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KAFKA POETA - ENSAIOS (ALBERTO PUCHEU)

2015, Livro / Editora Azougue

Se Kafka chamou os escritos de Contemplação de Kleine Prosa, prosa pequena ou "prosa miúda", com O veredicto, dele, poderia dizer Keine Prosa, prosa nenhuma: o que antes era um movimento pequeno ou miúdo de sua prosa, ganha explicitamente a designação de "poema". No momento final de sua escrita, Kafka mencionará um "canto à incolumidade da construção" e Josefina, a ratinha, é uma cantora. Em todos esses modos, a escrita, que se desdobra em uma abundância de modos dispersivos, retira o especifica mente literário da sua zona de conforto ao ir para além dele ou ficando-lhe aquém, em todo caso, levando-o a seu fora, não se deixando identificar com ele. Descobrar a obra chamada de literária a partir das múltiplas escritas, com seus relatos, a princípio, autobiográficos, sem as marcas habituais do que é reconhecido majoritariamente como literatura, é, certamente, uma das operações do que se chama Kafka, com a vida que vive adentrando a escrita e a escrita adentrando a vida que vive, confundida s em uma zona potencial. (texto da editora).

ALBERTO PUCHEU KAF KA POE TA O leitor desavisado poderia pressupor que Alberto Pucheu entrou na obra de Franz Kafka para encontrar, e se manter, dentro das fronteiras daquilo que lhe interessa, notoriamente: a poesia. Engano maior. Os quatros ensaios que compõem este livro testemunham justamente uma construção que coloca em xeque o próprio ato de leitura, e não haveria lugar mais afim a essa construção do que a obra kafkiana. Certamente o que estará em jogo aqui não será toda a obra kafkiana, nem toda a sua fortuna crítica, embora ela seja amplamente revisitada, nem mesmo seus textos mais extensos e mais estudados, mas sim sua “prosa miúda” como ponto de tensão máxima do fragmento como impossibilidade de totalidade e crítica do totalitarismo. A “prosa miúda”, que emerge desse breve livro, afasta-se da presunção representativa do monumento, coloca em jogo a brevidade e solidão do poema, inquieta o saber, desaloja o literário de sua morada. Se ameaçado pela tuberculose e pelo totalitarismo, o corpo e o texto de Kafka não admitiam outro sentido a não ser o da ameaça de aniquilação, talvez a nossa tarefa ética seja, através de uma violenta torsão, dar à construção a sua dimensão metafórica, na medida em que como literatura estará sempre fora de si, à espera de uma escavação que, para afastar-se da totalidade do Um destruidor, toma a pena para nomear o horror que insiste em fazer calar a linguagem, portanto, ao entrar na obra de Kafka. Esse limite indecidível entre o literário e o autobiográfico não é passível de resolução: o vivido não dá sentido à obra e nem a obra dá KAF KA POE TA ALBERTO PUCHEU KAF KA POE TA azougue, 2015 Coordenação editorial e projeto gráfico Sergio Cohn Capa Tiago Gonçalves e Sergio Cohn, sobre grafite de Pedro Themoteo, “FK-AW homenagem”, 2015 Assitência editorial Barbara Ribeiro Revisão Barbara Ribeiro Equipe Azougue Amanda Cinelli, Barbara Ribeiro, Juliana Travassos, Rafaela dos Santos, Tiago Gonçalves e Welington Portella CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P973k Pucheu, Alberto, 1966Kafka poeta / Alberto Pucheu. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Azougue, 2015. 140 p. : il. ; 19 cm. Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-7920-168-4 1. Kafka, Franz, 1883-1924. 2. Ensaio alemão. I. Título. 15-19498 CDD: 833 CDU: 821.112.2-3 26/01/2015 26/01/2015 [ 2015 ] Beco do Azougue Editorial Ltda. facebook.com/azougue.editorial RuaVisconde de Pirajá, 82, www.azougue.com.br subsolo, loja 115 - Rio de Janeiro - RJ azougue - mais que uma editora, Tel/Fax 55_21_2259-7712 um pacto com a cultura KAFKA sEm ABRigO, POR FLAViA TROCOLi 7 A ViBRAÇÃO mAis QUE HUmANA (do pré-literário ou da anteliteratura) 17 KAFKA POETA 59 A iNCOLUmiDADE DO CANTO (das s-obras) 83 POR UmA HisTÓRiA DOs ERROs PRODUTiVOs DA LiTERATURA E DA FiLOsOFiA (o caso de uma nota de pé-de-página de Deleuze e guattari sobre Kafka) 111 REFERÊNCiAs BiBLiOgRÁFiCAs 129 sOBRE O AUTOR 137 KAFKA sEm ABRigO por Flavia Trocoli “O poeta mimetiza-se nos objetos que sofrem”. (Marthe Robert) “A construção não lhe disse tudo”. (Sigmund Freud) O leitor desavisado poderia pressupor que Alberto Pucheu entrou na obra de Franz Kafka para encontrar, e se manter, dentro das fronteiras daquilo que lhe interessa, notoriamente: a poesia. Engano maior. Os quatros ensaios que compõem este livro testemunham justamente uma construção que coloca em xeque o próprio ato de leitura, e não haveria lugar mais afim a essa construção do que a obra kafkiana. Certamente o que estará em jogo aqui não será toda a obra kafkiana, nem toda a sua fortuna crítica, embora ela seja amplamente revisitada, nem mesmo seus textos mais extensos e mais estudados, mas sim sua “prosa miúda” como ponto de tensão máxima do fragmento como impossibilidade de totalidade e crítica do totalitarismo. A“prosa miúda”, que emerge desse breve livro, afasta-se da presunção representativa  do monumento, coloca em jogo a brevidade e solidão do poema, inquieta o saber, desaloja o literário de sua morada: Toda essa abundância de modos dispersivos de escrita quer se expandir ao extremo. A cada momento, ela retira o especificamente literário de sua zona de conforto ao, extrapolando-o repetidamente, ir para além dele ou, talvez melhor, ficando-lhe aquém, não chegando propriamente até ele, em todo caso, levando-o a seu fora, não se deixando identificar com ele. Leitura sem abrigo, aos fragmentos kafkianos lidos por Alberto Pucheu, estenderia aquilo que Günther Anders formulou sobre as esculturas de Auguste Rodin: “Aqui, elas encontraram lugar, mas como náufragos encontram lugar e são salvos por um barco também perdido no oceano.”1 Logo nas primeiras linhas, foi preciso que se considerasse a relação entre escrita e salvação: Agarrar-se, é bom que se diga, a um mínimo, agarrar-se a um quase nada, agarrar-se, para usar uma imagem da tradição, a um mastro que, como Kafka mesmo o trabalha, desmitologizando 1 No original: “Ici, elles ont trouvé place, mais comme des naufragés trouvent place et sont sauvés par une barque elle-même perdue dans l’océan”. In: ANDERS, Günther. Sculpture sans abri: étudesur Rodin. Paris: Éditions fario, 2013. p. 25.  Ulisses, desencantando o canto, destradicionalizando a tradição e desimaginando a imagem, não é mais do que um meio insuficiente, inocente e infantil de alguém reconhecido como possuidor de muitas astúcias, não é mais do que um meio que está ali simplesmente para arrebentar, não é mais do que, para usar uma só palavra, nada. [...] Com a escrita, ficaria Kafka – sem Deus, sem deuses, sem mito, sem canto das sereias, sem tradição impositiva, sem conhecimento, sem saber, sem mundo, sem pátria, sem terra, sem guerra, sem heroísmo, sem retorno, sem casa, sem imagem, sem qualquer voz consoladora que desse uma esperança de pertencimento e de reencontro ao homem. Eis a escrita, que é “desaprender a falar”, como modo de despossesão, e quantos pontos de contato não haveria entre a despossesão e a fórmula do neutro – nem, nem – de Maurice Blanchot? A escrita como testemunho do vazio, eis uma das portas, ou melhor seria dizer fendas, de entrada deste livro. Ou antes, se a escrita já é um produto seria preciso desalojá-la de seu lugar de tarefa terminada para o lugar de tarefa interminável. Escavação sem origem e sem fim. A construção, como escavar e escrever, coloca à crítica a questão da indiscernibilidade entre o mundo e aquele que vive  nele, entre a construção e o corpo de quem escava, entre a obra e seu executor, entre a sobrevivência do labirinto e a manutenção de uma sobrevida, diz a voz narrativa: Será que eu esperava, como proprietário da construção, ter supremacia sobre todo aquele que se aproximava? Justamente por ser possuidor desta grande obra suscetível é que eu permaneci inerme contra qualquer ataque mais sério. A felicidade da posse me estragou, a vulnerabilidade da construção me tornou vulnerável, os ferimentos dela me doeram como se fossem meus.2 A voz narrativa ata a propriedade a uma radical expropriação. A obra é tão vulnerável como o corpo. A construção como a vida. Como a literatura de Kafka constantemente ameaçada pela destruição, quer seja pelo fogo, quer seja pelo não-poder-escrever. Há uma longa tradição que ata o escavar ao escrever, em que no escavamento se pode encontrar a palavra mágica que retira a mortalha do esquecimento e faz os resíduos se tornarem poesia da recordação (entre Freud e a Lacan, por exemplo, haverá uma hiância intransponível entre uma arqueologia que reconstitui e uma lituraterra em que o vazio é escavado pela escrita). Na 2 KAFKA, Franz. Um artista da fome/A construção. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.102.  construção de Kafka, as metáforas arqueológicas não são admitidas, não há profundeza, não há palavra mágica, nem recalque, nem recordação, nem esquecimento, nem reconstituição. Há o buraco, o tormento do labirinto, a atenção desmedida ao ruído do animal que a qualquer momento poderá aniquilá-lo e que, no entanto, nunca o escutou, e nessa não escuta do outro, do inimigo, tudo continua inalterado. Se no meio do caminho de uma história que não admite metáforas e alusões, a palavra perdeu sua dimensão mágica, aquela que fez Combray sair de uma xícara de chá, é para colocá-la ao lado dos sem-esperança. Ninguém mais do que eles, os sobreviventes privados de esperança, sabem que a literatura é esse buraco, sem fundo, sem essência, sem autodeterminação, à espera do inimigo que lhe dá existência transitória através do ato de leitura. Nas palavras de Jacques Derrida, leitor de Blanchot, ambos assombrados pela fantasma de Kafka: “Paixão” conota o padecimento de um limite indeterminável ou indecidível, lá onde qualquer coisa, qualquer X, por exemplo, a literatura, deve tudo sofrer ou suportar, padecer de tudo precisamente porque ela não é ela mesma, não tem essência, mas somente funções. Eis a hipótese que gostaria de pôr à prova e submeter à discussão com vocês. Não há essência nem substância da literatura: a literatura não é, não existe, não se demora na  identidade de uma natureza ou ainda de um ser histórico idêntico a ele mesmo.3 Se ameaçado pela tuberculose e pelo totalitarismo, o corpo e o texto de Kafka não admitiam outro sentido a não ser o da ameaça de aniquilação, talvez a nossa tarefa ética seja, através de uma violenta torsão, dar à construção a sua dimensão metafórica, na medida em que como literatura estará sempre fora de si, à espera de uma escavação que, para afastar-se da totalidade do Um destruidor, toma a pena para nomear o horror que insiste em fazer calar a linguagem, portanto, ao entrar na obra de Kafka: Está-se profundamente imerso em uma ética ou em uma política da escrita e da vida, em uma ética ou em uma política do que se vive na escrita e fora dela, em uma ética ou em uma política do que se escreve da vida, em uma ética ou em uma política desse intervalar entre o vivido e o não vivido, em uma ética ou em uma política da autobiografia, no sentido mais amplo que esse termo pode ter. No entanto, esse limite indecidível entre o literário e o autobiográfico não é passível de resolução: o vivido não dá sentido à 3 DERRIDA, Jacques. Demorar – Maurice Blanchot. Trad. Flavia Trocoli e Carla Rodrigues. No prelo.  obra e nem a obra dá sentido ao vivido, e não somente porque uma escrita no trauma e do trauma diz mais de um impossível de viver, mas também porque o que mais interessa é o impasse que se coloca na própria metamorfose da vida em obra e da obra em vida, em outras palavras, interessa esse ponto em que a imagem é a não resposta, a própria nulificação do seu sentido: O veredicto que confunde suicídio e assassinato, Josefina cujo canto está mais perto do ruído, Um artista da fome cuja arte exige o apagamento do artista: “Nessa ‘vibração mais que humana’, o viver e o narrar participam do complexo cruzamento das experiências que resguardam sua inapropriabilidade ou inacessibilidade”. Talvez seja, então, o poema o lugar que abrigará com mais propriedade a inapropriabilidade e a inacessibilidade dessas imagens que interditam a fala, o sentido e a própria vida. Tal qual pedra lançada à água, a questão em torno da “prosa miúda” se espraia em direção à impossibilidade de narrar, ao poema e ao canto. No entanto, como a distância entre essas duas aldeias vizinhas que, no tempo de uma vida, nunca pode ser transposta, o poema também não será uma categoria asseguradora, na verdade, ele vem problematizar a própria estranheza da língua, uma espécie de não domínio da língua maior para passar à invenção de uma língua menor que gagueja, balbucia, paradoxalmente, inarticulada na limpidez da sintaxe kafkiana: Se Kafka escreve “poemas”, é, justamente, por escrever o que o nome Odradek evoca, mas não  apenas no momento da nomeação. Enquanto nome para o poema, “Odradek” coloca seus leitores fora da língua ou diante de uma língua muda, desconexa, ilegível e sem sentido, levando-nos a adentrá-la e, uma vez nela, não sem hesitações, perder toda e qualquer representação, que não mais se impõe, antes, depõe-se. Paradoxalmente, é preciso nomear essa perda e, ainda mais, ao invés de calá-la, não parar na pura nomeação do que se perdeu, mas se deixar ser tomado por uma gramática contaminada pela negação de si própria, deixar-se ser tomado por uma língua contaminada por esse fora, por essa mudez, por essa ilegibilidade, por essa desconexão. Segundo Alberto Pucheu, o poema é o lugar da (im)potência maior, como crítica ao poder instituído, e Kafka e sua obra estão antes do nascimento e depois da morte, em uma dupla resistência à vida e à obra em seus contornos bem definidos pelas instâncias do poder. Assim, se do lado do leitor se procura a entrada, de outro, do lado de quem escava, como é o caso do animal de A construção, ou de quem escreve, procura-se uma saída, isso posto, a pergunta é certeira: “há encontro possível?”. O canto, ou aquilo que sobrou dele mesmo antes de Auschwitz, será o lugar que assinala esse encontro sempre faltoso, encontro com a perda da palavra.  Se, em outro lugar, Roberto Machado afirmava que o livro de Alberto Pucheu era mais com ou a partir de Agamben do que sobre Agamben4, diria que se trata aqui de um livro sobre como ler Kafka, sobre como construir, a duras penas e não sem uma certa alegria (ao mesmo tempo a da solidão e a da amizade5), uma saída para transmitir, em negativo, a inacessibilidade e a incomunicabilidade. Trata-se aqui de nomear uma perda. Trata-se aqui de delinear uma certa relação com o objeto perdido, isso dito, poderia comparar esse movimento a um interminável trabalho de luto, mas sem deixar de alinhá-lo ao lado da beleza (como barreira última diante do horror) e da transmissão, afinal, tal como a literatura, e sua paixão do aquém ou da indeterminação, em Kafka: “Também aquela saída não me salva, como provavelmente ela não me salva em caso algum, antes me arruína, entretanto é uma esperança e eu não posso viver sem ela.”6 Rio, janeiro de 2015. 4 Apud.: PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben: Poesia, filosofia, crítica. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2010. 5 Durante o ano de 2014, dividi com Pucheu dois cursos sobre Kafka, um na graduação e outro na pós-graduação, mais do que um exercício intelectual, essas manhãs na Faculdade de Letras da UFRJ me colocaram diante de um Kafka diferente daquele que eu construíra até então. Mais do que uma apresentação de livro, registro aqui uma prova de amizade e de gratidão pela partilha do pensamento crítico vivo. A isso chamaria também de salvação. 6 KAFKA, Franz. Um artista da fome/A construção. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.  A ViBRAÇÃO mAis QUE HUmANA (do pré-literário ou da anteliteratura) “E essa multidão em mim, bem ao fundo, dificilmente visível”. (Kafka) “A partir de certo ponto não há mais retorno. É este o ponto que tem de ser alcançado”. (Kafka) “Que se morda a própria vida ao invés de se morder a língua” (Kafka) “Meus romances são eu, minhas histórias sou eu” (Kafka) Romances, novelas, contos, prosas miúdas, aforismos, fragmentos, correspondências, diários, rabiscos, desenhos, esboços abandonados, relatos de sonhos, narrativas inacabadas, capítulos desordenados, capítulos incompletos, rascunhos sem títulos,  descrição de processos de escrita, observações de viagens, apontamentos circunstanciais, versos sem poemas, poemas, poemas em prosa, projetos de cartas, cartas nunca enviadas, cartas de advogado, conferência, parábolas, balanços, enumerações, inventários, apólogos, esquemas para artigos, projetos, citações, listas, listas comparativas, regras gerais (para uma Comunidade de Trabalhadores sem Posses), autobiografia alheia, comentários sobre livros, peças, óperas, conferências e artistas de modo geral, leituras ao vivo para amigos ou para um público surpreendido, bilhetes de conversas de quando, impossibilitado de falar, internado, estava prestes a morrer... Toda essa abundância de modos dispersivos de escrita quer se expandir ao extremo. A cada momento, ela retira o especificamente literário de sua zona de conforto ao, extrapolando-o repetidamente, ir para além dele ou, talvez melhor, ficando-lhe aquém, não chegando propriamente até ele, em todo caso, levando-o a seu fora, não se deixando identificar com ele. Esse escrever de começos e destroços, esse escrever obsessivamente necessário, esse escrever de quem é um “fanático da escrita” (como, no feminino, diz de uma mulher em seu diário) (KAFKA: 1984, p. 60), se esforça também em, sob as mais diversas modalidades desordenadas e em desagregação, dar o mínimo de consistência ao insólito em que se vive ou ao que, no vivido, só é possível ao modo de um não vivido, já que se é tragado por um irrealizável ao qual, entregando-se a ele, não se tem como não pertencer. Dar o mínimo de consistência ao insólito do não vivido  que acompanha todo vivido se confunde com fazer a inconsistência afetar ao máximo o texto, tornando-o, ele mesmo, insólito, o mais próximo do irrealizável. Não tendo Kafka por referência, a máxima de Emmanuel Levinas, “As grandes experiências de nossa vida jamais foram, propriamente dizendo, vividas” (LEVINAS: 1994, p. 211), parece ter sido composta especialmente para ele. Em sua relação com a escrita, está, de fato, sua grande experiência vivida, desde a qual, misturando-se a ela a ponto de não se conseguir mais distingui-las com clareza, se abre a força do não vivido. O excessivo dessa turbulenta propagação discursiva pré-literária, do que rompe a fronteira entre o literário e sua anterioridade, entre o literário e seu fora, que tanto concerniria, em um primeiro instante, ainda que inconscientemente, ao seu e ao nosso tempo como a “nervosidade de nossa época” (KAFKA: 1984, p. 262), beira, em Kafka, uma tensão limítrofe entre a escrita e o que se vive, entre o escrever e o viver. É significativo que, como nos relata Gustav Janouch, Kafka, não sem algum exagero explicitado em seguida por ele mesmo, denomine esse estado pré-literário de seus escritos de “notas para uso pessoal”, “brincadeiras”, “documentos pessoais”, “testemunhos de minha solidão”, dizendo que quem o torna “literatura”, quem, em algum grau, institucionaliza sua escrita, retirando-a de sua ambiência pré-literária e integralmente comprometida com sua vida, são seus amigos: “Max Brod, Felix Weltsch, todos os meus amigos se apoderam regularmente de tal ou qual coisa que escrevi, e em seguida me surpreendem chegando  com um contrato de edição em boa e devida forma. Não quero causar-lhes dificuldades e é assim que, para acabar, se publicam coisas que de fato só eram notas para uso pessoal, ou brincadeiras. Documentos pessoais, atestando minha fraqueza de homem, estão impressos e mesmo vendidos, porque meus amigos, a começar por Max Brod, encasquetaram torná-los literatura e porque eu, por meu lado, não tenho força para destruir esses testemunhos de minha solidão” (JANOUCH: 1993, p. 30). Sobre esse elemento pré-literário dos testemunhos de sua solidão que seriam todos os seus escritos, no mesmo livro, mais à frente, ainda segundo Janouch, Kafka afirma: “Toda arte verdadeira é documento, testemunho” (JANOUCH: 1993, p. 121). Testemunho, portanto, e documento, tudo o que ele escreveu, toda a sua arte, ou, melhor dizendo, toda sua anteliteratura. A importância da pregnância de diversos modos de escrita, inclusive dos que são habitualmente chamados de autobiográficos, arrasta a exclusividade do que seria o literário (em qualquer uma de sua positividade) para uma zona periférica, deixando um centro vazio que, motor de todo escrever, questionando o próprio conceito histórico de literário, não permite, com sua força centrífuga, hierarquizar os modos de escrita em turbilhão, deixando ao leitor o deslizamento do interesse conforme as suas maneiras específicas de leitura. Logo no começo de seu livro sobre as cartas de Kafka a Felice, Elias Canetti afirma: “Li aquelas cartas com uma emoção tamanha como havia anos nenhuma obra literária me causava” (CANETTI: 1988, p. 8). Desobrar a  obra chamada de literária a partir das múltiplas escritas, com seus relatos, a princípio, autobiográficos, sem as marcas habituais do que é reconhecido majoritariamente como literatura, é, certamente, uma das operações do que se chama Kafka, com a vida que vive adentrando a escrita e a escrita adentrando a vida que vive, confundidas em uma zona potencial. Para Kafka, leitor, só para mencionar poucos, dos diários de Goethe1, das cartas de Kleist, de Flaubert, de Dostoievski, de Strindeberg, de Byron, de Goethe, de Beethoven, de Grillparzer, de Hebbel, de Gogol, de Van Gogh e das memórias de Karl Stauffer-Bern, da condessa de Thurheim e do general Marcellin de Marbot, de biografias de Dostoievski e Schopenhauer e que planejou escrever uma autobiografia e um livro biográfico sobre sua relação de amizade com Max Brod, os diários e as cartas se fazem os lugares por excelência em que essa tensão está de antemão colocada, por ser ele, o entrelugar do diário e das cartas como paradigma da tensão entre o escrever e o viver, por ser ele, o paradigma do entrelugar do escreviver, o que não poderá ser abandonado. Sobre os diários, Max Brod realiza importantes observações: “Os diários têm para Kafka um significado que não é apenas autobiográfico nem somente uma ajuda para ele 1 Mostrando que a tarefa de ler (ao menos, de ler um diário) está submetida à de escrever (ao menos, de escrever um diário), em 29 de setembro de 2011, Kafka escreve em seu diário: “Diário de Goethe. Uma pessoa que não tem diário está em uma posição falsa em relação ao diário de um outro” (KAFKA: 1984, p. 83). Em sua biografia do amigo, Max Brod informa que: “Kafka preferia ler biografias e autobiografias a qualquer outra coisa” (BROD: 1978, p. 111).  