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19 maio 2020



A solidão tem sido minha companheira há algum tempo. Não a clássica da ausência de pessoas, mas a moderna, tecnológica, por vezes clichê das retóricas das mídias sociais onde estamos com todos e, ao mesmo tempo, sem ninguém. Falo da materialização da descoberta de estar só, característica inata a todos nós, agora chamada de solitude. Assim, a consciência de tal estado costuma ser dolorosa, sobretudo porque caminho na contra mão do pensamento coletivo do qual precisamos nos agregar. Porém, a minha tomada de posição frente a isso veio à revelia dos ruídos da interação constante, em meio a patologização da minha mente, em outras palavras, depressão. Hoje, embora esteja em contínuo tratamento analítico, a sensação de ser unitário ainda é um incômodo, menor que antes, mas latente, depreciativo, maculando meu íntimo em solavanco com minha pressa em pertencer ao mundo. Curiosamente, todavia, O Dilema do Porco Espinho, de Leandro Karnal, conseguiu acalentar a belicosa barreira que nutria em ler sobre isso, permitindo-me um olhar sobre tal discussão dantes impercebível.

Estruturalmente, o livro é pequeno, de título curioso, até um tanto comercialesco, e revestido de uma diagramação que não torna a capa atrativa. Talvez o maior chamamento da obra se limite, no primeiro olhar, ao seu autor, professor consagrado e mais recentemente figura cativa nos diversos vídeos viralizados na rede. A linguagem, contudo, está longe do pedantismo academicista. Qualquer pessoa de nível medíocre de leitura, assim como eu, é capaz de compreender o que está escrito ali. Muito provavelmente, essa tenha sido a intenção do autor: escrever (ser) inteligível no discurso para levar a maior quantidade de pessoas as suas percepções sobre solidão. Isto porque, antes de tudo, O Dilema do Porco Espinho se mostra perceptível a gama pouco problematizada das solidões. É, para tanto, pretensioso ao compila-las, mas nem por tal audácia se mostra prepotente. Trata-se da fecunda necessidade de Karnal de provar que há diversas formas de solidão interessantes, benéficas, transcendentais, tristes, reveladoras, porém, todas humanas em sua essência e passíveis de serem sentidas e vividas por cada um de nós.

Sobre esse ponto, foi o que mais me tocou, a certeza de que havia positividade em certas manifestações da solitude, as quais não costumam ser apresentadas a nós. A tradicional, do isolamento que nos aparta do mundo, seja por decisão própria ou por determinação legal, sempre me assustou. Contudo, entre ambas, fui vitimado pela primeira em uma sociedade onde grande parcela vive o mesmo dilema. Nesse lugar sombrio dentro de nós mesmos, passamos a acreditar que a nossa dor é insuportável demais, sempre maior do que podemos aguentar. A solidão se apresenta como um martírio, uma penitência aplicada muitas vezes pela depressão que se ocupa de nós quando somos vulnerabilizados pela vida. Karnal, mesmo não intencionalmente, desconstrói essa alcova da qual estamos aprisionados para dizer que é possível sair dela, se entendermos as razões que nos levaram até lá. Claro, o livro não tem viés psicanalítico nem se pretende a isso. Entretanto, as pluralizar a solidão, o autor ressignifica o egoísmo nutrido em horas de fragilidade em que cremos que somos os únicos sofríveis desse dilema, quando na verdade há milhares de pessoas com o mesmo problema, em searas diferentes e lidando com eles diferenciadamente.

No entanto, é evidente que há faces da solidão que merecem acompanhamento médico, sobretudo quanto dão indícios claros de autocídios futuros. Nesses casos, não sei se O Dilema do Porco Espinho seja um livro resolutivo, pois não há nele uma preocupação em esmiuçar as razões da depressão em detalhes o suficiente para que as suas manifestações diversas toquem o interlocutor. Karnal, de fato, faz um compilado interessantes, traz exemplos, comparações, associa ideias e chega a problematizar pontos nevrálgicos de cada uma delas, mas não o suficiente para livrar alguém da sedução e tirar a própria vida. É uma obra de dimensão cosmopolita e, por isso, centrada nas frustrações advindas das aglomerações nas grandes sociedades onde todos se conectam sem firmar laços firmes de relacionamento. O livro talvez seja frágil nesse aspecto porque não há fortalecimento possível na fluidez da pós-modernidade, a não ser aquela que se enrijece dentro de nós a partir da tomada de consciência de que não estamos sozinhos nessa, tão pouco a nossa solidão é única ou especial.

