ALBERTO PUCHEU
KAF
KA
POE
TA
O leitor desavisado poderia pressupor que
Alberto Pucheu entrou na obra de Franz Kafka
para encontrar, e se manter, dentro das fronteiras daquilo que lhe interessa, notoriamente: a
poesia. Engano maior. Os quatros ensaios que
compõem este livro testemunham justamente
uma construção que coloca em xeque o próprio ato de leitura, e não haveria lugar mais
afim a essa construção do que a obra kafkiana.
Certamente o que estará em jogo aqui não será
toda a obra kafkiana, nem toda a sua fortuna
crítica, embora ela seja amplamente revisitada, nem mesmo seus textos mais extensos e
mais estudados, mas sim sua “prosa miúda”
como ponto de tensão máxima do fragmento
como impossibilidade de totalidade e crítica
do totalitarismo. A “prosa miúda”, que emerge
desse breve livro, afasta-se da presunção representativa do monumento, coloca em jogo a
brevidade e solidão do poema, inquieta o saber,
desaloja o literário de sua morada.
Se ameaçado pela tuberculose e pelo
totalitarismo, o corpo e o texto de Kafka não
admitiam outro sentido a não ser o da ameaça
de aniquilação, talvez a nossa tarefa ética seja,
através de uma violenta torsão, dar à construção
a sua dimensão metafórica, na medida em que
como literatura estará sempre fora de si, à espera de uma escavação que, para afastar-se da
totalidade do Um destruidor, toma a pena para
nomear o horror que insiste em fazer calar a
linguagem, portanto, ao entrar na obra de Kafka.
Esse limite indecidível entre o literário e o
autobiográfico não é passível de resolução: o
vivido não dá sentido à obra e nem a obra dá
KAF
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POE
TA
ALBERTO PUCHEU
KAF
KA
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azougue, 2015
Coordenação editorial e projeto gráfico
Sergio Cohn
Capa
Tiago Gonçalves e Sergio Cohn,
sobre grafite de Pedro Themoteo, “FK-AW homenagem”, 2015
Assitência editorial
Barbara Ribeiro
Revisão
Barbara Ribeiro
Equipe Azougue
Amanda Cinelli, Barbara Ribeiro, Juliana Travassos, Rafaela dos Santos,
Tiago Gonçalves e Welington Portella
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P973k
Pucheu, Alberto, 1966Kafka poeta / Alberto Pucheu. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Azougue, 2015.
140 p. : il. ; 19 cm.
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-7920-168-4
1. Kafka, Franz, 1883-1924. 2. Ensaio alemão. I. Título.
15-19498 CDD: 833
CDU: 821.112.2-3
26/01/2015
26/01/2015
[ 2015 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
facebook.com/azougue.editorial
RuaVisconde de Pirajá, 82,
www.azougue.com.br
subsolo, loja 115 - Rio de Janeiro - RJ
azougue - mais que uma editora,
Tel/Fax 55_21_2259-7712
um pacto com a cultura
KAFKA sEm ABRigO,
POR FLAViA TROCOLi
7
A ViBRAÇÃO mAis QUE HUmANA
(do pré-literário ou da anteliteratura)
17
KAFKA POETA
59
A iNCOLUmiDADE DO CANTO
(das s-obras)
83
POR UmA HisTÓRiA DOs ERROs PRODUTiVOs
DA LiTERATURA E DA FiLOsOFiA
(o caso de uma nota de pé-de-página de Deleuze e
guattari sobre Kafka)
111
REFERÊNCiAs BiBLiOgRÁFiCAs
129
sOBRE O AUTOR
137
KAFKA sEm ABRigO
por Flavia Trocoli
“O poeta mimetiza-se nos objetos
que sofrem”.
(Marthe Robert)
“A construção não lhe disse tudo”.
(Sigmund Freud)
O leitor desavisado poderia pressupor que Alberto Pucheu
entrou na obra de Franz Kafka para encontrar, e se manter, dentro
das fronteiras daquilo que lhe interessa, notoriamente: a poesia.
Engano maior. Os quatros ensaios que compõem este livro testemunham justamente uma construção que coloca em xeque o
próprio ato de leitura, e não haveria lugar mais afim a essa construção do que a obra kafkiana. Certamente o que estará em jogo
aqui não será toda a obra kafkiana, nem toda a sua fortuna crítica,
embora ela seja amplamente revisitada, nem mesmo seus textos
mais extensos e mais estudados, mas sim sua “prosa miúda”
como ponto de tensão máxima do fragmento como impossibilidade de totalidade e crítica do totalitarismo. A“prosa miúda”, que
emerge desse breve livro, afasta-se da presunção representativa
do monumento, coloca em jogo a brevidade e solidão do poema,
inquieta o saber, desaloja o literário de sua morada:
Toda essa abundância de modos dispersivos de
escrita quer se expandir ao extremo. A cada momento, ela retira o especificamente literário de sua
zona de conforto ao, extrapolando-o repetidamente, ir para além dele ou, talvez melhor, ficando-lhe
aquém, não chegando propriamente até ele, em
todo caso, levando-o a seu fora, não se deixando
identificar com ele.
Leitura sem abrigo, aos fragmentos kafkianos lidos por Alberto Pucheu, estenderia aquilo que Günther Anders formulou
sobre as esculturas de Auguste Rodin: “Aqui, elas encontraram
lugar, mas como náufragos encontram lugar e são salvos por um
barco também perdido no oceano.”1 Logo nas primeiras linhas,
foi preciso que se considerasse a relação entre escrita e salvação:
Agarrar-se, é bom que se diga, a um mínimo,
agarrar-se a um quase nada, agarrar-se, para
usar uma imagem da tradição, a um mastro que,
como Kafka mesmo o trabalha, desmitologizando
1 No original: “Ici, elles ont trouvé place, mais comme des naufragés trouvent place
et sont sauvés par une barque elle-même perdue dans l’océan”. In: ANDERS, Günther. Sculpture sans abri: étudesur Rodin. Paris: Éditions fario, 2013. p. 25.
Ulisses, desencantando o canto, destradicionalizando a tradição e desimaginando a imagem, não
é mais do que um meio insuficiente, inocente e
infantil de alguém reconhecido como possuidor
de muitas astúcias, não é mais do que um meio
que está ali simplesmente para arrebentar, não
é mais do que, para usar uma só palavra, nada.
[...] Com a escrita, ficaria Kafka – sem Deus, sem
deuses, sem mito, sem canto das sereias, sem
tradição impositiva, sem conhecimento, sem
saber, sem mundo, sem pátria, sem terra, sem
guerra, sem heroísmo, sem retorno, sem casa,
sem imagem, sem qualquer voz consoladora
que desse uma esperança de pertencimento e de
reencontro ao homem.
Eis a escrita, que é “desaprender a falar”, como modo de
despossesão, e quantos pontos de contato não haveria entre
a despossesão e a fórmula do neutro – nem, nem – de Maurice
Blanchot? A escrita como testemunho do vazio, eis uma das
portas, ou melhor seria dizer fendas, de entrada deste livro. Ou
antes, se a escrita já é um produto seria preciso desalojá-la de
seu lugar de tarefa terminada para o lugar de tarefa interminável.
Escavação sem origem e sem fim.
A construção, como escavar e escrever, coloca à crítica a
questão da indiscernibilidade entre o mundo e aquele que vive
nele, entre a construção e o corpo de quem escava, entre a obra e
seu executor, entre a sobrevivência do labirinto e a manutenção
de uma sobrevida, diz a voz narrativa:
Será que eu esperava, como proprietário da construção, ter supremacia sobre todo aquele que se
aproximava? Justamente por ser possuidor desta
grande obra suscetível é que eu permaneci inerme
contra qualquer ataque mais sério. A felicidade da
posse me estragou, a vulnerabilidade da construção me tornou vulnerável, os ferimentos dela me
doeram como se fossem meus.2
A voz narrativa ata a propriedade a uma radical expropriação. A obra é tão vulnerável como o corpo. A construção como a
vida. Como a literatura de Kafka constantemente ameaçada pela
destruição, quer seja pelo fogo, quer seja pelo não-poder-escrever. Há uma longa tradição que ata o escavar ao escrever, em que
no escavamento se pode encontrar a palavra mágica que retira a
mortalha do esquecimento e faz os resíduos se tornarem poesia
da recordação (entre Freud e a Lacan, por exemplo, haverá uma
hiância intransponível entre uma arqueologia que reconstitui
e uma lituraterra em que o vazio é escavado pela escrita). Na
2 KAFKA, Franz. Um artista da fome/A construção. Trad. Modesto Carone. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p.102.
construção de Kafka, as metáforas arqueológicas não são admitidas, não há profundeza, não há palavra mágica, nem recalque,
nem recordação, nem esquecimento, nem reconstituição. Há o
buraco, o tormento do labirinto, a atenção desmedida ao ruído
do animal que a qualquer momento poderá aniquilá-lo e que,
no entanto, nunca o escutou, e nessa não escuta do outro, do
inimigo, tudo continua inalterado.
Se no meio do caminho de uma história que não admite
metáforas e alusões, a palavra perdeu sua dimensão mágica,
aquela que fez Combray sair de uma xícara de chá, é para colocá-la ao lado dos sem-esperança. Ninguém mais do que eles, os
sobreviventes privados de esperança, sabem que a literatura é
esse buraco, sem fundo, sem essência, sem autodeterminação, à
espera do inimigo que lhe dá existência transitória através do ato
de leitura. Nas palavras de Jacques Derrida, leitor de Blanchot,
ambos assombrados pela fantasma de Kafka:
“Paixão” conota o padecimento de um limite indeterminável ou indecidível, lá onde qualquer coisa,
qualquer X, por exemplo, a literatura, deve tudo
sofrer ou suportar, padecer de tudo precisamente
porque ela não é ela mesma, não tem essência,
mas somente funções. Eis a hipótese que gostaria
de pôr à prova e submeter à discussão com vocês.
Não há essência nem substância da literatura:
a literatura não é, não existe, não se demora na
identidade de uma natureza ou ainda de um ser
histórico idêntico a ele mesmo.3
Se ameaçado pela tuberculose e pelo totalitarismo, o corpo
e o texto de Kafka não admitiam outro sentido a não ser o da
ameaça de aniquilação, talvez a nossa tarefa ética seja, através
de uma violenta torsão, dar à construção a sua dimensão metafórica, na medida em que como literatura estará sempre fora de
si, à espera de uma escavação que, para afastar-se da totalidade
do Um destruidor, toma a pena para nomear o horror que insiste
em fazer calar a linguagem, portanto, ao entrar na obra de Kafka:
Está-se profundamente imerso em uma ética ou
em uma política da escrita e da vida, em uma ética
ou em uma política do que se vive na escrita e fora
dela, em uma ética ou em uma política do que se
escreve da vida, em uma ética ou em uma política
desse intervalar entre o vivido e o não vivido, em
uma ética ou em uma política da autobiografia,
no sentido mais amplo que esse termo pode ter.
No entanto, esse limite indecidível entre o literário e o autobiográfico não é passível de resolução: o vivido não dá sentido à
3 DERRIDA, Jacques. Demorar – Maurice Blanchot. Trad. Flavia Trocoli e Carla
Rodrigues. No prelo.
obra e nem a obra dá sentido ao vivido, e não somente porque
uma escrita no trauma e do trauma diz mais de um impossível de
viver, mas também porque o que mais interessa é o impasse que
se coloca na própria metamorfose da vida em obra e da obra em
vida, em outras palavras, interessa esse ponto em que a imagem
é a não resposta, a própria nulificação do seu sentido: O veredicto
que confunde suicídio e assassinato, Josefina cujo canto está mais
perto do ruído, Um artista da fome cuja arte exige o apagamento
do artista: “Nessa ‘vibração mais que humana’, o viver e o narrar
participam do complexo cruzamento das experiências que resguardam sua inapropriabilidade ou inacessibilidade”.
Talvez seja, então, o poema o lugar que abrigará com mais
propriedade a inapropriabilidade e a inacessibilidade dessas
imagens que interditam a fala, o sentido e a própria vida. Tal
qual pedra lançada à água, a questão em torno da “prosa miúda”
se espraia em direção à impossibilidade de narrar, ao poema e
ao canto. No entanto, como a distância entre essas duas aldeias
vizinhas que, no tempo de uma vida, nunca pode ser transposta,
o poema também não será uma categoria asseguradora, na verdade, ele vem problematizar a própria estranheza da língua, uma
espécie de não domínio da língua maior para passar à invenção
de uma língua menor que gagueja, balbucia, paradoxalmente,
inarticulada na limpidez da sintaxe kafkiana:
Se Kafka escreve “poemas”, é, justamente, por
escrever o que o nome Odradek evoca, mas não
apenas no momento da nomeação. Enquanto
nome para o poema, “Odradek” coloca seus leitores fora da língua ou diante de uma língua muda,
desconexa, ilegível e sem sentido, levando-nos a
adentrá-la e, uma vez nela, não sem hesitações,
perder toda e qualquer representação, que não
mais se impõe, antes, depõe-se. Paradoxalmente,
é preciso nomear essa perda e, ainda mais, ao
invés de calá-la, não parar na pura nomeação
do que se perdeu, mas se deixar ser tomado por
uma gramática contaminada pela negação de
si própria, deixar-se ser tomado por uma língua
contaminada por esse fora, por essa mudez, por
essa ilegibilidade, por essa desconexão.
Segundo Alberto Pucheu, o poema é o lugar da (im)potência maior, como crítica ao poder instituído, e Kafka e sua obra
estão antes do nascimento e depois da morte, em uma dupla
resistência à vida e à obra em seus contornos bem definidos
pelas instâncias do poder. Assim, se do lado do leitor se procura
a entrada, de outro, do lado de quem escava, como é o caso do
animal de A construção, ou de quem escreve, procura-se uma
saída, isso posto, a pergunta é certeira: “há encontro possível?”.
O canto, ou aquilo que sobrou dele mesmo antes de Auschwitz,
será o lugar que assinala esse encontro sempre faltoso, encontro
com a perda da palavra.
Se, em outro lugar, Roberto Machado afirmava que o livro
de Alberto Pucheu era mais com ou a partir de Agamben do que
sobre Agamben4, diria que se trata aqui de um livro sobre como
ler Kafka, sobre como construir, a duras penas e não sem uma
certa alegria (ao mesmo tempo a da solidão e a da amizade5), uma
saída para transmitir, em negativo, a inacessibilidade e a incomunicabilidade. Trata-se aqui de nomear uma perda. Trata-se aqui
de delinear uma certa relação com o objeto perdido, isso dito,
poderia comparar esse movimento a um interminável trabalho
de luto, mas sem deixar de alinhá-lo ao lado da beleza (como barreira última diante do horror) e da transmissão, afinal, tal como
a literatura, e sua paixão do aquém ou da indeterminação, em
Kafka: “Também aquela saída não me salva, como provavelmente
ela não me salva em caso algum, antes me arruína, entretanto é
uma esperança e eu não posso viver sem ela.”6
Rio, janeiro de 2015.
4 Apud.: PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben: Poesia, filosofia, crítica. Rio de Janeiro:
Azougue editorial, 2010.
5 Durante o ano de 2014, dividi com Pucheu dois cursos sobre Kafka, um na graduação e outro na pós-graduação, mais do que um exercício intelectual, essas manhãs
na Faculdade de Letras da UFRJ me colocaram diante de um Kafka diferente daquele
que eu construíra até então. Mais do que uma apresentação de livro, registro aqui
uma prova de amizade e de gratidão pela partilha do pensamento crítico vivo. A isso
chamaria também de salvação.
6 KAFKA, Franz. Um artista da fome/A construção. Trad. Modesto Carone. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
A ViBRAÇÃO mAis QUE HUmANA
(do pré-literário ou da anteliteratura)
“E essa multidão em mim, bem ao fundo,
dificilmente visível”.
(Kafka)
“A partir de certo ponto não há mais retorno.
É este o ponto que tem de ser alcançado”.
(Kafka)
“Que se morda a própria vida
ao invés de se morder a língua”
(Kafka)
“Meus romances são eu,
minhas histórias sou eu”
(Kafka)
Romances, novelas, contos, prosas miúdas, aforismos, fragmentos, correspondências, diários, rabiscos, desenhos, esboços
abandonados, relatos de sonhos, narrativas inacabadas, capítulos
desordenados, capítulos incompletos, rascunhos sem títulos,
descrição de processos de escrita, observações de viagens, apontamentos circunstanciais, versos sem poemas, poemas, poemas
em prosa, projetos de cartas, cartas nunca enviadas, cartas de
advogado, conferência, parábolas, balanços, enumerações, inventários, apólogos, esquemas para artigos, projetos, citações,
listas, listas comparativas, regras gerais (para uma Comunidade
de Trabalhadores sem Posses), autobiografia alheia, comentários
sobre livros, peças, óperas, conferências e artistas de modo geral,
leituras ao vivo para amigos ou para um público surpreendido,
bilhetes de conversas de quando, impossibilitado de falar, internado, estava prestes a morrer...
Toda essa abundância de modos dispersivos de escrita quer
se expandir ao extremo. A cada momento, ela retira o especificamente literário de sua zona de conforto ao, extrapolando-o
repetidamente, ir para além dele ou, talvez melhor, ficando-lhe
aquém, não chegando propriamente até ele, em todo caso,
levando-o a seu fora, não se deixando identificar com ele. Esse
escrever de começos e destroços, esse escrever obsessivamente
necessário, esse escrever de quem é um “fanático da escrita”
(como, no feminino, diz de uma mulher em seu diário) (KAFKA:
1984, p. 60), se esforça também em, sob as mais diversas modalidades desordenadas e em desagregação, dar o mínimo de
consistência ao insólito em que se vive ou ao que, no vivido, só
é possível ao modo de um não vivido, já que se é tragado por um
irrealizável ao qual, entregando-se a ele, não se tem como não
pertencer. Dar o mínimo de consistência ao insólito do não vivido
que acompanha todo vivido se confunde com fazer a inconsistência afetar ao máximo o texto, tornando-o, ele mesmo, insólito,
o mais próximo do irrealizável. Não tendo Kafka por referência,
a máxima de Emmanuel Levinas, “As grandes experiências de
nossa vida jamais foram, propriamente dizendo, vividas” (LEVINAS: 1994, p. 211), parece ter sido composta especialmente
para ele. Em sua relação com a escrita, está, de fato, sua grande
experiência vivida, desde a qual, misturando-se a ela a ponto de
não se conseguir mais distingui-las com clareza, se abre a força
do não vivido.
O excessivo dessa turbulenta propagação discursiva pré-literária, do que rompe a fronteira entre o literário e sua anterioridade,
entre o literário e seu fora, que tanto concerniria, em um primeiro
instante, ainda que inconscientemente, ao seu e ao nosso tempo
como a “nervosidade de nossa época” (KAFKA: 1984, p. 262), beira,
em Kafka, uma tensão limítrofe entre a escrita e o que se vive, entre
o escrever e o viver. É significativo que, como nos relata Gustav
Janouch, Kafka, não sem algum exagero explicitado em seguida
por ele mesmo, denomine esse estado pré-literário de seus escritos de “notas para uso pessoal”, “brincadeiras”, “documentos
pessoais”, “testemunhos de minha solidão”, dizendo que quem
o torna “literatura”, quem, em algum grau, institucionaliza sua
escrita, retirando-a de sua ambiência pré-literária e integralmente
comprometida com sua vida, são seus amigos: “Max Brod, Felix
Weltsch, todos os meus amigos se apoderam regularmente de tal
ou qual coisa que escrevi, e em seguida me surpreendem chegando
com um contrato de edição em boa e devida forma. Não quero
causar-lhes dificuldades e é assim que, para acabar, se publicam
coisas que de fato só eram notas para uso pessoal, ou brincadeiras.
Documentos pessoais, atestando minha fraqueza de homem, estão impressos e mesmo vendidos, porque meus amigos, a começar
por Max Brod, encasquetaram torná-los literatura e porque eu,
por meu lado, não tenho força para destruir esses testemunhos
de minha solidão” (JANOUCH: 1993, p. 30).
Sobre esse elemento pré-literário dos testemunhos de sua
solidão que seriam todos os seus escritos, no mesmo livro, mais
à frente, ainda segundo Janouch, Kafka afirma: “Toda arte verdadeira é documento, testemunho” (JANOUCH: 1993, p. 121).
Testemunho, portanto, e documento, tudo o que ele escreveu,
toda a sua arte, ou, melhor dizendo, toda sua anteliteratura. A
importância da pregnância de diversos modos de escrita, inclusive dos que são habitualmente chamados de autobiográficos,
arrasta a exclusividade do que seria o literário (em qualquer
uma de sua positividade) para uma zona periférica, deixando
um centro vazio que, motor de todo escrever, questionando o
próprio conceito histórico de literário, não permite, com sua
força centrífuga, hierarquizar os modos de escrita em turbilhão,
deixando ao leitor o deslizamento do interesse conforme as suas
maneiras específicas de leitura. Logo no começo de seu livro
sobre as cartas de Kafka a Felice, Elias Canetti afirma: “Li aquelas
cartas com uma emoção tamanha como havia anos nenhuma
obra literária me causava” (CANETTI: 1988, p. 8). Desobrar a
obra chamada de literária a partir das múltiplas escritas, com
seus relatos, a princípio, autobiográficos, sem as marcas habituais do que é reconhecido majoritariamente como literatura, é,
certamente, uma das operações do que se chama Kafka, com a
vida que vive adentrando a escrita e a escrita adentrando a vida
que vive, confundidas em uma zona potencial.
Para Kafka, leitor, só para mencionar poucos, dos diários
de Goethe1, das cartas de Kleist, de Flaubert, de Dostoievski, de
Strindeberg, de Byron, de Goethe, de Beethoven, de Grillparzer, de Hebbel, de Gogol, de Van Gogh e das memórias de Karl
Stauffer-Bern, da condessa de Thurheim e do general Marcellin
de Marbot, de biografias de Dostoievski e Schopenhauer e que
planejou escrever uma autobiografia e um livro biográfico sobre
sua relação de amizade com Max Brod, os diários e as cartas se
fazem os lugares por excelência em que essa tensão está de antemão colocada, por ser ele, o entrelugar do diário e das cartas
como paradigma da tensão entre o escrever e o viver, por ser
ele, o paradigma do entrelugar do escreviver, o que não poderá
ser abandonado. Sobre os diários, Max Brod realiza importantes observações: “Os diários têm para Kafka um significado que
não é apenas autobiográfico nem somente uma ajuda para ele
1 Mostrando que a tarefa de ler (ao menos, de ler um diário) está submetida à de
escrever (ao menos, de escrever um diário), em 29 de setembro de 2011, Kafka
escreve em seu diário: “Diário de Goethe. Uma pessoa que não tem diário está
em uma posição falsa em relação ao diário de um outro” (KAFKA: 1984, p. 83).
Em sua biografia do amigo, Max Brod informa que: “Kafka preferia ler biografias
e autobiografias a qualquer outra coisa” (BROD: 1978, p. 111).
se assenhorear de sua alma; entre as observações de conteúdo
pessoal, há as peças que ele depois colocará em seu primeiro
livro, Contemplação. Muitas dessas peças escolhidas por ele são,
de fato, substancialmente indistinguíveis das outras entradas do
diário; não sabemos por que o autor considerou umas mais valorosas para publicação, em detrimento de outras./ No contexto do
diário, há também muitos fragmentos de contos que seguiram até
certo ponto; eles se amontoam até que, subitamente, a primeira
história terminada de tamanho considerável, O veredicto, jorra
como um jato de chamas” (BROD:1978, p. 106); “Em seu diário,
abundam sonhos, começos de contos, esboços. Tudo parece estar
ligado em uma tremenda fermentação” (BROD: 1978, p. 145).
Estendendo essa linha de compreensão dos diários de Kafka
em suas singularidades, em uma nota de pé de página, Blanchot
elucida: “Kafka escreveu tudo o que lhe importava, acontecimentos de sua vida pessoal, meditação sobre esses acontecimentos,
descrição de pessoas e lugares, descrição de seus sonhos, relatos
iniciados, interrompidos, recomeçados. Portanto, não é apenas
um ‘Diário’ como se entende hoje em dia, mas o próprio movimento da experiência de escrever, o mais próximo de seu começo
e no sentido essencial que Kafka foi levado a dar a essa palavra.