se assenhorear de sua alma; entre as observações de conteúdo pessoal, há as peças que ele depois colocará em seu primeiro livro, Contemplação. Muitas dessas peças escolhidas por ele são, de fato, substancialmente indistinguíveis das outras entradas do diário; não sabemos por que o autor considerou umas mais valorosas para publicação, em detrimento de outras./ No contexto do diário, há também muitos fragmentos de contos que seguiram até certo ponto; eles se amontoam até que, subitamente, a primeira história terminada de tamanho considerável, O veredicto, jorra como um jato de chamas” (BROD:1978, p. 106); “Em seu diário, abundam sonhos, começos de contos, esboços. Tudo parece estar ligado em uma tremenda fermentação” (BROD: 1978, p. 145). Estendendo essa linha de compreensão dos diários de Kafka em suas singularidades, em uma nota de pé de página, Blanchot elucida: “Kafka escreveu tudo o que lhe importava, acontecimentos de sua vida pessoal, meditação sobre esses acontecimentos, descrição de pessoas e lugares, descrição de seus sonhos, relatos iniciados, interrompidos, recomeçados. Portanto, não é apenas um ‘Diário’ como se entende hoje em dia, mas o próprio movimento da experiência de escrever, o mais próximo de seu começo e no sentido essencial que Kafka foi levado a dar a essa palavra. É sob essa perspectiva que o diário deve ser lido e interrogado” (BLANCHOT: 1987, p. 51). O diário como “uma tremenda fermentação” do “movimento da experiência do escrever” em seu “sentido essencial”, mas o escrever em seu “sentido essencial” como “uma tremenda fermentação” do movimento da experiência de  vida. Da escrita à vida e da vida à escrita, a via é certamente de mão dupla, ou, mais do que isso, de encruzilhada, havendo tanto as muitas intensidades do vivido na escrita quanto as da escrita no vivido, sem que obviamente tenha qualquer cabimento buscar uma quantificação ou uma suposta proporcionalidade de um no outro ou de outro no um. Desde quando começa a escrever seu diário, já na primeira entrada, possivelmente de 1909, o vínculo entre a escrita e o vivido está colocado: “Escrevo isso certamente impelido pelo desespero que me causa meu corpo e o porvir desse corpo” (KAFKA: 1984, p. 4). A seguinte, a primeira de 1910, é iniciada de maneira semelhante: “Enfim, depois de cinco meses de minha vida, durante os quais não pude escrever nada com o que eu ficasse satisfeito, [...] a ideia me vem de me endereçar de novo à palavra. [...] Meu estado não é de infelicidade, mas não é tampouco de felicidade, não é nem de indiferença nem de fraqueza nem de fadiga nem de interesse por outra coisa, mas, então, é de quê? O fato de não o saber está, sem dúvida, ligado à minha incapacidade de escrever” (KAFKA: 1984, p. 6). Em 5 de setembro de 1911: “É imperdoável viajar – e mesmo viver – sem tomar notas. Sem isso, o sentimento mortal de escoamento uniforme dos dias é impossível de suportar” (KAFKA: 1984, p. 14). Em 2 de outubro de 1911, na primeira vez em que menciona a insônia: “Noite de insônia. É a terceira seguida. [...] Creio que esta insônia se deve unicamente ao fato de que escrevo” (KAFKA: 1984, p. 88-89). Em 9 de dezembro de 1911, repetidamente: “Tenho, neste momento,  e já a tive esta tarde, uma grande necessidade de extirpar minha ansiedade descrevendo-a inteiramente e, mesmo que ela venha das profundezas de meu ser, de fazê-la passar para a profundeza do papel ou de descrevê-la de tal maneira que o que eu teria escrito pudesse ser inteiramente incluído em mim. Isso não é uma necessidade artística” (KAFKA: 1984, p. 177). Os exemplos são inúmeros. Em 16 de dezembro de 1910, os diários são, para Kafka, a única possibilidade a que, em sua vida, o escritor terá para se agarrar: “Não abandonarei mais este diário. É aqui que se faz preciso que eu me agarre, porquanto apenas aqui eu o posso fazer” (KAFKA: 2000, p. 28)2. Agarrar-se, é bom que se diga, a um mínimo, agarrar-se a um quase nada, agarrar-se, para usar uma imagem da tradição, a um mastro que, como Kafka mesmo o trabalha, desmitologizando Ulisses, desencantando o canto, destradicionalizando a tradição e desimaginando a imagem, não é mais do que um meio insuficiente, inocente e infantil de alguém reconhecido como possuidor de muitas astúcias, não é mais do que um meio que está ali simplesmente para arrebentar, não é mais do que, para usar uma só palavra, nada. Em A escritura é um combate contra os deuses, Danielle Cohen -Levinas escreve: “Seu combate [o de Kafka] contra os deuses de 2 Enquanto a edição francesa traduz a passagem como “Je ne quitterai plus ce Journal. C’estl’àqu’il me faut être tenace, carje ne puis l’être que là” (KAFKA: 1984, p. 12), a brasileira citada se aproxima mais da americana: “I won’t give up the diary again. I must hold on here, it is the only place I can” (KAKFA: 1976, p. 73). Por interesse estratégico para a continuação do texto, utilizo-me, exclusivamente nessa passagem, da edição brasileira, parcial, dos diários, privilegiando, nas outras, a francesa.  Ulisses e o Deus de Abraão havia de alguma forma migrado para o outro lado da escrita, de uma vez por todas, sem esperança de encontrar uma phoné consoladora, o signo precisamente de nossa adesão ao mundo dos humanos onde ele nunca tinha se sentido completamente em casa” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 63). Combatendo, com a escrita, e apenas com ela, o Deus, os deuses, o mito, o canto das sereias, o canto do conhecimento, o canto do saber de tudo que se passa na vida entre os homens e os deuses, o canto do mundo, o canto da terra ou da pátria vitoriosa, o canto da guerra, o canto da esperança, o canto da consolação, o canto do retorno, o canto do reencontro, o canto do pertencimento, o canto da casa, o canto do humano... Com a escrita, ficaria Kafka – sem Deus, sem deuses, sem mito, sem canto das sereias, sem tradição impositiva, sem conhecimento, sem saber, sem mundo, sem pátria, sem terra, sem guerra, sem heroísmo, sem retorno, sem casa, sem imagem, sem qualquer voz consoladora que desse uma esperança de pertencimento e de reencontro ao homem. Uma escrita de uma ausência de voz, uma escrita da negação de sua própria voz, uma escrita, literalmente, da infância que nos acompanha por todo o tempo (não do que se chama de infantil enquanto o que é tomado como característica de uma época específica, mais ingênua, a ser superada, de nossa vida ou mesmo, como no caso do atributo dado por Kafka a Ulisses, de nossa tradição). A respeito dessa escrita da infância, ou seja, dessa escrita que, a todo momento, recobra sua ausência de voz, sua impossibilidade mesma de falar ou de escrever, simultânea  à impossibilidade de dominar a linguagem mais trivial da comunicação cotidiana, em A carta ao pai, há um dos momentos de maior intensidade da escrita kafkiana: “A impossibilidade da relação tranquila teve uma outra consequência, muito natural no fundo: eu desaprendi a falar. Por certo eu não teria sido, sendo outro o contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem humana corrente e comum. Mas tu me proibiste a palavra desde cedo, tua ameaça: ‘Nenhuma palavra de contestação!’ e a mão erguida para sublinhá-la me acompanham desde então. Adquiri junto de ti – és, quando se trata de tuas coisas, um orador excelente – um modo de falar entrecortado, gaguejante, e também isso era demais para ti, de modo que por fim calei, primeiro por teimosia talvez, mais tarde porque diante de ti eu não conseguia pensar nem falar”(KAFKA: 2004, p. 34). Com a escrita, nada, senão a negatividade de um despertencimento e de um desancoramento extremo de alguém que se vê como “absolutamente vazio” (KAFKA: 1984, p. 177). Agarrar-se, então, à escrita para, ao menos, agarrando-se a nada, agarrandose ao vazio, dar-lhe um mínimo de densidade ou de matéria com suas palavras e sintaxes, que desejam ser destruídas até não se ter mais em que se agarrar. De Kafka, esse para quem “o ponto mais próximo de mim me parece inacessível” (KAFKA: 1984, p. 210), poderia ser dito, de alguma maneira, o que ele diz de um colecionador de Linz: “Ele não fala absolutamente quando ele fala” (KAFKA: 1984, p. 170). Talvez seja por conta desse falar para não falar, desse ficar de Kafka tão somente com o nada da escrita e com a escrita  de nada, com esse vazio da vida e da escrita e com essa escrita de seu vazio, com essa escrita e com esse pensamento que forçam uma vida a suportar toda e qualquer ausência de fundamento, que Milena Jesenská, um dos amores de Kafka, escreveu sobre ele, em carta para Max Brod, palavras tão certeiras e comoventes: “Mas ele nunca buscou se colocar ao abrigo das coisas. Ele é sem refúgio, sem teto. Por isso está exposto a tudo, contrariamente a nós, que estamos protegidos. Dir-se-ia, um homem nu em meio àqueles que estão vestidos” (PELBART: 2011, p. 9). Os dois bilhetes testamentos deixados a Max Brod, em que manifestava seu[s] “último[s] desejo[s]” iconoclastas ao amigo, iriam, igualmente, na direção do nada a que se agarrar, do dizer para dizer o vazio, do dizer para não dizer, do desabrigo, do sem refúgio, do sem teto, da exposição a tudo, da desproteção e da nudez? Parece que sim, parece que eles foram escritos em direção ao enigma da nudez de quem não tem em que se agarrar. Escrito anteriormente a 1921, com um papel já amarelecido quando encontrado pelo amigo testamenteiro, a breve carta mais antiga dizia: “Caro Max, talvez desta vez eu não consiga me recuperar. Pneumonia, após um mês de febre pulmonar, dá quase no mesmo; e mesmo estas linhas não são capazes de evitá-lo, embora haja aqui uma certa energia. Para esta eventualidade, portanto, eis aqui meu último desejo com relação a tudo o que escrevi: de todos os meus textos, os únicos livros que devem permanecer são: O processo, O foguista [América], A metamorfose, Colônia penal, Um médico rural e o conto “Um artista da fome”. Podem  permanecer alguns exemplares de Contemplação. Não quero dar a ninguém o trabalho de triturá-los; mas nada deste volume deve ser novamente editado. [//] Quando digo que estes cinco livros e o conto podem permanecer, não significa meu desejo de serem reeditados e legados à posteridade. Ao contrário, se desaparecerem por completo, isso me fará mais feliz. Apenas, já que existem, não quero impedir alguém de querer mantê-los. Mas todo o restante do que escrevi (seja em jornais, manuscrito ou cartas), tudo sem exceção, quer seja descoberto ou requisitado aos destinatários... – todas essas coisas, sem exceção, e especialmente as não lidas (não posso proibi-lo de dar uma espiada, embora prefira que não o faça, mas, de qualquer modo, a mais ninguém isso é permitido) – todas estas coisas, sem exceção, devem ser queimadas, e imploro-lhe que o faça o quanto antes. Franz” (DIAMANT: 2013, p. 103-104). Pouco tempo depois, em 1921, o último pedido, mais econômico e incisivo do que o anterior, para não deixar nenhum de seus escritos lhe sobreviver: “Caríssimo Max, meu último pedido: tudo o que deixo para trás (em minha estante, no armário de roupa de cama e em minha escrivaninha, tanto em casa quanto no escritório, ou em qualquer outro lugar onde possa existir algo ou que seus olhos virem) sob a forma de diários, manuscritos, cartas (minhas e de outros), esboços, e assim por diante, devem ser queimados sem serem lidos; isso se aplica também a todos os escritos e esboços que você e outros venham a possuir; e, em meu nome, solicite o mesmo aos demais. Se estes não quiserem lhe entregar suas cartas, que ao menos prometam queimá-las. Atenciosamente,  Franz Kafka” (DIAMANT: 2013, p. 103). Importante lembrar que, além de o próprio escritor dizer que “hoje, queimei muitos dos velhos papéis odientos” (KAFKA: 1984, p. 245) e de em outubro de 1921 ter dado seus cadernos para Milena com o intuito, talvez, mesmo inalcançável, de se sentir mais livre, tanto Max Brod nos relata que encontrou, entre os pertences de Kafka após sua morte, alguns cadernos que possuíam apenas a capa, com todas as folhas arrancadas, quanto Dora Diamant, a mulher amada com quem, entre o fim de 1923 e o começo de 1924, viveu os últimos meses de sua vida, em um dos mais belos depoimentos sobre o escritor, informa-nos que “[...] ele queria queimar tudo o que havia escrito. Eu respeitei sua vontade e, diante de seus olhos, enquanto ele repousava, doente, em sua cama, queimei alguns de seus textos. [...] Fui repreendida por ter queimado alguns escritos de Kafka. Eu era muito jovem naquela época e os jovens vivem no instante, pouco no futuro” (DIAMANT: 1998, p. 231). É-me admirável a postura de Max Brod em não queimar os escritos de Kafka, salvando-os, à revelia do pedido do amigo escritor; é-me igualmente admirável a postura de Dora, queimando alguns dos escritos de Kafka, a seu pedido, a pedido do escritor tão amado, extinguindo-os. Ambos admiráveis, o gesto da amizade e o gesto do amor. Antes das solicitações para que Max Brod destruísse seus escritos, e mesmo depois de tais bilhetes, mostrando as diversas forças díspares que atuam nele mantidas em ação pela importância maior da relação entre o escrever e o viver, o imperativo de preservar, a todo custo, a escrita – com a qual ele se confunde –,  de preservar a literatura – que ele diz somente ser –, do que dela retira sua força, ou seja, desde cedo, do trabalho e da família. Isso é certo: contra o trabalho e a família, preservar, a todo custo, o gesto de escrever, não o resultado do que foi escrito, preservar, acima de tudo, a possibilidade do dizer, não o dito, que é para se extinguir, preservar, a qualquer preço, o gesto do escrever, não a obra, que se torna acidental e muito menos necessária do que a ação do escrever, preservar, mais que tudo, não a obra que viria enfim à sua presença, mas a performance que lhe antecede. Em seu livro sobre Kafka, Marthe Robert afirma que, em 1918, ele “Escreve de Zurau, a propósito do pedido de uma atriz que queria fazer uma leitura de extractos das suas obras em Frankfurt: ‘Não envio nada para Frankfurt; não vejo de modo nenhum em que é que isso me pode interessar. Se enviar qualquer coisa, fá-lo-ei unicamente para satisfazer a minha vaidade, se não envio nada, é ainda a vaidade que me inspira, mas não unicamente ela, o que é melhor. As passagens que poderia enviar não significam absolutamente nada para mim, não respeito senão o instante em que as escrevi...’” (ROBERT: 1963, p. 40)3. 3 Ao menos para si mesmo, sabe-se da opinião de Kafka sobre alguns de seus textos. Deles, afirma, por exemplo: “Eu li A metamorfose e a acho ruim. Estou talvez realmente perdido, a tristeza dessa manhã retornará, não poderei resistir por muito tempo, ela me retira toda esperança”(KAFKA: 1984, p. 313); “Grande repugnância a respeito de A metamorfose. Fim ilegível. Imperfeito praticamente até o fundo” (KAFKA,: 1984, p. 332); “Comecei a escrever coisas que saem mal [O processo]. Mas, apesar da insônia, das dores de cabeça e de minha incapacidade geral, não cederei” (KAFKA: 1984, p. 358); “Isso que escrevo [O processo] não me parece ter nenhuma independência, eu o vejo como um reflexo de textos antigos bem-sucedidos” (KAFKA: 1984, p. 365). Claro que tais depoimentos em seu diário requisitariam, sobre o assunto, uma investigação  O caráter parabólico, mas sem doutrinas, e paradoxal do desejo de Kafka de destruição dos próprios escritos foi salientado tanto por Benjamin quanto por Judith Butler. O primeiro afirmou: “Kafka dispunha de uma capacidade invulgar de criar parábolas. Mas ele não se esgota nunca nos textos interpretáveis e toma todas as precauções possíveis para dificultar essa interpretação. É com prudência, com circunspecção, com desconfiança que devemos penetrar, tateando, no interior dessas parábolas. Devemos ter presente sua maneira peculiar de lê-las, como ela transparece na sua interpretação da parábola citada. Precisamos pensar também em seu testamento. Suas instruções para que sua obra póstuma fosse destruída são tão difíceis de compreender e devem ser examinadas tão cuidadosamente como as respostas do guardião da porta, diante da lei. Cada dia de sua vida confrontará Kafka com atitudes indecifráveis e com explicações ininteligíveis, e é possível que pelo menos ao morrer Kafka tivesse decidido pagar seus contemporâneos na mesma moeda” (BENJAMIN:1987, p. 149-150). Na mesma linha, Judith Butler afirma, com outras palavras: “Curiosamente, Kafka não pede de volta seus escritos para que ele os possa destruir pessoalmente. Pelo contrário, ele deixa Brod com a charada. Sua carta para Brod é uma maneira de dar todos os trabalhos para Brod e de pedir que ele seja o responmaior nas cartas e nos depoimentos dos amigos. É igualmente desconcertante, entretanto, a passagem da carta de seu editor Kurt Wolff para ele: “Nenhum dos autores com os quais nos conectamos vem até nós, com seus desejos ou questões, tão pouco quanto você, e com nenhum deles temos a sensação de que o destino de seus livros publicados é motivo de tanta indiferença quanto o é para você” (BROD: 1978, p. 136).  sável por sua destruição. Há um paradoxo intransponível aqui, já que a carta torna-se parte dos escritos, e assim parte do próprio corpus ou da obra, como muitas das cartas que Kafka havia preservado meticulosamente através dos anos. E ainda assim a carta pede para que os escritos sejam destruídos, o que logicamente envolve a nulificação da própria carta, e assim nulifica a própria ordem que ela dá. Então, essa ordem é uma diretiva clara ou é um gesto no sentido que Benjamin e Adorno descreveram? Ele espera que a mensagem chegue à sua destinação ou ele escreve a ordem sabendo que mensagens e ordens falham em alcançar aqueles para quem são endereçados, sabendo que eles estarão sujeitos a não chegada sobre a qual escreveu?” (BUTLER: 2014). Em meados de 1911, narrando o que disse em uma visita a Rudolf Steiner, a oposição entre escrita e trabalho já está colocada: “Além do mais, minha saúde e meu caráter me impedem igualmente de me converter em uma vida que, no melhor dos casos, apenas poderia ser incerta. Eis o motivo pelo qual me tornei funcionário em uma companhia de seguros sociais. Essas duas profissões não podem jamais se tolerar, nem admitem uma felicidade em comum. A menor felicidade que uma me causa se transforma na maior infelicidade para a outra” (KAFKA: 1984, p. 34). Em 21 de agosto de 1913, após, portanto, o ano decisivo de 1912, em que, buscando a concentração do isolamento, escreve os sete primeiros capítulos de O desaparecido (América), O veredicto e A metamorfose, traça no diário, enquanto aguarda ansiosamente a resposta da carta anteriormente enviada, um  esboço de uma segunda carta, nunca remetida, ao pai de Felice Bauer, então sua noiva: “[...] O meu emprego é-me insuportável pelo fato de contrariar o meu único desejo e a minha única vocação, que é a literatura. Como eu sou somente literatura, e como não desejo nem posso ser coisa diversa, o meu emprego jamais poderá atrair-me, apenas poderá ao invés disso destruirme inteiramente. Não estou longe de o ser. Estados nervosos da pior espécie dominam-me incessantemente e este ano, inteiramente cheio de preocupações e de sofrimentos acerca do meu futuro e do de sua filha, veio provar totalmente a minha falta de resistência. Poderia indagar-me a razão pela qual não deixo este emprego – não tenho fortuna – e por que não tento tirar a minha subsistência dos meus trabalhos literários. Apenas poderia então apresentar esta mísera resposta que não disponho dessa força e que, na proporção em que posso encarar o meu estado em toda a sua extensão, há maiores possibilidades de que o meu emprego me destrua, é certo, com muita rapidez [...]”(KAFKA: 2000, p. 96-97). Mais à frente do mesmo esboço de carta escrito em seu diário, a oposição da família em relação à literatura: “Pois bem, em meio à minha família, entre os melhores e os mais carinhosos seres, vivo mais alheio do que um estranho. No decorrer desses últimos anos, não troquei vinte palavras por dia com a minha mãe, não troquei senão cumprimentos com o meu pai. Com respeito às minhas irmãs casadas e aos meus cunhados, jamais lhes dirijo a palavra, embora não esteja zangado com eles. A razão é simples, nunca lhes tenho nada a dizer. Tudo quanto não seja  literatura enjoa-me e torna-se detestável para mim porque me importuna ou entrava, mesmo que seja hipoteticamente. É por essa razão que eu sou destituído de qualquer sentimento de vida em família, no máximo não possuo senão o de observador. Não possuo qualquer sentimento de parentesco, e considero de modo formal as visitas como malignidades que dirigem contra mim” (KAFKA: 2000, p. 96-97). Se “uma vida de funcionário poderia me convir se eu fosse casado” (KAFKA: 1984, p. 342), a de escritor se afasta tanto da do casamento quanto da do funcionalismo. Ao longo de quase toda sua vida (é importante resguardar esse quase, garantindo a exceção dos meses finais de felicidade conjugal passados juntos à Dora Diamant), Kafka colocará o casamento ao lado do trabalho e da família, contra, portanto, a escrita e a literatura, ou, talvez seja mais justo dizer, tornando-os tema de sua escrita, já que, como afirma Dora, “Kafka era obrigado a escrever, pois a escrita era seu oxigênio. Ele não respirava senão nos dias em que escrevia” (DIAMANT: 1998, p. 230). Para além da tensão e da contrariedade entre escrita e trabalho, entre escrita e família, entre escrita e casamento, entre escrita e o modo de vida burguês que o ameaça naquilo que ele é, entre a vida que julga verdadeira e a vida burocrática, há, no uso que faz de tais elementos biográficos, igualmente, um inacabamento, uma ausência de bordas nas delimitações do percurso que vai da experiência do vivido mais sutil à experiência da escrita ou desta àquela, fazendo tanto com que seus textos possam ser associados a aspectos de sua vida quanto com que  aspectos de sua vida sejam lidos como maneiras singulares de uma prática da escrita. Não à toa, pode afirmar ser “a questão do diário ao mesmo tempo a questão de todo o resto, ela contém todas as impossibilidades do resto” (KAFKA: 1984, p. 309). É ele quem, mesmo antes de escrever seus textos reconhecidamente mais importantes, antecipa com toda clareza o que a escrita é para ele: “vejo que tudo em mim está pronto para um trabalho poético, que esse trabalho será para mim [...] uma entrada real na vida” (KAFKA: 1984, p. 91). Sem se desligar completamente deles, uma “entrada real na vida” não pode ser uma mera descrição dos acontecimentos vividos: “Mal-escrito, sem entrar verdadeiramente nesse ar pleno da verdadeira descrição que lhe retira o pé do solo dos acontecimentos vividos” (KAFKA: 1984, p. 113); ou então: “cremos saber por experiência que nada no mundo está mais longe de um acontecimento vivido que a descrição desse mesmo acontecimento” (KAFKA: 1984, p. 178). Diante de todo impasse, diante de todo esse excesso que é também uma falta, qualquer relevo diminuto de sua vida ou de suas anotações se tornam repetidamente da maior relevância para seus leitores, que não podem abrir mão do que seria tido como o mais insignificante, talvez, pela presença insistente da tensão entre o significante e o assignificante, que está em tudo que lhe diz respeito. Ao se contemplar essas grafias em espalhamento que se chama habitualmente de Kafka, tentando lhe dar inutilmente um contorno preciso, não se está simplesmente diante de uma obra  nem apenas em frente de um encadeamento de fatos biográficos, mas se está na experiência da potencialidade que se abre através da vasta propagação de modos escriturais e biográficos tensivos, complexos, contraditórios, problemáticos e irresolúveis, que, exatamente pela tensão entre eles, afetam-se mutuamente sem deixar claro o limite entre um e outro. Está-se profundamente imerso em uma ética ou em uma política da escrita e da vida, em uma ética ou em uma política do que se vive na escrita e fora dela, em uma ética ou em uma política do que se escreve da vida, em uma ética ou em uma política desse intervalar entre o vivido e o não vivido, em uma ética ou em uma política da autobiografia, no sentido mais amplo que esse termo pode ter. Para tal ausência de limites, poderia ser encontrada uma fórmula em Kafka: escreve-se por uma necessidade vital, vivese por uma necessidade de escrita. Parece ser o assinalado por Blanchot quando salientou que “ele [Kafka] sente sua criação ligada palavra por palavra à sua vida, ele se autonomeia e se reconstitui” (BLANCHOT: 1997, p. 24); e Deleuze e Guattari, justificando-se de não terem levado o diário em conta como um dos elementos componentes da escrita de Kafka, afirmam: “É que o Diário atravessa tudo: o Diário é o próprio rizoma. Não é um elemento no sentido de um aspecto da obra, mas o elemento (no sentido de meio) do qual Kafka declara que não queria sair, tal como um peixe. E porque esse elemento comunica com todo o fora, e distribui o desejo das cartas, o desejo das novelas, o desejo dos romances” (DELEUZE e GUATTARI: 1977, p. 63). Se, como  foi mencionado, Kafka afirma que “isso não é uma necessidade artística”, é porque busca, sobretudo, pela escrita, pelo escrever, uma “entrada real na vida”, fazendo do escrever o ato heteronômico por excelência: “A criação literária carece de independência, ela depende da empregada que acende o fogo, do gato que se aquece próximo à lareira e mesmo desse pobre velho humilde que se reanima. Tendo leis próprias, tudo isso responde a funções autônomas, apenas a literatura não retira de si mesma nenhum socorro, não se aloja em si mesma, é, ao mesmo tempo, jogo e desespero” (KAFKA: 1984, p. 518). A ausência de limites entre o escrito e o vivido está por todos os lados, levando-o a, na passagem de 16 de dezembro de 1910, escrever que “esta maneira que tenho de me colocar a perseguir as personagens secundárias pelas quais eu leio a vida nos romances, nas peças de teatro etc. Este sentimento que tiro daí de pertencer ao mesmo mundo que eles” (KAFKA: 1984, p. 12). Pelos diários, pela correspondência ao seu editor Kurt Wolff e pelas cartas à sua então noiva Felice Bauer, sabe-se, por exemplo, do desejo de Kafka em publicar conjuntamente em uma única edição três de seus textos escritos em 1912, O veredicto, O foguista e A metamorfose, com um título geral revelador do motivo da reunião: Os filhos (curioso notar que os nomes próprios Georg, do personagem de O veredicto, e Gregor, da personagem de A metamorfose, são praticamente anagramáticos). Apesar do interesse do editor, tal livro não foi publicado durante o tempo de vida do escritor, mas, se lembrarmos da Carta ao pai, um dos  textos mais intensos e conhecidos de Kafka, leitor de primeira hora de Freud, ainda que não integralmente aderido a ele, as marcas biográficas da ficção e as marcas ficcionais do biográfico não podem ser esquecidas. Referindo-se a O veredicto, na entrada do dia 11 de fevereiro de 1913 de seu diário, é ele quem rompe a linha divisória tanto entre o personagem do filho, Georg Bendemann, e si mesmo quanto entre a personagem da noiva e Felice Bauer: “Georg tem o mesmo número de letras que Franz. Em Bendemann, ‘mann’ é um reforço de ‘Bende’, proposto por todas as possibilidades da narrativa que ainda não conheço. Mas Bende tem o mesmo número de letras de Kafka e a vogal e se repete no mesmo lugar que a vogal a em Kafka. Frieda tem o mesmo número de letras que F.