estado tanto para a
manutenção de suas relações como – e sobretudo – para a resolução de seus conflitos.
Por sua vez, nos EUA, a colonização descentralizada e fundada não apenas na
exploração desenfreada do povo e dos recursos, mas no estabelecimento social, permitiu a
construção de um Estado contrário ao que se erigiu no Brasil, de baixo para cima356, a
partir de um federalismo em sentido estrito. Assim, o indivíduo aparece como átomo
fundador da sociedade e o Estado se comporta apenas como mero instrumento de ajuste
dessas relações interindividuais. “A liberdade democrática, tão alardeada naquele país,
torna o Estado não transcendente, mas imanente, em uma visão que, embora por outras
razões, acaba por aproximar EUA e França”357.
A partir dessa elucidação, percebe-se a maior dificuldade do ordenamento brasileiro
em distanciar o público do privado, capaz de possibilitar a visualização da
responsabilidade civil como instrumento de correção das irregularidades socioeconômicas.
354
Como aponta Paula Cristina Lippi Pereira de Barros, os magistrados acabam ridicularizando o valor das
compensações por danos extrapatrimoniais, ainda que pretendam aplicar alguma carga de punição ao ofensor,
justamente em razão da vedação ao enriquecimento do lesado. Dessa maneira, o lesado, que já não pode ter
reparado o dano extrapatrimonial que sofreu, por ser intangível o bem lesado, recebe uma compensação
irrisória, que não cumpre a sua função compensatória, ao mesmo tempo em que não apresenta qualquer
forma de dissuasão ao ofensor ou à sociedade. BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção
socioeducativa como compensação não patrimonial do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010,
na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP p. 115, disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/10/2013.
355
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 209.
356
Os EUA foram fundados de uma forma que poderia gerar uma inversão política, já que o homem possui
direitos preexistentes à instituição do Estado. Assim, observa-se “a relação política não mais do ponto de
vista do governante, mas do governado, não mais de cima para baixo, mas de baixo para cima, onde o
‘baixo’ não é mais o povo como entidade coletiva, mas são os homens, os cidadãos que se agregam com
outros homens, com outros cidadãos, para formar uma vontade geral...”. In BOBBIO, Norberto. A Era dos
Direitos. 2ª Tiragem, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 225.
357
LEVY, Daniel de Andrade. Uma Visão Cultural dos Punitive..., p. 209.
152
Nos EUA tem-se evidente essa necessidade de regulação social. O tort Law nasce
como forma de resolver questões puramente interindividuais, ao passo que os punitive
damages surgem justamente quando se constata que essas relações individuais podem
afetar o equilíbrio de outras relações, apelando-se, então, à interferência do Estado. Essa
noção de indenização punitiva apresenta nítido caráter publicizador, o que acaba
explicando a maior aceitação das indenizações extravagantes e, mais ainda, a sua
destinação a particulares, já que o intuito é a eliminação dos bad players.
A outro lado, no Brasil, há o discurso da pena privada como forma de autotutela
punitiva estabelecida pelos particulares, que configuraria um próprio ato ilícito, na medida
em que, ao fazer justiça “de por si implica lesão a direito de terceiro, como ofensa ao
princípio da paridade jurídica”358.
Revela-se, então, que aquele que recebe a indenização, nos EUA, não o faz como
mero indivíduo isoladamente considerado, mas como cidadão responsável pelos demais
membros da coletividade, por ter levado ao conhecimento do Estado a existência de um
comportamento antissocial que pudesse afetar o equilíbrio coletivo, o que não é aceito pela
cultura brasileira. Essa ideia de indivíduo social, cuja atuação procura garantir o equilíbrio
do sistema econômico, e que se mostra essencial nos EUA, parece justificar uma série de
concepções do tort Law que a sociedade brasileira não consegue internalizar,
especialmente em razão dessa configuração cidadão/Estado.
Ainda, nos EUA, verifica-se uma necessária ligação entre os indivíduos, de forma
que o Estado apenas garanta a sua organização. No Brasil, por outro lado, a
responsabilidade civil apenas cria diversos vínculos entre o indivíduo e o Estado, que
desaparece tão logo é ele indenizado.
A própria existência do indivíduo social nos EUA se mostra de forma bastante
clara, e aparece em diversos julgados americanos, passando-se a ideia de que o litigante
não participa daquela relação processual apenas para a satisfação de interesses próprios,
mas também para alertar o Estado sobre uma potencial situação prejudicial aos interesses
358
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 12.
153
de outros sujeitos. E o fundamento para a fixação das indenizações punitivas parece
também levar muito em conta critérios sociais, numa estimativa do prejuízo sofrido não
apenas pelo autor da ação, mas por outros indivíduos da sociedade.
Não se pode desprezar, também, a importância do case Law, nos EUA, que obriga a
percepção do litígio como um potencial gerador de norma consuetudinária, e não apenas na
resolução do conflito individual. Além disso, esse sistema, fundado na experiência, baseiase na ideia de exemplo, ou seja, de prevenção e precaução, o que não acontece com o
ordenamento brasileiro.
Por último, a atuação do júri nos processos relacionados ao tort Law também
constitui elemento de especial distinção ao julgamento realizado sempre pelo magistrado,
no Brasil. No sistema do júri, cabe a esse corpo de indivíduos, que são membros da
coletividade, e podem integrar à justiça civil as normas sociais e culturais, a decisão pela
punição do réu, embora possam ser eles mais influenciáveis – e, assim, maiores serão as
indenizações – pelo teatro que invariavelmente ocorre nas sessões de julgamento, sendo,
então, alvo fácil para críticas. Fácil, portanto, perceber no júri a figura da indignação social
provocada pela conduta, o que facilita a aceitação dos punitive damages e sua destinação
para a vítima.
Essas as principais diferenças culturais que tornam fácil de verificar a dificuldade
de aceitação de uma figura isolada, no ordenamento jurídico brasileiro, de punição civil do
ofensor, especialmente em relação à tese de violação da igualdade pelo enriquecimento
sem causa, utilizada como justificativa para apoiar um sistema de responsabilidade
unicamente voltado a repor o equilíbrio patrimonial entre as duas esferas jurídicas que o
ilícito tratou de perturbar, fazendo com que doutrina e jurisprudência, quando querem
aplicar uma sanção associada à indenização, distorçam conceitos já tão arraigados, para,
em última análise, aplicar uma pena privada ao agente, em vista de mostrar à sociedade a
lição que foi dada.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche estudou afundo essa característica punitiva
da responsabilização do homem. Segundo a sua consciência, é necessário haver martírio e
sacrifício, quando o homem sente a necessidade de criar em si uma memória. Ou melhor,
154
para que uma ideia se torne indelével, inesquecível, fixa, seria necessário o sacrifício. Com
efeito, a frase por ele utilizada expressa com precisão esse mandamento: “Grava-se algo
com fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na
memória”359.
Assim, quanto pior essa “memória” da humanidade, tanto mais terrível serão os
aspectos de seus costumes. O próprio rigor das leis penais acaba demonstrando o esforço
no afastamento desse esquecimento. A exemplo disso, o autor cita a nação alemã, que teve
de passar por uma dura evolução da legislação, para amoldar-se à realidade de hoje: pensese, então, nos velhos castigos, como o apedrejamento, a roda, o empalamento, o
dilaceramento, a fervura do criminoso, o esfolamento etc. Essas imagens, portanto,
contribuíram para lembrar aos indivíduos os benefícios de viver em sociedade, e os efeitos
que o descumprimento em relação à “promessa” feita por cada um deles, ao aceitar
participar dessa “comunidade”, pode acarretar.
Na análise das comunidades históricas, afigurava-se não apenas entre particulares o
relacionamento entre credores e devedores. Ao escolher conviver em sociedade, a
comunidade também mantinha com seus membros essa importante relação credor/devedor.
Vive-se numa comunidade para desfrutar-se das vantagens que ela oferece: de proteção, de
cuidado, de paz e confiança, para livrar-se da preocupação com as hostilidades a que está
exposto o homem de fora desse convívio, comprometendo-se o indivíduo a empenhar-se
no papel que deve desempenhar. Quando há descumprimento desse papel pelo indivíduo, é
considerado ele um infrator, alguém que quebra sua palavra e o contrato com o todo.
Assim, não será ele apenas privado desses benefícios e vantagens de que desfrutava, como
será lembrado do quanto valem esses benefícios. A ira do credor prejudicado (a
comunidade) devolve-o ao estado selvagem do qual ele foi até então protegido360. Aí
também aparece a ideia de pena, de castigo a esse elemento contraventor ao bem-estar
social.
359
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009, p. 20.
360
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral ..., p. 25.
155
Ou seja, essa ideia de dano causado à coletividade, que apresenta a devida resposta
ao ofensor, serve para não se ver enfraquecido o Estado. Essa ideia de justiça, portanto,
não é nova.
Ocorre que, aumentando-se o poder de uma comunidade, ela não mais atribui tanta
importância aos desvios do indivíduo, porque eles já não podem ser considerados tão
subversivos e perigosos para a existência do todo: o malfeitor não é mais privado da paz e
expulso.
Pelo contrário, a partir de então ele é cuidadosamente defendido e abrigado pelo
todo, protegido em especial da cólera daqueles que prejudicou diretamente. O acerto com
as vítimas imediatas da ofensa; o esforço de circunscrever o caso e evitar maior
participação e inquietação; as tentativas de achar equivalentes e acomodar a questão
(composição); sobretudo a vontade cada vez mais firme de considerar toda infração
resgatável de algum modo e, assim, isolar, ao menos em certa medida, o criminoso de seu
ato - estes são os traços que determinam cada vez mais nitidamente a evolução posterior do
direito. “Se crescem o poder e a consciência de si de uma comunidade, torna-se mais
suave o direito penal; se há enfraquecimento dessa comunidade, e ela corre grave perigo,
formas mais duras desse direito voltam a se manifestar”361.
Percebe-se, claramente, que, nos dias atuais, o enfraquecimento da sociedade pela
permissão de práticas abusivas daqueles bad players acabou trazendo à tona, novamente, a
discussão da aplicação de uma pena privada no ordenamento jurídico brasileiro.
Certamente, a ausência de repreensão veemente a atos prejudiciais cometidos contra a
sociedade acaba levantando a suspeita dos indivíduos em relação ao convívio coletivo e à
representatividade do Estado. Esse enfraquecimento de poder e consciência de si, por
conseguinte, levam a um desfacelamento da própria coletividade, devendo ser
implementados novos mecanismos de ajustes, ainda que duros, para que essa confiança
seja retomada.
Diante do cenário atual, obviamente, não se trata mais de banir o ofensor da
sociedade, porquanto novos meios de solução dos conflitos apresentam-se como melhor
361
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral ..., p. 26.
156
forma de pacificação. No entanto, diante da constatação de novas modalidades de condutas
causadoras de danos injustos, deve haver, como resposta, um endurecimento dos
mecanismos de repreensão, com a finalidade de corrigir e educar.
O que mais importa, na realidade, é modificar o ceticismo impregnado nos
aplicadores do direito de que a implantação de sanções punitivas civis ocasionará
retrocesso aos tempos primitivos, da barbárie, em detrimento da conquista da liberdade dos
indivíduos perante o Estado nas sociedades modernas.
Como explica Nelson Rosenvald, até hoje, respeitável parte da doutrina se refere à
recuperação da pena privada como um instrumento dotado de um mirabolante efeito de
desestímulo, que inauguraria um absoluto far west no plano do direito civil. Contudo,
refere ele que toda essa intransigência decorre de como as penas eram aplicadas no
passado, mas não aquilo que se pretenda delas atualmente362.
Na análise histórica, as medidas punitivas eram elaboradas pelos particulares e por
eles mesmos aplicadas contra outros particulares, em próprio benefício, em resposta a
agressões a situações jurídicas subjetivas individuais, sem qualquer controle preventivo ou
sucessivo do ordenamento jurídico. Por sua vez, agora se pretende utilizar tal ferramenta
em prol da coletividade, contra lesões a ela acarretadas, e como mecanismo de prevenção
de novos comportamentos antijurídicos, certo de que a aplicação de tal pena privada
receberá o devido controle do ordenamento jurídico. Certamente, “A atitude de negar
relevância às sanções civis de caráter punitivo significa excluir pela raiz a aptidão de
normas de direito privado explicitarem uma função preventiva, de desestímulo à prática
de condutas ilícitas”363.
Complementa esse entendimento Paula Cristina Lippi Pereira de Barros, ao expor
que a nomenclatura sanção ou pena é utilizada coloquialmente, como representação de
punição ou castigo, de forma equivocada. Assim, a sanção jurídica – da qual a pena
362
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 13/14.
363
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 13/14.
157
privada é uma espécie – representa a consequência jurídica da violação da norma,
cumprindo esta uma função de desencorajamento à prática do ato violador da norma364.
No Brasil, a ideia de punição, como mencionado, está tomando corpo na doutrina e
na jurisprudência – notadamente na aplicação de danos morais –, e, ao que se mostra, na
própria consciência da população, seja em razão do aumento das condutas ilícitas
praticadas com dolo e culpa grave, especialmente no mercado de consumo e contra o meio
ambiente, que fazem provocar o rebaixamento da qualidade de vida da coletividade, seja
também pela diminuição do número de católicos365, parecendo ser mais aceitável a ideia de
punição no lugar do perdão, e de enriquecimento366 em vez de permissão do dano.
Mas, em especial, a pena privada vem ressurgindo com força em razão da
insuficiência das respostas oferecidas pela Responsabilidade Civil, que, em sua função
ressarcitória, limitada apenas ao dano sofrido pela vítima, deixa de modular outras
situações, com base, principalmente, em antigos dogmas religiosos. Isso sem contar com a
tendência de tração do Direito Penal367, que deve limitar-se às ofensas mais graves à ordem
social, o que facilita a reapreciação do caráter punitivo da responsabilidade civil.
Com efeito, ao estudar o assunto, constatou Paolo Gallo cinco hipóteses de
utilização da pena privada no direito contemporâneo368:
364
BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial
do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC/SP p. 63 e 68/74, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf,
consultado em 7/10/2013.
365
Uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas aponta que não apenas o número de católicos está
diminuindo no Brasil, como há um crescente aumento do número de pessoas sem religião. In FGV: País tem
queda de 7,26% no número de católicos em 6 anos, http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,fgv-pais-temqueda-de-726-no-numero-de-catolicos-em-6-anos,762518,0.htm, matéria veiculada em 23 de agosto de 2011,
e consultada em 24/8/2011. A mesma análise foi feita pelo jornal O Estado de São Paulo, cuja matéria foi
intitula “Igreja Católica tem queda recorde e perde 465 fiéis por dia em uma década”. In versão impressa,
Vida, p. A24, de 30 de junho de 2012.
366
Explica Nelson Rosenvald que não se pode cogitar de locupletamento sem causa quando o montante
destinado à vítima é proveniente de uma decisão judicial. Se a pena é justa em si, o enriquecimento apresenta
uma base legal, eliminando a crítica. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a
reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 196/197.
367
De fato, o sistema criminal não traz uma solução adequada (pena) a todos os danos graves que afligem a
sociedade. Demais disso, a sua forma de punição não resolve todos os problemas da coletividade, em face
desses tipos de lesão. A segurança social, muitas das vezes, não é resolvida com o encarceramento do
ofensor. Outras medidas devem ser utilizadas no auxílio e complemento dessa repressão.
368
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, pp.60/63 e 175 e ss.
158
(1) casos de dolo ou culpa grave;
(2) casos de responsabilidade civil “sem dano”, isto é, sem dano de natureza
econômica imediatamente perceptível, como ocorre no vasto setor das lesões aos
direitos de personalidade, ou quando o mero ressarcimento não for suficiente;
(3) situações em que o lucro obtido com o ilícito é superior ao dano;
(4) hipóteses em que a probabilidade de condenação a ressarcir os danos é inferior
relativamente à probabilidade de causar danos;
(5) os chamados “crimes de bagatela”.
De fato, pelo esforço jurisprudencial dos Tribunais brasileiros, a primeira e a
segunda hipóteses já são comumente verificadas, embora sua reparação seja embutida,
como anteriormente referido, às indenizações por danos morais. As outras hipóteses,
direcionadas tanto aos danos em série no consumo quanto ao meio ambiente, também são
objeto de reflexão dos estudiosos e de decisões pontuais dos Tribunais, por meio da
aplicação de indenização por danos morais coletivos, tal como os crimes de bagatela,
representados, na realidade, pelo universo das microlesões, quando verificado o claro
intuito de lucro.
Como refere Maria Celina Bodin de Moraes, a função punitiva da indenização
apenas apresenta lógica razoável quando atribuída a hipóteses excepcionais e a hipóteses
taxativamente previstas em lei. E uma dessas hipóteses de aplicação do dano punitivo, em
sua função de exemplaridade, refere-se aos casos em que for imperioso “dar uma resposta
à sociedade”, quando diante de “conduta particularmente ultrajante, ou insultuosa, em
relação à consciência coletiva, ou, ainda, quando se der o caso, não incomum, de prática
danosa reiterada”. Além desse caso, se aceita o caráter punitivo, na sua função preventivoprecautória, para “situações potencialmente causadoras de lesões a um grande número de
pessoas, como ocorre nos direitos difusos, tanto na relação de consumo quanto no Direito
Ambiental”369.
Fato é que há, no sistema jurídico brasileiro, regras pontuais que, expressamente,
permitem a “correlação entre a censurabilidade da conduta do agente e a elevação do
369
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 263.
159
montante indenizatório!”370, como obtemperam Judith Martins-Costa e Mariana Souza
Pargendler.
Mas alertam as mesmas autoras para o fato de que toda a discussão entre o caráter
exemplar da responsabilidade civil atém-se à problemática da reparação do dano moral. E,
em razão das tormentosas discussões acerca do dano moral, ao menos até o advento da
Constituição Federal de 1988, parece que o tema acaba se vinculando, paradoxalmente,
àqueles antigos debates acerca da viabilidade de se conceder indenização face à
inexistência de prejuízo de ordem patrimonial371.
Malgrado se perceba um evidente equívoco cultural na associação do modelo
brasileiro de reparação do dano extrapatrimonial aos punitive damages372 – este último já
não mais atrelado à ideia de dano moral –, especialmente pela jurisprudência, que faz
menção indevidamente a tal figura norte-americana, sem que sejam preenchidos os
requisitos socioculturais e legais presentes naquele ordenamento jurídico, não é preciso
fugir às regras já presentes na legislação brasileira para a imposição de uma punição,
quando diante de danos especialmente graves.
Não é preciso aplicar institutos de outros países, de forma completamente ilógica e
desnaturada, porquanto ser possível reconhecer, no próprio ordenamento jurídico
brasileiro, mecanismos de repreensão às condutas perniciosas que assolam a sociedade.
Tampouco se faz necessária a desvirtuação do próprio dano moral, que, embora cumpra
função também preventiva e dissuasória, não pode ser utilizado como imposição de
370
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva
(punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 22. Para
chegar a essa conclusão, as autoras fazem um apanhado sobre o sistema da responsabilidade civil do Código
Civil e do Código de Defesa do Consumidor, demonstrando, inclusive, a evidente distinção da lei civil entre a
culpa e o dolo (na responsabilidade contratual, ex vi, do art. 392) e entre os graus de culpa (na
responsabilidade aquiliana, v.g., art. 929), assim como a previsão da equidade na fixação da indenização
(arts. 944, parágrafo único, 953, parágrafo único e 954, com remissão ao parágrafo único do art. 953), e
também a ausência de tarifação da indenização, em virtude de decisões do STJ.
371
MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva
(punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 22.
372
O próprio Supremo Tribunal Federal, ao decidir pela responsabilização de um hospital público, cuja
responsabilidade é objetiva, nos termos do art. 37, parágrafo 6 o da CF, utilizou-se dos ensinamentos da
doutrina norte-ameriacana dos punitive damages para impor uma indenização punitiva, a fim de justificar
uma medida sancionatória e dissuasória da indenização, em evidente confusão conceitual entre o caráter
punitivo da indenização e a indenização punitiva. (in www.stf.jus.br, Agravo de Instrumento no 455.846/RJ,
j. 11/10/2004, DJ de 21/10/2004, p. 00018, relator Ministro Celso de Mello, consultado em 20/11/2012).
160
penalidade, justamente em razão de sua vinculação ao próprio dano e à desnecessidade de
averiguação da gravidade da conduta.
Urge, sim, a necessidade de punição aos danos cometidos à coletividade, para que
ela não esmaeça, não perca a sua força e consciência de si própria. Certamente, a tolerância
de condutas lesivas leva à sua internalização como regra pelo agente causador, sendo certo
que,
não
havendo
correção,
não
haverá,
consequentemente,
modificação
de
comportamento. Contudo, essa correção deve ocorrer de acordo com os instrumentos
fornecidos pelo ordenamento jurídico, em atenção aos limites impostos pela Lei.
Serve essa análise, portanto, para mostrar que a ideia de punição não é apenas uma
preocupação atual da doutrina e da jurisprudência, mas medida impositiva para a
preservação da coesão social, não bastando importar um instituto estrangeiro a um
ordenamento jurídico erigido na base de uma sociedade pavimentada por dogmas e
conceitos bastante diferentes. Mas que essas diferenças sejam o ponto de partida para a
construção de teorias e Leis que tornem possível a formulação de um instrumento que
cumpra os anseios da coletividade em sua configuração atual, com o abandono de dogmas
e preconceitos que não podem mais se sobrepor à saúde da vida social.
4.4 O FENÔMENO DO DANO SOCIAL
Como sustenta Agustín Álvarez, existem situações intoleráveis e irritantes nas quais
o ressarcimento do prejuízo não silencia as repercussões de inequidade e insegurança que
essas condutas acarretam. Essas situações são aquelas que se verificam quando há
produção de prejuízos graves, com sério menosprezo aos interesses alheios373.
Essa necessidade de criação de um novo mecanismo, cuja finalidade é a dissuasão
ou a punição, num sistema em que os antigos instrumentos de proteção do indivíduo e da
sociedade parecem não mais corresponder às novas modalidades de dano verificadas,
373
ÁLVAREZ, Agustín. Repensando la Incorporación de los Daños Punitivos. Academia Nacional de
Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba. In http://www.acaderc.org.ar/doctrina/articulos/repensando-laincorporacion-de-los-danos-punitivos, consultado em 2/10/2013.
161
revela, inicialmente, um fenômeno doutrinário e jurisprudencial, não exclusivo do Brasil,
como antes visto.
Nos EUA, a figura do societal damage, que representa uma compensação virtual
daqueles que também sofreram com os danos discutidos em processo do qual não fizeram
parte, ou mesmo de decisões relativas aos punitive damages, em que há majoração da
condenação justamente em razão do dano coletivo causado, analisando-se, então, a questão
de forma não-linear, revela essa preocupação de doutrina e jurisprudência por um
mecanismo de proteção que não mais se compreende no âmbito individual. Também em
outros países, como França, Alemanha, Itália e, até mesmo, Argentina, têm sido muito
discutidas e aplicadas, pontualmente, as indenizações punitivas.
No Brasil, esse movimento em direção à punição do ofensor, num sentido de
disciplina e exemplo à coletividade, de reparação do bem comum, de tutela a um valor
coletivo tão presente no século XXI, tem ganhado força, podendo ser sentido nas decisões
exaradas pelos Tribunais.
Como exemplo dessa preocupação dos Tribunais, permite-se citar os seguintes
exemplos, que abarcam diferentes tipos de aviltamentos à sociedade, cuja solução
encontrada – direta ou indiretamente – foi em direção à punição do agente causador do
dano:
1) Em decisão do Juizado Especial Cível, da Comarca do Rio de Janeiro/RJ374, o
magistrado condenou a empresa de vendas coletivas Groupon a ressarcir o autor de
uma ação de reparação de danos patrimoniais e morais, pelo serviço
inadequadamente prestado, sopesando as demais vendas efetivadas pela empresa,
para arbitrar o valor da indenização. Explica-se: o consumidor adquiriu da empresa
de vendas coletivas um cupom, no valor de quinze reais, que serviria para o
consumo de uma pizza grande em determinado restaurante. Após efetuar a compra,
o consumidor foi surpreendido com o débito duplicado do valor do cupom. Além
disso, recebeu, em vez de apenas um, dois tickets relativos à pizza que comprara.
374
www.tjrj.jus.br, Juizado Especial Cível - Copacabana - Rio de Janeiro/RJ, Processo 001430076.2011.8.19.0001, julgado em 6/5/2011, Juiz FLAVIO CITRO VIEIRA DE MELLO, consultado em
20/1/2011.
162
Por essa razão, entrou ele em contato com o Groupon, que admitiu, por email
juntado aos autos do processo, a cobrança em duplicidade, assim como o orientou a
utilizar o segundo cupom emitido. No entanto, ao se deslocar ao restaurante e tentar
utilizar o ticket que adquirira, não logrou êxito, sendo constrangido ao pagamento
de toda a conta. Assim, foi a empresa condenada ao ressarcimento do valor gasto
pelo autor da ação com a aquisição do cupom, acrescido de juros e correção
monetária. Não apenas isso – e essa é a parte relevante –, foi condenada a empresa
ao pagamento de danos morais, valendo-se o magistrado da estimativa do número
de vendas, da mesma natureza, por ela realizados, para majorar o valor do quantum,
sob a justificativa de que fosse dada uma lição ao infrator. Verifica-se verdadeira
carga social na decisão, cujo intuito era repelir o ilícito lucrativo praticado pela
empresa, em lesão à coletividade.
2) Semelhante, e até mesmo curioso, foi o decisum do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais375, ao apreciar questão relativa à publicidade enganosa, em que eram
ludibriados os consumidores de produtos de empresa do ramo hoteleiro e de
turismo. Em que pese ter reconhecido o Tribunal o dano causado à coletividade,
assim como a necessidade de aplicação de medida punitiva, reduziu a indenização
de R$ 200.000,00 para R$ 35.000,00, levando em conta a atuação proativa da
empresa em tentar resolver o problema causado aos consumidores de seus produtos.
Vê-se que o Tribunal, apesar de reconhecer a afronta causada à sociedade, que era
enganada pela empresa, ainda assim entendeu por bem reduzir o quantum
indenizatório, em virtude desse “bom comportamento” na tentativa de minorar o
dano causado, em evidente análise da repercussão da lesão para a sociedade, assim
como das medidas apaziguadoras posteriormente adotadas.
3) Em outro julgado, dessa vez do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro376,
foi aumentado o valor da indenização, para atender ao caráter punitivo da
indenização, em razão da ampla repercussão do crime praticado pelo réu, mediante
extrema brutalidade e total repúdio por parte da consciência social e da Justiça, o
375
www.tjmg.jus.br, TJMG, 15ª Câmara Cível, Apelação Cível n° 1.0702.02.029297-6/001, Julgado em
23/6/2006, Relator Desembargador Guilherme Luciano Baeta Nunes, consultado em 2/2/2013.
376
www.tjrj.jus.br, TJRJ, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 9.825/98, Julgado em 2/7/2001, Relator
Desembargador A. Vieira Macabu, consultado em 15/3/2011.
163
que evidencia a intenção do Judiciário em justamente repelir as condutas que
potencialmente rebaixam a qualidade de vida da coletividade.
4) Ao invocar – indevidamente – a doutrina dos punitive damages, o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul377, para que uma instituição bancária corrigisse, de
forma efetiva, as falhas de sistema, quando da inserção indevida de consumidores
nos cadastros de restrição ao crédito, decidiu que “se o registro em banco de dados
de consumidor é fato essencialmente difamatório excepcionalmente tornado lícito,
se no plano individual ele só produz malefícios e não traz ganhos palpáveis, ou
esses são moralmente ilegítimos, o credor deve ter muita cautela ao exercer essa
faculdade, justamente o que não houve aqui”. Verificou-se a intenção do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul em fazer cessar esse “total descontrole sobre
rotinas internas potencialmente maléficas a interesses individuais de terceiros”,
assim como repreender a “atitude imperial de pouco caso para com os direitos do
consumidor de crédito e, até mesmo, para com ordens judiciais”. Assim, foi
estimada indenização por dano extrapatrimonial, com clara carga de punição, em
50 salários mínimos, tomando-se por base o valor de multa aplicada em caso de
condenação por crime de difamação.
5) Da mesma forma com que foi repelida essa falha cometida pela instituição
financeira no caso acima, foi também utilizada, pelo mesmo Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul378, a teoria dos punitive damages, para a repreensão de conduta
reiterada de seguradora, que aviltava o valor das indenizações contratualmente
estipuladas, para, assim, “forrar seus cofres com as sobras”.
6) O Superior Tribunal de Justiça manifestou-se sobre a proteção de idosos, gestantes,
deficientes físicos e pessoas com dificuldade de locomoção a acesso facilitado aos
caixas bancários de atendimento convencional. Em ação promovida contra
instituição financeira que mantinha os caixas de atendimento convencional no
segundo piso, o que dificultava o acesso, foi reconhecido dano extrapatrimonial
377
www.tjrs.jus.br, TJRS, Sexta Câmara Cível, Apelação Cível nº 70001991314, Julgado em 29/10/2003,
Relator Desembargador João Batista Marques Tovo, consultado em 15/3/2011.
378
www.tjrs.jus.br, TJRS, Sexta Câmara Cível, Apelação Cível nº 70005349865, Julgado em 10/12/2003,
Relator Desembargador João Batista Marques Tovo, consultado em 15/3/2011
164
coletivo, com a seguinte conclusão pela Turma Julgadora379: “(...) Todavia, não é
qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral
difuso. É preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde
os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir
verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem
extrapatrimonial coletiva. Ocorrência, na espécie...De qualquer sorte, registra-se
que a indenização por dano moral tem caráter propedêutico e possui como
objetivos a reparação do dano e a pedagógica punição...”. Repara-se que o intuito
da indenização concedida não era apenas de compensação pelos danos sofridos,
mas de punição e educação do agente transgressor a direitos de outrem, em caráter
socializante da condenação.
7) Importante mencionar decisão também do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria
da Ministra Eliana Calmon, em que era discutido o direito à indenização por danos
extrapatrimoniais em razão de exigência indevida de empresa concessionária de
transporte público de cadastro dos usuários idosos, para a concessão da gratuidade.
Com efeito, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul orientava-se
pela não concessão da indenização, por ter ficado caracterizado mero
aborrecimento dos usuários, incapaz de configurar um dano extrapatrimonial. Em
que pese não ter sido modificada a decisão, por tecnicalidades processuais, e após
colacionar, em seu voto, decisões exaradas pela 1ª Turma do STJ, no sentido de não
conceder esse tipo de indenização, apoiando-se no fato de o dano moral ser
personalíssimo, a mencionada relatora manifestou entendimento contrário, por
entender não ser essencial à caracterização do dano extrapatrimonial coletivo prova
de que houve dor, sentimento, lesão psíquica, afetando a parte sensitiva do ser
humano, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Ainda
mais, consignou que “as relações jurídicas caminham para uma massificação e a
lesão aos interesses de massa não podem ficar sem reparação, sob pena de criar-se
litigiosidade contida que levará ao fracasso do Direito como forma de prevenir e
reparar os conflitos sociais”. Nesse passo, salientou-se no julgado que a reparação
civil segue em seu processo de evolução iniciado com a negação do direito à
379
www.stj.jus.br, STJ, Terceira Turma, REsp 1221756/RJ, julgado em 2/2/2012, Relator Ministro Massami
Uyeda, consultado em 12/12/2012.
165
reparação do dano moral puro para a previsão de reparação de dano a interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos, ao lado do já consagrado direito à
reparação pelo dano moral sofrido pelo indivíduo e pela pessoa jurídica. Assim, o
dano extrapatrimonial deveria ser averiguado de acordo com as características
próprias aos interesses difusos e coletivos, distanciando-se quanto aos caracteres
próprios das pessoas físicas que compõem determinada coletividade ou grupo
determinado ou indeterminado de pessoas, “sem olvidar que é a confluência dos
valores individuais que dão singularidade ao valor coletivo”. Na visão da relatora,
o dano moral extrapatrimonial atinge direitos de personalidade do grupo ou
coletividade enquanto realidade massificada, que a cada dia mais reclama soluções
jurídicas para sua proteção. Trouxe, como exemplo, uma coletividade indígena, que
pode sofrer ofensa à honra, à sua dignidade, à sua boa reputação, à sua história,
costumes e tradições, não importando isso exigir que a coletividade sinta a dor, a
repulsa, a indignação tal qual fosse um indivíduo isolado. “Estas decorrem do
sentimento coletivo de participar de determinado grupo ou coletividade,
relacionando a própria individualidade à idéia do coletivo”. Embora não
concedido o dano extrapatrimonial no caso concreto, ficou evidente o
posicionamento do STJ, no sentido de reprimir as condutas antijurídicas causadas à
coletividade, e não mais apenas ao indivíduo, em evidente passo evolutivo da
responsabilidade civil.
8) Em outro julgado bastante interessante380, em que duas empresas promoviam,
ilicitamente, a atividade de jogos e bingo, o Julgador entendeu ter ocorrido um
dano à sociedade, asseverando que “Uma empresa criada para explorar o jogo
obviamente não foi criada para nada senão o lucro, lucro que se aufere tanto mais
quanto mais as pessoas se viciarem e gastarem suas economias no local”. Ou seja,
na visão do magistrado, as empresas de jogos haviam sido criadas com o único
propósito de ludibriar as pessoas e auferir lucro, sem nenhum benefício para a
coletividade. Por esse motivo, entendeu que “Uma das maneiras de se prestigiar o
trabalho e incentivar a desistência ao jogo, é reduzir a lucratividade das empresas
de jogatina”. E a fórmula utilizada para o cálculo da indenização se revela bastante
380
www.trf2.gov.br, TRF 2ª Região, Oitava Turma Especializada, Apelação Cível nº 200351020070183,
julgado em 31/8/2010, Relator Desembargador Federal Raldênio Bonifacio Costa.
166
peculiar: “Sendo assim, como o cidadão trabalhador está sujeito à alíquota de
27,5% de seus rendimentos tributáveis, utilizo esta porcentagem como parâmetro,
e fixo, para fins de indenização por danos morais, o percentual de 27,5% do lucro
auferido pelas empresas MJJCC PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA e IBIZA
ENTRETENIMENTOS LTDA, a ser calculado em sede de execução”. Assim como
fica claro o alcance social do caso concreto, com o desprestígio do jogo ilícito e o
reconhecimento de um elemento coletivo que serviu como aspecto moralizador das
empresas, que é o pagamento dos tributos pelos trabalhadores (honestos), vê-se ter
sido desenvolvido um critério inédito e, ainda assim, razoável, que serviu à
finalidade a que se destinava. Na falta de elementos legais balizadores, conseguiu o
Julgador extrair, do caso concreto, um método de orientação para a aplicação da
indenização.
9) Outro importante precedente a respeito da iniciativa dos Tribunais pátrios em
reconhecer uma função social à indenização da coletividade refere-se à proteção ao
direito ambiental. Em julgamento de ação em que ocorreram danos ao meio
ambiente, o STJ381 entendeu que, pela conformação que o Direito dá ao bem
ambiental, ele afeta, necessariamente, uma pluralidade difusa de vítimas, mesmo
quando certos aspectos particulares da sua danosidade atingem individualmente
certos sujeitos. Afetada essa pluralidade de vítimas, representantes da sociedade,
deve ser compensado o prejuízo sofrido, não apenas pela recomposição do
patrimônio, mas pelo prejuízo não patrimonial sentido por cada uma dessas pessoas
inseridas nessa coletividade.
10) Quiçá a decisão mais marcante desse movimento rumo ao reconhecimento de um
dano social foi proferida pelo Juízo Recursal do Rio Grande do Sul382, reformando
parcialmente o julgado de primeira instância, ao analisar um caso em que uma
loteria fraudava os resultados de seus sorteios, auferindo, assim, lucro ilícito à custa
de seus consumidores. A autora da ação pedia a reparação pelos danos materiais e
morais sofridos em razão dessa fraude, esta comprovada por perícia judicial. Os
381
www.stj.jus.br, Recurso Especial nº 625.249/PR, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em
15/8/2006, consultado em 17/6/2012
382
www.tjrs.jus.br, TJRS, Primeira Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio
Grande do Sul, Recurso Inominado nº 71001281054, Relator Ricardo Torres Hermann, julgado em
12/7/2007, consultado em 10/7/2010.
167
danos materiais alegados referiam-se ao valor gasto na aquisição das cartelas do
sorteio, assim como à perda da chance de ganhar o prêmio oferecido. Sobre essa
questão, a Turma Julgadora decidiu afastar os danos materiais referentes à perda da
chance de ser sorteado, por entender que a hipótese era muito remota de se
concretizar. Por outro lado, em relação às cartelas, o Tribunal concedeu a
restituição dos valores pagos (R$ 10,00, equivalentes a 10 cartelas de jogo 383). A
respeito dos danos morais, o Juízo Recursal do Rio Grande do Sul entendeu que
não seria cabível qualquer indenização, porquanto não vislumbrada a presença de
“dor física, sofrimento moral, situações de forte angústia, estresse, exposição a
graves desconfortos, situações de vulnerabilidade, etc.” Contudo, mesmo afastando
os danos morais puros, a Turma Julgadora reconheceu a necessidade de aplicação
de uma indenização punitiva, “ainda que os danos individuais pudessem ter sido
pequenos, fragmentados e dispersos pela população”. Alicerçaram-se os
Julgadores no fato de que a fraude perpetrada permitia uma vantagem
absurdamente grande, mas ilícita, à empresa, que vendia, semanalmente, 750.000
cartelas relativas aos sorteios de loteria que realizava, ao preço de R$ 1,00 cada,
assim como na possível ineficácia de uma repressão penal, e, principalmente, para a
manutenção da vida social pautada em condutas éticas e morais, em vista da
proteção coletiva. Reconheceu-se, assim, a ocorrência de um dano social384,
passível de compensação, arbitrada no valor de R$ 10.400,00 (40 salários
mínimos), que seria destinada, entretanto, a um fundo de proteção ao consumidor, e
não à autora da demanda judicial, para que se evitasse o enriquecimento sem causa.
383
Interessante a conclusão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quanto à indenização por danos
materiais concedida: Todavia, obviamente que se fosse apenas esse o valor em disputa, a parte autora seria
inclusive considerada carecedora de ação por falta de interesse de agir – isso porque o custo da demanda,
para o contribuinte que paga a estrutura do PJ e os vencimentos de todos os atores da cena judiciária,
superaria, e muito, o valor final a ser obtido, o que significaria uma absurda irracionalidade econômica, que
um país já com tantas carências como o nosso não poderia suportar.