É sob essa perspectiva que o diário deve ser lido e interrogado”
(BLANCHOT: 1987, p. 51). O diário como “uma tremenda fermentação” do “movimento da experiência do escrever” em seu “sentido essencial”, mas o escrever em seu “sentido essencial” como
“uma tremenda fermentação” do movimento da experiência de
vida. Da escrita à vida e da vida à escrita, a via é certamente de
mão dupla, ou, mais do que isso, de encruzilhada, havendo tanto
as muitas intensidades do vivido na escrita quanto as da escrita
no vivido, sem que obviamente tenha qualquer cabimento buscar
uma quantificação ou uma suposta proporcionalidade de um no
outro ou de outro no um.
Desde quando começa a escrever seu diário, já na primeira
entrada, possivelmente de 1909, o vínculo entre a escrita e o
vivido está colocado: “Escrevo isso certamente impelido pelo
desespero que me causa meu corpo e o porvir desse corpo”
(KAFKA: 1984, p. 4). A seguinte, a primeira de 1910, é iniciada de
maneira semelhante: “Enfim, depois de cinco meses de minha
vida, durante os quais não pude escrever nada com o que eu
ficasse satisfeito, [...] a ideia me vem de me endereçar de novo
à palavra. [...] Meu estado não é de infelicidade, mas não é tampouco de felicidade, não é nem de indiferença nem de fraqueza
nem de fadiga nem de interesse por outra coisa, mas, então, é
de quê? O fato de não o saber está, sem dúvida, ligado à minha
incapacidade de escrever” (KAFKA: 1984, p. 6). Em 5 de setembro
de 1911: “É imperdoável viajar – e mesmo viver – sem tomar notas.
Sem isso, o sentimento mortal de escoamento uniforme dos dias
é impossível de suportar” (KAFKA: 1984, p. 14). Em 2 de outubro
de 1911, na primeira vez em que menciona a insônia: “Noite de
insônia. É a terceira seguida. [...] Creio que esta insônia se deve
unicamente ao fato de que escrevo” (KAFKA: 1984, p. 88-89). Em
9 de dezembro de 1911, repetidamente: “Tenho, neste momento,
e já a tive esta tarde, uma grande necessidade de extirpar minha
ansiedade descrevendo-a inteiramente e, mesmo que ela venha
das profundezas de meu ser, de fazê-la passar para a profundeza
do papel ou de descrevê-la de tal maneira que o que eu teria
escrito pudesse ser inteiramente incluído em mim. Isso não é
uma necessidade artística” (KAFKA: 1984, p. 177). Os exemplos
são inúmeros. Em 16 de dezembro de 1910, os diários são, para
Kafka, a única possibilidade a que, em sua vida, o escritor terá
para se agarrar: “Não abandonarei mais este diário. É aqui que
se faz preciso que eu me agarre, porquanto apenas aqui eu o
posso fazer” (KAFKA: 2000, p. 28)2. Agarrar-se, é bom que se diga,
a um mínimo, agarrar-se a um quase nada, agarrar-se, para usar
uma imagem da tradição, a um mastro que, como Kafka mesmo
o trabalha, desmitologizando Ulisses, desencantando o canto,
destradicionalizando a tradição e desimaginando a imagem,
não é mais do que um meio insuficiente, inocente e infantil de
alguém reconhecido como possuidor de muitas astúcias, não é
mais do que um meio que está ali simplesmente para arrebentar,
não é mais do que, para usar uma só palavra, nada.
Em A escritura é um combate contra os deuses, Danielle Cohen
-Levinas escreve: “Seu combate [o de Kafka] contra os deuses de
2 Enquanto a edição francesa traduz a passagem como “Je ne quitterai plus ce Journal. C’estl’àqu’il me faut être tenace, carje ne puis l’être que là” (KAFKA: 1984, p. 12),
a brasileira citada se aproxima mais da americana: “I won’t give up the diary again. I
must hold on here, it is the only place I can” (KAKFA: 1976, p. 73). Por interesse estratégico para a continuação do texto, utilizo-me, exclusivamente nessa passagem, da
edição brasileira, parcial, dos diários, privilegiando, nas outras, a francesa.
Ulisses e o Deus de Abraão havia de alguma forma migrado para
o outro lado da escrita, de uma vez por todas, sem esperança
de encontrar uma phoné consoladora, o signo precisamente de
nossa adesão ao mundo dos humanos onde ele nunca tinha se
sentido completamente em casa” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 63).
Combatendo, com a escrita, e apenas com ela, o Deus, os deuses,
o mito, o canto das sereias, o canto do conhecimento, o canto do
saber de tudo que se passa na vida entre os homens e os deuses,
o canto do mundo, o canto da terra ou da pátria vitoriosa, o canto
da guerra, o canto da esperança, o canto da consolação, o canto
do retorno, o canto do reencontro, o canto do pertencimento, o
canto da casa, o canto do humano... Com a escrita, ficaria Kafka
– sem Deus, sem deuses, sem mito, sem canto das sereias, sem
tradição impositiva, sem conhecimento, sem saber, sem mundo,
sem pátria, sem terra, sem guerra, sem heroísmo, sem retorno,
sem casa, sem imagem, sem qualquer voz consoladora que desse
uma esperança de pertencimento e de reencontro ao homem.
Uma escrita de uma ausência de voz, uma escrita da negação de sua própria voz, uma escrita, literalmente, da infância
que nos acompanha por todo o tempo (não do que se chama de
infantil enquanto o que é tomado como característica de uma
época específica, mais ingênua, a ser superada, de nossa vida
ou mesmo, como no caso do atributo dado por Kafka a Ulisses,
de nossa tradição). A respeito dessa escrita da infância, ou seja,
dessa escrita que, a todo momento, recobra sua ausência de voz,
sua impossibilidade mesma de falar ou de escrever, simultânea
à impossibilidade de dominar a linguagem mais trivial da comunicação cotidiana, em A carta ao pai, há um dos momentos
de maior intensidade da escrita kafkiana: “A impossibilidade da
relação tranquila teve uma outra consequência, muito natural
no fundo: eu desaprendi a falar. Por certo eu não teria sido,
sendo outro o contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria
dominado a linguagem humana corrente e comum. Mas tu me
proibiste a palavra desde cedo, tua ameaça: ‘Nenhuma palavra de
contestação!’ e a mão erguida para sublinhá-la me acompanham
desde então. Adquiri junto de ti – és, quando se trata de tuas
coisas, um orador excelente – um modo de falar entrecortado,
gaguejante, e também isso era demais para ti, de modo que por
fim calei, primeiro por teimosia talvez, mais tarde porque diante
de ti eu não conseguia pensar nem falar”(KAFKA: 2004, p. 34).
Com a escrita, nada, senão a negatividade de um despertencimento e de um desancoramento extremo de alguém que se vê
como “absolutamente vazio” (KAFKA: 1984, p. 177). Agarrar-se,
então, à escrita para, ao menos, agarrando-se a nada, agarrandose ao vazio, dar-lhe um mínimo de densidade ou de matéria com
suas palavras e sintaxes, que desejam ser destruídas até não se ter
mais em que se agarrar. De Kafka, esse para quem “o ponto mais
próximo de mim me parece inacessível” (KAFKA: 1984, p. 210),
poderia ser dito, de alguma maneira, o que ele diz de um colecionador de Linz: “Ele não fala absolutamente quando ele fala” (KAFKA:
1984, p. 170). Talvez seja por conta desse falar para não falar, desse
ficar de Kafka tão somente com o nada da escrita e com a escrita
de nada, com esse vazio da vida e da escrita e com essa escrita de
seu vazio, com essa escrita e com esse pensamento que forçam
uma vida a suportar toda e qualquer ausência de fundamento,
que Milena Jesenská, um dos amores de Kafka, escreveu sobre
ele, em carta para Max Brod, palavras tão certeiras e comoventes:
“Mas ele nunca buscou se colocar ao abrigo das coisas. Ele é sem
refúgio, sem teto. Por isso está exposto a tudo, contrariamente a
nós, que estamos protegidos. Dir-se-ia, um homem nu em meio
àqueles que estão vestidos” (PELBART: 2011, p. 9).
Os dois bilhetes testamentos deixados a Max Brod, em que
manifestava seu[s] “último[s] desejo[s]” iconoclastas ao amigo,
iriam, igualmente, na direção do nada a que se agarrar, do dizer
para dizer o vazio, do dizer para não dizer, do desabrigo, do sem
refúgio, do sem teto, da exposição a tudo, da desproteção e da
nudez? Parece que sim, parece que eles foram escritos em direção
ao enigma da nudez de quem não tem em que se agarrar. Escrito
anteriormente a 1921, com um papel já amarelecido quando
encontrado pelo amigo testamenteiro, a breve carta mais antiga
dizia: “Caro Max, talvez desta vez eu não consiga me recuperar.
Pneumonia, após um mês de febre pulmonar, dá quase no mesmo; e mesmo estas linhas não são capazes de evitá-lo, embora
haja aqui uma certa energia. Para esta eventualidade, portanto,
eis aqui meu último desejo com relação a tudo o que escrevi: de
todos os meus textos, os únicos livros que devem permanecer
são: O processo, O foguista [América], A metamorfose, Colônia
penal, Um médico rural e o conto “Um artista da fome”. Podem
permanecer alguns exemplares de Contemplação. Não quero dar
a ninguém o trabalho de triturá-los; mas nada deste volume deve
ser novamente editado. [//] Quando digo que estes cinco livros e
o conto podem permanecer, não significa meu desejo de serem
reeditados e legados à posteridade. Ao contrário, se desaparecerem
por completo, isso me fará mais feliz. Apenas, já que existem, não
quero impedir alguém de querer mantê-los. Mas todo o restante
do que escrevi (seja em jornais, manuscrito ou cartas), tudo sem
exceção, quer seja descoberto ou requisitado aos destinatários... –
todas essas coisas, sem exceção, e especialmente as não lidas (não
posso proibi-lo de dar uma espiada, embora prefira que não o faça,
mas, de qualquer modo, a mais ninguém isso é permitido) – todas
estas coisas, sem exceção, devem ser queimadas, e imploro-lhe
que o faça o quanto antes. Franz” (DIAMANT: 2013, p. 103-104).
Pouco tempo depois, em 1921, o último pedido, mais econômico e incisivo do que o anterior, para não deixar nenhum de
seus escritos lhe sobreviver: “Caríssimo Max, meu último pedido:
tudo o que deixo para trás (em minha estante, no armário de roupa de cama e em minha escrivaninha, tanto em casa quanto no
escritório, ou em qualquer outro lugar onde possa existir algo ou
que seus olhos virem) sob a forma de diários, manuscritos, cartas
(minhas e de outros), esboços, e assim por diante, devem ser queimados sem serem lidos; isso se aplica também a todos os escritos
e esboços que você e outros venham a possuir; e, em meu nome,
solicite o mesmo aos demais. Se estes não quiserem lhe entregar
suas cartas, que ao menos prometam queimá-las. Atenciosamente,
Franz Kafka” (DIAMANT: 2013, p. 103). Importante lembrar que,
além de o próprio escritor dizer que “hoje, queimei muitos dos
velhos papéis odientos” (KAFKA: 1984, p. 245) e de em outubro
de 1921 ter dado seus cadernos para Milena com o intuito, talvez,
mesmo inalcançável, de se sentir mais livre, tanto Max Brod nos
relata que encontrou, entre os pertences de Kafka após sua morte,
alguns cadernos que possuíam apenas a capa, com todas as folhas
arrancadas, quanto Dora Diamant, a mulher amada com quem,
entre o fim de 1923 e o começo de 1924, viveu os últimos meses
de sua vida, em um dos mais belos depoimentos sobre o escritor,
informa-nos que “[...] ele queria queimar tudo o que havia escrito.
Eu respeitei sua vontade e, diante de seus olhos, enquanto ele repousava, doente, em sua cama, queimei alguns de seus textos. [...]
Fui repreendida por ter queimado alguns escritos de Kafka. Eu era
muito jovem naquela época e os jovens vivem no instante, pouco
no futuro” (DIAMANT: 1998, p. 231). É-me admirável a postura
de Max Brod em não queimar os escritos de Kafka, salvando-os,
à revelia do pedido do amigo escritor; é-me igualmente admirável
a postura de Dora, queimando alguns dos escritos de Kafka, a seu
pedido, a pedido do escritor tão amado, extinguindo-os. Ambos
admiráveis, o gesto da amizade e o gesto do amor.
Antes das solicitações para que Max Brod destruísse seus
escritos, e mesmo depois de tais bilhetes, mostrando as diversas
forças díspares que atuam nele mantidas em ação pela importância maior da relação entre o escrever e o viver, o imperativo de
preservar, a todo custo, a escrita – com a qual ele se confunde –,
de preservar a literatura – que ele diz somente ser –, do que dela
retira sua força, ou seja, desde cedo, do trabalho e da família. Isso
é certo: contra o trabalho e a família, preservar, a todo custo, o
gesto de escrever, não o resultado do que foi escrito, preservar,
acima de tudo, a possibilidade do dizer, não o dito, que é para se
extinguir, preservar, a qualquer preço, o gesto do escrever, não a
obra, que se torna acidental e muito menos necessária do que a
ação do escrever, preservar, mais que tudo, não a obra que viria
enfim à sua presença, mas a performance que lhe antecede. Em
seu livro sobre Kafka, Marthe Robert afirma que, em 1918, ele
“Escreve de Zurau, a propósito do pedido de uma atriz que queria
fazer uma leitura de extractos das suas obras em Frankfurt: ‘Não
envio nada para Frankfurt; não vejo de modo nenhum em que
é que isso me pode interessar. Se enviar qualquer coisa, fá-lo-ei
unicamente para satisfazer a minha vaidade, se não envio nada,
é ainda a vaidade que me inspira, mas não unicamente ela, o
que é melhor. As passagens que poderia enviar não significam
absolutamente nada para mim, não respeito senão o instante
em que as escrevi...’” (ROBERT: 1963, p. 40)3.
3 Ao menos para si mesmo, sabe-se da opinião de Kafka sobre alguns de seus textos.
Deles, afirma, por exemplo: “Eu li A metamorfose e a acho ruim. Estou talvez realmente
perdido, a tristeza dessa manhã retornará, não poderei resistir por muito tempo, ela
me retira toda esperança”(KAFKA: 1984, p. 313); “Grande repugnância a respeito de
A metamorfose. Fim ilegível. Imperfeito praticamente até o fundo” (KAFKA,: 1984, p.
332); “Comecei a escrever coisas que saem mal [O processo]. Mas, apesar da insônia,
das dores de cabeça e de minha incapacidade geral, não cederei” (KAFKA: 1984, p.
358); “Isso que escrevo [O processo] não me parece ter nenhuma independência, eu o
vejo como um reflexo de textos antigos bem-sucedidos” (KAFKA: 1984, p. 365). Claro
que tais depoimentos em seu diário requisitariam, sobre o assunto, uma investigação
O caráter parabólico, mas sem doutrinas, e paradoxal do
desejo de Kafka de destruição dos próprios escritos foi salientado tanto por Benjamin quanto por Judith Butler. O primeiro
afirmou: “Kafka dispunha de uma capacidade invulgar de criar
parábolas. Mas ele não se esgota nunca nos textos interpretáveis
e toma todas as precauções possíveis para dificultar essa interpretação. É com prudência, com circunspecção, com desconfiança
que devemos penetrar, tateando, no interior dessas parábolas.
Devemos ter presente sua maneira peculiar de lê-las, como ela
transparece na sua interpretação da parábola citada. Precisamos
pensar também em seu testamento. Suas instruções para que sua
obra póstuma fosse destruída são tão difíceis de compreender e
devem ser examinadas tão cuidadosamente como as respostas do
guardião da porta, diante da lei. Cada dia de sua vida confrontará
Kafka com atitudes indecifráveis e com explicações ininteligíveis,
e é possível que pelo menos ao morrer Kafka tivesse decidido pagar seus contemporâneos na mesma moeda” (BENJAMIN:1987,
p. 149-150). Na mesma linha, Judith Butler afirma, com outras
palavras: “Curiosamente, Kafka não pede de volta seus escritos
para que ele os possa destruir pessoalmente. Pelo contrário, ele
deixa Brod com a charada. Sua carta para Brod é uma maneira de
dar todos os trabalhos para Brod e de pedir que ele seja o responmaior nas cartas e nos depoimentos dos amigos. É igualmente desconcertante, entretanto, a passagem da carta de seu editor Kurt Wolff para ele: “Nenhum dos autores
com os quais nos conectamos vem até nós, com seus desejos ou questões, tão pouco
quanto você, e com nenhum deles temos a sensação de que o destino de seus livros
publicados é motivo de tanta indiferença quanto o é para você” (BROD: 1978, p. 136).
sável por sua destruição. Há um paradoxo intransponível aqui, já
que a carta torna-se parte dos escritos, e assim parte do próprio
corpus ou da obra, como muitas das cartas que Kafka havia preservado meticulosamente através dos anos. E ainda assim a carta
pede para que os escritos sejam destruídos, o que logicamente
envolve a nulificação da própria carta, e assim nulifica a própria
ordem que ela dá. Então, essa ordem é uma diretiva clara ou é
um gesto no sentido que Benjamin e Adorno descreveram? Ele
espera que a mensagem chegue à sua destinação ou ele escreve
a ordem sabendo que mensagens e ordens falham em alcançar
aqueles para quem são endereçados, sabendo que eles estarão
sujeitos a não chegada sobre a qual escreveu?” (BUTLER: 2014).
Em meados de 1911, narrando o que disse em uma visita a
Rudolf Steiner, a oposição entre escrita e trabalho já está colocada: “Além do mais, minha saúde e meu caráter me impedem
igualmente de me converter em uma vida que, no melhor dos
casos, apenas poderia ser incerta. Eis o motivo pelo qual me
tornei funcionário em uma companhia de seguros sociais. Essas
duas profissões não podem jamais se tolerar, nem admitem uma
felicidade em comum. A menor felicidade que uma me causa se
transforma na maior infelicidade para a outra” (KAFKA: 1984,
p. 34). Em 21 de agosto de 1913, após, portanto, o ano decisivo
de 1912, em que, buscando a concentração do isolamento, escreve os sete primeiros capítulos de O desaparecido (América),
O veredicto e A metamorfose, traça no diário, enquanto aguarda
ansiosamente a resposta da carta anteriormente enviada, um
esboço de uma segunda carta, nunca remetida, ao pai de Felice
Bauer, então sua noiva: “[...] O meu emprego é-me insuportável
pelo fato de contrariar o meu único desejo e a minha única
vocação, que é a literatura. Como eu sou somente literatura, e
como não desejo nem posso ser coisa diversa, o meu emprego
jamais poderá atrair-me, apenas poderá ao invés disso destruirme inteiramente. Não estou longe de o ser. Estados nervosos da
pior espécie dominam-me incessantemente e este ano, inteiramente cheio de preocupações e de sofrimentos acerca do meu
futuro e do de sua filha, veio provar totalmente a minha falta de
resistência. Poderia indagar-me a razão pela qual não deixo este
emprego – não tenho fortuna – e por que não tento tirar a minha
subsistência dos meus trabalhos literários. Apenas poderia então
apresentar esta mísera resposta que não disponho dessa força e
que, na proporção em que posso encarar o meu estado em toda a
sua extensão, há maiores possibilidades de que o meu emprego me
destrua, é certo, com muita rapidez [...]”(KAFKA: 2000, p. 96-97).
Mais à frente do mesmo esboço de carta escrito em seu diário, a oposição da família em relação à literatura: “Pois bem, em
meio à minha família, entre os melhores e os mais carinhosos
seres, vivo mais alheio do que um estranho. No decorrer desses
últimos anos, não troquei vinte palavras por dia com a minha
mãe, não troquei senão cumprimentos com o meu pai. Com
respeito às minhas irmãs casadas e aos meus cunhados, jamais
lhes dirijo a palavra, embora não esteja zangado com eles. A razão
é simples, nunca lhes tenho nada a dizer. Tudo quanto não seja
literatura enjoa-me e torna-se detestável para mim porque me
importuna ou entrava, mesmo que seja hipoteticamente. É por
essa razão que eu sou destituído de qualquer sentimento de vida
em família, no máximo não possuo senão o de observador. Não
possuo qualquer sentimento de parentesco, e considero de modo
formal as visitas como malignidades que dirigem contra mim”
(KAFKA: 2000, p. 96-97). Se “uma vida de funcionário poderia me
convir se eu fosse casado” (KAFKA: 1984, p. 342), a de escritor se
afasta tanto da do casamento quanto da do funcionalismo. Ao
longo de quase toda sua vida (é importante resguardar esse quase, garantindo a exceção dos meses finais de felicidade conjugal
passados juntos à Dora Diamant), Kafka colocará o casamento
ao lado do trabalho e da família, contra, portanto, a escrita e
a literatura, ou, talvez seja mais justo dizer, tornando-os tema
de sua escrita, já que, como afirma Dora, “Kafka era obrigado a
escrever, pois a escrita era seu oxigênio. Ele não respirava senão
nos dias em que escrevia” (DIAMANT: 1998, p. 230).
Para além da tensão e da contrariedade entre escrita e trabalho, entre escrita e família, entre escrita e casamento, entre
escrita e o modo de vida burguês que o ameaça naquilo que
ele é, entre a vida que julga verdadeira e a vida burocrática, há,
no uso que faz de tais elementos biográficos, igualmente, um
inacabamento, uma ausência de bordas nas delimitações do
percurso que vai da experiência do vivido mais sutil à experiência
da escrita ou desta àquela, fazendo tanto com que seus textos
possam ser associados a aspectos de sua vida quanto com que
aspectos de sua vida sejam lidos como maneiras singulares de
uma prática da escrita. Não à toa, pode afirmar ser “a questão do
diário ao mesmo tempo a questão de todo o resto, ela contém
todas as impossibilidades do resto” (KAFKA: 1984, p. 309). É ele
quem, mesmo antes de escrever seus textos reconhecidamente
mais importantes, antecipa com toda clareza o que a escrita é
para ele: “vejo que tudo em mim está pronto para um trabalho
poético, que esse trabalho será para mim [...] uma entrada real
na vida” (KAFKA: 1984, p. 91).
Sem se desligar completamente deles, uma “entrada real
na vida” não pode ser uma mera descrição dos acontecimentos
vividos: “Mal-escrito, sem entrar verdadeiramente nesse ar pleno
da verdadeira descrição que lhe retira o pé do solo dos acontecimentos vividos” (KAFKA: 1984, p. 113); ou então: “cremos saber
por experiência que nada no mundo está mais longe de um acontecimento vivido que a descrição desse mesmo acontecimento”
(KAFKA: 1984, p. 178). Diante de todo impasse, diante de todo
esse excesso que é também uma falta, qualquer relevo diminuto
de sua vida ou de suas anotações se tornam repetidamente da
maior relevância para seus leitores, que não podem abrir mão do
que seria tido como o mais insignificante, talvez, pela presença
insistente da tensão entre o significante e o assignificante, que
está em tudo que lhe diz respeito.
Ao se contemplar essas grafias em espalhamento que se
chama habitualmente de Kafka, tentando lhe dar inutilmente um
contorno preciso, não se está simplesmente diante de uma obra
nem apenas em frente de um encadeamento de fatos biográficos,
mas se está na experiência da potencialidade que se abre através
da vasta propagação de modos escriturais e biográficos tensivos,
complexos, contraditórios, problemáticos e irresolúveis, que,
exatamente pela tensão entre eles, afetam-se mutuamente sem
deixar claro o limite entre um e outro. Está-se profundamente
imerso em uma ética ou em uma política da escrita e da vida, em
uma ética ou em uma política do que se vive na escrita e fora dela,
em uma ética ou em uma política do que se escreve da vida, em
uma ética ou em uma política desse intervalar entre o vivido e o
não vivido, em uma ética ou em uma política da autobiografia,
no sentido mais amplo que esse termo pode ter.
Para tal ausência de limites, poderia ser encontrada uma
fórmula em Kafka: escreve-se por uma necessidade vital, vivese por uma necessidade de escrita. Parece ser o assinalado por
Blanchot quando salientou que “ele [Kafka] sente sua criação
ligada palavra por palavra à sua vida, ele se autonomeia e se
reconstitui” (BLANCHOT: 1997, p. 24); e Deleuze e Guattari,
justificando-se de não terem levado o diário em conta como um
dos elementos componentes da escrita de Kafka, afirmam: “É que
o Diário atravessa tudo: o Diário é o próprio rizoma. Não é um
elemento no sentido de um aspecto da obra, mas o elemento (no
sentido de meio) do qual Kafka declara que não queria sair, tal
como um peixe. E porque esse elemento comunica com todo o
fora, e distribui o desejo das cartas, o desejo das novelas, o desejo
dos romances” (DELEUZE e GUATTARI: 1977, p. 63). Se, como
foi mencionado, Kafka afirma que “isso não é uma necessidade
artística”, é porque busca, sobretudo, pela escrita, pelo escrever,
uma “entrada real na vida”, fazendo do escrever o ato heteronômico por excelência: “A criação literária carece de independência,
ela depende da empregada que acende o fogo, do gato que se
aquece próximo à lareira e mesmo desse pobre velho humilde
que se reanima. Tendo leis próprias, tudo isso responde a funções
autônomas, apenas a literatura não retira de si mesma nenhum
socorro, não se aloja em si mesma, é, ao mesmo tempo, jogo e
desespero” (KAFKA: 1984, p. 518).