[Felice], Brandenfeld tem a mesma inicial que B.[Bauer] e também uma certa relação de sentido com B.[Bauer] pela palavra ‘feld’” [Feld quer dizer campo e Bauer, camponês] (KAFKA: 1984, p. 297). No dia 14 de agosto de 1913, sobre o mesmo conto, fala de “conclusões de O veredicto aplicadas ao meu caso. É para ela [Felice] que, indiretamente, devo ter escrito essa história, mas Georg se perdeu por causa de sua noiva.” (KAFKA: 1984, p. 305). No dia 12 de fevereiro de 1913, ele segue tramando as relações entre os personagens fictícios e os biográficos: “Descrevendo o amigo, pensei muito em Steuer. Quando o encontrei por acaso, cerca de três meses antes de ter escrito essa narrativa, ele me disse ter noivado perto de três meses antes” (KAFKA: 1984, p. 297). E, parece-me que com humor, ele finaliza essa passagem do  seguinte modo: “Minha irmã me disse: ‘É o nosso apartamento’. Espantei-me que ela tenha entendido mal a distribuição dos lugares e lhe disse: ‘Mas, nesse caso, seria necessário que o pai habitasse o banheiro’” (KAFKA: 1984, p. 297). Sobre esse mesmo assunto da inextricabilidade complexa entre o que se escreve e o que se vive, a introdução feita pelo tradutor Álvaro Gonçalves para a edição portuguesa de Os filhos é perspicaz: “A escolha do título está obviamente relacionada com um dos aspectos autobiográficos mais marcantes de toda a vida de Kafka, que é a fixação obsessiva na figura do pai. Esta fixação é expressão não apenas da marca característica da geração expressionista alemã (“o ódio ao pai”), mas também do conflito resultante de duas naturezas completamente opostas: à presença esmagadora e autoconfiante do pai opõe-se a extrema sensibilidade do filho. Se as três narrativas constituem um ajuste de contas com o pai sob forma de literatura, a famosa Carta ao pai, escrita em 1919 e que nunca chegou a ser entregue ao destinatário, percorre um caminho inverso, abolindo a fronteira que separa a literatura da vida” (GONÇALVES: 2007, p. 10-11). Estendendo a figura do pai para a de um princípio de autoridade qualquer, a questão se amplia, ganhando contornos ainda mais complexos. Seriam muitos os exemplos; a respeito de O processo, Max Brod nos relata: “‘Na noite de seu trigésimo primeiro aniversário’, diz o último capítulo. De fato, quando Kafka começou tal romance, ele tinha trinta e um anos. Há uma moça que aparece várias vezes no livro, Fraulein Burstner – em  seu manuscrito, geralmente, escreve o nome dessa personagem abreviando-o para Fr. B., ou F. B., fazendo, certamente, a conexão ficar bastante clara” (BROD: 1978, p. 146). Ainda que de maneira nada óbvia, tudo em Kafka, mesmo em suas narrativas mais longas, ficam nesse interstício entre o que se escreve e o que se vive, ou em tal zona de potencialidade, o que levou a tradutora e ensaísta Marthe Robert, ao mencionar que ignoramos o aspecto físico das personagens kafkianas (que está praticamente ausente das histórias narradas), a afirmar que “Raban, Gregor Samsa, Georges Bendemann, Joseph K., o Agrimensor, são, a este respeito, por assim dizer desconhecidos para nós (é verdade que compensamos espontaneamente esta lacuna ao imaginá-los sob as feições do próprio Kafka, o que é justo na medida em que as suas narrativas são uma autobiografia)” (ROBERT: 1963, p. 69). Internado no sanatório Hoffmann, em Kierling, Kafka começa, no final de maio de 1924, ou seja, a duas semanas de sua morte, a revisão das provas de “Josefina, uma cantora” (novela criada pouco mais de um mês antes, quando, entre a vida em Berlim e a ida ao sanatório, estava de passagem por Praga) para o livro Um artista da fome, cuja prova havia então chegado da editora Die Schmiede. Enquanto sua tuberculose laríngica, que atingiu, inclusive, os pulmões e o intestino, o impedia de falar ou de pronunciar qualquer som, ele, afásico, se comunicava com Dora, a mulher amada, a única com quem viveu sob um mesmo teto, e Klopstock, o amigo que, cuidando dele juntamente com Dora, o acompanhou até o fim, por bilhetes. Em certo momento,  enquanto revisava a novela mencionada, ele escreveu um bilhete a seu amigo: “Não é que comecei a tempo meu estudo sobre o guinchar dos animais?” (KLOPSTOCK: 1998, p. 201). Como não associar os guinchos do canto de Josefina e a afasia progressiva de Kafka? Como não encontrar uma linha de trânsito entre a experiência vivida e a experiência escrita? Como não ler a partir de uma complexa trama literário-biográfica o que Danielle Cohen -Levinas chama de “o destino afônico daquilo que resta: uma fala sem pulmão, uma língua sufocada que coloca imediatamente a literatura no horizonte de sua sobrevida”, de uma “avocalidade estrangulada”, de “uma voz ferida, para sempre perdida para o mundo dos humanos”, de uma “ilegibilidade da voz”, de “uma voz que não pode se conceber senão acompanhada por sua própria extinção”? Como não ler o que Danielle Cohen-Levinas chama de uma “laringe não vocal, o extremo da palavra despojada de sua plástica, que interrompe a sincronia do verbal” enquanto “uma voz que não pode ser concebida acompanhada de sua própria extinção”, enquanto o “barulho da morte” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 63)? Kafka, que media 1,83m de altura, pesava, em 1923, ao conhecer Dora, apenas 53kg e, poucos meses depois, internado, 49kg. Imediatamente antes do grande encontro amoroso que determinará os meses finais de sua vida como aparente e contraditoriamente os mais felizes (apesar dos graves problemas econômicos alemães que o concerniam de perto), na última entrada do que até hoje se conhece de seus diários, no dia 12 de  junho do referido ano, Kafka escreve: “Momentos terríveis esses últimos tempos, impossíveis de enumerar, quase interrompidos. Passeios, noites, dias, incapaz de tudo, menos de sofrer” (KAFKA: 1984, p. 551). Não deixa de ser uma coincidência terrivelmente sarcástica que, nos dias que precederam sua morte, ele, que já não podia se alimentar em decorrência da doença, estivesse trabalhando na revisão exatamente de Um artista da fome, livro cujo título é retirado de um conto homônimo em que, escrito anos antes, tem por tema o talvez maior jejuador de todos os tempos, que vai definhando sem comer até praticamente desaparecer por debaixo da palha de sua jaula. Conta-se que, de tão exaurido pela conjunção entre o trabalho e a doença mortal, Kafka caía, então, por vezes, no choro. Willy Haas, que conhecia pessoalmente o escritor, afirma ter recebido uma carta da irmã Ana, enfermeira que cuidou de Kafka no sanatório até o dia de sua morte, tendo tido, inclusive, a incumbência de cerrar seus olhos quando ele morreu; nela, a religiosa, então com setenta e três anos, testemunhando que “seu espírito [o de Kafka] era antes de tudo absorvido pelo que ele escrevia”, faz uma “extraordinária observação: ‘Sete anos antes de sua morte, na novela ‘Um artista da fome’, ele descreve a inapetência pela alimentação, como ele próprio sofrerá conforme sua laringe vai sendo mais e mais atingida’” (HAAS: 1998, p. 247-248). No dia exato de seu falecimento, em 2 de junho de 1924, ele continuava revisando pela manhã as referidas provas. De tal acontecimento, Blanchot afirma: “Até o fim, ele permaneceu um  escritor. Em seu leito de morte, privado de força, de voz, de ar, ele ainda corrige as provas de um de seus livros (Um artista da fome). Como ele não pode falar, ele anota em um papel para seus companheiros: ‘Agora, eu os vou ler [os contos do livro]. Isso talvez vá me agitar muito; mas é preciso que eu viva isso ainda uma vez’. E Klopstock conta que, quando a leitura acaba, as lágrimas correm por muito tempo em seu rosto: ‘Foi a primeira vez que vi Kafka, sempre senhor de si mesmo, entregar-se a tal movimento emotivo’” (BLANCHOT: 1981, p. 208). Tarefa árdua, essa, de escrever – aprendendo a minguar, até desaparecer; ou, como sintetiza o aforismo 90 escrito em Zurau e presente na entrada do dia 28 de janeiro de 1918 de seu diário, “Duas possibilidades: fazer-se infinitamente pequeno ou sê-lo. A segunda é perfeição, ou seja, inação, a primeira, começo, ou seja, ato” (KAFKA: 1984, p. 469). Em Kafka, não há, de maneira alguma, uma impositividade do viver sobre o escrever nem deste sobre aquele, nenhuma origem do que se vive a dar fundamentação exclusiva ao que se escreve nem uma reversão do que se escreve se sobrepondo ao que se vive na tentativa de apagar sua singularidade ou de lhe tornar apreendido pela suposta explicação da soberania do outro: nenhuma linha estanque que separe o que mobiliza o viver do que aciona a escrita pode ser traçada. Antes, a permanência em um intervalo nebuloso entre a experiência da escrita e a que se vive compondo cada instante da experiência indiscernível. Enfatizar a experiência (entendida aqui como o desguardecimento das fronteiras entre o viver e o escrever, em que ambos não podem  existir no conforto de um asseguramento de sua exclusividade discriminada em relação ao outro) significa assumir que tanto o que se vive quanto, como quer Danielle Cohen-Levinas, os “modelos narrativos de Kafka poderiam ser encarados como a vibração mais que humana de um cruzamento de experiências que não requer qualquer resolução, e que, sobretudo, desobriga de que se escolha uma delas em detrimento da outra” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 68). Nessa “vibração mais que humana”, o viver e o narrar participam do complexo cruzamento das experiências que resguardam sua inapropriabilidade ou inacessibilidade. Não é sem motivos que em 16 de janeiro de 1922, ele escreve em seu diário: “esta perseguição se serve de uma estrada que sai do humano”, para acrescentar que “toda esta literatura é um assalto contra as fronteiras” (KAFKA: 1984, p. 519-520). Um caminho possível de se pensar a escrita kafkiana pode ser um que vá da lenda ou do mito, que, tal qual escrito no “Prometeu”, tenta “explicar o inexplicável” (KAFKA: 2002, p. 107), à parábola, caracterizada por Kafka como a preservação enigmática do inconcebível enquanto inconcebível ou do incompreensível enquanto incompreensível ou do inexplicável enquanto inexplicável (KAFKA: s/d, p. 21). O cruzamento das experiências da “vibração mais que humana” mencionada se coloca como uma de suas parábolas mais singulares, estando elas presentes em muito do que lemos de seus escritos e dos acontecimentos vividos por ele, transformados em escritas ao serem legados também por seus amigos e amores, que convi-  veram com ele reconhecendo imediatamente sua grandeza, até chegar a nós. Em “Anotações sobre Kafka”, acerca das parábolas, Adorno afirma que a obra de Kafka “não se exprime pela expressão, mas pelo repúdio à expressão, pelo rompimento. É uma arte de parábolas para as quais a chave foi roubada” (ADORNO: 2001, p. 241). A parábola não seria então o chamado à revelação ou ao desvelamento ou à presença de algo misterioso pela chave interpretativa, mas a impossibilidade de revelação e de desvelamento e de presença assegurando, na escrita que repele a expressão, afasta a interpretação e rechaça qualquer totalização do sentido, o incompreensível enquanto incompreensível. Ao invés de, como um espaço de uma hermenêutica privilegiada, dizer mais do que se pode ter consciência, essa escrita, parabólica, uma escrita por subtração, diz sempre menos do que se pode imaginar, obrigando-nos a entrar arduamente no labirinto de sua exatidão literal que, de modo inesperado, nega tanto isso quanto aquilo, tanto uma interpretação quanto outra. Eis sua aparente contradição ou seu “paradoxo perpétuo”, como Camus bem o viu: “é ao mesmo tempo mais simples e mais complicado” (CAMUS: s/d, p. 169); tal passagem de Camus parece ter sido implicitamente retomada por Deleuze e Guattari, que, acerca dos textos animais de Kafka, afirmam que “são muito mais complexos do que dizemos. Ou, ao contrário, muito mais simples” (DELEUZE e GUATTARI: 1977, p. 21). Lê-se, mas a leitura só se faz possível naquilo que, nela, é inconcebível; lê-se, mas a fratura do ininteligível; lê-se o que não  se pode ler e é lido somente ao modo de uma impossibilidade interpretativa, ao modo de uma “perturbação hermenêutica” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 68), ao modo de uma interrupção. Interrupção no que lemos, no que vemos, no que ouvimos, levando-nos, imediatamente, a um não legível, a um não visível, a um não ouvível, a um não dizível, a um não compreensível que resta, com força, no texto. Nas parábolas (ao menos nas de Kafka), no lugar de haver apenas uma comparação ou uma analogia entre o que se lê e o modo pelo qual o que se lê foi lido, há, sobretudo, uma justaposição ou uma conjunção entre o legível e o ilegível, entre o inteligível e o ininteligível, entre o interpretativo e sua impossibilidade, entre a hermenêutica e sua perturbação, entre o que antes era separado e é agora indiscernível, de tal modo que, ao lidarmos diretamente com os primeiros termos, são os segundos em sua amplitude quase impossível que, naqueles, acabam por predominar. Não se trata, de modo algum, do estabelecimento de um novo sentido, ainda que torcido, a um objeto de interpretação, mas exatamente do risco, da rasura, de qualquer possibilidade de sentido de um objeto existido. O que se sabe é apenas da insistência do enigma, a ser preservado. Por decorrência disso, Benjamin afirma que “nenhum escritor seguiu tão rigorosamente o preceito de ‘não construir imagens’” (BENJAMIN: 1987, p. 155): não que, aparentemente de modo contrário ao pensado pelo crítico filosófico mencionado,  Kafka não construa imagens em seus textos4, mas que as vai apagando na mesma medida em que as vai fazendo aparecer, que ele as formula apenas para entregá-las, rápida e quase imediatamente, à sua anulação. Entre muitos exemplos que poderiam ser dados não propriamente para a ausência de construção de imagens, mas para a desconstrução completa que ocorre, no texto, das imagens que, ao longo dele, vão sendo construídas, destaca-se “Desejo de se tornar índio”, presente no primeiro livro publicado em vida por Kafka, Contemplação. Ele pode ser lido, indistintamente, como um miniconto, como, seguindo o próprio Kafka em uma carta a seu editor citada por Modesto Carone, uma “prosa miúda” (KAFKA: 1994, p. 100), ou, ainda, também conforme o tradutor e ensaísta, enquanto um poema em prosa (CARONE: 2009, p. 73). Na tradução de Modesto Carone: “Se realmente se fosse um índio, desde logo alerta e, em cima do cavalo na corrida, enviesado no ar, se estremecesse sempre por um átimo sobre o chão trepidante, até que se largou a espora, pois não havia espora, até que se jogou fora a rédea, pois não havia rédea, e diante de si mal se viu o campo como pradaria ceifada rente, já sem pescoço de cavalo nem cabeça de cavalo” (KAFKA: 1994, p. 47)5. 4 Segundo Janouch, em conversa a respeito de O foguista, o próprio Kafka lhe teria dito que seus personagens “são imagens, apenas imagens”. Além disso, seria fácil mostrar que ele as constrói com grande frequência (a do castelo, a do homem-inseto, a da toca, a das sereias e tantas outras que se tornaram paradigmáticas para o século XX). 5 E em tradução inédita do poeta André Vallias, postada em seu perfil no Facebook: “Se a gente fosse então um índio, em prontidão, e no cavalo em disparada, enviesado ao  Chamando atenção tanto para a extrema concisão quanto para a velocidade com que tudo ocorre, o que interessa em “Desejo de se tornar índio” é realizado em apenas uma frase, em pouco mais de quatro linhas, começando por um “se” condicional a preservar, desde o início, a escrita imersa no campo de possibilidades. Se a poesia (ou a literatura de modo geral) não está do lado do já dado do mundo, mas de sua potencialidade, se a poesia (ou a literatura de modo geral) não está do lado do dito, mas da abertura para o dizer, o “se” inicial é um dos modos encontrados para, instantaneamente, colocar o pensamento no campo de possibilidades, de onde ele não quer jamais sair, mas, antes, intensificá-lo. Na atualização mesma da “prosa miúda” ou do poema em prosa, abre-se o campo potencial, de modo que este compareça naquele. No ritmo que enuncia sua alta voltagem de escrita e pensamento, o balanço poético-literário da frase é dado pela tensão harmônica que há entre o “se” e o “até”, estabelecendo os dois momentos da frase: o da criação das imagens e o de sua interrupção acrescida da anulação da possibilidade até então criada. Em uma espécie de tomada cinematográfica, com o “se”, o leitor é levado a visualizar um índio que galopa no campo cortando o ar em seu cavalo enquanto tudo (paisagem, cavalo e índio) estremece; com o “até”, a interrupção e o anulamento das imagens propostas e de outras que nem haviam sido anteriorvento, trepidasse cada vez mais rápido sobre o solo trepidante, até soltar as esporas, pois não havia esporas, até jogar as rédeas fora, pois não havia rédeas, e mal avistasse a terra à sua frente como campo capinado rente, o cavalo já sem pescoço e sem cabeça”.  mente construídas, como se se retirasse da imagem não apenas o que ela tem, mas, igualmente, o que ela nem tem. Do que se supunha existir – agora, na segunda metade, abandonado – é dito que nem existia (a espora e a rédea), enquanto o que antes era visível (o campo) se encontra em processo de dissipação e o cavalo já não tem cabeça nem pescoço. Levada à sua negação, a imagem inicial vai se apagando, desorganizando, desatarrachando e despedaçando as formas a princípio anunciadas, deixandonos com um vazio de imagem que nos envia muito rapidamente à quebra do estado das coisas. Como escreveu Kafka em um de seus aforismos: “Ainda nos impõem fazer o que é negativo; o positivo já nos foi dado” (KAFKA: 2012, p. 32). Não se trata, portanto, propriamente de “não construir imagens”; trata-se, antes, de suas imagens já serem o que venho chamando de contraimagens, de imagens que estão ali para manifestar a ausência do que, a princípio, aparentam manifestar. Enquanto contraimagem, a imagem não assume sua plasticidade reveladora que, tornando visível o que quer chegar ao mundo da sensibilidade, lhe é habitual no âmbito da literatura, mas, ao contrário, poéticas de um modo extremamente singular, elas residem na força de retirada, de apagamento e de nadificação do sensível, deixando-nos, a cada momento, de mãos vazias. Levando o leitor a mergulhar na intensidade do negativo presente na superfície mesma do texto, o procedimento das contraimagens é tão forte na escrita kafkiana que, uma vez imerso na força do vazio em que o texto o coloca, chega-se a duvidar que tal escrita possa de fato  existir, que as palavras consigam resguardar – ainda – sua coesão, como salienta Ricardo Timm de Souza: “Trata-se de uma literatura visceralmente anormal – não dá, nem à intuição nem à razão, razões para crer que possam vir a captar sua essência e, talvez por isso, exerça um tal poder de sedução sobre espíritos inquietos, por sua vez imersos em tensão. Tensão absoluta, não admite relatividades sem, porém, utilizar-se de quaisquer argumentos para declinar desta admissão: chancelas e contrachancelas são aqui, simplesmente, fracas demais. O turbilhão é excessivamente forte, plastificado embora na sucessão das palavras; o milagre é que as palavras consigam, apesar da intensidade que pulsa sob elas, permanecer razoavelmente conectadas» (SOUZA: 2012, s/p). Com outras palavras, Harold Bloom ressaltou que Kafka foi um “literalista do negativo” (BLOOM: 1995, p. 439). Com Kafka repetidamente imerso nas parábolas dos mais diversos tipos, há um acontecimento exemplar, dos mais comoventes no que diz respeito à experiência do entrelaçamento entre as vidas dos escritores e suas escritas. Nele, a frase em que Milena afirmara que Kafka “está exposto a tudo” ganha concreção e ressoa o próprio conceito de “exposição” de Emmanuel Levinas tal qual lido por Danielle Cohen-Levinas ao propor a “vulnerabilidade” ao outro que promove a “extradição do sujeito” como uma alternativa para a história da metafísica ou da ontologia ocidental: “Sabemos o quanto a relação com o outro é originariamente primeira. Essa intersubjetividade não é em nada sinônimo de comunicação, mas ‘suprema passividade da  exposição a Outrem’, diz Levinas em Autrement qu’être. Esse movimento de exposição que pode chegar à substituição, à fissura do sujeito, ao seu aniquilamento, ‘como uma pele se expõe àquilo que a fere, como uma face oferecida àquele que bate’, é vivido como trauma, como ‘dizer ao outro’ incomensurável relativo a um enunciado que se contenta em dizer algo. O ‘dizer ao outro’, constitutivo da subjetividade, atesta uma reviravolta da estrutura de significação do dito” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 34). No acontecimento contado por Dora, a relação com o outro (em breve veremos quem comparece no lugar do outro) se coloca, em todos os sentidos, como originariamente primeira, a que expõe a “suprema passividade” que move Kafka, a que expõe a “fissura do sujeito” em sua vulnerabilidade que o leva imediatamente ao acolhimento decisivo