Na verdade, fazemos parte do grande porco-espinho que provavelmente foi o motivador para que Leandro Karnal tenha se dedicado a esse assunto, a vida na internet. Contraditoriamente, é lá onde estamos com todos e, ao mesmo tempo, ilhados em nós mesmos, verdadeiros náufragos no ciberespaço, onde todos embarcam em naus alheias para sobreviver, mas acabam submergindo que percebem que ninguém é capaz de suportar tamanha responsabilidade. Não à toa, as mídias sociais deflagrem tantos casos de dependência, principalmente após a popularização dos celulares e sua adesão imediata pela juventude. O primeiro ganhou formas de interação distintas e cada vez mais desumanas: não se liga mais, se “twitta-se”, “zapei-se”, “instagrameia-se”, em uma comunicação entremeada de elementos, nem sempre humanos, que funcionam no momento da execução, mas são deteriorados tempos depois. Daí as constantes atualizações dessas plataformas, porque seus criados sabem que estão contribuindo para a solidão de seus usuários, porém, na lógica capitalista, adoecer consumidores é o mínimo prejuízo diante das cifras vultuosas advindas dos milhares de acessos por minuto.

Fora desse cenário frágil de interação humana, a vida na margem do mundo real se deteriora ainda mais, pois muitas pessoas passam a depender da tecnologia para se sentirem vivas, incluídas, pertencentes a universos dos quais a existência fora da rede não foi possível. Assim, sentenciados duplamente, pelas dores existenciais e pela perda de referenciais, os indivíduos sós passam a tratar a solidão apenas como algo negativo, degenerando suas faculdades mentais precocemente. Em contrapartida, todo o enriquecimento, elevação, maturidade e encontro consigo mesmo, oportunizado por momentos preciosos de solidão, são ignorados quando colocamos qualquer solidão no lado ruim da vida. Em O Dilema do Porco Espinho vemos grandes exemplos de figuras importantes da história da humanidade fazendo a diferença para si e o outrem a partir do momento em que tomou consciência de que seu estado de solitude, inevitável e por isso comum a todos, pode ser transformador. O problema é a visão conservadora cristã da família comercial de margarina limitado ao clássico binômio bíblico Adão e Eva, como se tal complementação fosse suficiente para preencher o vazio de ser só em um mundo onde o outro é apenas instante.

Portanto, O Dilema do Porco Espinho é um livro interessante, de leitura leve sobre um tema muito complexo e de muitas camadas para serem analisadas. Porém, na celeridade da vida moderna, é uma obra eficiente, pois cumpre o seu papel de expor a pluralidade das solidões, seus ganhos, suas perdas e como cada uma delas tem nesses potenciais a chave para uma vida menos dolorosa. Para alguém como eu em processo analítico me reencontrando comigo mesmo na casa dos 30 anos foi um achado esse livro, a oportunidade de me tirar do limbo do qual vagava e me direciona para o caminho que me for mais conveniente. A você, ele pode ter outros significados, porém, acredito que abrirá uma fenda por onde alguma luz entrará na escuridão muitas vezes auto imposta a nós pela solidão. Antes de tudo, não há um caráter milagroso na obra, nem poderia diante do perfil de seu autor. Então, não vá ler esse livro achando que haverá algum recurso mirabolante para lidarmos com nossos temores. Nossos fantasmas, apesar de similares, são muito particulares de cada um de nós e precisam ser vencidos pela nossa força de vontade e, em alguns casos, pela intervenção de algum profissional. Fora isso, O Dilema do Porco Espinho, se não te fizer entender em que solidão estás, fará você compreender a sua solitude, respeitá-la, assumi-la ou extirpá-la da sua vida. Seja qual for a decisão, tenha ciência de que será a melhor para você.