384
Cumpre destacar trecho do acórdão que reflete o entendimento da Turma Recursal, a respeito do
reconhecimento do dano social: “Por último, esclareça-se que esta decisão não fere o disposto no art. 944 do
CC (“A indenização mede-se pela extensão do dano”.). Isso porque o codificador não explicitou o que
entende por dano. E no caso em tela, entende-se que se está a indenizar o “dano social” causado, na esteira
das experiências jurídicas contemporâneas de outros países. A expressão “dano”, constante do art. 944, é
suficientemente elástica, portanto, para abranger também os danos sociais. Trata-se, portanto, de solução
perfeitamente compatível com nosso Direito.”
168
11) Nessa mesma esteira, posteriormente ao caso antes comentado, o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul385 veio reconhecer novamente a hipótese de danos
sociais, em razão de cobrança indevida, por operadora de telefonia, de serviços não
contratados pelo consumidor. Julgada parcialmente procedente a demanda em
Primeiro Grau, afastando a pretensão indenizatória por danos morais pretendida
pelo autor, restou consignado, no voto do Relator do recurso de apelação, que não
assistia realmente razão ao pleiteante, pelo fato de que a cobrança do serviço não
era suficiente para caracterizar dor, sofrimento, constrangimento, afastando,
também, a hipótese de dano extrapatrimonial. Mas esse entendimento não foi
acompanhado pelo revisor, que, embora não tenha vislumbrado a presença de um
dano moral puro, reconheceu a ocorrência de um dano social, levando em conta “o
desmesurado número de demandas semelhantes à presente, que chega aos vários
milhares”, a apontar ausência de simples falha de sistema alegado pela empresa,
mas de verdadeira estratégia empresarial, adotada também por outras grandes
companhias, que contêm enorme número de clientes. O raciocínio utilizado pelo
revisor partiu do pressuposto de que boa parte dos clientes não revisava
minuciosamente suas faturas, e que, boa parte daqueles que revisavam, não
entendia alguns códigos de serviços faturados, e ainda, muitos daqueles que
entendiam não chegavam a reclamar administrativamente (para não perderem
tempo e paciência no enlouquecedor sistema de call center, também utilizado para
alimentar essa estratégia), nem judicialmente (uma vez que os diminutos valores
cobrados não compensariam o trabalho e os gastos de uma demanda judicial).
Dessa forma, concluiu que, “quando a demanda é ajuizada, a resposta do Direito a
uma situação do gênero não pode passar por uma simples devolução dobrada dos
valores cobrados, pois tal apenas serve de incentivo para a estratégia empresarial
adotada, pois os benefícios obtidos com ela é muito superior aos valores
despendidos com o ressarcimento daqueles que reclamam”. Por esses argumentos,
ficou o terceiro julgador convencido também da existência de um dano, ao que foi
reformada a decisão de Primeiro Grau, contrariamente ao entendimento do Relator.
No entanto, concedeu indenização à vítima no módico valor de R$ 2.000,00.
385
www.tjrs.jus.br, TJRS, Décima Nona Câmara Cível, Apelação Cível nº 70040936841, Julgado em
13/3/2012, Relatora Desembargadora Mylene Maria Michel, consultado em 5/3/2013.
169
O que se observa dos exemplos ora mencionados é que essa tendência, do
individual ao coletivo, do reconhecimento de um dano social, vem, de fato, ganhando cada
vez mais força. Ocorre que, talvez e justamente por ser novo e ainda pouco explorado no
ordenamento jurídico brasileiro, esse movimento acontece de forma acanhada e
atabalhoada, sem lastros ou critérios que definam quando e como aplicar uma indenização
de reparação coletiva e punição ao ofensor, assim como e, principalmente, o valor que
deverá ser atribuído ou para quem o montante se destinará.
Note-se, no primeiro exemplo, que o Juiz, à mingua de informação precisa e sem
partir de qualquer dado concreto, justificou a aplicação de indenização majorada por um
plus pedagógico, baseado em vendas que teriam sido realizadas pela empresa causadora do
dano. No entanto, sem saber o valor total dessas vendas ou mesmo a recorrência do
problema, aplicou um valor de indenização que entendeu condizente ao dano sofrido, sem
saber a sua efetiva extensão, e sem destiná-lo às eventuais demais vítimas, ou mesmo sem
justificar por que aquele numerário seria suficiente para desestimular uma prática futura da
mesma conduta.
Por sua vez, no décimo exemplo, mesmo tendo, aparentemente, todos os elementos
em mãos, como uma estimativa razoável da quantidade de bilhetes de loteria vendidos, que
poderia precisar o valor do lucro obtido ilicitamente, das punições impingidas por órgãos
administrativos etc., os Julgadores aplicaram indenização bastante ínfima, que, certamente,
não compensou os danos sofridos pela coletividade, tampouco se mostrou capaz de servir
como punição ao agente, prestando-se, em realidade, como estímulo para que a prática
ilícita fosse reiterada.
Certo é que, quanto mais abstrata a situação, ou seja, em que não se envolva um
prejuízo patrimonial ou um lucro ilícito, capaz de pautar uma indenização por dano
extrapatrimonial, chegar-se a um valor equânime e justo, que cumpra as funções
indenitária, punitiva e preventiva da responsabilidade civil, será tarefa bastante árdua ao
Julgador.
Também não se permite a aplicação de uma indenização dessa natureza a qualquer
tipo de pretensão, servindo o direito norte-americano de exemplo, quando desacreditado
170
em virtude de indenizações extremamente elevadas, na aplicação de seus punitive
damages, devendo o magistrado partir de certos requisitos e parâmetros, a justificar a
imposição de uma penalidade ao agente causador do dano social.
Além disso, em outras situações, mostra-se bastante clara a distorção ou importação
de conceitos estrangeiros, para justificar um acréscimo à indenização, o que não parece
guardar relação com o ordenamento jurídico brasileiro nem a ele se conformar. Embora
louvável a iniciativa empreendida pela jurisprudência, não é necessário torcer conceitos e
transpor regras já bem definidas para a aplicação de indenizações que atendam aos anseios
atuais da sociedade.
Também, não devem servir as funções punitiva e pedagógica somente como um
enfeite na decisão judicial. Deve haver condenação em valores que realmente
desestimulem o ofensor e os potenciais lesantes, impedindo que seja realizada uma lógica
lucrativa, diferentemente do que se repara das decisões analisadas.
Enfim, verifica-se um verdadeiro direcionamento atual para um fenômeno do dano
social, em que são aplicadas indenizações punitivas, com expresso caráter de prevenção de
danos, revelando, ainda, uma forte carga socializante. Entrementes, esse fenômeno, carente
de balizas, ocorre ainda de forma bastante atrapalhada, sem se valer, no mais das vezes, de
qualquer critério para a fixação do quantum, além de importar conceitos e pressupostos de
outros ordenamentos, de raízes, jurídicas e culturais, totalmente diferentes.
4.5 O DANO SOCIAL COMO FONTE AUTÔNOMA DE INDENIZAÇÃO:
A SUA CONCEITUAÇÃO, NECESSIDADE DE AMPLIAÇÃO E
PRESSUPOSTOS
Por tudo o que foi até agora exposto, constatou-se que os mecanismos de punição e
prevenção utilizados na atual configuração da responsabilidade civil brasileira não
correspondem à resposta almejada, pelo Direito e pela coletividade, contra os atentados
praticados por aqueles que preferem não se adequar às regras de conduta social, rebaixando
171
a qualidade de vida da comunidade e quebrando o dever de segurança e lealdade que deles
se esperava.
Em que pese já existir um verdadeiro fenômeno da aplicação de um dano social,
utilizado pela jurisprudência para a efetivação, sobretudo, de sanções punitivas, sob a
justificativa da função social do processo judicial e garantia das funções punitiva e
preventiva da Responsabilidade Civil, o seu emprego ocorre ainda de forma desordenada e
com base em instituto (dano moral) que não deveria comportar um aspecto punitivo – ao
menos não da forma como é utilizado –, revelando-se imperioso, portanto, o
reconhecimento de uma nova categoria de dano, como fonte autônoma de indenização,
tanto para tornar legítima a propagação dessas indenizações coletivas, quanto para evitar-se
o atropelo dos requisitos exigidos por Lei para a sua formatação.
Não se está aqui defendendo que o reconhecimento de uma nova categoria de dano
seja a solução para todos os problemas atuais enfrentados pela responsabilidade civil. Mas
o passo é importante, para que os estudiosos e aplicadores do direito consigam
fundamentar suas decisões (de ajuizar uma ação ou de decidir uma causa) em bases mais
sólidas do que aquelas apresentadas pelo cenário jurídico atual.
Certamente, ao se confundir a função compensatória com a função de desestímulo,
numa mesma condenação – como ocorre, atualmente, na fixação da indenização por danos
morais –, obtém-se uma insatisfatória reparação dos danos, assim como uma insuficiente
prevenção e punição pela prática de atos antijurídicos.
Prestando-se o dano moral a compensar uma ofensa a um direito da personalidade,
não cabe a verificação do comportamento do ofensor (culpa grave ou dolo) para a sua
majoração, tampouco ao incremento da indenização, que deve corresponder à lesão, ou
mesmo a verificação da condição econômica do ofensor ou da vítima, já que esses
elementos não alteram a essencial dignidade da vítima, ou quanto dela foi machucado pela
lesão causada386. Não pode, dessa maneira, o julgador desviar o seu foco do fato objetivo
386
Pense-se, como exemplo, no caso de acidente ocorrido em viagem turística. Logicamente, não terão
direito a maior indenização por danos morais aqueles que adquiriram pacotes com preço mais elevado,
porquanto todos sofreram o mesmo dano, não estando o valor da dignidade associado à condição social. Essa
172
do dano e de seu impacto sobre a vítima, para aplicação de indenização por lesão moral, já
que esta deve ser medida em sua extensão.
Como refere Claudio Luiz Bueno de Godoy, o ordenamento jurídico de hoje não
mais imputa a responsabilidade necessariamente a um culpado. Ou seja, começa a ganhar
corpo essa ideia de coletivização, de socialização da Responsabilidade Civil, tendo-se em
conta a solidariedade social em que é constituída a nação. Consigna ele que, para muitos
autores, trata-se de corolário forçoso da lógica do risco: “Ter-se-ia o que se convencionou
chamar de Estado de Seguridade, erigido ao pressuposto de que o dano afeta toda a
sociedade e, da mesma maneira, a sua recomposição”. Tem-se claro, assim, que o dano
reduz o ofendido a uma situação de desigualdade, que precisa ser reequilibrada,
pressuposto do solidarismo previsto no texto constitucional, com a determinação de
construção de uma sociedade justa e solidária. “Daí a idéia, que ganha corpo, de assentar
a responsabilidade civil sobre um fundamento que é mesmo de solidarismo-cooperativo,
verdadeiramente uma revelação da eticidade, princípio caro à nova codificação
brasileira...”387.
De fato, a Constituição Federal de 1988 promoveu um enorme giro paradigmático,
deixando de centrar-se na proteção do patrimônio para privilegiar a tutela da pessoa, sua
existência e dignidade, apontada, no Direito alemão, como “princípio do livre
desenvolvimento da personalidade”. Certamente, a Magna Carta tem forte embasamento na
solidariedade388, e determina que as relações se travem com base na probidade e eticidade,
inspiração humanista que contrasta com o forte viés individualista presente, por exemplo,
no Código Civil de 1916, que bem refletia o pensamento da época em que vigorou389.
Desloca-se o foco da responsabilidade da recomposição do patrimônio da vítima –
sem que se deixe de se preocupar também com isso, frise-se – para, antes, preservar-se a
pessoa do ofendido, de sua existência digna, higidez física e psíquica. Destaque-se, ainda,
análise teria sentido no cômputo dos lucros cessantes, em que realmente se discutem os valores obtidos com
o exercício da atividade, caso o dano não tivesse ocorrido.
387
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, pp. 8/19.
388
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, artigo 3º, I:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;”
389
BERGSTEIN. Gilberto. A informação na relação médico-paciente. São Paulo: Saraiva, p. 90
173
que a proteção da dignidade humana foi alçada a princípio fundamental da República (art.
1o., incisos III, e IV), assim como trouxe a Magna Carta, como objetivo, construir uma
sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, inciso I), regendo-se o País, em suas relações, pelo
princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4o, inciso II)390.
No contexto dessa nova ordem constitucional, perdem importância as concepções
de direitos subjetivos enquanto realização de seus exclusivos interesses, de forma
egoística, sem levar em conta a alteridade e os interesses da comunidade. A ordem pública,
a moral e os bons costumes deixaram de ser os únicos princípios fundantes do
ordenamento jurídico ou, pelo menos, tiveram seu desenho alterado. O conceito de ordem
publica é alargado para tutelar também a dignidade humana, em vez de meramente impor
limites ao livre atuar do indivíduo. Assim, os direitos subjetivos receberão tutela do
ordenamento jurídico quando, além de estarem em conformidade com a vontade do titular,
estiverem também de acordo com o interesse social, esse diretamente ligado à lealdade, à
boa-fé e à solidariedade391.
E é exatamente por esse motivo que, diante da massificação dos danos, doutrina e
jurisprudência tentam conformar a Responsabilidade Civil a essa visão “solidarista”,
investindo na criação de novas ferramentas de proteção à coletividade. Há, pois, uma clara
tendência da doutrina e da jurisprudência em frear esses atos que rebaixam a qualidade de
vida da população ou quebram um dever de segurança e lealdade, pelo reconhecimento de
funções punitiva e preventiva dos danos extrapatrimoniais, como forma de preservar a
ordem pública, a moral, os bons costumes, em vista do interesse social.
No entanto, esse caminho trilhado pelos juristas e julgadores aparenta ser muito
tortuoso, na medida em que parece não se adequar aos requisitos exigidos pela norma.
Tampouco apresentam tais instrumentos uma solução satisfatória aos problemas que
buscam remediar. Como antes visto, embora tenha havido tentativas legislativas em
atribuir-se uma função punitiva aos danos morais, esses projetos ou caíram no
390
MAIOR,
Jorge
Luiz
Souto.
O
Dano
Social
e
sua
Reparação.
In
http://www.nucleotrabalhistacalvet.com.br/artigos, publicado em 13/10/2007, p. 1, consultado em 1º/5/2013.
391
MORAES, Maria Celina Bodin de, Danos à pessoa..., p.105.
174
esquecimento ou não foram aprovados pelo Congresso Nacional392, o que identifica a
vontade do Poder Legislativo em não relacionar, aos danos morais, uma indenização
punitiva.
Foi observado, também, que a conduta do agente, ou seja, a apreciação do grau de
sua culpa deve influenciar outros âmbitos do fato ilícito, mas não o valor da indenização
por um dano moral.
Ademais, a doutrina clássica, viu-se, não atribuía aos danos morais uma função
punitiva, para servir como pena privada, seja porque não desenvolvidas ainda essas novas
modalidades de danos, para que fosse necessária a adoção de tal medida, seja porque,
realmente, essa não era a mens legislatoris, já que, em nenhuma norma, foi vinculado o
dano extrapatrimonial à ideia de punição ou dissuasão.
Entretanto, atualmente, defender unicamente a função meramente reparatória da
responsabilidade civil exclui qualquer reflexão que se pretenda fazer para além do dano e
do lesado, justificando assim a manutenção de certas situações que afligem a sociedade,
como a prática desenfreada de microlesões, ou mesmo ilícitos lucrativos, já que não restará
consubstanciado qualquer dano produzido na esfera jurídica do lesado. Nessa perspectiva,
o direito civil mostrar-se-ia incapaz de impor a interrupção da lesão ou a restituição do
lucro obtido pela prática de ilícito, porque tal reação punitiva seria característica do direito
penal393. Da mesma forma, demonstrou-se que misturar compensação e punição numa
única indenização acaba não se prestando para nenhuma das duas intenções.
392
Como se sabe, o veto presidencial excluiu do Código de Defesa do Consumidor o artigo do texto legal
original que contemplava a indenização punitiva, cuja redação comportava o seguinte texto: “Art. 16. Se
comprovada a alta periculosidade do produto ou serviço que provocou o dano, ou grave imprudência,
negligência ou imperícia do fornecedor, será devida multa civil de até um milhão de vezes o Bônus do
Tesouro Nacional- BTN, ou índice equivalente que venha substituí-lo, na ação proposta por qualquer dos
legitimados à defesa do consumidor em juízo, a critério do juiz, de acordo com a gravidade e a proporção do
dano, bem como a situação econômica do responsável”. A justificativa do veto foi no sentido de que “O art.
12 e outras normas já dispõem de modo cabal sobre a reparação do dano sofrido pelo consumidor”. O
argumento que o embasava aduzia que “os dispositivos ora vetados criam a figura da 'multa civil', sempre
de valor expressivo, sem que sejam definidas a sua destinação e validade.”
393
Esse é o mesmo entendimento trazido por André Gustavo Corrêa de Andrade, ao mencionar que “O
‘paradigma reparatório’, calcado na teoria de que a função da responsabilidade civil é, exclusivamente, a
de reparar o dano, tem-se mostrado ineficaz em diversas situações conflituosas, nas quais ou a reparação do
dano é impossível, ou não constitui resposta jurídica satisfatória, como se dá, por exemplo, quando o
ofensor obtém benefício econômico com o ato ilícito praticado, mesmo depois de pagas as indenizações
pertinentes, de natureza reparatória e/ou compensatória; ou quando o ofensor se mostra indiferente à
sanção reparatória, vista, então, como um preço que ele se propõe a pagar para cometer o ilícito ou
175
Além disso, tanto a doutrina quanto os Tribunais ainda associam, no mais das
vezes, o dano moral à ideia de uma dor, um sentimento, motivo pelo qual diversos danos
causados à coletividade ficam sem proteção, na medida em que impossível a verificação de
um sentimento negativo da coletividade. Pior ainda, os efeitos nefastos da ausência de
reconhecimento de um dano moral, para os casos enquadrados como simples
aborrecimento da vítima, culminam numa “mina de ouro” para a prática das microlesões.
Da mesma forma, os novos danos morais coletivos e difusos, cada vez mais
abordados pelos intérpretes e aplicadores da Lei, não são capazes de resolver todos os
problemas ora mencionados. Isso porque as suas hipóteses de reconhecimento somente
advém de medidas coletivas propostas pelos poucos representantes legitimados pela
norma, sobretudo pelo Ministério Público, que se encontra bastante assoberbado.
Não bastasse isso, os critérios utilizados para o reconhecimento de danos morais
coletivos ou difusos, pelos tribunais, no mais das vezes, são aqueles mesmos apontados
para a concessão de indenização por danos morais, apresentando, portanto, os
mesmíssimos problemas de configuração.
Não parece, também, comportar a Lei uma indenização majorada de qualquer verba
que não esteja relacionada à extensão do dano, nos termos do artigo 944 do Código Civil,
malgrado o esforço doutrinário em contrário394. A ideia da restitutio in integrum, trazida
nesse artigo, é justamente da reposição somente daquilo que se perdeu, não havendo,
então, margem ao acréscimo de qualquer nova verba.
Assim, mesmo em face dos gravíssimos problemas sociais, não aparenta ser
admissível o atropelo da norma jurídica, da forma como se pretende, ainda mais quando
persistir na sua prática”. In ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto
disponibilizado
no
Banco
do
Conhecimento
em
18/8/2008,
http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478f-a346-ec511dd4188a,
consultado em 10/9/2012.
394
Para Claudio Luiz Bueno de Godoy, é inaplicável a regra do art. 944 para a fixação de danos morais, já
que a sua indenização vem despida de natureza ressarcitória ou reparatória. In PELUSO, Cezar (coord).
Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 5ª edição, Manole: São Paulo, 2011, p. 957. Na mesma
esteira é o entendimento de Judith Martins-Costa e Mariana Pargendler, no sentido de que a regra da simetria
do artigo 944, caput do Código Civil apenas se aplica a danos patrimoniais, porquanto não ser possível a
mensuração monetária da extensão do dano extrapatrimonial: “nesse caso, o que cabe é uma ponderação
axiológica, traduzida em valores monetários”. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o
Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p. 22.
176
aprovada ela, em última análise, pela própria sociedade. Parece também ser de pouca
técnica jurídica a distorção de conceitos para a inserção de novas funções a institutos que,
durante toda a sua longeva existência, nunca a isso se prestaram. O reclamo ao
alargamento de aplicação da responsabilidade civil não pode partir de tratamentos teóricos
inadequados, eis que fadados à insatisfação de muitos ou mesmo ao seu próprio insucesso.
Esses diversos problemas do atual modelo da responsabilidade civil, que se
assemelha a um terreno muito acidentado, com alicerces mal assentados, e que acarreta
sérias dificuldades tanto para os estudiosos do tema, quanto para os seus intérpretes e
aplicadores, que não possuem uma firme base conceitual na qual se apoiar, ou não
apresentam conforto doutrinário suficiente para fundamentar adequadamente seus pleitos
ou decisões, traduzem o sentimento de angústia que se aprofunda diante do “descompasso
existente entre a velocidade do progresso tecnológico e a lentidão com a qual amadurece
a capacidade de organizar, social e juridicamente, os processos que acompanham esse
progresso”395. Percebe-se, dessa maneira, a obsolescência das soluções jurídicas para fazer
frente a um novo dado técnico ou a uma nova situação conflituosa.
E é essa crise do “paradigma reparatório” que leva o operador do direito a buscar a
superação do modelo tradicional396. Nesse cenário, especialmente em relação a essas novas
modalidades de danos coletivos, que se apresenta indispensável o reconhecimento de uma
nova categoria de dano. Aos anseios da sociedade devem corresponder normas adequadas,
que sirvam à resolução dos problemas apresentados.
Muitas vezes, em que pese novas situações necessitem de novas soluções, a
resposta ao problema encontra-se na legislação e princípios já existentes, que devem, ao
entanto, ser enxergados ou interpretados de forma a amoldar-se à realidade material
apresentada naquela determinada época da sociedade. Ou, como afirmou Ricardo Luis
Lorenzetti, em muitos casos, não é preciso se buscar uma nova qualificação para os danos,
já que podem eles ser tratados com as tradicionais normas relativas às obrigações com
395
MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a
responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A
constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 237.
396
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do
Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
177
pluralidade de sujeitos397. O dado que faltava à solução do problema acha-se na mudança
de interpretação do mesmo conjunto normativo, sem que se desvirtue a sua equação.
Seria suficiente, então, assumir a ocorrência de um dano já existente, um dano
extrapatrimonial, atribuindo-lhe uma nova roupagem e amplitude, sem se desgarrar de seus
consolidados atributos. Em linguagem mais clara: basta admitir a existência de um mesmo
dano, que é extrapatrimonial, mas alçado a um novo patamar, posto em uma nova
categoria, para que a nova situação fática da sociedade se conforme a mesma legislação
vigente que tão bem ajustou anteriormente as suas condutas.
Nesse sentido, como pondera Matilde Zavala de González, o dano extrapatrimonial
é único, mas substancialmente múltiple. “Efectivamente y en tanto categoría jurídica, no
se configura más que un daño moral, lo cual significa que no hay otros perjuicios “al
lado” de aquél. Pero su composición es usualmente densa e compleja, como la vida
misma, em cuya virtude el desmedro existencial de una víctima puede oferecer artistas
varias”398. Há, portanto, no dano extrapatrimonial uma vasta possibilidade de
reconhecimento de categorias múltiplas de danos, que não apenas aquele dano moral puro.
Já disseram também Mazeaud e Tunc, de há muito, que a reparação é mais ampla
que o prejuízo, eis que admitida a ideia de uma pena privada, utilizada, por vezes, para
apaziguar uma antiga sede de vingança que dorme no fundo do coração da vítima, outras
como uma pena pública à culpa, castigando-a se ela se produz399.
Decerto, a responsabilidade civil é um dos instrumentos jurídicos mais flexíveis,
dotado de extrema simplicidade, mostrando-se apta a oferecer a primeira forma de tutela a
interesses novos, tão logo sua presença seja identificada pela consciência social, e que, de
outra maneira, ficariam desprotegidos, porque ainda não suficientemente amadurecidos
para receberem atenção e, portanto, regulamentação própria por parte do legislador
397
LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D,
1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, p. 1.
398
GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, p.
19. Em tradução livre: Efetivamente, enquanto categoria jurídica, configura-se apenas um dano moral, o que
significa que não há outros prejuízos além deste. Entretanto, a sua composição é usualmente densa e
complexa, como a própria vida, na qual o dano existencial de uma vítima pode oferecer variadas
representações.
399
MAZEAUD, Henri y Léon; TUNC, André. Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidade Civil
Delictual y Contractual. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1957, v. 1, t. I., p. 543
178
ordinário. Por se constituir, basicamente, de cláusulas gerais, além de conceitos não
determinados e vagos, a responsabilidade civil confere ao magistrado o preenchimento
valorativo desses conceitos, pela análise do caso concreto, mediante a aplicação dos
princípios e valores constitucionais, sempre em atenção a uma única constante a ser
seguida, encontrada na prevalência da tutela da pessoa humana, considerada a dignidade
como o valor precípuo do ordenamento, configurando-se como a própria finalidade-função
do Direito400.
Mas, examinar os danos atuais apenas sob a ótica da tutela da dignidade revela-se
insuficiente. Anderson Schreiber sustenta que os pressupostos da responsabilidade civil
relacionados à imputação do dever de indenizar perdem relevância em face de uma certa
ascensão do dano, com o reconhecimento de um maior número de pretensões
indenizatórias. Em parte, o aumento das hipóteses de dano ressarcível encontra lugar no
ocaso da culpa e na flexibilização do nexo de causalidade; de outra parte, verifica-se a
presença de novos interesses, sobretudo de natureza existencial e coletiva, que passam a
ser considerados pelos tribunais como merecedores de tutela401. Por isso que, mais do que
encontrar justificativa na cláusula geral de tutela da dignidade humana, ou na gravidade da
lesão, ou ainda na dor sentida pela vítima, devem-se observar outros critérios para a
verificação de um interesse jurídico que mereça tutela:
“O problema do dano ressarcível exige uma outra abordagem. O juízo do
merecimento de tutela, a cargo das cortes, somente pode derivar de uma análise
concreta e dinâmica dos interesses contrapostos em cada conflito particular,
que não resulte em aceitações gerais pretensamente válidas para todos os casos,
mas que se limite a ponderar interesses à luz das circunstâncias peculiares.
Deixa-se, assim, de se perseguir a enumeração de novos interesses protegidos
pelo ordenamento jurídico de forma geral e abstrata – tarefa exclusiva do Poder
Legislativo – e se passa simplesmente a definir, em cada caso concreto, o
âmbito de prevalência dos diversos interesses contrapostos. Com isto, revela-se
400
MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a
responsabilidade civil. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira et SARMENTO, Daniel (coordenadores). A
constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. pp. 233/258, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, pp. 238/239.
401
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 79/81.
179
uma faceta do dano até então desprezada pela doutrina: a de funcionar como
uma espécie de cláusula geral, que permite ao Poder Judiciário, em cada caso
concreto, verificar se o interesse alegadamente violado consiste, à luz do
ordenamento jurídico vigente, em um interesse digno de proteção, não apenas
em abstrato, mas, também e sobretudo, face ao interesse que se lhe
contrapõe”402.
Erige-se, portanto, uma cláusula geral do dano, autorizando o Poder Judiciário a
utilizar-se de ferramentas oferecidas pela Responsabilidade Civil, para que, da análise do
caso concreto, possa implementar a solução mais satisfatória.
Com efeito, essa cláusula geral de dano já foi reconhecida e vem sendo utilizada
com certa frequência. O próprio dano moral, que não tinha existência clara na legislação
anterior à Constituição Federal de 1988, era aplicado pelos tribunais, a partir de uma
interpretação sistemática de dispositivos legais.
Mais recentemente, o reconhecimento, ainda tímido – e ainda bastante equivocado
pela doutrina e jurisprudência pátrios –, do dano oriundo da teoria da perda de uma chance,
surgida desde o século passado na França, é exemplo da desnecessidade de criação de
402
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil..., p. 134. Importante mencionar
que, para o mesmo autor, nem o recurso à cláusula geral de tutela da dignidade humana nem as suas
especificações conceituais comuns têm se mostrado aptas a servir direta e definitivamente de critério para a
seleção dos interesses merecedores de tutela. A alusão descomprometida à dignidade humana periga resultar
na banalização justamente daquilo que mais se pretende proteger. Tampouco a alusão à gravidade da ofensa –
que tem ganhado força na doutrina e jurisprudência – pode orientar a verificação de um dano ressarcível. Em
primeiro lugar, muitas vezes a gravidade da ofensa é confundida com a gravidade da conduta do ofensor,
certo que condutas graves podem não dar margem a um dano extrapatrimonial, ao passo que uma conduta
não reprovável pode produzi-lo. Além disso, não parece legítimo distinguir as lesões que se apresentam como
graves daquelas que assim não se mostram, ressarcindo apenas as primeiras. Isso porque um semelhante
critério não é aplicado aos danos patrimoniais, onde mesmo a lesão mais leve ao patrimônio afigura-se
ressarcível. Isso acaba representando uma verdadeira inversão axiológica, privilegiando o patrimônio frente à
pessoa, pelo emprego de um critério puramente quantitativo, sem nenhum respaldo normativo. Por fim, a dor
associada ao dano moral também deriva de uma confusão conceitual, associada à tradição do pretium doloris
ou pecúnia doloris, ainda utilizada pela doutrina e pela jurisprudência, para a caracterização desse tipo de
lesão. O dano moral, assim, se resumiria na dor suficientemente grave. No entanto, o problema inicial se
encontra na própria dificuldade de aferição do dano não patrimonial diante da configuração absolutamente
subjetiva da dor e do sofrimento. Ademais, o masoquista e o insensível também fazem jus à reparação do
dano moral. A toda evidência, a dor não representa elemento ontológico do dano moral, mas puro “reflexo
consequencialístico”, que pode ou não se manifestar. Afastam-se, assim, critérios equivocados utilizados para
definir o bem tutelado pela verificação de um dano extrapatrimonial, com a definição de uma cláusula geral
de dano. (pp. 120/125).
180
novas leis e distorção de conceitos e institutos já bastante consolidados no ordenamento
jurídico, para a adequação dos novos problemas sociais.
Mesmo o dano estético, ainda mais antigo no sistema jurídico brasileiro, que
representa uma categoria específica de dano extrapatrimonial403, foi resultado do esforço
doutrinário e jurisprudencial, apresentando, hodiernamente, atuação determinante no
cômputo das indenizações.
É certo que essa expansão da ressarcibilidade corresponde a uma legítima
ampliação de tutela dos interesses individuais e coletivos. No entanto, essa expansão acaba
encontrando do outro lado crítica da comunidade jurídica, unicamente em razão de um
número contido de casos esdrúxulos. Essa resistência e todas as medidas que têm sido
propostas contra a expansão do dano em geral, que vão desde a restrição a interesses
previamente tipificados até a limitação das indenizações a tetos máximos inteiramente
despropositados e mesmo inconstitucionais, mostram-se totalmente incorretas, já que a
causa das angústias que afligem a doutrina e banalizam a atuação dos tribunais reflete-se
somente na invocação sem fundamento das hipóteses de ampliação do dano ressarcível404.
Mais válido, no atual contexto, e certamente mais lógico e eficiente que pretender a
exclusão da ressarcibilidade de diversas novas modalidades de prejuízos, é difundir a
compreensão do dano como meio de seleção dos interesses merecedores de tutela. Não há
dúvida de que, em um cenário de gradual objetivação da responsabilidade civil e de
flexibilização da prova do nexo causal, a aferição do dano se eleva a único filtro capaz de,
legitimamente, funcionar como instrumento de seleção das demandas de responsabilização.
A melhor via parece ser, portanto, a de reconhecer o dano ressarcível como cláusula geral,
operando uma efetiva ponderação de interesses em conflito para fins de configuração de
elemento imprescindível à deflagração do dever de reparar. 405.
403
Como explica Teresa Ancona Lopez, o dano estético é uma das espécies de dano extrapatrimonial,
caracterizado por “qualquer modificação duradoura ou permanente na aparência externa de uma pessoa,
modificação esta que lhe acarreta um ‘efeamento’ e lhe causa humilhações e desgostos, dando origem,
portanto, a uma dor moral”. In LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, pp. 21/46.
404
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 186.
405
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 186/187.
181
Como já alertava São Tomás de Aquino, a Lei Positiva é a lei feita pelo homem
para possibilitar a vida em sociedade. Entrementes, essa Lei Positiva subordina-se à Lei
Natural, não podendo contrariá-la, sob pena de se tornar uma lei injusta, não existindo
obrigação de obedecer à lei injusta406.
Havendo lacuna na Lei ou sendo ela injusta, não há, portanto, dever de
subordinação, preferindo-se a imposição do Direito Natural, que se rege, conforme entende
o mesmo autor, pela ética, traduzida pelo agir de acordo com a natureza racional. O
homem, dotado de livre-arbítrio, orientado pela consciência e com capacidade inata de
captar, intuitivamente, os ditames da ordem moral, escolhe fazer o bem e evitar o mal. Não
ocorrendo essa situação, impõe-se a necessidade de formalização da Justiça, consistente na
disposição de dar a cada um o que é seu.
Dessa sorte, verifica-se ser inata ao Direito Natural essa ordem moral de se evitar o
mal, pela preferência do bem. Existindo, ainda, previsão autorizadora, na Constituição
Federal407, de proteção à lesão a bens extrapatrimoniais, mas, especialmente, de tutela da
pessoa e de sua dignidade, com a efetiva preservação do patrimônio moral coletivo, assim
como por outras leis específicas, que garantem a proteção aos bens morais de determinado
grupo qualificado da sociedade (v.g. consumidores408)409, e, apelando-se a esse mesmo
Direito Natural, como imperativo de consecução da Justiça, não há como não se
reconhecer a existência de um Dano Social410.
O que se busca proteger, em realidade, é a própria vida, que, atualmente, assume
uma importância bem diferente, como revela Norberto Bobbio, estendendo-se cada vez
406
AQUINO, Tomás de. Suma de Teologia. Vol. III, Parte II-II, versão digital da Biblioteca de Autores
Cristianos, in http://www.bac-editorial.com, consultado em 27/5/2013, pp. 457/528.
407
Artigos 1º, II e 5º, V e X.
408
Código de Defesa do Consumidor, art. 6º, VI e VII.
409
Além do Código de Defesa do Consumidor, a Lei nº 7.347/85 reconhece, em seu artigo 1º, a existência de
danos extrapatrimoniais a qualquer interesse difuso ou coletivo, em especial àqueles relacionados ao meio
ambiente ou às relações de consumo.
410
André Gustavo Corrêa de Andrade explica que a indenização punitiva, aqui inserida no âmbito do Dano
Social, encontra respaldo no princípio de proteção da dignidade humana, surgindo como reação legítima e
eficaz contra a lesão e a ameaça de lesão a princípios constitucionais da mais alta linhagem. In ANDRADE,
André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do
common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 238.
182
mais para abarcar um conceito de qualidade de vida, resultado dos mais recentes
documentos internacionais e da Igreja411.
Assim que, seja pela legislação que já comporta proteção a interesses
transindividuais, seja por um Direito natural, a cláusula geral de proteção da dignidade
humana caminha ao lado da cláusula geral de dano para o reconhecimento desses novos
interesses merecedores de tutela.
A problemática que circunscreve essa questão surge na configuração desse Dano
Social, que se refere à análise da lesão a um bem difuso – difuso porque é de toda a
sociedade –, mediante as categorias elaboradas para a verificação dos danos a bens
individuais, o que revela a dificuldade enfrentada pelos estudiosos para o seu
reconhecimento.
Conforme mencionado, não se deve valer das categorias elaboradas para a
verificação dos danos a bens individuais. Dessa sorte, não se pode pensar que é o indivíduo
que sofre, porque muitas vezes o legitimado será uma pessoa jurídica, que não apresenta
sentimentos. Assim, se o dano extrapatrimonial é identificado com o abalo ao estado de
espírito, a solução é reconhecer-se ao indivíduo uma esfera social, integrada por bens de
incidência coletiva.
Dessa forma, em geral, trata-se sempre da preservação do bem coletivo, não apenas
como um elemento de afetação da esfera social de um indivíduo, mas como uma parte
fundamental do funcionamento social. Por isso que, quando afetado, o dano moral fica
constituído pela lesão ao próprio bem, independentemente das repercussões patrimoniais
que possa apresentar, de tal modo que o prejuízo imaterial surge pela lesão ao interesse
sobre o bem, de natureza extrapatrimonial e coletiva412.
411
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª tiragem, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 228.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D,
1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales VI, 01/01/2007, 925, pp. 15/16.
412
183
Essa nova categoria de dano extrapatrimonial, derivado dessa cláusula geral de
413
dano
, pautado na proteção da dignidade humana, a que se pretende chamar de Dano
Social, representa justamente aquela lesão que atinge o patrimônio coletivo de uma
determinada sociedade – sendo este o âmbito de prevalência do interesse contraposto –
reverberando em seus valores morais –, o que será avaliado em cada caso concreto.
Como ressalta André Gustavo Corrêa de Andrade, o dano ao patrimônio coletivo,
seja ele voltado ao ambiente, cultura etc., acarreta mais do que um prejuízo material, eis
que atinge toda a coletividade que, apesar de ente despersonalizado, possui valores morais
e um patrimônio ideal que merece proteção414. Cabe observar a lesão a direito
personalíssimo de cada indivíduo daquela coletividade, ou seja, do ferimento causado às
expectativas sociais por eles depositadas naquela conduta, que se mostrou danosa, criandose, dessa forma, a ficção de um direito de personalidade coletivo, de uma dignidade
coletiva representada por cada integrante que a compõe.
Obviamente, o direito geral de personalidade deve ser vislumbrado segundo uma
visão ampla, dentro da noção de que os direitos fundamentais constituem uma ordem de
valores constitucionais fundada na liberdade e na dignidade do ser humano e na
democracia pluralista, seguindo o redimensionamento dado à noção de pessoa, que passa a
ser vislumbrada em sua totalidade415.
Todos os valores apontados como relativos à personalidade (existências mentais,
existências corpóreas e existências cívicas) formam o estatuto pessoal, perfazem o
invólucro do eu, e demandam a devida proteção416.
413
Nesse mesmo sentido, Judith Martins-Costa e Mariana Pargendler destacam que a possibilidade de
satisfazer, indenizar ou compensar os danos extrapatrimoniais é amplíssima, “pois o tema é regulado por
meio de uma curiosa combinação de cláusulas gerais, já verificada sob a vigência do Código de 1916 mas,
por igual, pela conexão intersistemática entre a Constituição Federal que contempla, expressamente, a
irrestrita indenizabilidade do dano moral. Vigora, pois, também nessa matéria, o princípio da atipicidade do
ilícito”. In MARTINS-COSTA, Judith et PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva
(punitive damages e o Direito brasileiro). In Revista CEJ, Brasília, v. 9, nº 28, jan-mar 2005, p.22.
