DE VINCANÇA NO CONTO
FONSEQUIANO*
DOI10.18224/gua.v8i1.6567
A TORTURA COMO INSTRUMENTO
Cloves da Silva Junior**
Renata Rocha Ribeiro***
Resumo: este artigo apresenta uma análise do entrelaçamento entre violência e relações de
poder para a operacionalização da vingança a partir do conto “Laurinha”, de Rubem Fonseca. As
representações dos atos de violência/vingança e os aspectos identitários das personagens são analisadas por meio de pesquisa bibliográfica com suporte teórico de Cuche (2002), Foucault (2003;
2015), Martínez (2004), Schøllhammer (2011), dentre outros.
Palavras-chave: Violência. Relações de poder. Vingança. Identidades. Rubem Fonseca.
*
**
Recebido em: 29.05.2018. Aprovado em: 27.05.2018.
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Goiás. Mestre em Letras e Linguística - pela mesma instituição. Especialista em
Língua Portuguesa, Literatura e Ensino (2012) pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) - Campus de
São Luís de Montes Belos. Licenciado em Letras-Português/Inglês e respectivas literaturas (2009) pela
UEG - Campus de Jussara. É professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (Classe D-I, Nível 1)
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (Campus Itumbiara), e professor efetivo
(nível IV) da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás (SEDUCE/GO). E-mail:
[email protected]
*** Doutora em Estudos Literários (2010) pela Universidade Federal de Goiás. Mestre em Estudos Literários
(2005) e Bacharel em Letras/Literatura (2002). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal
de Goiás. Desenvolve a pesquisa de pós-doutoramento intitulada “Memórias da ditadura em romances
de Adriana Lisboa e María Teresa Andruetto” junto ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade Federal de Minas Gerais (2018-2019). E-mail:
[email protected]
Guará, Goiânia,v. 8, n. 2, p. 201-213, jul./dez. 2018.
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O
tema da vingança, entendida como a “1. Ação ou efeito de vingar(-se), de revidar ofensa ou
agressão recebida; desforra. 2. Qualquer coisa que castiga; punição” (BECHARA, 2011, p.
1.136), é recorrente na literatura em poesia ou prosa, modificado de acordo com os projetos
estéticos de cada escritor/poeta, e que pode atuar como a mola propulsora para o desenrolar do enredo, envolvendo, sempre, relações de poder que se manifestam por motivos diversos.
É comum perceber, nas narrativas, o processo de maturação da raiva e da vontade de defender a honra que culmina com a ação de vingança. Percebe-se que a primeira instância do processo é
o momento de conservação interior/mental do acontecimento que motivou o ódio, o que desencadeia,
em seguida, o acumulo de outros dissabores que permitem que esse ódio cresça gradativamente, o
que possibilita o ato de vingança.
Duas outras caracterizações são também comuns em relação ao agente de vingança que conduz a ação: geralmente, trata-se de um indivíduo considerado pacífico que foi retirado de seu estado
de controle e, por isso, modifica seu modo de olhar. Além disso, percebe-se, em várias narrativas,
um comportamento frio e calculista naquele que executa a vingança, sem remorsos que indiquem
arrependimento pelo ato cometido.
Nas narrativas fonsequianas, tratando especificamente dos contos, é possível identificar casos de vingança em várias coletâneas. Dentre elas, pode-se citar Pequenas criaturas (2002), merecendo destaque os contos “Ganhar o jogo”, “Nove horas e trinta minutos” e “Madrinha de bateria”;
e “Francisca”, da coletânea Ela e outras mulheres (2006), dentre outros.
De acordo com Elias (1994, p. 190-191), a agressividade mantém-se condicionada: “é confinada e domada por inumeráveis regras e proibições, que se transformaram em autolimitações. [...]
sua violência imediata e descontrolada aparece apenas em sonhos ou em explosões isoladas que
explicamos como patológicas”1. Portanto, entende-se que o estado de suspensão da agressividade
é transformado em função de explosões de ordem sentimental que provocam os atos de violência.
Nesse contexto, aquele que foi insultado deseja, na maioria das vezes, causar um sofrimento/dor
naquele(a) que fez a ofensa. Por esse caminho, entende-se a vingança como uma lição que tem a
função de afastar qualquer tentativa de repetição de um ato como esse: o que o indivíduo quer, ao
praticar a vingança, é causar medo e evitar a repetição das ofensas.
Já que a ofensa pode ser construída por meio de agressões verbais e/ou físicas, e considerando
o verbete de Bechara (2011) apresentado inicialmente, percebe-se que o vocábulo vingança já direciona um caminho ladeado por práticas de violência, tendo em vista que o gramático aponta que a
vingança é “qualquer coisa que castiga”, uma “punição”, de modo que castigo e punição, comumente, estão associados a formas de violência.
Para evidenciar e analisar os movimentos processuais de constituição e operacionalização da vingança, toma-se como corpus o conto “Laurinha”, integrante da coletânea Ela e outras mulheres (2006).