A ausência de limites entre o escrito e o vivido está por
todos os lados, levando-o a, na passagem de 16 de dezembro
de 1910, escrever que “esta maneira que tenho de me colocar a
perseguir as personagens secundárias pelas quais eu leio a vida
nos romances, nas peças de teatro etc. Este sentimento que tiro
daí de pertencer ao mesmo mundo que eles” (KAFKA: 1984, p.
12). Pelos diários, pela correspondência ao seu editor Kurt Wolff
e pelas cartas à sua então noiva Felice Bauer, sabe-se, por exemplo, do desejo de Kafka em publicar conjuntamente em uma
única edição três de seus textos escritos em 1912, O veredicto, O
foguista e A metamorfose, com um título geral revelador do motivo da reunião: Os filhos (curioso notar que os nomes próprios
Georg, do personagem de O veredicto, e Gregor, da personagem
de A metamorfose, são praticamente anagramáticos). Apesar do
interesse do editor, tal livro não foi publicado durante o tempo
de vida do escritor, mas, se lembrarmos da Carta ao pai, um dos
textos mais intensos e conhecidos de Kafka, leitor de primeira
hora de Freud, ainda que não integralmente aderido a ele, as
marcas biográficas da ficção e as marcas ficcionais do biográfico
não podem ser esquecidas.
Referindo-se a O veredicto, na entrada do dia 11 de fevereiro
de 1913 de seu diário, é ele quem rompe a linha divisória tanto
entre o personagem do filho, Georg Bendemann, e si mesmo
quanto entre a personagem da noiva e Felice Bauer: “Georg tem
o mesmo número de letras que Franz. Em Bendemann, ‘mann’
é um reforço de ‘Bende’, proposto por todas as possibilidades
da narrativa que ainda não conheço. Mas Bende tem o mesmo
número de letras de Kafka e a vogal e se repete no mesmo lugar
que a vogal a em Kafka. Frieda tem o mesmo número de letras
que F.[Felice], Brandenfeld tem a mesma inicial que B.[Bauer] e
também uma certa relação de sentido com B.[Bauer] pela palavra
‘feld’” [Feld quer dizer campo e Bauer, camponês] (KAFKA: 1984,
p. 297). No dia 14 de agosto de 1913, sobre o mesmo conto, fala
de “conclusões de O veredicto aplicadas ao meu caso. É para ela
[Felice] que, indiretamente, devo ter escrito essa história, mas
Georg se perdeu por causa de sua noiva.” (KAFKA: 1984, p. 305).
No dia 12 de fevereiro de 1913, ele segue tramando as relações
entre os personagens fictícios e os biográficos: “Descrevendo o
amigo, pensei muito em Steuer. Quando o encontrei por acaso,
cerca de três meses antes de ter escrito essa narrativa, ele me
disse ter noivado perto de três meses antes” (KAFKA: 1984, p.
297). E, parece-me que com humor, ele finaliza essa passagem do
seguinte modo: “Minha irmã me disse: ‘É o nosso apartamento’.
Espantei-me que ela tenha entendido mal a distribuição dos
lugares e lhe disse: ‘Mas, nesse caso, seria necessário que o pai
habitasse o banheiro’” (KAFKA: 1984, p. 297).
Sobre esse mesmo assunto da inextricabilidade complexa
entre o que se escreve e o que se vive, a introdução feita pelo
tradutor Álvaro Gonçalves para a edição portuguesa de Os filhos
é perspicaz: “A escolha do título está obviamente relacionada
com um dos aspectos autobiográficos mais marcantes de toda
a vida de Kafka, que é a fixação obsessiva na figura do pai. Esta
fixação é expressão não apenas da marca característica da geração expressionista alemã (“o ódio ao pai”), mas também do
conflito resultante de duas naturezas completamente opostas:
à presença esmagadora e autoconfiante do pai opõe-se a extrema sensibilidade do filho. Se as três narrativas constituem um
ajuste de contas com o pai sob forma de literatura, a famosa
Carta ao pai, escrita em 1919 e que nunca chegou a ser entregue ao destinatário, percorre um caminho inverso, abolindo a
fronteira que separa a literatura da vida” (GONÇALVES: 2007,
p. 10-11). Estendendo a figura do pai para a de um princípio de
autoridade qualquer, a questão se amplia, ganhando contornos
ainda mais complexos. Seriam muitos os exemplos; a respeito
de O processo, Max Brod nos relata: “‘Na noite de seu trigésimo
primeiro aniversário’, diz o último capítulo. De fato, quando
Kafka começou tal romance, ele tinha trinta e um anos. Há uma
moça que aparece várias vezes no livro, Fraulein Burstner – em
seu manuscrito, geralmente, escreve o nome dessa personagem
abreviando-o para Fr. B., ou F. B., fazendo, certamente, a conexão
ficar bastante clara” (BROD: 1978, p. 146). Ainda que de maneira
nada óbvia, tudo em Kafka, mesmo em suas narrativas mais
longas, ficam nesse interstício entre o que se escreve e o que se
vive, ou em tal zona de potencialidade, o que levou a tradutora
e ensaísta Marthe Robert, ao mencionar que ignoramos o aspecto físico das personagens kafkianas (que está praticamente
ausente das histórias narradas), a afirmar que “Raban, Gregor
Samsa, Georges Bendemann, Joseph K., o Agrimensor, são, a este
respeito, por assim dizer desconhecidos para nós (é verdade que
compensamos espontaneamente esta lacuna ao imaginá-los sob
as feições do próprio Kafka, o que é justo na medida em que as
suas narrativas são uma autobiografia)” (ROBERT: 1963, p. 69).
Internado no sanatório Hoffmann, em Kierling, Kafka começa, no final de maio de 1924, ou seja, a duas semanas de sua
morte, a revisão das provas de “Josefina, uma cantora” (novela
criada pouco mais de um mês antes, quando, entre a vida em
Berlim e a ida ao sanatório, estava de passagem por Praga) para
o livro Um artista da fome, cuja prova havia então chegado da
editora Die Schmiede. Enquanto sua tuberculose laríngica, que
atingiu, inclusive, os pulmões e o intestino, o impedia de falar
ou de pronunciar qualquer som, ele, afásico, se comunicava com
Dora, a mulher amada, a única com quem viveu sob um mesmo
teto, e Klopstock, o amigo que, cuidando dele juntamente com
Dora, o acompanhou até o fim, por bilhetes. Em certo momento,
enquanto revisava a novela mencionada, ele escreveu um bilhete
a seu amigo: “Não é que comecei a tempo meu estudo sobre o
guinchar dos animais?” (KLOPSTOCK: 1998, p. 201). Como não
associar os guinchos do canto de Josefina e a afasia progressiva
de Kafka? Como não encontrar uma linha de trânsito entre a experiência vivida e a experiência escrita? Como não ler a partir de
uma complexa trama literário-biográfica o que Danielle Cohen
-Levinas chama de “o destino afônico daquilo que resta: uma fala
sem pulmão, uma língua sufocada que coloca imediatamente a
literatura no horizonte de sua sobrevida”, de uma “avocalidade
estrangulada”, de “uma voz ferida, para sempre perdida para o
mundo dos humanos”, de uma “ilegibilidade da voz”, de “uma voz
que não pode se conceber senão acompanhada por sua própria
extinção”? Como não ler o que Danielle Cohen-Levinas chama de
uma “laringe não vocal, o extremo da palavra despojada de sua
plástica, que interrompe a sincronia do verbal” enquanto “uma
voz que não pode ser concebida acompanhada de sua própria
extinção”, enquanto o “barulho da morte” (COHEN-LEVINAS:
2014, p. 63)?
Kafka, que media 1,83m de altura, pesava, em 1923, ao conhecer Dora, apenas 53kg e, poucos meses depois, internado,
49kg. Imediatamente antes do grande encontro amoroso que
determinará os meses finais de sua vida como aparente e contraditoriamente os mais felizes (apesar dos graves problemas
econômicos alemães que o concerniam de perto), na última
entrada do que até hoje se conhece de seus diários, no dia 12 de
junho do referido ano, Kafka escreve: “Momentos terríveis esses
últimos tempos, impossíveis de enumerar, quase interrompidos.
Passeios, noites, dias, incapaz de tudo, menos de sofrer” (KAFKA:
1984, p. 551). Não deixa de ser uma coincidência terrivelmente
sarcástica que, nos dias que precederam sua morte, ele, que já
não podia se alimentar em decorrência da doença, estivesse trabalhando na revisão exatamente de Um artista da fome, livro cujo
título é retirado de um conto homônimo em que, escrito anos
antes, tem por tema o talvez maior jejuador de todos os tempos,
que vai definhando sem comer até praticamente desaparecer
por debaixo da palha de sua jaula. Conta-se que, de tão exaurido
pela conjunção entre o trabalho e a doença mortal, Kafka caía,
então, por vezes, no choro.
Willy Haas, que conhecia pessoalmente o escritor, afirma
ter recebido uma carta da irmã Ana, enfermeira que cuidou de
Kafka no sanatório até o dia de sua morte, tendo tido, inclusive,
a incumbência de cerrar seus olhos quando ele morreu; nela,
a religiosa, então com setenta e três anos, testemunhando que
“seu espírito [o de Kafka] era antes de tudo absorvido pelo que
ele escrevia”, faz uma “extraordinária observação: ‘Sete anos
antes de sua morte, na novela ‘Um artista da fome’, ele descreve
a inapetência pela alimentação, como ele próprio sofrerá conforme sua laringe vai sendo mais e mais atingida’” (HAAS: 1998, p.
247-248). No dia exato de seu falecimento, em 2 de junho de 1924,
ele continuava revisando pela manhã as referidas provas. De tal
acontecimento, Blanchot afirma: “Até o fim, ele permaneceu um
escritor. Em seu leito de morte, privado de força, de voz, de ar,
ele ainda corrige as provas de um de seus livros (Um artista da
fome). Como ele não pode falar, ele anota em um papel para seus
companheiros: ‘Agora, eu os vou ler [os contos do livro]. Isso talvez vá me agitar muito; mas é preciso que eu viva isso ainda uma
vez’. E Klopstock conta que, quando a leitura acaba, as lágrimas
correm por muito tempo em seu rosto: ‘Foi a primeira vez que vi
Kafka, sempre senhor de si mesmo, entregar-se a tal movimento
emotivo’” (BLANCHOT: 1981, p. 208). Tarefa árdua, essa, de escrever – aprendendo a minguar, até desaparecer; ou, como sintetiza
o aforismo 90 escrito em Zurau e presente na entrada do dia 28
de janeiro de 1918 de seu diário, “Duas possibilidades: fazer-se
infinitamente pequeno ou sê-lo. A segunda é perfeição, ou seja,
inação, a primeira, começo, ou seja, ato” (KAFKA: 1984, p. 469).
Em Kafka, não há, de maneira alguma, uma impositividade
do viver sobre o escrever nem deste sobre aquele, nenhuma origem do que se vive a dar fundamentação exclusiva ao que se escreve nem uma reversão do que se escreve se sobrepondo ao que
se vive na tentativa de apagar sua singularidade ou de lhe tornar
apreendido pela suposta explicação da soberania do outro: nenhuma linha estanque que separe o que mobiliza o viver do que
aciona a escrita pode ser traçada. Antes, a permanência em um
intervalo nebuloso entre a experiência da escrita e a que se vive
compondo cada instante da experiência indiscernível. Enfatizar
a experiência (entendida aqui como o desguardecimento das
fronteiras entre o viver e o escrever, em que ambos não podem
existir no conforto de um asseguramento de sua exclusividade
discriminada em relação ao outro) significa assumir que tanto
o que se vive quanto, como quer Danielle Cohen-Levinas, os
“modelos narrativos de Kafka poderiam ser encarados como a vibração mais que humana de um cruzamento de experiências que
não requer qualquer resolução, e que, sobretudo, desobriga de
que se escolha uma delas em detrimento da outra” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 68). Nessa “vibração mais que humana”, o viver e
o narrar participam do complexo cruzamento das experiências
que resguardam sua inapropriabilidade ou inacessibilidade.
Não é sem motivos que em 16 de janeiro de 1922, ele escreve em
seu diário: “esta perseguição se serve de uma estrada que sai do
humano”, para acrescentar que “toda esta literatura é um assalto
contra as fronteiras” (KAFKA: 1984, p. 519-520).
Um caminho possível de se pensar a escrita kafkiana pode
ser um que vá da lenda ou do mito, que, tal qual escrito no
“Prometeu”, tenta “explicar o inexplicável” (KAFKA: 2002, p.
107), à parábola, caracterizada por Kafka como a preservação
enigmática do inconcebível enquanto inconcebível ou do incompreensível enquanto incompreensível ou do inexplicável
enquanto inexplicável (KAFKA: s/d, p. 21). O cruzamento das
experiências da “vibração mais que humana” mencionada se
coloca como uma de suas parábolas mais singulares, estando
elas presentes em muito do que lemos de seus escritos e dos
acontecimentos vividos por ele, transformados em escritas ao
serem legados também por seus amigos e amores, que convi-
veram com ele reconhecendo imediatamente sua grandeza, até
chegar a nós. Em “Anotações sobre Kafka”, acerca das parábolas,
Adorno afirma que a obra de Kafka “não se exprime pela expressão, mas pelo repúdio à expressão, pelo rompimento. É uma arte
de parábolas para as quais a chave foi roubada” (ADORNO: 2001,
p. 241). A parábola não seria então o chamado à revelação ou ao
desvelamento ou à presença de algo misterioso pela chave interpretativa, mas a impossibilidade de revelação e de desvelamento
e de presença assegurando, na escrita que repele a expressão,
afasta a interpretação e rechaça qualquer totalização do sentido, o incompreensível enquanto incompreensível. Ao invés
de, como um espaço de uma hermenêutica privilegiada, dizer
mais do que se pode ter consciência, essa escrita, parabólica,
uma escrita por subtração, diz sempre menos do que se pode
imaginar, obrigando-nos a entrar arduamente no labirinto de
sua exatidão literal que, de modo inesperado, nega tanto isso
quanto aquilo, tanto uma interpretação quanto outra. Eis sua
aparente contradição ou seu “paradoxo perpétuo”, como Camus
bem o viu: “é ao mesmo tempo mais simples e mais complicado” (CAMUS: s/d, p. 169); tal passagem de Camus parece ter
sido implicitamente retomada por Deleuze e Guattari, que,
acerca dos textos animais de Kafka, afirmam que “são muito
mais complexos do que dizemos. Ou, ao contrário, muito mais
simples” (DELEUZE e GUATTARI: 1977, p. 21).
Lê-se, mas a leitura só se faz possível naquilo que, nela, é
inconcebível; lê-se, mas a fratura do ininteligível; lê-se o que não
se pode ler e é lido somente ao modo de uma impossibilidade
interpretativa, ao modo de uma “perturbação hermenêutica”
(COHEN-LEVINAS: 2014, p. 68), ao modo de uma interrupção.
Interrupção no que lemos, no que vemos, no que ouvimos, levando-nos, imediatamente, a um não legível, a um não visível,
a um não ouvível, a um não dizível, a um não compreensível
que resta, com força, no texto. Nas parábolas (ao menos nas
de Kafka), no lugar de haver apenas uma comparação ou uma
analogia entre o que se lê e o modo pelo qual o que se lê foi
lido, há, sobretudo, uma justaposição ou uma conjunção entre
o legível e o ilegível, entre o inteligível e o ininteligível, entre
o interpretativo e sua impossibilidade, entre a hermenêutica
e sua perturbação, entre o que antes era separado e é agora
indiscernível, de tal modo que, ao lidarmos diretamente com
os primeiros termos, são os segundos em sua amplitude quase
impossível que, naqueles, acabam por predominar. Não se trata,
de modo algum, do estabelecimento de um novo sentido, ainda
que torcido, a um objeto de interpretação, mas exatamente do
risco, da rasura, de qualquer possibilidade de sentido de um
objeto existido. O que se sabe é apenas da insistência do enigma, a ser preservado.
Por decorrência disso, Benjamin afirma que “nenhum
escritor seguiu tão rigorosamente o preceito de ‘não construir
imagens’” (BENJAMIN: 1987, p. 155): não que, aparentemente de
modo contrário ao pensado pelo crítico filosófico mencionado,
Kafka não construa imagens em seus textos4, mas que as vai apagando na mesma medida em que as vai fazendo aparecer, que
ele as formula apenas para entregá-las, rápida e quase imediatamente, à sua anulação. Entre muitos exemplos que poderiam
ser dados não propriamente para a ausência de construção de
imagens, mas para a desconstrução completa que ocorre, no
texto, das imagens que, ao longo dele, vão sendo construídas,
destaca-se “Desejo de se tornar índio”, presente no primeiro
livro publicado em vida por Kafka, Contemplação. Ele pode ser
lido, indistintamente, como um miniconto, como, seguindo o
próprio Kafka em uma carta a seu editor citada por Modesto
Carone, uma “prosa miúda” (KAFKA: 1994, p. 100), ou, ainda,
também conforme o tradutor e ensaísta, enquanto um poema em
prosa (CARONE: 2009, p. 73). Na tradução de Modesto Carone:
“Se realmente se fosse um índio, desde logo alerta e, em cima do
cavalo na corrida, enviesado no ar, se estremecesse sempre por
um átimo sobre o chão trepidante, até que se largou a espora,
pois não havia espora, até que se jogou fora a rédea, pois não
havia rédea, e diante de si mal se viu o campo como pradaria
ceifada rente, já sem pescoço de cavalo nem cabeça de cavalo”
(KAFKA: 1994, p. 47)5.
4 Segundo Janouch, em conversa a respeito de O foguista, o próprio Kafka lhe teria dito
que seus personagens “são imagens, apenas imagens”. Além disso, seria fácil mostrar
que ele as constrói com grande frequência (a do castelo, a do homem-inseto, a da toca,
a das sereias e tantas outras que se tornaram paradigmáticas para o século XX).
5 E em tradução inédita do poeta André Vallias, postada em seu perfil no Facebook: “Se
a gente fosse então um índio, em prontidão, e no cavalo em disparada, enviesado ao
Chamando atenção tanto para a extrema concisão quanto
para a velocidade com que tudo ocorre, o que interessa em
“Desejo de se tornar índio” é realizado em apenas uma frase,
em pouco mais de quatro linhas, começando por um “se” condicional a preservar, desde o início, a escrita imersa no campo
de possibilidades. Se a poesia (ou a literatura de modo geral) não
está do lado do já dado do mundo, mas de sua potencialidade,
se a poesia (ou a literatura de modo geral) não está do lado do
dito, mas da abertura para o dizer, o “se” inicial é um dos modos
encontrados para, instantaneamente, colocar o pensamento no
campo de possibilidades, de onde ele não quer jamais sair, mas,
antes, intensificá-lo. Na atualização mesma da “prosa miúda” ou
do poema em prosa, abre-se o campo potencial, de modo que
este compareça naquele. No ritmo que enuncia sua alta voltagem
de escrita e pensamento, o balanço poético-literário da frase é
dado pela tensão harmônica que há entre o “se” e o “até”, estabelecendo os dois momentos da frase: o da criação das imagens e
o de sua interrupção acrescida da anulação da possibilidade até
então criada. Em uma espécie de tomada cinematográfica, com o
“se”, o leitor é levado a visualizar um índio que galopa no campo
cortando o ar em seu cavalo enquanto tudo (paisagem, cavalo e
índio) estremece; com o “até”, a interrupção e o anulamento das
imagens propostas e de outras que nem haviam sido anteriorvento, trepidasse cada vez mais rápido sobre o solo trepidante, até soltar as esporas,
pois não havia esporas, até jogar as rédeas fora, pois não havia rédeas, e mal avistasse a
terra à sua frente como campo capinado rente, o cavalo já sem pescoço e sem cabeça”.
mente construídas, como se se retirasse da imagem não apenas
o que ela tem, mas, igualmente, o que ela nem tem. Do que se
supunha existir – agora, na segunda metade, abandonado – é
dito que nem existia (a espora e a rédea), enquanto o que antes
era visível (o campo) se encontra em processo de dissipação e o
cavalo já não tem cabeça nem pescoço. Levada à sua negação, a
imagem inicial vai se apagando, desorganizando, desatarrachando e despedaçando as formas a princípio anunciadas, deixandonos com um vazio de imagem que nos envia muito rapidamente
à quebra do estado das coisas. Como escreveu Kafka em um de
seus aforismos: “Ainda nos impõem fazer o que é negativo; o
positivo já nos foi dado” (KAFKA: 2012, p. 32).
Não se trata, portanto, propriamente de “não construir
imagens”; trata-se, antes, de suas imagens já serem o que venho
chamando de contraimagens, de imagens que estão ali para manifestar a ausência do que, a princípio, aparentam manifestar.
Enquanto contraimagem, a imagem não assume sua plasticidade
reveladora que, tornando visível o que quer chegar ao mundo da
sensibilidade, lhe é habitual no âmbito da literatura, mas, ao contrário, poéticas de um modo extremamente singular, elas residem
na força de retirada, de apagamento e de nadificação do sensível,
deixando-nos, a cada momento, de mãos vazias. Levando o leitor
a mergulhar na intensidade do negativo presente na superfície
mesma do texto, o procedimento das contraimagens é tão forte
na escrita kafkiana que, uma vez imerso na força do vazio em que
o texto o coloca, chega-se a duvidar que tal escrita possa de fato
existir, que as palavras consigam resguardar – ainda – sua coesão,
como salienta Ricardo Timm de Souza: “Trata-se de uma literatura visceralmente anormal – não dá, nem à intuição nem à razão,
razões para crer que possam vir a captar sua essência e, talvez por
isso, exerça um tal poder de sedução sobre espíritos inquietos,
por sua vez imersos em tensão. Tensão absoluta, não admite
relatividades sem, porém, utilizar-se de quaisquer argumentos
para declinar desta admissão: chancelas e contrachancelas são
aqui, simplesmente, fracas demais. O turbilhão é excessivamente
forte, plastificado embora na sucessão das palavras; o milagre é
que as palavras consigam, apesar da intensidade que pulsa sob
elas, permanecer razoavelmente conectadas» (SOUZA: 2012,
s/p). Com outras palavras, Harold Bloom ressaltou que Kafka foi
um “literalista do negativo” (BLOOM: 1995, p. 439).
Com Kafka repetidamente imerso nas parábolas dos mais
diversos tipos, há um acontecimento exemplar, dos mais comoventes no que diz respeito à experiência do entrelaçamento
entre as vidas dos escritores e suas escritas. Nele, a frase em que
Milena afirmara que Kafka “está exposto a tudo” ganha concreção e ressoa o próprio conceito de “exposição” de Emmanuel
Levinas tal qual lido por Danielle Cohen-Levinas ao propor a
“vulnerabilidade” ao outro que promove a “extradição do sujeito” como uma alternativa para a história da metafísica ou da
ontologia ocidental: “Sabemos o quanto a relação com o outro
é originariamente primeira. Essa intersubjetividade não é em
nada sinônimo de comunicação, mas ‘suprema passividade da
exposição a Outrem’, diz Levinas em Autrement qu’être. Esse movimento de exposição que pode chegar à substituição, à fissura
do sujeito, ao seu aniquilamento, ‘como uma pele se expõe àquilo
que a fere, como uma face oferecida àquele que bate’, é vivido
como trauma, como ‘dizer ao outro’ incomensurável relativo a
um enunciado que se contenta em dizer algo. O ‘dizer ao outro’,
constitutivo da subjetividade, atesta uma reviravolta da estrutura de significação do dito” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 34). No
acontecimento contado por Dora, a relação com o outro (em
breve veremos quem comparece no lugar do outro) se coloca, em
todos os sentidos, como originariamente primeira, a que expõe
a “suprema passividade” que move Kafka, a que expõe a “fissura
do sujeito” em sua vulnerabilidade que o leva imediatamente ao
acolhimento decisivo do outro, a que expõe o dizer e o escrever
a um “dizer ao outro” com o intuito primeiro de, permanecendo
ali, com ele, fazer um gesto para amenizar sua dor.