414
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A Evolução do Conceito de Dano Moral. In
http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_civil/a_evolucao_do_conceito_de_dano
_moral.pdf, consultado em 13/2/2012, p. 25.
415
SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 122/126.
416
REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, pp. 75/77.
184
Limongi França define esses direitos relativos à personalidade como “(...)
faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito,
bem assim as suas emanações e prolongamentos”417. E, como apresenta Maria Celina
Bodin de Moraes, não é possível estabelecer uma identificação fechada e taxativa dos
direitos da personalidade, sendo eles reconhecidos “a partir do princípio constitucional da
dignidade, de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana”418. A personalidade é,
dessa forma, um valor, e não um direito; valor fundamental do ordenamento, que se
encontra na base de uma série indefinida de situações existenciais. Ou seja, tutelado é o
valor da pessoa, sem limites, motivo pelo qual não pode existir um número fechado de
hipóteses tuteladas.
Nessa mesma esteira, Teresa Ancona Lopez obtempera que a regra fundamental
que garante respeito aos direitos da personalidade é a do artigo 1º, III da Constituição
Federal, que protege a dignidade humana, e que o Código Civil, ao regulamentar e
sistematizar os direitos personalíssimos, não o fez de maneira completa e exaustiva,
deixando “ao julgador a tarefa de enquadrar dentro dessas regras básicas todas as
hipóteses que se definirem como direitos da personalidade”, por meio de uma cláusula
geral que impede a limitação de seu exercício419. Ao esmiuçar o artigo 5º, X da
Constituição Federal, Caio Mário da Silva Pereira aponta que a enumeração traçada pela
norma constitucional é meramente exemplificativa, não se tendo querido fazer dela
numerus clausus, cabendo à jurisprudência e à lei ordinária aditar outros casos de violação
sujeitos à reparação420.
Em complemento a esse raciocínio, André Gustavo Corrêa de Andrade informa que
a cada dia um novo aspecto da personalidade humana é “destacado e elevado à condição
de interesse juridicamente protegido”. Por esse motivo que estaria fadada ao fracasso
qualquer tentativa de enumeração exaustiva desses direitos421.
417
FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos privados de personalidade: subsídios para a sua especificação e
sistematização. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 55, n. 370, agosto, 1966, p. 8.
418
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp.118/119.
419
LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 58/59.
420
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil de acordo com a Constituição de 1988. 3ª edição,
Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 58.
421
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A Evolução do Conceito de Dano Moral. In
http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_civil/a_evolucao_do_conceito_de_dano
_moral.pdf, consultado em 13/2/2012, p. 9.
185
Mencionava Pontes de Miranda que “Com a teoria dos direitos da personalidade,
começou, para o mundo, nova manhã do direito”422. E essa nova manhã do direito parece
ainda irradiar a sua luminosidade para novas situações que demandam proteção da
dignidade humana, mostrando-se forçoso reconhecer uma ou diversas novas hipóteses de
valores caros à pessoa, em relação a essa sua expectativa social, que é comum a todos os
membros integrantes dessa coletividade.
Importante observar que na IV Jornada de Direito Civil, organizada e promovida
pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, foi aprovado o
Enunciado nº 274, que reconheceu “Os direitos da personalidade, regulados de maneira
não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa
humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa
humana...”. Ou seja, trilhou-se um caminho para o reconhecimento de uma cláusula geral
de direitos relativos à personalidade, que é preenchida conforme seja necessário tutelar os
interesses humanos.
In casu, está-se falando em tutelar os interesses coletivos, na pessoa de cada
indivíduo que a compõe, considerando-se todos como parte dessa sociedade,
reconhecendo-se, assim, novas possibilidades de lesões a esses interesses, que devem
encontrar novas formas de proteção. Como acentua Gustavo Tepedino, a tutela da
personalidade não pode se conter em setores estanques, devendo superar a perspectiva
setorial (direito público e direito privado), na medida em que a pessoa, à luz do sistema
constitucional, requer proteção integrada, que supere essa dicotomia e atenda à cláusula
geral fixada pela Constituição Federal, de promoção da dignidade humana423.
Assim que, interpretados como especificação analítica da cláusula geral de tutela da
personalidade prevista na Carta Maior que o intérprete, afastando-se da ótica tipificadora
seguida pelo Código Civil, e ampliando, assim, a tutela da pessoa não apenas no sentido de
contemplar novas hipóteses de ressarcimento, mas no intuito de promover a tutela da
personalidade mesmo fora do rol de direitos subjetivos previstos pelo direito codificado,
422
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo 7, Rio de
Janeiro: Editor Borsoi, 1971, p. 6.
423
TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. In
Temas de Direito Civil, 3ª edição, pp. 23/58, Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 37/45.
186
poderá vislumbrar instrumentos de promoção do homem, considerado em qualquer
situação jurídica de que participe. Parece, então, “lícito considerar a personalidade não
como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercido a sua
titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada,
capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de validade”424.
Sob essas bases, mediante o reconhecimento de uma cláusula geral de
personalidade, voltada à coletividade, para a afirmação da dignidade humana, como
também de uma cláusula geral de dano, que se assentará o dano social.
Em recentíssimas decisões, ressentido o Tribunal de Justiça de São Paulo das
categorias ordinárias de dano (material e moral), reconheceu a existência e necessidade de
afirmação de um dano social.
Tratava-se de ação promovida por segurado contra operadora de seguros de
assistência à saúde, em que se discutia a negativa de cobertura a procedimento médicohospitalar, em atendimento de urgência, por motivo de suposta ausência de cumprimento
das carências contratuais. Entendeu o referido Tribunal que a operadora de seguros havia
descumprido as determinações trazidas pela Lei que regulamenta o setor, além de ter agido
contrariamente ao entendimento fixado na jurisprudência e consolidado em súmula exarada
pelo próprio TJSP. No entanto, apontou-se, na decisão, que o método tradicional para a
condenação da operadora seria “falível”, motivo pelo qual se justificava uma indenização
punitiva. Deixou bastante claro o relator da decisão que a seguradora auferia lucro “com o
não uso do capital que vem da contribuição dos segurados durante o tempo que não
deseja ou, enquanto não é obrigada a custear esse ou aquele tratamento”. Assim, em face
de um dano reiterado, que atinge milhares de pessoas, seguradas ou não, e como forma de
prestigiar o interesse coletivo, além da celeridade processual, levando-se em conta as ações
similares ou idênticas promovidas por outros segurados, e tendo em conta também a
função social da responsabilidade civil, mediante a imposição de uma medida pedagógica,
verificou o TJSP a necessidade de imposição de indenização pelo verificado dano social,
no valor de R$ 1.000.000,00. Alertou-se, ainda, ao final, sobre a
424
TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. In
Temas de Direito Civil, 3ª edição, pp. 23/58, Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 40/53.
187
“...tentativa de fazer com que a responsabilidade civil cumpra a função que a
sociedade exige, qual seja, a de encontrar fórmulas subsidiárias para acabar
com os efeitos da crise provocada pelos chamados efeitos repetitivos da
ilicitude. Quando o Estado não observa as transformações sociais e os demais
ramos do direito não enxergam solução, cabe ao intérprete inventar a diretriz
que constitua o antidoto contra a recidiva e que, também, puna o agente
contraventor com a retirada de lucro desmedido que se obteve à custa das
transgressões dos contratos massificados e que
vitimizam consumidores
impotentes.
Então, se não há como remediar a desafiadora atitude da seguradora, que, a
despeito de minguadas indenizações individuais, continua a praticar os mesmos
e reconhecidos ilícitos, agravando a noção de insegurança e propagando danos
que nem sempre são reclamados em Juízo, cabe impor método diverso de
reparação para tentar por cobro ao desmando. A indenização punitiva é uma
ideia que nasceu e cresceu pela obrigatoriedade de fazer com que a
responsabilidade civil chegue ao objetivo da pacificação e, no caso da
seguradora, está provado que o método tradicional é falível e foi vulnerado
pelas práticas seguintes e iguais.
Ainda que assim não fosse, a reparação punitiva é independente da ação do
segurado, porque é emitida devido a uma somatória de atos que indicam ser a
hora de agir para estabelecer respeitabilidade e equilíbrio nas relações”425.
Numa segunda ação, dessa vez julgada pela Vara do Juizado Especial Cível e
Criminal da Comarca de Jales/SP, em que se discutia a qualidade do serviço de telefonia
móvel prestado pela operadora TIM, apontou-se para a necessidade de o direito
acompanhar as mudanças sociais, por meio da normatização da realidade, reconhecendo-se
uma tendência coletiva, ainda que na análise de processos individuais, com a aplicação de
indenização pela prática de dano social, em razão da gravidade e reiteração da conduta
danosa.
425
www.tjsp.jus.br, TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n° 0027158-41.2010.8.26.0564,
Julgado em 18/7/2013, Relator Desembargador Teixeira Leite, consultado em 2/9/2013.
188
Da análise do processo, constatou-se uma prática reiterada da operadora de
telefonia móvel em interromper as ligações telefônicas de seus consumidores, para que
fossem forçados a repeti-las, gastando novos créditos. Ficou constatado, assim, que,
somente com a condenação por danos morais e materiais, não interromperia a operadora
essa prática ilegal, porquanto já ter sido condenada a vultosos valores pela agência
reguladora desse serviço (ANATEL), assim como pelo Procon de outros Estados, além de
inúmeros outros processos judiciais com o mesmo objeto, o que não surtiu resultado.
Reconheceu-se que, reiterado o dano, além de enriquecer indevidamente o ofensor,
empraia-se por todo o corpo social, tornando-se difuso, não mais individual. Para, então,
afastar essa “paixão do lucro”, que move os grandes conglomerados, levando a
coletividade à ruína, mostrou-se necessária a aplicação da teoria do dano social, elevandose a dignidade humana, para perfazer funções preventiva (impede-se a reiteração do dano),
punitiva (penaliza-se o ofensor pela gravidade da conduta praticada), distributiva
(distribui-se a renda da empresa para a população), além de compensatória ou reparatória
da coletividade. A partir desse entendimento, a operadora foi condenada a compensar os
danos morais sofridos pela vítima, na razão de R$ 6.000,00, e a pagar indenização por
danos sociais, fixada em R$ 5 milhões, que seria repartida entre a Santa Casa de Jales e o
Hospital do Câncer de Jales – instituições desprovidas de fundos, que dependiam, segundo
o julgador, de ajuda constante de terceiros426.
Portanto, a constatação dessa lesão acaba importando na verificação da diminuição
do patrimônio moral social ou no rebaixamento da qualidade de vida da sociedade,
mediante a indagação de se aquele dano fez com que a dignidade de cada indivíduo
daquela comunidade tenha sido atingida, tornando pior o convívio comunitário.
Com efeito, a Constituição Federal estabelece a configuração do Estado
Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa, na igualdade substancial e na
solidariedade social, e determina, como meta prioritária, a correção das desigualdades
426
www.tjsp.jus.br, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Jales, Processo n° 1507/2013,
Julgado em 10/10/2013, Relator Fernando Antônio de Lima, consultado em 30/10/2013.
189
sociais e regionais, com o propósito de reduzir os desequilíbrios, buscando, justamente,
melhorar a qualidade de vida de todos os cidadãos427.
Destarte, basta a análise das normas constitucionais, sob o aspecto da proteção da
pessoa e da coletividade, para a constatação da ocorrência de um dano social. Tudo aquilo
que ferir o interesse coletivo, rebaixando a sua qualidade de vida ou descumprindo o dever
de segurança e lealdade, poderá, potencialmente, causar um dano social, passível de
reparação428.
E a resposta a essas investidas atentatórias ao patrimônio social deve ser a aplicação
de uma medida que previna e puna429, capaz de educar o ofensor ou potenciais ofensores,
pelo desassossego geral trazido por sua conduta imprópria, revertida em forma de
compensação à sociedade – revelando também a sua função distributiva –, que será capaz
de prevenir futuros eventuais atentados semelhantes.
Não cabe mais deixar somente ao Direito Penal – em razão de sua evidente
falência, como antes visto – essa ideia de punição. Renata Chade Cattini Maluf aduz que o
Direito Civil, por meio da Responsabilidade Civil, busca, incessantemente, a retribuição e
educação, tal qual ocorre no Direito Penal, numa ideia de prevenção futura do ato danoso.
Deve, portanto, haver uma interpenetração entre o Direito Penal e o Direito Civil, devendo
esses ramos do direito sustentar-se mutuamente, de modo que o primeiro favoreça a
reparação, e o segundo ajude na repressão430431.
427
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.110.
428
Lembra Elisabete Aloia Amaro que foi abandonado o caráter privado e patrimonialista de outrora, dandose lugar à busca da dignidade da pessoa, como membro inerente da família e da sociedade. In AMARO,
Elisabete Aloia. Responsabilidade civil por ofensa aos direitos da personalidade. p. 158. In NERY, Rosa
Maria de Andrade et DONNINI, Rogério (coord.). Responsabilidade Civil: estudos em homenagem ao
professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 157/171.
429
Caroline Vaz refere que, para a verificação da possibilidade de uma sanção punitiva, basta notar que os
artigos 186 e 187 do Código Civil prescrevem, ainda que de forma genérica, os balizamentos para a aferição
da ilicitude dos atos civis, não havendo conflito entre o mundo civilista privado e o mundo criminalista
público, “sendo perfeitamente cabível a imposição de prestação pecuniária aflitiva ao causador dos danos
desta natureza, tal como indica o caráter punitivo que lhe é impresso já implicitamente o sistema como um
todo e os artigos referidos”. In VAZ, Carolina. Funções da Responsabilidade Civil – Da Reparação à
Punição e Dissuasão – Os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009, p.131.
430
MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de
mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pp.153/154.
431
Complementa esse raciocínio André Gustavo Corrêa de Andrade, ao determinar que “a lei tipicamente
penal não tem como prever, em tipos delituosos fechados, todos os fatos que podem gerar danos injustos,
190
De fato, a mera compensação dos danos significa tratar o ser humano como “objeto
do mercado”, passível de ressarcimento, como se fosse possível, no plano do direito,
retomar a pessoa da forma como era. Ao contrário, sancionar punitivamente o autor do
ilícito transforma a pessoa em “sujeito do mercado”, digno de cuidado e respeito em uma
ordem de pluralidade de interesses432.
Pesem as críticas da doutrina a respeito de uma sanção punitiva, que, por prever
uma pena, deveria estar prevista e categorizada em Lei, mostrou-se que a própria lei civil
traz diversas hipóteses de penalização. Ao mesmo tempo, a mesma lei deixa clara a
intolerância ao cometimento de ilícitos, condutas abusivas, desrespeito à boa-fé objetiva
etc. Assim, mostra-se necessária a utilização de um instrumento que faça valer essa
vontade da lei, para que se efetive a tutela desses interesses protegidos.
Além do mais, a ideia de sanção do juízo penal reflete, no mais das vezes, uma
privação da liberdade do infrator, com a ideia de ressocialização do criminoso na
sociedade. Por ser medida de tamanha rigorosidade, que priva o homem de um de seus
direitos mais preciosos, além de abatê-lo com um estigma talvez insuperável, aos olhos de
sua comunidade, revela-se necessária a sua tipificação, com melhores mecanismos de
proteção processual.
Logicamente, uma medida mais grave demanda um sistema hermético de
tipificação de hipóteses de incidência da norma, assim como do tamanho da pena, cabendo
ao julgador pouca margem de discricionariedade. O contrário não significa com a
imposição de uma pena civil; muito mais branda, cujo único objetivo é assegurar interesses
jurídicos, com vista a uma prevenção433.
razão pela qual muitas ofensas à dignidade humana e a direitos da personalidade constituem indiferentes
penais e, por conseguinte, escapam do alcance da justiça criminal. Além disso, por razões diversas, nem
sempre a sanção propriamente penal, oriunda de uma sentença penal condenatória, se mostra suficiente
como forma de prevenção de ilícitos”. In ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva.
Texto
disponibilizado
no
Banco
do
Conhecimento
em
18/8/2008,
http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478f-a346-ec511dd4188a,
consultado em 10/9/2012.
432
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 84.
433
Sobre esse tema, André Gustavo Corrêa de Andrade, dentre os diversos argumentos apresentados para
refutar a aplicabilidade do princípio da legalidade às penas pecuniárias civis, aduz que a sanção pecuniária
não se diferencia da sanção reparatória ou indenizatória no que se refere à sua qualidade ou à forma pela qual
se materializa; diferenciam-se apenas pelos fundamentos e finalidade. Ambas, assim, são representadas por
191
Assim que, porque o réu, em um processo criminal, tem muito mais a perder do que
o réu em um processo civil, não se mostra necessária a concessão, a este último, das
mesmas garantias processuais disponibilizadas ao primeiro. O erro, aqui, está em afirmar
que toda e qualquer punição, apenas por ter um caráter retributivo, possui uma natureza
criminal. Tanto é assim que, para aplicar uma punição administrativa, ou mesmo impor
uma verba múltipla no âmbito civil, não se mostra necessário o cumprimento dos mesmos
requisitos incidentes no processo criminal434.
Ainda, como admite Vitor Fernandes Gonçalves, o próprio ato de deferir danos
compensatórios já implica em uma punição ao réu – ou seja, o simples pagamento de
indenização compensatória já constitui uma sanção –, afastando, também, a ideia de uma
dupla condenação pelo mesmo ilícito. O que deve existir é uma harmonização entre esfera
penal e civil, para que não haja uma punição excessiva. Por isso que a objeção quanto a
uma dupla prossecução tem de ser baseada na alegação de injustiça, e não em
inconstitucionalidade435.
Certamente, a não admissão de uma nova ferramenta, trazida pelo reconhecimento
de um novo tipo de dano, afasta a possibilidade de o direito privado salvaguardar interesses
que ultrapassem a esfera subjetiva dos particulares, para realizar a importante função de
mediação de conflitos que não se resumem ao reequilíbrio da posição jurídica de um dano
causado por um sujeito ao outro.
Tal referência, é bem de ver, remete a essa terceira e controvertida função que
ocasionalmente se reconhece à responsabilidade civil, de sancionar, de punir condutas
dinheiro, bem fungível por excelência, certo de que a imposição de uma sanção pecuniária, tanto quanto a
condenação ao pagamento de uma indenização, é uma consequência ou resposta natural a um dano. Além
disso, afirma que as sanções impostas na esfera penal são, em regra, mais graves que as impostas na esfera
civil ou, pelo menos, mais desonrosas, o que lhes acentua o caráter repressivo e preventivo. As diferenças,
portanto, entre as esfera penal e civil são, por conseguinte, de grau, não de substância, explicando esse fato a
existência de regras distintas de competência e procedimento entre as duas jurisdições. Por isso que, em
virtude de sua natureza peculiar, a sanção pecuniária não se submete a todas as restrições feitas às demais
sanções penais, em especial às penas corporais. ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral &
Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito
brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 287/292.
434
GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e
da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, pp. 178/179.
435
GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e
da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, pp. 170/171.
192
lesivas, espaço que, na prática, não raro se preenche no arbitramento do dano moral, e,
repita-se, não sem candente crítica.
Na mesma linha de raciocínio, Sérgio Severo afirma que, atualmente, vem se
constatando na doutrina uma aproximação dos planos cível e penal, de forma que, por um
lado, admite-se a reparação cível pelo juízo penal e, de outro, se aceita a função punitiva da
reparação436.
Quando se torna clara a intenção da indenização (punir ou compensar), o fim
colimado pela sanção mostra-se muito mais eficaz. Tanto a vítima saberá que, além de
devidamente indenizada, conseguiu também disciplinar o ofensor em prol da coletividade,
quanto terá conhecimento o lesante do tamanho da desproporção de seu ato em relação às
normas de conduta que deveriam ser seguidas, assimilando que não deverá mais assim
agir, além de servir de exemplo a semelhantes infratores.
Constata-se, então, que o objetivo único da sanção punitiva deve se voltar à
prevenção. Aduz Paula Meira Lourenço que apenas com a possibilidade de punição do
agente, por meio da condenação do lesante na entrega do lucro ao lesado (ou a repartição
entre o lesado e o Estado, em partes iguais), é possível prevenir e punir as condutas
baseadas na mera racionalidade econômica, reforçando, assim, a tutela da pessoa
humana437.
O escopo principal da pena é o de orientar a conduta dos membros da coletividade,
fazendo com que estes se abstenham de cometer certos atos, consentindo com uma vida
social que esteja de acordo com certos modelos de comportamento considerados
desejáveis.
André Gustavo Corrêa de Andrade ensina que a distinção entre a indenização
punitiva e a indenização compensatória é justamente a circunstância de que, na primeira, a
fixação do montante leva em consideração a gravidade do comportamento do ofensor,
436
SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 186/187.
LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra
realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema
Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do
painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória.
437
193
enquanto, na segunda, o quantum é estabelecido com base na gravidade do dano sofrido
pelo lesado. Assim, ao mudar-se o foco da vítima para o lesante, “a indenização punitiva
atende a um imperativo ético, porque possibilita a realização de um juízo valorativo
diferenciado para comportamentos merecedores de diferente censura”. Permite-se, via de
separar o comportamento mais reprovável de um menos reprovável, introduzir um critério
de justiça no âmbito da responsabilidade civil438. Faz-se apenas um complemento a esse
entendimento, no sentido de que a gravidade do comportamento do agressor é verificada
em consonância com a gravidade do dano, assim como do bem que foi atingido. Dessa
maneira, maior será a gravidade quanto maior for a lesão e mais importante for o interesse
jurídico lesado, impondo-se um valor indenizatório mais elevado.
É precisamente atendendo à relevância dos bens jurídicos abrangidos pelo princípio
da tutela geral da pessoa humana que se defende a aplicação de uma medida mais severa,
admitindo-se a condenação do lesante num montante punitivo – pela análise do desvio de
sua conduta –, que visa sancioná-lo439.
Como salientava Carlos Alberto Bittar, “em momento em que crises de valores e de
perspectivas assolam a humanidade, fazendo recrudescer as diferentes formas de
violência, esse posicionamento [aplicação de uma sanção punitiva] constitui sólida
barreira jurídica a atitudes ou condutas incondizentes com os padrões médios da
sociedade. Segundo o autor, a imposição de um valor de desestímulo é fórmula que atende
às graves consequências que de atentados à moralidade individual ou social podem advir,
devendo imperar o respeito humano e a consideração social como elementos necessários
para a vida em comunidade440.
Certamente, o papel desempenhado pelas sanções punitivas civis nos sistemas que
presentemente a acolhem é totalmente diverso daquele de outrora, em que a sanção posta à
disposição dos privados era de livre disposição do lesado. Atualmente, a adoção da pena no
438
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na
experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009, p. 239.
439
LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra
realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema
Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do
painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória.
440
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993,
pp. 220/221.
194
direito privado é uma exigência de integração ao sistema de uma tutela efetiva para aqueles
casos em que o ressarcimento mostra-se pouco idôneo para prevenir determinadas formas
de ilícitos civis.
Em vez de constituir um retorno ao passado, esse instituto representa um índice de
evolução dos sistemas jurídicos, já que a pena civil abandonou qualquer conotação de
exclusividade, resta desprovida de qualquer caráter aniquilador, “podendo simplesmente
atuar como um instrumento subsidiário, se não residual ao sistema de ressarcimento”. O
que se busca é desencorajar o ofensor e demais potenciais infratores. Há, dessa forma, uma
dissuasão mediante a ameaça de um mal como reação a um ilícito. Entretanto, falhando a
ameaça intimidativa pela prática do ilícito, surge a pena, como retribuição moral em face
do agente. A pena civil define-se, então, como a capacidade do direito privado se servir da
justiça retributiva (punição ao autor da conduta reprovável) para afirmar a justiça
distributiva (pela tutela de interesses coletivos)441.
Bem se sabe que, atualmente, a Responsabilidade Civil volta-se, cada vez mais, à
precaução e prevenção do dano, numa forma de antecipar a ocorrência do fato lesivo, para
abranger um conhecimento que também é provável, mas não totalmente certo ainda442.
Ocorre que, na constatação do dano, a indenização punitiva aplicada presta-se
também a cumprir uma função preventiva, agindo como forma de dissuasão da reiteração
pelo próprio ofensor, ou como modelo à sociedade, pela demonstração de que danos de tal
natureza não serão tolerados, respeitando-se sempre o limite de valor que “não pode
exceder, em valor, o que seja suficiente para assegurar sua função preventiva”, como já
definiu o artigo 1.621 do Código Civil de Québec.
Por certo, a responsabilidade civil não tem natureza unicamente ressarcitória,
cumprindo também uma função preventiva e uma função punitiva. “Estas últimas, se
manifiestan en las indemnizaciones punitivas que buscan el castigo de una conducta
441
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 16, 26 e 47.
442
Sobre o tema, verificar a doutrina de LOPEZ, Teresa Ancona, Princípio da precaução e evolução da
responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
195
reprochable y la disuasión de conductas similares, tanto para el condenado como para la
colectividad”.443
A responsabilidade civil assume, dessa maneira, papel “de erigir mecanismos de
garantia da indenidade da pessoa humana, preservando-lhe a existência digna, afinal
valor básico do ordenamento, no Brasil elevado a princípio fundamental da República
(art. 1º, III)”, mediante a implementação de um sistema cada vez mais voltado não apenas
à recomposição do dano, mas, antes, à prevenção de sua ocorrência, que encerra uma
função indiscutível, “quer pelo efeito dissuasório de condutas antissociais, dessarte num
papel que se pode dizer profilático, quer, na atualidade dos danos anônimos e acidentais,
pela exigência que induz de qualidade e cuidado no desempenho de atividades que
imponham riscos aos direitos de outrem”444.
Percebe-se, desse modo, que punição
e
prevenção acabam
ligando-se
umbilicalmente, mostrando, muitas vezes, que a indenização representará a repreensão a
uma conduta ao mesmo tempo em que servirá de prevenção à reiteração do ato danoso. Na
realidade, tanto quanto possível, deve preferir-se essa linha de raciocínio que procure mais
assegurar a efetivação de uma prevenção do que de uma mera punição, representativa de
um espírito de vingança ou de moralização da sociedade. Esse objetivo de deterrence,
como antes visto, é até mesmo a principal finalidade dos punitive damages nos EUA,
demonstrando muito mais uma preocupação social do que a satisfação de interesses
individuais das vítimas dos danos.
Assim que o dano social traz um elemento preventivo muito intenso. Sabedor da
possibilidade de aplicação de uma indenização por dano social previne-se a conduta lesiva
do potencial ofensor, que não a praticará. Caso decida ultrapassar essa linha e causar o
dano, surge, então, a punição de sua conduta, por meio dos mecanismos de reparação.
443
ÁLVAREZ, Agustín. Repensando la Incorporación de los Daños Punitivos. Academia Nacional de
Derecho y Ciencias Sociales de Córdoba. In http://www.acaderc.org.ar/doctrina/articulos/repensando-laincorporacion-de-los-danos-punitivos, consultado em 2/10/2013. Em tradução livre: Estas últimas se
manifestam nas indenizações punitivas que buscam o castigo para uma conduta reprovável e a dissuasão de
condutas similares, tanto para o condenado quanto para a coletividade.
444
GODOY Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, pp. 6/7.
196
De fato, a dissuasão é, hoje, uma das funções que tem obtido maior penetração na
responsabilidade civil, destinada a coibir a repetição de igual prática danosa, quer pelo
lesante, quer por quaisquer pessoas, em um papel de prevenção especial e geral445.
Então, a aplicação de uma sanção civil punitiva acaba por superar a visão
patrimonialista e individualista dos direitos subjetivos em prol de uma noção
eminentemente solidária da responsabilidade civil, porquanto o desestímulo se aplica a
todos os potenciais causadores do mesmo dano, ofensores da norma jurídica. “Ao
contrário, a sanção civil punitiva é uma demonstração de que, pela potestade dos
privados, o direito civil pode ser chamado a realizar tarefas de proteção a interesses
difusos e coletivos, transcendendo as esferas estritamente individuais”446.
De acordo com o já mencionado, a própria Lei civil traz regras que preveem a
penalização do ofensor, como meio para uma prevenção em prol da sociedade. É o caso,
por exemplo, da aplicação das astreintes, que acresce ao valor da indenização e só se
efetiva depois de descumprida a obrigação, repetindo-se até que o devedor a cumpra.
Assumem as astreintes uma função preventiva, antes do descumprimento da
obrigação, e punitiva, após o seu descumprimento, com atribuição de todo o montante ao
credor da obrigação. Em que pese destinar-se o valor a um particular, ela atende inegável
interesse que ultrapassa essa relação interpartes, ainda mais quando estabelecida na
proteção de interesses difusos ou coletivos. Ou seja, o próprio legislador não é alheio à
figura de sanções punitivas privadas, voltadas mesmo à prevenção e ao apenamento do
ofensor, em prol da coletividade, para evitar a repetição do ato danoso447.
445
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 7.
446
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 29.
447
Defendendo uma dupla natureza da Responsabilidade Civil, reparatório-preventiva, e ao analisar a
legislação brasileira, Sérgio Severo aponta que não apenas o Código Civil traz a ideia de pena, por exemplo,
em seu artigo 1.538, mas também a Lei de Imprensa, o Código Brasileiro de Telecomunicações e o Código
Eleitoral aquilatam a intensidade do dolo ou do grau de culpa do ofensor. Caso não houvesse um caráter
punitivo subsidiário, não seria necessária qualquer aferição a respeito da conduta do agente, motivo pelo qual
o próprio ordenamento aceita e incorpora essa ideia de pena. In SEVERO, Sérgio. Os danos
extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 190/191.
197
Em diversos outros dispositivos do Código Civil é possível encontrar hipóteses de
indenização múltipla, constatando-se, em evidência, a intenção de punição a algum
comportamento doloso e reprovável por parte do ofensor, como no artigo 773, que impõe
ao segurador o pagamento do dobro do prêmio, quando expedir a apólice, sabendo estar
passado o risco que o segurado pretende cobrir, ou nos artigos 939 a 941, que tratam da
cobrança de dívida não vencida, cuja pena é o pagamento do dobro das custas ou da dívida
ou o seu equivalente. Essa ideia de pena, já introjetada no Código Civil, visa, claramente,
uma prevenção da prática de condutas reprováveis448.
Por isso que, na aplicação de um Dano Social, o objetivo maior, como explicam
Rodolfo Martín González Zavala e Matilde Zavala de González, como em qualquer
sistema de reação contra prejuízos injustos, é impedir que eles ocorram. Uma indenização
punitiva conseguiria, portanto, satisfazer essa ideia de prevenção, dotando esse princípio de
eficácia, atuando, então, para sancionar, eliminar os benefícios auferidos por meio da
conduta ilícita e prevenir a sua repetição449.
Ou, na visão de Fernando Noronha, a função sancionatória da responsabilidade
civil, na esteira da responsabilidade criminal, tem por objetivo, com a imposição ao
infrator de uma pena, retribuir o ilícito, com castigo proporcional (finalidade retributiva),
mais dissuadir outras pessoas da prática de atos similares (prevenção geral) e ainda
dissuadir o próprio criminoso da prática de novos crimes (prevenção especial) 450. O
cumprimento dessas funções (punitiva e preventiva), como antes dito, oferece satisfação “à
consciência de justiça e à personalidade do lesado, e a indenização pode desempenhar um
papel múltiplo, de pena, de satisfação e de equivalência”451.
448
Vai além Vitor Fernandes Gonçalves, ao analisar o artigo 945 do Código Civil, expondo que a lei, nesse
caso, autoriza o juiz a utilizar um elemento estranho à mera quantificação do prejuízo para o cálculo da
indenização nos casos de culpa, pela análise da gravidade da conduta, deslocando, assim, o critério da
reparação do efeito da lesão para a causa da lesão, introduzindo, dessa forma, um elemento punitivo, típico
do direito penal, abrindo ao julgador a possibilidade de levar em conta esse elemento nas hipóteses de
responsabilidade civil extracontratual. GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade
Civil: a indenização do dano moral e da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 202.
449
ZAVALA, Rodolfo Martín González, GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Indemnización punitiva.
Responsabilidad por daños em el tercer milenio. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, pp. 74 e 188/193.
450
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à
Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 439.
451
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6ª edição, Volume II, Rio de Janeiro: Forense, 1979,
p.423.
198
Trazendo às claras essa intenção de punir e prevenir, além de resguardar
expressamente direitos transindividuais, em proteção ao patrimônio cultural, ambiental etc.
da sociedade, para prevalência da dignidade humana, e reconhecendo-se uma cláusula
geral de dano, admite-se a existência de um dano social, que prima pela aplicação de uma
sanção civil, cujo efeito indireto é a compensação da sociedade.
Ao tratar das sanções punitivas privadas, Nelson Rosenvald aquilata o que
representa a imposição de uma pena civil no direito privado,
“Destarte, para a formulação do papel da pena civil, contentamo-nos com
o efeito preventivo, geral e especial. Especial no sentido do objetivo
pedagógico de impor uma lição ao autor do ilícito para impedir a
reincidência; geral no sentido de que a população seja moralmente
reforçada pelo conhecimento de valores que devam ser compartilhados
coletivamente e, consequentemente, sinta-se desestimulada a praticar
ilícitos. Em ambos os casos o viés inibitório se fará sentir pela ameaça de
uma pena de natureza patrimonial, seja pela condenação ao pagamento de
um determinado montante ou pela perda de uma posição jurídica de
vantagem econômica. A pena, como previsão de uma reação do sistema
jurídico, já é o bastante para desencorajar a agressão com eficácia
preventiva de direcionamento de comportamentos, por isto, retribuir é,
por definição, prevenir. O termo retribuir, explica D’AGOSTINO, não
significa impor ao réu o mesmo sofrimento que ele causou à vítima tal e
qual o conceito de Talião, ou mesmo repristinar ao status quo, porém,
criar uma nova situação de equilíbrio coexistencial. (...) No direito civil,
particularmente, a utilização de sanções punitivas é determinada pela
necessidade de operar uma maior proteção a alguns atributos da
personalidade”452.
Esse é o exemplo que se tira da aplicação dos punitive damages, em que a pena
civil aplicada pelo magistrado em razão da ilicitude da conduta do ofensor não se
452
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 123 e 125.
199
restringirá a atender interesses particulares da vítima, mas trazer uma prevenção e
dissuasão da conduta, com o objetivo de tutelar o interesse geral de evitar que o potencial
ofensor pratique qualquer comportamento de perigo social. Ou seja, o interesse particular
apenas será relevante enquanto coincidir com o interesse público de intimidar uma pessoa
natural ou jurídica, por medida de desestímulo, a adotar um comportamento que não
coloque em risco interesses metaindividuais. Por isso mesmo que a vítima não se apropria
da totalidade da pena, sendo ela também destinada ao Estado ou instituições
assistenciais453.
Trata-se, então, de atrair a aplicação do provimento jurisdicional reconhecido pela
experiência americana como fluid recovery, ou ressarcimento fluído ou global, como
ensina Jorge Luiz Souto Maior, que ocorre quando o juiz condena o réu de forma que
também o dano coletivo seja reparado, ainda que não se saiba quantos e quais foram os
prejudicados e mesmo tendo sido a ação intentada por um único individuo que alegue o
próprio prejuízo, de forma a evitar a precarização completa das relações sociais, que se
baseiam na lógica do capitalismo de produção, afastando a prática desse dumping social,
que prejudica toda a sociedade e, via de consequência, o aparato judiciário, incapaz de
atender às inúmeras demandas individuais, que buscam a mera recomposição da ordem
jurídica privada, incentivando, assim, o descumprimento das normas sociais454
Ainda que delineado em um atentado tipicamente difuso (v.g., uma lesão ao meio
ambiente), poderá, também, restar configurado o dano social – e esse é o seu maior atrativo
– na análise de uma lesão aparentemente individual, mas que traz reflexos para toda a
sociedade (por exemplo, uma quebra contratual entre particulares).
De acordo com o que argumenta Daniel de Andrade Levy, a sociedade acaba
transferindo para a relação linear as suas expectativas sociais, aproximando-se, destarte,
dessa ideia de dano social. Seria preciso, portanto, trazer para a relação processual linear
todos aqueles que foram ou serão atingidos pelo resultado, sem que se criem litisconsórcios
multitudinários, mas apenas considerando essa universalidade de lesados em tese, para que
453
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 44/45.
454
MAIOR,
Jorge
Luiz
Souto.
O
Dano
Social
e
sua
Reparação.
In
http://www.nucleotrabalhistacalvet.com.br/artigos, publicado em 13/10/2007, p. 5/8, consultado em
1º/5/2013.
200
se defina quem arcará com os custos de um dano, de que forma deverá fazê-lo e qual será o
montante da indenização455.
Não apenas do lado do dano sofrido, mas também do agente causador do dano deve
repousar a preocupação em relação à aplicação do Dano Social. Geneviève Viney giza,
como antes mencionado, que uma das preocupações atuais da responsabilidade civil voltase ao que ela chama “danos de massa”, cujas duas variantes essenciais seriam, de um lado,
os danos seriais do consumo, devidos a um produto largamente difundido junto ao público
e que se revela defeituoso e, de outro lado, os atentados graves ao ambiente. Para a
reflexão completa sobre essa modalidade de dano, seria necessário, primeiro, atribuir as
responsabilidades aos verdadeiros autores.456.
Essa atribuição de responsabilidades aos verdadeiros autores, ou seja, àqueles que
têm a iniciativa da atividade que se mostrou danosa e dela auferem lucro, impõem-se não
somente por zelo de justiça, mas também para favorecer a prevenção de danos.
Com efeito, os riscos externos devem ser internalizados por aquele que desenvolve
a atividade, o que revela a necessidade de buscar-se o verdadeiro causador do dano.
Entrementes, muitas vezes, quando do acontecimento de um dano de massa, não é o autor
material o verdadeiro responsável, como, por exemplo, no caso de uma filial que tem suas
atividades controladas pela matriz. Deve-se, portanto, ir atrás do verdadeiro responsável –
que normalmente tem condições melhores de arcar com a indenização –, para que se inicie,
a partir de então, a prevenção daquele dano457.
De fato, as Cortes americanas deram um passo à frente nesse sentido. Como
exemplifica Geneviève Viney, um juiz de Chicago, no famoso caso da maré negra
455
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas
Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 174.
456
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, p. 52.
457
Fernando Noronha explica que a função preventiva da responsabilidade civil mostra-se importante,
especialmente, no que se refere a danos que podem ser evitados (danos culposos), ganhando mais corpo na
análise dos danos transindividuais, com destaque para aqueles resultantes de infrações ao meio ambiente, em
que são aplicadas indenizações que trazem a ideia de um valor de desestímulo. NORONHA, Fernando.
Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à Responsabilidade Civil.
São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 441.