RELAÇÕES DE PODER/VIOLÊNCIA E AS MANIPULAÇÕES DE UM NARRADOR SUSPEITO
No conto “Laurinha”, o narrador-personagem, após o falecimento de sua esposa Teresa, fica
responsável por cuidar de sua filha Laurinha, juntamente com Manoel, irmão do narrador e tio da
menina. Quando estava com 10 anos, a filha do narrador foi encontrada morta em um terreno baldio,
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vítima de estupro e espancamento, e o estuprador, chamado Duda, já havia sido identificado pela polícia. Porém, o narrador é informado por um policial de que não havia certeza de que o criminoso permaneceria preso, já que havia possibilidade de que ele pudesse responder ao processo em liberdade.
Diante dessa situação, o narrador e seu irmão Manoel sobem até o morro e pagam para que
uns rapazes tragam o homem que estuprou Laurinha. Depois disso, seguem para uma casa de campo
do narrador e lá começam a torturar o homem, também para vingar o ato cometido. Mesmo sob os
discursos de arrependimento, o narrador e Manoel torturam Duda, lentamente, até a morte, e em seguida, colocam fogo no corpo para apagar as evidências do que havia ocorrido no local.
A princípio, o narrador-personagem – que não é nomeado – constrói a situação inicial do conto
com a intenção de causar pena no leitor. Em primeiro lugar, menciona a morte da esposa Teresa, o
que fez com que a responsabilidade pela criação da filha Laurinha recaísse sobre ele, que ainda conta
com a ajuda do irmão Manoel.
As características iniciais de sua identidade começam a ser delineadas quando diz: “[...] eu
chorei muito. Não me incomodo de dizer isso. Sempre que me emocionava eu chorava, até no cinema” (FONSECA, 2006, p. 90). A partir daí, começa a indicar que trata-se de uma pessoa pacífica,
como se precisasse justificar que o ato cometido ao final da narrativa foi uma exceção em relação às
suas práticas e modos de agir.
Nesse mesmo caminho, o irmão Manoel também carrega consigo esses mesmos marcadores
identitários: “Meu irmão Manoel também era assim, chorava por qualquer coisa. É uma característica
da minha família, temos o coração mole, qualquer coisa faz nossos olhos se encherem de lágrimas,
um passarinho morto, um cachorrinho abandonado [...]” (FONSECA, 2006, p. 90). Além de evidenciar a presença de um coração mole, que por si só já indica que a personagem emociona-se facilmente, o uso dos vocábulos “pássaro” e “cachorro” no grau diminutivo sintético assume uma função
estilística que potencializa a carga afetiva que essas personagens demonstram.
O narrador faz questão de dizer que não se incomoda em afirmar que chora por qualquer coisa
e essa justificativa é enunciada por ele levando em consideração que não é comum ao homem, de
acordo com as estruturas sociais de dominação masculina (BOURDIEU, 2012), expressar sentimentos e emoções. Essa justificativa também faz parte dessa construção emotiva da situação inicial do
conto: o narrador é um homem pacífico, emotivo e só torturou o estuprador porque precisava fazer
com que ele sentisse uma dor que estivesse próxima à que ele sentiu com a perda da filha. Esse ato,
na visão criada por ele, não condiz com a sua identidade ou com suas práticas cotidianas.
No enterro da esposa Teresa, o narrador-personagem menciona que ele e seu irmão choraram
bastante e que Laurinha contava com apenas 5 anos. A menina não entendia o que estava acontecendo, “não que estranhasse ver o pai e o tio chorando, ela já estava acostumada” (FONSECA, 2006, p.
90). Tal afirmação é usada no discurso narrativo para comprovar a suposta emotividade do narrador,
o qual mostra-se cuidadoso no trato com a história que conta ao leitor, tentando amarrar uma ideia à
outra. Um dos pontos altos dessa situação de pena que o narrador quer causar pode ser observado na
seguinte passagem:
[...] essa coisa de dizermos a ela que a sua mãe tinha ido para o céu a deixava meio confusa.
‘Ela vai voltar do céu, a mamãe?’, Laurinha perguntava. E eu respondia que sim, com um so-
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luço. Laurinha foi crescendo e ficando cada vez mais parecida com a mãe. [...] ‘Era o encanto
da minha vida e da do Manoel [...]’ (FONSECA, 2006, p. 90, grifos meus).
Ora, a cena descrita pelo narrador atua de forma impactante pela criação da imagem de uma
menina de 5 anos que não consegue entender a morte da mãe e pergunta, inocentemente, sobre o
retorno de sua genitora. O pai, aos soluços, dá esperanças de retorno, considerando que a criança não
teria capacidade para entender o ocorrido naquele momento. No final do trecho, além da informação
de que a menina estava ficando parecida com mãe, o narrador menciona que ela era o encanto de sua
vida e do irmão Manoel. A menina transforma-se no maior bem afetivo dessa família, o que também
é inserido na narrativa para justificar a necessidade de vingar a sua morte.