do outro, a que expõe o dizer e o escrever a um “dizer ao outro” com o intuito primeiro de, permanecendo ali, com ele, fazer um gesto para amenizar sua dor. Mesmo que a citação seja longa, que Dora deixe então suas palavras sobre esse acontecimento em modo de parábola ou dessa parábola em modo de acontecimento vivido que, colocando a relação com o outro como “originariamente primeira”, não permite, de modo algum, nessa “vibração mais que humana” tão constitutiva de Kafka, dissociar a experiência da escrita da experiência da vida: “Quando moramos em Berlim, Kafka ia frequentemente passear no parque de Steglitz. Eu o acompanhava algumas vezes. Certo dia, encontramos uma garotinha que chorava e que parecia completamente desesperada. Nós lhe  dirigimos a palavra e Kafka lhe perguntou o motivo de sua aflição; foi quando descobrimos que ela havia perdido sua boneca. Para explicar esse desaparecimento, Kafka logo inventou uma história completamente verossímil: ‘Sua boneca acabou de fazer uma pequena viagem. Eu bem o sei, pois ela me enviou uma carta’. Mas a garotinha olhou para ele com olhar desconfiado: ‘Você tem ela aqui com você?’, perguntou-lhe ela. ‘Não, eu a deixei em casa, mas vou trazê-la para você amanhã’. A garotinha, que ficou logo com um olhar bastante curioso, já havia quase esquecido sua dor, e Franz imediatamente voltou para casa para escrever a carta. // Ele trabalhou com a mesma seriedade que caso tivesse de escrever uma verdadeira obra literária. Tinha o mesmo estado de tensão nervosa que o agitava quando se instalava em seu escritório, mesmo que fosse apenas para escrever uma carta ou um cartão postal. Além do mais, era uma verdadeira tarefa, tão essencial como as outras, pois era preciso a todo custo agradar a garota e evitar-lhe uma decepção ainda maior. A mentira deveria se tornar verdade, graças à verdade da ficção. No dia seguinte, levou a carta à garotinha que esperava por ele no parque. Como a garotinha não sabia ler, Franz leu a carta para ela. A boneca explicava que estava cansada de viver na mesma família, exprimia-lhe o desejo de mudar de ar. Resumindo, que queria, por algum tempo, separar-se da garotinha, mesmo amando-a tanto. Ela prometia escrever todos os dias, e, assim, Kafka escrevia a cada dia uma carta, contando sempre novas aventuras que muito rapidamente se desenvolveram conforme o ritmo de vida  próprio das bonecas. Dias depois, a criança havia esquecido a perda de seu brinquedo e só pensava na ficção que ele havia lhe presenteado como compensação. Kafka escrevia cada frase da história com tamanha precisão e humor que a situação da boneca ficou muito fácil de compreender: ela havia crescido, frequentado a escola, conhecido outras pessoas. Não deixava nunca de assegurar à criança o seu amor, mas mencionava as complicações da vida, outros interesses e outras obrigações que, no momento, não lhe permitiam retomar sua vida comum. Ela pedia à garotinha que refletisse a respeito de tudo isso, de tal maneira que estaria pouco a pouco preparada para a perda definitiva de seu brinquedo. // A brincadeira durou pelo menos três semanas. Franz temia a conclusão que ele havia de dar a tudo isso. // Isso porque devia ser uma conclusão verdadeira, criando uma nova ordem que substituísse a desordem provocada pela perda do brinquedo. Ele esperou durante muito tempo, antes de decidir-se finalmente por casar a boneca. Primeiro, ele descreveu um belo rapaz, a festa do noivado, os preparativos do casamento, e depois, com muitos detalhes, a casa do jovem casal. ‘Você mesma se dará conta de que devemos renunciar a rever-nos no futuro’. Franz havia resolvido, assim, o pequeno conflito de uma criança graças à arte, graças ao meio mais eficaz que ele dispunha para restabelecer um pouco de ordem no mundo”(DIAMANT: 2011, p.14)6. 6 Diante disso, quem leu os relatos de seus amigos, como, por exemplo, o belíssimo  Não me cabe estender a bela compreensão de “verossimilhança” como “a mentira [que] deveria se tornar verdade, graças à verdade da ficção” nem, muito menos, esboçar uma interpretação de tal acontecimento vivido por Kafka, Dora e a menina em fins de 1923 no Parque de Steglitz em Berlim, no momento em que, segundo todos os depoimentos, é o mais feliz da vida de Kafka: que ele ressoe por si na delicadeza de sua força maior. Cabe-me, isso sim, informar que tanto a então menina quanto as cartas a ela endereçadas, apesar de muito procuradas por vários críticos e biógrafos de Kafka, jamais foram encontradas, preservando o vazio impreenchível do objeto perdido como constituinte de tal acontecimento. Ainda que à revelia de nosso desejo, talvez seja melhor mesmo que as cartas tenham se perdido, apesar de, quem sabe, do modo mais funesto de terem sido apreendidas e destruídas pela Gestapo que pode ter, inclusive, matado a menina quando crescida (como foram os originais de Kafka mantidos por Dora e as cartas enviadas para ela, além do fato de as irmãs de Kafka terem morrido no campo de concentração). Essa presença da ausência das cartas e a beleza de todo o acontecimento narrado por Dora Diamant provocaram vários efeitos, entre os quais o livro infantojuvenil de Jordi Sierra i Fabra, Kafka e a boneca viajante, que, exatamente pela impossibilidade de leitura das cartas, as julga como “talvez a mais bela e lúcida de livro de Gustav Janouch, não estranhará nem um pouco a colocação de Claude David na introdução dos diários e cartas da Pléiade: “Para todos, ele é o amigo mais delicado” (SIMON: 1984, p. XVI).  suas incursões literárias” (SIERRA I FABRA: 2009, p. 124). Entre outros efeitos de tal acontecimento, há o texto La muñeca viajera, de Cesar Aira, publicado no dia 8 de maio de 2004 no jornal El País, no qual, afirmando que “Kafka fue el más grande descubridor de signos en la vida moderna”, fala dessas cartas como o “libro más hermoso de Kafka”, acrescentando que “La desaparición del libro de las cartas de la muñeca, por mucho que la lamentemos, deberíamos verla como un signo positivo. Es el elemento que, por sua usencia, da sentido al resto de la obra, que es una saga de desapariciones cuya presencia en forma de relatos, de escritura, tiene por función cerrar la herida de la perdida” (AIRA: 2004)7. Lembrando a colocação de Danielle Cohen-Levinas a partir de Emmanuel Levinas de que a filosofia e a crítica devem desconfiar essencialmente de si próprias e que, nos Carnets de captivité et autres inédits, Levinas “detecta na literatura a possibilidade de reintroduzir, no cerne do rigor conceitual, uma inteligibilidade do mundo em que a noção de ‘experiência’ ocupa um lugar central” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 35), Kafka, com sua “vibração mais que humana”(COHEN-LEVINAS: 2014, p. 68), em que o viver e o escrever participam complexamente do “cruzamento de experiências que não requer qualquer resolução, e que, sobretudo, desobriga que se escolha uma delas em detrimento da outra” (COHEN-LEVINAS: 2014, p. 68), é uma dessas forças a ativar, a 7 A partir desse mesmo acontecimento narrado por Dora, Gabriela Capper e eu fizemos o vídeo “O testemunho da menina da boneca de Kafka”, disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=J3XnbftIKL8>.  cada vez, a introdução da experiência no rigor conceitual daqueles que, entrando em contato com ele e sendo por ele afetado, o lê, tornando-se assim críticos (ou filósofos) que assumem a experiência, ou seja, críticos cuja crítica seja ela mesma literária. Ainda que com nuances diferentes, essa é uma das indagações deixadas por Deleuze e Guattari a partir do conceito de “literatura menor”, que apreendem dos diários de Kafka retrabalhando-o, ou um dos riscos que a escrita do escritor aqui abordado coloca implicitamente para a filosofia (e para a crítica) de nossa época como uma de suas provas de fogo, como um de seus testes: “Há [nesse ‘saber criar um tornar-se menor’] uma oportunidade para a filosofia, ela que por muito tempo formou um gênero oficial e referencial?” (DELEUZE e GUATTARI: 1977, p. 42). Tornar-se menor, acolher a experiência, vibrar mais que humanamente, o desejo também crítico e filosófico. * Entre muitas, ainda há essa parábola de Kafka, “Um cruzamento”: “Tenho um animal peculiar, meio gatinho, meio cordeiro. É uma herança dos bens do meu pai, mas que só se começou a desenvolver no meu tempo, dantes era muito mais cordeiro que gatinho, agora, porém, tem mais ou menos o mesmo dos dois. [...] Claro que é um grande espetáculo para as crianças. Ao domingo de manhã é a hora da visita, seguro o animalzinho no regaço e as crianças de toda a vizinhança põem-se à minha volta. Fazem-  se então as mais estranhas perguntas, a que ninguém consegue responder. Por mim, também não me esforço, dou-me por satisfeito por mostrar o que tenho, sem mais explicações. Por vezes, as crianças trazem gatos, uma vez até trouxeram dois cordeiros; mas, ao contrário de suas expectativas, não houve cenas de reconhecimento, os animais olharam-se com toda a calma nos seus olhos de animais e parece que aceitaram reciprocamente as suas existências como facto divino. [...] Não basta que seja cordeiro e gato, quase quer ainda por cima ser também cão [...] Talvez a faca do carniceiro fosse a salvação do animal, mas tenho de lhe recusar, como peça herdada que ele é” (KAFKA: 2012, p. 251-252).  KAFKA POETA Em seus textos e depoimentos, muitos críticos e amigos de Kafka denominam-no repetidamente “poeta” (entre os quais, e não apenas na língua alemã, Modesto Carone, Marthe Robert, Félix Guattari, Milan Kundera, Kosovoi, Elias Canetti, Haroldo de Campos, Gunther Anders, Félix Weltsch, Oskar Baum, Michal Mares, Fred Bérence, Alfred Wolfenstein, Ludwig Hardt, Danillo Nunes...). Não apenas seus comentadores mais próximos ou distantes o designavam como poeta; sobre O veredicto, ninguém menos que o próprio Kafka afirma, duas vezes, a seu editor Kurt Wolff, que o respectivo texto se confunde com um poema. Primeiramente, em um cartão postal de 14 de agosto de 1916, ao preferir a publicação sozinha do texto contra a inclusão de A colônia penal e A metamorfose no mesmo volume (já está aqui em um momento posterior ao da ideia de publicar Os filhos): “O veredicto, ao qual atribuo uma importância particular, é se-  guramente bem pequeno, mas também é mais um poema que uma narrativa, ele precisa de espaço livre em volta dele e não é indigno de tê-lo” (KAFKA:1984, p. 760); cinco dias depois, ele retoma a colocação: “Isso que para mim fala, sobretudo, a favor de O veredicto ser publicado separado é: essa narrativa depende menos da forma épica que do poema, por isso, ele precisa de um espaço livre diante dele se ele deve produzir todo o seu efeito. E, ainda, ele é dos meus textos o que eu prefiro, de onde vem o desejo que eu sempre tive de deixá-lo se impor, se possível, de modo independente” (KAFKA: 1984, p. 761). Em ambas as passagens, esse “poema”, seu texto predileto até o momento, é de tanta importância para Kafka que ele o deseja publicar sem nenhum outro que lhe anteceda ou lhe suceda, para que o espaço livre antes dele, em torno dele e depois dele possa contribuir com o que ele diz, fazendo com que o não verbal que o precede, circunda-o e o sucede seja trazido como modo de respiração para dentro de seu âmbito. Se, em agosto de 1912, enviando Contemplação ao mesmo editor mencionado, ele qualificou os escritos que compõem tal livro de kleine Prosa, prosa pequena ou “prosa miúda” (como traduziu belamente Modesto Carone (KAFKA:1994, p. 100), com O veredicto, dele, poderia dizer keine Prosa, prosa nenhuma: o que antes era um movimento pequeno ou miúdo de sua prosa, mantendo o tom menor da escrita, ganha, em 1916, sobre o texto de 1912, explicitamente a designação de “poema”. No momento final de maior importância da escrita de Kafka, em A construção, ele mencionará um “canto  à incolumidade da construção” (KAFKA: 1991, p. 67) e Josefina, a ratinha, é uma cantora. Assim, em um primeiro momento, a “prosa miúda”, em seguida, a denominação de “poema” e, posteriormente, a de um canto; em todos, certamente, o incólume poético da própria escrita. Do estilo – poético – de Kafka, muito já foi dito por tantos, ressaltando, em sua linguagem, a fluência, a velocidade com que vai ao essencial, a simplicidade, a complexidade, a evasão, a coesão, a secura, a pureza, a quietude, o caráter descritivo, objetivo, enxuto e microscópico, o rigoroso, o fragmentário, a técnica tridimensional do cinema, a guerra entre a sintaxe e o tema, a instabilidade semântica, a sobriedade, a lucidez, a raridade, a sutileza, o lapidar das formulações, o burocrático, a limpidez, a unidade da forma e do sentido, a não construção de imagens, a ausência de desvios, o parecer vir de outro mundo, a não adjetivação, o não inchaço, a não presença de neologismos, a ausência retórica, a ausência de fogos de artifício, a ausência de truques, a ausência de mentiras, o enigmático, o obscurecimento, o balanço entre a determinação e a indeterminação, a precisão, a oficialidade, a justeza, a minúcia, a flexibilidade, a exatidão, o cartorial, o protocolar etc. etc. etc. É certo que todas essas complementações dizem respeito ao seu modo de escrita, mas, antes de propor uma leitura de O veredicto, o que quero entender como o “poema” de Kafka, como o que o torna “poeta”, como o poético por excelência em Kafka, é o fato de todas essas designações que caracterizam seu  estilo estarem, na superficialidade mesma do texto, a serviço do turbilhão, da desagregação, do insólito, do irrealizável, da inconsistência, da ausência da voz, do despertencimento, do desancoramento, do vazio, do nada, do espaço livre, do inacessível, do inapropriável, do assignificante, do afônico, da avocalidade, da ilegibilidade, da interrupção, do intervalo, do incompreensível, da contraimagem e de muitos outros termos que designam a força de desobramento e a intensidade do negativo presentes em seus escritos1. E em tensão com eles. Ressaltando que algo indizível se abre na sintaxe entrecortada e gaguejante kafkiana, Judith Butler chama atenção para o não pertencimento de Kafka, tanto a nenhuma nação quanto a nenhuma língua nem a qualquer contrato nem ao que quer que seja que possa se colocar no âmbito de uma pura positividade. Lembrando que ele sempre terminou seus noivados, nunca foi proprietário de apartamento e pediu para queimarem seus escritos, a filósofa americana afirma: “Na correspondência de Kafka com sua amada Felice Bauer, que era de Berlim, presenciamo-la corrigindo constantemente o alemão dele, sugerindo que ele não está completamente em casa nessa segunda língua. Sua amada posterior, Milena Jasenská, que também era tradutora da obra dele para o tcheco, está frequentemente ensinando a ele frases em tcheco que ele não sabe como soletrar nem como pronunciar, 1 Isso pode ser visto no ensaio “A vibração mais que humana”, o primeiro deste livro.  sugerindo que também o tcheco lhe é algo como uma segunda língua. Em 1911, ele frequenta o teatro ídiche compreendendo o que é dito, mas o ídiche não é uma língua que ele encontre com facilidade em sua vida familiar e cotidiana; ela continua sendo uma importação atraente e estranha do leste. Há então uma primeira língua aqui? E pode-se argumentar que mesmo o alemão formal no qual Kafka escreve – que Arendt chamou de ‘o mais puro’ alemão – traz os sinais de alguém entrando em uma língua de seu exterior? Esse foi o argumento do ensaio de Deleuze e Guattari: ‘Kafka: por uma literatura menor’. Essa querela parece de fato antiga, uma vez que o próprio Kafka evocou em uma carta, de [7] outubro de 1916, para Felice, com referência ao ensaio de Max Brod sobre escritores judeus, Nossos e escritores e a comunidade, publicado em Der Jude: ‘E, aliás, você não vai me dizer o que eu realmente sou; na última Neue Rundschau, A metamorfose é mencionada e rejeitada por motivos razoáveis; em seguida, o escritor diz: – Há algo fundamentalmente alemão sobre a arte narrativa de K. Por outro lado, no artigo de Max: – As histórias de K estão entre os documentos mais tipicamente judeus do nosso tempo’. // Um caso difícil. Serei um cavaleiro de circo andando em dois cavalos? Ah, não sou cavaleiro nenhum, eu deito prostrado no chão” (BUTLER: 2011, p. 3-8). No mesmo tom, Dora Diamant termina seu depoimento ressaltando de modo muito preciso a inadequação da língua alemã enquanto obstáculo para Kafka em uma tensão inultrapassável entre o arcaico e o moderno: “Durante os anos que se seguiram,  reli frequentemente os livros de Kafka, sempre com a lembrança dos momentos em que ele me lia em voz alta alguns trechos. Foi então que senti a língua alemã como um obstáculo. O alemão é uma língua muito moderna, muito atual. Todo universo de Kafka teria tido a necessidade de uma língua mais antiga, em que estivessem contidos os medos mais antigos, uma representação das coisas quase arcaica. Sua mente percebia nuances muito finas para uma mente moderna” (DIAMANT: 2011, s/p). Em sua biografia de Kafka, Danillo Nunes toma outro caminho para dizer o mesmo: “Do momento em que transpôs o umbral da casa paterna para frequentar a escola, Franz, que já se considerava um intruso na própria família, começou a se dar conta de sua estranha situação face ao mundo. De sangue judeu, mas alheio ao judaísmo; nascido em Praga, mas repudiado pelos tchecos; educado na cultura germânica, mas hostilizado pelos alemães; súdito do Império Austro-Húngaro, mas ignorado pelos austríacos; portanto apátrida em seu país, estrangeiro na própria cidade natal, não possuindo sequer um idioma, pois o que usava era de empréstimo” (NUNES: 1974, p.119). Tal estranheza constitutiva é uma constante dos modos de os intérpretes de Kafka o pensarem; ao designar sua “múltipla condição de não pertencer”(ANDERS: 2007, p. 26), Gunther Anders, por exemplo, afirma: “Como judeu, não pertencia de todo ao mundo cristão. Como judeu indiferente – pois a princípio o foi –, não se integrava inteiramente aos judeus. Por falar alemão, não afinava a fundo com os tchecos. Como judeu de língua alemã, não se incorporava por completo aos alemães da  Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria. Como funcionário de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não se adaptava de vez ao operariado. Mas também não pertencia ao escritório, pois sentia-se escritor. Escritor, porém, também não era, pois sacrificava suas forças pela família. Mas ‘vivo em minha família mais estranho que um estrangeiro’ (carta a seu sogro)’” (ANDERS: 2007, p. 26). Prostrado ao chão, fora dos cavalos, sem o cavalo do alemão nem o do tcheco que poderiam em parelha conduzi-lo, sem uma primeira língua que ofertasse segurança a ele, intruso, apátrida, estrangeiro (e com todos os “mas” das passagens anteriormente citadas), habitando uma ausência constitutiva de toda e qualquer língua como algo garantido, Kafka se coloca na insegurança do intervalo sem sentido entre as línguas mencionadas por Judith Butler (tcheco, alemão e ídiche).Estendendo o assunto, não há como não trazer o começo de “A preocupação de um pai de família”: “Alguns dizem que a palavra Odradek deriva do eslavo e com base nisso procuram demonstrar a formação dela. Outros por sua vez entendem que deriva do alemão, tendo sido apenas influenciada pelo eslavo. Mas a incerteza das duas interpretações permite concluir, sem dúvida com justiça, que nenhuma delas procede, sobretudo, porque não se pode descobrir através de nenhuma um sentido para a palavra”(KAFKA: 2003, p. 43). Como se sabe que os eslavos englobam os tchecos, Odradek escapa tanto do cavalo tcheco quanto do cavalo alemão, em di-  reção ao sem sentido da palavra que seu nome designa. Uma das etimologias de “eslavo” coloca o sentido de sua proveniência no que quer dizer “palavra”, “conversa”, “fala”, “língua”, sinalizando o povo que, com suas pessoas se entendendo, fala a mesma língua. Estar fora do eslavo é estar mudo ou murmurando sons desconexos, é estar fora da palavra, fora da língua, fora da conversa e fora da possibilidade de sentido. Quem está fora do eslavo, está fora da língua ou no desconexo de qualquer língua, incompreensível. Estando fora do eslavo, Odradek deveria estar no alemão, mas, se ele está fora da palavra, da língua e da conversa, como poderia estar no alemão? Sendo o bárbaro por excelência, o estrangeiro de toda e qualquer língua, – Kafka é taxativo –, Odradek não está, claro, tampouco, no alemão. Ele não está nem em uma língua nem em outra; ele está fora do sentido de toda língua, sendo exatamente esse fora que precisa ser nomeado. Sem domicílio, sem morada certa, sem meta, sem atividade, sem funcionalidade, sem finalidade, sem tempo, ficando na maior parte do tempo calado e sem ser visto, extraordinariamente móvel, Odradek é a personagem para o incapturável pela língua em sua articulação, o nome do indizível ou do que não se pode falar e que, por existir, precisa ser, de algum modo, nomeado (“Naturalmente ninguém se ocuparia de estudos como esses se de fato não existisse um ser que se chama Odradek” (KAFKA: 2003, p. 43). Não esqueçamos que, em um de seus textos mais antigos, “Descrição de uma luta”, de1907/1908, quando Kafka tinha aproximadamente a idade do personagem que nesse momento fala, para este, nem nome ha-  via, mas apenas o inominado é quem comparecia: “Boas-noites, amável fidalgo, tenho vinte e três anos, mas ainda não tenho nome” (KAFKA: 2012, p. 95). Uma das estranhezas de Kafka é a de trazer, como no caso de Odradek, o indizível para a nomeação do que não pode ser compreendido, explicado, capturado, concebível ou dito de outro modo que pela pura nomeação, que segue nomeando o inexplicável, o ininterpretável, mas que, além disso, o estende, para além da pura nomeação, para o âmbito da linguagem como um todo tal como manifesta em seus textos. Se Kafka escreve “poemas”, é, justamente, por escrever o que o nome Odradek evoca, mas não apenas no momento da nomeação. Enquanto nome para o poema, “Odradek” coloca seus leitores fora da língua ou diante de uma língua muda, desconexa, ilegível e sem sentido, levando-nos a adentrá-la e, uma vez nela, não sem hesitações, perder toda e qualquer representação, que não mais se impõe, antes, depõe-se. Paradoxalmente, é preciso nomear essa perda e, ainda mais, ao invés de calá-la, não parar na pura nomeação do que se perdeu, mas se deixar ser tomado por uma gramática contaminada pela negação de si própria, deixar-se ser tomado por uma língua contaminada por esse fora, por essa mudez, por essa ilegibilidade, por essa desconexão. De fora da língua ou em uma língua disjunta, precisamente porque está nela e nela não se reconhece nem sente qualquer possibilidade de pertencimento, o mínimo que fala se confunde com “um riso como só se pode emitir sem pulmões”, o mínimo que fala soa como “o farfalhar  de folhas caídas” e outros gestos capazes de manifestar o assignificante na textura do texto. Nomeando o que não pode fazer sentido em nenhuma língua, nomeando o que está entre uma língua e outra lhes sendo inapropriável e inacessível, nomeando o disjunto de qualquer língua, compondo o texto desde e para esse assignificante, “Odradek”é o nome do poema em Kafka, mas é também Kafka: desabrigado, sem refúgio, sem teto, exposto a tudo, nu, sem língua materna, no intervalo entre uma língua e outra, sem sentido e, nas palavras dele mesmo, deitado, prostrado no chão, como um horizonte neutro em que as qualidades não comparecem. Como Kafkadradek, como Kafkapoeta, pode – ainda – falar, senão sentindo-se completamente expropriado no que fala e necessitando ao extremo dessa expropriação em seu nível mais intenso? Como pode Kafka escrever, senão estando (quase) pronto para queimar tudo o que escreve? Como pode Kafka escrever senão como quem não pode mais escrever e com a sensação de ter chegado à última fronteira? Falar, ou escrever, mesmo e, sobretudo, nesse impossível, nesse inexplicável, nesse ininterpretável, nesse incapturável, nessa destruição, nesse vazio, nessa mudez, nessa disjunção, nesse negativo, é o fazer do poeta, o poema de Kafka. A respeito dessa escrita que, a todo momento, recobra seu negativo, sua ausência de voz, sua impossibilidade mesma de falar ou de escrever, simultânea à impossibilidade de dominar a linguagem mais trivial da comunicação cotidiana, em A carta ao pai, há um dos momentos de maior intensidade da escrita  kafkiana: “A impossibilidade da relação tranquila [com o pai] teve uma outra consequência, muito natural no fundo: eu desaprendi a falar. Por certo eu não teria sido, sendo outro o contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem humana corrente e comum. Mas tu me proibiste a palavra desde cedo, tua ameaça: ‘Nenhuma palavra de contestação!’ e a mão erguida para sublinhá-la me acompanham desde então. Adquiri junto de ti – és, quando se trata de tuas coisas, um orador excelente – um modo de falar entrecortado, gaguejante, e também isso era demais para ti, de modo que por fim calei, primeiro por teimosia talvez, mais tarde porque diante de ti eu não conseguia pensar nem falar”(KAFKA: 2004, p. 34). Enquanto, no prefácio a Parábolas e fragmentos, livro por ele traduzido, João Barrento afirma que “a biografia de Kafka há de ser uma história inenarrável, o registro de uma irrealidade”, o poeta, unindo explicitamente Sócrates, o Antigo Testamento, Nietzsche e Píndaro (e talvez Sófocles de modo implícito), em um de seus fragmentos do espólio, escreve: “Conhece-te a ti mesmo não significa: observa-te. Observa-te é a palavra da serpente. E significa: torna-te o senhor das tuas ações. Mas agora já o és, és senhor das tuas ações. A palavra significa então: desconhece-te! Destrói-te! Ou seja: qualquer coisa da esfera do mal. E só quando nos curvamos muito ouvimos também o bem em nós, cuja palavra é: ‘para te tornares naquele que és’” (KAFKA: 2012c, p. 113). Tornar-se aquele que se é desconhecendo-se, destruindose, esvanecendo-se, chegando a um ninguém que se é, abrindo  em si e em tudo uma lacuna supressiva. Da escrita de si, Kafka afirma: “A escrita nega-se-me. Daí o projeto das investigações autobiográficas. Biografia não, investigação e descoberta de elementos os mais ínfimos possíveis” (KAFKA: 2012c, p. 118). Porque essa dinâmica de dizer o quase apagamento e a negação no mais ínfimo possível está por todos os lados dos poemas de Kafka, Walter Benjamin pensa a sua obra como “uma elipse” (BENJAMIN: 1993, p. 301) complementadora de um tempo que, pautado pela “aniquilação em grande escala [d]os habitantes deste planeta” (BENJAMIN: 1993, p. 303), não transmite sua tradição senão por sua dissolução, tendo sua força exatamente na negatividade que, em todos os âmbitos, faz comparecer: “Kafka escutava o que lhe dizia a tradição e quem ouve intensamente não vê. Este ato de ouvir é cansativo, sobretudo, porque só coisas confusas chegam até aquele que ouve. Não há doutrina a se aprender e nem conhecimentos que se possa conservar. O que se capta de repente são coisas que não estão determinadas para nenhum ouvido em especial. Isto inclui um estado de coisas que caracteriza estritamente a obra de Kafka por seu lado negativo (quase sempre sua característica negativa será mais rica de perspectiva que a positiva)” (BENJAMIN: 1993, p. 303). Os diversos modos de o negativo se manifestar acolhe o incomum, o incomunicável e o intransmissível como elementos decisivos dessa escrita. Se, retomando o que ele disse, Kafka afirma que O veredicto é um “poema”, parece ser também por fazer emergir, com toda radicalidade, esse incomum e esse  incomunicável, a impossibilidade do em comum comparecer. Acerca do conteúdo da correspondência que Georg escreveu ao amigo russo, o narrador afirma: “Por essas razões, mesmo que se quisesse manter a ligação por correspondência, não se podia na verdade transmitir a ele nenhuma comunicação real” (comunicação, se há, é apenas do insignificante, do sem importância) (KAFKA: 1998, p. 11). O veredicto é um “poema” sobre a impossibilidade do comum e da transmissão ou da comunicação real, e por sua causa. Em tal “poema”, apesar da busca constante de Georg pela comunicação, o incomunicável comparece tanto no centro como em cada movimento que ocorre no texto. A busca pela comunicação faz o texto ter como ponto de partida a escrita de uma carta cujos remetente, destinatário e mensagem são logo conhecidos pelo leitor. Apesar da vastidão de sua epistolografia, ou por causa mesmo dela, a introdução da carta tem um efeito devastador, sendo ela, para o escritor, o lugar mesmo do incomunicável. Em uma de suas cartas à Milena, certamente uma das mais densas jamais escritas, de fins de março de 1922, Kafka diz odiar as cartas, ressalta que toda a tristeza de sua vida provém das cartas ou da possibilidade de escrevê-las, que elas certamente provocaram uma desintegração espiritual no mundo, que as cartas lidam apenas com os fantasmas dos que nelas estão envolvidos, aos quais – fantasmas (não ao outro real) – nos desnudamos, alimentando-os com nosso sangue, com nossa vida; surpreendentemente, ele exclama: “De onde terá surgido a ideia de que as pessoas podiam comunicar-se mediante  cartas?”(KAFKA: 2000, p. 198). Pela grandiosidade da carta, deixo aqui seu começo: “Há muito tempo que não lhe escrevo, senhora Milena, e também hoje lhe escrevo por uma casualidade. Na realidade não tenho que me desculpar pelo silêncio, você já sabe como odeio as cartas. Toda a desgraça de minha vida – não quero com isto me queixar, porém fazer uma observação de interesse geral – provém por assim dizer das cartas ou da possibilidade de escrevê-las. As pessoas quase nunca me atraiçoaram, porém as cartas sempre; e na verdade não as alheias, porém exatamente minhas cartas. Em meu caso é um infortúnio muito especial, do qual não quero continuar falando, porém ao mesmo tempo é também uma desgraça geral. A simples possibilidade de escrever cartas deve ter provocado – sob um ponto de vista meramente teórico – uma terrível desintegração de almas no mundo. É com efeito uma conversação com fantasmas (e para piorar não somente com o fantasma do destinatário, porém também com o do remetente) que se desenvolve nas entrelinhas da carta que se escreve, ou ainda em uma série de cartas, onde cada uma corrobora a outra e pode referir-se a ela como testemunha. De onde terá surgido a ideia de que as pessoas podiam comunicarse mediante cartas? Pode-se pensar em uma pessoa distante, pode-se agarrar a uma pessoa próxima, tudo o mais fica além das forças humanas. Escrever cartas, contudo, significa desnudar-se diante dos fantasmas, que esperam isso avidamente. Os beijos por escrito não chegam a seu destino, são bebidos pelo caminho pelos fantasmas. Com este abundante alimento se multiplicam,  com efeito, enormemente. A humanidade percebe-o e luta por evitar isso; e para eliminar no mais possível o fantasmagórico entre as pessoas e conseguir uma comunicação natural, que é a paz das almas, inventou a estrada de ferro, o automóvel, o aeroplano, mas já não servem, são evidentemente descobertas feitas no momento do desastre, o bando oposto é tanto mais calmo e poderoso, depois do correio inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios. Os fantasmas não morrerão de fome, e nós em troca pereceremos[...]”(KAFKA: 2000, p. 197-198). Depois de salientar os meios criados “no momento do desastre” como tentativas tardias, que se mostraram inúteis, de se combater esse fantasmático em nome de uma “comunicação natural” (a ferrovia, o carro motorizado e o aeroplano), poderse-ia dizer, presencial, caracteriza o nosso tempo de incrementos comunicacionais de modo factualmente assustador: “Os fantasmas não morrerão de fome, e nós em troca pereceremos”. Mesmo sabendo que estamos diante de um tempo que é “muito tarde” para qualquer reversão, escreve-se para mostrar a “eles”, “o bando oposto”, que se os conhece, para desmascará-los, para dar testemunho desse tempo, ainda que não se o possa transformar (KAFKA: 2000, p. 198). Diante disso, para além do que concerne a família de pais, irmãs e cunhados em Praga, ganha uma nova significação as palavras com que Dora Dymant diz que Kafka, quando lia seus textos para ela, apesar de jamais interpretá-los, não cansava de repetir, como uma obsessão dele: “Como eu gostaria de saber se eu escapei dos fantasmas!” (DIAMANT: 2011, p.  14). No filme Quem é Kafka?, essa mesma passagem é traduzida como: “Eu realmente gostaria de saber se iludi os fantasmas” (DINDO: 2006, 1h15’24”). Em O veredicto, tudo que seria inicialmente requerido para uma teoria da comunicação ou para que a comunicação se consumasse com tranquilidade a partir de um em comum está, como dito, estabelecido, mas, também como previamente colocado, trata-se de um texto sobre a impossibilidade do em comum, sobre a impossibilidade de transmissão ou de comunicação real. Principiando o “poema” com a escrita de uma carta, é certo que a infelicidade, o engano, a desintegração espiritual, o predomínio do fantasmático, o alimento do espectral, a retirada do real, a impossibilidade da comunicação, o desastre e o perecimento componham cada linha de O veredicto. O “poema” inicia com a manhã de um domingo primaveril, quando Georg acaba de escrever uma carta a um amigo que, por estar morando na Rússia, já não vê há três anos e a quem intenciona, não sem ter tido antes algumas dúvidas que, até certo ponto, persistem, dar notícias de seu noivado. Em um momento de pausa pacífica, ele olha brevemente para o rio – gesto que, ao fim, e quando o leitor recomeçar a leitura, passará a ter enormes intensidades, nesse eterno retorno do rio pelo mesmo e pela diferença em O veredicto. A princípio, a suposta normalidade e o aparente sucesso de Georg contrasta com a vida solitária e decadente de seu amigo “no estrangeiro”, que havia “saído fora dos trilhos”, que “se desgastava inutilmente”, que permanecia sem contato  com seus conterrâneos nem com famílias russas, que não tinha qualquer possibilidade de estabelecer uma vida amorosa, cujo trabalho, depois de um bom começo, há tempos havia “estacionado”... Diante dessa estranheza estrangeira do amigo distante, a primeira constatação da impossibilidade de comunicação, como já citado, comparece explicitamente: “Por essas razões, mesmo que se quisesse manter a ligação por correspondência, não se podia na verdade transmitir a ele nenhuma comunicação real” (KAFKA: 1998, p. 11). Por saber dessa impossibilidade de um em comum, de transmissão ou de comunicação real, Georg só vinha lhe escrevendo coisas insignificantes, ocultando o que lhe acontecia de mais importante, como seu noivado recente com Frieda, que anunciaria sua felicidade, e o sucesso profissional de seu momento (o que lhe é desimportante se torna importante para o amigo e o que lhe é importante – como a morte de sua mãe – não recebe do amigo a dimensão esperada). É a noiva, entretanto, quem, em dias recentes, sentindo-se ofendida por ele não revelar o noivado ao amigo e o cindindo entre a amizade de difícil comunicação e o amor, dizendo-lhe “– Se você tem amigos assim, Georg, não devia ter ficado noivo” (KAFKA: 1998, p. 13), leva-o a anunciar o noivado na missiva que na manhã de domingo escreve. Se a relação com o amigo carece de comunicabilidade, na amorosa, mesmo depois de um impasse inicial, ela parece ser possível, ao menos temporariamente, enquanto o pai de Georg não entra em cena.  Quando, logo, desviando o destinatário da carta (como a Carta ao pai e a “mensagem imperial” que não chegam a quem deveriam alcançar2),o filho resolve contar ao pai que decidira anunciar seu noivado ao amigo, o pai, um gigante pesado, banguela e aterrorizante, entra imediatamente em cena, interditando qualquer comunicação possível de seu filho com ele próprio, com o amigo, com o amor, com a mãe morta, com o trabalho, com o mundo. Entre Georg e a vida, há seu pai, entre Georg e Georg, há seu pai, em Georg, o fantasma de seu pai que se espalha, enquanto espectro, interditando todas as outras relações. Exatamente no meio do “poema”, quando o filho, no lugar de mandar a carta ao amigo que morava no exílio, vai antes contar sua decisão ao pai, há um amplo hiato, um hiato maior, engendrado pelo pai, que condensa todos os outros os ampliando ao extremo da impossibilidade total de qualquer comunicação real. Nesse momento, o veredicto final começa a ser antecipando, fazendo-se implicitamente presente. Ao ouvir a história de Georg, o pai, que há três anos conhecera o amigo do filho em sua própria casa, retorna com um contrassenso absoluto: “Você realmente tem esse amigo em São Petersburgo?” Logo depois, chamando o filho de “trapaceiro”, no movimento de aniquilação do filho, a interrogação se transforma definitivamente em afirmação, ao modo arbitrário sempre 2 Ou em “A partida” e “A próxima aldeia”, em que são pessoas que não chegam aonde seria o esperado.  trazido pela figura paterna (e por outras figuras do princípio de autoridade), preparando o ditado de uma lei autoritária cuja tirania se baseia exclusivamente na pessoa que a profere, com um efeito de drástica punição desmesurada àquele que se coloca sob seu governo: “Você não tem nenhum amigo em São Petersburgo. [...] Não posso de maneira alguma acreditar nisso” (KAFKA: 1998, p. 17-18). Se, como quer Kafka na entrada de 11 de fevereiro de 1913 de seu diário, “o amigo faz a ligação entre o pai e o filho, é o que eles mais têm em comum”, se o amigo é o “fundo comum” (KAFKA: 1984, p. 296), nesse momento, toda e qualquer possibilidade de existência do fundamento comum entre eles é destruída, levando junto “outros elementos comuns de menor importância” (KAFKA: 1984, p. 296). Antagonista do filho que o introjeta sem rivalizar com ele e tomando-o como insubstituível, sem encontrar uma brecha na imposição de seu caráter espectral, toda colocação do pai colide com o desejo do filho, aniquilando-o, como o que, depois do que havia afirmado do amigo do filho, diz sobre Frieda, a noiva de Georg: “Só porque ela levantou a saia, só porque a nojenta idiota levantou a saia, só porque ela levantou a saia assim, assim e assim, você foi se achegando, e para que pudesse se satisfazer nela sem ser perturbado, você profanou a memória de sua mãe, traiu o amigo e enfiou seu pai na cama para que ele não se movesse”(KAFKA:1998, p. 21). Sobre a noiva ele ainda ameaça: “Vou varrê-la do seu lado, você não imagina como” (KAFKA: 1998, p. 23).  Com a imposição absoluta do pai suprimindo todo o comum, levando Georg a ser praticamente nada, levando-o ao “sentimento de nulidade” (KAFKA: 2004, p. 25) do qual Kafka fala em A carta ao pai, levando-o a ser cada vez mais nada, resta ao filho o medo que o leva a “encolhe[r]-se a um canto o mais distante do pai” (KAFKA: 1998, p. 21). Insatisfeito, desse mesmo pai que exige do filho “toda a verdade” (“Mas não é nada, é pior do que nada, se você agora não me disser toda a verdade”(KAFKA: 1998, p. 16), que exige do filho a verdade absoluta e sem restos (como se ela fosse possível!), e como um grau ainda mais avançado de tal demanda, falta o proferimento do veredicto final do pai-tirano contra seu filho: “Eu o condeno à morte por afogamento!”. Ao filho, no ato determinado pela palavra, na palavra-ato, nesse suicídio que não deixa de ser um assassinato (realizado pelo pai, ao fim, plenamente introjetado no filho), resta-lhe apenas seguir a condenação do pai, atirando-se imediatamente para a morte no rio, murmurando: “Queridos pais, eu sempre os amei”. Além de dizer intimamente respeito ao escritor, o que Bataille coloca ao fim de seu “Kafka” serve perfeitamente a Georg, se entendermos a “atividade eficaz” como aquela de quem ocupa o princípio de autoridade: “Não há nada que ele [Kafka] pudesse afirmar, em nome de que ele pudesse falar: o que ele é, que não é nada, só o é na medida em que a atividade eficaz o condena, ele é apenas a recusa da atividade eficaz. É por isso que ele se inclina profundamente diante de uma autoridade que o nega, ainda que sua maneira de se inclinar seja mais violenta que uma  afirmação gritada; ele se inclina amando-a, sofrendo-a e opondo a ela o silêncio do amor e da morte ao que não o poderia fazer ceder, porque o nada, que apesar do amor e da morte não poderia ceder, é soberanamente o que ele é” (BATAILLE: 1989, p. 147). Enquanto, ao menos desde a história contada na carta postada a Oskar Pollak em 20 de dezembro de 1902, quando tinha então 19 anos, sabe-se de como a impossibilidade de comunicação real concerne à escrita de Kafka, ao fim do “poema” do incomunicável, ao fim do poema do incomum, o único comum e sua única comunicação passível em nosso tempo é a da palavra em ato (da palavra de “toda a verdade” e da verdade absoluta, sem restos) que aniquila a vida em nome da morte, para a qual não há palavras possíveis; em nosso tempo, o transmissível ao leitor parece ser apenas a aniquilação e a destruição absolutas. Revertendo as expectativas iniciais, ao fim, a estranheza, o fracasso e o descaminho do amigo russo nos são revelados, simetricamente, de modo ainda mais intensivo em Georg, em sua impossibilidade mesma de viver, integralmente submetido que está ao pai todo poderoso com sua sentença que atrela miticamente a linguagem ao suposto real. Pela morte, deixa-se ver com toda clareza o extremo a que leva a conciliação com o pai enquanto um dos modos de o princípio de poder, de o princípio de tirania, se fazer dominadoramente presente na impossibilidade de preservação de um fundamento comum com o outro até a nadificação ou nulidade deste último. Se na morte a subserviência não prossegue é apenas porque nada prossegue na morte, senão a possibilidade  de testemunho e de denúncia do excesso que a gerou por quem acompanha a aniquilação banalizada. Enquanto a linguagem crítica é a que mantém o seu objeto (ou o real) inacessível ou inapreensível ou incapturável, o veredicto paterno do poema, com a cumplicidade – igualmente mítica – do filho (do outro), que o torna integralmente subserviente àquele, se equivale a um modo militar, característico de todos que ocupam a posição de uma autoridade não crítica, de uso das palavras, de todos para quem ao dito, em seu absolutismo, nada falta, de todos para quem o dito quer se perfazer plenamente no fato que, à revelia de seu objeto inapreensível, quer engendrar. Enquanto o pai de Georg, exigindo-lhe, como se isso fosse possível, “toda a verdade”, lhe diz que “mas não é nada, é pior do que nada, se você agora não me disser toda a verdade”, em Preparativos da boda no campo, pode-se ler, mostrando a afinidade entre o pai e os soldados ou o exército no princípio de poder absoluto ou de tirania que os une: “Dois soldados vieram e se apoderaram de mim. Eu me defendi, mas eles me seguravam firmemente. Eles me conduziram até o seu senhor, um oficial. Como seu uniforme era multicolorido! Eu disse: ‘Que quer então o senhor de mim? Eu sou um civil’. O oficial sorriu e disse: ‘Você é um civil, mas isso não nos impedirá de prendê-lo. O exército tem tudo em seu poder” (KAFKA apud LÖWY: 2005, p. 88). Iludir os fantasmas ou escapar deles, trapaceá-los, parece se dar pela denúncia mesmo deles em um tempo em que o em comum, a comunidade, não se coloca mais como uma saída que  favoreça nossa vida. Essa crítica dos poderes absolutos com suas tiranias cruéis, injustas e opressivas é uma constante dos escritos e da vida de Kafka, e parece ser pela existência deles que ele sente a frequência de não ter ainda nascido, que o leva a dizer que “minha vida é hesitação diante do nascimento” (KAFKA: 1984, p. 527). Depois do morrer ou antes de ter nascido são duas das dimensões que Kafka traz para a vida na tarefa de pensar criticamente os diversos modos de poder instituídos. Nesse sentido, é com o “poema”como se incomum e incomunicável, longe de uma linguagem que quer representar a realidade, longe igualmente de uma linguagem que quer, miticamente, engendrar, antecipando-o, algum acontecimento específico, é com o “poema” entendido enquanto o lugar da impotência maior, que Kafka revela, criticando-a, a tirania dos poderes instituídos. Talvez não seja, então, despropositada, nem tampouco uma simples boutade, a frase que, segundo Helene Cixous, Derrida lhe teria dito em conversa com ela: “Veja você, Kafka, eu o sinto sempre – e é essa a diferença entre Kafka e Proust – sempre mais potente que a filosofia. Em uma narrativa de duas páginas ele desenvolve mais potência filosófica que o mais filósofo dos filósofos” (CIXOUS: 2006, p. 72).  A iNCOLUmiDADE DO CANTO (das s-obras) “Talvez ele saiba tão pouco de mim quanto eu dele” (Kafka) “Só interpretá-la é que não era fácil” (Kafka) Deleuze e Guattari começam o livro a quatro mãos se perguntando como entrar na obra de Kafka, que sempre coloca ao leitor múltiplas entradas, portas inumeráveis e passagens sem porta. Para eles, entra-se não importa por qual buraco, nenhum sendo melhor do que o outro para tal acesso. Ao longo deste livro, é visto que talvez não se trate de uma obra, a de Kafka, que seus escritos querem ser anteriores à ideia de obra ou de literatura,que o que escreve são restos ou resíduos de uma força maior, a de escrever, mas o não saber inicial de como entrar associado à quantidade de entradas mostra que qualquer modo de ingresso em tais escritos, qualquer buraco privilegiado, depende de uma estratégia de leitura, ainda que a ser descoberta.  