201
provocada na Bretanha pelo naufrágio do navio Amoco-Cadiz, admitiu que a pequena
sociedade Amoco Transport, proprietária do navio, não era a única responsável pelo
derramamento, e que o grupo Standard Oil, do qual ela era filial, deveria também
responder pelos danos causados, atendendo assim não apenas à justiça da situação, mas
entrando também em harmonia com o princípio ambiental do poluidor-pagador. Em outras
situações, relativas aos danos seriais causados pela distribuição massiva de um produto
defeituoso, cuja produção e distribuição eram feitas por algumas empresas, certas decisões
americanas indicaram a responsabilidade solidária de todas, com a repartição da reparação
entre os corresponsáveis em função da importância da parte de mercado detida por cada
um458.
Dessa forma, o segundo passo, após a constatação do dano, será o de verificar o(s)
principal(is) causador(es) do dano ou, na falta de um único responsável direto, um
daqueles que tenha participado dessa cadeia lesiva, e que tenha condições de atender à
compensação esperada pela sociedade, além de servir como exemplo para a não repetição
do dano.
Identificado o causador do dano, faz-se necessária a análise de sua conduta, já que
escopo indenizatório é a educação do agente e dos demais potenciais causadores de danos
similares, sendo a compensação o reflexo da indenização que será apurada. Ou seja, a
gravidade da conduta, tal como a dimensão do dano, será fundamental não apenas para a
caracterização do dever de reparar, como também para a fixação do montante da
indenização.
Decerto, a culpa, mais e mais, sobretudo na ampliação que foi dada ao instituto do
dano moral, ante a necessidade de fazer prevalecer um caráter pedagógico ao causador de
um dano, acaba adquirindo papel, ainda tímido, mas determinante na fixação da
indenização.
Nesse sentido, jurisprudência e doutrina fixam até mesmo os critérios de reparação
do dano moral, como a reprovação da conduta, a gravidade ou intensidade da culpa do
458
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, pp. 52/53.
202
agente, a repercussão social do dano, as condições socioeconômicas da vítima e do
ofensor459, e, por vezes, das repercussões do ato danoso para a sociedade460. Verifica-se,
cada vez mais, a ocupação, pelo ofensor, do papel principal da reparação por danos morais,
para a apuração de sua conduta e repreensão, não apenas para a interrupção e não repetição
do ato, mas também para que sirva de modelo à sociedade, numa reaproximação da análise
da culpa.
E, de fato, a fixação desses critérios, ainda para aqueles que levantem a bandeira da
impossibilidade de instituição de indenizações punitivas, apenas leva o magistrado à
aplicação da repreensão, na medida em que, invariavelmente, fará a análise dessa
gravidade de conduta – representada por uma culpa grave ou dolo –, ou seja, da ausência
de verificação de um standard de conduta, assim como das características socioeconômicas
do ofensor e da vítima, para que possa adequar o quantum.
Daniel de Andrade Levy aponta a incoerência do rigor dogmático, na
responsabilidade civil, que considera a culpa como condição do an debeatur, mas não a
leva em consideração no quantum debeatur. Se o desejo de vingança ainda constitui a
natureza humana, não pode a lei ignorá-lo. Não há dúvidas de que, atualmente, a
Responsabilidade Civil, que, na criação da teoria do risco, acabou ocasionando um
esfacelamento da figura do agente, agora se reaproxima da culpa como variável da
indenização461, e o vínculo entre o ilícito civil e a sanção voltam à tona462.
Ao tratar do que denominou a “erosão dos filtros tradicionais da reparação”,
Anderson Schreiber aponta para uma contraofensiva da culpa, defendida por diversos
459
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 162.
460
STJ, Terceira Turma, Recurso Especial nº 335.392/RJ, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em
26/3/2002, consultado em 13/3/2013.
461
A análise da culpa do lesante nas hipóteses de responsabilidade objetiva foi, inclusive, objeto de
Enunciados da I e IV Jornadas de Direito Civil, que assim determinaram:
“Enunciado da I Jornada de Direito Civil: 46 – Art. 944: A possibilidade de redução do montante da
indenização em face do grau de culpa do agente, estabelecida no parágrafo único do art. 944 do novo
Código Civil, deve ser interpretada restritivamente, por representar uma exceção ao princípio da reparação
integral do dano[,] não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva. (Alterado pelo Enunciado
380 – IV Jornada)”.
“Enunciado da IV Jornada de Direito Civil: 380 — Art. 944: Atribui-se nova redação ao Enunciado n. 46 da I
Jornada de Direito Civil, pela supressão da parte final: não se aplicando às hipóteses de responsabilidade
objetiva”.
462
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas
Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 35/36.
203
autores, sobretudo daqueles que, “preocupados com o excessivo afastamento da concepção
ética da responsabilidade civil, vêm propor a recuperação do seu caráter sancionatório ou
punitivo, em prol de um efeito dissuasivo sobre as condutas culposas“. Dessa forma,
pesem os benefícios trazidos pela objetivação da responsabilidade, que dá ensejo a um
maior número de reparações, em geral, as mantém em valor indenizatório mais reduzido,
porque desvinculado o resultado reparatório de intuitos punitivos ou moralizantes que,
tradicionalmente, se vinculam à responsabilidade por culpa.463.
Define, ainda, Nelson Rosenvald que a aplicação de uma sanção punitiva civil
permite resgatar para a responsabilidade civil a distinção entre a culpa e o dolo, que
culminou por ser abandonada pelo monopólio da função reparatória, direcionada à aferição
exclusiva do pressuposto do dano464.
Não se trata, evidentemente, de rejeitar-se a teoria objetiva da responsabilização.
De fato, enquadrado o caso concreto à hipótese de responsabilidade objetiva, a
compensação da vítima estará garantida, independentemente da análise de seu atuar. Com
efeito, essa análise (de sua culpa) apenas determinará a possibilidade de aplicação de uma
nova indenização, por uma causa diversa, embora advinda de uma mesma conduta.
Como explicou Antonio Junqueira de Azevedo, até mesmo nos casos de
responsabilidade objetiva o juiz pode perfeitamente fazer o exame do dolo ou da culpa
grave, porquanto não ter essa modalidade de responsabilização excluído a responsabilidade
subjetiva, continuando essa a atuar em todas as brechas em que não cabe a análise objetiva
e, além disso, podendo ser cumulada como causa de indenização nos casos de
responsabilidade objetiva. Aliás, quando a finalidade da indenização é a dissuasão de um
comportamento futuro, nem é preciso examinar dolo ou culpa grave, na medida em que o
desestímulo é permitido mesmo que se fique exclusivamente no campo da
responsabilidade objetiva465.
463
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 47 e 210.
464
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 19.
465
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 380.
204
Ou melhor, a função sancionatória da responsabilidade civil, em casos de
responsabilidade objetiva, mostra-se possível nos casos em que for possível incentivar as
pessoas a adotar medidas de segurança preventivas, para evitar a ocorrência de danos466.
Além disso, orienta Anderson Schreiber que alguns autores chegam mesmo a
afirmar expressamente a possibilidade de convergência entre a responsabilidade civil
subjetiva e objetiva. Aponta ele que, pela análise dos diversos sistemas de
responsabilização, verifica-se uma gradativa perda de nitidez na distinção entre a
responsabilidade objetiva e subjetiva. Com efeito, a doutrina comparatista tem constatado
extraordinária semelhança entre as soluções alcançadas em diferentes ordenamentos, com a
aplicação ora da responsabilidade subjetiva, ora da responsabilidade objetiva. Mesmo no
Brasil, onde a matéria era tradicionalmente regida pela responsabilidade subjetiva, as
cortes já recorriam a expedientes bastante objetivistas, como a presunção, tomada quase
em sentido absoluto, da responsabilidade do motorista que atinge a parte traseira do
automóvel alheio. Outros exemplos evidenciam que a responsabilidade subjetiva pode, na
prática, adquirir alto grau de objetividade por meio da simples adoção de parâmetros
bastante elevados e rígidos de comportamento diligente, ou ainda por força de uma
inversão insuperável do ônus probatório na demonstração da culpa467.
Observa-se, sobretudo na jurisprudência, uma clara convergência entre essas duas
responsabilidades,
aplicando-se,
em
não
raras
situações,
os
pressupostos
da
responsabilidade subjetiva em casos de enquadramento da responsabilidade objetiva e
vice-versa.
Tem-se também que a pesquisa sobre o elemento volitivo do causador do dano não
mais se relaciona com a reparação de danos, mas diretamente com essa ideia de imposição
de uma sanção punitiva. Ou seja, uma coisa é a abordagem do nexo de imputação, ou
melhor, da razão pela qual se atribui uma obrigação de indenizar – é diminuta a
importância da culpa nesse campo, em relação às relações de mercado, prevalecendo a
teoria do risco, com a imputação objetiva –, outra é trocar o foco da finalidade reparatória
466
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à
Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 439.
467
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 210/211.
205
da responsabilidade civil em direção a uma outra forma de se conferir efetividade a este
modelo jurídico, como forma de concretizar a função preventiva468.
Assim, por exemplo, a vítima de uma empresa aérea que tenha atrasado um voo
estará garantida, independentemente da demonstração de culpa ou dolo, sobre a reparação
do dano material e/ou moral que tenha sofrido. No entanto, a verificação de se esse atraso
ocorre de forma reiterada e constante, mediante o emprego de culpa grave ou mesmo dolo,
para, quiçá, um alavancamento de lucros, ante a ausência de investimento em
infraestrutura, possibilitará a aplicação de uma nova indenização, por dano social, em
razão do prejuízo sofrido não apenas pelo indivíduo, mas por toda a coletividade, em razão
dessa insegurança contínua que rebaixa a qualidade de vida geral. Preserva-se,
então,
a
indenização do indivíduo, partindo-se para a análise da conduta do ofensor em relação ao
dano causado à sociedade.
Trata-se da aplicação do instituto às hipóteses de indiferença, demonstrada pelo
prestador de serviços ou produtor, com a segurança, saúde ou bem-estar dos consumidores,
ou também em outras áreas passíveis de lesões semelhantes, como aquelas que degradam o
meio ambiente.
Dessa forma, num primeiro momento parece apenas ser admitida a indenização por
um dano social quando configurado o dolo ou a culpa grave469 no atuar do agente470471. Sua
468
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 172.
469
Para Jorge Mosset Iturraspe há culpas que, por razão das circunstâncias, da posição das partes em relação
às obrigações que lhes são impostas, são mais ou menos graves; mas não existe culpa que, considerada em si
mesma, prescindindo das circunstâncias do lugar, do tempo e das pessoas, possa ser classificada por dados
abstratos e por uma medida invariável e absoluta, como culpa grave, leve ou levíssima. A gravidade da culpa
e a sua própria existência está sempre relacionada à sua imputabilidade, é dizer, com as cicunstâncias pelas
quais ela se produz. Assim, a comparação de um standard de conduta com aquela sujeita ao julgamento se
enriquece com as circunstâncias do tempo e do lugar. As condutas humanas, portanto, devem ser examinadas
de acordo com o seu tempo existencial e no meio em que se apresentam ou se desenvolvem. ITURRASPE,
Jorge Mosset. Responsabilidad por Daños: responsabilidade de los profesionales. Tomo VIII, Buenos Aires:
Rubinzal – Culzoni Editores, 2004, pp. 355/357.
470
Interessante lição de André Gustavo Corrêa de Andrade mostra que a conduta dolosa verificar-se-á na
ação dirigida de forma consciente à produção de determinado resultado lesivo; a culpa grave, por sua vez, é
aquela decorrente de imprudência ou negligência grosseira, em que o agente atua com grosseira falta grave.
Pode ser constatada a culpa grave sem haver previsão da ocorrência do resultado, sendo suficiente, para a sua
caracterização, a inobservância do dever mínimo de cuidado que a todos incumbe. É possível, ainda, que a
gravidade da culpa decorra da reiteração da conduta do agente ou da circunstância de constituir um padrão de
conduta negligente. Nessa esteira, embora o ato, isoladamente considerado, configure apenas uma culpa leve,
quando admitido como padrão de comportamento revelará uma culpa grave. In ANDRADE, André Gustavo
Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em 18/8/2008,
206
conduta, portanto, deve desbordar do razoável, configurando ou um agir intencional ou
sem a observância das consequências que seus atos poderiam causar.
No entanto, como define Paulo de Tarso Sanseverino, não se trata de verificar, na
consecução do dano, uma culpa grave ou um dolo, para que haja compensação e punição
do agente, mas, por outro lado, deve-se levar em conta a análise da dimensão danosa
coletiva, na pessoa de cada um dos atingidos, e se tal dano poderia ser evitado ou minorado
pelo lesante.472.
Ou seja, o que determinará o surgimento dessa lesão será justamente a conduta
comissiva ou omissiva adotada pelo agente, a ausência de adoção de medidas preventivas,
verificando-se se ele deixou de atenuar ou mesmo operou ou pouco se importou para o
agravamento do dano, restando demonstrado, assim, o seu agir doloso ou extremamente
negligente.
Assim, o núcleo do ilícito ora tratado contentar-se-á em analisar a antijuridicidade
do ato comissivo ou omissivo, a partir da verificação de uma indiferença do agente em
relação ao cumprimento da norma, intolerável do ponto de vista social, e não propriamente
de uma análise profunda de sua culpa ou dolo473. Aproxima-se essa análise das figuras da
http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478f-a346-ec511dd4188a,
consultado em 10/9/2012.
471
Também Carlos Roberto Gonçalves informa que a culpa é grave quando imprópria ao comum dos
homens, decorrente de uma violação mais séria do dever de diligência que se exige do homem mediano,
equiparando-se à figura do dolo. In GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com
o novo código civil. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 475/476.
472
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral: Indenização no Código Civil.
São Paulo: Saraiva, 2012, p.107.
473
Sobre a culpa, importante lição de Nelson Rosenvald merece destaque: “A transformação do papel da
culpa deve ser concebida como a transposição de uma ‘culpa ética’ para uma ‘culpa social’. A noção de
culpa foi progressivamente depurada dos elementos éticos individuais para se configurar em termos
objetivos como desconformidade do comportamento do agente a respeito de parâmetros que se manifestam
em grau de tolerabilidade social do risco introduzido pela conduta do agente. Trata-se então de medir a
conduta desenvolvida pelo agente com padrões objetivos. (...) Dolo e culpa graves teoricamente pressupõem
subjetividades distintas: uma coisa é a intenção de praticar o ato antijurídico; outra, a extrema negligência,
Porém, por uma questão de política legislativa poderá o ordenamento lhe proporcionar idênticas
consequências jurídicas. Não se trata de uma equiparação que possa partir do intérprete, mas uma
consciente escolha do sistema sobre as áreas em que a grave desídia repercuta efeitos similares aos do
comportamento intencional. A nosso viso, a razão para se instalar a culpa grave no mesmo patamar
sancionatório que o dolo é a natureza difusa dos danos produzidos pelos ilícitos que a sanção pretende
retribuir”. In ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São
Paulo: Atlas, 2013, pp. 171 e 174/175.
207
culpa consciente e do dolo eventual do Direito Penal474, caracterizados por essa indiferença
do agente em relação à observância da norma.
É o que, atualmente, o common law define como uma implied malice, aplicada
excepcionalmente, bastando a demonstração de uma ação injustificada e grosseiramente
irresponsável, caracterizada por uma extrema negligência e completa desconsideração com
os direitos de terceiro, que caracteriza, justamente, essa indiferença em relação às
consequências do ato praticado475.
Justamente por esse motivo que a análise deve se voltar mais à antijuridicidade do
ato em relação ao não atendimento de um padrão de conduta, tendo em vista a proporção
do dano causado, do que à análise da gravidade da culpa em si476 – embora a análise da
culpa possa ser determinante para o cômputo da indenização e, até mesmo, para a
caracterização do dever de indenizar, como antes demonstrado477.
Dessa forma, verificada a antijuridicidade da conduta do agente em relação a um
dano de grande gravidade à dignidade da pessoa, representada pela falta de empenho ou
pouca importância demonstrada pelo infrator478, parece estar bem delineado o cenário de
aplicação de um dano social.
Seria até desarrazoado impor à vítima a demonstração do dolo ou da culpa grave do
agente causador do dano, na medida em que, possivelmente, não conseguiria ela
474
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007, p.
37.
475
GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e
da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, pp. 67/68.
476
Revela Paula Meira Lourenço que essa ponderação da culpa grave do agente deve ser feita no âmbito de
um critério geral orientador: a equidade. In LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os
Critérios Para A Sua Determinação. Palestra realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de
Justiça de Portugal, subordinado ao tema Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13
e 14 de Março de 2008, no âmbito do painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria
da Indemnização Sancionatória.
477
Paolo Gallo entende que as penas privadas só podem ser aplicadas nas hipóteses de dolo, em razão da
excessiva elevação dos níveis de prevenção e consequente aumento do custo social global, como também
com o aumento significativa da riqueza em favor do lesado. In GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità
civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.63
478
Explica André Gustavo Corrêa de Andrade que a indenização punitiva deve ser aplicada quando
constatada a intenção lesiva ou, ao menos, esse desprezo ou indiferença pelo direito alheio. In ANDRADE,
André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento em
18/8/2008,
http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478f-a346ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
208
comprová-la, por não dispor dos meios (financeiros e operacionais) para produzir essa
prova. Com efeito, muitas vezes a gravidade do dano e a importância dos bens atingidos já
automaticamente demonstrarão essa quebra de um dever de segurança ou boa-fé, capaz de
revelar o atuar com culpa grave ou dolo do agente, devendo ele próprio produzir a prova
necessária para ilidir essa responsabilização. Quando não for possível inferir, da conduta
do agente, essa culpa grave ou dolo, no mais das vezes representados pela sua
possibilidade de conhecimento ou indiferença quanto à ilicitude de sua conduta, temerária
será qualquer condenação por dano social.
Confirma-se, desse modo que, o dano social é uma eficaz ferramenta para a
efetivação da prevenção dos efeitos danosos de uma conduta. Mais do que prevenir, buscase incentivar a adoção de condutas que previnam a consequência danosa ou mesmo a
atenuem, servindo as atitudes positivas do agente ofensor como fator de redução da
indenização.
É nesse momento que a Responsabilidade Civil assume papel primordial, porquanto
ser ela que “definirá o custo a ser assumido pelo causador do dano segundo os seus níveis
de prevenção”479.
Sobre essa função não são alheios os Tribunais pátrios, como já se manifestou o
Tribunal de Justiça de São Paulo em ação em que se discutia a ocorrência de plágio,
reduzindo-se o valor da indenização por danos morais, que continha evidente carga
punitiva, em razão de conduta proativa da editora, que, tão logo soube que a obra publicada
continha evidentes sinais de cópia de um outro trabalho, providenciou o recolhimento dos
exemplares dos centros de distribuição480.
Ou seja, constatada a lesão a direito de outrem, sem a necessidade de decisão
judicial o ofensor agiu, na tentativa de diminuir o dano causado à vítima. Não se trata,
verdadeiramente, de uma política preventiva da empresa, mas a sua ação proativa teve o
efeito de diminuir o prejuízo da vítima, restando acertada a decisão de diminuir a
indenização, que levou em conta o caráter preventivo da Responsabilidade Civil.
479
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil...p. 138.
In www.tjsp.jus.br, TJSP, Apelação Cível nº 9069919-11.2009.8.26.0000, 7ª Câmara de Direito Privado,
Relator Desembargador Ramon Mateo Júnior, julgado em 13/3/2013, consultado em 23/3/2013.
480
209
Como explica Sérgio Severo, a Responsabilidade Civil tem como função principal a
indenização, por meio da reparação e da satisfação, comportando, ainda, uma função
secundária, destinada à prevenção. Revela o autor que a característica dos danos
extrapatrimoniais favorece essa teoria da dupla natureza de satisfação. Ou melhor, por se
tratar de interesse sem conteúdo econômico, o dano extrapatrimonial é auferido de forma
aproximada, mediante “o maior número de critérios que auxiliem na busca do quantum
satisfatório”, motivo pelo qual o caráter preventivo acaba penetrando, em maior ou menor
escala, e ajudando na baliza desse montante481.
Nesse ponto, procura avançar o Poder Legislativo, por meio no PLS nº 282/2012,
de autoria do Senador José Sarney, que pretende a reforma do Código de Defesa do
Consumidor, no tocante às ações coletivas, ao prever, nos casos de reparação de danos,
sem a necessidade de pedido do autor, condenação “em medidas para minimizar a lesão ou
evitar que se repita”, além da própria indenização por danos materiais e extrapatrimoniais.
Evidencia-se, dessa forma, a intenção do legislador em inserir, no âmbito dos danos
em massa, a figura da duty to mitigate the loss, compreendendo, literalmente, e sem a
necessidade de formulação de pedido específico, não apenas a reparação ou compensação
pela lesão sofrida, mas também uma medida socioeducativa, para que o dano não se repita.
Basta, então, que se reconheça uma nova categoria de dano, advinda de um dano
extrapatrimonial, assegurado pela Constituição Federal, para que seja possível a aplicação
das funções punitiva e preventiva da Responsabilidade Civil.
Esse dano, consubstanciado na reparação social, pela imposição de uma sanção,
independerá da existência de outros danos eventualmente apurados em relação ao ilícito
praticado pelo ofensor. Inexiste liame obrigatório entre o dano social e os demais danos
reparáveis, já que o seu escopo é a inibição de condutas análogas, com a exclusão de
determinado comportamento que aflija a sociedade, que seja reprovável, podendo restar
configurado até mesmo em ações que não prevejam o pagamento de um dano patrimonial
ou moral.
481
SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 189/192.
210
No entanto, a indenização aplicada em casos de dano social é medida residual,
utilizada apenas quando preenchidos requisitos determinados, para fazer valer uma função
preventiva da responsabilidade civil. Se ela já tiver sido alcançada com a reparação
ordinária de danos materiais e morais, não deve ser aplicada indenização por dano social.
Condensando todos os argumentos até agora trazidos, Demetrio Alejandro
Chamatropulos apresenta as diversas finalidades – e benefícios – que a aplicação de uma
sanção punitiva poderia trazer: i) em primeiro lugar, trata-se da imposição de um castigo,
para separar a conduta razoável daquela desvaliosa; parte-se também em busca de uma ii)
dissuasão, que é o objetivo principal da aplicação de uma multa civil, pois que diversos
bens são irreparáveis, sendo antes necessário prevenir o acontecimento dos danos do que
repará-los ou compensá-los; além disso, tenta-se iii) eliminar os benefícios injustamente
obtidos por meio da atividade danosa, já que a mera reposição da vítima ao status quo ante
da lesão não é suficiente, muitas vezes, para eliminar o lucro angariado pelo autor do dano;
iv) a promoção da firmeza e da probidade das sentenças judiciais, na medida em qu
realçados o valor e a força legal dos julgamentos; v) melhorar as práticas corporativas em
matéria de controle de fraude; e, por fim, vi) o restabelecimento do equilíbrio emocional do
lesado, pela completude e satisfação de seu desejo de justiça482.
De fato, essa sanção punitiva, conforme referido, representará o próprio valor da
indenização. Ou melhor, não haverá, em verdade, um plus indenizatório. O quantum
variará de acordo com a gravidade e extensão da lesão, assim como pelo comportamento
do agente antes, durante e após a ocorrência do dano, obedecendo, também, à regra do
artigo 944 do Código Civil.
Justamente em razão dessa dificuldade em apurar-se a extensão de um dano
extrapatrimonial – como demonstrado, parte da doutrina defende até mesmo que não se
impõe essa limitação do artigo 944 aos danos de natureza não econômica – é que a sanção
punitiva encontra seu maior campo de aplicação. Como a sociedade foi vítima de um dano
não patrimonial, mostrando-se incalculável o prejuízo sofrido por cada indivíduo que a
compõe e quanto seria necessário para compensá-lo, a indenização por dano social alcança
482
CHAMATROPULOS, Demetrio Alejandro. Los Daños Punitivos en la Argentina: Legislación.
Jurisprudencia. Doctrina. Buenos Aires: Errepar, 2009, pp. 47/55.
211
qualquer medida que se mostrar necessária para que seja feita essa reparação. Utiliza-se,
assim, essa reposição à sociedade pelo dano sofrido como forma de sanção punitiva ao
agente causador do dano.
Deve ficar claro que o objetivo principal dessa modalidade de dano não é a
recomposição do status quo ante da sociedade, vez que impossível, mas a sanção do
agente, como meio de prevenção de danos. Certamente, a indenização auferida acabará
proporcionando, indiretamente, compensação à sociedade pelo dano causado.
Essa punição, consequentemente, variará de acordo com a própria conduta do
agente e a gravidade da lesão, assim como pelos seus esforços em aumentar ou diminuir o
dano, certo de que a indenização acabará respeitando a extensão dessa lesão, não trazendo
nenhum plus questionável.
Não há razão, dessa forma, para o não reconhecimento de uma nova categoria de
dano, já que, pela análise do ordenamento jurídico, não se encontra qualquer empecilho
para a legitimação de um dano social.
E esse dano social, nas palavras de Claudio Luiz Bueno de Godoy, pode ser
definido como um dano de dimensão supra ou metaindividual; uma resposta, além da
reparação, que se volta à punição e à dissuasão, que atinge qualquer forma de vida ou de
qualquer elemento dela integrante, visando o favorecimento “do eixo da tutela inerente à
responsabilidade civil e do sujeito da pretensão que ela suscita”, significando o corolário
de uma realidade complexa de proliferação de danos, reconfigurados nos elementos de sua
ocorrência, na dimensão de seus efeitos e nas vítimas que a ele se sujeitam483.
Dessa sorte, por tudo o que foi aqui tratado, e para firmar-se um conceito a respeito
do instituto, pode-se entender que o dano social é a lesão causada a toda a sociedade –
assumindo, portanto, a dimensão dos interesses difusos –, aos seus direitos metaindividuais
ou transindividuais, de maneira isolada ou repetida, mediante a ruptura, complementar ou
alternativamente, da lealdade, da boa-fé, da segurança e da solidariedade, que acarrete o
483
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Alguns apontamentos sobre o dano moral, sua configuração e o
arbitramento da indenização. P. 280/383. In CASSETTARI, Christiano. 10 anos de vigência do Código Civil
Brasileiro de 2002. Saraiva: São Paulo, 2013, pp. 373/388.
212
rebaixamento do patrimônio moral ou diminuição da qualidade de vida social, praticado
com culpa grave ou dolo484 do agente.
Essa nova modalidade de dano prestar-se-á a identificar, na sociedade, condutas
voluntárias e deliberadamente antijurídicas que simultaneamente violam interesses
subjetivos privados e também metaindividuais, apresentando, como resposta, uma
dissuasão ou punição, mediante o instrumento de reparação daquilo de que a coletividade
foi tolhida, com o fim de assegurar um interesse de prevenção social de condutas danosas.
4.5.1 dano social e abuso de direito
Embora o dano social, no mais das vezes, decorra de situações em que há uma clara
ilicitude praticada pelo agente infrator, não é possível atribuí-lo apenas à categoria dos atos
ilícitos propriamente ditos, na medida em que situações limítrofes, entre o exercício
escorreito ou não de um direito, também podem gerar um semelhante dano de proporção
difusa.
De fato, o dano social pode decorrer de situações em que há abuso de um direito485,
quando ficar clara a intenção do agente de invadir o limite do direito de outrem, ainda que
seja permitida, abstratamente, a conduta ocasionadora da lesão.
É fácil pensar em exemplos que, em um primeiro momento, poderiam levar até
mesmo à discussão de se o agir foi correto ou não, já que traçado no limite da Lei, mas
que, analisando-os do ponto de vista do bem violado, configuram típicos casos de abuso de
um direito, geradores de um dano social.
Basta observar as condutas adotadas pelas operadoras de seguro-saúde. Embora
prevista no contrato a ausência de cobertura a medicamentos utilizados no domicílio do
segurado, é notório o fato de que os Tribunais pátrios já pacificaram o entendimento no
484
A culpa grave ou o dolo, como visto, são, por vezes, inferidos da conduta do agente, da gravidade do dano
e da importância do bem lesado, demonstrados pela possibilidade de conhecimento ou pouca importância a
respeito da ilicitude da conduta.
485
Sobre a conceituação de abuso de direito, veja-se o tópico 1.2 deste trabalho.
213
sentido de estar contido nas obrigações das operadoras de seguros, por exemplo, o
fornecimento de quimioterápicos para tratamento de câncer. O raciocínio utilizado é
sempre o de fazer prevalecer o bem maior que o contrato protege, assim como verificar o
sistema em que a avença se insere, não podendo ela conter previsões que contrariem a sua
própria lógica.
Percebe-se que, num primeiro momento, a cláusula de exclusão de cobertura ao
medicamento poderia assistir razão à seguradora. No entanto, o bem da vida do segurado
em contraposição ao proveito econômico da empresa, assim como a lógica e finalidade do
sistema em que se insere o contrato de assistência privada à saúde, fazem com que a
conduta adotada revele o abuso de um direito.
E esse abuso, somado ao conhecimento da seguradora acerca do posicionamento
adotado para casos idênticos pelos Tribunais, assim como à repetição da conduta abusiva,
criam campo especial de aplicação da teoria do dano social.
Notadamente, as operadoras, ao adotarem essa postura, não o fazem por falta de
informação acerca da jurisprudência solidificada ou por má administração empresarial.
Pelo contrário, justamente por terem sempre assessorias jurídicas especializadas, sabem
elas que, quando condenadas, terão de pagar somente o valor do material ou medicamento
e, talvez, as verbas sucumbenciais.
Repara-se também serem poucos os Tribunais brasileiros que concedem
indenizações por danos morais aos segurados, fazendo valer uma função punitiva ou
dissuasória da responsabilidade civil.
Ainda mais: sabem as seguradoras que o número de segurados que procura o Poder
Judiciário é ínfimo, seja pelo desconhecimento da possibilidade de ingressar com uma ação
possivelmente exitosa, pelo ludibrio perpetrado pelas próprias operadoras, de que os
termos contratuais são claros acerca da exclusão, seja ainda por medo de futuras
retaliações, quando se mostrar necessária a realização de outros procedimentos.
214
Não é difícil perceber, dessa maneira, que a conta feita pelas operadoras é
puramente aritmética, pelo balanço, de um lado, do número de segurados e valores de
indenização, quando existem, e, de outro, do valor economizado com o não pagamento
dessas despesas cuja cobertura era obrigatória.
Infaustamente, ao afastarem os Tribunais as condenações por dano moral, ancoramse, no mais das vezes, na justificativa, levantada pelas operadoras, de que o problema
reside em interpretação divergente de cláusulas contratuais. Ou seja, não há dano se é
legítima a dúvida acerca do dever ou não de cobertura do material ou do medicamento, o
que colocaria a seguradora no exercício regular de seu direito, ao negar com base no
contrato firmado.
Decerto, essa justificativa talvez até pudesse se sustentar há vinte ou mesmo dez
anos atrás, quando, realmente, havia discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito
desse dever de cobertura. Contudo, atualmente, a ausência de cobertura desses
medicamentos situa-se num verdadeiro limite entre a ilicitude e o abuso de direito.
Por qualquer ângulo que se analise a questão, verificar-se-á que a ausência de
cobertura dos materiais ou medicamentos é abusiva, e que tal abusividade era conhecida
pelas operadoras de seguros, que agiram tanto para causar dano a seus segurados, quanto
para locupletarem-se indevidamente. É evidente que o desvio do standard de lisura,
expresso pela boa-fé objetiva, foi claramente desrespeitado nesse caso. E foi ainda mais
além, pela reiteração da conduta, em evidente prejuízo coletivo.
Por sinal, como antes mencionado, uma recente decisão do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo486 condenou uma operadora de seguros e planos de saúde ao
pagamento de indenização por dano social, na razão de R$ 1.000.000,00, justamente pelo
conhecimento a respeito da jurisprudência, reiteração da conduta, e abuso do direito de
recurso.
486
TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n° 0027158-41.2010.8.26.0564, Relator
Desembargador Teixeira Leite, julgado em 18/7/2013, consultado em 2/9/2013.
215
Outros exemplos podem ser tirados de outras áreas do Direito, que não apenas o
Direito Civil. Adentrando-se na seara trabalhista, toma-se como exemplo a empresa
empregadora que, dentro do seu direito de demitir, com ou sem justa causa, desliga o
funcionário, alegando motivo justo, em razão de única falta leve por ele perpetrada, ou
ainda acaba criando situações desconfortáveis e embaraçosas para que os seus empregados
peçam demissão, ou, mais, abusa de seu direito de revista íntima, de forma a constranger
os funcionários487.
De acordo com o que apresenta Judith Martins-Costa, a boa-fé objetiva, expressão
do civiliter agere que deve pautar as relações intersubjetivas regradas pelo Direito, atua,
concomitantemente, como fonte de deveres de conduta no terreno obrigacional, cânone
para a interpretação dos negócios jurídicos, e baliza para a averiguação da licitude no
modo de exercício de direitos, como escudo contra o comportamento contraditório ou
desleal. A confiança, por conseguinte, encontra a sua eficácia jurídica como “fundamento
de um conjunto de princípios e regras, entre os quais está justamente a boa-fé como baliza
das situações de exercício jurídico inadmissível”488.
Justamente em razão da confiança, que assegura a preservação das expectativas
criadas pelos responsáveis por informações, conselhos e recomendações, e que apresenta
um destacado fundamento ético, enquanto valor fundamental das relações privadas,
cristalizado nessa forma de proteção das expectativas489, permite-se verificar ainda outras
situações mais específicas de aplicação de um dano social.
487
Em interessante decisão, exarada pela 11ª Vara do Trabalho do Recife, oriunda de ação civil pública
promovida pelo Ministério Público do Trabalho, o magistrado condenou a empresa Arcos Dourados, maior
franquia da rede de fast-food McDonald’s no Brasil, ao pagamento de indenização de R$ 7,5 milhões por
dano moral coletivo. A Arcos Dourados foi acionada por obrigar funcionários a submeterem-se a jornada
móvel, o que acarretava disponibilidade do empregado à empresa muito maior do que a jornada regular de
trabalho, além de consumir apenas os lanches do McDonald’s no horário das refeições. In
http://m.g1.globo.com/pernambuco/noticia/2013/03/acordo-judicial-obriga-mcdonalds-pagar-r-75-milhoesem-indenizacao.html, portal G1, disponibilizado em 21/3/2013 e consultado na mesma data.
488
MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo indicado pela Boa-fé. in
TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo: Novos problemas à luz da legalidade
constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 80/82
489
AGUIRRE. João Ricardo Brandão. Responsabilidade e Informação – Efeitos jurídicos das informações,
conselhos e recomendações entre particulares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 57/58.
216
Basta pensar no dever jurídico de prestação de informações ou de aconselhamento
de um médico ou advogado para com o seu cliente. Desrespeitados de forma grave ou
reiteradamente esses deveres, mostra-se possível a configuração de um dano social.
Espera-se da parte a adoção de conduta proba, que vise a melhor execução do
negócio entabulado, em cumprimento às expectativas criadas pela contraparte,
estabelecendo-se um padrão de conduta. Como adverte Antonio Junqueira de Azevedo,
“...convém salientar que o princípio da boa-fé, que veio corrigir eventuais excessos do
subjetivismo individualista, além de impedir o venire contra factum proprium, impõe
também a manutenção de uma linha de conduta uniforme, quer a pessoa esteja na posição
de credor quer na de devedor.”490 Ou seja, a atuação do agente contrariamente às
expectativas criadas pela parte contrária, ou do que se deveria esperar de seu agir,
transbordam do exercício regular de seu direito, revelando abuso, que pode ser enquadrado
na figura do dano social, quando for ele excessivo e flagrante.
Com a principiologia trazida pelo Código Civil de 2002, que alçou a pessoa ao
posto mais alto de proteção, mitigando diversas máximas que anteriormente serviam para a
solução dessas questões – cite-se, como exemplo, o pacta sunt servanda, que, atualmente,
é bastante mitigado pelos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva –,
possibilitou-se um amplo campo de atuação à teoria do abuso de direito.
Certamente, o artigo 187 do Código Civil, ao impor genericamente limites ao
exercício de toda situação jurídica subjetiva, “criou uma inédita manifestação possível à
ilicitude civil decorrente da inobservância manifesta dos limites referidos no texto legal,
que, assim, poderá ensejar a responsabilidade civil do titular do direito”491.
É possível, destarte, ligar estritamente a figura do dano social ao abuso de direito.
Verificada a situação de exercício jurídico inadmissível, que defraude a expectativa de
490
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Interpretação do Contrato pelo exame da vontade contratual. O
comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio
da boa-fé objetiva. Impossibilidade de venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas
medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e
a impossibilidade de fugir do “Programa Contratual” estabelecido. pp. 159/172 Estudos e Pareceres de
Direito Privado – Com remissões ao novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva,
2004, p.168
491
GUERRA, Alexandre. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito: entre o exercício inadmissível de
posições jurídicas e o direito de danos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 291.
217
confiança – mesmo aquele grau mínimo de confiança que torna pensável a vida social –,
apura-se a sua gravidade e exteriorização em relação à sociedade, podendo essa situação
caminhar para um dano social.
Diversas outras situações, que se encontram no limiar do direito, mas que revelam
exercícios inadmissíveis de posições jurídicas, mostram-se merecedoras de proteção, por
meio da aplicação de indenização por danos sociais, como, por exemplo, o exercício
abusivo de posição dominante no mercado, no Direito da Concorrência, a invasão abusiva
da esfera da privacidade492, ou abuso do direito de informação493, ou do direito de narrar
matéria jornalística494, ou ainda no caso antes mencionado, de abuso na aplicação de
cláusulas contratuais contrárias ao sistema em que elas se inserem, ou mesmo nos casos
atuais de corrupção495 etc.
4.5.2 critérios balizadores para a verificação do dano social e apuração
do quantum indenizatório
492
Como exemplo, pode-se imaginar o caso da empresa que intercepta os e-mails trocados nas contas
pessoais de seus funcionários ou viola correspondência pessoal a eles direcionada.
493
O meio de comunicação que inventa fatos sobre pessoas, principalmente, famosas, para alavancar as
vendas de seu periódico, pratica também abuso do direito de informação. É o exemplo do julgamento, pelo
Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial nº 556.291, julgado em 14/12/2004, e consultado em
27/11/2012, da Terceira Turma, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, em que ficou evidenciado o abuso
do direito de informar, sob o seguinte fundamento: “Publicações a respeito de um mesmo fato, por empresas
jornalísticas diversas, podem ter conseqüências jurídicas também diferentes, pois uma empresa jornalística
pode agir com abuso de direito e causar danos morais indenizáveis a determinada pessoa, enquanto outra
empresa pode atuar dentro do exercício regular do direito”.