As marcas que apresentam uma história cuidadosamente conduzida continuam quando o narrador também justifica porque Manoel vivia com ele e a filha. Segundo o narrador, o irmão “[...] nunca se casara nem se casaria, ele tinha um lábio leporino que fora mal operado e o seu rosto tinha um
esgar permanente muito feio, ele sabia disso, e as garotas fugiam dele. Assim, a família do Manoel
éramos eu e Laurinha” (FONSECA, 2006, p. 91). Há nessa passagem uma extensão da situação de
piedade que estimula um sentimento de compaixão em relação a Manoel, que já havia sido caracterizado como emotivo e nesse fragmento fica evidente que não tinha mais ninguém além do irmão e da
sobrinha, destacando, dessa forma, a importância que tinham para ele.
Criada essa situação de pena por meio dos recursos apontados, o narrador volta-se para a narração do acontecimento que desestabiliza a situação inicial do conto. Ele tinha o hábito de buscar a
filha no colégio, mas, não o fez em um determinado dia, sem explicar o motivo disso. Como a menina
não apareceu em casa, juntamente com Manoel, procuraram por vários lugares até serem informados
de que ela havia sido encontrada morta em um terreno baldio. O pai e o tio, desolados, foram chamados até o Instituto Médico Legal (IML) para fazer o reconhecimento do corpo:
O senhor se prepare para algo muito chocante, disse o legista, O estuprador espancou-a
com ‘muita violência, quebrou os dentes e o nariz dela, depois estrangulou-a’, a menina tem
‘equimoses pelo corpo todo’. O legista abriu uma gaveta de metal onde estava o corpo de
Laurinha. O rosto dela estava deformado devido aos golpes violentos que sofrera. ‘Parecia
uma máscara, uma grotesca caricatura’ (FONSECA, 2006, p. 91, grifos meus).
A tentativa do legista de abrandar a cena que se desenrolaria não é capaz de preparar o narrador para o que vivencia depois. Além do próprio estupro ser uma violência sexual sobre o corpo de
outrem, o estuprador espancou, arrancou dentes e quebrou o nariz de Laurinha, deixando equimoses
por todo o seu corpo. Nesse caso, configura-se uma violência simbólica, que agride emocionalmente
a garota, e uma violência física que tinge o seu corpo com marcas vermelhas, azuladas e amareladas:
as cores das equimoses, que se tornam indeléveis para o narrador-personagem, na condição de pai
da menina.
A intensidade gradativa dos atos praticados por Duda pode ser percebida a partir da imagem
disforme de Laurinha, conforme nota-se no fragmento anterior. A princípio, o advérbio de intensidade muita contribui para destacar a proporção de como o ato de violência foi praticado. Depois
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disso, a descrição que culmina com a desfiguração do rosto da menina é responsável por provocar,
no leitor, o auge do sentimento de pena em relação ao pai e ao tio de Laurinha, o que pode ser visto
como justificativa para a vingança cometida. O uso dos vocábulos máscara e caricatura colaboram
para a construção da imagem de um rosto excessivamente deformado e bizarro, características que,
por extensão, são aplicadas ao ato de violência.
Em seguida, um policial explica para o narrador-personagem que o estuprador já havia sido
identificado, porém, deixa evidente a dificuldade em conseguir localizá-lo. Manoel, após recuperarse do desmaio ocasionado pela visão grotesca de sua sobrinha após o estupro, questiona se Duda
ficaria preso, ao que o policial responde: “Bem, como não será flagrante, o delegado vai ter que pedir
a prisão preventiva dele ao juiz, só depois que a prisão preventiva for decretada o Duda poderá ser
preso, isso se for decretada, do contrário ele vai ser processado em liberdade. Interessante, disse o
meu irmão” (FONSECA, 2006, p. 92, grifos meus).
A resposta do policial, na visão de Manoel, não é satisfatória, pois a prisão de Duda não era
dada como certa, e abre caminho para a possibilidade de que ele permaneça em liberdade quando
deveria pagar pelo que havia feito com Laurinha. A repetição do vocábulo interessante em dois momentos do diálogo, de modo pensativo e como quem trama algo, faz com que haja uma impressão de
que é Manoel quem tem a ideia de tentar localizar Duda, como se conduzisse os atos, e não o pai da
menina.
Em momentos anteriores da narrativa, havia um tio penalizado com a situação disforme do
rosto de Laurinha e com as marcas em seu corpo, chegando a desmaiar – considerado um ato de fraqueza –, no entanto, nesse momento, Manoel apresenta-se como um tio que foi motivado a encontrar
meios de punir aquele que violou o corpo de sua sobrinha.