Seja o que for que nos impulsiona, a direção é a entrada; ela é o objetivo, ainda que o caminho a ser percorrido para descobri-la e adentrá-la seja pura hesitação. Ela, a entrada, será, entretanto, possível? Ou bloqueada? Mostrar-se-á ela visível e aberta? Ou será um beco sem saída? Logo no início, os pensadores mencionados advertem: o inimigo, o significante com as interpretações a lhe atribuírem significados, ficam de fora, com a entrada certamente vedada a eles. No caso, diante da suposta obra, estupefatos, os sentidos falham. A assunção dessa impossibilidade interpretativa está, reiteradamente, e com motivos de sobra, em muitos dos críticos de Kafka: “A crítica é derrotada por Kafka sempre que cai na armadilha que ele invariavelmente monta para a interpretação direta, a armadilha de sua fuga idiossincrática da interpretabilidade”, afirma Harold Bloom (BLOOM: 1995, p. 430). Se os sentidos subsistem, é tão somente para, no traço exato da barra entre eles, lançarem-se, e lançarem-nos, a uma linha de fuga, a um caminho indireto. Para os dois filósofos, trata-se de fazer uma experimentação. Experimentação da vida pelos escritos, os escritos enquanto experimentação de vida a demandarem uma experimentação dos leitores que sabem que o dentro da suposta obra está vedado e que os sentidos lhe estão de fora. Por fora de Deleuze e Guattari, como dizer essa experimentação com os escritos kafkianos? Como pensar a relação entre texto e leitor? Mesmo que a intua pequena, camuflada e, quiçá, falsa, farejo uma entrada por perto, mas não sei exatamente onde ela está. Logo no primeiro ensaio deste livro, escutamos Kafka  afirmar que seu trabalho poético trata de uma “entrada real na vida”(KAFKA: 1984, p. 91). Em sua poeticidade, qualquer entrada é uma entrada em vida, um acesso a ela, a ela que, pelos escritos, nos acessa. Entrada é entrada na vida, entrada no que escapa de tudo o que, estabelecido e repisado, se solidificou, mumificando vida, entrada no que escapa a todo e qualquer princípio despótico ou de tirania. Em Kafka, contínua e igualmente, lemos, entretanto, a busca por uma saída. Em “Um relatório para uma academia”, em seu devir homem, o macaco, entre macaco e homem, macaco-homem, usando uma palavra que, com seus múltiplos usos ao longo da tradição ocidental, sempre foi uma das mais importantes para se pensar a poesia, a literatura e as artes, afirma: “Eu imitava porque procurava uma saída, por nenhum outro motivo”; em A construção, o animal escavador diz: “preciso ter a possibilidade de uma saída imediata”(KAFKA: 1991, p. 64), “seja como for, preciso ter a garantia de que em alguma parte talvez exista uma saída fácil de alcançar, completamente aberta, onde, para me evadir, já não tenha mais de trabalhar”(KAFKA: 1991, p. 65). Ter à disposição uma saída do que o prende (do trabalho burocrático, da família, do casamento...), tendo uma entrada (a escrita), ainda que mínima, disponível para uma vida possível, para uma vida suportável, para uma vida, quem sabe, com momentos um pouco mais do que suportáveis. Se, no mesmo movimento em que nós, leitores, tentamos farejar uma entrada, quem está dentro teima em intuir uma saída, há encontro possível? Quem se lança à tentativa do movimento  de entrada e quem se lança à tentativa do movimento de saída encontram ou constroem uma passagem, a mesma, que tornaria o encontro possível? Em termos espaciais, encontrar uma saída é sair obrigatoriamente de dentro para fora e encontrar uma entrada é entrar obrigatoriamente de fora para dentro, ou quem está dentro pode encontrar uma saída por dentro mesmo e quem está fora pode encontrar uma saída por fora? Na exata medida em que um, leitor, tenta, sem êxito, entrar, o outro, animal selvagem, foge exatamente da tentativa (mal-sucedida) de seu caçador? Não há vida por dentro e por fora, nas entradas e nas saídas? Entraria o leitor na toca do texto, na toca-texto? Sairia o texto de sua toca em direção ao fora em que o leitor está? Será a dificuldade maior a de entrar nos escritos de Kafka ou a de, uma vez estando com eles, deles, conseguir se afastar? Digamos de uma vez: salvo raros momentos de exceção, o inimigo que está fora permanecerá, praticamente inacessível e incomunicavelmente (senão por seus ruídos), fora e o animal escavador de dentro permanecerá, praticamente inacessível e incomunicavelmente, dentro, sem abandonar sua construção. As inversões dos lugares serão rapidamente impelidas à zona habitual em que ambos se sentem mais à vontade. Alguns ecos dos movimentos de cada um repercutem, certamente, para o outro, que lida com obsessão exatamente com a experimentação feita a partir dos efeitos do que os afeta. Ao acaso, animais menores, ratos pequenos, abrem microtrilhas pelas quais o ar, a luz e presas mínimas passam. Para quem está de fora, não há entrada visível  pela qual possa acessar o dentro da toca. Os escritos estabelecem seu inacessível: “Por fora é visível apenas um buraco, mas na realidade eles não levam a parte alguma, depois de poucos passos já se bate em firme rocha natural” (KAFKA: 1991, p. 63). Nesse movimento de tentativa de entrada impossível, dando cabeçadas na pedra do texto em sua superfície exterior, sem conseguir vê-la por dentro, sem conseguir adentrá-la, o leitor trata de criar, por fora, um desenho, um mapa. Lembre-se que, depois de dizer o que citamos antes, o animal escavador afirma: “Também aquela saída não me salva, como provavelmente ela não me salva em caso algum, antes me arruína, entretanto é uma esperança e eu não posso viver sem ela”(KAFKA: 1991, p. 63). Na inacessibilidade ao dentro dessa escrita, cabe a quem fala dela lidar com o que encontra na superfície do fora, traçar seu mapa esboçado enquanto procura o acesso inencontrável. Para complicar tudo, a mais ou menos um quilômetro da falsa entrada mencionada, há uma verdadeira, camuflada, que, ainda que com grandes dificuldades, pode ser aberta; além dela, há pequenas tocas, corredores e fossas experimentais, cavados e ocupados em momentos de necessidade. A entrada verdadeira leva igualmente o animal escavador a se sentir ameaçado por algum inimigo farejador, já que por onde se sai se entra. Apesar de sua tentativa de segurança, o animal-texto é frágil, inquieto, vulnerável e mortal. Além de pela verdadeira entrada, o inimigo pode atacar a toca por algum flanco inesperado pelo selvagem, cavando na terra e na rocha um buraco insuspeito; ainda exis-  tem lendas críveis que afirmam haver bichos indescritíveis que habitam a própria terra, sendo seu elemento o mesmo do animal que constrói incessantemente sua toca. Além do inimigo e desses bichos indescritíveis, há ainda a possibilidade de algum serzinho repulsivo que o siga adentrando a toca querendo tornar-se chefe de seu mundo ou um vagabundo qualquer de sua própria espécie que queira morar em uma toca sem ter de construí-la. Nesse caso, de quem seria a toca e quem seria propriamente seu habitante? Estariam tais animais na toca de quem realiza o monólogo ou seria este quem estaria em uma construção maior daqueles? Contra toda certeza e garantindo a incerteza, há um movimento contínuo de expropriação, da impossibilidade da propriedade se fazer com segurança, da impossibilidade de a segurança se fazer. A toca que o animal constrói com todo seu esforço e cansaço, dando-lhe, inclusive, seu sangue (sangue que poderá se misturar com a terra em sua morte com o possível ataque inimigo), abrese para ele em experiências que se dão entre a tranquilidade do sono e o sobressalto, entre o descanso profundo e a insônia, entre a paz e o perigo, entre a sobriedade e a afobação, entre a almejada propriedade e sua impossibilidade na expropriação. Ela também tem diversos tempos, ou melhor, seu tempo é infinito, mas, dentro desse tempo infinito, que o próprio animal não pode degustar senão por momentos passageiros, para o animal escavador, comparecem diversos cortes, com novas medições, nesse infinito do tempo: existe o tempo de sua vida, o de uma  semana, o do dia e da noite, o das horas que passam, o em que a sombra do inimigo cessa, os prazos mais curtos e mais longos, tempos apressados e vagarosos, tempos intervalares, tempos de breves cochilos, o tempo instantâneo, o tempo fora da toca... Esses tempos correspondem igualmente aos múltiplos tempos da escrita de Kafka, e ainda seria preciso demarcar com mais precisão essa rítmica do texto; ao acordar sobressaltado com mais um ruído, pondo-se ao trabalho, o tempo é entrecortado, repleto de breves alternâncias, mudanças imediatas de estados, inquietudes, cesuras a cada segundo, a sintaxe é quebrada em palavras estanques, até que com o despertar pleno ele ralenta, delongando-se outra vez no sono: “aí eu me apresso, voo, não tenho tempo para cálculos; porque quero executar um plano novo e exato, agarro arbitrariamente o que me vem aos dentes, arrasto, puxo, suspiro, gemo, tropeço, e qualquer mudança do estado presente, que eu julgo superperigoso, me satisfaz. Até que aos poucos, com o despertar pleno, vem a sobriedade e eu mal compreendo a afobação, respiro fundo a paz da minha casa, que eu mesmo perturbei, volto ao meu lugar de dormir, adormeço rápido com o cansaço renovado e, ao abrir os olhos, encontro ao acaso, como prova irrefutável do labor noturno, que então parece quase irreal, um rato pendendo das minhas mandíbulas” (KAFKA: 1991, p. 69). É certo que, para exercitar-se ao ar livre e conseguir alimentos melhores, o animal escavador sai de sua toca pela saída camuflada anteriormente mencionada, mas apenas para  retornar à ocupação de seu refúgio, já que “a pena de me privar dela por muito tempo parece-me então dura demais” (KAFKA: 1991, p. 71). Em seu retorno, quando ele, de fora, contemplando a toca, observa a entrada, sente-se então como seu próprio inimigo, como aquele que, de fora, diante da toca, observa a obra continuamente em construção. Nesses momentos de reversibilidade e de empatia com a alteridade, dentro e fora, construtor e inimigo, texto e leitor, animal escavador e animal escavador (o de fora é igualmente um animal escavador) se confundem. Nesse regresso à toca, observando-a, a admiração por ela é tanta, e tanta a segurança momentaneamente sentida, que “quase erigia um canto a incolumidade da construção” (KAFKA: 1991, p. 67). Aqui, esse mise-en-abîme, esse jogo de espelhamento, em que o animal quase erige o que Kafka está então realizando em seu texto: um canto solitário que recomeça sempre de novo requisitando uma reconstrução infinda, um canto ao que, na construção, na toca, na escrita-buraco em movimento, com “a falha, como de resto sempre há uma falha onde se possui um único exemplar de alguma coisa”(KAFKA: 1991, p. 69), permanece inapropriável, inacessível e inexpugnável; um canto de um canto labiríntico indevassável, um canto enquanto celebração do labirinto (KAFKA: 1991, p. 78) refratário, a ser comemorado a cada retorno a ele. Inapropriável, inacessível, inexpugnável e indevassável, diga-se, não apenas para o inimigo externo, mas também para o animal escavador que, na toca construída por si e potencialmente ainda em construção, vivendo, habita e que, em  épocas de tranquilidade maior, quando mais resolve se aproximar de seu centro, experimenta a intensidade que nem ele aguenta: “Costumam então vir épocas especialmente pacíficas, em que transfiro devagar, gradualmente, os meus lugares de dormir dos círculos mais distantes para o meio e mergulho cada vez mais fundo nos odores, a ponto de não aguentar mais”(KAFKA: 1991, p. 70). Nem quem constrói a toca a suporta em sua força maior, sendo dela, com a garantia de sua inexpugnabilidade e independência, desapropriado. Inapropriável, a toca tem sua vida própria: “é ao mesmo tempo exasperante e comovente quando me perco por um momento na minha própria criação e a obra parece se esforçar para provar a mim, cujo julgamento já está consolidado de longa data, seu direito à existência” (KAFKA: 1991, p. 73). Além de nem a praça principal ficar, pela impossibilidade anunciada, no centro, independente de quem fica por fora e de quem fica por dentro, mesmo que um saiba muito pouco, ou quase nada, do outro, independente dos que se perdem nela e por ela, a “obra” tem “seu direito à existência”, que, em sua parte extrema, leva o habitante à insuportável intensidade de seu meio, de seu núcleo impossível de ser habitado, de seu centro impossível de autorizar uma permanência nele. Se, em sua intensidade maior, o canto é incólume, há uma experiência que pode ser feita e para a qual os melhores momentos deste “velho mestre de obras” estão reservados: a do silêncio. O trabalho sempre mais urgente para se fazer é o de, contra os  “provocadores de barulho” (KAFKA: 1991, p. 92), construir esse silêncio, pois, apesar de ele, não se preservando por muito tempo, ser efêmero, “a coisa mais bela de minha construção é o seu silêncio. Certamente ele é enganoso. Pode ser interrompido de repente e então tudo se acabou. Por enquanto, porém, ele ainda continua” (KAFKA: 1991, p. 65-66); “de tempos em tempos, regularmente me assusto e fico escutando, escutando no silêncio que aqui reina inalterado dia e noite”; “é preciso haver silêncio nos meus corredores” (KAFKA: 1991, p. 86), “lá a paz estaria assegurada e eu seria sua sentinela, não teria de ficar escutando com repulsa as escavações das criaturinhas, mas sim ouvindo deliciado aquilo que agora me foge completamente: o sussurro do silêncio na praça do castelo” (KAFKA: 1991, p. 90); “Às vezes me parece que o ruído cessou, de fato ele faz longas pausas, não se repara mais no zumbido, o próprio sangue pulsa demais no ouvido, depois se juntam duas pausas em uma só e por um momento se crê que o zumbido terminou de vez. Continua-se sem escutar, dá-se um pulo, a vida toda sofre uma reviravolta, é como se a fonte da qual flui o silêncio da construção se abrisse” (KAFKA: 1991, p. 95]; “chego àqueles [corredores] mais longínquos (...) cujo silêncio desperta à minha chegada e mergulha sobre mim” (KAFKA: 1991, p. 97); “não há nada mais quieto do que o reencontro com a construção” (KAFKA: 1991, p. 105). Construir uma toca e erigir um canto para, ao menos, deles, ser a sentinela de sua paz, a sentinela do sussurro do silêncio, para que esse silêncio apazigue seu conflito, para que ele lhe dê  tranquilidade e sossego em meio a toda angústia provocada pela presença (mais próxima ou mais distante) do inimigo, para que possa dizer: “Silêncio profundo; como é belo aqui, ninguém se preocupa com a minha construção, todos têm seus interesses, nenhum deles está relacionado comigo, como é que cheguei a isso?” (KAFKA: 1991, p. 97). Edificando, no canto da toca, esse vazio, esse oco, essa cavidade, essa cova, esse vão, chegar então a isso, ao silêncio, como quem, afastando os ruídos inimigos que sinalizam a possibilidade da morte, chega à sua salvação, ao possível de uma vida, a um modo de vida passível de ser defendido: “quero que a construção não seja outra coisa senão o buraco destinado a salvar minha vida, e que ela realize essa tarefa claramente definida com a máxima perfeição – e nessa hora estou disposto a dispensá-la de qualquer outra missão” (KAFKA: 1991, p. 81). Que se saiba, portanto, que tal salvação silenciosa (único esforço para o qual se constrói uma obra), é, de fato, efêmera, incerta, frágil, suscetível, a um só tempo, salvação e ruína, pois, “silencioso ou agitado, o perigo espreita” (KAFKA: 1991, p. 97) e “o zumbido continua o mesmo” (KAFKA: 1991, p. 103). É notório que a construção tem muitos defeitos, fraquezas e falhas sem erradicação possível (KAFKA: 1991, p. 72). Nesse esburacado subterrâneo que é a cova, escavação construída abrigando vazios e um tempo infinito, com seu mundo muito menos atrelado ao campo visual que ao sonoro, ao tátil, ao olfativo e ao do paladar, é certo apenas que não se dispõe “de nenhuma solução”  (KAFKA:1991, p. 103), que “Tudo continuou inalterado” (KAFKA: 1991, p. 106). Importante frisar que “Tudo continuou inalterado” não é a palavra final do texto – não há palavra final em Kafka (quando ela existe, como no caso de O veredicto e outras narrativas, é exatamente para ser veementemente criticada). Em Kafka, apenas palavras em abertura. Em termos biográfico e informativo, sabe-se que A construção é um canto sem fim. Na nota sobre os textos e traduções de Um artista da fome; A construção, na página 108, Modesto Carone indica: “Mas, segundo a versão autorizada de pelo menos um especialista, o escritor estava enfrentando sérias dificuldades para elaborar o desfecho de A construção; por isso – e como precisasse fechar o livro para publicação – deixou-a de fora e a substituiu pela bem-humorada (na aparência) história da cantora-camundonga. Aconstrução permaneceu, assim, inacabada, e chegou até nós como fragmento [...]”. A versão dada por Kathi Diamant em seu livro sobre Dora é distinta, ainda que permaneça, por motivos diversos, a incompletude da obra: “Tal como Kafka e Dora recordam-na, a história de Kafka acabava com a temível besta matando a aterrorizada criatura, mas o final extraviou-se e jamais foi publicado. Tal como está, a história termina com a terrível besta momentaneamente tranquilizada, com a linha final dizendo: ‘Mas tudo permaneceu inalterado’” (DIAMANT: 2013, p. 61). A confiar nessa passagem, que não está no conhecido depoimento da Dora, mas talvez em seus diários, teria sido por um extravio que, incompleta, A construção não teve um desfecho  similar ao de O veredicto e ao de A metamorfose. Com menos detalhes, Marthe Robert, que conheceu pessoalmente Dora, também afirma sobre A construção: “Falta o fim do manuscrito, mas a narrativa estava provavelmente acabada” (ROBERT: 1963, p. 184). Em todos esses casos é o fim que falta, é a falta do fim (ou o fim enquanto falta) que é lançada para o texto que a ela, enquanto ausência, se lança. “Tudo continuou inalterado” é a frase da interrupção, em que subitamente o texto, inacabado, pausa, mostrando nele a mesma incompletude que a da construção da toca. Tanto o trabalho da toca quanto o do texto ou, melhor dizendo, o monólogo do testemunho da solidão da construção da toca-texto é certamente infindável, inacabável, inconcluso, por vir, sem chegada, infinito. Nele, haveria ainda muito a ser feito, haveria ainda, talvez, tudo a ser feito, tudo ainda a acontecer, mas o trabalho encontra sua pausa pelo meio, pelo meio é ele, muitas vezes, retomado, pelo meio é ele pausado, indicando qualquer ausência de desfecho no trabalho que, certamente, vem. Que aquela frase dita pelo animal escavador (“Tudo continuou inalterado”) não é a final, mas, antes, que ela poderia ser lida como um refrão do canto que anuncia que inalterada mesma é apenas a necessidade do construir ser incansável, obsessiva e pacientemente retomada, é indicado por passagem anterior, pelo meio, bem antes de o texto ser interrompido. Lá pelas tantas, o animal afirma: “Continua tudo inalterado, não parece ter acontecido nenhuma desgraça maior, os pequenos estragos que noto à primeira vista serão logo  reparados” (KAFKA: 1991, p. 84). Quando a frase “Tudo continuou inalterado” retorna não é, portanto, para findar o texto, mas para uma pausa indicadora de um lançar-se em mais um trabalho por vir de reparo da toca. Em sua pausa, em seu inacabamento pontuado, o texto se lança para um futuro que não vem, o texto se lança para o trabalho que vem, permanecendo, ele, texto, em suspensão. Que “Tudo continuou inalterado” é certo, mas é preciso que haja esperança, ainda que não para nós. Que uma dessas esperanças seja a de que o inimigo, o leitor, o salteador, o animal escavador do lado de fora da toca, o intruso que quer ir de encontro a uma das trilhas construídas por precaução e mínima alegria, também esteja apaixonadamente em busca de sua salvação, em busca de uma defesa, mesmo que precária, para o perigo da vida, que, tal qual o animal escavador de dentro da toca, imerso no risco de um trabalhar gratuito e vital, ele seja um “inimigo que luta desesperadamente pela vida”(KAFKA: 1991, p. 71), que ele também seja o mestre de obras de uma construção que lhe oferte ao menos um segundo de silêncio, ou de um labirinto, de mais de cinquenta recintos, que às vezes oferte menos de uma hora que seja de tranquilidade, ainda que enganosa, que abra sua fonte de algumas dezenas ou centenas de metros trabalhando em nome de um eventual sussurro do silêncio, que, por enquanto, ainda continua. Se, a todo momento, frágil ao extremo, enquanto obra, a toca é ameaçada de destruição, indestrutível (se há qualquer indestrutibilidade) parece ser tão somente o movimento de seu  construir sem fim, que, em Kafka, se impõe com constância ao que habitualmente é chamado de obra. Nesse sentido, poderia ser acolhida a formulação feita por Harold Bloom de que “o indestrutível não é uma substância em nós que prevalece, mas [...] um continuar quando não podemos continuar” (BLOOM: 1995, p. 441), acrescentando ainda ao que ele disse que o indestrutível não é uma substância preservada, tampouco, enquanto obra ou objeto artístico, fora de nós, mas exatamente esse nosso “continuar quando não podemos continuar”. O indestrutível, se há, é apenas a performance aporética do animal escavando sua suposta obra mesmo sabendo que jamais chegará ao fim, ou seja, uma performance anterior à noção de obra em sua finalização e em sua finitude, anterior à noção de a obra atingir sua completude em ato. Quando, logo no início, é dito que “quem pensa que sou covarde ou que edifico minha construção por covardia me desconhece” (KAFKA: 1991, p. 63), parece ficar indicado que, caso o animal que fala ou que pensa em solilóquio fosse de fato covarde, a ênfase recairia na própria obra protetora construída para rejeitar o inimigo, mantendo-o à distância; não havendo covardia, há, na construção, algo de mais decisivo do que o perigo do enfrentamento, não sendo por isso que o animal constrói sua obra: conhecer o escavador é reconhecer que, não sendo ele covarde, é a atividade do fazer que lhe é prioritária sobre o feito. Não sendo imaginário, mas real, o inimigo (e a consequente preocupação com os preparativos de defesa), entretanto, parece não ser mais do que um pretexto ou um álibi a tentar justificar o que, de toda  maneira, não poderia deixar, em hipótese alguma, de se fazer. Ainda que o aparente ser, o inimigo não é o responsável que provocaria o trabalho da construção nem quem induz o animal escavador ao medo maior. Como afirma Filipe Pereirinha do pai da Carta ao pai, apesar de o inimigo ser o primeiramente visível, sua função é secundária (PEREIRINHA: 2014, p. 30); o medo maior do animal escavador do interior da toca é o de parar de escavar, o de parar de realizar o (em) vão de sua vida, como a de qualquer outro, mortal, do mesmo modo que, para Kafka, seu medo maior era parar de escrever, diga-se, o medo de escrever em vão, o medo de escrever os vãos, o medo de escrever com o desejo constante de apagamento do escrito, de escrever com o desejo constante de simplesmente de escrever. Se, como já quiseram, A construção pode ser lida como um testamento ficcional-autobiográfico de Kafka escrito nos últimos meses de sua vida, parece-me ser, sobretudo, e, exatamente, nesse sentido. Afastando-se das tragédias familiares cujos personagens correm riscos frequentes de recaírem na edipianização (como, por exemplo, em O veredicto ou em A metamorfose) a levarem à morte por suicídio e assassinato, longe da família, em Berlim, com Dora, Kafka escreve esse “canto” que confirma, como nenhum outro, o relato de Gustav Janouch dizendo que seu amigo não queria fazer literatura, mas que entendia tudo quanto escrevia como “testemunhos de minha solidão” (JANOUCH: 1993, p. 30). Se A construção pode ser lida como um testamento ficcional-autobiográfico é exatamente por ser, como nenhum  outro texto kafkiano, esse canto do testemunho de sua solidão. O inimigo existe tão somente como a última fronteira que protege o animal escavador de se deparar direta e imediatamente com o insuportável do em vão de sua atividade vital. O construir da toca do escrever é a um só tempo a entrada possível na vida e a fuga do animal escritor por onde vida é subterraneamente liberada. Para o animal em exercício de seu monólogo (como para o macaco-homem), é bom que se lembre, algo como liberdade é sem sentido, tolo, não estando ele destinado, como sabe, a ela. Trata-se, é certo, de outra coisa. Não que não haja algo como o resto de uma obra ou como um resíduo de uma ainda nem obra, mas o que há, em transformação e fragilidade, é tido por inteiramente acidental. Se, no lugar de uma obra, tem-se o resto de uma obra, não se tem mais uma obra, mas uma s-obra. Além de se manter no pré-literário ou no anteliterário, Kafka escreve s-obras, o que s(e)-obrou da completude que falta. Agamben diria que, na modernidade e, especialmente, a partir do século XX, para o artista, a obra “transforma-se em um resíduo [embaraçante] em certa medida não necessário à sua atividade criativa” (AGAMBEN: 2013, p. 356). Ainda em linguagem agambeniana, a atividade criadora de Kafka enquanto animal escavador da escrita e da vida (do escrever a vida escavada) procuraria se firmar “para além daquilo que produz”, ou seja, seu valor está “além da obra que produz” (AGAMBEN: 2013, p. 357). Dentro da cisão entre a atividade ou a operação de construir e a coisa construída, não resta dúvidas de que Kafka prioriza o primeiro elemento, sendo  o segundo constantemente reenviado à possibilidade do fogo, da pata e da testa inimigas ou de desdobramentos afins. Não se trata, então, de construir uma morada fora de si, mesmo que o circunde, mas de a morada ser o próprio construir, vazio de tudo que não seja o construir. Que, enquanto edificação a manter o inimigo afastado, a obra não é o mais importante, o próprio texto o diz, com a clareza possível a opor o trabalhar, monstruoso, ao resultado do trabalho: “Se eu tivesse feito a construção apenas para a segurança da minha vida, na verdade não estaria fraudado, mas a relação entre o trabalho monstruoso e a garantia efetiva, pelo menos até onde sou capaz de senti-la e até onde posso me beneficiar dela, não seria para mim uma relação favorável. É muito doloroso admitir isso, mas é preciso fazê-lo, precisamente diante da entrada, que agora se fecha – literalmente se enrijece – contra mim, o construtor e proprietário. Mas a construção não é mesmo apenas um buraco de salvação”(KAFKA: 1991, p. 81-82). Não, a salvação não é a construção feita, mas o incessante construir sempre retomado. Ainda que com as imensas diferenças existentes em relação à “Josefina, a cantora”, a começar por, contrariamente ao canto da solidão, o da ratinha ser um canto (ou um assobio) desde o povo e para ele (enquanto, da mesma época, ainda há “Um artista da fome”, com sua arte – que não é um canto – para um público), há aproximações que podem ser feitas entre o construir do escavador e o cantar de Josefina, para além do próprio fato de ambos serem animais.  