494
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu caso em que ficou constatado o abuso do direito de narrar os
fatos, o que acarretou danos extrapatrimoniais às vítimas desse exercício ilegal. “RESPONSABILIDADE
CIVIL. LEI DE IMPRENSA. NOTÍCIA JORNALÍSTICA. REVISTA VEJA. ABUSO DO DIREITO DE
NARRAR. ASSERTIVA CONSTANTE DO ARESTO RECORRIDO. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME
NESTA INSTÂNCIA. MATÉRIA PROBATÓRIA. ENUNCIADO N. 7 DA SÚMULA/STJ.
DANO MORAL. RESPONSABILIDADE TARIFADA. INAPLICABILIDADE. NÃO-RECEPÇÃO PELA
CONSTITUIÇÃO DE 1988. PRECEDENTES. QUANTUM . EXAGERO. REDUÇÃO. RECURSO PROVIDO
PARCIALMENTE.
I – Tendo constado do aresto que o jornal que publicou a matéria ofensiva à honra da vítima abusou do
direito de narrar os fatos, não há como reexaminar a hipótese nesta instância, por envolver análise das
provas, vedada nos termos do enunciado n. 7 da súmula/STJ.” (in www.stj.jus.br, REsp 578777 / RJ,
Terceira Turma, Relator Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, julgado em 24/8/2004, DJ
25/10/2004 p. 342, RSTJ vol. 192 p. 360, consultado em 14/1/2013).
495
Cite-se, como exemplo, o caso do “mensalão”, em que políticos participaram de um esquema de desvio de
verbas públicas, para benefício próprio, tendo sido apenados pelo Supremo Tribunal Federal com a privação
da liberdade. No entanto, muitos deles receberam penas sobremaneira brandas, em que pese o volume de
verba pública que desviaram. Certamente, uma sanção punitiva cível poderia, ao lado da pena criminal,
cumprir função verdadeiramente preventiva, além de abrandar a preocupação social quanto à impunidade.
218
Traçada uma definição a respeito do Dano Social e verificados os seus
pressupostos, cumpre apresentar critérios que possibilitem ao julgador a verificação de
ocorrência e aplicação desse instituto, com a maior objetividade possível, para que não se
extrapolem nem se diminuam desarrazoadamente as hipóteses de aplicação ou os valores
de indenização, fato que poderia levar essa categoria de dano ao ocaso ou ostracismo.
De fato, pelo que foi demonstrado até o momento, a dificuldade de aplicação de
uma sanção punitiva situa-se, no mais das vezes, nos critérios utilizados para a sua
aplicação. O problema dos Tribunais é que, ao aplica-las, não apresentam o embasamento
adequado, mesmo que inseridas justificativas para o aumento da indenização por danos
morais, como a gravidade da conduta do agente. No mais das vezes, a indenização fica
mesmo aquém de compensar o próprio dano sofrido, quanto mais prevenir uma conduta
futura ou punir o agente496.
Mas, pelos critérios trazidos nas normas presentes no ordenamento jurídico, assim
como por aqueles adotados em decisões dos Tribunais brasileiros, com acréscimo dos
ensinamentos doutrinários antes analisados, alinhados, sobretudo, à experiência ocorrida
em outros Países, é possível traçar certos limites com razoabilidade.
Pela própria legislação brasileira, é possível encontrar critérios que podem ser
utilizados na verificação de um dano social. Embora de forma equivocada, como antes
referido, quando se disse que a condição econômica das partes ou a intensidade da culpa
não devem influenciar o cálculo da indenização por danos morais, a Lei nº 4.117/62
(Código Brasileiro de Telecomunicações), em seu artigo 84, apresentava critérios para que
o julgador balizasse a sua decisão na imposição de indenização nos casos de calúnia ou
difamação: “na estimação do dano moral, o juiz terá em conta, notadamente, a posição
social ou política do ofendido, a situação econômica do ofensor, a intensidade do ânimo
de ofender, a gravidade e repercussão da ofensa”.
496
É certo dizer que muitos dos problemas na aplicação de uma sanção punitiva poderiam ser resolvidos pelo
cálculo acertado de um valor indenizatório justo. Ao compensar o dano extrapatrimonial de forma correta,
levando-se em conta realmente a extensão da lesão, seria, na maioria dos casos, até dispensável a aplicação
de sanções punitivas. No entanto, trabalhando os Tribunais com valores pré-fixados para cada situação –
retirados de outras decisões semelhantes –, acaba-se nem reparando, nem punindo adequadamente.
219
Da mesma forma, a Lei de Imprensa trouxe critérios que deveriam ser levados em
conta pelo magistrado na aplicação da indenização (art. 53):
I – a intensidade do sofrimento do ofendido, a gravidade, a natureza e repercussão da
ofensa e a posição social e política do ofendido;
II – a intensidade do dolo ou grau de culpa do responsável, sua situação econômica e sua
conduta anterior em ação criminal ou cível fundada em abuso no exercício da liberdade de
manifestação do pensamento e informação;
III – a retratação espontânea e cabal, antes da propositura da ação penal ou cível, a
publicação ou transmissão da resposta ou pedido de retificação nos prazos previstos na lei
e independentemente de intervenção judicial, e a extensão da reparação por esse meio
obtida pelo ofendido.
Explica, nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves, que, ainda que revogados os
dispositivos de ambas as leis, algumas recomendações continuam a ser aplicadas na
generalidade dos casos, como a situação econômica do lesado; a intensidade do
sofrimento; a gravidade, a natureza e a repercussão da ofensa; o grau de culpa e a situação
econômica do ofensor, bem como as circunstâncias que envolveram os fatos497.
Mas a norma que melhor condensa os critérios que serão doravante tratados é o
Decreto nº 2.181/1997, que trata da organização do Sistema Nacional do Consumidor –
SNDC, que assim dispõe:
“Art. 26. Consideram-se circunstâncias agravantes:
I - ser o infrator reincidente;
II - ter o infrator, comprovadamente, cometido a prática infrativa para obter
vantagens indevidas;
497
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição,
São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 570/572.
220
III - trazer a prática infrativa conseqüências danosas à saúde ou à segurança do
consumidor;
IV - deixar o infrator, tendo conhecimento do ato lesivo, de tomar as
providências para evitar ou mitigar suas conseqüências;
V - ter o infrator agido com dolo;
VI - ocasionar a prática infrativa dano coletivo ou ter caráter repetitivo;
VII - ter a prática infrativa ocorrido em detrimento de menor de dezoito ou
maior de sessenta anos ou de pessoas portadoras de deficiência física, mental
ou sensorial, interditadas ou não;
VIII - dissimular-se a natureza ilícita do ato ou atividade;
IX - ser a conduta infrativa praticada aproveitando-se o infrator de grave crise
econômica ou da condição cultural, social ou econômica da vítima, ou, ainda,
por ocasião de calamidade.
(...)
Art. 28. Observado o disposto no art. 24 deste Decreto pela autoridade
competente, a pena de multa será fixada considerando-se a gravidade da prática
infrativa, a extensão do dano causado aos consumidores, a vantagem auferida
com o ato infrativo e a condição econômica do infrator, respeitados os
parâmetros estabelecidos no parágrafo único do art. 57 da Lei nº 8.078, de
1990”.
Mesmo que os critérios sejam utilizados indevidamente – em sua maioria – para a
apuração e quantificação de um dano moral, não são estranhos ao ordenamento jurídico
brasileiro, podendo enquadrar-se aos casos de dano social.
221
Inicialmente, quanto à análise da conduta do agente causador do dano, é possível
definir que poderão ser verificados os danos sociais, especialmente, a partir da constatação
do conhecimento do réu acerca de sua conduta contrária à lei ou pelo desprezo quanto à
ilegalidade de seu ato, ou ainda quando tomar ele a decisão de prosseguir com a conduta
lesiva (a intensidade do ânimo de ofender, prevista no CBT, também presente no
julgamento do caso Broome VS. Cassel & Co. Ltda), sob a perspectiva de que a vantagem
material obtida seja maior do que a indenização eventualmente paga.
Ou seja, a ilicitude da conduta do agente causador do dano é por ele sabida ou
pouco se importa ele com a sua eventual ilegalidade, agindo sem se preocupar ou mesmo
com o intuito de prejudicar outrem ou obter vantagem indevida498.
Obviamente, há casos em que a atividade voltada ao dano mostra-se evidente, sem
a necessidade de uma análise mais profunda a respeito da conduta, especialmente quando
há repetição da mesma ação ou omissão lesiva.
Nas outras situações, não se tratará de verificar a real intenção do lesante, na prática
do dano, já que seria tortuoso à vítima conseguir comprová-la, mas mais de constatar se
deveria ele ter conhecimento da ilicitude de sua conduta ou mesmo se deveria ter adotado
condutas preventivas, com o intuito de afastar ou diminuir o dano, caso possível, ainda que
remota499 a sua verificação, mas preferiu não fazê-lo ou demonstrou indiferença na adoção
da proteção que poderia implementar.
É em razão dessa verificação que, nos EUA, os punitive damages são aplicados
apenas nos casos de dolo ou culpa grave, não cabendo indenizações para os casos de
simples negligência ou imprudência. No ordenamento jurídico brasileiro estar-se-ia
próximo das figuras do dolo eventual e da culpa consciente, como antes referido, o que
498
San Tiago Dantas, há várias décadas, já apontava para a tendência de admissão de uma gradação da culpa,
para graduar o montante da reparação, exercendo uma função repressiva, punitiva, ordenando uma
“reparação maior quando a culpa for lata, quando a culpa for pesada, e uma reparação menor à medida
que se atinge a esfera mais leve da culpa”. DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. Vol II, Rio de
Janeiro: Editora Rio, 1983, p. 102.
499
A ocorrência remota de um dano deverá ser analisada a partir do caso concreto. Se essa hipótese de dano
tiver relação com a atividade do agente, poderá ser verificada a ocorrência de dano social, mesmo se adotadas
as medidas de proteção exigidas por Lei. Do contrário, caso não haja qualquer relação, deverá ser verificada a
conduta do agente, para saber se era seu dever prever essa remota hipótese de dano e adotar as medidas de
prevenção cabíveis.
222
deve ser levado em conta pelo julgador. A análise da culpa ou dolo do agente, então, deve
ser apurada tanto em relação à consciência sobre a ilicitude de sua conduta, quanto à
ausência de adoção das medidas preventivas.
Nessa esteira, o caso BMW of North America, Inc. vs. Gore traz outros importantes
fundamentos, relacionados ao grau de reprovabilidade da conduta do réu, para a aplicação
de indenização punitiva, que podem ser transportados para a análise do dano social, a
respeito da repetição da atividade danosa (a conduta anterior em ação criminal ou cível
referida na Lei de Imprensa), que também deve ser acrescida à equação para a verificação
da conduta, assim como para o cômputo da indenização, na medida em que demonstrará
ser o réu recalcitrante, confirmando a pouca importância que apresenta em relação à sua
ilicitude, assim como a sua intenção de prejudicar outrem ou auferir vantagem indevida.
Essa também a lição trazida por Maria Celina Bodin de Moraes, ao explicitar as hipóteses
de aplicação de indenizações punitivas, quando da verificação de “prática danosa
reiterada”500.
Da mesma forma, deve-se apurar se o prejuízo foi resultado de uma ação
intencional ou fraudulenta (a intensidade do dolo ou grau de culpa do responsável presente
na Lei de Imprensa e também no julgamento do caso Broome VS. Cassel & Co. Ltda), ou
se decorreu de mero acidente.
Como antes dito, a análise da culpa do agente apenas dificultará a indenização das
vítimas, ainda mais quando se tratar de responsabilidade objetiva. No entanto, há casos em
que fica evidente a prática intencional ou fraudulenta, sendo desnecessária qualquer
perscrutação por parte do ofendido, de modo a permitir a utilização de tal critério,
podendo-se afastar a hipótese de mero acidente, passível de configurar um caso fortuito ou
uma força maior. Mas a constatação de ação intencional ou fraudulenta em direção ao dano
verificado delineará a lesão social, assim como poderá majorar o valor indenizatório.
Decerto, a reunião de um ou vários desses fatores em desfavor do agente causador
do dano nem sempre configurará um dano social, dependendo essa afirmação da análise do
caso concreto. Por outro lado, a ausência de qualquer desses fatores tornará qualquer
500
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 263.
223
condenação temerária, e deverá eximir o agente de responsabilidade, ao menos por dano
social, podendo-se eventualmente discutir a ocorrência de danos moral e/ou patrimonial
causados às vítimas diretas.
Por esse motivo que não pode passar sem atenção o alerta feito no julgado do caso
Rookes vs. Barnard, antes esmiuçado, no sentido de que qualquer elemento que agrave ou
atenue a conduta do réu deve ser levado em consideração para a aplicação de uma sanção
punitiva. Assim a sua reincidência na mesma prática lesiva ou mesmo a participação em
outras atividades ilícitas, ou, por outro lado, a adoção de medidas protetivas ou auxílio às
vítimas.
Parece bastante clara a intenção da Responsabilidade Civil na reparação dos
prejudicados com a prática de condutas danosas e, atualmente, na prevenção da ocorrência
ou reiteração dos danos501. Por óbvio, devem ser prestigiados aqueles que obram pela
mitigação do prejuízo alheio, na adoção de condutas preferencialmente antes da ocorrência
do dano, mas também após a sua efetivação, como forma de contribuir para o
restabelecimento da vítima, no aspecto individual ou coletivo.
Certamente, é necessário que o ordenamento jurídico prestigie aqueles que adotam
medidas extraordinárias de prevenção, caso contrário, qual será a ênfase de um agente
econômico ao destinar recursos que poderiam ser direcionados a diversas outras
finalidades para obtenção de lucro, quando ciente de que isto de nada valerá na
eventualidade de um julgamento desfavorável em uma demanda de responsabilidade civil,
ainda mais quando a condenação atingir o mesmo patamar daqueles mesmos
empreendedores que adotaram as medidas ordinárias de prevenção de riscos ou, pior, que
nenhuma providência tomaram para mitigar esses riscos de danos? Parece até mesmo que o
incentivo à adoção de tais medidas mostra-se mais eficaz para o agente evitar o dano do
que simplesmente aplicar-se uma pena em caso de ocorrência da lesão.
501
O parágrafo único do artigo 944 do Código Civil dispõe que a indenização será reduzida, caso se verifique
desproporção entre a gravidade da culpa e o dano.
224
Dessa forma, a apuração do quantum que será destinado à indenização por dano
social deverá levar em conta as medidas preventivas adotadas pelo agente causador da
lesão, ou mesmo se contribuiu para que o prejuízo fosse minorado.
Saindo da análise da conduta do agente e partindo-se à análise da dimensão do
dano, deve-se analisar se o prejuízo causado foi físico ou meramente econômico.
Logicamente, a lesão física será capaz de revelar com mais veemência a ocorrência de um
dano social, por importar dano à bem de suprema importância, reverberando também no
valor da indenização.
Da mesma sorte, a natureza e a gravidade do dano servirão (a gravidade e
repercussão da ofensa são previstas no CBT), muitas vezes, como critério definidor da
ocorrência de um dano social.
Utilizando-se o exemplo de uma plataforma de petróleo que proporciona um
derramamento, e que torna impróprio o mar para banho, pesca e outras atividades, e, pior,
causa doenças à população, pode ser verificada uma lesão social, mesmo que comprovada
a adoção das medidas preventivas e de proteção contra acidentes. De fato, por se tratar de
dano gravíssimo, e de possível ocorrência, relacionado à atividade do agente, poderá haver
constatação de dano social, se outras medidas, além daquelas mínimas exigidas em Lei ou
pelos órgãos que regulamentem o setor, pudessem ter sido implementadas e não o foram.
Manifestamente, a natureza e gravidade da lesão são fatores preponderantes na
constatação do ocorrido, na medida em que, mesmo constatada atitude insultuosa do agente
ofensor, que seria capaz de provocar um mal à coesão social, pode ser que o dano ocorrido
seja tão simplório que seja ele compensado pela mera reposição patrimonial, assim como
pela vergonha trazida ao lesante em razão da ação judicial que sofreu.
Imagine-se, nesse sentido, uma tentativa de fraude em cartelas de jogo de
quermesse, realizada em um determinado clube, mas que fosse aberta ao público, sendo o
lesante conhecido e querido pelos presentes e organizadores do evento. Descobre-se não
apenas a fraude, mas que foi ela praticada nos últimos eventos similares, pelo mesmo
fraudador. Possivelmente, a reposição do prejuízo material sofrido pelas pessoas lá
225
presentes e o vexame sofrido pelo fraudador sejam suficientes para satisfazer a consciência
coletiva, ainda que possam estar presentes os elementos caracterizadores de um dano
social.
Não é possível desvincular a reprovabilidade da conduta da gravidade da lesão. Os
fatores subjetivos relacionados ao lesante devem estar relacionados com elementos
objetivos do evento lesivo, para que se apure o tamanho da indenização. Por isso que, por
exemplo, uma conduta negligentemente grosseira, que traga lesão à integridade física da
vítima, poderá apresentar indenização superior a uma outra ação, cometida com dolo, que
afete a sua privacidade. Esses elementos subjetivos devem, portanto, ser avaliados de
acordo com a espécie de interesse jurídico violado e a extensão e a intensidade do dano502.
Assim, deve ser levada em conta a gravidade e a repercussão desse dano, se ele de
fato trouxe constrangimento e mal estar social, se ultrapassou a esfera individual das
vítimas, como também o bem que foi atingido, se de maior ou menor importância, ou seja,
se foi ferido o patrimônio social e aviltada a dignidade humana.
Aqui se encaixam os requisitos trazidos por Matilde Zavala de Gonzáles, para quem
se deve avaliar, inicialmente, a entidade afetada e a gravidade da lesão; o valor do bem
lesado em seu aspecto extrapatrimonial (valor artístico, histórico etc.), quando não for
possível atribuir um valor de mercado; o tempo necessário para a restauração do bem; a
possibilidade de reparação do bem e a dimensão social do interesse afetado503.
Quanto à dimensão social do interesse afetado, deve-se levar em conta também o
patrimônio físico da coletividade que tenha sido atingido. Tratando-se de lesão à bem
cultural, natural etc., importante ter em conta o tempo necessário para a sua restauração. A
conta, então, deve também se basear no tempo em que a sociedade ficará privada de
502
André Gustavo Corrêa de Andrade explica que, caso desvinculados esses fatores subjetivos dos elementos
objetivos, a responsabilidade civil estaria desempenhando um papel que é próprio da moral, não do Direito,
preocupada apenas com as boas e más intenções do homem, e não com as ações e suas consequências. In
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na
experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009, p.307.
503
GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009, p.
360.
226
usufruir do bem atingido. Dessa sorte, apura-se o tempo de privação em relação ao bem
social atingido e qual a dimensão e repercussão social desse bem atingido.
Demais disso, pela experimentação inglesa a respeito dos punitive damages, onde a
ideia de punição é aplicada de forma balizada e coerente, também se mostra pertinente a
utilização de alguns critérios, que podem ser incorporados para a aplicação do Dano
Social, no sentido que a indenização advinda desse tipo de lesão deve ser atribuída
somente quando a verba relativa à compensação da vítima (em danos materiais e morais)
não for suficiente para preencher a finalidade da Responsabilidade Civil (a regra “if, but
only if”).
Como antes dito, a sanção civil punitiva deve ser aplicada excepcionalmente, como
sanção por ter o ofendido incorrido em condutas sumamente demeritórias, com vistas ao
seu desencorajamento e dos demais potenciais transgressores das normas, visando o
aspecto preventivo da responsabilidade civil504. Ou seja, ela é subsidiária à retribuição
proporcionada pela indenização505.
Isso porque, por diversas vezes, verifica-se que a indenização da vítima, nas
categorias de danos já existentes (dano material e moral), é suficiente para integrar tanto a
função reparadora, quanto preventiva da Responsabilidade Civil. Com efeito,
principalmente em atenção às condições financeiras do lesante, o valor por ele despendido
no pagamento da vítima direta do dano, além de ser suficiente para compensá-la, já revela
a sua efetiva punição, mostrando-se desnecessária a destinação de uma outra indenização,
relacionada aos danos sofridos pela sociedade, porquanto satisfeita ela pela real
possibilidade de que eles não serão novamente praticados.
Ao analisar os critérios trazidos pelo Código Civil de Québec, Daniel de Andrade
Levy informa que esse referido elemento apresenta-se especialmente necessário, já que a
análise de se a reparação dos danos material e moral, por si só, já não seria suficiente para
504
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 26.
505
Consigna João Casillo que a sanção punitiva é secundária, funcionando mais com caráter intimidatório
para evitar o dano, porém, também para fazer com que o causador sinta uma verdadeira pena após a prática
de seu ilícito. CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. 2ª edição, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1994, p. 83.
227
desestimular o agente a repetir a conduta é essencial, sob o risco de haver uma punição
generalizada506. E, logicamente, o afastamento de uma eventual repetição do dano e a
demonstração da reprovação social perante aquela conduta são a finalidade principal da
indenização por dano social, para que se retome a tranquilidade e bem-estar coletivos.
Daí advém um novo critério, utilizado também na Inglaterra, como também pelo
ordenamento jurídico brasileiro, na aplicação de danos extrapatrimoniais – ainda que
ocorra indevidamente, como alhures exposto –, a respeito da condição econômica do
ofensor.
Não seria crível aplicar uma indenização/sanção que não seja sentida pelo ofensor,
e que já esteja integrada nos seus cálculos econômicos. Quanto maior a corporação ou a
empresa, ou se ela é dominante no mercado, maior será o seu potencial ou melhores serão
os seus mecanismos de causar danos, devendo-se levar em conta o seu poder econômico,
para que realmente remova-se o lucro obtido e puna-se o seu comportamento, visando o
desestímulo e a prevenção507.
Por outro lado, não seria interessante à própria sociedade, a não ser que o causador
do dano tenha a única intenção ou não se importe em provocar o mal, como, por exemplo,
uma empresa que, reiteradamente, polua o meio ambiente, não importem as multas e
restrições a ela impostas, excluir alguém que traga investimentos e empregos à economia,
por motivo de impossibilidade de continuidade das atividades em razão do valor da
indenização.
Com efeito, o princípio constitucional da solidariedade social, como reflexo da
dignidade humana, impõe restrição à regra de reparação integral do dano. O montante da
indenização não pode privar o ofensor dos bens necessários à manutenção de uma vida
506
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas
Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 117/118.
507
Nessa mesma linha, André Gustavo Corrêa de Andrade consigna que a condição econômica do ofensor
deve ser levada em consideração porque relacionada diretamente com a função retributivo-dissuasória da
indenização punitiva. Somente será desempenhado eficazmente o papel de prevenir a prática de novos ilícitos
se a punição for fixada em montante suficiente para afetar ou incomodar o lesante. ANDRADE, André
Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common
law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 302.
228
digna, devendo ser dada interpretação extensiva ao parágrafo único do art. 928 do Código
Civil508.
É nessa esteira também que entra a análise do lucro auferido pelo lesante com a
prática danosa, devendo ser esse fator devidamente escrutinizado para o cálculo do
quantum. Caso a decisão que o condene ao pagamento de indenização pelo cometimento
de um dano social arbitre valor inferior ao lucro obtido, certamente de nada ela valerá.
Assim, caso tenha havido lucro, a indenização partirá exatamente do montante auferido
pelo lesante, utilizando-se, a partir de então, os demais critérios para o cálculo do quantum.
Não apenas esse lucro, mas deve a indenização se prestar a impedir que seja
realizada uma lógica econômica pelo agente, para não se permitir que o custo do risco seja
aplicado ao custo do produto, coletivizando, assim, a sua perda. O montante, então, deve
superar qualquer possibilidade de raciocínio econômico feito anteriormente pelo ofensor
para a prática do dano509.
Dessa forma, deve ser feita uma profunda análise da situação financeira do lesante,
para que se apure um valor que possa ser suportado, sem levá-lo à falência ou impedir o
bom andamento de suas atividades – caso a sua atividade seja séria, sem buscar apenas as
práticas maliciosas ou desarranjo do mercado –, mas que, de outra forma, também seja
capaz de balizar uma indenização que não seja inofensiva ou inócua, que incentive a não
praticar mais o ato e investir em formas de proteção e prevenção dos riscos. Tal como
508
TEPEDINO, Gustavo et alli. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Volume
II, Rio de Janeiro: Renovar, pp. 861/862.
509
Agustín Álvarez define alguns dos critérios ora tratados, presentes no artigo 51 da Lei de Defesa do
Consumidor argentina, que permitiu a aplicação de uma multa civil, pelo juiz, em determinados casos, e que
vem permitindo a aplicação de indenização punitiva pela jurisprudência, a saber: “la gravedad del hecho se
relaciona directamente con el juicio de reprochabilidad alagente dañador: una grave indiferencia, una
violación conciente y deliberada a los estándares de seguridad, graves omisiones al deber de información,
en fin, cualquier actitud que importe intercambiar la seguridad del producto por el aumento de las
ganancias(...)la solvencia del proveedor: es necesario disuadir la conducta, por lo que debe ser un “apriete
al bolsillo”, sin resultar confiscatória; la cuantía del beneficio obtenido: esto se relaciona directamente con
la institución del enriquecimiento si causa; la reincidencia: se propone que se agrave la multa para el
reincidente, ya que em esos casos, ocurre que la primera no ha cumplido su función disuasoria" in
ÁLVAREZ, Agustín. Repensando la Incorporación de los Daños Punitivos. Academia Nacional de Derecho
y Ciencias Sociales de Córdoba. In http://www.acaderc.org.ar/doctrina/articulos/repensando-laincorporacion-de-los-danos-punitivos, consultado em 2/10/2013.
229
ocorre no Direito Penal, quando da aplicação da pena de multa510, deve ser verificada a
condição econômica do réu511, pela análise de sua renda média, incluído o salário, bens e
capitais.
Américo Luís Martins da Silva explica que uma pena pecuniária deve servir ao
ofensor como um “exemplo marcante”, traduzida por uma importante diminuição de seu
patrimônio material, eis que, se assim não for, de nada valerá a sua condenação e,
consequentemente, o desestímulo que a indenização pretendia impor. Dessa forma, sugere
que seja feita uma pesquisa no patrimônio do ofensor, a fim de que possa o juiz arbitrar
uma indenização suficiente para atender ao caráter punitivo da Responsabilidade Civil,
reprimindo o impulso de agir novamente de maneira condenável512.
Também, as multas civis autorizadas para a punição da empresa ou impostas em
casos semelhantes devem servir como critério para a aplicação da indenização pelo dano
social. Certamente, os órgãos governamentais de regulamentação dos diversos setores da
economia impõem, em determinados casos, rigorosas multas às empresas que deixem de
atender as regras de mercado, revelando-se, assim, um bis in idem a imposição de uma
indenização, caso já atendida a função de punição e desestimulo pela pena administrativa.
Mas, da mesma forma como devem impedir a aplicação de indenizações
extravagantes, essas multas civis devem servir como baliza ao julgador, para a apuração do
quantum indenizatório em ações cujo objeto seja semelhante ao que levou à aplicação da
penalidade.
Por não ser uma ciência exata, o direito depende muito da casuística, como um
balão de ensaios, até que seja atingido um ponto certo equilíbrio. Com efeito, na aplicação
dessas multas, muitas das vezes, os órgãos governamentais realizam estudos a respeito das
empresas, e chegam a um valor que que acaba cumprindo a sua função de impedir a
continuação do resultado lesivo. Até mesmo essas multas, por vezes, tem que ser
510
Código Penal Brasileiro “Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da
quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360
(trezentos e sessenta) dias-multa”.
511
Código Penal Brasileiro “Art. 60 - Na fixação da pena de multa o juiz deve atender, principalmente, à
situação econômica do réu”.
512
SILVA, Américo Luís Martins da. O Dano Moral e a sua Reparação. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, pp. 321/322.
230
novamente aplicadas ou majoradas, em razão de reiteração da conduta irregular da
empresa. Assim, deve existir essa troca de experiências entre Poderes que procuram uma
mesma finalidade.
Finalmente, devem ser levadas em conta as demais ações promovidas por outras
vítimas, para o cálculo da indenização, ou seja, deve existir um inter-relacionamento entre
as ações individuais, para evitar, também, a ruína do ofensor (overkill), tanto também em
razão da natureza preventiva de tal verba. Destinada ao pagamento de uma das ações,
torna-se difícil justificar concessões ulteriores, pelo pressuposto de que cumprido o seu
papel513.
Pela análise de todos esses critérios, vê-se que a indenização deve atender ao
princípio da moderação, como aquilo necessário para cuidar ao interesse público, ao
mesmo tempo em que não deve ser menosprezada, de modo a adentrar aos custos regulares
do agente causador do dano.
Nota-se que muitos dos critérios ora utilizados já apresentavam até mesmo previsão
legal no ordenamento jurídico brasileiro, sendo que outros são admitidos pela doutrina e
jurisprudência para o cômputo de danos morais. Apenas necessitam eles de
complementação e adequação, para que possam também ser estabelecidos em uma nova
categoria de dano. Na realidade, parecem ter sido eles elaborados, inicialmente, para a
aplicação na análise de um dano social.
Além disso, percebe-se que a indenização por dano social apenas deve ser deferida
quando a conduta do réu, assim como a gravidade do dano, após o pagamento dos danos
513
GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e
da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 91/92. O mesmo autor apresenta diversas
opções de solução para esse problema: proibição de concessão de indenização punitiva em caso de desastre
em massa; concessão da indenização punitiva apenas para a primeira vítima que deduzir corretamente sua
pretensão em juízo; concessão da indenização para todas as pessoas que ingressaram com a ação, mas em
valor reduzido; conceder, em primeiro lugar, as verbas compensatórias, uma vez pagas, destinar um único
valor a título de indenizações punitivas, a ser dividido entre todas as vítimas que tenham sido compensadas;
recolher o valor da indenização para um fundo, somente acessível para as vítimas depois de determinado
prazo de tempo; conceder indenização para todas as vítimas até atingir um plafond limite, com um
mecanismo de compensação para tornar igual o valor de todas as indenizações punitivas concedidas;
conceder indenização punitiva a todas as vítimas, até ficar provada a iminência da falência ou insolvência do
réu, quando, então, interrompem-se as punições; postular uma única indenização punitiva em ação coletiva.
(p. 93).
231
pessoais (danos morais e materiais), forem tão repreensíveis que importem a imposição de
outras sanções, para que se atinjam as finalidades retributiva, punitiva e preventiva.
A aplicação da indenização, portanto, deverá obedecer certas regras, para que o
magistrado não estabeleça, à sua própria consciência e liberalidade, o valor que bem
entender como forma de punição ao agente causador do dano.
Como visto, a atuação do agente e a gravidade do dano, assim como as medidas
preventivas adotadas serão critérios de definição do quantum indenizatório. No entanto,
deverá ser levada em conta a condição econômica do lesante, a partir de análise séria de
sua capacidade financeira. Mediante essa fórmula, será mais seguro definir um valor de
indenização que não extrapole a sua finalidade, tampouco leve à ruína o agente lesante.
4.6 ALGUMAS SITUAÇÕES EM QUE PODE SER VERIFICADA A
OCORRÊNCIA DE UM DANO SOCIAL
Em diversos campos e áreas do direito é possível a materialização do dano social,
podendo aparecer tanto numa infração a um direito relacionado ao consumo de produtos ou
serviços, ou a um dano causado ao meio ambiente, bem como numa concorrência desleal
etc.
Mas é importante apresentar algumas situações, alguns exemplos de molduras,
sobre as quais seja possível enquadrar esse dano social, para que os aplicadores do direito
saibam tenham exemplos de situações passíveis da verificação de um dano social. Não
significa dizer que haverá uma taxação das possibilidades de ocorrência do dano social.
Pelo contrário, o seu campo de atuação é vastíssimo. Apenas se procura facilitar a
aplicação do instituto, por meio da apresentação de algumas hipóteses e exemplos.
Talvez, a maneira de concretização de um dano social mais bem delineada ocorra
naquelas situações já há muito combatidas pelos EUA e que vêm sendo observadas
atentamente na França, quando da prática de um ilícito lucrativo (faute lucrative), em que
os lucros auferidos pelo agente causador do dano são maiores do que os eventuais
232
prejuízos que, eventualmente, terá ele de suportar, estimulando, então, a prática dessa
conduta lesiva. Certamente, o autor do dano age levando em conta o eventual prejuízo que
terá de suportar, caso tenha contra si promovida uma ação judicial que seja julgada
procedente, formulando um verdadeiro raciocínio econômico514.
Note-se que, nesse tipo de situação, a mera estipulação de uma indenização, a título
de dano moral, na maior parte dos casos, não será suficiente para desestimular a reiteração
do ato, na medida em que o lucro auferido será superior ao prejuízo causado ao agente.
Assim, impõe-se uma condenação à indenização que não apenas compense os
danos verificados, mas suplante o valor do lucro obtido, de forma a efetivamente trazer
uma punição ao agente causador do dano515.
Certamente, o dano social apresenta campo de atuação bastante vasto na ideia dos
ilícitos lucrativos, especialmente aqueles praticados por grandes empresas em detrimento
dos consumidores de seus produtos ou do meio ambiente. Alguns exemplos de julgados
anteriormente examinados, como o da montadora de veículos que decidiu não implementar
medida de segurança em seus automóveis, o que representaria um custo mínimo,
aumentando, assim, sobremaneira, as mortes em acidentes, ou a empresa que polui o rio,
contando já com um valor determinado de multa que irá receber, são exemplos típicos de
ilícitos lucrativos que evidenciam, também, um dano social.
Também no campo das lesões reiteradas de menor expressão ou microlesões, que,
isoladamente consideradas, possivelmente não são passíveis de configurar um dano de
natureza extrapatrimonial, pode estar enquadrado um dano social.
514
Em importante precedente do Superior Tribunal de Justiça, em caso de difamação ocorrida em matéria
veiculada pela imprensa, ficou bem delineada essa matemática utilizada para a publicação de fatos, verazes
ou não, que acabam lesando direitos personalíssimos. Restou consignado que a imprensa leva em conta a
expectativa de receita que o ilícito irá lhe proporcionar, sopesada com os valores fixados pelos Tribunais, a
título de indenização por danos morais, impondo-se reparação de caráter pedagógico. STJ, Terceira Turma,
REsp nº 355.392/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 26/3/2002, consultado em 26/3/2013.
515
Nelson Rosenvald comenta sobre uma nova figura sobre a qual se comenta hoje na Inglaterra e nos EUA,
denominada disgorgement, instituída para superar a lacuna deixada pelos compensatory damages, os quais
apenas propiciam à vítima aquilo que ela perdeu em termos patrimoniais e extrapatrimoniais. No
disgorgement, o ofendido tem acesso a todos os valores indevidamente obtidos pelo ofensor (lucro), a partir
da lesão causada. Procura-se, assim, combater não apenas a execução de lucros através de um
comportamento antijurídico, como também o de evitar que outros sujeitos sejam incentivados a perseguir
comportamentos análogos. In ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a
pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 106/107.
233
Explica-se: em muitas lesões, cujo grau de ilicitude pode chegar a ser praticamente
insignificante, quando isoladamente consideradas, não se vislumbraria a necessidade de
arbitramento de indenização por dano moral, até mesmo por não se vislumbrar uma
agressão aos direitos personalíssimos da vítima.
Pode ocorrer, entretanto, de essas mesmas lesões, praticadas de forma reiterada por
uma determinada pessoa (física ou jurídica), numa visão macroscópica, acarretarem um
dano extrapatrimonial a uma coletividade. Assim, o que seria enxergado pelo magistrado
como um mero aborrecimento ao indivíduo, numa visão de dimensão vertical, será visto
como uma lesão homogênea da sociedade, para o que deverá haver compensação e
punição. É notadamente a soma dessas lesões de pouca intensidade que justifica a
condenação do agente.
Assim, por exemplo, uma instituição financeira que lance cobranças indevidas, de
valores insignificantes, na fatura de seus clientes – o que esbarraria até nas hipóteses de
ilícito lucrativo –, ou ainda uma pessoa jurídica que oferece serviço de atendimento ao
cliente claramente defeituoso, como é o caso das operadoras de televisão paga, em que o
consumidor apenas consegue resolver alguma pendência – quando resolve – após horas de
ligação telefônica.
Possivelmente, individualizadas, não são condutas capazes de gerar dano moral.
Mesmo se a vítima consegue qualquer condenação nesse tipo, ela se mostra insuficiente a
compelir à prestação de um serviço melhor, devendo, então, reconhecer-se um dano social,
cuja indenização seja capaz de estimular a otimização do serviço ou a prevenção de
defeitos516.
516
Um julgado do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a hipótese de que ”a condenação à composição
dos danos morais teve relevância social”, por ausência de informação adequada prestada por companhia de
telefonia fixa, em pacote telefônico cheio de limitações, configurando “ofensa à dignidade dos consumidores
e aos interesses econômicos”, o que levou a empresa à condenação por danos morais coletivos e difusos. STJ,
Terceira Turma, REsp nº 1.291.213/SC, relator Ministro Sidnei Beneti, julgado em 30/8/2012, consultado em
26/3/2013. Em outra decisão, de lavra do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na qual a empresa era
processada por ter fechado os postos de atendimento pessoal dos usuários, substituindo-os pelo modelo de
Central de Atendimento Telefônico ao usuário (call center), o Relator conseguiu traduzir a compensação
trazida pelo dano moral coletivo a essas lesões reiteradas de menor expressão: “Assim, penso que o dano
moral coletivo tem lugar nas hipóteses onde exista um ato ilícito que, tomado individualmente, tem pouca
relevância para cada pessoa; mas, frente à coletividade, assume proporções que afrontam o senso comum.”
TRF 4ª Região, Terceira Turma, Apelação Cível nº 2002.71.09.000115-2/RS, Relatora Vânia Hack de
Almeida, julgado em 3/10/2006, consultado em 20/1/2013.
234
Com efeito, a lógica dessas microlesões, cujo grau de ilicitude é, individualmente
considerado, pouco significante, o que acaba até mesmo por levar a vítima a não adotar
qualquer medida judicial, em razão da diminuta ou mesmo inexistente indenização e
pequeno prejuízo sofrido, permite a sua prática desenfreada pelos agentes. Nesse campo,
deve o Poder Judiciário valer-se da aplicação de indenizações por evidente dano social
praticado, de forma a punir a prática lesiva proposital e incentivar a adoção de melhores
serviços.
É, inclusive, nessa seara que Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barbosa e Maria
Celina Bodin de Moraes encontram campo para a aplicação de indenizações punitivas,
quando “a extensão do dano é insignificante e as indenizações, por reflexo, atingem
valores irrisórios, se comparados ao lucro obtido pelo próprio agente com a conduta
danosa”517.