Nesse sentido, é possível afirmar que a violência praticada contra um ente querido fez com que
fosse despertado esse senso de justiça e vingança. Manoel mobiliza outros marcadores identitários
para lavar a honra do irmão e da sobrinha, marcadores que induzem-no a encontrar uma alternativa
diferente daquela que poderia não acontecer se apenas a polícia tomasse conta do caso. Eles, pai e
tio, precisam da certeza de que o culpado seria punido.
Pode-se pensar, nesse momento, em um caso de estratégia de identidade, a partir das incursões
teóricas de Cuche (2002). Enquanto o policial dava-lhe informações sobre o paradeiro de Duda,
Manoel mantinha seu caráter pacífico para que não pudesse se tornar suspeito do que estava por vir,
apresentando um posicionamento tranquilo à medida que recebia as informações dadas pelo policial.
No conto em análise, pode-se conjecturar que o estado de suspensão da agressividade, com
base nas afirmações de Elias (1994), foi construído a partir de uma vida tranquila vivida pela família
do narrador. Após a morte da esposa Teresa, o ponto de vista que fica evidente é que o narrador e
Manoel entenderam que era necessário cuidar de Laurinha da melhor forma possível e dar a ela carinho suficiente para preencher a lacuna deixada pela ausência da mãe. Assim, não havia motivos para
maiores tristezas ou para situações de agressividade.
Em razão do acontecido, a agressividade condicionada retorna em maiores graus de intensidade, conforme pode ser depreendido nas sequências de tortura que se desenrolam após a captura do
estuprador. Ao saírem do IML, o narrador e Manoel dirigem-se até o banco e retiram todo o dinheiro
que estava depositado em suas contas.
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Isso indica que arriscariam tudo para efetivar seu intento, mesmo que no futuro passassem
por necessidades advindas da falta de dinheiro. Eles estavam dispostos a qualquer coisa para justiçar
a morte de Laurinha. Para tanto, encaminham-se para o morro e pagam para que uns rapazes tragam
Duda, que chega com as mãos amarradas atrás das costas.
Desse modo, entende-se que, como o poder judiciário não traria a certeza da punição, Manoel e o narrador-personagem transformam-se em uma espécie de personificação da lei, que é elaborada
e executada de acordo com o caráter subjetivo e moral dessas personagens e da situação. Como o poder público não consegue garantir a penalização para o ato imoral e ilegal executado por Duda, resta
a Manoel e ao narrador garantir uma punição que faça com que o estuprador pague com sofrimento
todo o mal causado à família da menina: uma justiça com as próprias mãos.
Essa insatisfação com os processos legais é retomada no conto “Justiça”, que compõe a
penúltima coletânea de Rubem Fonseca denominada de Histórias curtas (2015). Ironicamente, o
narrador-personagem dessa narrativa é um policial que trabalha na delegacia que trata dos crimes
contra dignidade sexual e que evidencia sua frustração quando menciona que nunca haviam conseguido condenar nenhum cafetão, responsável pela exploração de mulheres prostitutas.
Diante do posicionamento da delegada, quando afirma que a burocracia legal impedia, muitas
vezes, que a condenação fosse efetivada, o narrador decide, por sua própria conta, matar os cafetões.
É interessante que, assim como no conto “Laurinha”, o narrador de “Justiça” também comete os
homicídios motivado por uma carga forte de subjetividade: sua irmã já havia sido explorada por um
cafetão.
A ironia desta narrativa consiste no posicionamento de uma personagem que trabalha na execução das leis sem, no entanto, acreditar na efetividade da instituição, passando a punir os cafetões
com suas próprias mãos, uma punição subjetiva que tem suas raízes no homicídio do homem que
explorava sua irmã. Esse é o ponto de partida para os demais ataques que se seguiram.
Em “Laurinha”, os irmãos transformam-se na personificação de um poder que, legalmente,
deveria ser exercido por instituições do Estado – como a polícia –, mas que não se exerce em função de vários fatores, como os imbróglios das próprias leis instituídas, a burocracia do sistema e a
ineficiência de alguns órgãos e/ou servidores. Foucault (2015), em suas reflexões sobre o caráter
microfísico do poder, estabelece que o poder não é exercido apenas em uma direção – do Estado para
o indivíduo, por exemplo. Ele se alastra e perpassa todas as esferas sociais e não se localiza apenas
em lugares privilegiados, possibilitando a qualquer indivíduo que exerça determinado tipo de poder
de acordo com os instrumentos que possui.
Em outra obra, Foucault (2003) explica que as relações de poder abrem possibilidade de
resistência. Desse modo, no caso em tela, o narrador-personagem e seu irmão Manoel não aceitam
tacitamente a situação que, de certa maneira, estava imposta a eles: talvez, o culpado pelo estupro de
Laurinha não fosse preso. Logo, ele não pagaria pelo ato de violação da forma como achavam que
deveria ser. Portanto, há uma resistência nas relações de poder representadas no conto, fazendo com
que as personagens não concordem com as imposições instauradas e tentem subvertê-la para que
Duda não fique impune, demonstrando a reversibilidade dessas relações.