Mesmo que a citação seja longa, que Dora deixe então suas
palavras sobre esse acontecimento em modo de parábola ou
dessa parábola em modo de acontecimento vivido que, colocando a relação com o outro como “originariamente primeira”,
não permite, de modo algum, nessa “vibração mais que humana” tão constitutiva de Kafka, dissociar a experiência da escrita
da experiência da vida: “Quando moramos em Berlim, Kafka ia
frequentemente passear no parque de Steglitz. Eu o acompanhava algumas vezes. Certo dia, encontramos uma garotinha
que chorava e que parecia completamente desesperada. Nós lhe
dirigimos a palavra e Kafka lhe perguntou o motivo de sua aflição;
foi quando descobrimos que ela havia perdido sua boneca. Para
explicar esse desaparecimento, Kafka logo inventou uma história
completamente verossímil: ‘Sua boneca acabou de fazer uma
pequena viagem. Eu bem o sei, pois ela me enviou uma carta’.
Mas a garotinha olhou para ele com olhar desconfiado: ‘Você
tem ela aqui com você?’, perguntou-lhe ela. ‘Não, eu a deixei em
casa, mas vou trazê-la para você amanhã’. A garotinha, que ficou
logo com um olhar bastante curioso, já havia quase esquecido
sua dor, e Franz imediatamente voltou para casa para escrever a
carta. // Ele trabalhou com a mesma seriedade que caso tivesse
de escrever uma verdadeira obra literária. Tinha o mesmo estado de tensão nervosa que o agitava quando se instalava em seu
escritório, mesmo que fosse apenas para escrever uma carta ou
um cartão postal. Além do mais, era uma verdadeira tarefa, tão
essencial como as outras, pois era preciso a todo custo agradar a
garota e evitar-lhe uma decepção ainda maior. A mentira deveria
se tornar verdade, graças à verdade da ficção. No dia seguinte,
levou a carta à garotinha que esperava por ele no parque. Como
a garotinha não sabia ler, Franz leu a carta para ela. A boneca
explicava que estava cansada de viver na mesma família, exprimia-lhe o desejo de mudar de ar. Resumindo, que queria, por
algum tempo, separar-se da garotinha, mesmo amando-a tanto.
Ela prometia escrever todos os dias, e, assim, Kafka escrevia
a cada dia uma carta, contando sempre novas aventuras que
muito rapidamente se desenvolveram conforme o ritmo de vida
próprio das bonecas. Dias depois, a criança havia esquecido a
perda de seu brinquedo e só pensava na ficção que ele havia
lhe presenteado como compensação. Kafka escrevia cada frase
da história com tamanha precisão e humor que a situação da
boneca ficou muito fácil de compreender: ela havia crescido,
frequentado a escola, conhecido outras pessoas. Não deixava
nunca de assegurar à criança o seu amor, mas mencionava as
complicações da vida, outros interesses e outras obrigações
que, no momento, não lhe permitiam retomar sua vida comum.
Ela pedia à garotinha que refletisse a respeito de tudo isso, de
tal maneira que estaria pouco a pouco preparada para a perda
definitiva de seu brinquedo. // A brincadeira durou pelo menos
três semanas. Franz temia a conclusão que ele havia de dar a
tudo isso. // Isso porque devia ser uma conclusão verdadeira,
criando uma nova ordem que substituísse a desordem provocada pela perda do brinquedo. Ele esperou durante muito tempo,
antes de decidir-se finalmente por casar a boneca. Primeiro, ele
descreveu um belo rapaz, a festa do noivado, os preparativos
do casamento, e depois, com muitos detalhes, a casa do jovem
casal. ‘Você mesma se dará conta de que devemos renunciar a
rever-nos no futuro’. Franz havia resolvido, assim, o pequeno
conflito de uma criança graças à arte, graças ao meio mais
eficaz que ele dispunha para restabelecer um pouco de ordem
no mundo”(DIAMANT: 2011, p.14)6.
6 Diante disso, quem leu os relatos de seus amigos, como, por exemplo, o belíssimo
Não me cabe estender a bela compreensão de “verossimilhança” como “a mentira [que] deveria se tornar verdade, graças
à verdade da ficção” nem, muito menos, esboçar uma interpretação de tal acontecimento vivido por Kafka, Dora e a menina
em fins de 1923 no Parque de Steglitz em Berlim, no momento
em que, segundo todos os depoimentos, é o mais feliz da vida
de Kafka: que ele ressoe por si na delicadeza de sua força maior.
Cabe-me, isso sim, informar que tanto a então menina quanto
as cartas a ela endereçadas, apesar de muito procuradas por
vários críticos e biógrafos de Kafka, jamais foram encontradas,
preservando o vazio impreenchível do objeto perdido como
constituinte de tal acontecimento. Ainda que à revelia de nosso
desejo, talvez seja melhor mesmo que as cartas tenham se perdido, apesar de, quem sabe, do modo mais funesto de terem sido
apreendidas e destruídas pela Gestapo que pode ter, inclusive,
matado a menina quando crescida (como foram os originais de
Kafka mantidos por Dora e as cartas enviadas para ela, além do
fato de as irmãs de Kafka terem morrido no campo de concentração). Essa presença da ausência das cartas e a beleza de todo
o acontecimento narrado por Dora Diamant provocaram vários
efeitos, entre os quais o livro infantojuvenil de Jordi Sierra i Fabra,
Kafka e a boneca viajante, que, exatamente pela impossibilidade
de leitura das cartas, as julga como “talvez a mais bela e lúcida de
livro de Gustav Janouch, não estranhará nem um pouco a colocação de Claude David
na introdução dos diários e cartas da Pléiade: “Para todos, ele é o amigo mais delicado” (SIMON: 1984, p. XVI).
suas incursões literárias” (SIERRA I FABRA: 2009, p. 124). Entre
outros efeitos de tal acontecimento, há o texto La muñeca viajera,
de Cesar Aira, publicado no dia 8 de maio de 2004 no jornal El
País, no qual, afirmando que “Kafka fue el más grande descubridor de signos en la vida moderna”, fala dessas cartas como o “libro
más hermoso de Kafka”, acrescentando que “La desaparición del
libro de las cartas de la muñeca, por mucho que la lamentemos,
deberíamos verla como un signo positivo. Es el elemento que,
por sua usencia, da sentido al resto de la obra, que es una saga de
desapariciones cuya presencia en forma de relatos, de escritura,
tiene por función cerrar la herida de la perdida” (AIRA: 2004)7.
Lembrando a colocação de Danielle Cohen-Levinas a partir
de Emmanuel Levinas de que a filosofia e a crítica devem desconfiar essencialmente de si próprias e que, nos Carnets de captivité
et autres inédits, Levinas “detecta na literatura a possibilidade de
reintroduzir, no cerne do rigor conceitual, uma inteligibilidade do
mundo em que a noção de ‘experiência’ ocupa um lugar central”
(COHEN-LEVINAS: 2014, p. 35), Kafka, com sua “vibração mais
que humana”(COHEN-LEVINAS: 2014, p. 68), em que o viver e
o escrever participam complexamente do “cruzamento de experiências que não requer qualquer resolução, e que, sobretudo,
desobriga que se escolha uma delas em detrimento da outra”
(COHEN-LEVINAS: 2014, p. 68), é uma dessas forças a ativar, a
7 A partir desse mesmo acontecimento narrado por Dora, Gabriela Capper e eu fizemos o vídeo “O testemunho da menina da boneca de Kafka”, disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=J3XnbftIKL8>.
cada vez, a introdução da experiência no rigor conceitual daqueles que, entrando em contato com ele e sendo por ele afetado,
o lê, tornando-se assim críticos (ou filósofos) que assumem a
experiência, ou seja, críticos cuja crítica seja ela mesma literária.
Ainda que com nuances diferentes, essa é uma das indagações
deixadas por Deleuze e Guattari a partir do conceito de “literatura
menor”, que apreendem dos diários de Kafka retrabalhando-o,
ou um dos riscos que a escrita do escritor aqui abordado coloca
implicitamente para a filosofia (e para a crítica) de nossa época
como uma de suas provas de fogo, como um de seus testes: “Há
[nesse ‘saber criar um tornar-se menor’] uma oportunidade para
a filosofia, ela que por muito tempo formou um gênero oficial
e referencial?” (DELEUZE e GUATTARI: 1977, p. 42). Tornar-se
menor, acolher a experiência, vibrar mais que humanamente, o
desejo também crítico e filosófico.
*
Entre muitas, ainda há essa parábola de Kafka, “Um cruzamento”: “Tenho um animal peculiar, meio gatinho, meio cordeiro.
É uma herança dos bens do meu pai, mas que só se começou a
desenvolver no meu tempo, dantes era muito mais cordeiro que
gatinho, agora, porém, tem mais ou menos o mesmo dos dois. [...]
Claro que é um grande espetáculo para as crianças. Ao domingo
de manhã é a hora da visita, seguro o animalzinho no regaço e
as crianças de toda a vizinhança põem-se à minha volta. Fazem-
se então as mais estranhas perguntas, a que ninguém consegue
responder. Por mim, também não me esforço, dou-me por satisfeito por mostrar o que tenho, sem mais explicações. Por vezes,
as crianças trazem gatos, uma vez até trouxeram dois cordeiros;
mas, ao contrário de suas expectativas, não houve cenas de reconhecimento, os animais olharam-se com toda a calma nos seus
olhos de animais e parece que aceitaram reciprocamente as suas
existências como facto divino. [...] Não basta que seja cordeiro
e gato, quase quer ainda por cima ser também cão [...] Talvez a
faca do carniceiro fosse a salvação do animal, mas tenho de lhe
recusar, como peça herdada que ele é” (KAFKA: 2012, p. 251-252).
KAFKA POETA
Em seus textos e depoimentos, muitos críticos e amigos de
Kafka denominam-no repetidamente “poeta” (entre os quais, e
não apenas na língua alemã, Modesto Carone, Marthe Robert,
Félix Guattari, Milan Kundera, Kosovoi, Elias Canetti, Haroldo
de Campos, Gunther Anders, Félix Weltsch, Oskar Baum, Michal
Mares, Fred Bérence, Alfred Wolfenstein, Ludwig Hardt, Danillo
Nunes...).
Não apenas seus comentadores mais próximos ou distantes o designavam como poeta; sobre O veredicto, ninguém
menos que o próprio Kafka afirma, duas vezes, a seu editor
Kurt Wolff, que o respectivo texto se confunde com um poema.
Primeiramente, em um cartão postal de 14 de agosto de 1916,
ao preferir a publicação sozinha do texto contra a inclusão de A
colônia penal e A metamorfose no mesmo volume (já está aqui
em um momento posterior ao da ideia de publicar Os filhos):
“O veredicto, ao qual atribuo uma importância particular, é se-
guramente bem pequeno, mas também é mais um poema que
uma narrativa, ele precisa de espaço livre em volta dele e não
é indigno de tê-lo” (KAFKA:1984, p. 760); cinco dias depois, ele
retoma a colocação: “Isso que para mim fala, sobretudo, a favor
de O veredicto ser publicado separado é: essa narrativa depende
menos da forma épica que do poema, por isso, ele precisa de um
espaço livre diante dele se ele deve produzir todo o seu efeito.
E, ainda, ele é dos meus textos o que eu prefiro, de onde vem o
desejo que eu sempre tive de deixá-lo se impor, se possível, de
modo independente” (KAFKA: 1984, p. 761).
Em ambas as passagens, esse “poema”, seu texto predileto até
o momento, é de tanta importância para Kafka que ele o deseja
publicar sem nenhum outro que lhe anteceda ou lhe suceda,
para que o espaço livre antes dele, em torno dele e depois dele
possa contribuir com o que ele diz, fazendo com que o não verbal
que o precede, circunda-o e o sucede seja trazido como modo
de respiração para dentro de seu âmbito. Se, em agosto de 1912,
enviando Contemplação ao mesmo editor mencionado, ele qualificou os escritos que compõem tal livro de kleine Prosa, prosa
pequena ou “prosa miúda” (como traduziu belamente Modesto
Carone (KAFKA:1994, p. 100), com O veredicto, dele, poderia dizer
keine Prosa, prosa nenhuma: o que antes era um movimento
pequeno ou miúdo de sua prosa, mantendo o tom menor da
escrita, ganha, em 1916, sobre o texto de 1912, explicitamente a
designação de “poema”. No momento final de maior importância
da escrita de Kafka, em A construção, ele mencionará um “canto
à incolumidade da construção” (KAFKA: 1991, p. 67) e Josefina,
a ratinha, é uma cantora. Assim, em um primeiro momento, a
“prosa miúda”, em seguida, a denominação de “poema” e, posteriormente, a de um canto; em todos, certamente, o incólume
poético da própria escrita.
Do estilo – poético – de Kafka, muito já foi dito por tantos,
ressaltando, em sua linguagem, a fluência, a velocidade com
que vai ao essencial, a simplicidade, a complexidade, a evasão,
a coesão, a secura, a pureza, a quietude, o caráter descritivo,
objetivo, enxuto e microscópico, o rigoroso, o fragmentário, a
técnica tridimensional do cinema, a guerra entre a sintaxe e
o tema, a instabilidade semântica, a sobriedade, a lucidez, a
raridade, a sutileza, o lapidar das formulações, o burocrático, a
limpidez, a unidade da forma e do sentido, a não construção de
imagens, a ausência de desvios, o parecer vir de outro mundo, a
não adjetivação, o não inchaço, a não presença de neologismos,
a ausência retórica, a ausência de fogos de artifício, a ausência de
truques, a ausência de mentiras, o enigmático, o obscurecimento,
o balanço entre a determinação e a indeterminação, a precisão,
a oficialidade, a justeza, a minúcia, a flexibilidade, a exatidão, o
cartorial, o protocolar etc. etc. etc.
É certo que todas essas complementações dizem respeito
ao seu modo de escrita, mas, antes de propor uma leitura de
O veredicto, o que quero entender como o “poema” de Kafka,
como o que o torna “poeta”, como o poético por excelência em
Kafka, é o fato de todas essas designações que caracterizam seu
estilo estarem, na superficialidade mesma do texto, a serviço
do turbilhão, da desagregação, do insólito, do irrealizável, da
inconsistência, da ausência da voz, do despertencimento, do desancoramento, do vazio, do nada, do espaço livre, do inacessível,
do inapropriável, do assignificante, do afônico, da avocalidade,
da ilegibilidade, da interrupção, do intervalo, do incompreensível, da contraimagem e de muitos outros termos que designam
a força de desobramento e a intensidade do negativo presentes
em seus escritos1. E em tensão com eles.
Ressaltando que algo indizível se abre na sintaxe entrecortada e gaguejante kafkiana, Judith Butler chama atenção para o
não pertencimento de Kafka, tanto a nenhuma nação quanto a
nenhuma língua nem a qualquer contrato nem ao que quer que
seja que possa se colocar no âmbito de uma pura positividade.
Lembrando que ele sempre terminou seus noivados, nunca foi
proprietário de apartamento e pediu para queimarem seus escritos, a filósofa americana afirma: “Na correspondência de Kafka
com sua amada Felice Bauer, que era de Berlim, presenciamo-la
corrigindo constantemente o alemão dele, sugerindo que ele não
está completamente em casa nessa segunda língua. Sua amada
posterior, Milena Jasenská, que também era tradutora da obra
dele para o tcheco, está frequentemente ensinando a ele frases
em tcheco que ele não sabe como soletrar nem como pronunciar,
1 Isso pode ser visto no ensaio “A vibração mais que humana”, o primeiro deste
livro.
sugerindo que também o tcheco lhe é algo como uma segunda
língua. Em 1911, ele frequenta o teatro ídiche compreendendo
o que é dito, mas o ídiche não é uma língua que ele encontre
com facilidade em sua vida familiar e cotidiana; ela continua
sendo uma importação atraente e estranha do leste. Há então
uma primeira língua aqui? E pode-se argumentar que mesmo o
alemão formal no qual Kafka escreve – que Arendt chamou de ‘o
mais puro’ alemão – traz os sinais de alguém entrando em uma
língua de seu exterior? Esse foi o argumento do ensaio de Deleuze e Guattari: ‘Kafka: por uma literatura menor’. Essa querela
parece de fato antiga, uma vez que o próprio Kafka evocou em
uma carta, de [7] outubro de 1916, para Felice, com referência ao
ensaio de Max Brod sobre escritores judeus, Nossos e escritores
e a comunidade, publicado em Der Jude: ‘E, aliás, você não vai
me dizer o que eu realmente sou; na última Neue Rundschau,
A metamorfose é mencionada e rejeitada por motivos razoáveis;
em seguida, o escritor diz: – Há algo fundamentalmente alemão
sobre a arte narrativa de K. Por outro lado, no artigo de Max: –
As histórias de K estão entre os documentos mais tipicamente
judeus do nosso tempo’. // Um caso difícil. Serei um cavaleiro de
circo andando em dois cavalos? Ah, não sou cavaleiro nenhum,
eu deito prostrado no chão” (BUTLER: 2011, p. 3-8).
No mesmo tom, Dora Diamant termina seu depoimento ressaltando de modo muito preciso a inadequação da língua alemã
enquanto obstáculo para Kafka em uma tensão inultrapassável
entre o arcaico e o moderno: “Durante os anos que se seguiram,
reli frequentemente os livros de Kafka, sempre com a lembrança
dos momentos em que ele me lia em voz alta alguns trechos. Foi
então que senti a língua alemã como um obstáculo. O alemão é
uma língua muito moderna, muito atual. Todo universo de Kafka
teria tido a necessidade de uma língua mais antiga, em que estivessem contidos os medos mais antigos, uma representação das
coisas quase arcaica. Sua mente percebia nuances muito finas
para uma mente moderna” (DIAMANT: 2011, s/p).
Em sua biografia de Kafka, Danillo Nunes toma outro caminho
para dizer o mesmo: “Do momento em que transpôs o umbral da
casa paterna para frequentar a escola, Franz, que já se considerava um intruso na própria família, começou a se dar conta de sua
estranha situação face ao mundo. De sangue judeu, mas alheio
ao judaísmo; nascido em Praga, mas repudiado pelos tchecos;
educado na cultura germânica, mas hostilizado pelos alemães;
súdito do Império Austro-Húngaro, mas ignorado pelos austríacos; portanto apátrida em seu país, estrangeiro na própria cidade
natal, não possuindo sequer um idioma, pois o que usava era de
empréstimo” (NUNES: 1974, p.119). Tal estranheza constitutiva é
uma constante dos modos de os intérpretes de Kafka o pensarem;
ao designar sua “múltipla condição de não pertencer”(ANDERS:
2007, p. 26), Gunther Anders, por exemplo, afirma: “Como judeu,
não pertencia de todo ao mundo cristão. Como judeu indiferente
– pois a princípio o foi –, não se integrava inteiramente aos judeus.
Por falar alemão, não afinava a fundo com os tchecos. Como judeu
de língua alemã, não se incorporava por completo aos alemães da
Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria.
Como funcionário de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de
burguês, não se adaptava de vez ao operariado. Mas também não
pertencia ao escritório, pois sentia-se escritor. Escritor, porém,
também não era, pois sacrificava suas forças pela família. Mas
‘vivo em minha família mais estranho que um estrangeiro’ (carta
a seu sogro)’” (ANDERS: 2007, p. 26).
Prostrado ao chão, fora dos cavalos, sem o cavalo do alemão
nem o do tcheco que poderiam em parelha conduzi-lo, sem uma
primeira língua que ofertasse segurança a ele, intruso, apátrida,
estrangeiro (e com todos os “mas” das passagens anteriormente
citadas), habitando uma ausência constitutiva de toda e qualquer
língua como algo garantido, Kafka se coloca na insegurança do
intervalo sem sentido entre as línguas mencionadas por Judith
Butler (tcheco, alemão e ídiche).Estendendo o assunto, não há
como não trazer o começo de “A preocupação de um pai de família”: “Alguns dizem que a palavra Odradek deriva do eslavo e
com base nisso procuram demonstrar a formação dela. Outros
por sua vez entendem que deriva do alemão, tendo sido apenas
influenciada pelo eslavo. Mas a incerteza das duas interpretações
permite concluir, sem dúvida com justiça, que nenhuma delas
procede, sobretudo, porque não se pode descobrir através de
nenhuma um sentido para a palavra”(KAFKA: 2003, p. 43).
Como se sabe que os eslavos englobam os tchecos, Odradek
escapa tanto do cavalo tcheco quanto do cavalo alemão, em di-
reção ao sem sentido da palavra que seu nome designa. Uma das
etimologias de “eslavo” coloca o sentido de sua proveniência no
que quer dizer “palavra”, “conversa”, “fala”, “língua”, sinalizando o
povo que, com suas pessoas se entendendo, fala a mesma língua.
Estar fora do eslavo é estar mudo ou murmurando sons desconexos, é estar fora da palavra, fora da língua, fora da conversa e fora
da possibilidade de sentido. Quem está fora do eslavo, está fora
da língua ou no desconexo de qualquer língua, incompreensível.
Estando fora do eslavo, Odradek deveria estar no alemão, mas, se
ele está fora da palavra, da língua e da conversa, como poderia
estar no alemão? Sendo o bárbaro por excelência, o estrangeiro
de toda e qualquer língua, – Kafka é taxativo –, Odradek não está,
claro, tampouco, no alemão. Ele não está nem em uma língua
nem em outra; ele está fora do sentido de toda língua, sendo
exatamente esse fora que precisa ser nomeado. Sem domicílio,
sem morada certa, sem meta, sem atividade, sem funcionalidade,
sem finalidade, sem tempo, ficando na maior parte do tempo
calado e sem ser visto, extraordinariamente móvel, Odradek é a
personagem para o incapturável pela língua em sua articulação,
o nome do indizível ou do que não se pode falar e que, por existir,
precisa ser, de algum modo, nomeado (“Naturalmente ninguém
se ocuparia de estudos como esses se de fato não existisse um ser
que se chama Odradek” (KAFKA: 2003, p. 43). Não esqueçamos
que, em um de seus textos mais antigos, “Descrição de uma luta”,
de1907/1908, quando Kafka tinha aproximadamente a idade do
personagem que nesse momento fala, para este, nem nome ha-
via, mas apenas o inominado é quem comparecia: “Boas-noites,
amável fidalgo, tenho vinte e três anos, mas ainda não tenho
nome” (KAFKA: 2012, p. 95).
Uma das estranhezas de Kafka é a de trazer, como no caso
de Odradek, o indizível para a nomeação do que não pode ser
compreendido, explicado, capturado, concebível ou dito de outro
modo que pela pura nomeação, que segue nomeando o inexplicável, o ininterpretável, mas que, além disso, o estende, para
além da pura nomeação, para o âmbito da linguagem como um
todo tal como manifesta em seus textos. Se Kafka escreve “poemas”, é, justamente, por escrever o que o nome Odradek evoca,
mas não apenas no momento da nomeação. Enquanto nome
para o poema, “Odradek” coloca seus leitores fora da língua ou
diante de uma língua muda, desconexa, ilegível e sem sentido,
levando-nos a adentrá-la e, uma vez nela, não sem hesitações,
perder toda e qualquer representação, que não mais se impõe,
antes, depõe-se. Paradoxalmente, é preciso nomear essa perda
e, ainda mais, ao invés de calá-la, não parar na pura nomeação
do que se perdeu, mas se deixar ser tomado por uma gramática
contaminada pela negação de si própria, deixar-se ser tomado
por uma língua contaminada por esse fora, por essa mudez, por
essa ilegibilidade, por essa desconexão. De fora da língua ou em
uma língua disjunta, precisamente porque está nela e nela não se
reconhece nem sente qualquer possibilidade de pertencimento,
o mínimo que fala se confunde com “um riso como só se pode
emitir sem pulmões”, o mínimo que fala soa como “o farfalhar
de folhas caídas” e outros gestos capazes de manifestar o assignificante na textura do texto.
Nomeando o que não pode fazer sentido em nenhuma língua, nomeando o que está entre uma língua e outra lhes sendo
inapropriável e inacessível, nomeando o disjunto de qualquer
língua, compondo o texto desde e para esse assignificante,
“Odradek”é o nome do poema em Kafka, mas é também Kafka:
desabrigado, sem refúgio, sem teto, exposto a tudo, nu, sem língua materna, no intervalo entre uma língua e outra, sem sentido
e, nas palavras dele mesmo, deitado, prostrado no chão, como
um horizonte neutro em que as qualidades não comparecem.
Como Kafkadradek, como Kafkapoeta, pode – ainda – falar, senão
sentindo-se completamente expropriado no que fala e necessitando ao extremo dessa expropriação em seu nível mais intenso?