Por fim, os danos de excepcional gravidade, a que Maria Celina Bodin de Moraes
refere como aquela “conduta particularmente ultrajante, ou insultuosa, em relação à
consciência coletiva, ou, ainda, quando se der o caso, não incomum, de prática danosa
reiterada”518. Nesse caso, verifica-se o dano social pela conduta particularmente ultrajante
e grave, praticada pelo agente, sem a observância da proteção e segurança que se esperava
em seu agir, pela qual a mera reparação de cada uma das vítimas mostra-se insuficiente
perante a magnitude do dano. Há, portanto, considerável impacto à sociedade, rebaixando a
sua qualidade de vida.
Em cada uma dessas molduras podem ser enquadrados danos de diversas naturezas,
voltados ao meio ambiente, relações de consumo, direito comercial etc., certo de que
algumas dessas hipóteses serão doravante abordadas com maior profundidade.
4.6.1 dano social no ambiente
517
TEPEDINO, Gustavo et alli. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Volume
II, Rio de Janeiro: Renovar, p. 864.
518
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana..., p. 263.
235
Foi em razão do incontido crescimento das populações e do progresso científico e
tecnológico – que permitiu ao homem a completa dominação do meio ambiente –, que
houve um agravamento da ação destruidora da natureza. Essas conquistas humanas vieram
acompanhadas de contaminação de rios, lagos, destruição de florestas e reservas
biológicas, o que afetou, diretamente, a saúde pública, com a proliferação de doenças
decorrentes dessas agressões ao ecossistema519.
Certamente, em razão desse rebaixamento da qualidade de vida social, com
prejuízo ao patrimônio ambiental, a aplicação da teoria do dano social pode ser sentida
também, e até de maneira mais evidente, ao contrário do que entendia Antonio Junqueira
de Azevedo520, no direito ambiental, a partir das condutas lesivas causadas ao meio
ambiente que, a toda evidência, acabam sendo um verdadeiro fator de estresse e, por
conseguinte, de rebaixando da qualidade de vida da população.
De fato, o dano ambiental não se limita àqueles que usufruem diretamente da área
atingida pela conduta lesiva. Pelo contrário, por se tratar de bem difuso e, por isso mesmo,
transcendental à tradicional divisão político-jurídica público/privado, os danos a ele
causados atingem, direta ou indiretamente, toda a coletividade. A lesão não ocorre num
simples bem público, mas no patrimônio ambiental, que é afeto a toda população.
Com efeito, ainda que o impacto resultante da lesão não seja prontamente percebido
e sentido por parcela dos cidadãos, as notáveis variações climáticas, na qualidade do ar, na
transmissão de doenças e no próprio ecossistema, que perde o seu natural balanço, revelam
o prejuízo que é sofrido, ao longo dos anos, por todos aqueles que compartilham desse
sistema equilibrado que o meio ambiente preservado procura proporcionar, o que acaba
influenciando diretamente na vida de todos os membros da coletividade, eis que
acometidos, ainda que por vias transversas, dos males que tais danos podem representar.
519
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil: de acordo com o novo código civil. 8ª edição,
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 86.
520
Entendia o autor que o dano ambiental é “material”, verificável pela biologia e ecologia, enquanto o dano
social representa um elemento “social”, apurável pela sociologia e estatística, o que impediria a confusão. In
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 383.
236
Esse desequilíbrio socioambiental aparece, consequentemente, como mais um dos
gatilhos do estresse e do rebaixamento da qualidade de vida da coletividade, merecendo,
então, o devido balanceamento.
Apenas a título de curiosidade, a poluição ambiental urbana, a exemplo dos lixos
lançados nas vias públicas, mostra-se, atualmente, uma das causas que mais gera estresse
entre a população. Tome-se a poluição sonora, figura tão presente na sociedade urbana, que
foi até mesmo tipificada como crime ambiental521, e é, hoje, um dos grandes vilões do
prejuízo causado à saúde humana, como revela Hélio Schwartsman, ao referir que
acadêmicos agindo na intersecção entre economia, psicologia e sociologia estudaram o
impacto de fatores como dinheiro, emprego, liberdade, ambiente e filhos na percepção de
bem-estar do indivíduo, sendo uma das conclusões obtidas a de que o barulho ao qual o
indivíduo pode ser submetido diariamente configura uma das situações com a qual ele não
consegue se habituar522.
521
Lei 9.605/98, “Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam
resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição
significativa da flora:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.
§ 2º Se o crime:
I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana;
II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das
áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população;
III - causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de
uma comunidade;
IV - dificultar ou impedir o uso público das praias;
V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias
oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim o
exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou
irreversível.”
522
In jornal Folha de São Paulo, 15 de abril de 2012, p. 12.
237
Da mesma forma a poluição por emissão de odores mal cheirosos, quando
verificado o abuso no direito do uso de propriedade, afetando bem socioambiental, fazendo
com que haja “comprometimento da qualidade de vida das futuras gerações”, também
pode resultar em grave lesão ao patrimônio ambiental, como revela Patrícia Faga Iglecias
Lemos523.
Por esses motivos que, ao falar em dano ambiental, é praticamente instantânea a
ligação feita com os danos sociais. Ao tratar desse específico tema, na tentativa de expor o
cabimento do dano moral coletivo ligado ao direito ambiental, Marcos Paulo de Souza
Miranda pondera que o dano moral coletivo não surge da reunião de danos individuais
isoladamente considerados, na medida em que possui autonomia, justamente por constituir
uma lesão a valores compartilhados pela sociedade como um todo524.
De acordo com o que explicam José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo
Ayala, o dano extrapatrimonial está muito vinculado ao direito da personalidade, mas não a
ele restringido, ao menos da forma como ele é conhecido tradicionalmente. Notadamente,
os direitos personalíssimos são tidos como atinentes à pessoa física; contudo, deve ele
também englobar uma caracterização mais abrangente e solidária, especialmente no que
diz respeito ao dano ambiental, tratando-se, dessa forma, ao mesmo tempo, de um direito
individual e um direito da coletividade525.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está ligado a um direito
fundamental de todos e se reporta à qualidade de vida, que se configura, por sua vez, como
valor imaterial da coletividade. Como consignam os autores, “...os direitos de
personalidade manifestam-se como uma categoria da história, por serem mutáveis no
tempo e no espaço. O direito de personalidade é uma categoria que foi idealizada para
satisfazer exigências da tutela da pessoa, que são determinadas pelas contínuas mutações
523
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Meio Ambiente e Responsabilidade Civil do Proprietário. 2ª edição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 135/136.
524
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Configuração e indenizabilidade de danos morais coletivos
decorrentes de lesões a bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro. In Revista de Direito Ambiental,
ano 14, nº 54, abr-jun/2009, p. 232.
525
LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo
extrapatrimonial. Teoria e prática. 3ª edição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, pp. 261/269.
238
das relações sociais, o que implica a sua conceituação como categoria apta a receber
novas instâncias sociais”.526.
Evidentemente, o patrimônio ambiental é integrado por bens dotados de um
especial e significativo valor para a comunidade e que são verdadeiros marcos referenciais
– tangíveis ou intangíveis – das formas de ser, fazer e viver dos diferentes grupos
formadores da nação. Esse patrimônio ambiental mostra-se, então, elemento indispensável
para assegurar a saúde e a qualidade de vida das pessoas e, além disso, e mais, de sua
própria dignidade, garantida a sua fruição, acesso e proteção pela própria Carta Maior.
Com efeito, a tutela dos interesses metaindividuais implica o reconhecimento de toda uma
coletividade como sujeito de direitos, logo, portadora também de atributos subjetivos527.
A proteção do meio ambiente, assim, acaba ficando intrínseca aos direitos
personalíssimos coletivos, pois “Trata-se de um direito fundamental, intergeracional,
intercomunitário, constitucionalmente garantido e ligado a um direito da personalidade,
posto que diz respeito à qualidade de vida da coletividade”528. É inegável, portanto, que o
meio ambiente ecologicamente equilibrado seja um dos bens e valores indispensáveis à
personalidade humana. Esse equilíbrio pode garantir a qualidade de vida da população e,
consequentemente, a dignidade social.
É nessa toada que João Menezes Leitão explica existirem direitos da personalidade
ligados à pessoa ou intrínsecos, como a integridade física e moral, direito à liberdade etc.,
e, de outro lado, os direitos da personalidade periféricos ou extrínsecos – por oposição ao
centro representado pela própria pessoa – relativos às relações com as coisas e com os
outros, como é o caso do direito ao meio ambiente529.
E é na lesão desse patrimônio ambiental que a coletividade pode ser afetada quanto
a seus valores imateriais, em razão do sentimento coletivo de desapreço e de
526
LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo
extrapatrimonial. Teoria e prática. 3ª edição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, pp. 269/275.
527
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Configuração e indenizabilidade de danos morais coletivos
decorrentes de lesões..., pp. 233/250.
528
LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo
extrapatrimonial..., p. 276.
529
LEITÃO, João Menezes. Instrumentos de Direito Privado para proteção do ambiente. In Revista Jurídica
do Urbanismo e do Ambiente, v. 7, p. 59, Coimbra, jun. 1997. pp. 31/65.
239
intranquilidade que surge na apresentação de tamanha afronta a esses direitos, delineandose, assim, os danos sociais.
A proteção dos valores morais não fica, então, adstrita aos valores individuais da
pessoa física. De fato, a coletividade pode ser afetada quanto a seus valores
extrapatrimoniais, que devem ser reparados. Adverte André Gustavo Corrêa de Andrade
que o direito ao meio ambiente saudável e equilibrado deve ser reconhecido como
integrante da personalidade humana, por ser essencial ao seu pleno desenvolvimento530.
Assim, o dano ambiental extrapatrimonial configura-se, nas palavras de Patrícia
Faga Iglecias Lemos, como a “injusta lesão da esfera moral de determinada comunidade,
ou seja, a violação antijurídica de determinado círculo de valores coletivos531”.
Manifestamente, o problema no reconhecimento, pela doutrina e jurisprudência,
desse dano extrapatrimonial causado à coletividade, parece ficar mais atenuado na hipótese
de dano ambiental. Isso porque, como indica Marcos Paulo de Souza Miranda, nem toda
lesão ao patrimônio ambiental implicará na consequente configuração desses danos morais
coletivos, na medida em que estes surgem exatamente naqueles casos em que a ofensa
perpetrada seja marcada pela destacada significância, superando os limites da
tolerabilidade social, “afrontando relações de aceitabilidade média ou afetando a
tranquilidade anímica e espiritual da coletividade, que tem alterada negativamente a sua
qualidade de vida e, ademais, vê seus valores mais caros (patrimônio ideal) afetados”532.
Parece óbvio concluir, assim, que o dano ambiental acarreta lesão a todos esses valores
considerados tão indispensáveis pela sociedade.
Como mostra Carlos Alberto Bittar Filho, o dano ambiental não consiste somente
na lesão ao equilíbrio ecológico, mas afeta também outros valores precípuos da
coletividade a ele ligados, como a qualidade de vida e a saúde. Esse dano é particularmente
530
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. A Evolução do Conceito de Dano Moral. In
http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_civil/a_evolucao_do_conceito_de_dano
_moral.pdf, consultado em 13/2/2012, pp. 24/25.
531
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental: Responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente.
2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 149.
532
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Configuração e indenizabilidade de danos morais coletivos
decorrentes de lesões..., p. 234.
240
perverso porque rompe o equilíbrio do ecossistema, colocando em risco todos os seus
elementos, ao mesmo tempo em que agride a saúde e a qualidade de vida da comunidade533
Nesse sentido, José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala distinguem o
dano extrapatrimonial ambiental subjetivo e objetivo: o dano extrapatrimonial ambiental
subjetivo é aquele que atinge a pessoa do indivíduo, provocando sofrimento psíquico, de
afeição ou físico à vítima. Por outro lado, o dano extrapatrimonial ambiental objetivo é
aquele difuso, e se caracteriza pelo prejuízo proporcionado a patrimônio ideal da
coletividade534, relacionado, portanto, à ideia de um dano social.
Annelise Monteiro Steigleder divide ainda o dano extrapatrimonial ambiental da
seguinte forma: a) dano moral coletivo, caracterizado pela diminuição da qualidade de vida
e bem-estar da coletividade; b) dano social, identificado pela privação imposta à
coletividade de gozo e fruição do equilíbrio ambiental proporcionado pelos microbens
ambientais degradados; e c) dano ao valor intrínseco do meio ambiente, vinculado ao
reconhecimento de um valor ao meio ambiente em si considerado – e, portanto, dissociado
de sua utilidade ou valor econômico, já que “decorre da irreversibilidade do dano
ambiental, no sentido de que a Natureza jamais se repete”535.
Parece, ao entanto, que todas as categorias podem se ligar a uma única espécie de
dano, o dano social, muito embora seja nítida essa possibilidade de identificação de
diversas espécies de prejuízos, resultantes de uma única ação ou omissão.
Demais disso, essa possibilidade de indenização pelos danos extrapatrimoniais
decorrentes da lesão ao meio ambiente aparece na própria legislação ambiental. Na linha
do estatuído no texto constitucional, o art. 4º da Lei 6.938/1981 dispõe que a Política
Nacional do Meio Ambiente visará, entre outras medidas, a “imposição, ao poluidor e ao
533
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus
Navigandi , Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/
edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005), Disponível em:
http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013.
534
LEITE, José Rubens Morato et AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo
extrapatrimonial..., pp. 287/289.
535
STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental
no Direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 174.
241
predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da
contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”.
Por sua vez, o art. 14, § 1º da mesma Lei estabelece a responsabilidade objetiva do
poluidor, determinando a indenização ou reparação dos danos causados ao meio ambiente
e a terceiros. Importante salientar que esses deveres de indenização e recuperação
ambientais são providências ressarcitórias de natureza civil, que buscam, simultânea e
complementarmente, a restauração do status quo ante do meio ambiente afetado e a
reversão à coletividade dos benefícios econômicos auferidos com a utilização ilegal e
individual de bem que, nos termos do art. 225 da Constituição, é “de uso comum do povo”.
Então, por contemplar o direito ambiental essa regra da reparação integral, de rigor
a imposição não apenas da obrigação de reparação da área danificada, pelo poluidor, mas
também a compensação por esse dano extrapatrimonial sentido pela sociedade, tanto pela
lesão em si, como pela privação de utilização desse bem difuso, ainda também pelo
período que intercalará a degradação da biota e a sua reconstituição, como menciona
Álvaro Luiz Valery Mirra536.
Fato é que se mostra indiscutível a possibilidade de a coletividade ser afetada, em
seus valores extrapatrimoniais, não só em decorrência da existência de sentimentos
subjetivos de perda – esses sentimentos, na realidade, não devem nem ser apurados –, mas
também em razão da violação a uma carga de valores éticos comuns, verificáveis
objetivamente, especialmente quando violados bens a ela tão caros e raros.
Como revela Patrícia Faga Iglecias Lemos, trata a responsabilidade por danos
extrapatrimoniais ambientais de uma possibilidade de “efetiva e integral compensação do
dano”, perfazendo a função não apenas de recuperar o meio ambiente afetado, mas de
impor verdadeiro caráter punitivo e pedagógico ao agente degradador que volte a praticar
tal ato danoso537.
536
MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação Civil Pública e a Reparação do Dano Ambiental. 2ª ed., São Paulo:
Editora Juarez de Oliveira, 2004, pp. 314/315. O Autor ainda explica que essa reparação integral deve
conduzir o meio ambiente e a sociedade a uma situação, na medida do possível, equivalente a de que seriam
beneficiários se o dano não tivesse sido causado.
537
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental..., p. 150.
242
Da análise da jurisprudência a respeito desse assunto, verifica-se caso emblemático,
de repercussão internacional, julgado pela Cámara de Apelaciones em lo Civil y Comercial
de Azul, Sala A, na Argentina, em que litigavam a Municipalidad de Tandil e a T.A. La
Estrella AS538, em que houve condenação a danos morais coletivos, pela diminuição dos
bens que tem valor fundamental na vida do homem: a paz, a tranquilidade de espírito, a
liberdade individual, a integridade física, a honra e os mais caros afetos.
Tratava-se de caso em que o ônibus da empresa demandada chocou-se com uma
fonte e algumas esculturas tradicionais da cidade, o que provocou danos de grande monta
em tais bens. Além de pleitear os danos materiais sofridos pela Municipalidade, foi
também formulado pedido de indenização pelos danos morais acarretados à comunidade.
Por certo, o magistrado julgou inteiramente procedente a ação, assentando que o
bem coletivo trata-se de um componente do funcionamento social, na medida em que,
quando afetado, configurado resta o dano extrapatrimonial, pela lesão do bem em si
mesmo, independentemente das repercussões patrimoniais que tal fato possa acarretar. A
lesão surge, assim, a respeito do interesse extrapatrimonial e coletivo que recai sobre o
bem atingido.
Interessante também ressaltar que a verba atribuída à compensação desses danos
extrapatrimoniais, conforme constante da decisão, foi destinada para “obras de ornato y
salubridad del presupuesto municipal”539.
Analisada a questão sob o ponto de vista dos Tribunais brasileiros, percebe-se que a
jurisprudência, até pouco tempo, era ainda bastante vacilante. Embora alguns Tribunais, de
forma tímida, reconhecessem essa dimensão atual apresentada pelo direito ambiental, a
reparação desses danos extrapatrimoniais encontrava óbice no posicionamento do Superior
Tribunal de Justiça, que não os reconhecia.
538
In http://wp.cedha.net/wp-content/uploads/2011/07/1996-10-22-municipalidad-de-tandil.pdf, consultado
em 20/12/2012.
539
GLOBAL JUDGES SYMPOSIUM ON SUSTAINABLE DELOPMENT AND THE ROLE OF LAW,
Johannesburg,
South
África,18-20
August
2002:
El
caso
de
Argentina,
in
http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=municipalidad%20de%20tandil%20e%20a%20t.a.%20la%20e
strella%20as&source=web&cd=21&ved=0CFcQFjAAOBQ&url=http%3A%2F%2Fwww.unep.org%2Flaw
%2FSymposium%2FDocuments%2FCountry_papers%2FARGENTINA.doc&ei=_lPaT4PsD8ms2gXsmJH
MBg&usg=AFQjCNGXIIZDvrNvnOEwGSkHPzSoSgIYIA, consultado em 14/6/2012.
243
No entanto, esse cenário começou a se modificar, a partir da, quiçá, mais
emblemática decisão, que ateou fogo a esse estopim, proferida pela 2ª Câmara de Direito
Civil, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos autos da Apelação Cível de nº
2001.001.14586, julgada em 7 de agosto de 2002540. Tratava-se de ação civil pública
promovida pelo Município do Rio de Janeiro contra Artur da Rocha Mendes Neto, para
reparação por danos materiais e morais sofridos pela coletividade em virtude de
desmatamento, sem autorização, de área preservada.
Após ter o juízo monocrático dado provimento parcial à ação, condenando o réu ao
desfazimento das obras até então executadas, retirada do entulho e replantio de 2800
mudas de espécies nativas, no prazo de 90 dias, acabando, no entanto, por afastar o pedido
de indenização por danos extrapatrimoniais sofridos pela coletividade, a Municipalidade
recorreu, buscando haver a compensação dessa lesão.
Atendendo ao pleito da Municipalidade, o TJRJ reformou a decisão, para condenar
o réu ao pagamento equivalente a 200 salários mínimos, referentes a danos
extrapatrimoniais, com o reconhecimento da “perda de valores ambientais pela
coletividade”. Constatada a impossibilidade de restituição do bem ao estado anterior,
entendeu a Câmara Julgadora que “nesse interregno a degradação ambiental se prolonga
com os danos evidentes à coletividade, pela perda de qualidade de vida nesse período”.
Ao entanto, o STJ, quando teve a oportunidade de manifestar-se, podendo
solidificar o posicionamento pela adoção da reparação dos danos extrapatrimoniais
decorrentes da lesão ao meio ambiente, acabou apresentando linha de verdadeiro
retrocesso, negando tal reparação, por maioria de votos541. O óbice encontrado por aqueles
que rejeitaram o pedido de indenização por danos morais foi a necessidade de vinculação
de tal prejuízo à noção de “dor, de sofrimento psíquico, de caráter individual”.
Coube ao relator do voto – acompanhado pelo Ministro José Delgado – deixar a
chama ainda acesa, ao aclarar que o ordenamento constitucional, respeitantemente à
540
In www.tjrj.jus.br, Relatora Desembargadora Maria Raimunda Teixeira De Azevedo, consultado em
18/6/2012.
541
In www.stj.jus.br, Recurso Especial nº 598.281/MG, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, julgado
em 2/5/2005, consultado em 18/6/2012.
244
proteção do dano moral, ultrapassou a barreira do indivíduo “para abranger o dano
extrapatrimoninal à pessoa juídica e à coletividade”. Entendeu o Ministro que o meio
ambiente se trata de interesse difuso, e que a lesão a esse patrimônio caracteriza
diminuição da qualidade de vida da população, “pelo desequilíbrio ecológico, pela lesão a
um determinado espaço protegido, acarreta incômodos físicos ou lesões à saúde da
coletividade...”. O dano moral ambiental estaria, então, mais ligado à “transgressão do
sentimento coletivo, consubstanciado no sofrimento da comunidade, ou do grupo social,
diante de determinada lesão” do que à repercussão física da lesão no meio ambiente.
Ocorre que, apresentada novamente a possibilidade de discussão da matéria ao
mesmo relator desse anterior recurso, o Ministro Luiz Fux, fez-se prevalecer, no
julgamento do Recurso Especial de nº 625.249/PR542, aquela anterior orientação por ele
apresentada, quanto à possibilidade de cumulação de pedidos condenatórios de obrigação
de prestação pessoal (fazer e não fazer), com obrigação de pagar quantia, em sede de ação
civil pública, abrindo importante precedente para o reconhecimento do dano
extrapatrimonial coletivo atrelado ao dano ambiental.
A partir desse precedente, outros julgamentos favoráveis à adoção do dano
extrapatrimonial coletivo relacionado ao dano ambiental sobrevieram, sendo interessante
mencionar um em específico, julgado em meados de 2010543, de relatoria do Ministro
Herman Benjamin, que ordenou a devolução dos autos ao Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, para que apurasse se havia ou não ocorrido lesão extrapatrimonial coletiva oriunda
de danos ambientais. Alguns trechos da referida decisão merecem maior destaque:
“...a legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e
coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes seja mais favorável e
melhor possa viabilizar, no plano da eficácia, a prestação jurisdicional e a ratio
essendi de sua garantia. Logo, na exegese do art. 3º da Lei 7.347/85, a
conjunção “ou” opera com valor aditivo, não introduz alternativa excludente.
Aplica-se o princípio da reparação in integrum ao dano ambiental, que é
542
In www.stj.jus.br, Recurso Especial nº 625.249/PR, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, julgado
em 15/8/2006, consultado em 17/6/2012.
543
In www.stj.jus.br, Recurso Especial nº 1.114.893/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Herman
Benjamin, julgado em 16/3/2010, consultado em 17/6/2012.
245
multifacetário (ética, temporal e ecologicamente falando, mas também quanto
ao vasto universo das vítimas, que vão do indivíduo isolado à coletividade, às
gerações futuras e aos próprios processos ecológicos em si mesmos
considerados). Se a restauração ao status quo ante do bem lesado pelo
degradador for imediata e completa, não há falar, como regra, em indenização.
A obrigação de recuperar in natura o meio ambiente degradado é compatível e
cumulável com indenização pecuniária por eventuais prejuízos sofridos, até a
restauração plena do bem lesado, assim como por aqueles de natureza
extrapatrimonial, como o dano moral coletivo. Além disso, devem reverter à
coletividade os benefícios econômicos que o degradador auferiu com a
exploração ilegal de recursos ambientais, “bem de uso comum do povo”, nos
termos do art. 225, caput, da Constituição Federal, quando realizada em local
ou circunstâncias impróprias, ou sem licença regularmente expedida ou em
desacordo com os seus termos e condicionantes”.
Esse entendimento do STJ representou não apenas um avanço da própria
jurisprudência, mas a solidificação de conceitos que, desde a Constituição Federal de 1988,
ingressaram ao ordenamento jurídico brasileiro, além de constatar a real situação que hoje
se apresenta à sociedade, quanto à necessidade de preservação ambiental para a
manutenção do próprio equilíbrio da vida social.
Resta apenas atentar para o fato de que, tratando-se de direito ambiental, fica mais
clara a destinação desses valores à própria coletividade que sofreu o dano, e não ao Estado,
que nem poderia ser o destinatário dessa condenação pecuniária, por não ser o bem afetado
público, mas difuso.
Isso porque, nos termos do artigo 13 da Lei 7.347/85, os valores resultantes de
condenação dos responsáveis pelo dano ambiental reverterão ao Fundo de Recuperação
dos Bens Lesados, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens prejudicados.
Verifica-se, então, que da análise do direito ambiental, em face de lesões ao
patrimônio ambiental, capazes de provocar rebaixamento da qualidade de vida da
coletividade, além de uma falha grave no dever geral de segurança, de rigor será o
246
reconhecimento de um dano social, para que seja adotada uma política de prevenção – pela
punição ou dissuasão – desses gravíssimos danos.
4.6.2 dano social no consumo
Com a derrocada do modelo individualista sobre o qual o direito era alicerçado, por
razão da insuficiência da tutela individual privada como resposta à complexidade das
relações estabelecidas a partir do século XIX, deu-se lugar a uma visão coletiva de
resolução de conflitos, encarando-se a colevidade como verdadeiro sujeito de direito.
As novas concepções ético-sociais do Estado de Direito Social e da sociedade
solidária, acentuou, no direito privado, a noção de dimensão do social, com crescente
eticização e número de normas imperativas reguladoras das relações particulares.
De igual modo, vinca-se a necessidade da proteção do consumidor em geral, com
especial realce para a prevenção dos acidentes, mediante a ampliação da normatização
técnica de qualidade e de segurança dos produtos para salvaguarda da saúde e integridade
física dos cidadãos544, assim como pelo controle das cláusulas abusivas, da publicidade
enganosa ou abusiva, do direito de informar e receber informação etc. Assim que a
Constituição Federal de 1988 expressamente reconhece a existência de direitos difusos e
coletivos, determinando, ainda, a proteção dos interesses dos consumidores.
Dando cumprimento ao disposto na Constituição Federal, que determinou a
promoção, pelo Estado, da defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), em março de 1991
entrou em vigor o Código de Defesa do Consumidor, que provocou verdadeira revolução
no campo da responsabilidade civil, com a criação de um microssistema de regras voltadas
ao consumo de produtos e serviços, fundando-se no dever de segurança que deve observar
o fornecedor, por meio da imputação de responsabilidade administrativa, civil e até penal
de inobservância dessas normas.
544
SILVA, João Calvão da. Responsabilidade Civil do Produtor. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 99/101.
247
Baseado na prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, o Código de
Defesa do Consumidor orienta-se pelo equilíbrio de uma relação em que numa das pontas
figura um sujeito vulnerável e, muitas vezes, hipossuficiente, primando pela proteção dos
conflitos individuais e coletivos daí surgidos, resguardando, de forma expressa, os
interesses transindividuais (art 6º, VI; art. 81).
Afirma-se, até mesmo, que a regulamentação jurídica das relações de consumo está
voltada essencialmente para a tutela coletiva, no aspecto transindividual. Não existiriam,
nesse sentido, lides verdadeiramente individuais no campo das relações de consumo.
Mesmo aquelas demandas individuais apresentam uma problemática muito mais ampla, de
caráter coletivo. “Portanto, a dimensão coletiva entranha-se na essência de qualquer
matéria que envolva os direitos do consumidor”545.
Verifica-se, então, que o Código de Defesa do Consumidor volta-se,
essencialmente, à proteção da coletividade, mesmo que resolvendo conflitos aparentemente
individuais.
Mas, tal qual ocorreu no direito ambiental, em que as conquistas humanas abriram
espaço para a devastação da fauna e da flora, em relação ao consumo, o crescimento da
interatividade da população e da dispersão de produtos no mercado acabou resultando em
diversas práticas danosas. Há, assim, expressa previsão de repulsa aos fatos violadores dos
valores coletivos no Código de Defesa do Consumidor, que podem decorrer de variadas
situações546, apresentando essa área um campo fértil para a aplicação da teoria dos danos
sociais.
Sergio Cavalieri Filho explica que o fundamento da responsabilidade do fornecedor
é o dever de segurança – decorrente do risco da atividade –, que constitui verdadeira
cláusula geral. Esse dever de segurança representa uma garantia de idoneidade, e depende
do casamento de dois elementos: a desconformidade com uma expectativa legítima do
consumidor e a capacidade de causar acidente de consumo. Outro aspecto desse dever é a
545
GARCIA, José Augusto. O princípio da dimensão coletiva das relações de consumo: reflexos no
“processo do consumidor”, especialmente quanto aos danos morais e às conciliações. Revista de Direito do
Consumidor, vol. 28, out/dez, pp. 90/91.
546
SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. Biblioteca de Direito do
Consumidor – vol. 38, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 171/172.
248
sua natureza ambulatorial, ou seja, não circunscrita à relação contratual de compra e venda,
mas, ao contrário, acompanha o produto ou serviço por onde circular durante toda a sua
existência útil547.
Não basta, dessa sorte, que o produto ou o serviço sejam simplesmente adequados
aos fins a que se destinam (qualidade-adequação), mas também que sejam seguros
(qualidade-segurança), protegendo-se a incolumidade física dos consumidores, em atenção
à regra-objetivo do art. 4º, caput, que impõe o respeito à dignidade, à saúde e à segurança
do consumidor548.
Certamente, essa obrigação de segurança referida por Antonio Junqueira de
Azevedo549, ainda que não ligada estritamente às relações de consumo, é mais facilmente
compreendida no âmbito consumerista.
De fato, o Código de Defesa do Consumidor deixa claro um dever geral de
segurança, ao tornar responsável pelo dano o fornecedor, mesmo que inexista relação
contratual, quando trata do consumidor por equiparação550. Dessa forma que, aquele que
coloca um produto ou serviço em circulação no mercado de consumo tem a obrigação legal
de ofertá-lo sem risco ao consumidor no que diz respeito à sua saúde, à sua incolumidade
física ou psíquica, e ao seu patrimônio, devendo zelar pela segurança, pela integridade
física e psíquica de seus consumidores ou potenciais compradores551.
547
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007, pp.
462/464.
548
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008, p. 80.
549
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 381.
550
“Art. 2º, § único Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que
hajam intervindo nas relações de consumo."
“Art. 17 Para os efeitos desta Seção, que cuida da responsabilidade dos fornecedores pelo fato do produto e
do serviço, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento"
“Art. 29 Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas
determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas"
551
MELO, Nehemias Domingos de. Dano Moral nas Relações de Consumo: doutrina e jurisprudência. 2ª
edição, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 95.
249
O defeito apresentado pelo produto ou serviço está relacionado justamente com
essa falta de segurança que o consumidor podia esperar legitimamente, examinada de
acordo com o modo de seu fornecimento, o resultado e o risco552.
Da proteção da confiança, consagrada como princípio geral no Código de Defesa
do Consumidor, decorre a expectativa de uma garantia de segurança razoável pelo
consumidor, que apresenta natureza extracontratual553, ou seja, revela um verdadeiro dever
específico que extrapola os limites da relação contratual.
E é aí que entra a necessidade de prevenção de riscos, proporcionada por uma
sanção punitiva aplicada ao fornecedor ou produtor.
Ao demonstrar a insuficiência da sanção meramente compensatória nas relações de
consumo, André Gustavo Corrêa de Andrade apresenta uma pesquisa feita pelo Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, com base em todos os processos que tramitaram na Justiça do
Rio de Janeiro entre janeiro de 2002 e abril de 2004, pela qual se constatou que um terço se
referia a ações de reparação de danos. Além disso, verificou-se que apenas dezesseis
empresas figuraram como rés em 320.589 ações de reparação propostas nos juizados
especiais cíveis, o que representava 44,9% de todas as ações de indenização distribuídas.
Outros dados mostravam que 32,3% das ações de reparação diziam respeito a apenas 32
empresas, sendo que o índice de sucumbência delas beirava a totalidade das demandas. O
valor a que foram condenadas excedia, em média, 923 dias para ser pago em cada
demanda554.
Destaque-se que, a partir dessa pesquisa, ficou fácil observar a contingência feita
pelas empresas para o pagamento das indenizações que iriam suportar, preferindo esperar
esses 923 dias ou mais a pagar os consumidores lesados, apontando, dessa maneira, para a
552
BDINE JUNIOR, Hamid Charaf. Responsabilidade civil pelo fato do serviço. P. 383. In LOTUFO, Renan
et MARTINS, Fernando Rodrigues (coord.). 20 anos de Código de Defesa do Consumidor: conquistas,
desafios e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 379/393.
553
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 5ª edição, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2006, p. 1199.
554
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na
experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009, pp. 257/258.
250
total insuficiência da sanção meramente compensatória para a prevenção de danos
relacionados às condutas abusivas e ilegais por elas praticadas.
A partir desses dados, repara-se que, no campo do direito consumerista, o dano
social encontra amplo espaço de atuação, podendo ser verificado tanto em situações que,
contrariando o valor da confiança – consubstanciado no princípio da boa-fé objetiva –,
rebaixam a qualidade de vida da sociedade, até em outras que colocam em xeque a
segurança coletiva, passando, também, pela prática das microlesões, que possibilita uma
boa fonte para ilícitos lucrativos.
Como assevera Fernando Noronha, foi o próprio Código de Defesa do Consumidor
que disciplinou juridicamente a matéria relativa aos interesses transindividuais,
classificando-os em coletivos e difusos (art. 81)555, justamente em razão da enormidade das
lesões a direitos supraindividuais que essa área do direito parece comportar.
Deveras, em diversas modalidades de contratos inseridos no mercado de consumo,
os consumidores mantêm relações cativas de longa duração com fornecedores ou
demandam bens essenciais. E, com efeito, tanto os contratos de longa duração, que acabam
“aprisionando” o consumidor naquela relação, quanto a essencialidade do bem objeto desse
“aprisionamento” depõem a favor da manutenção de práticas empresariais ofensivas a
interesses metaindividuais, sem que existam mecanismos suficientes capazes de combater
essa dinâmica perversa.
A exemplo disso pode-se citar, novamente, os contratos de seguro, especialmente
aqueles voltados à assistência privada à saúde, que, por sua essencialidade, acabam
possibilitando a prática de evidentes abusividades.
O seguro, a rigor, induz um grande mutualismo, em que a seguradora gere um
fundo composto pela contribuição de uma massa de segurados, sujeitos ao mesmo tipo de
risco, cujos prêmios não se calculam em função da situação individual de cada qual, mas
555
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações : Fundamentos do Direito das Obrigações: Introdução à
Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 573.
251
por previsão estatística e atuarial que implique numa repartição proporcional das perdas
globais.
Isto significa que a maior potencialidade de sinistro ou uso dos benefícios do plano
em função da idade deve ser fator considerado e calculado já nas contratações em geral,
sempre tomado o caráter cooperativo e mutualístico do seguro.
No entanto, observa-se que as seguradoras acabam impondo reajustes abusivos,
especialmente àqueles segurados que se encontram em idade mais avançada, denunciando
a sua clara intenção de desestimulá-los a permanecer na avença, por não ser interessante a
sua manutenção em função da maior quantidade de sinistros.
Dessa sorte, ainda que se admitisse que a idade fosse um fator de reajuste do
prêmio do seguro, segundo faixas pré-estabelecidas, não poderia ela constituir uma real
barreira a que o consumidor permanecesse sendo atendido pelo plano, ou seja, a que
persistisse cobertura que no caso é essencial (contrato chamado existencial).
Logicamente, essa intenção evidente de desestimular os segurados mais velhos em
permanecer nos contratos acaba refletindo no patrimônio moral da coletividade,
rebaixando a sua qualidade de vida. Isso porque, quando mais precisam se valer desse tipo
de cobertura, ainda mais quando por longos anos pagaram o prêmio relativo ao seguro, são
obrigados a abandonar o contrato, em razão da desarrazoabilidade dos reajustes.
Cria-se insegurança na sociedade e, consequentemente, rebaixa-se a sua qualidade
de vida. Fica-se com a impressão de que, pago o contrato por longuíssimos anos, quando
mais dele se precisa, não é mais permitida a sua utilização, unicamente em razão do
avançar da idade, ficando agora esses indivíduos condenados ao falido sistema público de
saúde.
Da mesma forma, caso emblemático refere-se à qualidade do serviço prestado pelas
operadoras de telefonia móvel que, sabidamente, reduzem os investimentos no setor,
proporcionando aos consumidores serviço deficiente. Isso se torna ainda mais grave
quando a própria operadora, de forma intencional, provoca interrupções no sinal de
252
telefonia, justamente para fazer com que o consumidor tenha que efetuar novas ligações,
gastando, assim, mais dinheiro em benefício da operadora.
Ou, mais ainda, da empresa que não enjeita defeito conhecido de produto de sua
fabricação, colocando em risco a saúde dos consumidores. Essa conduta representa a típica
infração ao dever geral de segurança para a qual uma indenização relacionada a danos
morais não se mostra suficiente.
Bom lembrar que o defeito de segurança pressupõe uma periculosidade adquirida
acima do normal, do previsível, quebrando a expectativa do destinatário 556, certo de que a
continuidade ou repetição no desrespeito a esse dever não pode ser encarada como
qualquer falta, devendo haver sanção que garanta a efetividade da prevenção.
Em resumo, fabricantes e fornecedores de produtos que ofendem a saúde e a
segurança de consumidores, órgãos de imprensa que golpeiam a dignidade do cidadão,
empresas que se eximem do instrumento do contrato para obter ganhos ilícitos superiores
aos danos que eventualmente pagarão aos ofendidos. Estas são algumas situações em que a
reparação dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais não inibe os agentes de mercado a
perpetuar o ilícito557.
De fato, alguns fornecedores, para elevar sua margem de lucros, deixam de investir
em mecanismos de prevenção e controle de qualidade mais rigorosos sobre os serviços
prestados, enquanto outros colocam no mercado produtos de qualidade inferior ou que não
atendem a determinados padrões de segurança, preferindo arcar com a reparação de danos
causados aos consumidores, na certeza de que os valores indenizatórios serão muito
inferiores ao investimento que teriam de realizar para o aperfeiçoamento de seus produtos
e serviços.
Nesse cálculo, levam eles em conta a circunstância de que muitas vítimas de danos
decorrentes de fato do produto ou do serviço deixam de procurar o Poder Judiciário, por
556
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 93.
557
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 167/168.
253
razões variadas, que vão da dificuldade em identificar o responsável pelo dano à falta de
disposição para enfrentar um processo judicial, com seus gastos, retardamentos e todas as
suas vicissitudes.