Retornando ao momento da captura de Duda, Manoel e o narrador-personagem seguem para
uma casa de campo desse último, localizada em Araruama. Manoel, em determinado momento, per-
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gunta ao irmão se as facas estavam afiadas, o que colabora para um possível prenúncio dos atos que
estavam prestes a cometer.
O tio de Laurinha, que momentos atrás apresentava-se impactado com o corpo da sobrinha, retira todas as vestes do pacifismo e da emotividade para conduzir a situação, juntamente com o irmão,
de forma fria e calculista, principiando pela tortura psicológica, como pode ser observado:
Tiramos Duda do carro e desamarramos as mãos dele. ‘Manoel fez um café. Quer um café?’
Sim, obrigado. Enquanto ele bebia o café, perguntei, ‘por que você fez aquilo com a menina?’
Não sei, ele respondeu, foi uma loucura, ‹quando vi ela andando na minha frente com aquela
saia curtinha do colégio me deu uma coisa que eu não resisti’. Mas estou arrependido. [...]
‘Precisava ter socado a cara e o corpo dela com tanta violência?’ Não sei o que deu em mim,
disse Duda. ‹Estou muito arrependido. Deus vai me castigar. Deus que se foda’, eu disse
(FONSECA, 2006, p. 93-94, grifos meus).
Esse fragmento, que indica o ponto inicial da sequência de tortura desenrolada no conto,
apresenta a aparente tranquilidade das personagens, principalmente de Manoel, ao questionar os
motivos do estupro. Essa tranquilidade pode ser evidenciada a partir da preparação do café e sua posterior apreciação enquanto o interrogatório era realizado, o que remete ao conhecido ditado popular
que diz que a vingança é um prato que se come frio.
O final dessa passagem pode ser vinculado ao que foi dito por Tomás Eloy Martínez (2004, p.
10), em seu ensaio intitulado “A sinfonia do Mal”: “os personagens de Fonseca habitavam – e continuam a habitar – um mundo anterior a Deus, ou no qual Deus é indiferente, ou quem sabe um mundo
em que Deus é desnecessário”. Vê-se, então, a construção de um mundo ficcional em que o próprio
homem assume a condução das ações, numa completa aversão à filosofia teocentrista que regeu a
Idade Média. Nas narrativas fonsequianas, em geral, é o homem quem julga e executa as punições
que considera necessárias.
Observa-se, durante a passagem da narrativa citada acima, que a paciência é crucial para a
efetivação do ato de tortura. A tranquilidade das personagens contribui para a tortura psicológica do
estuprador que, ao dizer os motivos de seu ato, apresenta sinais de desespero e repete por três vezes
que está arrependido. Afinal, pode-se deduzir que estava prevendo o que estaria por vir a partir da
associação de três fatores que cooperam para essa tortura inicial: a forma como foi capturado, o
transporte no porta-malas de um carro, e a estadia em um lugar afastado.
A resposta para a pergunta “por que você fez aquilo com a menina?” evidencia um discurso permanente e recorrente nas estruturas simbólicas de dominação masculina, que caracteriza a mulher como
culpada pelo estupro a partir do modo como caminha e/ou pelas roupas que veste. De acordo com os
discursos dessas estruturas, é a mulher quem dá indícios para ser estuprada, e em “Laurinha”, a menina
foi estuprada porque estava com uma saia curtinha e Duda não “resistiu”. Para fundamentar esse ponto
da discussão, é interessante convocar as reflexões de Rita Laura Segato (2005) constantes no texto “Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das mulheres de Ciudad Juarez”.
Em uma das seções desse texto, a teórica menciona a condução de um estudo, entre os anos de
1993 a 1995, sobre a mentalidade dos condenados por estupro a partir dos relatos de presos de uma
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penitenciária de Brasília-DF. Segundo ela, os relatos respaldam “[...] a tese feminista fundamental
de que os crimes sexuais não são obra de desvios individuais, doentes mentais ou anomalias sociais,
mas sim expressões de uma estrutura simbólica profunda que organiza nossos atos e nossas fantasias
e confere-lhes inteligibilidade (SEGATO, 2005, p. 270). Nesse sentido, percebe-se que o estupro está
mais ligado com a necessidade de comprovação da virilidade, partindo da ideia de uma socialização
do ato com outros homens, do que com possíveis doenças mentais que podem ser utilizadas para
escamotear esse tipo de violência.
Na lógica dos discursos de dominação masculina, considerando os postulados de Bourdieu
(2012) e de Alves (2004), depreende-se que a partir do momento em que um homem vê uma mulher,
é imperioso que encontre uma forma de estabelecer algum tipo de contato, seja por meio do flerte, da
cantada e de atitudes consideradas potencialmente mais agressivas como o estupro. Trata-se de uma
prova de masculinidade que precisa ser realizada constantemente.