Entre os vínculos que podem ser estabelecidos, parece-me importante ressaltar aqui a própria dedicação aos seus afazeres distintivos, nos quais habitam, resguardando o fato de que para o animal escavador seu trabalhar é muito menos intermitente que o de Josefina. No caso de Josefina, sua hora de cantar chega, sobretudo, quando a intranquilidade, o temor, o susto, a dificuldade, a hostilidade, a desgraça, o sofrimento e o insuportável se abatem sobre cada um e sobre a comunidade, sobre a multidão, sobre o povo: “Aí Josefina considera ter chegado sua hora. Ei-la em pé, o ser delicado vibrando inquietadoramente sobretudo abaixo do peito; é como se estivesse reunindo no canto todas as forças, como se tudo nela que não sirva imediatamente ao canto ficasse privado de qualquer energia, de qualquer possibilidade de vida; como se ela, despojada, entregue, estivesse só sob a proteção de bons espíritos; como se um alento frio, ao passar ventando pudesse matá-la, enquanto ela, completamente retirada, habita o próprio canto”(KAFKA: 1991, p. 42). Esse habitar o próprio canto que é um habitar sua intensidade maior se dá de tal modo que reúne “no canto todas as forças”, fazendo com que tudo “que não sirva imediatamente ao canto ficasse privado de qualquer energia, de qualquer possibilidade de vida”. Em Josefina, ao menos nessas horas, nas horas em que começa a levantar sua cabecinha para cantar, toda possibilidade de vida está concentrada em seu cantar; o que se dá diariamente com o animal escavando sua toca, fazendo do escavar sua forma de vida.  Kafka é certamente daqueles que realizaram com maior radicalidade a forma de vida do artista tal qual pleiteada por Agamben para nossa época, a forma de vida de quem, adentrando-a ao extremo, procura defender-se da vida pelo agir da criação: “Artista ou poeta não é quem tem a potência ou a faculdade de criar e que, um belo dia, por meio de um ato de vontade ou obedecendo a uma injunção divina, decide, como o deus dos teólogos, não se sabe como e por que, executar algo. Assim como o poeta e o pintor, também o carpinteiro, o sapateiro, o flautista, enfim, todo homem, não são os titulares transcendentes de uma capacidade de agir ou de produzir obras. Ao contrário, são viventes que no uso, e apenas no uso, de seus membros – como do mundo que os circunda – fazem experiência de si e constituem-se como formas de vida. A arte é apenas o modo no qual o anônimo que chamamos artista, mantendo-se em constante relação com uma prática, procura constituir a sua vida como uma forma de vida. A vida do pintor, do músico, do carpinteiro, nas quais, como em toda forma de vida, está em questão nada menos do que a sua felicidade. Gostaria de concluir com as palavras de um grande pintor de Scicli, que à pergunta ‘para o senhor, Piero Guccione, pintar é mais que viver?’, apenas respondeu: ‘Pintar é certamente para mim a única forma de vida, a única forma que tenho para defender-me da vida’”(AGAMBEN: 2013, p. 361). A pergunta que ainda se me torna necessária fazer é: se o animal escavador pode dizer que “tudo, tudo [é] silencioso e va-  zio” (KAFKA: 1991, p. 82), como entender o silêncio? No âmbito do mundo subterrâneo desse animal que fala, a questão não é propriamente o que é o silêncio (pergunta que seria demasiadamente metafísica), mas: quando ele ocorre? Quando ocorre o silêncio no labirinto subterraneamente entocado? O que há de ser preciso ter por garantia é que, no que diz respeito à toca, o silêncio “aqui reina inalterado dia e noite” (KAFKA: 1991, p. 66). Se, entretanto, no infinito de tempo da construção, o silêncio reina continuamente inalterado e se ali tudo é silencioso, por qual motivo o animal escavador não faz, a todo momento, sua experiência reconfortante? Como se sabe que na toca há diversos tipos de sons, a primeira assunção é a de que, reinando inalterado, o silêncio não é, certamente, a ausência de todo e qualquer som, mas de certos tipos de barulhos insistentemente chamados ao longo do monólogo de “ruídos”, “zumbidos” e “assobios”. Por que, então, a experiência frequente do animal na toca não é, prioritariamente, a do silêncio ou a do silenciar, mas, antes, a dos ruídos, a dos zumbidos e a dos assobios? O que são esses ruídos, zumbidos e assobios que afastam o animal escavador do silêncio que reina inalterado no vazio da toca? Há duas experiências similares que demarcam o caminho de amadurecimento do personagem, que o levam de, nos primeiros tempos da obra, “pequeno aprendiz” (KAFKA: 1991, p. 101) a, ao fim do monólogo, um “velho mestre de obras” (KAFKA: 1991, p. 103). De certa maneira, a primeira funciona como uma experiência traumática capaz de acionar o acontecimento de  um devir. No texto, ela é caracterizada como a em que, naquele momento, em uma pausa do trabalho (antes da experiência ele já construía, portanto, o começo de sua toca), o então jovem animal ouve subitamente um ruído à distância (KAFKA: 1991, p. 101), que o absorve a ponto de levá-lo a, abandonando o trabalho que realizava, pôr-se a escutá-lo, com algum medo e muita curiosidade. Chegamos ao que, para o caso, mais interessa: esse ruído escutado se diferenciava dos outros sons na medida em que o animal escavador “podia discernir bastante bem que se tratava de alguma escavação semelhante à minha. [...] Talvez eu esteja em alguma construção alheia e o dono agora cave seu caminho até mim, pensei comigo mesmo” (KAFKA: 1991, p. 101-102). Saberemos depois que o outro animal que fazia o ruído foi em outra direção que não a do protagonista. A experiência atual, a que, no exato momento em que se lembra da anterior, está vivendo, é similar. Em uma pausa do trabalho, fica escutando com o ouvido na parede o zumbido que revela a presença próxima do inimigo intimidador, mostrando que a construção, mesmo agora em sua velhice, quando enorme, continua indefesa (KAFKA:1991, p. 103). Compatíveis com a sobre a sua juventude, duas falas são, nesse instante, reveladoras: 1) “talvez eu não precisasse cavar muito longe até a origem do ruído, talvez tivesse bastado a escuta nos condutores” (KAFKA: 1991, p. 104); 2) “De resto, procuro decifrar os desígnios do animal”(KAFKA: 1991, p. 104). Se, na rememoração da juventude, pelos ruídos, o animal escavador “podia discernir” o sentido do  que os provocava, na experiência atual, trata-se igualmente de os zumbidos terem uma “origem”, de “decifrar” “os desígnios do animal” inimigo, que os provocam. Em todos esses casos, ruídos e zumbidos estão atrelados ao que tem uma causa entendida enquanto sentido determinado: o da proximidade do inimigo a causar alguma curiosidade e, cada vez mais, o temor da morte possível. Em ambas as experiências, o significado, a interpretação a ofertar um sentido à origem ou à causa, cola ao som, impedindo o som de ser puro som, lendo-o como um significante a receber um significado o mais preciso possível. Vejamos outros casos que surgem ao longo do canto: “Só sou despertado do último sono, que dissolve a si mesmo; ele já deve ser muito leve, pois um zumbido quase inaudível me acorda. Compreendo imediatamente o que é: aquelas criaturinhas muito pouco fiscalizadas por mim, e por mim poupadas em excesso, perfuram em algum lugar, na minha ausência, um novo caminho e este deu de encontro com uma trilha antiga, produzindo o ruído sibilante. Que gente incansavelmente ativa é essa, como é aborrecida sua aplicação aos trabalhos” (KAFKA: 1991, p. 85-86). Não se trata aqui do grande inimigo, mas de pequenas presas em ofício; apesar disso, a “compreensão” (o discernimento ou a decifração da causa e dos desígnios) do zumbido com seu sentido aderido continuam presentes, a ponto de ele seguir suas investigações na tentativa de se aproximar “em absoluto da sede do ruído” (KAFKA:1991, p. 86), “pois dificilmente poderia haver alguma dúvida quanto à sua origem” (KAFKA: 1991, p. 87). Dando fim  a essas presas e chegando à origem do sentido certo, o silêncio da toca é recobrado. Mostrando a importância do fato de que tais ruídos tenham sentidos assegurados que possam e tenham de ser apreendidos em nome da segurança, imediatamente em seguida, o animal escavador repete: “a partir do ruído que meu ouvido tem a aptidão de distinguir em todos os matizes – a tal ponto que ele se torna claramente definível – imagino a sua causa e me ponho a verificar se isso corresponde à realidade. Com fundadas razões, pois enquanto não ocorre a constatação não posso também me sentir seguro”(KAFKA: 1991, p. 87). A preocupação com o sentido dos ruídos, ou seja, com suas causas e origens, com distingui-lo, com constatá-lo, é obsessivamente retornante: “Se eu tivesse acertado no motivo do ruído, ele teria de se irradiar com o máximo volume a partir de um lugar determinado, que seria necessário descobrir, tornando-se depois cada vez menor. Mas se minha explicação não era exata, qual então seria?” (KAFKA: 1991, p. 88). E mais uma vez: “Abrirei um grande, autêntico fosso na direção do ruído e não paro de cavar antes de descobrir, independentemente de qualquer teoria, a causa real do ruído” (KAFKA: 1991, p. 92). Essa lógica do ruído ou do zumbido, como o ao quê o sentido de sua origem ou de sua causa se agrega ao barulho escutado colando a ele, está por todos os movimentos do texto (nas páginas 98 e 99, da edição mencionada, quando o escavador se sente ameaçado pelo grande animal, perigoso além do concebível, ela atinge, talvez, seu ápice, com inúmeras repetições).  Já tendo sido dito, o silêncio não é a ausência de todos e quaisquer sons, mas tão somente desses que são chamados de ruídos, zumbidos, assobios, desses que estão atrelados ao sentido de suas causas e origens, perturbando a tranquilidade do animal escavador. O silêncio é a garantia de que, entre os sons existentes que reverberam pelo labirinto da toca, nenhum está relacionado a ele, animal, ou seja, nenhum indica ruídos que tenham como causa a existência de outros animais, sobretudo a de o grande animal, a querer matá-lo ou conquistar sua toca. O silêncio se dá quando ocorre exatamente a descontinuidade, a interrupção, a não conformidade, entre os sons e os sentidos. Poder escutar os sons sem que os sentidos lhes sejam imediatamente decalcados é fazer a experiência do silenciar; poder ouvir os sons sem que com eles venha conjuntamente a lógica do entendimento e da representação. Trata-se de uma aprendizagem: a de lidar com a instabilidade dos sentidos e a incerteza das avaliações. Repito as palavras do animal: “Silêncio profundo; como é belo aqui, ninguém se preocupa como a minha construção, todos têm seus interesses, nenhum deles está relacionado comigo, como é que cheguei a isso?” (KAFKA: 1991, p. 97). E de novo: “lá a paz estaria assegurada e eu seria sua sentinela, não teria de ficar escutando com repulsa as escavações das criaturinhas, mas sim ouvindo deliciado aquilo que agora me foge completamente: o sussurro do silêncio na praça do castelo” (KAFKA:1991, p. 90). No que diz respeito à leitura de seu próprio escrito, Kafka parece, então, entender por silêncio não uma privação sonora,  mas a transformação da interpretação que atribui um sentido ao canto em uma suportabilidade da ininterpretabilidade do canto enquanto sua experiência matérica bruta. Pois é a isso, a esse silêncio profundo cujo sussurro não está atrelado à obrigatoriedade de uma causa que, enquanto indício de perigo, o emita, que se quer aqui chegar, pois nele parece estar a felicidade possível. Ao menos, uma saída também para a crítica, um segredo que, na superfície mesma do texto, se mantenha secreto, um enigma que, na superfície mesma do texto, se mantenha insolúvel, um sussurro que, na superfície mesma do texto, se mantenha sem mensagem, uma mensagem, que seja, que, na superfície mesma do texto, apesar de enviada em murmúrio no resguardo de um ouvido, torna-se para sempre perdida e inacessível, sendo exatamente a perdição e a inapropriabilidade que chegam ao destinatário (a nós) enquanto o envio, de fato, desejado, o ininteligível em nossa toca-texto, os elementos assignificantes que a atravessam por todos os lados, a capacidade de escutar a insensatez que, desde o texto, desde até mesmo – vamos lá, sou obrigado a conceder – (que desde até mesmo) os sentidos do texto, apesar de tudo, em nossos ouvidos, ressoa. Aprender o que fazer com essa ressonância insensata, com essa ressonância sem causa, de modo a continuar repercutindo-a, é a escavação do (em) vão do animal crítico. Neste percurso em busca de adentrar a construção kafkiana, pelo qual se mostra o paradoxo de, ao mesmo tempo em que a interpretabilidade não nos autoriza acesso à toca, a experi-  mentação derivada da ininterpretabilidade parece impedir o afastamento do contato com ela, a figura que me vem para o leitor ou para o crítico não é mais, como ao começo, a do grande e perigoso inimigo farejador, cuja posição, ao menos uma vez, do lado de fora da entrada da toca, parece se confundir com a do animal escavador, cuja posição se torna, como visto, secundária em relação à necessidade do em vão do escavar, mas tão somente a de um daqueles ratinhos que abrem microtrilhas sem perigos e minimamente favorecedoras à vida entocada: “Além dessa grande via, ligam-me com o mundo externo caminhos bem estreitos e razoavelmente sem perigo, que me proporcionam bom ar fresco para respirar. Eles foram instalados pelos camundongos da floresta. Consegui incorporá-los acertadamente à minha construção. Eles me oferecem a possibilidade de farejar à distância e me dão assim proteção. Através deles também chega a mim toda espécie de criaturinhas que eu devoro, de maneira que disponho de uma certa quantidade de caça pequena, suficiente para um estilo de vida modesto, sem ter de abandonar minha construção – e isso é sem dúvida muito valioso” (KAFKA: 1991, p. 65). Talvez, com os ratos, a crítica possa sair da “grande via” (KAFKA: 1991, p. 65) que liga claramente o dentro da toca ao mundo exterior, da lógica dualista do inimigo, do juízo, do partidarismo, da oposição, da confrontação, do conhecimento, do discernimento, da distinção, da decifração, da compreensão, da descoberta, da explicação, do motivo, da origem, da causa, da representação, do sentido... Para adentrar uma poética do  favorecimento não representativo daquele que, também em sua solidão, lutando do mesmo modo desesperadamente por sua vida, está realizando sua própria escavação em busca de abrir mínimas frinchas para que o trabalho (em vão) de escavação se realize também por ele, crítico; trabalho de escavação, esse sim, indestrutível, para que ele prossiga seu movimento virtualmente infinito no tempo infinito da toca sem ficar atravancado por muito tempo. A partir de A construção, artista e crítico não formam uma família: o texto exige tanto para o artista quanto para o crítico solidões a escavarem, cada qual por necessidades próprias, os seus vazios, solidões a escavarem suas próprias salvações, em busca de, desbloqueando uma situação, abrirem um furo qualquer, pequeno que seja, onde antes só havia o beco sem saída.  POR UmA HisTÓRiA DOs ERROs PRODUTiVOs DA LiTERATURA E DA FiLOsOFiA (o caso de uma nota de pé-de-página de Deleuze e guattari sobre Kafka) São raríssimos os escritores cujos nomes, nas mais variadas línguas ocidentais, se transformaram em adjetivos dicionarizados, ou seja, que a marca decisiva de seus dizeres produziu na cultura um sentido de alguma maneira derivado do impulso que propagaram, caído no senso mais comum de uma conversa rotineira não especializada, mantida por quem quer que seja. Isto ocorre porque, com suas obras, eles acabaram por demarcar no conjunto dos leitores – e, a partir deles, igualmente na comunidade de não leitores – a impressão de um sentido que nenhuma outra palavra, nenhum conceito filosófico e nenhuma interpretação sociopolítica até então existentes eram capazes de revelar com tamanha precisão. O fato de virarem caricaturas só ressalta a força que conseguiram alavancar, a ponto de, pela necessidade repetitiva de seu uso, se tornarem estereótipos. Na maior parte das vezes, entende-se, por exemplo, algo do que é homérico, platônico ou  dantesco sem que se saiba quem foi Homero, Platão ou Dante nem, muito menos, sem que se tenha lido uma linha sequer de suas rapsódias, diálogos ou poemas. Sem nenhuma dificuldade de compreensão, qualquer um pode dizer que uma partida de futebol foi homérica, que aquele amor é platônico, que um acontecimento específico é dantesco. Ou, no que aqui me interessa, afirma-se frequentemente que tal ou qual situação é kafkiana, querendo com isso significar, de modo geral, uma atmosfera em que cotidiano e pesadelo se misturam, em que o desconforto absoluto com a burocracia em seus excessos lógicos e racionais, mas sem fundamento nem finalidade, predomina, subjugando ao extremo cada um de nós ao não querer nos deixar qualquer alternativa para ela, ao querer, parafraseando o próprio escritor, ter tudo em seu poder. Lula afirma com precisão: “a burocracia é competente na defesa dos seus interesses. Ela pode não ser competente na defesa dos interesses de quem está no governo, mas na defesa dos interesses da burocracia ela é competente”1. Deixando claro que a burocracia não existe para fins de viabilização dos interesses de quem está no governo e implícito que ela tampouco existe para facilitar o cumprimento dos interesses dos governados, mas que sua competência diz respeito exclusivamente à propagação 1 SILVA, Luiz Inácio Lula da. O necessário, o possível e o impossível (entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili). Dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. SADER, Emir (Org.). São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO Brasil, 2013. p. 26.  exclusiva da própria máquina, com suas leis intrínsecas e ininteligíveis a quem quer que seja, sem nenhum fim para além de si mesma, Lula oferece um exemplo que remonta ao paradigma de uma situação kafkiana: “Por exemplo, eu sou presidente e discuto e decido uma coisa com um ministro, que anunciamos para a imprensa. Aí o ministro sai do meu gabinete, vai ter que conversar com o Guido Mantega. Aí o Guido vai marcar audiência quando puder. Ele conversa com o Guido, acerta tudo, mas vai ter que passar pelo planejamento. Aí vai ao planejamento. ‘Olha, mas tem um problema no Iphan’. Vai ter que ir ao Iphan. Depois, surge um problema no Meio Ambiente. Ali está com um problema sério, não vai passar, tem que ir ao Ministério do Meio Ambiente. Aí o ministério fala: ‘não é comigo, é com o Ibama’. Vai ao Ibama. E quando tudo dá certo, vem a licitação, vai ao Ministério Público. Quando tudo dá certo, uma empresa perde e entra com uma ação contra a outra. E pronto. Passou o mandato e você não fez as coisas. É muito complicado. Hoje, nenhum governante faz um projeto grande, licita e conclui a obra num mandato de quatro anos. Não é possível”2. No filme independente Ghost Dance, de 1983, dirigido por Ken MacMullen, Derrida relembra um episódio – certamente, kafkiano – vivido por ele mesmo, em que o “fantasma de Kafka” parece ter escrito o roteiro da situação que lhe aconteceu: “No ano passado, há exatamente um ano, fui a Praga para participar 2 Id. Ibid. p. 27.  de um seminário privado com alguns filósofos tchecos dissidentes, os tchecos interditos, que não podiam ensinar nas universidades. Fui seguido todo o tempo pela polícia secreta tcheca, que não fez nenhum segredo sobre isto. Após o seminário, fui fazer um passeio pela cidade de Kafka, como se em busca do fantasma de Kafka, que estava, de fato, ele mesmo, me perseguindo. Fui ver as casas em que Kafka morou – são duas em Praga – e, depois, ao seu túmulo. No dia seguinte, no momento em que fui preso, supostamente por tráfico de drogas, descobri que, na hora exata em que estava na tumba de Kafka e tão preocupado, até certo ponto, com o fantasma de Kafka, a polícia secreta tcheca entrou em meu quarto e plantou um pequeno pacote de drogas na minha mala como pretexto para a minha prisão no dia seguinte. Quando fui interrogado pela polícia, que me perguntou o que eu fazia em Praga, respondi verdadeiramente que estava preparando um ensaio sobre Kafka, sobre um fragmento de Kafka extraído de O processo, um texto que se chama ‘Diante da lei’. Durante todo meu interrogatório e prisão, o fantasma de Kafka estava efetivamente presente e o cenário escrito por Kafka regrava toda a cena, a cena sendo aquela de O processo, como se estivéssemos todos atuando em um filme programado pelo fantasma de Kafka”3. O que se chama habitualmente de kafkiano submete, 3 DERRIDA, Jacques. In: MACMULLEN, Ken. Ghost dance. Disponível em: <http:// www.youtube.com/watch?v=mDmsqpN3o14>.  é certo, presidentes e não presidentes, filósofos e não filósofos, reduzindo cada um de nós à nossa própria insignificância e evidenciando os dispositivos de poder, quaisquer que sejam, que querem, como já se disse, nos afastar de nossa potência. Em relação aos outros escritores mencionados (Homero, Platão e Dante), no caso de Kafka, mostrando sua pregnância, assusta a velocidade com a qual o adjetivo se formou4. Lidar com Kafka é, ao menos ao nível da linguagem de massa, lidar, em algum grau, com alguns dos efeitos que sua obra produziu e continua produzindo, com essa dimensão dita kafkiana da vida, especialmente, da vida dos séculos XX e – ainda – XXI. Todos que se aproximam dos escritos de Kafka (e daqueles muitos especiais derivados dos dele) são completa e complexamente enredados por sua atmosfera, que, muito mais forte do que a capacidade que a individualidade de cada um de nós poderia ter para lhe fazer frente, determina um pensamento inultrapassável para o convívio com a conjunção dos acontecimentos de nosso tempo. Somos arrastados por aquilo que Kafka escreveu, como 4 O Oxford English Dictionary oferece como a citação mais antiga do respectivo adjetivo a do artigo de John Ayto no New Yorker em 4 de janeiro de 1947, em que mencionava a kafkaesque nightmare of blind alleys, mas, nesse mesmo ano, a palavra já havia caído na boca do povo, pois, em O castelo de Axel, Edmond Wilson escreve: “Kafka’s novel have exploited a vein of the comedy and pathos of the futile effort which is likely to make ‘kafkaesque’ a permanente word”. Antes disso, em 1938, Cecil Day Lewis usara o mesmo termo para descrever Journey to the border, de Edward Upward, como “kafkaesque in manner”. Dois anos antes, a conhecida carta de Oaxaca, de MalcomLowry, afirmara: “No words can describe the terrible condition I am in... This is the perfect Kafka situation... I am in horrible danger… Don’t think I can go on. Where I am it is dark. Lost”.  