Além disso, os grandes fornecedores, por serem litigantes habituais, normalmente
contam com um corpo de advogados preparados e especializados, o que também contribui
para a redução dos valores indenizatórios.
Os produtores ou fornecedores orientam-se, então, por uma racionalidade
estritamente econômica, pautando-se pelo resultado de uma relação custo/benefício do seu
comportamento em detrimento da lei e do direito alheio. Não é difícil, dessa forma,
perceber por que a sanção meramente compensatória não se mostra suficiente para
compelir os fornecedores a melhorar a qualidade de seus produtos ou aprimorar os seus
serviços.
Por conseguinte, a sanção pecuniária aparece como fator de reequilíbrio do
mercado, por entregar aos consumidores, que constituem a parte sempre mais vulnerável
na relação de consumo, instrumento que lhes estimularia a agir contra atos lesivos de seus
direitos. De outra parte, a indenização punitiva compeliria produtores e fornecedores a
colocar no mercado produtos mais seguros e adequados ao consumo, assim como a prestar
serviços mais eficientes.558
Atualmente, a sociedade pós-moderna baseia-se na corrida pelo lucro, sobreposto a
qualquer outro valor. Hoje não se compram bens, pagam-se parcelas. Os chamarizes
publicitários estimulam um modo correto de se vestir, de comer, de ter. Ou seja, privilegiase mais o ter do que o ser; “passou-se de uma sociedade centrada na oferta para uma
sociedade focada na procura”, numa verdadeira corrida “aos prazeres por meio do
consumo hedonista individualista”, e vive-se em uma época na qual o “elo entre
558
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do
Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
254
desenvolvimento humano e consumo se rompeu”559. Inverte-se a lógica natural das coisas
em prol do consumo desenfreado de bens e serviços.
Afirma Marcelo Bennacchio que a regulação do mercado deve ocorrer por meio da
exclusão dos fornecedores que não respeitem os ditames legais relativos aos direitos do
consumidor por força da inviabilidade econômica de atividade empresarial contrária aos
mandamentos
normativos,
cabendo
comportamentos desses fornecedores
560
à
responsabilidade
civil
a
regulação
dos
.
Por isso que, no cenário atual, ferramentas que previnam os danos provocados no e
pelo consumo mostram-se tão essenciais. Deve-se primar pelo ser, por sua segurança, pela
não exposição a situações que lhes são nocivas, para que não haja uma nova inversão
axiológica, pela qual a propriedade constitui o indivíduo.
Encontram-se diversos exemplos nos Tribunais brasileiros em que a intenção
aclarada dos julgadores era de apresentar uma punição ao fornecedor, em razão de prática
lesiva no consumo, que ficaria impune, caso somente compensado o dano.
O caso mais emblemático, atualmente, refere-se à inscrição do nome do
consumidor, de forma indevida, no rol de maus pagadores561.
559
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias et alli. Consumo Sustentável. Caderno de Investigações Científicas,
volume 3, Secretaria Nacional do Consumidor – SENACON, Ministério da Justiça, Brasília, 2013, disponível
em
http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7BB5920EBA-9DBE-46E9-985E-033900EB51EB%7D,
consultado em 8/1/2014.
560
BENNACCHIO, Marcelo. Responsabilidade civil do comerciante por defeito do produto. P. 359. In
LOTUFO, Renan et MARTINS, Fernando Rodrigues (coord.). 20 anos de Código de Defesa do Consumidor:
conquistas, desafios e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 357/377
561
“ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. RESPONSABILIDADE CIVIL. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM
CADASTRO DE INADIMPLENTES. DANOS MORAIS. VERBA INDENIZATÓRIA FIXADA COM
RAZOABILIDADE (R$ 10.000,00). IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO. AGRAVO REGIMENTAL
DESPROVIDO.
1. O quantum indenizatório fora estipulado em razão das peculiaridades do caso concreto, levando em
consideração o grau da lesividade da conduta ofensiva e a capacidade econômica da parte pagadora, a fim
de cumprir dupla finalidade: amenização da dor sofrida pela vítima e punição do causador do dano,
evitando-se novas ocorrências. Assim, a revisão do valor a ser indenizado somente é possível quando
exorbitante ou irrisória a importância arbitrada, em violação dos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, o que não se observa in casu diante da quantia fixada em R$ 10.000,00 (dez mil reais).
2. Agravo Regimental da Companhia Energética de Pernambuco desprovido”. In www.stj.jus.br, AgRg no
AREsp 361513 / PE, Primeira Turma, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Julgado em 22/10/2013,
consultado em 2/12/2013.
255
Também em relação às operadoras de seguro-saúde e de telefonia celular é possível
encontrar um sem número de ações. Em dois julgados paradigmáticos, aqui já tratados,
proferidos pela Justiça paulista, em que ficou até mesmo reconhecida a prática de um dano
social, com imputação de indenização punitiva pela gravidade da conduta e rebaixamento
da qualidade de vida da sociedade, é possível observar essa tendência que leva à punição
dos bad players.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, em ação promovida por segurado contra
operadora de seguros de assistência à saúde, em que se discutia a negativa de cobertura a
procedimento médico-hospitalar, em atendimento de urgência, por motivo de suposta
ausência de cumprimento das carências contratuais, entendeu por bem aplicar a teoria do
Dano Social.
Concluiu o referido Tribunal que a operadora de seguros havia descumprido as
determinações trazidas pela Lei que regulamenta o setor, além de ter agido contrariamente
ao entendimento fixado na jurisprudência e consolidado em súmula exarada pelo próprio
TJSP.
Contudo, apontou-se, na decisão, que o método tradicional para a condenação da
operadora seria “falível”, motivo pelo qual se justificava uma indenização punitiva.
Deixou bastante claro o relator da decisão que a seguradora auferia lucro “com o não uso
do capital que vem da contribuição dos segurados durante o tempo que não deseja ou,
enquanto não é obrigada a custear esse ou aquele tratamento”.
Assim, em face de um dano reiterado, que atinge milhares de pessoas, seguradas ou
não, e como forma de prestigiar o interesse coletivo, além da celeridade processual,
levando-se em conta as ações similares ou idênticas promovidas por outros segurados, e
admitindo-se, ainda, a função social da responsabilidade civil, com a imposição de uma
medida pedagógica, verificou o TJSP a necessidade de imposição de indenização pelo
verificado dano social, no valor de R$ 1.000.000,00562.
562
www.tjsp.jus.br, 4ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n° 0027158-41.2010.8.26.0564, Julgado
em 18/7/2013, Relator Desembargador Teixeira Leite, consultado em 2/9/2013.
256
O outro precedente refere-se à conduta adotada por operadora de telefonia móvel,
que interrompia as ligações dos consumidores, de maneira propositada, para que eles
tivessem novos gastos com a repetição da chamada. Além da constatação de danos morais
à vítima que ajuizou a ação, baseada justamente nessa quebra de confiança aqui tanto
ressaltada, entendeu também o julgador ser o caso de reconhecimento de um dano social.
Isso porque restou evidente a prática reiterada da lesão, pesem as aviltantes multas
impostas pela agência regulatória de telefonia (ANATEL563) e pelos Procon de outros
Estados, o que indicava uma conduta propositadamente fraudulenta. Traduzindo a
realidade do País, na prática desenfreada de lesões aos consumidores que, quando
repetidas, espraiam-se por todo o corpo social, julgou-se pela aplicação de indenização por
dano social, para rebaixar o lucro indevido e elevar a dignidade humana564.
Percebe-se, portanto, que o ponto central traçado pela norma permite inferir que o
seu objetivo é resguardar a saúde do consumidor, propiciando-lhe um máximo de
segurança diante de qualquer produto ou serviço, independentemente de sua natureza ou
modo de fruição565, cabendo aos julgadores, por meio da principiologia por ela oferecida,
aplicar os mecanismos mais eficazes para a efetivação desses mandamentos.
Busca-se repelir as práticas danosas ilegais e abusivas, que rebaixam a qualidade de
vida da sociedade, atentando contra o seu patrimônio moral, mediante grave ameaça à sua
segurança, traindo a confiança depositada por cada membro da camada social na qualidade
daquele produto ou serviço que é despejado no mercado.
No sistema do Código de Defesa do Consumidor, leis imperativas protegem a
confiança que o consumidor deposita no produto, na marca, na informação que o
acompanha, na sua segurança ao uso e riscos normais ou que razoavelmente dele se espera,
protegendo, em resumo, “a confiança que o consumidor deposita na segurança do produto
563
Em notícia, veiculada no sítio eletrônico da Folha de São Paulo, em 7/8/2012, intitulada TIM derruba
sinal de propósito, diz Anatel, revelouse-se pesquisa feita pela Anatel, que constatou a variação do sinal, e
verificou que a operadora "derrubou" 8,1 milhões de ligações, o que gerou faturamento extra de R$ 4,3
milhões. In http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1132964-tim-derruba-sinal-de-proposito-diz-anatel.shtml,
consultado em 7/8/2012.
564
www.tjsp.jus.br, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Jales, Processo n° 1507/2013,
Julgado em 10/10/2013, Relator Fernando Antônio de Lima, consultado em 30/10/2013.
565
SILVA FILHO, Artur Marques. Responsabilidade Civil por Fato do Produto ou do Serviço. In BITTAR,
Carlos Alberto (coord.). Responsabilidade Civil por Danos a Consumidores. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 24.
257
ou do serviço colocado no mercado”. Essa garantia de segurança deve, justamente, ser
interpretada enquanto reflexo do princípio geral de proteção da confiança566.
4.6.3 dano social e a nova visão da intimidade
Além dessa verificação bastante clara da necessidade de proteção contra as práticas
lesivas ao mercado de consumo e ao meio ambiente, outras aplicações do dano social são
possíveis, especialmente ante a nova formatação das práticas e interações sociais.
Como revela Norberto Bobbio, hoje, as ameaças à vida, à liberdade e à segurança
podem vir do poder sempre maior que as conquistas da ciência e das aplicações dela
derivadas dão a quem está em condições de usá-las, alertando que, na era pós-moderna,
caracterizada pelo enorme progresso, vertiginoso e irreversível, os direitos da nova geração
provêm todos desse aumento do progresso tecnológico567. Certamente, “software,
hardware, leasing, telemática, engineering, franchising, joint-venture... É o orbe jurídico
sendo invadido por um sem-número de palavras e expressões novas, todas frutos de uma
árvore possante, vigorosa, imbatível, que se chama modernidade”568.
Dentre essas preocupações, continua Carlos Alberto Bittar Filho, é citado o
exemplo do direito à privacidade, “que é colocado em sério risco pela possibilidade que os
poderes públicos têm de memorizar todos os dados relativos à vida de uma pessoa e, com
isso, controlar os seus comportamentos sem que ela perceba”569.
566
MARQUES, Claudia Lima et alli. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª edição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 235/236 e 263.
567
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª tiragem, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 229.
568
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus
Navigandi , Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/
edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em:
http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013.
569
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Jus
Navigandi , Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/ 1/ 17), 17 (/revista/
edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005). Disponível em:
http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013, p. 230.
258
Nesse sentido, Stefano Rodotà vem alertando sobre a nova ótica sob a qual o direito
à privacidade deve ser visto: não mais apenas como o direito de estar só, mas também uma
veia condutora à garantia da autodeterminação informativa, ou seja, o direito de constituir
livremente a própria esfera privada, de poder controlar a circulação das próprias
informações570.
Para Rodotà, houve uma inexorável reinvenção histórica da privacidade, baseada na
implementação de valores democráticos. Essa evolução passou do “direito de ser deixado
em paz”, indo em direção ao “direito a controlar a maneira na qual os outros utilizam as
informações a nosso respeito”, culminando numa “proteção de escolhas de vida contra
qualquer forma de controle público e estigma social”, como a “reivindicação dos limites
que protegem o direito de cada indivíduo a não ser simplificado, objetivado, e avaliado
fora de contexto”, com o reconhecimento, pela Corte Constitucional Alemã, por meio de
decisão datada de 1983, da “autodeterminação informativa”571.
Suscita o referido autor que, atualmente, vive-se num tempo em que as questões
relacionadas à proteção de dados pessoais se caracterizam por uma abordagem
marcadamente contraditória, o que ele define como uma “verdadeira esquizofrenia social,
política e institucional”, na medida em que, se, de um lado, asseguram-se novos direitos
com vistas à proteção da intimidade, de outro se criam novas medidas para contornar essas
Leis, de forma a permitir a devassidão de informações referentes à personalidade do
indivíduo572.
Isso ocorre, infelizmente, em razão de uma maior consciência a respeito da
“centralidade de uma política tendente a uma formulação, assim como a uma proteção,
cada vez melhor dos direitos do homem”, que acaba ocasionando uma sistemática violação
de direitos573.
O homem, em razão dos clamores do grupo social que se sobrepõem aos interesses
particulares, tende a ser reduzido a mera estatística. O controle do Estado, voltado a uma
570
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: A privacidade hoje. Organização, seleção e
apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes, Renovar: Rio de Janeiro, 2008, pp. 13/292.
571
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 15.
572
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., pp. 14/15
573
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª tiragem, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 230.
259
política direcionada para os interesses da coletividade, tende a assumir posições marcantes,
relegando a privacidade da pessoa, com sério comprometimento de sua individualidade,
afetando os seus direitos de personalidade, rumando à descaracterização do homemindivíduo, detentor de patrimônio próprio, tornando-o massificado574.
Além de não ser mais vista como um direito fundamental, a privacidade parece ser
frequentemente considerada como um obstáculo à segurança. Desse modo, acaba sendo
sempre relegada a plano inferior por legislações de emergência.
Dessa forma, os dados relativos à intimidade do indivíduo, coletados para um fim
específico, acabam sendo disponibilizados para propósitos diferentes e mesmo para órgãos
do setor público ou privado diversos, tornando as pessoas cada vez mais “transparentes”,
cada vez mais ameaçadas em sua esfera privada (esta vista agora como aquele “conjunto de
ações, comportamentos, opiniões, preferências, informações pessoais, sobre os quais o
interessado pretende manter controle exclusivo”575).
Rodotà cita que a atual sociedade, a qual ele denomina sociedade de vigilância576,
apresenta como figura central o “homem de vidro”. Ou seja, o homem, em razão dessa
vigilância exacerbada, não consegue mais ter controle sobre a sua vida privada, intimidade
e segredo.
Por isso que, nos dias atuais, o direito à privacidade assume novo papel: o de
garantir ao homem o controle sobre os seus dados, caracterizado pela liberdade das
escolhas existenciais e identificado com a “tutela das escolhas de vida contra toda forma
de controle público e estigmatização social”577.
Com efeito, a inviolabilidade da pessoa deve ser reconfigurada e reforçada também
na dimensão eletrônica, “segundo uma nova consideração ofertada ao respeito ao corpo
humano. Devem ser rejeitadas todas as formas de reducionismo”578.
574
REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, pp. 78/79
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 92
576
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 113
577
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 92
578
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 19
575
260
Isso implica na impossibilidade de coleta de dados pessoais se o propósito
específico possa ser alcançado sem o acesso a tais dados. Sem dúvida, a defesa do
exercício da individualidade, traduzido no direito à personalidade, deve se constituir um
dever do Estado579, seja coibindo afrontas a esse direito, seja não invadindo a esfera de
privacidade de cada indivíduo.
Ao mesmo tempo em que a tecnologia ajuda a incrementar a esfera privada,
alargando sua definição, torna-a mais frágil, na medida em que a expõe a diversos novos
tipos de ameaças. Nos Estados Unidos da América, inclusive, houve divulgação da
intenção de empresas, que haviam coletado dados pessoais de milhões de consumidores, de
espalhar no mercado essas informações, de vendê-las a empresas menores, o que tornaria
impossível ao indivíduo ser excluído dessa “lista”, em virtude de sua enorme
disseminação580, para citar apenas um exemplo dessa fragilidade que a tecnologia
proporciona, o que demanda o aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção da
privacidade.
Efetivamente, reformula-se a visão antiga da intimidade, no sentido de instrumento
para realizar a finalidade individual de ser deixado só – como ocorria, marcadamente, com
a burguesia do século XIX, em que a privacidade era utilizada como instrumento de
isolamento do indivíduo burguês em relação à sua própria classe, ou seja, como ferramenta
de aquisição de privilégio por parte de um grupo –, ganhando corpo esse novo escopo de
proteção desse direito, como ferramenta para que indivíduos ou grupos controlem o
exercício dos poderes baseados na distribuição de informações581.
Diante das novas questões que traduzem violações ao direito da privacidade, pelo
conjunto de meios empregados e pelo número de sujeitos interessados, apenas podem ser
corretamente propostas medidas de proteção em termos coletivos.
Os cidadãos, então, devem ter o direito de exercer controle direto sobre aqueles
sujeitos que receberam informações suas, e aos quais é atribuído “um crescente plus579
REIS, Clayton. Dano Moral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 80.
Após mais de 30.000 ligações e cartas recebidas, as empresas decidiram cancelar a venda dessas
informações pessoais. In http://www.nytimes.com/1991/01/24/business/company-news-new-data-baseended-by-lotus-and-equifax.html, publicado em 24/1/1991, consultado em 13/3/2011.
581
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., pp. 24/27
580
261
poder”582. Deve haver controle da sociedade sobre as informações que dela são colhidas,
temperando-se não apenas o fornecimento da informação, mas de fato monitorando-se a
sua exatidão pelo indivíduo.
Isso porque tais informações, embora, num primeiro momento, possam parecer
inofensivas, quando ligadas a outros dados a respeito do indivíduo, enxergado sob o ponto
de vista de uma coletividade, podem gerar efeitos catastróficos, um verdadeiro dano em
cascata.
Surge, então, a privacidade como um direito de acesso à informação dinâmico: não
mais como um simples direito de ser informado, mas de ter acesso a determinadas
categorias de informações que estejam sob a guarda ou de órgãos públicos ou privados583.
Uma das soluções encontradas por Rodotà seria a introdução de procedimentos de
“avaliação de impacto sobre a privacidade”, tal qual ocorre com a avaliação de impacto
ambiental, porquanto a poluição das liberdades civis não ser menos importante que a
poluição do meio ambiente584.
Bastante comum, atualmente, o surgimento misterioso de dívidas no nome de
pessoas que nunca as contraíram, ou a cobrança de débitos já há muito liquidados. Ao
tentar se informar sobre a origem de tais débitos, nem mesmo o suposto credor, que
procedeu a esse apontamento e restringiu o crédito do hipotético devedor, consegue
descrevê-lo. Tampouco se dispõe esse suposto credor a oferecer uma cópia da consulta
realizada em seu banco de dados.
Parece deveras fácil entender, nos dias de hoje, o incompreendido autor, em seu
tempo, Franz Kafka, quando escreveu sua obra prima intitulada O Processo. De forma
visionária, o referido autor aparenta ter previsto como seria o mundo atualmente. As
pessoas são informadas sobre a existência de um processo (uma dívida, por exemplo), a
respeito do qual não conseguem acesso, não sabem qual o seu objeto nem tampouco sua
origem. A única certeza é a de que existe um processo e que há penas em virtude desse
582
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 37
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 69
584
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância..., p. 20
583
262
fato, que são prontamente aplicadas (v.g. restrição ao crédito, impossibilidade de contratar
etc.).
Ocorre, então, uma devassidão da intimidade, na medida em que o homem tem seus
dados expostos para o mundo, mas, ao mesmo tempo, não consegue controlá-los,
tampouco verificar ou ratificar a sua veracidade ou a forma como serão despejados no
mundo.
Atualmente, as pessoas são prisioneiras de um “sistema” e, quando devassadas em
sua intimidade e vida privada, acabam tendo de interromper todas as suas atividades para
tentar solucionar os defeitos que esse mesmo “sistema” apresenta 585.
Logicamente, essa devassidão aos direitos do homem, à sua própria intimidade,
deve ser rechaçada também, por meio de instrumentos que não apenas corrijam essas
constantes “falhas de sistema”, mas que previnam o seu acontecimento.
Enquanto não há avanço e desenvolvimento suficiente – não em relação à
tecnologia, mas às políticas adotadas pelos órgãos governamentais – para a implantação de
um sistema de avaliação de impacto sobre a privacidade, certamente, sobre tais questões
parecem não estar alheios os Tribunais brasileiros.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, teve a oportunidade de enfrentar
questões de vazamento indevido de informação, atribuído a uma falha no sistema
operacional da empresa, o que prejudicou sobremaneira determinado indivíduo, que teve
contra si promovida investigação do Tribunal de Contas da União. Em sua decisão,
aplicou-se indenização que, segundo a argumentação expendida, traduzia bastante a ideia
de penalização da empresa que expôs indevidamente a intimidade do autor, fazendo-o
correr o risco de sofrer condenação pecuniária expressiva e de perder o seu emprego586.
585
Qual administrado ou consumidor que, ao indagar um servidor de repartição pública ou um preposto de
um fornecedor de produtos ou serviços a respeito de incongruências constantes em seu nome, nunca obteve
como resposta algo como “esse problema decorreu de uma falha no sistema” ou “não constam informações a
esse respeito”.
586
www.tjsp.gov.br, Apelação Cível n° 682.436-4/9-00, Oitava Câmara de Direito Privado, Presidente e
Relator Desembargador Caetano Lagrasta, julgado em 16/12/2009.
263
Como afirmou o relator do acórdão, não interessa se curto ou longo o prazo de
exposição da vítima “ao vexame de ter que explicar, sem qualquer prova, posto que não
agira da forma ‘esclarecida’ pela requerida, não é objeto de imediata inversão da prova,
vendo-se aquela a deixar seus afazeres para ‘correr atrás do sistema’”.
Revela-se, assim, nessa atual sociedade de vigilância, a premência de maior
diligência no trato das informações individuais e coletivas. Com a enorme facilidade no
acesso, divulgação e propagação da informação, a pouca intimidade restante a cada
indivíduo aparenta ganhar status de bem supremo. Violando-a, pode-se condenar a pessoa
ao fracasso no emprego, nas relações pessoais e amorosas, motivo pelo qual a necessidade
de repreensão às constantes falhas de sistema ou aos tráfegos ilegais de informação mostrase impositiva.
Decerto, a aplicação da teoria do dano social a questões dessa natureza, longe de
resolver definitivamente o problema, ao menos traria à sociedade o exemplo de
comportamento que se repudia, com a instituição de sanção punitiva capaz de constranger
os ofensores a não mais assim operar.
Caso não seja sabido quem colheu e repassou, ilicitamente, a informação,
repreende-se aquele(s) que a utilizou(aram), restringindo esse círculo vicioso, senão em
seu começo, ao menos em seu fim.
4.7 A DECISÃO QUE RECONHECE O DANO SOCIAL
Outro aspecto importante relacionado ao dano social refere-se à decisão que deferilo e arbitrar o quantum indenizatório. Certamente, o decisum que conceder indenização
pela apuração de um dano social deve ser o mais completo possível, tanto no que diz
respeito aos fatos, quanto ao cálculo realizado pelo magistrado, que o levaram a chegar
naquele valor indenizatório.
264
Assim, deve ser descrita, de forma minudente, os fatores que adjetivam a gravidade
do dano e a sua extensão, e como ele impactou de forma negativa para a sociedade, de
forma a caracterizar um Dano Social587.
Por sua vez, deve também ser perscrutada a conduta adotada pelo agente causador
da lesão, mediante a exposição de sua contribuição significativa para a ocorrência do dano,
de forma comissiva ou omissiva, além de eventual ausência de adoção de medidas que
pudessem prevenir ou atenuar a sua extensão.
Dessa forma, poderá o lesante ter a certeza dos parâmetros utilizados em sua
condenação, o que autorizará apresentar recurso adequado contra a decisão, para
demonstrar que adotou, por exemplo, as medidas de segurança necessárias ou tentou
diminuir a extensão do dano, quando foi ele constatado. Ou, ainda, que pouco contribuiu
com a ocorrência do dano, fazendo com que o valor da indenização seja minorado.
Além disso, terá ciência não apenas o lesante, mas também os demais potenciais
causadores de danos similares sobre os pontos de reprovação da conduta, sobre o que
representa ela à coletividade, e sobre a postura do Poder Judiciário em não admitir a sua
repetição.
De fato, mais do que punir o agente e reparar a sociedade, a decisão deverá servir
de exemplo aos demais potenciais causadores de danos semelhantes. Deve, portanto, ficar
claro qual é o ponto de discordância em relação à conduta praticada e por que ela não será
mais tolerada pela sociedade.
Deve haver clareza no raciocínio utilizado para a obtenção do quantum, sobre quais
foram os fatores que agravaram o valor da indenização e quais foram aqueles que o
diminuíram, podendo a decisão ser até mesmo utilizada como exemplo positivo aos
587
André Gustavo Corrêa de Andrade salienta que é a fundamentação do julgado que possibilita o controle da
sua racionalidade. Dessa sorte, cabe ao julgador, com a objetividade possível, “justificar o valor
estabelecido, destacando as circunstâncias de fato relevantes para a estimativa da indenização”, tendo em
mente que, para a fixação do montante da indenização punitiva, deve sempre ter em mente as finalidades que
a conduzem: “punir a conduta lesiva e prevenir novos ilícitos”. ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano
Moral & Indenização Punitiva: Os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do
direito brasileiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 297/298.
265
demais, com a demonstração de que a adoção de medidas preventivas ou que atenuem o
dano serão levadas em consideração para a mitigação da responsabilização.
Além da transparência em relação ao dano social, deve ficar muito bem definido na
decisão como se chegou e o que representa cada tipo de lesão apurada, caso não haja
condenação apenas pela reparação de um dano social. Assim, deve haver clara distinção
entre a condenação por danos patrimoniais, morais e sociais, para que seja possível fazer
valer o direito de recurso da parte que sofrer a condenação.
Da mesma forma, feita essa discriminação, a própria vítima ficará satisfeita em ver
que a conduta foi devidamente repreendida, destinando-se um valor unicamente para essa
finalidade, assim como que ela servirá de exemplo para outros potenciais ofensores.
Parece que a maior parte da reclamação dos agentes condenados a pagar
indenizações punitivas refere-se ao fato de que não fica evidente, nas decisões, o motivo
que levou à condenação por danos morais e por danos punitivos, certo de que tudo é
atribuído a uma única indenização, dificultando, assim, a defesa.
E com razão o reclamo. Logicamente, a motivação das decisões judiciais constitui
princípio constitucional, insculpido no artigo 93, IX588 da Magna Carta.
Ademais, como antes mencionado, essa falta de clareza impede até mesmo com que
aquela decisão seja utilizada como exemplo aos demais potenciais causadores do dano, na
medida em que não é permitido apreender o grau de reprovação da conduta danosa, o que
foi levado a favor ou contra o agente, para a majoração ou redução da indenização.
Por razões não apenas de conveniência, mas de necessidade, a operação realizada
para a fixação do quantum correspondente à indenização por um dano social deve ser feita
separadamente da realizada para a apuração do valor referente à indenização
compensatória (para danos patrimoniais e morais) do mesmo dano.
588
“todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e
a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do
interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”
266
Essa separação é sobremaneira importante para garantir verdadeira transparência e
efetivo controle sobre a adequação dos critérios utilizados e sobre a justeza da valoração
efetuada pelo julgador. Possibilita-se, assim, “a verificação do peso atribuído à
compensação do dano e o conferido à reprovabilidade da conduta, permitindo, entre
outras coisas, o exame da proporcionalidade da parcela punitiva em relação à parcela
compensatória e até em relação à indenização do dano material eventualmente existente”.
589
Dessa sorte, apenas uma decisão completa, bem fundamentada e descritiva
conseguirá fazer valer as verdadeiras funções da Responsabilidade Civil, de reparação
social, punição e prevenção de danos.
4.8 A LEGITIMAÇÃO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO: O
PROBLEMA DA ATOMIZAÇÃO PROCESSUAL
A maior resistência na aplicação da teoria do Dano Social refere-se justamente à
legitimidade de, num dissídio individual, reclamar-se um direito coletivo, de forma que a
própria indenização seja destinada a outros agentes, que não aqueles que participaram da
relação processual.
No entanto, embora tenha sido conferida ao Ministério Público e alguns outros
entes a árdua tarefa de representar a coletividade nas ações em que houver transgressão a
direitos transindividuais, inúmeras situações ficam desacolhidas, justamente em razão do
assoberbamento desses representantes da sociedade.
Assim, de um lado, surge um grupo de pessoas carentes de proteção aos seus
direitos mais caros e, de outro, há um órgão público que, dentre suas funções, está aquela
de defender esses mesmos direitos, mas, ante o altíssimo volume de demandas, não
consegue atender a todos esses anseios da sociedade.
589
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Texto disponibilizado no Banco do
Conhecimento em 18/8/2008, http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=dd10e43d-25e9-478fa346-ec511dd4188a, consultado em 10/9/2012.
267
Dessa forma, não parece crível deixar desprotegido o patrimônio coletivo, apenas
por que não existem mãos suficientes para lutar contra as lesões a ele causadas. Permitir
essa situação seria o mesmo que fazer morta a letra da Constituição Federal que, em seus
inúmeros artigos, deixa clara a proteção a esses bens tão caros à população, elevando,
como valor maior, a dignidade do ser humano, individual ou coletivamente considerado.
Como revelou Mauro Cappelleti, há mais de trinta anos, a tutela jurisdicional será
invocada não mais somente contra violações de caráter individual, mas mais
frequentemente em situações de caráter essencialmente coletivo, enquanto envolvem
grupos, classes e coletividades, ao que ele denominou “violações de massas”590.
Com efeito, as atividades e relações atuais referem-se a categorias inteiras de
indivíduos, e não mais a uma única pessoa, assim como os direitos e deveres apresentam-se
não mais como essencialmente individuais, mas agora metaindividuais e coletivos. Por isso
que o cidadão, isoladamente considerado, é praticamente impotente na defesa de seus
direitos.
Embora a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor tenham
trazido um significativo avanço para a tutela dos interesses coletivos, ainda há escassez de
agentes legitimados a representar a sociedade na defesa desses direitos, ficando muitas
situações sem a devida proteção.
Certamente, a Ação Popular, permitida a qualquer cidadão para a defesa do
patrimônio público, compreendidos os bens e direitos de valor econômico, artístico,
estético, histórico ou turístico, aparenta ter dado um passo ainda maior. Todavia, não se
mostrou tão efetiva, por atender, muitas vezes, mais a interesses políticos do que à
sociedade, talvez pelo seu limitado rol de hipóteses permissivas.
Nessa direção, o direito estrangeiro traz experiências positivas a respeito de classes
de processos para a defesa do interesse coletivo, como as relator actions, utilizadas nos
países de Common Law (raramente utilizadas nos EUA), em que o attorney general –
590
CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. São Paulo,
Revista de Processo, n. 5, p. 7, 1977, p. 130.
268
equivalente ao promotor de justiça – tem o poder de intentar a ação de proteção a interesse
coletivo, mas, na sua inércia, podem agir um indivíduo ou uma associação privada, a partir
do preenchimento de certos requisitos.
Além disso, as class actions, largamente utilizadas nos EUA, em que o autor da
demanda não tem qualquer necessidade de autorização pelo attorney general, recebendo
controle somente do juiz que assumir a ação, garante a proteção desses interesses
transindividuais.
María Fabiana Compiani refere que a evolução jurisprudencial argentina
proporcionou modificações na legislação, de forma a autorizar certos entes a defender
direitos coletivos, como ocorreu no Brasil. Contudo, interessante mencionar que, em uma
dessas decisões, “...el más alto Tribunal de la Nación em cuanto admitió el amparo para
efectivizar un interés difuso permitiendo el ejercicio del derecho de réplica a un particular
afectado em sus sentimientos religiosos591. Ou seja, quando necessário, é preciso
reconhecer a incidência transindividual na ação de esfera particular, com o fim de proteger
direitos difusos, de toda a coletividade.
Mas mais importante que definir a titularidade do direito que confira a legitimidade
para a ação de direitos sociais – até porque não é possível determinar o responsável ou
detentor de um bem difuso ou coletivo, já que o seu titular tende a ser indeterminado –, é
verificar se a parte realmente se mostra como um representante ideológico daquele
interesse, ou seja, se é a justa parte agindo em prol do bem coletivo.
O mesmo autor anteriormente citado, Mauro Cappelletti, define que, em sua visão,
a melhor representatividade da coletividade adviria de uma combinação entre controle
público associado à iniciativa privada, especialmente com a criação de órgãos
governamentais específicos para cuidar de assuntos determinados, com o auxílio dos
indivíduos ou grupos privados. Cita ele o exemplo positivo, ocorrido na Suécia, do
ombudsman dos consumidores, em que as associações privadas também podem promover
591
COMPIANI, María Fabiana. Responsabilidad por daños colectivos. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, SP, ano 9, n. 36, p. 185-198, out.-dez. 2000, p. 192. Em tradução livre: O superior Tribunal da
Nação reconheceu o direito de exercício de direito de réplica a um particular afetado em seus sentimentos
religiosos, para efetivar um interesse difuso.
269
ações na Justiça, numa interação com esse personagem governamental, ou ainda na França,
em que um indivíduo ou grupo, em determinadas situações e respeitados certos limites,
podem fazer movimentos à ação penal, até mesmo contra a vontade do Parquet592.
Entretanto, enquanto não implementada regulamentação acerca de figuras
semelhantes de representação, não é permitido abandonar diversas situações de violações
coletivas, até de forma contrária ao que prevê a Constituição Federal, ao não excluir do
Poder Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça de direito593.
Stefano Rodotà bem consigna que a lei não pode ser mais vista como um
instrumento rígido, mas sim flexível, na medida em que “sua concreta atuação impõe um
trabalho de adaptação atribuído a outros sujeitos, que não o legislador”594.
Partindo-se, então, da ordem constitucional de apreciação, pelo Poder Judiciário, de
qualquer lesão ou ameaça de direito, e carente o sistema de procedimentos ou
representantes adequados que garantam a reparação coletiva, deve-se permitir, ainda que
em ação individual, o reconhecimento de um dano que extrapole essa relação.
Nelson Nery Junior encerra essa questão ao definir que “...caso o juiz decida a
respeito de questão de ordem pública não agitada pelo autor-consumidor na petição
inicial, não terá violado o princípio da congruência e, consequentemente, a sentença não
conterá o vício de haver sido proferida extra ou ultra petita”. A abusividade, assim, é, ex
lege, matéria de ordem pública, acarretando ao juiz e aos Tribunais “o dever de examiná-la
ex officio, independentemente da alegação da parte ou interessado...”595 Esse dever do
magistrado justifica e impõe, em casos determinados, o reconhecimento de um dano social,
ainda que a análise seja realizada em dissídio individual.
592
CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. São Paulo,
Revista de Processo, n. 5, p. 7, 1977, pp. 143/144.
593
Constituição Federal, art. 5º, XXXV.
594
RODOTÀ, STEFANO. A Vida na Sociedade da Vigilância – A privacidade hoje. Organização, seleção e
apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 136.
595
NERY JUNIOR, Nelson. Visão sobre a principiologia do Código de Defesa do Consumidor. pp. 95/102,
in Revista do Advogado: 20 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor – Desafios atuais, ano
XXXI, dezembro-de 2011, nº 114, São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, p. 97.
270
Note-se, aliás, que a Constituição da República impõe à coletividade o dever de
defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput,
da CF), e, no caso da proteção à criança, ao adolescente e à pessoa idosa também
estabelece o texto constitucional o dever da família e da sociedade em amparar e assegurar
os seus direitos (arts. 227 e 230 da CF). Ora, cabendo à coletividade esse papel, qualquer
indivíduo deve poder denunciar as violações aos direitos que atentem contra a própria
sociedade da qual faz parte.
Essa é a própria figura do private attorney general, presente nos EUA, pelo que o
indivíduo ou grupo é impelido a agir não apenas por seu próprio interesse, mas pelos
direitos da comunidade, certo de que sua ação apresenta um significado que transcende as
partes do processo, atingindo todos os membros daquela coletividade. A parte age,
sobretudo, no interesse da coletividade, já que é ela que deve ser reintegrada no gozo de
seu direito coletivo.
Como apontado por Antonio Junqueira de Azevedo, e referido no início deste
capítulo, as condições concretas em que a sociedade vive não são favoráveis à criação de
mais deveres para o Estado. Cabe, então, ao particular, na sua ação individual de
responsabilidade civil, agir como defensor da sociedade, exercendo um munus público,
como um “promotor público privado”596.
Ao comentar sobre essas ações coletivas, Mauro Cappeletti afirma que o juiz
deveria ter os seus poderes estendidos, de forma a irradiar os efeitos de sua decisão não
mais apenas aos indivíduos que litigam no processo, mas para compreender a totalidade do
dano produzido pelo réu. Obviamente, em uma série de situações, se cada indivíduo tivesse
que ingressar com ação isoladamente, ou se o juiz tivesse que condenar a empresa a
ressarcir somente o dano causado a um único indivíduo, que, diligentemente, promoveu a
demanda judicial, o comportamento do lesante continuaria imperturbado, porque o dano a
compensar ao autor esporádico seria sempre inferior aos custos necessários a evitar
qualquer comportamento597.
596
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 383.
597
CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. São Paulo,
Revista de Processo, n. 5, p. 7, 1977, pp. 152/153.
271
Na realidade, o autor da ação, muitas das vezes, estará agindo na busca de
interesses próprios, apenas alertando ao magistrado que aquele dano cometido pelo réu é
passível de enquadramento na teoria do Dano Social. O julgador, por sua vez, analisando
as evidências apontadas, e, principalmente, tendo conhecimento da gravidade da conduta
ou da repetição da lesão, contestada em diversos outros dissídios individuais, poderá
reconhecer a prática de um dano social. Por uma questão de ordem, para coibir novas
ações, em virtude de reiteração do ato lesivo, o magistrado age em nome da sociedade,
reconhecendo, na própria demanda individual, tratar-se de lesão a um bem maior, a um
interesse difuso.
Logicamente, o cenário ideal, como revela Geneviève Viney, seria o
desenvolvimento de um procedimento específico para a concretização da indenização de
danos de massa. Em primeiro lugar, a multiplicidade de vítimas traz o risco de provocar
um entupimento dos tribunais, se cada um deles agir separadamente. Além disso, as ações
individuais revelam-se muito onerosas para alguns e ameaçam desembocar em decisões
contraditórias. Por isso ser necessária a criação de ações coletivas, como as class actions
norte-americanas598.
Andou nesse passo o Senado Federal, ao apresentar Projeto de Lei para a
modificação do Código de Defesa do Consumidor (PLS nº 282/2012, de autoria do
Senador José Sarney), que pretende instituir um expediente de reunião de demandas,
organizando, assim, a ação coletiva, inclusive criando um cadastro geral de demandas
coletivas.