19 janeiro 2020


O olhar é um dos sentidos humanos mais complexos. É a partir dele que captamos o mundo, ao passo que nosso íntimo é fisgado pelas lentes alheias. Porém, em uma sociedade dissimulada, as relações humanas são ofuscadas pelo consumo, pela mídia, pelas possibilidades da internet, lentes desviantes que nos impedem de ver a singularidade do outro a nossa volta, renegando-o a invisibilidade. Assim, determinados dilemas surgem à nossa frente como um holograma, mera representação de uma realidade paralela, distante, mas, ao mesmo tempo, cabível de existir caso fôssemos capazes de captar as relíquias individuais que há em cada pessoa com suas histórias, dramas, particularidades, sonhos. A Vida que Ninguém Vê faz um compêndio visceral das existências daqueles que subsistem pelo país. São narrativas intrigantes construídas sob o pilar crítico do texto jornalístico de Eliane Brum cuja sensibilidade com a palavra nos faz ver o não visto.

A priori, chamou a minha atenção a maneira como Brum conduziu àquelas histórias. Dona de uma escrita inegavelmente empática, suas crônicas tocam mais profundamente pelo senso de humanidade da escritora em torno daquelas narrativas. Cada uma delas Brum deu uma roupagem textual digna de seus enredos. Não fez isso pelo simples artifício de ornamentar tais trajetórias, como se quisesse suavizar seus dissabores, mas, na minha perspectiva, para permitir que víssemos com os mesmos olhos dela aquelas vidas apagadas pelo esquecimento. Só a palavra é capaz de reavivar a existência daqueles cuja vida foi destinada ao vazio do silêncio. Eliane Brum é a porta-voz desses emudecidos, além de luneta para as nossas visões míopes sobre o outrem. Após concluída cada crônica, insurge uma inquieta constatação: o que nos fez cegar diante dessas pessoas que, apesar de únicas, possuem histórias semelhantes a muitos de nós, mas que não notamos frente ao turbilhão de coisas que embaçam nossas vistas?

Talvez não seja a intenção da autora buscar uma resposta a esta e tantas outras indagações. Senti que o que está em jogo nas crônicas é um exercício de identificação. É permitir ao outro exilado em seu limbo a chance de voltar à luz não apenas em suas palavras, mas no nosso vislumbre. Isto porque o espanto também é capaz de suscitar grandes reflexões sobre a coisificação do outro, seu apagamento perante aos demais, garantindo a tais espectros que vagueiam pela cidade a chance de encarnarem seus corpos por meio da corporificação das palavras de Brum que nos penetram a alma. Por isso, a cada nova crônica, sentimos algo transcendental, como se aqueles personagens transitassem entre dois mundos, ambos desconhecidos por nós, porém resgatados pelo jornalismo holístico de Brum.

Nesse sentido, é preciso também enaltecer o trabalho dessa jornalista. Já a conheço de longas datas das colunas que escrevia na Revista Época e agora no El País Brasil. Contudo, esse é o meu primeiro contato com seu livro. Brum, tanto nas colunas quanto aqui, é excepcional no trato com as palavras. Sua linguística é preenchida de uma dignidade que a diferencia de muitos outros jornalistas. Destaca-se ainda o enfoque que dá as suas notícias vide crônicas. Nelas o clichê não encontra morada. Não há uma preocupação com o noticialesco. Ela não banaliza os comezinhos do cotidiano. Seu trabalho centra-se nos meandros, nas imperceptibilidades, no não visto, naquilo que seria fatalmente ignorado por outros repórteres. Dessas sutilezas, ela emerge em carne viva a realidade sanguinolenta, sofrível, às vezes auspiciosa e inebriante de pessoas carcomidas pelo abandono. O impacto que recebemos nos faz adultecer.

Após passar a vê a vida que não via, me encantei com muitas crônicas relatadas por Brum: história de um olhar; Adail quer voar; Enterro de pobre; O sapo; O menino do alto; O exílio; Sinal fechado para Camila e o doce velhinho dos comerciais, foram as que mais me chamaram atenção. Nelas uma parte de mim, meus temores mais secretos, se manifestaram em meio aquelas verdades vividas por desconhecidos que poderiam estar transitando, e estão, pela minha cidade. Esse é sem dúvida outro ponto a ser destacado deste livro: muitos daqueles personagens não se restringem às ruas de Porto Alegre. Há muitos outros com narrativas tão fantásticas, tristonhas e desafiadoras próximas de nós, mas não as vemos porque estamos hipnotizados pela profusão das alvíssaras criadas pelo capitalismo, responsável por coisificar humanos e humanizar as coisas. Dessa inversão, há os invisíveis e os invisibilizados. Próximos em semântica, mas opostos na sintaxe. O invisibilizado é aquele ignorado pelos privilegiados, mas que se insurgem seja pela violência, seja pela engenharia de suas habitações no panorama urbano das cidades. Os invisíveis, porém, são aqueles que nem ricos nem pobres notam. Sua presença é destituída de valor por fazer parte da subcategoria anterior. Por isso não os vemos porque em nenhum momento atribui-se vida a eles. São seres sem alma numa sociedade desalmada.