Para Segato (2005, p. 270, grifo da autora) “[...] o estupro é o ato alegórico por excelência da
definição schmittiana de soberania – controle legislador sobre um território e sobre o corpo do outro
como anexo a esse território”, que se processa por meio da dominação física e psicológica de outrem.
Duda, além de violar o corpo da menina de 10 anos, não se contenta apenas com o ato sexual e distribui socos no rosto e no corpo de Laurinha.
Isso contribui para o desenvolvimento e ampliação de uma raiva controlada que é nutrida por
Manoel e pelo narrador. Mesmo sob o apelo incessante de Duda sobre o castigo divino que receberia,
o narrador indica que não se importava para a punição que ele receberia dos céus. O que importava a
ele era executar o castigo terreno, a dor corporal e concreta, conforme pode ser observado nas sequências seguintes da narrativa:
Tiramos a roupa de Duda e o amarramos na cama, as pernas e os braços bem abertos. Colocamos as facas sobre a mesinha-de-cabeceira. O ferro de cauterização foi posto no gás aceso
do fogão. Pelo amor de Deus, não façam isso comigo, pediu Duda. Tem certeza que a cauterização evita qualquer infecção? Não queremos que ele morra, queremos? De jeito nenhum,
respondeu Manoel, queremos que ele viva. Eu corto e você cauteriza, eu disse. Pelo amor de
Deus, implorou Duda, eu estou arrependido. Agarrei os colhões de Duda e cortei lentamente,
ouvindo os gritos lancinantes dele. Peguei o saco escrotal com os dois testículos e joguei na
lata de lixo. Os gritos de Duda não cessavam e aumentaram quando Manoel, com o ferro em
brasa, cauterizou a ferida (FONSECA, 2006, p. 94).
A forma como a descrição da tortura é conduzida remete ao ato de violência praticado pelo
conhecido narrador-personagem fonsequiano do conto “O Cobrador” (2010) contra o casal jovem,
cujo homem teve a cabeça decepada e sua esposa assassinada com tiros. O detalhamento minucioso
da castração e das outras formas de tortura provoca, no leitor, sentimentos e sensações de repugnância e horror. A identidade mobilizada pelas personagens mostra-se totalmente diferente daquela que
foi apresentada no início do conto: nesse fragmento, o narrador e seu irmão planejam cada detalhe
do ato de tortura, desde a posição de Duda na cama, com braços e pernas abertos, até o processo de
cauterização.
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O estuprador, assim que vê os instrumentos, entende o próximo passo e implora por misericórdia, enquanto os irmãos divertem-se com a situação, conforme é observado pela maneira como lidam
com a castração, e também pelas frases “Não queremos que ele morra, queremos? De jeito nenhum,
respondeu Manoel”, que indicam a zombaria com que tratam esse ato.
Enquanto a tortura física não começa, são essas marcas no discurso dos irmãos que colaboram
para que a tortura psicológica seja eficaz. É através da dominação física e psicológica que Manoel e
o narrador-personagem controlam Duda, o qual se encontra em uma posição totalmente desprivilegiada nessa relação de poder e sem possibilidade de subversão, afinal, estava, literalmente, de mãos
atadas.
Na posição de centro de irradiação do poder, os irmãos utilizam várias estratégias para controlarem emocionalmente o estuprador, tais como a tranquilidade, a ironia e o humor – que denotam
a diversão com a situação – e a frieza que emana deles. A castração é feita lentamente e o saco escrotal, logo em seguida, é descartado na lata de lixo. Apesar disso, o horror desse momento reside na
descrição da cauterização do corte, com o ferro em brasa, afim de evitar que houvesse infecção e que
Duda morresse antes da execução de tudo o que haviam planejado:
Estou sentindo muita dor, disse. ‘Sua voz soava normal’, apenas um pouco rouca. Olha
a voz do cara, Manoel, eu disse. Ainda é cedo. Deve demorar uma semana, a coisa não
acontece da noite para o dia. ‘Mantivemos Duda amarrado, dando mingau na sua boca’.
Ele chorava muito, pedia perdão, dizia que queria morrer, com a ‘sua voz normal’. Passada
uma semana eu disse ao Manoel que talvez a coisa funcionasse apenas quando o sujeito era
garotinho, com adulto era diferente. Eu e Manoel nos aproximamos da cama e eu disse para
o Duda, ‘queríamos que você ficasse com a voz fininha, como se fosse uma mulherzinha’.
Mas não ficou, disse Manoel, se ficasse íamos soltar você. Azar o seu (FONSECA, 2006, p.
95, grifos meus).