Como pode Kafka escrever, senão estando (quase) pronto para
queimar tudo o que escreve? Como pode Kafka escrever senão
como quem não pode mais escrever e com a sensação de ter chegado à última fronteira? Falar, ou escrever, mesmo e, sobretudo,
nesse impossível, nesse inexplicável, nesse ininterpretável, nesse
incapturável, nessa destruição, nesse vazio, nessa mudez, nessa
disjunção, nesse negativo, é o fazer do poeta, o poema de Kafka.
A respeito dessa escrita que, a todo momento, recobra seu
negativo, sua ausência de voz, sua impossibilidade mesma de
falar ou de escrever, simultânea à impossibilidade de dominar
a linguagem mais trivial da comunicação cotidiana, em A carta
ao pai, há um dos momentos de maior intensidade da escrita
kafkiana: “A impossibilidade da relação tranquila [com o pai] teve
uma outra consequência, muito natural no fundo: eu desaprendi
a falar. Por certo eu não teria sido, sendo outro o contexto, um
grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem
humana corrente e comum. Mas tu me proibiste a palavra desde
cedo, tua ameaça: ‘Nenhuma palavra de contestação!’ e a mão
erguida para sublinhá-la me acompanham desde então. Adquiri
junto de ti – és, quando se trata de tuas coisas, um orador excelente – um modo de falar entrecortado, gaguejante, e também
isso era demais para ti, de modo que por fim calei, primeiro por
teimosia talvez, mais tarde porque diante de ti eu não conseguia
pensar nem falar”(KAFKA: 2004, p. 34).
Enquanto, no prefácio a Parábolas e fragmentos, livro por
ele traduzido, João Barrento afirma que “a biografia de Kafka há
de ser uma história inenarrável, o registro de uma irrealidade”,
o poeta, unindo explicitamente Sócrates, o Antigo Testamento,
Nietzsche e Píndaro (e talvez Sófocles de modo implícito), em um
de seus fragmentos do espólio, escreve: “Conhece-te a ti mesmo
não significa: observa-te. Observa-te é a palavra da serpente. E
significa: torna-te o senhor das tuas ações. Mas agora já o és, és
senhor das tuas ações. A palavra significa então: desconhece-te!
Destrói-te! Ou seja: qualquer coisa da esfera do mal. E só quando
nos curvamos muito ouvimos também o bem em nós, cuja
palavra é: ‘para te tornares naquele que és’” (KAFKA: 2012c, p.
113). Tornar-se aquele que se é desconhecendo-se, destruindose, esvanecendo-se, chegando a um ninguém que se é, abrindo
em si e em tudo uma lacuna supressiva. Da escrita de si, Kafka
afirma: “A escrita nega-se-me. Daí o projeto das investigações
autobiográficas. Biografia não, investigação e descoberta de
elementos os mais ínfimos possíveis” (KAFKA: 2012c, p. 118).
Porque essa dinâmica de dizer o quase apagamento e a negação no mais ínfimo possível está por todos os lados dos poemas
de Kafka, Walter Benjamin pensa a sua obra como “uma elipse”
(BENJAMIN: 1993, p. 301) complementadora de um tempo que,
pautado pela “aniquilação em grande escala [d]os habitantes
deste planeta” (BENJAMIN: 1993, p. 303), não transmite sua tradição senão por sua dissolução, tendo sua força exatamente na
negatividade que, em todos os âmbitos, faz comparecer: “Kafka
escutava o que lhe dizia a tradição e quem ouve intensamente
não vê. Este ato de ouvir é cansativo, sobretudo, porque só coisas confusas chegam até aquele que ouve. Não há doutrina a se
aprender e nem conhecimentos que se possa conservar. O que
se capta de repente são coisas que não estão determinadas para
nenhum ouvido em especial. Isto inclui um estado de coisas que
caracteriza estritamente a obra de Kafka por seu lado negativo
(quase sempre sua característica negativa será mais rica de perspectiva que a positiva)” (BENJAMIN: 1993, p. 303).
Os diversos modos de o negativo se manifestar acolhe o
incomum, o incomunicável e o intransmissível como elementos decisivos dessa escrita. Se, retomando o que ele disse, Kafka
afirma que O veredicto é um “poema”, parece ser também por
fazer emergir, com toda radicalidade, esse incomum e esse
incomunicável, a impossibilidade do em comum comparecer.
Acerca do conteúdo da correspondência que Georg escreveu ao
amigo russo, o narrador afirma: “Por essas razões, mesmo que
se quisesse manter a ligação por correspondência, não se podia
na verdade transmitir a ele nenhuma comunicação real” (comunicação, se há, é apenas do insignificante, do sem importância)
(KAFKA: 1998, p. 11). O veredicto é um “poema” sobre a impossibilidade do comum e da transmissão ou da comunicação real,
e por sua causa. Em tal “poema”, apesar da busca constante de
Georg pela comunicação, o incomunicável comparece tanto no
centro como em cada movimento que ocorre no texto.
A busca pela comunicação faz o texto ter como ponto de
partida a escrita de uma carta cujos remetente, destinatário e
mensagem são logo conhecidos pelo leitor. Apesar da vastidão
de sua epistolografia, ou por causa mesmo dela, a introdução da
carta tem um efeito devastador, sendo ela, para o escritor, o lugar
mesmo do incomunicável. Em uma de suas cartas à Milena, certamente uma das mais densas jamais escritas, de fins de março
de 1922, Kafka diz odiar as cartas, ressalta que toda a tristeza de
sua vida provém das cartas ou da possibilidade de escrevê-las,
que elas certamente provocaram uma desintegração espiritual
no mundo, que as cartas lidam apenas com os fantasmas dos
que nelas estão envolvidos, aos quais – fantasmas (não ao outro
real) – nos desnudamos, alimentando-os com nosso sangue, com
nossa vida; surpreendentemente, ele exclama: “De onde terá surgido a ideia de que as pessoas podiam comunicar-se mediante
cartas?”(KAFKA: 2000, p. 198). Pela grandiosidade da carta, deixo
aqui seu começo: “Há muito tempo que não lhe escrevo, senhora
Milena, e também hoje lhe escrevo por uma casualidade. Na
realidade não tenho que me desculpar pelo silêncio, você já sabe
como odeio as cartas. Toda a desgraça de minha vida – não quero
com isto me queixar, porém fazer uma observação de interesse
geral – provém por assim dizer das cartas ou da possibilidade de
escrevê-las. As pessoas quase nunca me atraiçoaram, porém as
cartas sempre; e na verdade não as alheias, porém exatamente
minhas cartas. Em meu caso é um infortúnio muito especial, do
qual não quero continuar falando, porém ao mesmo tempo é
também uma desgraça geral. A simples possibilidade de escrever
cartas deve ter provocado – sob um ponto de vista meramente
teórico – uma terrível desintegração de almas no mundo. É
com efeito uma conversação com fantasmas (e para piorar não
somente com o fantasma do destinatário, porém também com
o do remetente) que se desenvolve nas entrelinhas da carta que
se escreve, ou ainda em uma série de cartas, onde cada uma
corrobora a outra e pode referir-se a ela como testemunha. De
onde terá surgido a ideia de que as pessoas podiam comunicarse mediante cartas? Pode-se pensar em uma pessoa distante,
pode-se agarrar a uma pessoa próxima, tudo o mais fica além das
forças humanas. Escrever cartas, contudo, significa desnudar-se
diante dos fantasmas, que esperam isso avidamente. Os beijos
por escrito não chegam a seu destino, são bebidos pelo caminho
pelos fantasmas. Com este abundante alimento se multiplicam,
com efeito, enormemente. A humanidade percebe-o e luta por
evitar isso; e para eliminar no mais possível o fantasmagórico
entre as pessoas e conseguir uma comunicação natural, que é a
paz das almas, inventou a estrada de ferro, o automóvel, o aeroplano, mas já não servem, são evidentemente descobertas feitas
no momento do desastre, o bando oposto é tanto mais calmo e
poderoso, depois do correio inventou o telégrafo, o telefone, a
telegrafia sem fios. Os fantasmas não morrerão de fome, e nós
em troca pereceremos[...]”(KAFKA: 2000, p. 197-198).
Depois de salientar os meios criados “no momento do desastre” como tentativas tardias, que se mostraram inúteis, de se
combater esse fantasmático em nome de uma “comunicação
natural” (a ferrovia, o carro motorizado e o aeroplano), poderse-ia dizer, presencial, caracteriza o nosso tempo de incrementos comunicacionais de modo factualmente assustador: “Os
fantasmas não morrerão de fome, e nós em troca pereceremos”.
Mesmo sabendo que estamos diante de um tempo que é “muito
tarde” para qualquer reversão, escreve-se para mostrar a “eles”, “o
bando oposto”, que se os conhece, para desmascará-los, para dar
testemunho desse tempo, ainda que não se o possa transformar
(KAFKA: 2000, p. 198). Diante disso, para além do que concerne
a família de pais, irmãs e cunhados em Praga, ganha uma nova
significação as palavras com que Dora Dymant diz que Kafka,
quando lia seus textos para ela, apesar de jamais interpretá-los,
não cansava de repetir, como uma obsessão dele: “Como eu gostaria de saber se eu escapei dos fantasmas!” (DIAMANT: 2011, p.
14). No filme Quem é Kafka?, essa mesma passagem é traduzida
como: “Eu realmente gostaria de saber se iludi os fantasmas”
(DINDO: 2006, 1h15’24”).
Em O veredicto, tudo que seria inicialmente requerido
para uma teoria da comunicação ou para que a comunicação
se consumasse com tranquilidade a partir de um em comum
está, como dito, estabelecido, mas, também como previamente
colocado, trata-se de um texto sobre a impossibilidade do em
comum, sobre a impossibilidade de transmissão ou de comunicação real. Principiando o “poema” com a escrita de uma carta,
é certo que a infelicidade, o engano, a desintegração espiritual,
o predomínio do fantasmático, o alimento do espectral, a retirada do real, a impossibilidade da comunicação, o desastre e o
perecimento componham cada linha de O veredicto. O “poema”
inicia com a manhã de um domingo primaveril, quando Georg
acaba de escrever uma carta a um amigo que, por estar morando
na Rússia, já não vê há três anos e a quem intenciona, não sem
ter tido antes algumas dúvidas que, até certo ponto, persistem,
dar notícias de seu noivado. Em um momento de pausa pacífica,
ele olha brevemente para o rio – gesto que, ao fim, e quando o
leitor recomeçar a leitura, passará a ter enormes intensidades,
nesse eterno retorno do rio pelo mesmo e pela diferença em
O veredicto. A princípio, a suposta normalidade e o aparente
sucesso de Georg contrasta com a vida solitária e decadente de
seu amigo “no estrangeiro”, que havia “saído fora dos trilhos”,
que “se desgastava inutilmente”, que permanecia sem contato
com seus conterrâneos nem com famílias russas, que não tinha
qualquer possibilidade de estabelecer uma vida amorosa, cujo
trabalho, depois de um bom começo, há tempos havia “estacionado”... Diante dessa estranheza estrangeira do amigo distante, a
primeira constatação da impossibilidade de comunicação, como
já citado, comparece explicitamente: “Por essas razões, mesmo
que se quisesse manter a ligação por correspondência, não se
podia na verdade transmitir a ele nenhuma comunicação real”
(KAFKA: 1998, p. 11).
Por saber dessa impossibilidade de um em comum, de transmissão ou de comunicação real, Georg só vinha lhe escrevendo
coisas insignificantes, ocultando o que lhe acontecia de mais
importante, como seu noivado recente com Frieda, que anunciaria sua felicidade, e o sucesso profissional de seu momento
(o que lhe é desimportante se torna importante para o amigo e o
que lhe é importante – como a morte de sua mãe – não recebe
do amigo a dimensão esperada). É a noiva, entretanto, quem,
em dias recentes, sentindo-se ofendida por ele não revelar o
noivado ao amigo e o cindindo entre a amizade de difícil comunicação e o amor, dizendo-lhe “– Se você tem amigos assim,
Georg, não devia ter ficado noivo” (KAFKA: 1998, p. 13), leva-o
a anunciar o noivado na missiva que na manhã de domingo
escreve. Se a relação com o amigo carece de comunicabilidade,
na amorosa, mesmo depois de um impasse inicial, ela parece
ser possível, ao menos temporariamente, enquanto o pai de
Georg não entra em cena.
Quando, logo, desviando o destinatário da carta (como a
Carta ao pai e a “mensagem imperial” que não chegam a quem
deveriam alcançar2),o filho resolve contar ao pai que decidira
anunciar seu noivado ao amigo, o pai, um gigante pesado, banguela e aterrorizante, entra imediatamente em cena, interditando
qualquer comunicação possível de seu filho com ele próprio,
com o amigo, com o amor, com a mãe morta, com o trabalho,
com o mundo. Entre Georg e a vida, há seu pai, entre Georg e
Georg, há seu pai, em Georg, o fantasma de seu pai que se espalha, enquanto espectro, interditando todas as outras relações.
Exatamente no meio do “poema”, quando o filho, no lugar de
mandar a carta ao amigo que morava no exílio, vai antes contar
sua decisão ao pai, há um amplo hiato, um hiato maior, engendrado pelo pai, que condensa todos os outros os ampliando ao
extremo da impossibilidade total de qualquer comunicação real.
Nesse momento, o veredicto final começa a ser antecipando,
fazendo-se implicitamente presente.
Ao ouvir a história de Georg, o pai, que há três anos conhecera o amigo do filho em sua própria casa, retorna com um
contrassenso absoluto: “Você realmente tem esse amigo em São
Petersburgo?” Logo depois, chamando o filho de “trapaceiro”, no
movimento de aniquilação do filho, a interrogação se transforma definitivamente em afirmação, ao modo arbitrário sempre
2 Ou em “A partida” e “A próxima aldeia”, em que são pessoas que não chegam
aonde seria o esperado.
trazido pela figura paterna (e por outras figuras do princípio
de autoridade), preparando o ditado de uma lei autoritária
cuja tirania se baseia exclusivamente na pessoa que a profere,
com um efeito de drástica punição desmesurada àquele que se
coloca sob seu governo: “Você não tem nenhum amigo em São
Petersburgo. [...] Não posso de maneira alguma acreditar nisso”
(KAFKA: 1998, p. 17-18).
Se, como quer Kafka na entrada de 11 de fevereiro de 1913 de
seu diário, “o amigo faz a ligação entre o pai e o filho, é o que eles
mais têm em comum”, se o amigo é o “fundo comum” (KAFKA:
1984, p. 296), nesse momento, toda e qualquer possibilidade de
existência do fundamento comum entre eles é destruída, levando
junto “outros elementos comuns de menor importância” (KAFKA:
1984, p. 296). Antagonista do filho que o introjeta sem rivalizar
com ele e tomando-o como insubstituível, sem encontrar uma
brecha na imposição de seu caráter espectral, toda colocação
do pai colide com o desejo do filho, aniquilando-o, como o que,
depois do que havia afirmado do amigo do filho, diz sobre Frieda, a noiva de Georg: “Só porque ela levantou a saia, só porque
a nojenta idiota levantou a saia, só porque ela levantou a saia
assim, assim e assim, você foi se achegando, e para que pudesse
se satisfazer nela sem ser perturbado, você profanou a memória
de sua mãe, traiu o amigo e enfiou seu pai na cama para que ele
não se movesse”(KAFKA:1998, p. 21). Sobre a noiva ele ainda
ameaça: “Vou varrê-la do seu lado, você não imagina como”
(KAFKA: 1998, p. 23).
Com a imposição absoluta do pai suprimindo todo o comum, levando Georg a ser praticamente nada, levando-o ao “sentimento de nulidade” (KAFKA: 2004, p. 25) do qual Kafka fala em
A carta ao pai, levando-o a ser cada vez mais nada, resta ao filho
o medo que o leva a “encolhe[r]-se a um canto o mais distante
do pai” (KAFKA: 1998, p. 21). Insatisfeito, desse mesmo pai que
exige do filho “toda a verdade” (“Mas não é nada, é pior do que
nada, se você agora não me disser toda a verdade”(KAFKA: 1998,
p. 16), que exige do filho a verdade absoluta e sem restos (como
se ela fosse possível!), e como um grau ainda mais avançado de
tal demanda, falta o proferimento do veredicto final do pai-tirano contra seu filho: “Eu o condeno à morte por afogamento!”.
Ao filho, no ato determinado pela palavra, na palavra-ato, nesse
suicídio que não deixa de ser um assassinato (realizado pelo
pai, ao fim, plenamente introjetado no filho), resta-lhe apenas
seguir a condenação do pai, atirando-se imediatamente para a
morte no rio, murmurando: “Queridos pais, eu sempre os amei”.
Além de dizer intimamente respeito ao escritor, o que Bataille coloca ao fim de seu “Kafka” serve perfeitamente a Georg, se
entendermos a “atividade eficaz” como aquela de quem ocupa
o princípio de autoridade: “Não há nada que ele [Kafka] pudesse
afirmar, em nome de que ele pudesse falar: o que ele é, que não
é nada, só o é na medida em que a atividade eficaz o condena,
ele é apenas a recusa da atividade eficaz. É por isso que ele se
inclina profundamente diante de uma autoridade que o nega,
ainda que sua maneira de se inclinar seja mais violenta que uma
afirmação gritada; ele se inclina amando-a, sofrendo-a e opondo
a ela o silêncio do amor e da morte ao que não o poderia fazer
ceder, porque o nada, que apesar do amor e da morte não poderia
ceder, é soberanamente o que ele é” (BATAILLE: 1989, p. 147).
Enquanto, ao menos desde a história contada na carta postada a Oskar Pollak em 20 de dezembro de 1902, quando tinha
então 19 anos, sabe-se de como a impossibilidade de comunicação real concerne à escrita de Kafka, ao fim do “poema” do
incomunicável, ao fim do poema do incomum, o único comum
e sua única comunicação passível em nosso tempo é a da palavra
em ato (da palavra de “toda a verdade” e da verdade absoluta, sem
restos) que aniquila a vida em nome da morte, para a qual não
há palavras possíveis; em nosso tempo, o transmissível ao leitor
parece ser apenas a aniquilação e a destruição absolutas. Revertendo as expectativas iniciais, ao fim, a estranheza, o fracasso e o
descaminho do amigo russo nos são revelados, simetricamente,
de modo ainda mais intensivo em Georg, em sua impossibilidade
mesma de viver, integralmente submetido que está ao pai todo
poderoso com sua sentença que atrela miticamente a linguagem ao suposto real. Pela morte, deixa-se ver com toda clareza
o extremo a que leva a conciliação com o pai enquanto um dos
modos de o princípio de poder, de o princípio de tirania, se fazer
dominadoramente presente na impossibilidade de preservação
de um fundamento comum com o outro até a nadificação ou
nulidade deste último. Se na morte a subserviência não prossegue
é apenas porque nada prossegue na morte, senão a possibilidade
de testemunho e de denúncia do excesso que a gerou por quem
acompanha a aniquilação banalizada.
Enquanto a linguagem crítica é a que mantém o seu objeto
(ou o real) inacessível ou inapreensível ou incapturável, o veredicto paterno do poema, com a cumplicidade – igualmente mítica
– do filho (do outro), que o torna integralmente subserviente
àquele, se equivale a um modo militar, característico de todos
que ocupam a posição de uma autoridade não crítica, de uso
das palavras, de todos para quem ao dito, em seu absolutismo,
nada falta, de todos para quem o dito quer se perfazer plenamente no fato que, à revelia de seu objeto inapreensível, quer
engendrar. Enquanto o pai de Georg, exigindo-lhe, como se isso
fosse possível, “toda a verdade”, lhe diz que “mas não é nada, é
pior do que nada, se você agora não me disser toda a verdade”,
em Preparativos da boda no campo, pode-se ler, mostrando a
afinidade entre o pai e os soldados ou o exército no princípio de
poder absoluto ou de tirania que os une: “Dois soldados vieram
e se apoderaram de mim. Eu me defendi, mas eles me seguravam
firmemente. Eles me conduziram até o seu senhor, um oficial.
Como seu uniforme era multicolorido! Eu disse: ‘Que quer então
o senhor de mim? Eu sou um civil’. O oficial sorriu e disse: ‘Você
é um civil, mas isso não nos impedirá de prendê-lo. O exército
tem tudo em seu poder” (KAFKA apud LÖWY: 2005, p. 88).
Iludir os fantasmas ou escapar deles, trapaceá-los, parece
se dar pela denúncia mesmo deles em um tempo em que o em
comum, a comunidade, não se coloca mais como uma saída que
favoreça nossa vida. Essa crítica dos poderes absolutos com suas
tiranias cruéis, injustas e opressivas é uma constante dos escritos e da vida de Kafka, e parece ser pela existência deles que ele
sente a frequência de não ter ainda nascido, que o leva a dizer
que “minha vida é hesitação diante do nascimento” (KAFKA:
1984, p. 527). Depois do morrer ou antes de ter nascido são duas
das dimensões que Kafka traz para a vida na tarefa de pensar
criticamente os diversos modos de poder instituídos. Nesse
sentido, é com o “poema”como se incomum e incomunicável,
longe de uma linguagem que quer representar a realidade, longe
igualmente de uma linguagem que quer, miticamente, engendrar, antecipando-o, algum acontecimento específico, é com
o “poema” entendido enquanto o lugar da impotência maior,
que Kafka revela, criticando-a, a tirania dos poderes instituídos.
Talvez não seja, então, despropositada, nem tampouco uma
simples boutade, a frase que, segundo Helene Cixous, Derrida
lhe teria dito em conversa com ela: “Veja você, Kafka, eu o sinto sempre – e é essa a diferença entre Kafka e Proust – sempre
mais potente que a filosofia. Em uma narrativa de duas páginas
ele desenvolve mais potência filosófica que o mais filósofo dos
filósofos” (CIXOUS: 2006, p. 72).
A iNCOLUmiDADE DO CANTO
(das s-obras)
“Talvez ele saiba tão pouco de mim
quanto eu dele”
(Kafka)
“Só interpretá-la é que não era fácil”
(Kafka)
Deleuze e Guattari começam o livro a quatro mãos se perguntando como entrar na obra de Kafka, que sempre coloca ao
leitor múltiplas entradas, portas inumeráveis e passagens sem
porta. Para eles, entra-se não importa por qual buraco, nenhum
sendo melhor do que o outro para tal acesso. Ao longo deste livro,
é visto que talvez não se trate de uma obra, a de Kafka, que seus
escritos querem ser anteriores à ideia de obra ou de literatura,que o que escreve são restos ou resíduos de uma força maior, a
de escrever, mas o não saber inicial de como entrar associado à
quantidade de entradas mostra que qualquer modo de ingresso
em tais escritos, qualquer buraco privilegiado, depende de uma
estratégia de leitura, ainda que a ser descoberta.
Seja o que for que nos impulsiona, a direção é a entrada; ela é
o objetivo, ainda que o caminho a ser percorrido para descobri-la
e adentrá-la seja pura hesitação. Ela, a entrada, será, entretanto,
possível? Ou bloqueada? Mostrar-se-á ela visível e aberta? Ou será
um beco sem saída? Logo no início, os pensadores mencionados
advertem: o inimigo, o significante com as interpretações a lhe
atribuírem significados, ficam de fora, com a entrada certamente
vedada a eles. No caso, diante da suposta obra, estupefatos, os
sentidos falham. A assunção dessa impossibilidade interpretativa
está, reiteradamente, e com motivos de sobra, em muitos dos
críticos de Kafka: “A crítica é derrotada por Kafka sempre que cai
na armadilha que ele invariavelmente monta para a interpretação direta, a armadilha de sua fuga idiossincrática da interpretabilidade”, afirma Harold Bloom (BLOOM: 1995, p. 430). Se os
sentidos subsistem, é tão somente para, no traço exato da barra
entre eles, lançarem-se, e lançarem-nos, a uma linha de fuga, a
um caminho indireto. Para os dois filósofos, trata-se de fazer
uma experimentação. Experimentação da vida pelos escritos, os
escritos enquanto experimentação de vida a demandarem uma
experimentação dos leitores que sabem que o dentro da suposta
obra está vedado e que os sentidos lhe estão de fora.