Por tudo isso, A Vida que Ninguém Vê é um relicário, uma abertura jornalista para aqueles sem espaço dentro e fora dos meios midiáticos. É uma coletânea indigesta para quem tem brio de admitir a estrábica visão que nutrimos pelos nossos semelhantes. De tal maneira, em muitas páginas me senti grogue, desconcertado dentro da minha atmosfera a qual considerava difícil de suportar. Todavia, ao ler as histórias singulares daquelas pessoas, percebi como a leitura consegue realocar nosso egocentrismo para fora do nosso orgulho, fazendo-nos entender que apenas enxergando o outro em suas complexas construções poderemos conferir algum sentido a nossa existência. Daí a importância do choque, encandear às vistas para passar a ver de verdade. Assim, as lágrimas dos meus olhos, que antes não viam, passaram a se inundar com a vida daqueles desconhecidos. Dessa forma, aconselho não apenas ler esse livro o quanto antes, mas também se permitir romper a represa contida em seus olhos. Deixem suas lágrimas desaguarem por eles, por você, por nós, mas não por pena dos envolvidos, e sim para que todo humano tenha o direito de ser visto como tal.

12 janeiro 2020


Estou revendo os meus conceitos sobre determinadas leituras. Mesmo sendo um cara flexível quanto a determinados livros, me descobri nos últimos anos nutrindo preconceitos - sempre rasos e desnecessários - sobre o que poderia ler. Porém, não faço parte do time dos classistas que levantam a bandeira dos cânones literários para menosprezar outros livros. Longe disso. Apenas olhava de soslaio para determinadas leituras que me pareciam badaladas demais, ou com o quê de autoajuda do qual não sou fã, e de fato isso eu assumo. Porém, esse empedernido leitor costuma, pelo menos no presente, rever certas posições antiquadas que tinha. Foi o que fiz dessa vez ao ler o livro Me Poupe da jornalista Nathalia Arcuri.

O título comercialesco já adianta o seu teor: trata-se de um livro para ajudar pessoas, que assim como eu, não sabem administrar suas finanças. Para ser honesto, não foi comprado de livre espontânea vontade, mas por pressão (pressão mesmo) de um colega de trabalho preocupado com os gastos excessivos que faço diante da minha difícil, mas passageira, situação financeira. No dia, tinha outros seis livros a mão e me permiti levar o Me Poupe. Contudo, já tinha ouvido falar tanto da obra quando da autora. Por estar conectado à rede, acessei rapidamente o canal dela no YouTube. Cheguei a fazer minha inscrição, mas não tive coragem de ver um vídeo sequer. O medo? De ouvir certas verdades inconvenientes.

Entretanto, há forças, que costumo chamar de destino, sempre dispostas a nos expor na face àquilo que temíamos. Então, de posse do Me Poupe, comecei sua leitura. Como a autora diz, o livro pretende ajudar a quem não sabe cuidar do próprio dinheiro. O livro é curto, de linguagem levíssima, até com uma dose de humor um tanto bobo (para o meu paladar), e repleto de dicas, muitas até praticadas no próprio livro, para que possamos rever os erros que cometemos com as nossas verbas e aquelas que pretendemos ter. Há indiscutivelmente muita pessoalidade no livro, talvez para aproximar o leitor de um panorama resolutivo de suas dividias. Em boa medida isso funciona, porque exemplos precisam ser partilhados e copiados, mas noutros, não.