Nesse contexto, faz-se necessário também analisar o impacto da castração para a masculinidade do homem. Na associação estabelecida entre virilidade e desejo sexual, a punição para o estupro
é a retirada do pênis, o órgão que traz a potência fundante do homem, como foi visto no primeiro
capítulo. A castração é uma espécie de punição perpétua que inutiliza o homem e faz com que ele
deixe de sê-lo, a partir do entendimento dessa ligação entre órgão biológico e gênero que é comum
nos discursos do patriarcado. Portanto, a essência masculina de Duda foi retirada, o falo, representação da virilidade que, diante da ausência, provoca segregações em determinadas esferas sociais,
sobretudo naquelas em que os discursos de dominação masculina são mais incisivos.
Outra prova da associação entre o órgão sexual e gênero fica evidente quando os irmãos acreditam que a extração do saco escrotal faria com que Duda passasse a ter uma voz mais fina, que se
tornaria “mulherzinha”. Após a castração, Duda desmaia, e os irmãos passam a noite sentados ao
lado cama apreciando o ato que acabara de ser realizado e saboreando a derrocada daquele que causou tanto mal à família deles. Antes prosseguirem com os procedimentos de tortura, numa fala que
soa como gozação, Manoel explica que, se a voz de Duda estivesse fina, ele e o irmão deixariam que
ele fosse embora, no entanto, como isso não aconteceu, continuariam com a vingança:
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A melhor maneira é quebrar os ossos dele, aos poucos, até ele morrer. Era assim que torturavam os caras, antigamente. Pegamos duas barras de ferro na garagem e um martelo e voltamos para o quarto. [...] Vamos começar pelos tornozelos, disse Manoel. ‘Lentamente, eu disse,
lentamente, o puto tem que sofrer’. Quebramos com as barras de ferro os dois tornozelos de
Duda. Esperamos um pouco e quebramos os ossos da canela [...]. Ele gritava como um louco.
‘Mais um intervalo para ele se recuperar, não queríamos que ele desmaiasse de dor’, e então
esfacelamos seus dois joelhos. Ele continuava gritando e ‘agora defecava e urinava na cama’
(FONSECA, 2006, p. 95-96, grifos meus).
Esse fragmento pode ser associado aos relatos de suplício que Foucault (2013) utiliza para abrir o
primeiro capítulo de seu livro, considerando a referência que a personagem faz às torturas que eram executadas
antigamente, quando o suplício era um espetáculo presenciado pelo público em geral. Diferentemente dos
esquartejamentos com auxílio de tração animal, mencionados por Foucault (2013), o narrador-personagem
e seu irmão começam a destruir, lentamente, o corpo do estuprador, com alguns intervalos para que Duda
não morresse rapidamente e pudesse sofrer cada agressão praticada contra seu corpo.
Com as barras de ferro e o martelo, quebraram os tornozelos, os ossos da canela, e esfacelaram os
dois joelhos. Os gritos lancinantes de Duda juntavam-se à sinfonia do Mal mencionada por Martínez (2004,
p. 10), ao direcionar suas análises para a prosa de Rubem Fonseca, que segundo ele, “[...] instala o medo ou
o Mal no próprio interior da linguagem, cada uma de suas palavras é como uma nota musical arrancada da
sinfonia do Mal”. Nesse sentido, entende-se que os gritos, para os irmãos, compunham uma sinfonia agradável aos seus ouvidos: eram gritos que justiçavam a morte de uma menina inocente que fora violentada
brutalmente. Esses gritos, associados aos atos fisiológicos que o estuprador começa a realizar, involuntariamente, contribuem para uma construção sinestésica que traduz a dor da tortura que era realizada.
Na sequência de sua análise, Martínez (2004, p. 10) prossegue dizendo que, “a exemplo dos
poetas, ele [Rubem Fonseca] faz as palavras tocarem a borda extrema de seus sentidos. Lendo-o,
sente-se o poder de dissuasão ou de perversão que até a mais surrada palavra pode comportar”. Isso
pode ser notado nessas descrições detalhadas que o escritor elabora, chegando a dizer o indizível, e a
provocar sensações variadas no leitor.
Em seguida, após quebrarem os ossos da parte inferior do corpo de Duda, os irmãos partem
para os membros superiores e chegam até a cabeça:
Outro intervalo. Em seguida, com as barras de ferro, quebramos os cotovelos, depois as costelas, depois a clavícula, sempre com um intervalo entre uma coisa e outra. Com um martelo
parti todos os dentes dele. Então ele começou a gritar fininho, com a voz que nós queríamos
que ele tivesse quando arrancamos os seus colhões. Mas agora era tarde, fazia mais de três
horas que estávamos arrebentando os ossos dele. O puto morreu coberto de merda, mijo e
sangue (FONSECA, 2006, p. 96).
Cenas como essa traduzem o que foi dito por Bosi (2002) e Candido (2011) quando se referem
a uma tendência brutalista ou ao realismo feroz, respectivamente, para caracterizar a prosa de Rubem
Fonseca. Emerge nesse conto dois cobradores que não tencionam cobrar da sociedade as necessida-
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des básicas de sobrevivência, visto que isso o narrador e seu irmão Manoel possuem, já que, inclusive, tinham uma quantia em dinheiro depositado no banco, por exemplo.