Por fora de Deleuze e Guattari, como dizer essa experimentação com os escritos kafkianos? Como pensar a relação entre
texto e leitor? Mesmo que a intua pequena, camuflada e, quiçá,
falsa, farejo uma entrada por perto, mas não sei exatamente onde
ela está. Logo no primeiro ensaio deste livro, escutamos Kafka
afirmar que seu trabalho poético trata de uma “entrada real na
vida”(KAFKA: 1984, p. 91). Em sua poeticidade, qualquer entrada
é uma entrada em vida, um acesso a ela, a ela que, pelos escritos,
nos acessa. Entrada é entrada na vida, entrada no que escapa
de tudo o que, estabelecido e repisado, se solidificou, mumificando vida, entrada no que escapa a todo e qualquer princípio
despótico ou de tirania. Em Kafka, contínua e igualmente, lemos,
entretanto, a busca por uma saída. Em “Um relatório para uma
academia”, em seu devir homem, o macaco, entre macaco e homem, macaco-homem, usando uma palavra que, com seus múltiplos usos ao longo da tradição ocidental, sempre foi uma das
mais importantes para se pensar a poesia, a literatura e as artes,
afirma: “Eu imitava porque procurava uma saída, por nenhum
outro motivo”; em A construção, o animal escavador diz: “preciso
ter a possibilidade de uma saída imediata”(KAFKA: 1991, p. 64),
“seja como for, preciso ter a garantia de que em alguma parte
talvez exista uma saída fácil de alcançar, completamente aberta,
onde, para me evadir, já não tenha mais de trabalhar”(KAFKA:
1991, p. 65). Ter à disposição uma saída do que o prende (do
trabalho burocrático, da família, do casamento...), tendo uma
entrada (a escrita), ainda que mínima, disponível para uma vida
possível, para uma vida suportável, para uma vida, quem sabe,
com momentos um pouco mais do que suportáveis.
Se, no mesmo movimento em que nós, leitores, tentamos
farejar uma entrada, quem está dentro teima em intuir uma saída,
há encontro possível? Quem se lança à tentativa do movimento
de entrada e quem se lança à tentativa do movimento de saída
encontram ou constroem uma passagem, a mesma, que tornaria o encontro possível? Em termos espaciais, encontrar uma
saída é sair obrigatoriamente de dentro para fora e encontrar
uma entrada é entrar obrigatoriamente de fora para dentro, ou
quem está dentro pode encontrar uma saída por dentro mesmo
e quem está fora pode encontrar uma saída por fora? Na exata
medida em que um, leitor, tenta, sem êxito, entrar, o outro, animal
selvagem, foge exatamente da tentativa (mal-sucedida) de seu
caçador? Não há vida por dentro e por fora, nas entradas e nas
saídas? Entraria o leitor na toca do texto, na toca-texto? Sairia o
texto de sua toca em direção ao fora em que o leitor está? Será a
dificuldade maior a de entrar nos escritos de Kafka ou a de, uma
vez estando com eles, deles, conseguir se afastar?
Digamos de uma vez: salvo raros momentos de exceção, o
inimigo que está fora permanecerá, praticamente inacessível e
incomunicavelmente (senão por seus ruídos), fora e o animal
escavador de dentro permanecerá, praticamente inacessível e
incomunicavelmente, dentro, sem abandonar sua construção.
As inversões dos lugares serão rapidamente impelidas à zona habitual em que ambos se sentem mais à vontade. Alguns ecos dos
movimentos de cada um repercutem, certamente, para o outro,
que lida com obsessão exatamente com a experimentação feita
a partir dos efeitos do que os afeta. Ao acaso, animais menores,
ratos pequenos, abrem microtrilhas pelas quais o ar, a luz e presas
mínimas passam. Para quem está de fora, não há entrada visível
pela qual possa acessar o dentro da toca. Os escritos estabelecem
seu inacessível: “Por fora é visível apenas um buraco, mas na realidade eles não levam a parte alguma, depois de poucos passos
já se bate em firme rocha natural” (KAFKA: 1991, p. 63). Nesse
movimento de tentativa de entrada impossível, dando cabeçadas
na pedra do texto em sua superfície exterior, sem conseguir vê-la
por dentro, sem conseguir adentrá-la, o leitor trata de criar, por
fora, um desenho, um mapa. Lembre-se que, depois de dizer o
que citamos antes, o animal escavador afirma: “Também aquela
saída não me salva, como provavelmente ela não me salva em
caso algum, antes me arruína, entretanto é uma esperança e eu
não posso viver sem ela”(KAFKA: 1991, p. 63).
Na inacessibilidade ao dentro dessa escrita, cabe a quem
fala dela lidar com o que encontra na superfície do fora, traçar
seu mapa esboçado enquanto procura o acesso inencontrável.
Para complicar tudo, a mais ou menos um quilômetro da falsa
entrada mencionada, há uma verdadeira, camuflada, que, ainda
que com grandes dificuldades, pode ser aberta; além dela, há
pequenas tocas, corredores e fossas experimentais, cavados e
ocupados em momentos de necessidade. A entrada verdadeira
leva igualmente o animal escavador a se sentir ameaçado por
algum inimigo farejador, já que por onde se sai se entra. Apesar
de sua tentativa de segurança, o animal-texto é frágil, inquieto,
vulnerável e mortal. Além de pela verdadeira entrada, o inimigo
pode atacar a toca por algum flanco inesperado pelo selvagem,
cavando na terra e na rocha um buraco insuspeito; ainda exis-
tem lendas críveis que afirmam haver bichos indescritíveis que
habitam a própria terra, sendo seu elemento o mesmo do animal
que constrói incessantemente sua toca. Além do inimigo e desses
bichos indescritíveis, há ainda a possibilidade de algum serzinho repulsivo que o siga adentrando a toca querendo tornar-se
chefe de seu mundo ou um vagabundo qualquer de sua própria
espécie que queira morar em uma toca sem ter de construí-la.
Nesse caso, de quem seria a toca e quem seria propriamente
seu habitante? Estariam tais animais na toca de quem realiza o
monólogo ou seria este quem estaria em uma construção maior
daqueles? Contra toda certeza e garantindo a incerteza, há um
movimento contínuo de expropriação, da impossibilidade da
propriedade se fazer com segurança, da impossibilidade de a
segurança se fazer.
A toca que o animal constrói com todo seu esforço e cansaço,
dando-lhe, inclusive, seu sangue (sangue que poderá se misturar
com a terra em sua morte com o possível ataque inimigo), abrese para ele em experiências que se dão entre a tranquilidade do
sono e o sobressalto, entre o descanso profundo e a insônia,
entre a paz e o perigo, entre a sobriedade e a afobação, entre a
almejada propriedade e sua impossibilidade na expropriação. Ela
também tem diversos tempos, ou melhor, seu tempo é infinito,
mas, dentro desse tempo infinito, que o próprio animal não
pode degustar senão por momentos passageiros, para o animal
escavador, comparecem diversos cortes, com novas medições,
nesse infinito do tempo: existe o tempo de sua vida, o de uma
semana, o do dia e da noite, o das horas que passam, o em que
a sombra do inimigo cessa, os prazos mais curtos e mais longos,
tempos apressados e vagarosos, tempos intervalares, tempos de
breves cochilos, o tempo instantâneo, o tempo fora da toca...
Esses tempos correspondem igualmente aos múltiplos tempos
da escrita de Kafka, e ainda seria preciso demarcar com mais
precisão essa rítmica do texto; ao acordar sobressaltado com
mais um ruído, pondo-se ao trabalho, o tempo é entrecortado,
repleto de breves alternâncias, mudanças imediatas de estados,
inquietudes, cesuras a cada segundo, a sintaxe é quebrada em
palavras estanques, até que com o despertar pleno ele ralenta,
delongando-se outra vez no sono: “aí eu me apresso, voo, não
tenho tempo para cálculos; porque quero executar um plano
novo e exato, agarro arbitrariamente o que me vem aos dentes,
arrasto, puxo, suspiro, gemo, tropeço, e qualquer mudança do
estado presente, que eu julgo superperigoso, me satisfaz. Até que
aos poucos, com o despertar pleno, vem a sobriedade e eu mal
compreendo a afobação, respiro fundo a paz da minha casa, que
eu mesmo perturbei, volto ao meu lugar de dormir, adormeço
rápido com o cansaço renovado e, ao abrir os olhos, encontro
ao acaso, como prova irrefutável do labor noturno, que então
parece quase irreal, um rato pendendo das minhas mandíbulas”
(KAFKA: 1991, p. 69).
É certo que, para exercitar-se ao ar livre e conseguir alimentos melhores, o animal escavador sai de sua toca pela
saída camuflada anteriormente mencionada, mas apenas para
retornar à ocupação de seu refúgio, já que “a pena de me privar
dela por muito tempo parece-me então dura demais” (KAFKA:
1991, p. 71). Em seu retorno, quando ele, de fora, contemplando
a toca, observa a entrada, sente-se então como seu próprio inimigo, como aquele que, de fora, diante da toca, observa a obra
continuamente em construção. Nesses momentos de reversibilidade e de empatia com a alteridade, dentro e fora, construtor
e inimigo, texto e leitor, animal escavador e animal escavador
(o de fora é igualmente um animal escavador) se confundem.
Nesse regresso à toca, observando-a, a admiração por ela é tanta, e tanta a segurança momentaneamente sentida, que “quase
erigia um canto a incolumidade da construção” (KAFKA: 1991,
p. 67). Aqui, esse mise-en-abîme, esse jogo de espelhamento,
em que o animal quase erige o que Kafka está então realizando
em seu texto: um canto solitário que recomeça sempre de novo
requisitando uma reconstrução infinda, um canto ao que, na
construção, na toca, na escrita-buraco em movimento, com “a
falha, como de resto sempre há uma falha onde se possui um
único exemplar de alguma coisa”(KAFKA: 1991, p. 69), permanece inapropriável, inacessível e inexpugnável; um canto de um
canto labiríntico indevassável, um canto enquanto celebração
do labirinto (KAFKA: 1991, p. 78) refratário, a ser comemorado
a cada retorno a ele. Inapropriável, inacessível, inexpugnável e
indevassável, diga-se, não apenas para o inimigo externo, mas
também para o animal escavador que, na toca construída por si e
potencialmente ainda em construção, vivendo, habita e que, em
épocas de tranquilidade maior, quando mais resolve se aproximar
de seu centro, experimenta a intensidade que nem ele aguenta:
“Costumam então vir épocas especialmente pacíficas, em que
transfiro devagar, gradualmente, os meus lugares de dormir dos
círculos mais distantes para o meio e mergulho cada vez mais
fundo nos odores, a ponto de não aguentar mais”(KAFKA: 1991,
p. 70).
Nem quem constrói a toca a suporta em sua força maior,
sendo dela, com a garantia de sua inexpugnabilidade e independência, desapropriado. Inapropriável, a toca tem sua vida
própria: “é ao mesmo tempo exasperante e comovente quando
me perco por um momento na minha própria criação e a obra
parece se esforçar para provar a mim, cujo julgamento já está
consolidado de longa data, seu direito à existência” (KAFKA: 1991,
p. 73). Além de nem a praça principal ficar, pela impossibilidade
anunciada, no centro, independente de quem fica por fora e de
quem fica por dentro, mesmo que um saiba muito pouco, ou
quase nada, do outro, independente dos que se perdem nela e
por ela, a “obra” tem “seu direito à existência”, que, em sua parte extrema, leva o habitante à insuportável intensidade de seu
meio, de seu núcleo impossível de ser habitado, de seu centro
impossível de autorizar uma permanência nele.
Se, em sua intensidade maior, o canto é incólume, há uma
experiência que pode ser feita e para a qual os melhores momentos deste “velho mestre de obras” estão reservados: a do silêncio.
O trabalho sempre mais urgente para se fazer é o de, contra os
“provocadores de barulho” (KAFKA: 1991, p. 92), construir esse
silêncio, pois, apesar de ele, não se preservando por muito tempo, ser efêmero, “a coisa mais bela de minha construção é o seu
silêncio. Certamente ele é enganoso. Pode ser interrompido de
repente e então tudo se acabou. Por enquanto, porém, ele ainda
continua” (KAFKA: 1991, p. 65-66); “de tempos em tempos, regularmente me assusto e fico escutando, escutando no silêncio
que aqui reina inalterado dia e noite”; “é preciso haver silêncio
nos meus corredores” (KAFKA: 1991, p. 86), “lá a paz estaria assegurada e eu seria sua sentinela, não teria de ficar escutando
com repulsa as escavações das criaturinhas, mas sim ouvindo
deliciado aquilo que agora me foge completamente: o sussurro
do silêncio na praça do castelo” (KAFKA: 1991, p. 90); “Às vezes
me parece que o ruído cessou, de fato ele faz longas pausas,
não se repara mais no zumbido, o próprio sangue pulsa demais
no ouvido, depois se juntam duas pausas em uma só e por um
momento se crê que o zumbido terminou de vez. Continua-se
sem escutar, dá-se um pulo, a vida toda sofre uma reviravolta, é
como se a fonte da qual flui o silêncio da construção se abrisse”
(KAFKA: 1991, p. 95]; “chego àqueles [corredores] mais longínquos (...) cujo silêncio desperta à minha chegada e mergulha
sobre mim” (KAFKA: 1991, p. 97); “não há nada mais quieto do
que o reencontro com a construção” (KAFKA: 1991, p. 105).
Construir uma toca e erigir um canto para, ao menos, deles,
ser a sentinela de sua paz, a sentinela do sussurro do silêncio,
para que esse silêncio apazigue seu conflito, para que ele lhe dê
tranquilidade e sossego em meio a toda angústia provocada pela
presença (mais próxima ou mais distante) do inimigo, para que
possa dizer: “Silêncio profundo; como é belo aqui, ninguém se
preocupa com a minha construção, todos têm seus interesses,
nenhum deles está relacionado comigo, como é que cheguei a
isso?” (KAFKA: 1991, p. 97). Edificando, no canto da toca, esse
vazio, esse oco, essa cavidade, essa cova, esse vão, chegar então
a isso, ao silêncio, como quem, afastando os ruídos inimigos
que sinalizam a possibilidade da morte, chega à sua salvação,
ao possível de uma vida, a um modo de vida passível de ser
defendido: “quero que a construção não seja outra coisa senão
o buraco destinado a salvar minha vida, e que ela realize essa
tarefa claramente definida com a máxima perfeição – e nessa
hora estou disposto a dispensá-la de qualquer outra missão”
(KAFKA: 1991, p. 81).
Que se saiba, portanto, que tal salvação silenciosa (único
esforço para o qual se constrói uma obra), é, de fato, efêmera,
incerta, frágil, suscetível, a um só tempo, salvação e ruína, pois,
“silencioso ou agitado, o perigo espreita” (KAFKA: 1991, p. 97) e
“o zumbido continua o mesmo” (KAFKA: 1991, p. 103). É notório
que a construção tem muitos defeitos, fraquezas e falhas sem
erradicação possível (KAFKA: 1991, p. 72). Nesse esburacado
subterrâneo que é a cova, escavação construída abrigando vazios
e um tempo infinito, com seu mundo muito menos atrelado ao
campo visual que ao sonoro, ao tátil, ao olfativo e ao do paladar, é certo apenas que não se dispõe “de nenhuma solução”
(KAFKA:1991, p. 103), que “Tudo continuou inalterado” (KAFKA:
1991, p. 106). Importante frisar que “Tudo continuou inalterado”
não é a palavra final do texto – não há palavra final em Kafka
(quando ela existe, como no caso de O veredicto e outras narrativas, é exatamente para ser veementemente criticada). Em Kafka,
apenas palavras em abertura.
Em termos biográfico e informativo, sabe-se que A construção é um canto sem fim. Na nota sobre os textos e traduções de
Um artista da fome; A construção, na página 108, Modesto Carone
indica: “Mas, segundo a versão autorizada de pelo menos um especialista, o escritor estava enfrentando sérias dificuldades para
elaborar o desfecho de A construção; por isso – e como precisasse
fechar o livro para publicação – deixou-a de fora e a substituiu
pela bem-humorada (na aparência) história da cantora-camundonga. Aconstrução permaneceu, assim, inacabada, e chegou
até nós como fragmento [...]”. A versão dada por Kathi Diamant
em seu livro sobre Dora é distinta, ainda que permaneça, por
motivos diversos, a incompletude da obra: “Tal como Kafka e
Dora recordam-na, a história de Kafka acabava com a temível
besta matando a aterrorizada criatura, mas o final extraviou-se
e jamais foi publicado. Tal como está, a história termina com a
terrível besta momentaneamente tranquilizada, com a linha final
dizendo: ‘Mas tudo permaneceu inalterado’” (DIAMANT: 2013,
p. 61). A confiar nessa passagem, que não está no conhecido
depoimento da Dora, mas talvez em seus diários, teria sido por
um extravio que, incompleta, A construção não teve um desfecho
similar ao de O veredicto e ao de A metamorfose. Com menos
detalhes, Marthe Robert, que conheceu pessoalmente Dora,
também afirma sobre A construção: “Falta o fim do manuscrito,
mas a narrativa estava provavelmente acabada” (ROBERT: 1963,
p. 184). Em todos esses casos é o fim que falta, é a falta do fim
(ou o fim enquanto falta) que é lançada para o texto que a ela,
enquanto ausência, se lança.
“Tudo continuou inalterado” é a frase da interrupção, em que
subitamente o texto, inacabado, pausa, mostrando nele a mesma
incompletude que a da construção da toca. Tanto o trabalho da
toca quanto o do texto ou, melhor dizendo, o monólogo do testemunho da solidão da construção da toca-texto é certamente
infindável, inacabável, inconcluso, por vir, sem chegada, infinito.
Nele, haveria ainda muito a ser feito, haveria ainda, talvez, tudo
a ser feito, tudo ainda a acontecer, mas o trabalho encontra sua
pausa pelo meio, pelo meio é ele, muitas vezes, retomado, pelo
meio é ele pausado, indicando qualquer ausência de desfecho
no trabalho que, certamente, vem. Que aquela frase dita pelo
animal escavador (“Tudo continuou inalterado”) não é a final,
mas, antes, que ela poderia ser lida como um refrão do canto
que anuncia que inalterada mesma é apenas a necessidade do
construir ser incansável, obsessiva e pacientemente retomada, é
indicado por passagem anterior, pelo meio, bem antes de o texto
ser interrompido. Lá pelas tantas, o animal afirma: “Continua
tudo inalterado, não parece ter acontecido nenhuma desgraça
maior, os pequenos estragos que noto à primeira vista serão logo
reparados” (KAFKA: 1991, p. 84). Quando a frase “Tudo continuou
inalterado” retorna não é, portanto, para findar o texto, mas para
uma pausa indicadora de um lançar-se em mais um trabalho
por vir de reparo da toca. Em sua pausa, em seu inacabamento
pontuado, o texto se lança para um futuro que não vem, o texto
se lança para o trabalho que vem, permanecendo, ele, texto,
em suspensão. Que “Tudo continuou inalterado” é certo, mas é
preciso que haja esperança, ainda que não para nós.
Que uma dessas esperanças seja a de que o inimigo, o leitor,
o salteador, o animal escavador do lado de fora da toca, o intruso que quer ir de encontro a uma das trilhas construídas por
precaução e mínima alegria, também esteja apaixonadamente
em busca de sua salvação, em busca de uma defesa, mesmo que
precária, para o perigo da vida, que, tal qual o animal escavador
de dentro da toca, imerso no risco de um trabalhar gratuito e
vital, ele seja um “inimigo que luta desesperadamente pela vida”(KAFKA: 1991, p. 71), que ele também seja o mestre de obras de
uma construção que lhe oferte ao menos um segundo de silêncio,
ou de um labirinto, de mais de cinquenta recintos, que às vezes
oferte menos de uma hora que seja de tranquilidade, ainda que
enganosa, que abra sua fonte de algumas dezenas ou centenas
de metros trabalhando em nome de um eventual sussurro do
silêncio, que, por enquanto, ainda continua.
Se, a todo momento, frágil ao extremo, enquanto obra, a
toca é ameaçada de destruição, indestrutível (se há qualquer
indestrutibilidade) parece ser tão somente o movimento de seu
construir sem fim, que, em Kafka, se impõe com constância ao
que habitualmente é chamado de obra. Nesse sentido, poderia
ser acolhida a formulação feita por Harold Bloom de que “o indestrutível não é uma substância em nós que prevalece, mas [...]
um continuar quando não podemos continuar” (BLOOM: 1995,
p. 441), acrescentando ainda ao que ele disse que o indestrutível
não é uma substância preservada, tampouco, enquanto obra ou
objeto artístico, fora de nós, mas exatamente esse nosso “continuar
quando não podemos continuar”. O indestrutível, se há, é apenas
a performance aporética do animal escavando sua suposta obra
mesmo sabendo que jamais chegará ao fim, ou seja, uma performance anterior à noção de obra em sua finalização e em sua
finitude, anterior à noção de a obra atingir sua completude em ato.
Quando, logo no início, é dito que “quem pensa que sou
covarde ou que edifico minha construção por covardia me desconhece” (KAFKA: 1991, p. 63), parece ficar indicado que, caso o
animal que fala ou que pensa em solilóquio fosse de fato covarde,
a ênfase recairia na própria obra protetora construída para rejeitar o inimigo, mantendo-o à distância; não havendo covardia,
há, na construção, algo de mais decisivo do que o perigo do enfrentamento, não sendo por isso que o animal constrói sua obra:
conhecer o escavador é reconhecer que, não sendo ele covarde, é
a atividade do fazer que lhe é prioritária sobre o feito. Não sendo
imaginário, mas real, o inimigo (e a consequente preocupação
com os preparativos de defesa), entretanto, parece não ser mais
do que um pretexto ou um álibi a tentar justificar o que, de toda
maneira, não poderia deixar, em hipótese alguma, de se fazer.
Ainda que o aparente ser, o inimigo não é o responsável que
provocaria o trabalho da construção nem quem induz o animal
escavador ao medo maior. Como afirma Filipe Pereirinha do
pai da Carta ao pai, apesar de o inimigo ser o primeiramente
visível, sua função é secundária (PEREIRINHA: 2014, p. 30);
o medo maior do animal escavador do interior da toca é o de
parar de escavar, o de parar de realizar o (em) vão de sua vida,
como a de qualquer outro, mortal, do mesmo modo que, para
Kafka, seu medo maior era parar de escrever, diga-se, o medo de
escrever em vão, o medo de escrever os vãos, o medo de escrever
com o desejo constante de apagamento do escrito, de escrever
com o desejo constante de simplesmente de escrever. Se, como
já quiseram, A construção pode ser lida como um testamento
ficcional-autobiográfico de Kafka escrito nos últimos meses de
sua vida, parece-me ser, sobretudo, e, exatamente, nesse sentido.
Afastando-se das tragédias familiares cujos personagens
correm riscos frequentes de recaírem na edipianização (como,
por exemplo, em O veredicto ou em A metamorfose) a levarem
à morte por suicídio e assassinato, longe da família, em Berlim,
com Dora, Kafka escreve esse “canto” que confirma, como nenhum outro, o relato de Gustav Janouch dizendo que seu amigo não queria fazer literatura, mas que entendia tudo quanto
escrevia como “testemunhos de minha solidão” (JANOUCH:
1993, p. 30). Se A construção pode ser lida como um testamento
ficcional-autobiográfico é exatamente por ser, como nenhum
outro texto kafkiano, esse canto do testemunho de sua solidão. O
inimigo existe tão somente como a última fronteira que protege
o animal escavador de se deparar direta e imediatamente com
o insuportável do em vão de sua atividade vital. O construir da
toca do escrever é a um só tempo a entrada possível na vida e a
fuga do animal escritor por onde vida é subterraneamente liberada. Para o animal em exercício de seu monólogo (como para
o macaco-homem), é bom que se lembre, algo como liberdade
é sem sentido, tolo, não estando ele destinado, como sabe, a ela.
Trata-se, é certo, de outra coisa.
Não que não haja algo como o resto de uma obra ou como um
resíduo de uma ainda nem obra, mas o que há, em transformação
e fragilidade, é tido por inteiramente acidental. Se, no lugar de uma
obra, tem-se o resto de uma obra, não se tem mais uma obra, mas
uma s-obra. Além de se manter no pré-literário ou no anteliterário,
Kafka escreve s-obras, o que s(e)-obrou da completude que falta.
Agamben diria que, na modernidade e, especialmente, a partir
do século XX, para o artista, a obra “transforma-se em um resíduo
[embaraçante] em certa medida não necessário à sua atividade
criativa” (AGAMBEN: 2013, p. 356). Ainda em linguagem agambeniana, a atividade criadora de Kafka enquanto animal escavador da
escrita e da vida (do escrever a vida escavada) procuraria se firmar
“para além daquilo que produz”, ou seja, seu valor está “além da
obra que produz” (AGAMBEN: 2013, p. 357). Dentro da cisão entre
a atividade ou a operação de construir e a coisa construída, não
resta dúvidas de que Kafka prioriza o primeiro elemento, sendo
o segundo constantemente reenviado à possibilidade do fogo,
da pata e da testa inimigas ou de desdobramentos afins. Não se
trata, então, de construir uma morada fora de si, mesmo que o
circunde, mas de a morada ser o próprio construir, vazio de tudo
que não seja o construir.