uma pulga é conduzida por um cachorro aonde quer que ele vá. O escritor tcheco inventou uma rede de leituras da realidade que, com uma violência capaz de se sobrepor, inelutavelmente, a cada um de nós, a nossa época só veio gradativamente confirmar, dando-nos a sensação de que o vivido é uma espécie de déjà vu, ou, talvez melhor, de um déjà vécu na leitura dos fragmentos, contos, novelas, romances, diários, cartas... O incontornável de, nesse caso, a realidade ser percebida como uma espécie de representação sombria ou fantasmagórica da literatura deve-se à virulência do empreendimento. Quando disse “nós” um pouco mais acima, quis me referir a mim mesmo, neste momento em que tenho lido tanto Kafka quanto alguns de seus amigos e estudiosos, mas também aos grandes pensadores que produziram a partir de seus textos, mostrando-se, além de sensíveis à força avassaladora de tais escritos, eles mesmos enleados igualmente em tal trama. Em diversos graus, senão em tempo contínuo, ao menos em alguns momentos, todos, mesmo aqueles com maior força de criação e reflexão, estamos submetidos ao que há de mais predominante no emaranhado do que de modo geral se entende por kafkiano. Em certo momento de Kafka; por uma literatura menor, Gilles Deleuze e Félix Guattari mencionam uma passagem, referente ao fragmento habitualmente conhecido como “O grande nadador”, que, mesmo estando localizada perifericamente em uma nota de pé-de-página, é de fundamental importância para a leitura que então propõem, da literatura como, entre outras  coisas, torção que uma minoria realiza em uma língua, o da literatura como desterritorialização de uma língua, o da literatura como produção de uma língua estrangeira na própria língua que falamos, o da literatura como fabricação de uma orfandade ou de uma povoação onde há o suposto materno ou familiar da língua, o da literatura como um tornar-se nômade, cigano, imigrante de sua própria língua. Nesse contexto, propondo o uso desviante da língua (inclusive e, sobretudo, da língua soberana) no lugar das fórmulas hegemônicas, eles preparam o aparecimento da nota: “Grande e revolucionário, somente o menor. Odiar toda literatura de mestres. Fascinação de Kafka pelos serviçais e pelos empregados (mesma coisa em Proust quanto aos serviçais, quanto à linguagem deles). Todavia, o que é interessante ainda é a possibilidade de fazer de sua própria língua, supondo que ela seja única, que ela seja uma língua maior ou que o tenha sido, um uso menor. Estar em sua própria língua como estrangeiro; é a situação do nadador de Kafka”5. Exatamente nesse momento, surge a nota com a citação kafkiana trazida à tona por eles, que, muitas vezes, tocando-me, me chamou atenção, dizendo: “Sou obrigado a constatar que estou aqui no meu país e que, apesar de todos os esforços, não compreendo peva da língua em que o senhor fala”6. 5 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Kafka; por um literatura menor. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977. p. 40-41. 6 Id. Ibid. p. 41.  Dentro dos aspectos poéticos e intelectuais, indissociáveis do privilégio momentâneo pelo afetivo ou pelo patético, pessoalmente, reconheço que me comovo com a frase por me sentir muitas vezes assim, como na maior parte dos eventos acadêmicos que frequento, quando assisto a grande maioria das incursões de colegas, incluindo os que mais admiro, sem entender patavina do que estão dizendo; inúmeras vezes, sinto-me assim também na vida de modo geral, tornando-se tudo então muito mais complexo do que poderia parecer à primeira vista. Falando a língua que todos falam em nosso país, não consigo entender o que está sendo dito, apesar de cada uma das palavras me ser, até certo ponto, plenamente acessível. Para repetir a expressão usada, sinto-me um estrangeiro na língua que falo, ela própria cindida de tal maneira que me leva a, ouvindo-a sem compreensão, afastar-me dela, distanciar-me, não sem alguma aflição, de seu entendimento, sem me aproximar de qualquer outra. Talvez, essa incompreensão, presente tanto na frase do nadador de Kafka (“Sou obrigado a constatar que estou aqui no meu país e que, apesar de todos os esforços, não compreendo peva da língua em que o senhor fala”) quanto em algum lugar de minha maneira de escutar o outro, seja um dos elementos que me movem a ter, às vezes, a necessidade de inventar o que dizer, provavelmente, ainda que na mesma língua da dos colegas e companheiros, sem que eles tampouco entendam. Imagino que venha principalmente daí o fato de o trecho citado discretamente pelos filósofos ter me marcado muito, apesar  de não ter lido, até muito recentemente, o fragmento maior de onde ele é retirado. Relendo por esses dias o livro de Deleuze e Guattari, deparei-me de novo com a frase de Kafka (“Sou obrigado a constatar que estou aqui no meu país e que, apesar de todos os esforços, não compreendo peva da língua em que o senhor fala”), tendo me sentido, mais uma vez, impactado por ela. Fui então procurar “O grande nadador” em português. Não encontrando esse fragmento na rede, descobri, ao menos, que havia uma tradução dele publicada entre nós, em um livro esgotado, chamado Sonhos, com passagens de Kafka ligadas às anotações de sonhos, uma onirografia retirada principalmente de seus diários e cartas, mas também dos Fragmentos de cadernos e folhas soltas. Nele, encomendado em um sebo, encontro, aparentemente, o que procurava, com a chance de ler “O grande nadador” pela primeira vez: “O grande nadador! O grande nadador!”, gritavam. Eu chegava das Olimpíadas de Antuérpia, onde tinha batido um recorde mundial em natação. Estava parado na escadaria da estação de minha cidade natal – onde era? – olhando para a massa difusa na luz crepuscular. Uma menina, em cujo rosto faço uma carícia rápida, enrola-me nos ombros uma echarpe onde está escrito numa língua estrangeira: “Ao campeão olímpico”. Um automóvel se aproxima, alguns homens me empurram para  dentro, dois deles me acompanham, o prefeito e mais alguém. Logo chegamos a um salão de festas; à minha entrada um coral na galeria superior começou a cantar, e todos os convidados, eram centenas, ergueram-se e saudaram-me em uníssono com um verso que não entendi direito. À minha direita estava um ministro, não sei por que esta palavra tanto me assustou quando nos apresentaram, e de soslaio o medi agressivamente, mas logo me contive; à minha direita sentava-se a esposa do prefeito, uma dama exuberante, tudo nela, em especial na altura do peito, parecia estar cheio de rosas e plumas de avestruz. À minha frente estava um homem, cujo nome me escapou ao ser apresentado, muito gordo e com o rosto extraordinariamente branco; ele mantinha os cotovelos sobre a mesa – tinham-lhe reservado um espaço maior – e permanecia calado e com o olhar fixo adiante; ele sentava-se entre duas belas moças loiras e muito engraçadas, que conversavam o tempo todo, e eu ficava olhando de uma para a outra. Apesar da iluminação intensa, não conseguia distinguir os demais convidados, talvez porque todos estivessem em movimento, erguendo os copos e brindando, e os serviçais passassem por todos os lados servindo comida; ou talvez a iluminação fosse simplesmente excessiva. E também havia uma  certa desordem – aliás a única –, causada por alguns convidados, em especial mulheres, que se sentavam de costas para a mesa; não que o encosto das cadeiras estivesse entre as pessoas e a mesa, mas quase chegava a tocar a mesa. Chamei a atenção das duas moças à minha frente sobre esse fato, mas elas, até agora tão falantes, limitaram-se a sorrir e me olhar longamente, sem nada dizer. Ao soar de um sino – os serviçais imobilizaram-se entre as fileiras – o gordo à minha frente ergueu-se e fez um discurso. Por que será que o homem estava tão triste! Enquanto falava, enxugava o rosto com um lenço; isso até passava, era compreensível devido à sua obesidade, ao calor no salão e ao esforço demandado pelo discurso, mas percebi nitidamente que era um truque para encobrir as lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Ele mantinha os olhos sobre mim, não exatamente me olhando, mas como se estivesse vendo meu túmulo aberto. Quando acabou, naturalmente também me ergui e proferi um discurso. Realmente sentia necessidade de falar, pois me parecia que aqui, e provavelmente também em outro lugar, havia muitas coisas a esclarecer, pública e abertamente7. 7 KAFKA, Franz. Sonhos. Trad. Ricardo F. Henrique. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003. p. 146-148.  No momento, não me cabe fazer uma interpretação do fragmento mencionado, mas tão somente sinalizar minha decepção pelo fato de o presente na nota 25 da edição brasileira de Kafka; por uma literatura menor não ser aí encontrado. O que teria ocorrido para que tal passagem não aparecesse na edição de Sonhos? Esse livro acolheria tão somente um fragmento do fragmento? Era preciso continuar a investigação. Busco traduções para o inglês, o espanhol, o francês e consulto, finalmente, o texto alemão: para minha surpresa, todos são coincidentes, explicando o ocorrido. Por algum motivo não revelado, “O grande nadador”, de Sonhos, é interrompido antes do original em alemão (e, consequentemente, das traduções consultadas); ele não traduz exatamente o discurso do nadador, anunciado por um “darum begann Ich” vindo imediatamente em seguida à suspensão súbita da edição por mim até então conhecida. Lendo então, nessas outras traduções, o discurso do nadador, novos problemas se colocam, sobretudo para o que mais me interessa aqui. Voltemos à frase de Kafka mencionada primeiramente na nota do livro de Deleuze e Guattari, que, devido ao interesse, motivou a pesquisa: “Sou obrigado a constatar que estou aqui no meu país e que, apesar de todos os esforços, não compreendo peva da língua em que o senhor fala”. Ao ler a tradução para o inglês, fico literalmente estupefato; ela diz exatamente o contrário do que tanto havia me sensibilizado na brasileira de Kafka; por uma literatura menor. No lugar  do “sou obrigado a constatar que estou aqui no meu país e que, apesar de todos os esforços, não compreendo peva da língua que o senhor fala”, o texto em inglês insere uma negação, tornando a frase muito mais plana, previsível e menos instigante do que a citada pelos filósofos: “I must first explain that I am not now in my father land and, in spite of considerable effort, can not understand a word of what has been spoken”8. Se não estou em minha pátria, se, nascendo em outro país, sou efetivamente um estrangeiro, é bem provável que, não sendo poliglota, não entenda mesmo a língua falada – nada de admirável em tal situação. Nela, nada da surpresa desconcertante de, mesmo estando em meu país natal, não sendo portanto (pelo menos dentro da acepção do senso-comum) um estrangeiro, apesar de todos os esforços, não entendendo nada do que está sendo dito, precisar criar uma língua estrangeira dentro da própria língua que, como todos os meus supostos compatriotas, aprendi a falar. Essa negação na fala do nadador coloca, aliás, uma contradição entre esse momento do texto e seu começo já citado, em que, logo após ser saudado pela multidão e dizer que acaba de chegar das Olimpíadas da Antuérpia, onde bateu o recorde mundial de natação, ele afirma: “Estava parado na escadaria da estação de minha cidade natal – onde era? – olhando para a massa difusa na luz crepuscular”. Ainda que não se saiba qual é sua cidade natal, 8 Traduzido do alemão por Daniel Slager. Disponível em:<http://www.grandstreet. com/gsissues/gs56/gs56e.html>.  sabe-se que é nela que o nadador acabou de chegar. Como agora, ao fim, ele diz “não estou em minha terra natal”? Teria a tradução para o inglês errado, implantando uma negação onde, como na citação de Deleuze e Guattari, existiria uma afirmação? Vou a uma tradução espanhola, que, para minha crescente perplexidade, confirma a negação presente em inglês: “En primer lugar debo constatar que esta no es mi patria y que a pesar de todos los esfuerzos no entiendo ni una palabra de cuanto aquí se disse”9. Diante de tal estranheza, minha suspeita imediata é a de erro da tradução brasileira do livro de Deleuze e Guattari, colocada de lado logo depois da consulta ao original francês, cuja nota 25, igual à da edição brasileira, afirma: “Le Grand Nageur est sans doute undes textes plus ‘beckettienes’ de Kafka: ‘Il me faut bien constater que je suis ici dans mon pays et que, en dépit de tous mes efforts, je ne comprends pas un mot de la langue que vous parlez...” (Oeuvres completes, V, p. 221)10. Como indicado em outra nota anterior do livro, a tradução utilizada foi a de Marthe Robert, presente na primeira edição francesa da obra completa de Kafka, editada em oito volumes pelo Cercle de Livre Précieux (de Claude Tchou), sendo no quinto encontrado o Préparatifs de noce à la campagne, onde está “O grande nadador”. 9 KAFKA, Franz. El silencio de las sirena: Escritos y fragmentos póstumos. Trad. Juan José del Solar. Barcelona: Random House Mondadori, 2005. Disponível em: <http:// porlaverdad3.wordpress.com/2011/03/25/>. 10 DELEUZE, Gilles et GUATTARI, Félix. Kafka; pour une litterature mineure. Paris: Les Éditions de Minuit, 1974. p. 48.  Diferente da para o inglês e da para o espanhol consultadas, a referida tradução afirma que o nadador está em seu país e que, apesar de todos os seus esforços, não compreende uma palavra da língua que as pessoas falam. A tradução de Marthe Robert é confirmada em seu próprio livro sobre Kafka, no qual se pode ler: “de regresso à sua cidade natal, o Grande Nadador que ganhou o título de campeão olímpico apercebe-se de que não compreende uma palavra dos discursos dos seus compatriotas, os quais, pelo seu lado, não o compreendem e não parecem de modo nenhum sofrer com isso”11. Deleuze e Guattari se apropriaram então de tal momento interpretativo não apenas para a já famosa defesa da literatura como a invenção de uma língua menor (a língua que seria derivada desse estar em seu país sem entender o que ali dizem), mas também para colocar Kafka como uma espécie de precursor de Beckett ou, ao menos, como se fosse um Beckett avant la lettre ou, ainda, como se, depois de Beckett, nessa passagem, já pudesse ser flagrada posteriormente a dimensão prévia do que virá a ser a tonalidade beckettiana. A passagem é, indubitavelmente, decisiva para o pensamento montado pelos filósofos franceses. Consulto as obras completas de Kafka na edição francesa consultada por Deleuze e Guattari e nela, de fato, a tradução é exatamente igual à citada por eles, que a seguem textualmente. 11 ROBERT, Marthe. Franz Kafka.Trad. José Manuel Simões. Lisboa: Editorial Presença, 1963. p. 66.  Como não há uma tradução da passagem para o português, é preciso permanecer com os dois grupos antagônicos das traduções: de um lado, a para o inglês (“I must first explain that I am not now in my father land and, in spite of considerable effort, can not understand a word of what has been spoken”) e para o espanhol (“En primer lugar debo constatar que esta no es mi patria y que a pesar de todos los esfuerzos no entiendo ni una palabra de cuantoa quí se disse”); de outro, a francesa (‘Il me faut bien constater que je suis ici dans mon pays et que, en dépit de tous mes efforts, je ne comprends pas um mot de la langue que vous parlez...”), tal qual utilizada por Deleuze e Guattari. Em busca de outra edição francesa, vou às Oeuvres completes de Kafka, da Collection Bibliothèque de la Pléiade (número 282), publicada em 1980 pela Gallimard (após, portanto, o livro de Deleuze e Guattari). Na página 566 do tomo II, encontro a mesma tradução anteriormente consultada, de Marthe Robert, tendo, entretanto, sofrido nota retificadora realizada por Claude David. Nessa tradução revisada, aparece uma variação crítica dentro dos colchetes, indicando o erro de tradução anteriormente cometido: “D’abord, il me faut bien constater que je [ne] suis [pas] ici dans mon pays et que, en dépit de tous mes efforts, je ne comprends pas un mot de la langue que vous parlez”. Vale expor que, no volume dessa coleção, os editores tomaram a decisão de dispersar os fragmentos publicados em Préparatifs de noce à la campagne por entre outros fragmentos e narrativas kafkianos, ordenando-os todos, em ordem cronológica, sob o novo título  Récits et fragments narratifs. Apenas para comprovar a veracidade do que, a essa altura, parece ter se esclarecido, resta, obviamente, ir ao texto original, em alemão. Nele, de fato, a negação, manifesta pelo nicht, está lá, presente: “Zunächst muss Ich feststellen, das Ich hier. Nicht in meinem Vaterland bin und trotz grosser Anstrengungkein Wort von dem verstehe was hier. Gs prochen wird”12. E, mais à frente, ainda no discurso do nadador, ele confirma, repetindo o que, no começo dessa segunda parte, ele havia anunciado: “Ich bin nicht in meiner Heimat”. Pode ser imaginado que o erro da tradução francesa tenha sido gerado por uma tentativa do tradutor em conciliar o que é dito logo na abertura do fragmento (“Estava parado na escadaria da estação de minha cidade natal – onde era? – olhando para a massa difusa na luz crepuscular”) com a passagem posterior, em que o nadador afirma não estar em sua Vaterland nem em sua Heimat. Muito curioso é salientar que o erro não fora percebido por Deleuze e Guattari, que, sem desconfiarem, sem irem ao original nem a outras traduções, o assumiram integralmente para a leitura que efetuaram. Ninguém há de negar que, nesse caso, o erro é inquestionavelmente melhor do que o acerto teria sido, tendo a tradutora francesa conseguido, acredito que sem querer, a impossível façanha de melhorar Kafka, entendendo, por isso, tornar Kafka ainda mais kafkiano do que o próprio Kafka, nessa 12 Disponível em: fundstueck/457421>. <http://www.franzkafka.de/franzkafka/fundstueck_archiv/  passagem específica, teria conseguido ser. Do mesmo modo, a leitura de Deleuze e Guattari, ainda que, em stricto senso, tenha se originado de um erro, consegue, mesmo que inconscientemente, o improvável de, em algum grau, desterritorializar o próprio Kafka, gerando consequências infinitamente mais interessantes do que um suposto acerto poderia desenvolver. Diante disso, não há como não pensar na necessidade de feitura de uma história da filosofia e da literatura por seus erros mais produtivos.  REFERÊNCiAs BiBLiOgRÁFiCAs ADORNO, Theodor W. Prismas; crítica cultural e sociedade. Trad. de Wernet e J.M.B. de Almeida. São Paulo: Ática, 2001. AGAMBEN, Giorgio. Arqueologia da obra de arte. In: Princípios; Revista de Filosofia. Transliteração e trad. de Vinícius Nicastro Honesko. Natal (RN), vol. 20, n. 34, julho/ dezembro de 2013. AIRA, Cesar. La muñecaviajera. In: Jornal El País, maio de 2004. Disponível em: <http://elpais.com/diario/2004/05/08/ babelia/1083973160_850215.html>. ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra; os autos do processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: CosacNaify, 2007. BATAILLE, Georges. Kafka. In: A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. p. 129-147. BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. 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Enquanto poeta, teve os seguintes livros publicados: 1) na cidade aberta (Rio de Janeiro: EdUERJ, 1993); 2) Escritos da frequentação (Rio de Janeiro: Ed. Paignio, 1995); 3) A fronteira desguarnecida (Rio de Janeiro: Ed. Sette letras, 1997 – este livro foi concluído com o apoio do Programa de Bolsas para Escritores Brasileiros da Fundação Biblioteca Nacional);  4) Ecometria do silêncio (Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras, 1999); 5) A vida é assim (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001); 6) Escritos da indiscernibilidade (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003). 7) A fronteira desguarnecida; Poesia reunida 1993-2007 (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007); 8) mais cotidiano que o cotidiano. (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/FAPERJ, 2013). Publicou os seguintes livros de ensaio: 1) Pelo colorido, para além do cinzento; a literatura e seus entornos interventivos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/FAPERJ, 2007). Com este, recebeu o Prêmio Mário de Andrade, Ensaio Literário, da Fundação Biblioteca Nacional/Minc, 2007); 2) Giorgio Agamben: poesia, filosofia, crítica (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/FAPERJ, 2010); 3) Antonio Cicero por Alberto Pucheu (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010); 4) O amante da literatura (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010); 5) Roberto Corrêa dos Santos: o poema contemporâneo enquanto o ensaio teórico-crítico-experimental (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/FAPERJ, 2012); 6) apoesia contemporânea (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/CAPES, 2014).  Organizou os seguintes livros: 1) Poesia(e)Filosofia; por poetas-filósofos em atuação no Brasil (Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras, 1998); 2) Nove abraços no inapreensível; filosofia e arte em Giorgio Agamben (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/FAPERJ, 2008); 3) O carnaval carioca de Mário de Andrade (Rio de Janeiro: Azougue Editorial/FAPERJ, 2011, com Eduardo Losso Guerreiro); 4) Danielle Cohen-Levinas; partilha da literatura (São Paulo: Editora Horizonte, 2014, com Piero Eyben).  sentido ao vivido, e não somente porque uma escrita no trauma e do trauma diz mais de um impossível viver, mas também porque o que mais interessa é o impasse que se coloca na própria metamorfose da vida em obra e da obra em vida, em outras palavras, interessa esse ponto em que a imagem é a não resposta, a própria nulificação do seu sentido. Talvez seja, então, o poema o lugar que abrigará com mais propriedade a inapropriabilidade e a inacessibilidade dessas imagens que interditam a fala, o sentido e a própria vida. A questão em torno da “prosa miúda” se espraia em direção à impossibilidade de narrar, ao poema e ao canto. Como a distância entre essas duas aldeias vizinhas que, no tempo de uma vida, nunca pode ser transposta, o poema também não será uma categoria asseguradora, na verdade, ele vem problematizar a própria estranheza da língua, uma espécie de não domínio da língua maior para passar à invenção de uma língua menor que gagueja, balbucia, paradoxalmente, inarticulada na limpidez da sintaxe kafkiana. Segundo Alberto Pucheu, o poema é o lugar da (im)potência maior, como crítica ao poder instituído, e Kafka e sua obra estão antes do nascimento e depois da morte, numa dupla resistência à vida e à obra em seus contornos bem-definidos pelas instâncias do poder. O canto, ou aquilo que sobrou dele mesmo antes de Auschwitz, será o lugar que assinala esse encontro sempre faltoso, encontro com a perda da palavra. Flavia Trocoli Se Kakfa chamou os escritos de Contemplação de kleine Prosa, prosa pequena ou “prosa miúda”, com O veredicto, dele, poderia dizer keine Prosa, prosa nenhuma: o que antes era um movimento pequeno ou miúdo de sua prosa, ganha explicitamente a designação de “poema”. No momento final de sua escrita, Kafka mencionará um “canto à incolumidade da construção” e Josefina, a ratinha, é uma cantora. Em todos esses modos, a escrita, que se desdobra em uma abundância de modos dispersivos, retira o especificamente literário da sua zona de conforto ao ir para além dele ou ficando-lhe aquém, em todo caso, levando-o a seu fora, não se deixando identificar com ele. Desobrar a obra chamada de literária a partir das múltiplas escritas, com seus relatos, a princípio, autobiográficos, sem as marcas habituais do que é reconhecido majoritariamente como literatura, é, certamente, uma das operações do que se chama Kafka, com a vida que vive adentrando a escrita e a escrita adentrando a vida que vive, confundidas em uma zona potencial. ISBN:978-85-7920-168-4 9 788579 20168 4