Os cobradores do conto “Laurinha” realizam um acerto de contas, a cobrança de uma vida que
se foi, uma cobrança pagável apenas com a dor física e psicológica. Nas palavras de Candido (2011),
percebe-se que a descrição desses atos agride o leitor, configurando uma violência que extrapola as
sensações vivenciadas pela personagem e provoca reações naquele que perscruta o texto como leitor.
Em suas considerações sobre a coletânea de contos Ela e outras mulheres (2006), Schøllhammer
(2011, p. 41, grifo do autor) menciona que esse conjunto de narrativas mostra que Fonseca “[...] não
perdeu a mão na arte do conto breve e volta, de certa maneira, aos temas do auge brutalista”. Além das
atrocidades praticadas contra Duda, a brutalidade dos irmãos é realçada a cada intervalo esperado para
que o estuprador não sucumba sem que seu corpo físico e mental esteja totalmente destruído.
O estuprador só pode morrer depois que todos os ossos estiverem quebrados e depois que todas
as manifestações de crueldade de seus algozes forem cumpridas. A partir daí, é possível conjecturar
o nível de exercício de poder do narrador-personagem e Manoel: eles controlam o tempo de vida de
sua vítima. As pausas na tortura configuram-se como o momento necessário de uma pequena recuperação para que o espetáculo de horror prosseguisse durante uma semana e alguns dias, aproximadamente, além de ser o tempo que os irmãos esperaram para comprovarem se a voz de Duda se tornaria
afeminada após a extração do saco escrotal.
Depois de quebrarem os cotovelos, clavícula, costelas e dentes, o fim da vida de Duda começa
a transparecer a partir da voz fina que começa a emitir e que, segundo os irmãos, aparece tarde demais. Duda desfalece em uma profusão de fezes, urina e sangue: são essas substâncias/excrementos
expelidos por seu corpo que acabam por envolvê-lo na passagem da vida para a morte. Por fim, a
satisfação que encerra o ato de vingança é assistir o corpo de Duda ser consumido em chamas no
quintal – no intuito de apagar possíveis evidências –, enquanto os irmãos bebiam cerveja e comiam
salsicha em comemoração pelo encerramento da tortura.
A vingança completa traz a “paz” que necessitavam, pois conseguem realizar atos comuns
como beber e comer enquanto o corpo do torturado arde na fogueira. Vale ressaltar que, no meio do
conto, Manoel pergunta ao narrador, depois de cortarem os testículos de Duda, se estava com fome.
O narrador diz que não, Manoel também. Ora, a fome, nessa cena, ainda não é possível, visto que a
castração ainda era pouco para eles. Só depois de quebrar todo o corpo de Duda, matar e atear fogo
que sentem fome e sede. Só depois de cumprir todo o ritual de vingança é que conseguem finalmente
satisfazer as necessidades de fome e sede.
Desse modo, “[...] Fonseca cria uma posição estoica diante da barbárie, uma mistura de aceitação da realidade, na sua grotesca crueldade, e uma atitude de humor conformada com a existência
humana” (SCHØLLHAMMER, 2011, p. 42), que se traduz nos momentos em que pode ser percebido um aparente divertimento com a destruição do outro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A articulação de entre violência e relações de poder manifesta-se a partir do exercício de um
poder de justiça que não se efetiva por meio de instituições legais – o poder da punição –, fazendo
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com que as personagens utilizem a violência como instrumento de vingança. Eles combatem o
estupro a partir de seus próprios meios até o aniquilamento de Duda. Para isso, Manoel e o narradorpersonagem mobilizam determinados marcadores identitários que possibilitam a execução dos atos
brutais que foram apresentados nas passagens finais da narrativa.
Duda é silenciado a partir dos instrumentos e atos de tortura executados por Manoel e pelo
narrador-personagem para comunicar ao estuprador que, se a lei instituída pelo Estado não consegue
ser efetiva no sentido de puni-lo pelo crime cometido, eles tratarão de puni-lo da forma como acham
que ele merece. O ato de tortura, desse modo, configura-se como uma lição e como defesa da honra
dos irmãos e de Laurinha.
TORTURE AS AN INSTRUMENT OF REVENGE IN THE FONSECA’S SHORT STORY
Abstract: this article presents an analysis of the interweaving between violence and power relations for the operationalization of revenge from the short story “Laurinha”, by Rubem Fonseca. The
representations of acts of violence/revenge and the identity aspects of the characters are analyzed
through a bibliographical research with theoretical support of Cuche (2002), Foucault (2003; 2015),
Martínez (2004), Schøllhammer (2011), among others.
Keywords: Violence. Power relations. Revenge. Identities. Rubem Fonseca.
Nota
1 O teórico desenvolve essa reflexão tendo em mente o contexto da Idade Média, porém, tais contribuições
ainda podem ser aplicadas na atualidade e para os fins deste trabalho.
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