Que, enquanto edificação a manter o inimigo afastado, a
obra não é o mais importante, o próprio texto o diz, com a clareza
possível a opor o trabalhar, monstruoso, ao resultado do trabalho: “Se eu tivesse feito a construção apenas para a segurança da
minha vida, na verdade não estaria fraudado, mas a relação entre
o trabalho monstruoso e a garantia efetiva, pelo menos até onde
sou capaz de senti-la e até onde posso me beneficiar dela, não
seria para mim uma relação favorável. É muito doloroso admitir
isso, mas é preciso fazê-lo, precisamente diante da entrada, que
agora se fecha – literalmente se enrijece – contra mim, o construtor e proprietário. Mas a construção não é mesmo apenas um
buraco de salvação”(KAFKA: 1991, p. 81-82). Não, a salvação não
é a construção feita, mas o incessante construir sempre retomado. Ainda que com as imensas diferenças existentes em relação
à “Josefina, a cantora”, a começar por, contrariamente ao canto
da solidão, o da ratinha ser um canto (ou um assobio) desde
o povo e para ele (enquanto, da mesma época, ainda há “Um
artista da fome”, com sua arte – que não é um canto – para um
público), há aproximações que podem ser feitas entre o construir
do escavador e o cantar de Josefina, para além do próprio fato
de ambos serem animais.
Entre os vínculos que podem ser estabelecidos, parece-me
importante ressaltar aqui a própria dedicação aos seus afazeres
distintivos, nos quais habitam, resguardando o fato de que para
o animal escavador seu trabalhar é muito menos intermitente
que o de Josefina. No caso de Josefina, sua hora de cantar chega,
sobretudo, quando a intranquilidade, o temor, o susto, a dificuldade, a hostilidade, a desgraça, o sofrimento e o insuportável se
abatem sobre cada um e sobre a comunidade, sobre a multidão,
sobre o povo: “Aí Josefina considera ter chegado sua hora. Ei-la
em pé, o ser delicado vibrando inquietadoramente sobretudo
abaixo do peito; é como se estivesse reunindo no canto todas
as forças, como se tudo nela que não sirva imediatamente ao
canto ficasse privado de qualquer energia, de qualquer possibilidade de vida; como se ela, despojada, entregue, estivesse
só sob a proteção de bons espíritos; como se um alento frio,
ao passar ventando pudesse matá-la, enquanto ela, completamente retirada, habita o próprio canto”(KAFKA: 1991, p. 42).
Esse habitar o próprio canto que é um habitar sua intensidade
maior se dá de tal modo que reúne “no canto todas as forças”,
fazendo com que tudo “que não sirva imediatamente ao canto
ficasse privado de qualquer energia, de qualquer possibilidade
de vida”. Em Josefina, ao menos nessas horas, nas horas em
que começa a levantar sua cabecinha para cantar, toda possibilidade de vida está concentrada em seu cantar; o que se
dá diariamente com o animal escavando sua toca, fazendo do
escavar sua forma de vida.
Kafka é certamente daqueles que realizaram com maior
radicalidade a forma de vida do artista tal qual pleiteada por
Agamben para nossa época, a forma de vida de quem, adentrando-a ao extremo, procura defender-se da vida pelo agir
da criação: “Artista ou poeta não é quem tem a potência ou a
faculdade de criar e que, um belo dia, por meio de um ato de
vontade ou obedecendo a uma injunção divina, decide, como
o deus dos teólogos, não se sabe como e por que, executar
algo. Assim como o poeta e o pintor, também o carpinteiro, o
sapateiro, o flautista, enfim, todo homem, não são os titulares
transcendentes de uma capacidade de agir ou de produzir
obras. Ao contrário, são viventes que no uso, e apenas no uso,
de seus membros – como do mundo que os circunda – fazem
experiência de si e constituem-se como formas de vida. A arte
é apenas o modo no qual o anônimo que chamamos artista,
mantendo-se em constante relação com uma prática, procura
constituir a sua vida como uma forma de vida. A vida do pintor, do músico, do carpinteiro, nas quais, como em toda forma
de vida, está em questão nada menos do que a sua felicidade.
Gostaria de concluir com as palavras de um grande pintor de
Scicli, que à pergunta ‘para o senhor, Piero Guccione, pintar é
mais que viver?’, apenas respondeu: ‘Pintar é certamente para
mim a única forma de vida, a única forma que tenho para defender-me da vida’”(AGAMBEN: 2013, p. 361).
A pergunta que ainda se me torna necessária fazer é: se o
animal escavador pode dizer que “tudo, tudo [é] silencioso e va-
zio” (KAFKA: 1991, p. 82), como entender o silêncio? No âmbito
do mundo subterrâneo desse animal que fala, a questão não é
propriamente o que é o silêncio (pergunta que seria demasiadamente metafísica), mas: quando ele ocorre? Quando ocorre o
silêncio no labirinto subterraneamente entocado? O que há de
ser preciso ter por garantia é que, no que diz respeito à toca, o
silêncio “aqui reina inalterado dia e noite” (KAFKA: 1991, p. 66).
Se, entretanto, no infinito de tempo da construção, o silêncio
reina continuamente inalterado e se ali tudo é silencioso, por
qual motivo o animal escavador não faz, a todo momento, sua
experiência reconfortante? Como se sabe que na toca há diversos
tipos de sons, a primeira assunção é a de que, reinando inalterado, o silêncio não é, certamente, a ausência de todo e qualquer
som, mas de certos tipos de barulhos insistentemente chamados
ao longo do monólogo de “ruídos”, “zumbidos” e “assobios”. Por
que, então, a experiência frequente do animal na toca não é,
prioritariamente, a do silêncio ou a do silenciar, mas, antes, a
dos ruídos, a dos zumbidos e a dos assobios? O que são esses
ruídos, zumbidos e assobios que afastam o animal escavador do
silêncio que reina inalterado no vazio da toca?
Há duas experiências similares que demarcam o caminho
de amadurecimento do personagem, que o levam de, nos primeiros tempos da obra, “pequeno aprendiz” (KAFKA: 1991, p.
101) a, ao fim do monólogo, um “velho mestre de obras” (KAFKA:
1991, p. 103). De certa maneira, a primeira funciona como uma
experiência traumática capaz de acionar o acontecimento de
um devir. No texto, ela é caracterizada como a em que, naquele
momento, em uma pausa do trabalho (antes da experiência ele já
construía, portanto, o começo de sua toca), o então jovem animal
ouve subitamente um ruído à distância (KAFKA: 1991, p. 101),
que o absorve a ponto de levá-lo a, abandonando o trabalho que
realizava, pôr-se a escutá-lo, com algum medo e muita curiosidade. Chegamos ao que, para o caso, mais interessa: esse ruído
escutado se diferenciava dos outros sons na medida em que o
animal escavador “podia discernir bastante bem que se tratava
de alguma escavação semelhante à minha. [...] Talvez eu esteja
em alguma construção alheia e o dono agora cave seu caminho
até mim, pensei comigo mesmo” (KAFKA: 1991, p. 101-102).
Saberemos depois que o outro animal que fazia o ruído foi em
outra direção que não a do protagonista.
A experiência atual, a que, no exato momento em que se
lembra da anterior, está vivendo, é similar. Em uma pausa do
trabalho, fica escutando com o ouvido na parede o zumbido que
revela a presença próxima do inimigo intimidador, mostrando
que a construção, mesmo agora em sua velhice, quando enorme,
continua indefesa (KAFKA:1991, p. 103). Compatíveis com a sobre a sua juventude, duas falas são, nesse instante, reveladoras:
1) “talvez eu não precisasse cavar muito longe até a origem do
ruído, talvez tivesse bastado a escuta nos condutores” (KAFKA:
1991, p. 104); 2) “De resto, procuro decifrar os desígnios do animal”(KAFKA: 1991, p. 104). Se, na rememoração da juventude,
pelos ruídos, o animal escavador “podia discernir” o sentido do
que os provocava, na experiência atual, trata-se igualmente de
os zumbidos terem uma “origem”, de “decifrar” “os desígnios do
animal” inimigo, que os provocam. Em todos esses casos, ruídos
e zumbidos estão atrelados ao que tem uma causa entendida
enquanto sentido determinado: o da proximidade do inimigo a
causar alguma curiosidade e, cada vez mais, o temor da morte
possível. Em ambas as experiências, o significado, a interpretação
a ofertar um sentido à origem ou à causa, cola ao som, impedindo
o som de ser puro som, lendo-o como um significante a receber
um significado o mais preciso possível.
Vejamos outros casos que surgem ao longo do canto: “Só sou
despertado do último sono, que dissolve a si mesmo; ele já deve
ser muito leve, pois um zumbido quase inaudível me acorda.
Compreendo imediatamente o que é: aquelas criaturinhas muito
pouco fiscalizadas por mim, e por mim poupadas em excesso,
perfuram em algum lugar, na minha ausência, um novo caminho
e este deu de encontro com uma trilha antiga, produzindo o ruído
sibilante. Que gente incansavelmente ativa é essa, como é aborrecida sua aplicação aos trabalhos” (KAFKA: 1991, p. 85-86). Não se
trata aqui do grande inimigo, mas de pequenas presas em ofício;
apesar disso, a “compreensão” (o discernimento ou a decifração
da causa e dos desígnios) do zumbido com seu sentido aderido
continuam presentes, a ponto de ele seguir suas investigações
na tentativa de se aproximar “em absoluto da sede do ruído”
(KAFKA:1991, p. 86), “pois dificilmente poderia haver alguma
dúvida quanto à sua origem” (KAFKA: 1991, p. 87). Dando fim
a essas presas e chegando à origem do sentido certo, o silêncio
da toca é recobrado.
Mostrando a importância do fato de que tais ruídos tenham
sentidos assegurados que possam e tenham de ser apreendidos
em nome da segurança, imediatamente em seguida, o animal
escavador repete: “a partir do ruído que meu ouvido tem a aptidão
de distinguir em todos os matizes – a tal ponto que ele se torna
claramente definível – imagino a sua causa e me ponho a verificar se isso corresponde à realidade. Com fundadas razões, pois
enquanto não ocorre a constatação não posso também me sentir
seguro”(KAFKA: 1991, p. 87). A preocupação com o sentido dos
ruídos, ou seja, com suas causas e origens, com distingui-lo, com
constatá-lo, é obsessivamente retornante: “Se eu tivesse acertado
no motivo do ruído, ele teria de se irradiar com o máximo volume
a partir de um lugar determinado, que seria necessário descobrir,
tornando-se depois cada vez menor. Mas se minha explicação
não era exata, qual então seria?” (KAFKA: 1991, p. 88). E mais
uma vez: “Abrirei um grande, autêntico fosso na direção do ruído
e não paro de cavar antes de descobrir, independentemente de
qualquer teoria, a causa real do ruído” (KAFKA: 1991, p. 92). Essa
lógica do ruído ou do zumbido, como o ao quê o sentido de sua
origem ou de sua causa se agrega ao barulho escutado colando a
ele, está por todos os movimentos do texto (nas páginas 98 e 99,
da edição mencionada, quando o escavador se sente ameaçado
pelo grande animal, perigoso além do concebível, ela atinge,
talvez, seu ápice, com inúmeras repetições).
Já tendo sido dito, o silêncio não é a ausência de todos e
quaisquer sons, mas tão somente desses que são chamados de
ruídos, zumbidos, assobios, desses que estão atrelados ao sentido
de suas causas e origens, perturbando a tranquilidade do animal
escavador. O silêncio é a garantia de que, entre os sons existentes
que reverberam pelo labirinto da toca, nenhum está relacionado
a ele, animal, ou seja, nenhum indica ruídos que tenham como
causa a existência de outros animais, sobretudo a de o grande
animal, a querer matá-lo ou conquistar sua toca. O silêncio se dá
quando ocorre exatamente a descontinuidade, a interrupção, a
não conformidade, entre os sons e os sentidos. Poder escutar os
sons sem que os sentidos lhes sejam imediatamente decalcados
é fazer a experiência do silenciar; poder ouvir os sons sem que
com eles venha conjuntamente a lógica do entendimento e da
representação. Trata-se de uma aprendizagem: a de lidar com a
instabilidade dos sentidos e a incerteza das avaliações. Repito
as palavras do animal: “Silêncio profundo; como é belo aqui,
ninguém se preocupa como a minha construção, todos têm seus
interesses, nenhum deles está relacionado comigo, como é que
cheguei a isso?” (KAFKA: 1991, p. 97). E de novo: “lá a paz estaria
assegurada e eu seria sua sentinela, não teria de ficar escutando
com repulsa as escavações das criaturinhas, mas sim ouvindo
deliciado aquilo que agora me foge completamente: o sussurro
do silêncio na praça do castelo” (KAFKA:1991, p. 90).
No que diz respeito à leitura de seu próprio escrito, Kafka
parece, então, entender por silêncio não uma privação sonora,
mas a transformação da interpretação que atribui um sentido
ao canto em uma suportabilidade da ininterpretabilidade do
canto enquanto sua experiência matérica bruta. Pois é a isso,
a esse silêncio profundo cujo sussurro não está atrelado à
obrigatoriedade de uma causa que, enquanto indício de perigo,
o emita, que se quer aqui chegar, pois nele parece estar a felicidade possível. Ao menos, uma saída também para a crítica, um
segredo que, na superfície mesma do texto, se mantenha secreto,
um enigma que, na superfície mesma do texto, se mantenha
insolúvel, um sussurro que, na superfície mesma do texto, se
mantenha sem mensagem, uma mensagem, que seja, que, na
superfície mesma do texto, apesar de enviada em murmúrio
no resguardo de um ouvido, torna-se para sempre perdida e
inacessível, sendo exatamente a perdição e a inapropriabilidade
que chegam ao destinatário (a nós) enquanto o envio, de fato,
desejado, o ininteligível em nossa toca-texto, os elementos assignificantes que a atravessam por todos os lados, a capacidade
de escutar a insensatez que, desde o texto, desde até mesmo –
vamos lá, sou obrigado a conceder – (que desde até mesmo) os
sentidos do texto, apesar de tudo, em nossos ouvidos, ressoa.
Aprender o que fazer com essa ressonância insensata, com essa
ressonância sem causa, de modo a continuar repercutindo-a, é
a escavação do (em) vão do animal crítico.
Neste percurso em busca de adentrar a construção kafkiana,
pelo qual se mostra o paradoxo de, ao mesmo tempo em que
a interpretabilidade não nos autoriza acesso à toca, a experi-
mentação derivada da ininterpretabilidade parece impedir o
afastamento do contato com ela, a figura que me vem para o
leitor ou para o crítico não é mais, como ao começo, a do grande
e perigoso inimigo farejador, cuja posição, ao menos uma vez,
do lado de fora da entrada da toca, parece se confundir com a do
animal escavador, cuja posição se torna, como visto, secundária
em relação à necessidade do em vão do escavar, mas tão somente
a de um daqueles ratinhos que abrem microtrilhas sem perigos e
minimamente favorecedoras à vida entocada: “Além dessa grande
via, ligam-me com o mundo externo caminhos bem estreitos e
razoavelmente sem perigo, que me proporcionam bom ar fresco
para respirar. Eles foram instalados pelos camundongos da floresta. Consegui incorporá-los acertadamente à minha construção.
Eles me oferecem a possibilidade de farejar à distância e me dão
assim proteção. Através deles também chega a mim toda espécie
de criaturinhas que eu devoro, de maneira que disponho de uma
certa quantidade de caça pequena, suficiente para um estilo de
vida modesto, sem ter de abandonar minha construção – e isso
é sem dúvida muito valioso” (KAFKA: 1991, p. 65).
Talvez, com os ratos, a crítica possa sair da “grande via”
(KAFKA: 1991, p. 65) que liga claramente o dentro da toca ao
mundo exterior, da lógica dualista do inimigo, do juízo, do partidarismo, da oposição, da confrontação, do conhecimento, do
discernimento, da distinção, da decifração, da compreensão,
da descoberta, da explicação, do motivo, da origem, da causa,
da representação, do sentido... Para adentrar uma poética do
favorecimento não representativo daquele que, também em sua
solidão, lutando do mesmo modo desesperadamente por sua
vida, está realizando sua própria escavação em busca de abrir
mínimas frinchas para que o trabalho (em vão) de escavação
se realize também por ele, crítico; trabalho de escavação, esse
sim, indestrutível, para que ele prossiga seu movimento virtualmente infinito no tempo infinito da toca sem ficar atravancado
por muito tempo. A partir de A construção, artista e crítico não
formam uma família: o texto exige tanto para o artista quanto
para o crítico solidões a escavarem, cada qual por necessidades
próprias, os seus vazios, solidões a escavarem suas próprias
salvações, em busca de, desbloqueando uma situação, abrirem
um furo qualquer, pequeno que seja, onde antes só havia o beco
sem saída.
POR UmA HisTÓRiA DOs ERROs PRODUTiVOs
DA LiTERATURA E DA FiLOsOFiA
(o caso de uma nota de pé-de-página de Deleuze e
guattari sobre Kafka)
São raríssimos os escritores cujos nomes, nas mais variadas
línguas ocidentais, se transformaram em adjetivos dicionarizados, ou seja, que a marca decisiva de seus dizeres produziu na
cultura um sentido de alguma maneira derivado do impulso
que propagaram, caído no senso mais comum de uma conversa
rotineira não especializada, mantida por quem quer que seja.
Isto ocorre porque, com suas obras, eles acabaram por demarcar no conjunto dos leitores – e, a partir deles, igualmente na
comunidade de não leitores – a impressão de um sentido que
nenhuma outra palavra, nenhum conceito filosófico e nenhuma
interpretação sociopolítica até então existentes eram capazes de
revelar com tamanha precisão.
O fato de virarem caricaturas só ressalta a força que conseguiram alavancar, a ponto de, pela necessidade repetitiva de
seu uso, se tornarem estereótipos. Na maior parte das vezes,
entende-se, por exemplo, algo do que é homérico, platônico ou
dantesco sem que se saiba quem foi Homero, Platão ou Dante
nem, muito menos, sem que se tenha lido uma linha sequer de
suas rapsódias, diálogos ou poemas. Sem nenhuma dificuldade
de compreensão, qualquer um pode dizer que uma partida de
futebol foi homérica, que aquele amor é platônico, que um acontecimento específico é dantesco. Ou, no que aqui me interessa,
afirma-se frequentemente que tal ou qual situação é kafkiana,
querendo com isso significar, de modo geral, uma atmosfera em
que cotidiano e pesadelo se misturam, em que o desconforto
absoluto com a burocracia em seus excessos lógicos e racionais,
mas sem fundamento nem finalidade, predomina, subjugando
ao extremo cada um de nós ao não querer nos deixar qualquer
alternativa para ela, ao querer, parafraseando o próprio escritor,
ter tudo em seu poder.
Lula afirma com precisão: “a burocracia é competente na
defesa dos seus interesses. Ela pode não ser competente na defesa dos interesses de quem está no governo, mas na defesa dos
interesses da burocracia ela é competente”1. Deixando claro que
a burocracia não existe para fins de viabilização dos interesses
de quem está no governo e implícito que ela tampouco existe
para facilitar o cumprimento dos interesses dos governados, mas
que sua competência diz respeito exclusivamente à propagação
1 SILVA, Luiz Inácio Lula da. O necessário, o possível e o impossível (entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili). Dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. SADER, Emir (Org.). São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO
Brasil, 2013. p. 26.
exclusiva da própria máquina, com suas leis intrínsecas e ininteligíveis a quem quer que seja, sem nenhum fim para além de
si mesma, Lula oferece um exemplo que remonta ao paradigma
de uma situação kafkiana: “Por exemplo, eu sou presidente e
discuto e decido uma coisa com um ministro, que anunciamos
para a imprensa. Aí o ministro sai do meu gabinete, vai ter que
conversar com o Guido Mantega. Aí o Guido vai marcar audiência
quando puder. Ele conversa com o Guido, acerta tudo, mas vai
ter que passar pelo planejamento. Aí vai ao planejamento. ‘Olha,
mas tem um problema no Iphan’. Vai ter que ir ao Iphan. Depois,
surge um problema no Meio Ambiente. Ali está com um problema
sério, não vai passar, tem que ir ao Ministério do Meio Ambiente.
Aí o ministério fala: ‘não é comigo, é com o Ibama’. Vai ao Ibama.
E quando tudo dá certo, vem a licitação, vai ao Ministério Público. Quando tudo dá certo, uma empresa perde e entra com uma
ação contra a outra. E pronto. Passou o mandato e você não fez
as coisas. É muito complicado. Hoje, nenhum governante faz um
projeto grande, licita e conclui a obra num mandato de quatro
anos. Não é possível”2.
No filme independente Ghost Dance, de 1983, dirigido por
Ken MacMullen, Derrida relembra um episódio – certamente,
kafkiano – vivido por ele mesmo, em que o “fantasma de Kafka”
parece ter escrito o roteiro da situação que lhe aconteceu: “No
ano passado, há exatamente um ano, fui a Praga para participar
2 Id. Ibid. p. 27.
de um seminário privado com alguns filósofos tchecos dissidentes, os tchecos interditos, que não podiam ensinar nas universidades. Fui seguido todo o tempo pela polícia secreta tcheca, que
não fez nenhum segredo sobre isto. Após o seminário, fui fazer
um passeio pela cidade de Kafka, como se em busca do fantasma de Kafka, que estava, de fato, ele mesmo, me perseguindo.
Fui ver as casas em que Kafka morou – são duas em Praga – e,
depois, ao seu túmulo. No dia seguinte, no momento em que
fui preso, supostamente por tráfico de drogas, descobri que, na
hora exata em que estava na tumba de Kafka e tão preocupado,
até certo ponto, com o fantasma de Kafka, a polícia secreta
tcheca entrou em meu quarto e plantou um pequeno pacote de
drogas na minha mala como pretexto para a minha prisão no
dia seguinte. Quando fui interrogado pela polícia, que me perguntou o que eu fazia em Praga, respondi verdadeiramente que
estava preparando um ensaio sobre Kafka, sobre um fragmento
de Kafka extraído de O processo, um texto que se chama ‘Diante
da lei’. Durante todo meu interrogatório e prisão, o fantasma de
Kafka estava efetivamente presente e o cenário escrito por Kafka
regrava toda a cena, a cena sendo aquela de O processo, como
se estivéssemos todos atuando em um filme programado pelo
fantasma de Kafka”3.
O que se chama habitualmente de kafkiano submete,
3 DERRIDA, Jacques. In: MACMULLEN, Ken. Ghost dance. Disponível em: <http://
www.youtube.com/watch?v=mDmsqpN3o14>.
é certo, presidentes e não presidentes, filósofos e não filósofos,
reduzindo cada um de nós à nossa própria insignificância e
evidenciando os dispositivos de poder, quaisquer que sejam,
que querem, como já se disse, nos afastar de nossa potência.
Em relação aos outros escritores mencionados (Homero, Platão
e Dante), no caso de Kafka, mostrando sua pregnância, assusta
a velocidade com a qual o adjetivo se formou4. Lidar com Kafka
é, ao menos ao nível da linguagem de massa, lidar, em algum
grau, com alguns dos efeitos que sua obra produziu e continua
produzindo, com essa dimensão dita kafkiana da vida, especialmente, da vida dos séculos XX e – ainda – XXI.
Todos que se aproximam dos escritos de Kafka (e daqueles
muitos especiais derivados dos dele) são completa e complexamente enredados por sua atmosfera, que, muito mais forte do que
a capacidade que a individualidade de cada um de nós poderia ter
para lhe fazer frente, determina um pensamento inultrapassável
para o convívio com a conjunção dos acontecimentos de nosso
tempo. Somos arrastados por aquilo que Kafka escreveu, como
4 O Oxford English Dictionary oferece como a citação mais antiga do respectivo adjetivo a do artigo de John Ayto no New Yorker em 4 de janeiro de 1947, em que mencionava a kafkaesque nightmare of blind alleys, mas, nesse mesmo ano, a palavra já
havia caído na boca do povo, pois, em O castelo de Axel, Edmond Wilson escreve:
“Kafka’s novel have exploited a vein of the comedy and pathos of the futile effort
which is likely to make ‘kafkaesque’ a permanente word”. Antes disso, em 1938, Cecil
Day Lewis usara o mesmo termo para descrever Journey to the border, de Edward
Upward, como “kafkaesque in manner”. Dois anos antes, a conhecida carta de Oaxaca, de MalcomLowry, afirmara: “No words can describe the terrible condition I am
in... This is the perfect Kafka situation... I am in horrible danger… Don’t think I can
go on. Where I am it is dark. Lost”.
uma pulga é conduzida por um cachorro aonde quer que ele
vá. O escritor tcheco inventou uma rede de leituras da realidade
que, com uma violência capaz de se sobrepor, inelutavelmente, a
cada um de nós, a nossa época só veio gradativamente confirmar,
dando-nos a sensação de que o vivido é uma espécie de déjà vu,
ou, talvez melhor, de um déjà vécu na leitura dos fragmentos,
contos, novelas, romances, diários, cartas...