Contudo, embora palatável e até mesmo recomendável essa modificação, é possível
a aplicação de indenizações por dano social em dissídios de natureza individual, quando o
dano transcender às partes do processo, seja pelo permissivo constitucional anteriormente
apresentado, seja pela necessidade do direito de flexibilizar-se ante a modificação da
configuração da camada social.
598
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, p. 52.
272
Para que não ocorram abusividades no atuar do magistrado, prudente seria a
participação do Ministério Público, para atuar como fiscal da Lei, nos termos do que prevê
o art. 5º, § 1º da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
4.9 A DESTINAÇÃO DA INDENIZAÇÃO
O maior problema na admissão de um dano social parece estar intimamente
relacionado à sua destinação. Logicamente, a doutrina e julgadores mais tradicionalistas
encontrariam, no princípio do enriquecimento sem causa, uma vedação quanto à destinação
da indenização à vítima.
Por outro lado, a destinação da indenização a um fundo gerido pelo Conselho
Federal ou por Conselhos Estaduais (art. 13, Lei nº 7.347/1985) não tem se mostrado
efetiva para a “reconstituição dos bens lesados”, na medida em que os valores nem sempre
se revertem em benefício daquele grupo prejudicado ou se relaciona à área de interesse
afetada.
Por ser um tema muito recente, os seus estudiosos ainda não chegaram a um
consenso sobre a destinação desse valor. Ao admitir a possibilidade de existência de um
dano punitivo no Brasil, Maria Celina Bodin de Moraes consigna não ser possível a
equiparação dessa figura indenizatória com caráter punitivo aos punitive damages,
porquanto o valor obtido a maior da indenização, em função dessa pena privada, não
deverá ser destinado ao autor da ação, mas, de acordo com a Lei nº 7.347/85, servirá para o
benefício do maior número de pessoas, por meio do depósito em fundos próprios599.
Da mesma forma, Matilde Zavala de González assevera que a indenização
resultante da reparação de um dano extrapatrimonial coletivo satisfaça também um destino
coletivo. Isso porque, se a indenização é repartida entre aqueles que forem prejudicados em
seus interesses particulares, não será destinada à compensação pela perda do bem coletivo,
599
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 263.
273
mas, antes, da lesão que o indivíduo sofreu como consequência daquele dano. Dessa sorte,
a indenização deveria ser dirigida a patrimônios públicos de afetação específica ou a um
fundo de garantia, que permita uma política de retorno ou reciclagem dos importes de
compensação, em favor da coletividade interessada, visando o cumprimento de finalidades
conexas ao interesse difuso tutelado em juízo, como também, e especialmente, para evitar
danos semelhantes ao produzido600.
Também seguem essa linha Renata Chade Cattini Maluf, ao consignar que a
indenização punitiva seja vertida à sociedade601, e Ricardo Luis Lorenzetti, quando
defende que a indenização por dano moral coletivo deve ir a um fundo público ou, em um
melhor cenário, a patrimônios públicos de afetação específica, que evitam os desvios de
destinos dos fundos, em razão de que a lesão ocorre sempre a um bem público, de
propriedade difusa, e não individual602.
Ou melhor, ainda que admitida a destinação dos valores a um fundo público,
prefere-se sempre que ele tenha uma afetação específica, “especificamente destinado à
proteção do interesse difuso tutelado”, com a sua aplicação na recuperação de bens,
promoção de eventos educativos, científicos e na edição de material informativo
relacionado com a natureza do dano causado, bem como na modernização administrativa
dos órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas relativas à defesa do interesse
envolvido603.
Por esse motivo que Xisto Tiago de Medeiros Neto discorre sobre a possibilidade
de se destinar a indenização advinda de um dano moral coletivo a uma outra aplicação ou
entidade beneficiária, que não seja um Fundo específico tratado pela Lei nº 7.347/85,
aduzindo que essa opção mostra-se consonante com a racionalidade e os valores que
presidem a tutela reparatória pertinente aos danos coletivos, além de conferir significativa
relevância ao sistema de justiça, diante da maior eficácia social conferida à tutela
600
GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Ressarcimiento del daño moral. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2009,
pp. 358/359.
601
MALUF, Renata Chade Cattini. O Aspecto Punitivo da Reparação do Dano Moral. Dissertação de
mestrado defendida no ano de 2004 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 207.
602
LORENZETTI, Ricardo Luis. Responsabilidad colectiva, grupos y bienes colectivos. In LA LEY1996-D,
1058 - Responsabilidad Civil Doctrinas Esenciales, VI, 01/01/2007, 925, p. 16.
603
GONÇALVES, Vitor Fernandes. A Punição na Responsabilidade Civil: a indenização do dano moral e
da lesão a interesses difusos. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 241.
274
jurisdicional a bens e interesses coletivos, mediante o direcionamento da condenação a um
objetivo útil e de retorno direto, mais adequado e efetivo à sociedade604.
Nesse mesmo sentido já decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região605,
ao distribuir a indenização por danos morais coletivos a diversos fundos, inclusive à
associação beneficente, para a aquisição de equipamentos e medicamentos destinados ao
tratamento da doença que era discutida no julgamento.
Em sentido oposto, Paula Meira Lourenço entende que o lucro deve ser
integralmente entregue ao lesado, o qual tem “o impulso processual inicial”, salvo se for
criado um Fundo de Garantia que “tenha por objectivo suportar os montantes
indemnizatórios a pagar aos lesados, sempre que o lesante não tiver bens penhoráveis,
caso em que entendemos que o lucro deverá ser repartido, em partes iguais, entre o lesado
e o Estado”606.
Parece, entretanto, que a indenização deve seguir uma lógica pela ponderação,
destinando-se parcialmente à vítima que, além de ter também partilhado do dano,
representou os interesses da sociedade, devendo-se recompensar o seu esforço, e a outra
parte à coletividade, que teve interesses jurídicos golpeados, devendo ser compensada.
Suscita, nesse sentido, Daniel de Andrade Levy, que, caso assim não ocorresse,
destinando-se integralmente a indenização a um fundo público, as vítimas ficariam
desestimuladas a levarem ao Poder Judiciário esse tipo de violação, em virtude de saírem
ainda mais empobrecidas com a propositura da demanda, sem nenhum benefício haver
para si. Assim, seria indispensável que ao menos um pedaço da indenização pudesse ser
revertida àquele que apresenta a demanda ao Poder Judiciário. Por isso que, na esteira do
Anteprojeto francês, prefere dividi-la entre o autor da demanda e o Tesouro Público,
destinando-a, entretanto, não ao Estado, de forma genérica, mas a fundos públicos
específicos, que possam garantir, futuramente, as reparações das vítimas de acidentes
604
MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. 3ª edição, São Paulo: LTr, 2012, p. 217.
In , Recurso Ordinário nº 01042003019995020255, 6ª Turma, Relator Juiz Valdir Florindo, Julgado em
6/7/2007.
606
LOURENÇO, Paula Meira. A Indemnização Punitiva e os Critérios Para A Sua Determinação. Palestra
realizada no Colóquio organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, subordinado ao tema
Responsabilidade Civil – Novas Perspectivas, realizado nos dias 13 e 14 de Março de 2008, no âmbito do
painel dedicado aos Novos Rumos da Responsabilidade Civil e Teoria da Indemnização Sancionatória.
605
275
semelhantes. Na ausência desse fundo, a verba poderia ser destinada a uma associação de
proteção dos direitos dos lesados, que deveria comprovar o uso dos recursos naquele
sentido607.
Certamente, não se pretende a imposição da maior parte da indenização à vítima,
mas que o incentivo de patrocinar uma causa social realmente exista, estimulando a
denúncia a essas condutas que fulminam interesses coletivos. Note-se, por exemplo, que,
no caso das microlesões, a vítima sentir-se-á pouco estimulada a procurar o Poder
Judiciário, em virtude da dimensão do dano que lhe foi causado, seja também em razão dos
gastos com o processo ou do seu alargado tempo de duração. Se não houver nenhum
benefício à vítima, parece difícil que leve ela a notícia ao Poder Judiciário, para que se
interrompam essas práticas maliciosas e claramente ilícitas.
O avant-projet francês de reforma do Livro de Obrigações do Código Civil, ao
tratar do ressarcimento dos danos oriundos de uma faute lucrative, define que poderá o juiz
remeter metade dos valores pagos pelo ofensor ao tesouro, autorizando, então, que metade
desse valor seja destinado à vítima que ajuizou a demanda.
Além disso, como visto, a recente evolução do sistema legal norte-americano dos
punitive damages também conseguiu contornar os problemas inicialmente apresentados na
aplicação do instituto, quando as vultosas reparações implicavam em reparações
ineficientes da sociedade, como também desincentivavam os consumidores na adoção de
comportamento prudente, a fim de evitar danos, passando a proporcionar, atualmente, a
distribuição dos valores da condenação (parte para a vítima, parte para o Estado ou fundos
específicos), o que resultou em uma maior aceitação das indenizações e uma melhor
aderência dos potenciais agentes lesivos a uma mentalidade de prevenção.
De fato, indenizando-se tanto a vítima que propôs a ação, como a sociedade, estarse-á cumprindo a exata função que o dano social pretende desempenhar: tanto servir como
ferramenta às práticas lesivas que ficam à margem de sanções adequadas, quanto o
conhecimento do Poder Judiciário a respeito dessas lesões.
607
LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil: De um Direito dos Danos a um Direito das Condutas
Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 97 e 118.
276
Não se cogita, dessa forma, levantar a bandeira da proibição do enriquecimento sem
causa, porquanto nenhuma incongruência terá a destinação da indenização. A teoria do
enriquecimento sem causa, em realidade, mostra-se um contrassenso na jurisprudência,
que, em que pese admitir funções compensatória e punitiva ao dano moral, adverte que o
montante fixado não pode servir ao enriquecimento da vítima. Ora, se existe um plus
indenizatório, destinado à punição da vítima, como é referido nas decisões dos Tribunais,
estará ele locupletando indevidamente o ofendido, pouco importando o tamanho do valor.
Mas, certamente, se o montante destinado à vítima provém de uma decisão judicial,
não se pode cogitar de enriquecimento indevido, já que a pena, quando justa, torna
legítimo esse enriquecimento ou empobrecimento, que terá base jurídica.
Por isso que, agindo a vítima em parceria com o Estado e a sociedade, deve
também receber a sua recompensa, já que atuou “como um porta-voz de um sentimento
comum a uma coletividade de pessoas”; laborando para obter o resultado coletivo,
“consumiu seu tempo, as suas energias, efetuou despesas processuais e profissionais,
quando muitas vezes os danos patrimoniais individuais eram de pequena monta ou de
difícil comprovação”, devendo tal valor ser fracionado entre o “Estado/órgãos
públicos/entidades beneficentes e o agente”. Assim que a concessão parcial da condenação
em prol da vítima é um evidente estímulo para que várias pessoas possam procurar o
judiciário, conscientes de consequências positivas que excedam a simples reintegração
patrimonial608. Afinal, ela também sofreu o dano e deve participar dessa divisão.
Chega-se, dessa maneira, a um meio-termo na destinação da indenização pela
prática de um dano social, destinando-se corretamente esses valores para as efetivas
vítimas dos prejuízos causados. Aponta Nelson Rosenvald que, conceder uma parte da
indenização ao Estado, suprimiria um dos aspectos teleológicos da condenação, que além
de prevenir ilícitos e punir o agente, quer efetivamente demonstrar à sociedade que o
montante apurado será revertido e aplicado em favor dessa mesma coletividade609.
608
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, pp. 197/198.
609
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 200.
277
Seria interessante, por esse motivo, e de acordo com a lição antes trazida, que esse
valor fosse destinado não a um fundo público, mas a qualquer outra aplicação ou entidade
beneficiária, sobre a qual fosse possível reconhecer a idoneidade, e que o destinasse –
comprovando posteriormente tal fato – a melhor atender os interesses daquele grupo ou
setor atingido (v.g., em um dano causado em relação de consumo reverter-se-ia o valor a
uma associação que cuida dos interesses dos consumidores).
Decerto, o próprio Código Civil traz previsão nesse sentido, bastando-se tomar
emprestada essa regra insculpida no parágrafo único do artigo 883, que permite, a critério
do julgador, a destinação de valores a estabelecimento de beneficência.
Não parece prudente, entretanto, estabelecer uma fórmula fixa de destinação da
indenização: se metade para a vítima e metade para a sociedade, devendo ser analisado
cada caso concreto.
Nelson Rosenvald estabeleceu uma fórmula para calcular o montante destinado à
vítima e ao Estado ou outros fundos, distinguindo os danos de natureza imediatamente
difusa das sanções civis que sirvam como respostas exemplares a ofensas a situações
jurídicas existenciais promovidas por meios de comunicação ou outros potenciais
ofensores com aptidão de comportamentos em face de um público considerável, que se
enquadraria nos danos mediatamente difusos:
“(a) dano imediatamente difuso – produto comercializado por empresa nas
praias sem qualquer consideração quanto à higiene. O consumidor que ajuíza a
demanda receberia ¼ da condenação pela pena civil, além da integralidade dos
danos patrimoniais e morais; (b) dano mediatamente difuso – revista semanal
dedicada a exibir a vida das ‘celebridades’. Eventual dano à honra ou à
privacidade requer além da condenação pelo dano moral (integralmente
destinada ao ofendido), uma sanção civil igualmente repartida entre a vítima e
entidade(s) beneficente(s)”610.
610
ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 199.
278
De fato, pré-estabelecer uma fórmula de destinação da indenização fará, uma vez
mais, que críticas recaiam sobre o instituto, em especial daquela corrente mais
conservadora, avessa à ideia de um enriquecimento indevido – ainda que ele não ocorra,
como explicado.
Contudo, o que se destaca dessa fórmula é a gravidade do bem social atingido, que
deverá ser levado em conta no momento do estabelecimento da destinação. Assim, se se
tratar de um dano imediatamente difuso, em que o prejuízo social foi maior e mais grave,
uma parcela maior ficará com a sociedade.
Por outro lado, se for o caso de um dano mediatamente difuso, em que o dano for
de menor intensidade, levando à indenização uma carga muito mais punitiva, a maior parte
poderá ser destinada ao autor da ação.
Acresça-se a essa matemática a participação da vítima na obtenção da indenização
por um dano social. Quanto mais contribuir na demonstração do dano, lutando em
demonstrar a violação de um interesse social, maior será a parte que lhe será destinada da
indenização. Apenas se deve evitar que o montante destinado à vítima seja ínfimo, que
desestimule novas tentativas de outros ofendidos na demonstração, ao Poder Judiciário, de
novas práticas de um dano social.
4.10
O PROBLEMA DA REPARAÇÃO PECUNIÁRIA
Ainda que o escopo de uma indenização seja a reparação ou compensação da vítima
em pecúnia, muitas vezes o dinheiro não é o melhor remédio para que se apaguem os
vestígios deixados pela lesão.
Aponta Anderson Schreiber que, atualmente, ocorre uma inversão axiológica, por
meio da qual a dignidade humana e os interesses existenciais passam a ser invocados
visando à obtenção de ganhos pecuniários, estimulando sentimentos mercenários, pelo
oferecimento às vítimas de danos, como única solução, o pagamento de uma soma em
279
dinheiro. Não apenas isso, mas coloca-se um preço à lesão a interesses existenciais,
autorizando-se a conduta lesiva mediante o seu pagamento611.
Por isso que diversas culturas jurídicas vêm experimentando, ainda de forma
acanhada, um movimento de despatrimonialização da reparação do dano. Isso se dá,
principalmente, pela dificuldade encontrada na quantificação da indenização por dano
moral, que também acaba revelando a inevitável insuficiência do valor monetário como
meio de pacificação dos conflitos decorrentes de lesões a interesses extrapatrimoniais. Tais
meios não necessariamente substituem ou eliminam a compensação em dinheiro, mas se
associam a ela no sentido de efetivamente aplacar o prejuízo moral e atenuar a importância
pecuniária no contexto da reparação. Também as cortes brasileiras têm se valido com
relativa frequência do instrumento da retratação pública, que se mostra extremamente
eficaz em seus efeitos de desestímulo à conduta praticada, sem a necessidade de se atribuir
à vítima somas pecuniárias punitivas612.
Conclui o mesmo autor que as formas não patrimoniais de compensação, longe de
atenderem a uma preocupação exclusivamente econômica vinculada ao custo das
reparações, satisfazem, na maior parte dos casos, e de forma mais plena, os anseios da
vítima. Uma análise isenta da jurisprudência revela que, nos ordenamentos de civil law, o
valor das indenizações monetárias por dano moral tem se mantido, em geral, baixo, o que é
sentido pela vítima como nova afronta à sua dignidade, corroborada pela postura
mercantilista muitas vezes adotada por seus ofensores habituais e seus representantes613.
Esse, também, um dos principais reclamos de Marcius Geraldo Porto de Oliveira –
e que reflete a opinião contrária de grande parte da doutrina, avessa à ideia de um
enriquecimento injustificado –, ao negar a existência de uma sanção punitiva civil, pelo
fato de que a indenização vista como punição transforma-se em mais um produto do
mercado, na medida em que enriquece alguns da noite para o dia, e muitas vezes pelas
mais insignificantes ofensas, desvirtuando a reparação civil. A responsabilidade, assim,
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 187.
612
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 187/188.
613
SCHREIBER. Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil – Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 189.
611
280
acaba se caracterizando como “a revelação do aspecto lúdico humano, num espetacular
jogo de marketing”. Só interessa a punição imposta como ordem social quando o seu
resultado reverter a toda a coletividade614.
Ademais, a reparação pecuniária pode apresentar fator de estímulo extremamente
prejudicial à sociedade, na medida em que a vítima, engendrando lucrar com o resultado da
lesão, extrapola em seus pedidos. Isso se torna mais aparente quando é ela beneficiária da
assistência judiciária gratuita ou pleiteia seus direitos nos Juizados Especiais, em que, por
ausência do dever de recolhimento de custas processuais, admitem-se os pedidos de
valores estapafúrdios, não condizentes com o tamanho da lesão. Dessa forma, a vítima vai
à busca da lesão, procurando locupletar-se de situações em que não existe dano. Por outro
lado, o ofensor, com base na média de indenizações aplicada pelo Poder Judiciário,
consegue precificar a lesão, sopesando, assim, se vale ou não a pena cometê-la.
De fato, essa preocupação deixa uma porta aberta à variedade de formas de
compensação que o dano social pode trazer, que não apenas a indenização pecuniária, o
que o tornaria muito mais palatável à doutrina mais resistente essa ideia de uma sanção
punitiva.
Há algumas décadas, Pontes de Miranda já acenava para a possibilidade de
restituição em natura para alguns danos imateriais, sob o argumento de que nem o Código
Civil nem o Código Comercial dispunham “que a indenização há de ser precipuamente em
dinheiro”615.
Certamente, a doutrina tem admitido outras formas de compensação não
patrimonial616, especialmente em razão das condições econômicas do autor do dano.
Roberto Senise Lisboa entende ser possível, na reparação de um dano extrapatrimonial, a
614
OLIVEIRA, Marcius Geraldo Porto de. Dano Moral: proteção jurídica da consciência. São Paulo:
Editora de Direito, 1999, p. 56.
615
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: parte especial. Tomo 26, Rio
de Janeiro: Editor Borsoi, 1971, p. 27.
616
Esse também o posicionamento de Carlos Alberto Bittar, que defendia a imposição de obrigações de fazer
ou de não fazer ao agente, quando não tivesse bens suficientes a garantir a reparação, por meio, por exemplo,
da prestação de serviços, a abstenção de certas condutas, o cerceamento de certos direitos etc., podendo até
mesmo valer-se desse expediente em cumulação com o ressarcimento pecuniário. In BITTAR, Carlos
Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 217.
281
imposição de sanções não pecuniárias, que se mostram extremamente úteis quando o
agente causador do dano não possui bens suficientes para proceder à reparação617.
Mas não apenas para esse caso específico. A atribuição de compensação não
pecuniária deve ser admitida especialmente nessas lesões que atingem a coletividade, que,
muitas vezes, tirará maior proveito de uma obrigação de fazer a ser executada pelo lesante
do que por eventual quantia depositada em um fundo, a que não se dê qualquer destinação.
Manifestamente, essa orientação conforma-se às finalidades da reparação jurídica,
que pode ser realizada mediante a reintegração específica ou a satisfação in natura, ou,
ainda, “através da imposição de outra obrigação, ou seja, a de indenizar” que, por
apresentar o significado de “satisfazer interesses lesados”, admite a imposição de uma
sanção tanto pecuniária como não pecuniária618.
Paula Cristina Lippi Pereira de Barros mostra que, pelos princípios da justiça
restaurativa, é possível a reparação da lesão a interesses difusos, mediante a compensação
em espécie ou em prestação de atividades, em favor da vítima ou de entidades públicas,
como também por meio de medidas diversas, sem qualquer cunho patrimonial reparatório à
vítima, como ministrar palestras em escolas públicas, atender entidades assistenciais
etc.619.
Pode a vítima, ainda, satisfazer-se com a reinserção social do ofensor, por meio de
serviços de reabilitação oferecidos pelo Estado, ou com frequência obrigatória a cursos de
educação formal, profissionalizante ou profissional etc. Isso porque, por vezes, a reparação
pecuniária não interessa à vítima, mas somente a assunção do ato danoso ou a sua
correição. Pode também não ter o ofensor capacidade para arcar com qualquer valor, sendo
617
LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. 4ª edição, São Paulo: Saraiva, 2009, v. 2, p. 253.
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.
217.
619
BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial
do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC/SP
p.
136
e
143/144,
disponível
em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/102013.
618
282
viável a utilização de outros tipos de compensação, que podem até mesmo se mostrar mais
proveitosos à sociedade e à própria vítima620.
Em importante precedente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região 621, em que se
averiguava a degradação ambiental provocada por um empreendedor, que teria recebido
autorização de exploração da área por uma fundação responsável pelo controle e
preservação do meio ambiente, contrariando, ainda, determinação do IBAMA, quanto à
expedição dessa licença, foram tanto o explorador quanto a entidade que emitiu a
autorização condenados à compensação em medidas sem cunho pecuniário.
Assim, visando à prevenção de danos futuros, foi a fundação condenada à prestação
de ação educativa junto à comunidade, especialmente junto às instituições de ensino
fundamental e médio da região, “consubstanciada em curso de duração não inferior a uma
hora, no qual deverá ser lecionada a importância do meio ambiente sadio e equilibrado,
abordando-se, especialmente, as qualidades da área degradada e a necessidade de sua
proteção para o benefício de toda a coletividade”. Por sua vez, o empreendedor foi
condenado, para a recomposição do custo operacional da Polícia Ambiental, “a doar
veículo utilitário, em boas condições de uso, para a fiscalização do IBAMA”.
Dessa sorte, além de submeter o lesante aos efeitos do dano produzido, obrigando-o
a determinado comportamento como meio de satisfação do interesse lesado, volta-se a
reparação à efetivação de serviços voltados para o interesse da sociedade, ao mesmo tempo
em que reeduca o infrator. Conscientiza-se, dessa forma, o infrator, trazendo um exemplo
para a sociedade, ao mesmo tempo em que satisfaz moralmente as vítimas da lesão622.
4.11
DANO SOCIAL X DANO MORAL COLETIVO
620
BARROS, Paula Cristina Lippi Pereira de. A sanção socioeducativa como compensação não patrimonial
do dano. Dissertação de mestrado defendida em 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC/SP
p.
136
e
143/144,
disponível
em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp137993.pdf, consultado em 7/102013.
621
www.trf4.gov.br, Apelação Cível nº 2005.72.07.002128-8/SC, 4ª Turma, Relatora Desembargadora
Federal Marga Inge Barth Tessler, Julgado em 21/7/2010, consultado em 28/4/2013.
622
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil Por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993,
pp. 226/228.
283
Por tudo o que foi exposto, permite-se confrontar as figuras do dano social com o
dano moral coletivo, para que não se visualize uma sobreposição de conceitos, que são
distintos e aplicados em situações diversas.
Notadamente, o escopo da indenização por dano moral, de acordo com o que se viu
ao longo do trabalho, é a compensação de uma lesão a direito personalíssimo, sem a
atribuição de qualquer plus, e independentemente da análise da gravidade da ofensa. Não
se busca punir o agente, mas compensar o dano. Ou seja, o foco do dano moral deve ser
sempre a compensação do dano, variando o quantum de acordo com a extensão da lesão,
pouco interessando a gravidade da ofensa.
Isso porque uma conduta de pouca relevância ou uma conduta grave são capazes de
produção de um mesmo dano, que deve ser reparado de igual forma. Repõe-se, assim,
aquilo que se perdeu, ou compensa-se na proporção daquilo que se entende como justo.
Dessa forma, a gravidade da culpa do ofensor ou a vantagem que levou com a prática da
lesão não devem importar para a configuração do dano ou para o cálculo da indenização.
Da mesma forma, a gravidade da lesão não pode influenciar no an debeatur.
Parece, assim, que se estão privilegiando apenas as lesões graves, em detrimento daquelas
mais leves, sem se levar em consideração que até mesmo o arranhão mais leve é capaz de
produzir dano. Isso sem contar que se confunde gravidade do dano com a gravidade da
ofensa, deixando de se reparar uma lesão grave, em razão da ausência de gravidade da
conduta.
Por conseguinte, a indenização por dano moral coletivo, em razão de sua própria
gênese, deve se prestar somente à compensação da lesão. Assim, quando atua para punir o
ofensor - como ocorre na maior parte dos casos -, desvirtua o seu objetivo.
Admite-se o dano moral coletivo, destarte, apenas quando a sua intenção seja
realmente a de compensar o grupo atingido pela lesão, quando verificado o atentado a
direito personalíssimo, sem que seja necessária a análise da gravidade da conduta do
lesante ou mesmo a gravidade do dano.
284
O dano social, por sua vez, visa diretamente à punição, sendo a compensação uma
consequência de sua aplicação. O intuito primordial é punir e dissuadir. Como a extensão
desse dano – como também o dano moral coletivo – é imensurável, podendo atingir
qualquer tamanho, porquanto envolvida toda a sociedade, a indenização apresentará o
tamanho que for necessário para que cumpra a sua função, sem desvirtuar ou ferir a lei. A
extensão do dano que será compensado é incalculável, assumindo a indenização o valor
que for necessário para que cumpra o dever de punição, desde que devidamente justificada.
Discorda-se do posicionamento de Flávio Murilo Tartuce Silva, quando tenta
separar a figura do dano moral coletivo do dano social, apontando que este englobaria
também as repercussões patrimoniais, enquanto aquele apenas se cingiria ao dano
extrapatrimonial 623 .
Certamente, tanto o dano social, quanto o dano moral coletivo atingem somente o
patrimônio moral da coletividade. Embora se reconheça o dano social quando da
ocorrência de um dano patrimonial, estará ele representado pelo rebaixamento do
patrimônio moral ou na qualidade de vida da população, atingindo, assim, os direitos
personalíssimos dos indivíduos daquela sociedade. Ele é um reflexo, portanto, da lesão aos
direitos personalíssimos, constituindo, assim, modalidade de dano extrapatrimonial.
Notadamente, não se mistura dano social com reparação patrimonial da lesão
cometida, que será devidamente reparada, utilizando-se os critérios ordinários da
Responsabilidade Civil para a restituição de um prejuízo material.
Ressalta-se, dessa sorte, que o dano social e o dano moral coletivo não se
distinguem pela espécie (dano extrapatrimonial), mas pelos fundamentos. O dano moral
coletivo, por advir do dano moral, apresenta precipuamente a função de compensar a lesão
sofrida por aquela coletividade, devendo, portanto, ter como parâmetro o tamanho e a
extensão desse mesmo dano, compensando o que se achar necessário para o alívio da
consciência coletiva. Por outro lado, a intenção primordial do dano social é a dissuasão e
punição do lesante. A compensação, nesse caso, é reflexa da punição. Mas, também se
623
SILVA, Flávio Murilo Tartuce. Reflexões sobre o dano social. In http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3537, consultado em 20/11/2012.
285
utilizando da extensão do dano – que é incalculável –, o seu limite se baseará no quanto for
necessário para que se chegue à medida punitiva-dissuasória-distributiva.
Mascarando o seu interesse punitivo, o dano moral coletivo, quando aplicado, acaba
levando em consideração não apenas a lesão configurada no caso concreto, mas a sua
gravidade, assim como a situação econômica do agente e outras circunstâncias do fato,
para que possa ser aplicada a indenização e, muitas vezes, até majorada, ressaltando-se o
seu caráter de desestímulo624.
Valendo-se de regramento específico do dano moral – já ele próprio equivocado –,
é utilizado um instituto que serviria apenas para recomposição do patrimônio subtraído
pela lesão como medida punitiva ao ofensor, buscando o dano moral coletivo, na maioria
das vezes, fazer as vezes do dano social.
Embora ambas as categorias de danos sejam aplicadas com base em um atentado ao
patrimônio não econômico da sociedade, os seus pressupostos são completamente diversos,
bastando, para o dano moral coletivo, a verificação de um dano a direito personalíssimo e o
seu nexo de causalidade com a conduta. Apontou-se, anteriormente, que a doutrina entende
ter esse dano de ser avaliado objetivamente. No caso do dano social, verificam-se outros
inúmeros requisitos, especialmente quanto à análise da conduta do ofensor e de sua
disponibilidade patrimonial. O que se busca, com o dano social, é que o lesante
experimente uma verdadeira punição, para que não reitere o ato.
Além disso, o dano social é aplicado somente nos casos em que a gravidade da
conduta ou o atentado à segurança revelarem-se graves, que demandem uma imposição de
uma medida mais séria. Ou seja, diferentemente do dano moral coletivo, o dano social é
624
Carlos Alberto Bittar Filho deixa bem clara essa função do dano moral coletivo, ao determinar que ”Em
havendo condenação em dinheiro, deve aplicar-se, indubitavelmente, a técnica do valor de desestímulo, a
fim de que se evitem novas violações aos valores coletivos, a exemplo do que se dá em tema de dano moral
individual; em outras palavras, o montante da condenação deve ter dupla função: compensatória para a
coletividade e punitiva para o ofensor; para tanto, há que se obedecer, na fixação do quantum debeatur, a
determinados critérios de razoabilidade elencados pela doutrina (para o dano moral individual, mas
perfeitamente aplicáveis ao coletivo), como, v.g., a gravidade da lesão, a situação econômica do agente e as
circunstâncias do fato”. In BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto
jurídico brasileiro. Jus Navigandi , Teresina, ano 10 (/revista/ edicoes/2005), n.559 (/revista/ edicoes/ 2005/
1/ 17), 17 (/revista/ edicoes/2005/1/17) jan. (/ revista/ edicoes/ 2005/ 1) 2005 (/revista/ edicoes/ 2005).
Disponível em: http://jus.com.br/artigos/6183, consultado em 16/10/2013.
286
instrumento residual da responsabilidade civil, aplicado apenas quando as ordinárias
formas de compensação do dano não forem suficientes para afastar a lesão.
Assim, por exemplo, um condutor de empresa de transporte que se distrai por
poucos segundos, e é atrapalhado por outro veículo – o que poderia ter sido evitado, caso
estivesse o condutor atento, configurando uma culpa leve –, e destrói um monumento
cultural ou polui um rio utilizado para banho, poderá ser responsabilizado por um dano
moral coletivo, pelo simples fato da lesão ao patrimônio ambiental, que afeta toda a
sociedade, que ficará privada de usufruir do bem coletivo.
Por outro lado, caso verificado que sempre esse condutor dirigia deliberadamente
sem prestar a devida atenção, fazendo manobras perigosas, estando ciente a empresa
quanto a esse risco, sem nenhuma providência adotar na formação de seus profissionais,
poderão ambos responder por um dano social, já que a compensação, possivelmente, não
se mostrará suficiente, porquanto necessária uma medida educativa, cuja intenção seja
demonstrar que esse tipo de comportamento, grave e que coloca em risco a segurança
coletiva, não pode ser tolerado.
Ademais, o dano moral coletivo apenas pode ser pleiteado em ações de natureza
coletiva, por figuras legitimadas segundo um rol taxativo previsto em lei, ao passo que o
dano social não fica limitado às mesmas hipóteses de legitimação, podendo mesmo ser
reconhecido em ações individuais.
Em que pese o reconhecimento da distinção entre as duas categorias de dano,
podendo-se até mesmo admitir a sua coexistência, verifica-se que, quando aplicadas sobre
um mesmo interesse social (interesses difusos), não poderão ser cumuladas, para que não
ocorra bis in idem, ou seja duas indenizações sobre um mesmo pressuposto ou fato
gerador. Como o dano social acaba repondo à sociedade aquilo que dela foi retirado, ainda
que o seu intuito maior seja a punição, não se mostra razoável impor-se nova indenização,
pelo mesmo fundamento, mas para uma categoria diversa de dano. Quando ambos os
institutos forem passíveis de aplicação, o dano social absorverá, portanto, o dano moral
coletivo.
287
CONCLUSÃO
A atual sociedade de consumo, delineada pela globalização, pelos constantes
avanços tecnológicos, malgrado beneficie-se dessa era da tecnologia, é, ao mesmo tempo,
alvo de danos de massa625, figura antes não conhecida ou apreendida pelo direito, mas que,
atualmente, é objeto de grande preocupação.
Como visto, os presentes instrumentos de proteção e prevenção desses novos tipos
de danos não têm se mostrado adequados para o controle dessas lesões em cadeia, ou
mesmo não foram tais danos profundamente analisados no ordenamento jurídico brasileiro,
o que leva à sua ineficiente e deficitária remediação.
Quanto a essa realidade não pode ficar alheio o ordenamento jurídico. A
responsabilidade civil, que sempre enfrentou os conflitos que lhe demandaram resposta,
deve se amoldar à realidade de seu tempo, como sempre o fez, reconhecendo novas
categorias de danos, e ampliando as suas funções, ou fazendo valer aquelas que já há muito
lhe foram reconhecidas.
Certamente, a expressão “o menino é o pai do homem”626, de Machado de Assis,
presente em sua clássica obra Memórias Póstumas de Braz Cubas, revela a preocupação
com o futuro dos indivíduos, com a criação da pessoa, no sentido de que o menino é pai do
homem que ele se tornará; o homem é filho dos sonhos pretéritos e perspectivas do menino
que já foi.
A ausência de combatividade às condutas ilícitas, que rebaixam a qualidade de vida
da sociedade, e colocam em xeque a sua segurança, levam uma forte carga axiológica às
pessoas afetadas, que é introjetada por cada membro atingido, e passa, após algum tempo,
a ser vista talvez não como normal, mas usual. Essa é a mensagem que será passada ao
625
VINEY, Geneviève. As Tendências Atuais do Direito da Responsabilidade Civil. In TEPEDINO, Gustavo
(coord.). Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo:
Atlas, 2008, p. 51/52.
626
Essa expressão dá nome ao título do capítulo 11 da obra.
288
menino e, posteriormente, ao homem, caso não refreadas essas odiosas condutas, que
danificam o patrimônio moral coletivo.
Decerto, os atentados ao patrimônio social devem se tornar a exceção, e não a
regra, como ocorre hodiernamente. Os consumidores de determinados produtos ou serviços
sabem que não serão bem atendidos por certos produtores ou fornecedores, e muitas vezes
com isso se conformam, já que sabem que não obterão do Poder Judiciário a resposta que
precisam. Da mesma forma, os crimes ambientais não punidos dão a outros potenciais
poluidores o exemplo de que não há sanção para esse tipo de crime. Também aquele que
inadimple com as suas obrigações, e que não sofre qualquer punição, mostra à sociedade
que a prática ilícita compensa, incentivando a sua reiteração.
Por isso que as funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil mostram-se
fundamentais para o reconhecimento de novos instrumentos de proteção contra esses danos
de massa, ou melhor, para o reconhecimento de uma nova categoria de dano, que resulta
não da doutrina ou da legislação, mas de efusivos movimentos da própria sociedade, em
busca de uma resposta efetiva aos atentados contra o seu patrimônio.
Ao cabo deste trabalho, repete-se aquilo que foi afirmado em seu começo: não se
pretende aqui apresentar uma solução milagrosa para esses problemas. Mas, bem
estruturada a figura de uma nova categoria de dano, com a solidificação das bases em que
se assenta, definição de hipóteses de aplicação, e apontamento do real intuito de sua
utilização, torna-se possível, por meio de seu reconhecimento e emprego no caso concreto,
pela experimentação empírica, que se chegue a um ideal alcançável, atingível, não mais
distante e intangível.
Apenas com o reconhecimento de uma nova categoria de dano será possível aplicar,
explicitamente, uma indenização punitiva, com vista à prevenção de danos, da adoção de
um padrão de conduta esperado pela sociedade, deixando de se mascarar esse intuito em
compensações que acabam não se prestando nem para reparar a vítima, muito menos para
dissuadir o ofensor ou potenciais lesantes.
289
Também quanto ao caráter distributivo da indenização, a repartição dos valores ou
dos benefícios trazidos pela compensação (por meio de obrigações de fazer) à sociedade
torna mais factível a ideia de reparação coletiva, fugindo do aspecto individual, o que não
apenas contorna o repúdio ao enriquecimento sem causa tanto combatido pelos Tribunais,
quanto traz à reparação aqueles que, por falta de conhecimento, falta de interesse, ou falta
de dinheiro, mas também vítimas do mesmo dano, não ingressariam com uma ação
individual de reparação.
Manifestamente, a aceitação de tal medida trará mais coesão e força a uma
sociedade estressada, que perde, cada vez mais, a confiança em seus representantes,
sobretudo no Estado, que deveria protegê-la e por ela zelar.
Faz-se, da mesma forma, com que a sociedade possa agir em nome próprio,
legitimando os seus direitos, sem precisar aguardar a boa intenção dos já assoberbados
defensores da coletividade ou das desinteressadas associações na propositura de ações
coletivas.
E não é de esquecer que ampliar o espectro da resposta civil à ocorrência danosa é,
de maneira mais clara, “prestigiar dado axiológico fundamental ao sistema, haurido desde
a previsão do art. 3º, I, da Constituição Federal”. Se o objetivo básico da República é a
construção de uma sociedade justa e solidária, admite-se que tal só se dê com o
estabelecimento de relações que sejam equilibradas. “Sem razoável equilíbrio, nenhuma
relação é justa, tampouco solidária”627.
Que a sociedade não caminhe para o mesmo rumo de Braz Cubas, que, no ocaso da
vida, ponderando os seus fracassos, contentou-se com o fato de não ter deixado filhos, para
que não fosse transmitido “o legado de nossa miséria”. Somente com o exemplo das
condutas leais – e, consequentemente, a repressão daquelas inidôneas –, da verdadeira
solidariedade, será possível que a coletividade prospere, harmonizando-se de forma
equilibrada e justa.
627
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Responsabilidade Civil Pelo Risco da Atividade. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 166.
290
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