O incontornável de, nesse caso, a realidade ser percebida
como uma espécie de representação sombria ou fantasmagórica
da literatura deve-se à virulência do empreendimento. Quando
disse “nós” um pouco mais acima, quis me referir a mim mesmo,
neste momento em que tenho lido tanto Kafka quanto alguns de
seus amigos e estudiosos, mas também aos grandes pensadores
que produziram a partir de seus textos, mostrando-se, além
de sensíveis à força avassaladora de tais escritos, eles mesmos
enleados igualmente em tal trama. Em diversos graus, senão
em tempo contínuo, ao menos em alguns momentos, todos,
mesmo aqueles com maior força de criação e reflexão, estamos
submetidos ao que há de mais predominante no emaranhado
do que de modo geral se entende por kafkiano.
Em certo momento de Kafka; por uma literatura menor,
Gilles Deleuze e Félix Guattari mencionam uma passagem, referente ao fragmento habitualmente conhecido como “O grande
nadador”, que, mesmo estando localizada perifericamente em
uma nota de pé-de-página, é de fundamental importância para
a leitura que então propõem, da literatura como, entre outras
coisas, torção que uma minoria realiza em uma língua, o da literatura como desterritorialização de uma língua, o da literatura
como produção de uma língua estrangeira na própria língua que
falamos, o da literatura como fabricação de uma orfandade ou de
uma povoação onde há o suposto materno ou familiar da língua,
o da literatura como um tornar-se nômade, cigano, imigrante de
sua própria língua.
Nesse contexto, propondo o uso desviante da língua (inclusive e, sobretudo, da língua soberana) no lugar das fórmulas
hegemônicas, eles preparam o aparecimento da nota: “Grande
e revolucionário, somente o menor. Odiar toda literatura de
mestres. Fascinação de Kafka pelos serviçais e pelos empregados (mesma coisa em Proust quanto aos serviçais, quanto à
linguagem deles). Todavia, o que é interessante ainda é a possibilidade de fazer de sua própria língua, supondo que ela seja
única, que ela seja uma língua maior ou que o tenha sido, um
uso menor. Estar em sua própria língua como estrangeiro; é a
situação do nadador de Kafka”5. Exatamente nesse momento,
surge a nota com a citação kafkiana trazida à tona por eles, que,
muitas vezes, tocando-me, me chamou atenção, dizendo: “Sou
obrigado a constatar que estou aqui no meu país e que, apesar
de todos os esforços, não compreendo peva da língua em que
o senhor fala”6.
5 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Kafka; por um literatura menor. Trad. Júlio
Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977. p. 40-41.
6 Id. Ibid. p. 41.
Dentro dos aspectos poéticos e intelectuais, indissociáveis
do privilégio momentâneo pelo afetivo ou pelo patético, pessoalmente, reconheço que me comovo com a frase por me sentir
muitas vezes assim, como na maior parte dos eventos acadêmicos que frequento, quando assisto a grande maioria das incursões de colegas, incluindo os que mais admiro, sem entender
patavina do que estão dizendo; inúmeras vezes, sinto-me assim
também na vida de modo geral, tornando-se tudo então muito
mais complexo do que poderia parecer à primeira vista. Falando
a língua que todos falam em nosso país, não consigo entender
o que está sendo dito, apesar de cada uma das palavras me ser,
até certo ponto, plenamente acessível. Para repetir a expressão
usada, sinto-me um estrangeiro na língua que falo, ela própria
cindida de tal maneira que me leva a, ouvindo-a sem compreensão, afastar-me dela, distanciar-me, não sem alguma aflição,
de seu entendimento, sem me aproximar de qualquer outra.
Talvez, essa incompreensão, presente tanto na frase do
nadador de Kafka (“Sou obrigado a constatar que estou aqui no
meu país e que, apesar de todos os esforços, não compreendo
peva da língua em que o senhor fala”) quanto em algum lugar
de minha maneira de escutar o outro, seja um dos elementos
que me movem a ter, às vezes, a necessidade de inventar o
que dizer, provavelmente, ainda que na mesma língua da dos
colegas e companheiros, sem que eles tampouco entendam.
Imagino que venha principalmente daí o fato de o trecho citado
discretamente pelos filósofos ter me marcado muito, apesar
de não ter lido, até muito recentemente, o fragmento maior de
onde ele é retirado.
Relendo por esses dias o livro de Deleuze e Guattari, deparei-me de novo com a frase de Kafka (“Sou obrigado a constatar
que estou aqui no meu país e que, apesar de todos os esforços,
não compreendo peva da língua em que o senhor fala”), tendo
me sentido, mais uma vez, impactado por ela. Fui então procurar
“O grande nadador” em português. Não encontrando esse fragmento na rede, descobri, ao menos, que havia uma tradução dele
publicada entre nós, em um livro esgotado, chamado Sonhos,
com passagens de Kafka ligadas às anotações de sonhos, uma
onirografia retirada principalmente de seus diários e cartas, mas
também dos Fragmentos de cadernos e folhas soltas. Nele, encomendado em um sebo, encontro, aparentemente, o que procurava, com a chance de ler “O grande nadador” pela primeira vez:
“O grande nadador! O grande nadador!”, gritavam.
Eu chegava das Olimpíadas de Antuérpia, onde
tinha batido um recorde mundial em natação.
Estava parado na escadaria da estação de minha
cidade natal – onde era? – olhando para a massa
difusa na luz crepuscular. Uma menina, em cujo
rosto faço uma carícia rápida, enrola-me nos ombros uma echarpe onde está escrito numa língua
estrangeira: “Ao campeão olímpico”. Um automóvel
se aproxima, alguns homens me empurram para
dentro, dois deles me acompanham, o prefeito e
mais alguém. Logo chegamos a um salão de festas;
à minha entrada um coral na galeria superior começou a cantar, e todos os convidados, eram centenas,
ergueram-se e saudaram-me em uníssono com um
verso que não entendi direito. À minha direita estava
um ministro, não sei por que esta palavra tanto me
assustou quando nos apresentaram, e de soslaio o
medi agressivamente, mas logo me contive; à minha
direita sentava-se a esposa do prefeito, uma dama
exuberante, tudo nela, em especial na altura do peito, parecia estar cheio de rosas e plumas de avestruz.
À minha frente estava um homem, cujo nome me
escapou ao ser apresentado, muito gordo e com o
rosto extraordinariamente branco; ele mantinha
os cotovelos sobre a mesa – tinham-lhe reservado
um espaço maior – e permanecia calado e com o
olhar fixo adiante; ele sentava-se entre duas belas
moças loiras e muito engraçadas, que conversavam
o tempo todo, e eu ficava olhando de uma para a
outra. Apesar da iluminação intensa, não conseguia
distinguir os demais convidados, talvez porque todos estivessem em movimento, erguendo os copos
e brindando, e os serviçais passassem por todos
os lados servindo comida; ou talvez a iluminação
fosse simplesmente excessiva. E também havia uma
certa desordem – aliás a única –, causada por alguns
convidados, em especial mulheres, que se sentavam
de costas para a mesa; não que o encosto das cadeiras estivesse entre as pessoas e a mesa, mas quase
chegava a tocar a mesa. Chamei a atenção das duas
moças à minha frente sobre esse fato, mas elas, até
agora tão falantes, limitaram-se a sorrir e me olhar
longamente, sem nada dizer. Ao soar de um sino – os
serviçais imobilizaram-se entre as fileiras – o gordo
à minha frente ergueu-se e fez um discurso. Por que
será que o homem estava tão triste! Enquanto falava,
enxugava o rosto com um lenço; isso até passava,
era compreensível devido à sua obesidade, ao calor
no salão e ao esforço demandado pelo discurso,
mas percebi nitidamente que era um truque para
encobrir as lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Ele
mantinha os olhos sobre mim, não exatamente me
olhando, mas como se estivesse vendo meu túmulo
aberto. Quando acabou, naturalmente também
me ergui e proferi um discurso. Realmente sentia
necessidade de falar, pois me parecia que aqui,
e provavelmente também em outro lugar, havia
muitas coisas a esclarecer, pública e abertamente7.
7 KAFKA, Franz. Sonhos. Trad. Ricardo F. Henrique. São Paulo: Editora Iluminuras,
2003. p. 146-148.
No momento, não me cabe fazer uma interpretação do
fragmento mencionado, mas tão somente sinalizar minha decepção pelo fato de o presente na nota 25 da edição brasileira
de Kafka; por uma literatura menor não ser aí encontrado. O que
teria ocorrido para que tal passagem não aparecesse na edição
de Sonhos? Esse livro acolheria tão somente um fragmento do
fragmento? Era preciso continuar a investigação. Busco traduções para o inglês, o espanhol, o francês e consulto, finalmente,
o texto alemão: para minha surpresa, todos são coincidentes,
explicando o ocorrido. Por algum motivo não revelado, “O
grande nadador”, de Sonhos, é interrompido antes do original
em alemão (e, consequentemente, das traduções consultadas);
ele não traduz exatamente o discurso do nadador, anunciado
por um “darum begann Ich” vindo imediatamente em seguida à
suspensão súbita da edição por mim até então conhecida. Lendo
então, nessas outras traduções, o discurso do nadador, novos
problemas se colocam, sobretudo para o que mais me interessa
aqui. Voltemos à frase de Kafka mencionada primeiramente na
nota do livro de Deleuze e Guattari, que, devido ao interesse,
motivou a pesquisa: “Sou obrigado a constatar que estou aqui
no meu país e que, apesar de todos os esforços, não compreendo
peva da língua em que o senhor fala”.
Ao ler a tradução para o inglês, fico literalmente estupefato;
ela diz exatamente o contrário do que tanto havia me sensibilizado na brasileira de Kafka; por uma literatura menor. No lugar
do “sou obrigado a constatar que estou aqui no meu país e que,
apesar de todos os esforços, não compreendo peva da língua que
o senhor fala”, o texto em inglês insere uma negação, tornando
a frase muito mais plana, previsível e menos instigante do que
a citada pelos filósofos: “I must first explain that I am not now
in my father land and, in spite of considerable effort, can not
understand a word of what has been spoken”8. Se não estou em
minha pátria, se, nascendo em outro país, sou efetivamente
um estrangeiro, é bem provável que, não sendo poliglota, não
entenda mesmo a língua falada – nada de admirável em tal situação. Nela, nada da surpresa desconcertante de, mesmo estando
em meu país natal, não sendo portanto (pelo menos dentro da
acepção do senso-comum) um estrangeiro, apesar de todos os
esforços, não entendendo nada do que está sendo dito, precisar
criar uma língua estrangeira dentro da própria língua que, como
todos os meus supostos compatriotas, aprendi a falar.
Essa negação na fala do nadador coloca, aliás, uma contradição entre esse momento do texto e seu começo já citado, em que,
logo após ser saudado pela multidão e dizer que acaba de chegar
das Olimpíadas da Antuérpia, onde bateu o recorde mundial de
natação, ele afirma: “Estava parado na escadaria da estação de
minha cidade natal – onde era? – olhando para a massa difusa na
luz crepuscular”. Ainda que não se saiba qual é sua cidade natal,
8 Traduzido do alemão por Daniel Slager. Disponível em:<http://www.grandstreet.
com/gsissues/gs56/gs56e.html>.
sabe-se que é nela que o nadador acabou de chegar. Como agora,
ao fim, ele diz “não estou em minha terra natal”? Teria a tradução
para o inglês errado, implantando uma negação onde, como na
citação de Deleuze e Guattari, existiria uma afirmação?
Vou a uma tradução espanhola, que, para minha crescente
perplexidade, confirma a negação presente em inglês: “En primer lugar debo constatar que esta no es mi patria y que a pesar
de todos los esfuerzos no entiendo ni una palabra de cuanto
aquí se disse”9. Diante de tal estranheza, minha suspeita imediata é a de erro da tradução brasileira do livro de Deleuze e
Guattari, colocada de lado logo depois da consulta ao original
francês, cuja nota 25, igual à da edição brasileira, afirma: “Le
Grand Nageur est sans doute undes textes plus ‘beckettienes’ de
Kafka: ‘Il me faut bien constater que je suis ici dans mon pays et
que, en dépit de tous mes efforts, je ne comprends pas un mot
de la langue que vous parlez...” (Oeuvres completes, V, p. 221)10.
Como indicado em outra nota anterior do livro, a tradução
utilizada foi a de Marthe Robert, presente na primeira edição
francesa da obra completa de Kafka, editada em oito volumes
pelo Cercle de Livre Précieux (de Claude Tchou), sendo no
quinto encontrado o Préparatifs de noce à la campagne, onde
está “O grande nadador”.
9 KAFKA, Franz. El silencio de las sirena: Escritos y fragmentos póstumos. Trad. Juan
José del Solar. Barcelona: Random House Mondadori, 2005. Disponível em: <http://
porlaverdad3.wordpress.com/2011/03/25/>.
10 DELEUZE, Gilles et GUATTARI, Félix. Kafka; pour une litterature mineure. Paris:
Les Éditions de Minuit, 1974. p. 48.
Diferente da para o inglês e da para o espanhol consultadas, a referida tradução afirma que o nadador está em seu país
e que, apesar de todos os seus esforços, não compreende uma
palavra da língua que as pessoas falam. A tradução de Marthe
Robert é confirmada em seu próprio livro sobre Kafka, no qual se
pode ler: “de regresso à sua cidade natal, o Grande Nadador que
ganhou o título de campeão olímpico apercebe-se de que não
compreende uma palavra dos discursos dos seus compatriotas,
os quais, pelo seu lado, não o compreendem e não parecem de
modo nenhum sofrer com isso”11. Deleuze e Guattari se apropriaram então de tal momento interpretativo não apenas para
a já famosa defesa da literatura como a invenção de uma língua
menor (a língua que seria derivada desse estar em seu país sem
entender o que ali dizem), mas também para colocar Kafka como
uma espécie de precursor de Beckett ou, ao menos, como se
fosse um Beckett avant la lettre ou, ainda, como se, depois de
Beckett, nessa passagem, já pudesse ser flagrada posteriormente
a dimensão prévia do que virá a ser a tonalidade beckettiana.
A passagem é, indubitavelmente, decisiva para o pensamento
montado pelos filósofos franceses. Consulto as obras completas
de Kafka na edição francesa consultada por Deleuze e Guattari
e nela, de fato, a tradução é exatamente igual à citada por eles,
que a seguem textualmente.
11 ROBERT, Marthe. Franz Kafka.Trad. José Manuel Simões. Lisboa: Editorial Presença,
1963. p. 66.
Como não há uma tradução da passagem para o português,
é preciso permanecer com os dois grupos antagônicos das traduções: de um lado, a para o inglês (“I must first explain that I am
not now in my father land and, in spite of considerable effort, can
not understand a word of what has been spoken”) e para o espanhol (“En primer lugar debo constatar que esta no es mi patria
y que a pesar de todos los esfuerzos no entiendo ni una palabra
de cuantoa quí se disse”); de outro, a francesa (‘Il me faut bien
constater que je suis ici dans mon pays et que, en dépit de tous
mes efforts, je ne comprends pas um mot de la langue que vous
parlez...”), tal qual utilizada por Deleuze e Guattari. Em busca
de outra edição francesa, vou às Oeuvres completes de Kafka, da
Collection Bibliothèque de la Pléiade (número 282), publicada
em 1980 pela Gallimard (após, portanto, o livro de Deleuze e
Guattari). Na página 566 do tomo II, encontro a mesma tradução
anteriormente consultada, de Marthe Robert, tendo, entretanto,
sofrido nota retificadora realizada por Claude David.
Nessa tradução revisada, aparece uma variação crítica dentro dos colchetes, indicando o erro de tradução anteriormente
cometido: “D’abord, il me faut bien constater que je [ne] suis
[pas] ici dans mon pays et que, en dépit de tous mes efforts, je ne
comprends pas un mot de la langue que vous parlez”. Vale expor
que, no volume dessa coleção, os editores tomaram a decisão de
dispersar os fragmentos publicados em Préparatifs de noce à la
campagne por entre outros fragmentos e narrativas kafkianos,
ordenando-os todos, em ordem cronológica, sob o novo título
Récits et fragments narratifs. Apenas para comprovar a veracidade
do que, a essa altura, parece ter se esclarecido, resta, obviamente,
ir ao texto original, em alemão. Nele, de fato, a negação, manifesta pelo nicht, está lá, presente: “Zunächst muss Ich feststellen,
das Ich hier. Nicht in meinem Vaterland bin und trotz grosser
Anstrengungkein Wort von dem verstehe was hier. Gs prochen
wird”12. E, mais à frente, ainda no discurso do nadador, ele confirma, repetindo o que, no começo dessa segunda parte, ele havia
anunciado: “Ich bin nicht in meiner Heimat”.
Pode ser imaginado que o erro da tradução francesa tenha
sido gerado por uma tentativa do tradutor em conciliar o que é
dito logo na abertura do fragmento (“Estava parado na escadaria
da estação de minha cidade natal – onde era? – olhando para a
massa difusa na luz crepuscular”) com a passagem posterior, em
que o nadador afirma não estar em sua Vaterland nem em sua
Heimat. Muito curioso é salientar que o erro não fora percebido
por Deleuze e Guattari, que, sem desconfiarem, sem irem ao
original nem a outras traduções, o assumiram integralmente para
a leitura que efetuaram. Ninguém há de negar que, nesse caso,
o erro é inquestionavelmente melhor do que o acerto teria sido,
tendo a tradutora francesa conseguido, acredito que sem querer,
a impossível façanha de melhorar Kafka, entendendo, por isso,
tornar Kafka ainda mais kafkiano do que o próprio Kafka, nessa
12 Disponível em:
fundstueck/457421>.
<http://www.franzkafka.de/franzkafka/fundstueck_archiv/
passagem específica, teria conseguido ser. Do mesmo modo, a
leitura de Deleuze e Guattari, ainda que, em stricto senso, tenha se
originado de um erro, consegue, mesmo que inconscientemente, o improvável de, em algum grau, desterritorializar o próprio
Kafka, gerando consequências infinitamente mais interessantes
do que um suposto acerto poderia desenvolver. Diante disso, não
há como não pensar na necessidade de feitura de uma história
da filosofia e da literatura por seus erros mais produtivos.
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FILMOGRAFIA:
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Kafka). Tradução não informada. Suíça-França: Lea
Produktion, LesFilms d’Ici, SchweizerFernsehen (FS),
2006. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=iKxdIntXUCg>.
sOBRE O AUTOR
Nascido em 1966, Alberto Pucheu é poeta, ensaísta, professor de teoria literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Cientista do nosso estado, pela Faperj (já havia sido
antes Jovem cientista do nosso estado, pela mesma agência de
fomento) e pesquisador do CNPq. Seu livro de poemas A fronteira desguarnecida foi vencedor do Programa de Bolsas para
Escritores brasileiros, da Fundação Biblioteca Nacional, e o de
ensaios Pelo colorido, para além do cinzento; a literatura e seus
entornos interventivos recebeu o Prêmio Mário de Andrade de
Ensaio Literário, da Fundação Biblioteca Nacional.
Enquanto poeta, teve os seguintes livros publicados:
1) na cidade aberta (Rio de Janeiro: EdUERJ, 1993);
2) Escritos da frequentação (Rio de Janeiro: Ed. Paignio, 1995);
3) A fronteira desguarnecida (Rio de Janeiro: Ed. Sette letras,
1997 – este livro foi concluído com o apoio do Programa de Bolsas
para Escritores Brasileiros da Fundação Biblioteca Nacional);
4) Ecometria do silêncio (Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras,
1999);
5) A vida é assim (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001);
6) Escritos da indiscernibilidade (Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2003).
7) A fronteira desguarnecida; Poesia reunida 1993-2007 (Rio
de Janeiro: Azougue Editorial, 2007);
8) mais cotidiano que o cotidiano. (Rio de Janeiro: Azougue
Editorial/FAPERJ, 2013).
Publicou os seguintes livros de ensaio:
1) Pelo colorido, para além do cinzento; a literatura e seus
entornos interventivos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/FAPERJ,
2007). Com este, recebeu o Prêmio Mário de Andrade, Ensaio
Literário, da Fundação Biblioteca Nacional/Minc, 2007);
2) Giorgio Agamben: poesia, filosofia, crítica (Rio de Janeiro:
Azougue Editorial/FAPERJ, 2010);
3) Antonio Cicero por Alberto Pucheu (Rio de Janeiro: EdUERJ,
2010);
4) O amante da literatura (Rio de Janeiro: Oficina Raquel,
2010);
5) Roberto Corrêa dos Santos: o poema contemporâneo
enquanto o ensaio teórico-crítico-experimental (Rio de Janeiro:
Azougue Editorial/FAPERJ, 2012);
6) apoesia contemporânea (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/CAPES, 2014).
Organizou os seguintes livros:
1) Poesia(e)Filosofia; por poetas-filósofos em atuação no
Brasil (Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras, 1998);
2) Nove abraços no inapreensível; filosofia e arte em Giorgio
Agamben (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/FAPERJ, 2008);
3) O carnaval carioca de Mário de Andrade (Rio de Janeiro:
Azougue Editorial/FAPERJ, 2011, com Eduardo Losso Guerreiro);
4) Danielle Cohen-Levinas; partilha da literatura (São Paulo:
Editora Horizonte, 2014, com Piero Eyben).
sentido ao vivido, e não somente porque uma
escrita no trauma e do trauma diz mais de um
impossível viver, mas também porque o que
mais interessa é o impasse que se coloca na
própria metamorfose da vida em obra e da
obra em vida, em outras palavras, interessa
esse ponto em que a imagem é a não resposta,
a própria nulificação do seu sentido.
Talvez seja, então, o poema o lugar que abrigará com mais propriedade a inapropriabilidade
e a inacessibilidade dessas imagens que interditam a fala, o sentido e a própria vida. A questão
em torno da “prosa miúda” se espraia em direção à impossibilidade de narrar, ao poema e ao
canto. Como a distância entre essas duas aldeias
vizinhas que, no tempo de uma vida, nunca pode
ser transposta, o poema também não será uma
categoria asseguradora, na verdade, ele vem
problematizar a própria estranheza da língua,
uma espécie de não domínio da língua maior
para passar à invenção de uma língua menor que
gagueja, balbucia, paradoxalmente, inarticulada
na limpidez da sintaxe kafkiana.
Segundo Alberto Pucheu, o poema é o lugar
da (im)potência maior, como crítica ao poder
instituído, e Kafka e sua obra estão antes do
nascimento e depois da morte, numa dupla
resistência à vida e à obra em seus contornos
bem-definidos pelas instâncias do poder.
O canto, ou aquilo que sobrou dele mesmo
antes de Auschwitz, será o lugar que assinala
esse encontro sempre faltoso, encontro com a
perda da palavra.
Flavia Trocoli
Se Kakfa chamou os escritos de Contemplação de kleine
Prosa, prosa pequena ou “prosa miúda”, com O veredicto,
dele, poderia dizer keine Prosa, prosa nenhuma: o que antes
era um movimento pequeno ou miúdo de sua prosa, ganha
explicitamente a designação de “poema”. No momento final
de sua escrita, Kafka mencionará um “canto à incolumidade
da construção” e Josefina, a ratinha, é uma cantora. Em todos
esses modos, a escrita, que se desdobra em uma abundância
de modos dispersivos, retira o especificamente literário da
sua zona de conforto ao ir para além dele ou ficando-lhe
aquém, em todo caso, levando-o a seu fora, não se deixando
identificar com ele. Desobrar a obra chamada de literária a
partir das múltiplas escritas, com seus relatos, a princípio,
autobiográficos, sem as marcas habituais do que é reconhecido majoritariamente como literatura, é, certamente, uma
das operações do que se chama Kafka, com a vida que vive
adentrando a escrita e a escrita adentrando a vida que vive,
confundidas em uma zona potencial.
ISBN:978-85-7920-168-4
9 788579 20168 4