Digo isso e já antecipo a primeira falha do livro: sua visão elitista das finanças. Isto porque, Arcuri se mostra imbuída das melhores intenções - e não estou duvidando disso -, certamente há nela um propósito maior do que apenas vender livros ou fazer seu canal no YouTube ganhar novos seguidores. Por essa iniciativa, sua escrita já merece meu respeito, sobretudo numa nação onde pouco se discute sobre economia com os mais necessitados. Porém, sua falha está na disparidade social que é uma das responsáveis pelo endividamento populacional. Sua origem, apesar de não ser em berço de ouro, está distante da dê muitos brasileiros que sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês. Ou seja, para quem leu a obra, sabe que mesmo com dificuldades, ela conseguiu ter uma base satisfatória para poupar, diferente de muitos de nós.

Também considero exagero algumas medidas tomadas por ela para poupar dinheiro, mas isso diz muito da perspectiva de vida dela que desde menina tem esse espírito empreendedor. A minha discordância reside nas proporções as quais poderiam ficar mais equiparadas se fosse levado em consideração outras questões econômicas não citadas na obra: a desigualdade social, étnica e de gênero que assume proporções significativas na economia, ou não, de muita gente. Quando estes prismas são elencados, e devem em se tratando de um país cuja renda populacional atravessa estigmas históricos sociais incontestáveis, as dicas de Arcuri ganhariam proporções ainda maiores do que já ganham.

Fora isso, fui lentamente simpatizando com as suas dicas, algumas coloquei em prática logo após ler as primeiras páginas. Achei massa essa interatividade e a simplicidade com que ela trata termos técnicos do campo financeiro. Facilitar a compreensão de certas nomenclaturas ajuda muito na hora de não entrar numa roubada com o banco. Entre eles, o juro composto foi o que me chamou mais atenção. Não fazia ideia (eu, e como ela disse, muitas outras pessoas) de que havia alguma positividade na palavra juros. Sempre os vi como inimigos, que por sinal tem me acompanhado nos últimos meses. Entretanto, mesmo sem condições no momento de investir, me senti tentado com essa possibilidade num futuro próximo.

Além disso, as reflexões trazidas por ela são no mínimo interessantes. Nos mostram as falhas que cometemos a comprar coisas por impulso (eu sou desse time), o que podemos fazer para controlar essa impulsão, investir, poupar e assegurar alguma grana para o futuro. Esse para mim foi o lance maior de Me Poupe, projetar um amanhã. Faço parte do grupo de milhões que afoga as mágoas nas compras, que se endivida a longuíssimo prazo e não tem qualquer controle sobre as próprias finanças, ou seja, um paciente financeiro difícil, às vezes até irremediável. Todavia, com o tempo, a maturidade e as quedas, estou paulatinamente revendo essas falhas. Por sorte, comprei à força o Me Poupe e sinto que não serei mais o mesmo após ele. Na verdade, ninguém é o mesmo após ler qualquer livro. A palavra e a mudança são agentes transformadores da vida.

Portanto, o Me Poupe de Nathalia Arcuri é um livro interessante, e só. Não resumo a isso como forma de menosprezo, mas porque foi o meu primeiro contato com esse tipo de leitura, logo, precisarei de outras para escolher outro adjetivo para ele. Claro, sou um desajustado das finanças e por essa razão contumaz a mudanças nesse campo. Precisaria de algo profundamente tocante para rever bruscamente os meus defeitos. O que Arcuri me proporcionou ao ler seu livro foi a chance de aplicar parte de suas dicas a minha realidade financeira guardadas as minhas proporções atuais. Talvez em um futuro próximo eu precisarei revisitar suas páginas para tirar novos proveitos de suas instruções. Até lá, Me Poupe me parece um bom guia para encontramos ao nosso modo os caminhos para escapar das armadilhas que a “dinheirofobia” incute sobre nós.
Certas épocas em nossas vidas determinam o curso de nossa história. De tal premissa, depreende-se uma verdade incontestável, embora, na adolescência, mais precisamente em sua transição, haja maiores movimentos de corpo, mente e alma-, que noutras etapas humanas. Talvez também isso se dê devido ao turbilhão de sentimentos que nos eleva, todos alheios a nossa vontade, em boa medida, contudo, contributivos a formação da nossa personalidade. Em meio a isso, percebi que Amiga Genial, de Elena Ferrante, transcorre por essas águas nebulosas onde a juventude navega à deriva, mas também nos precede uma história de convivência, descobertas, alianças, dissabores e transformações para além dos ímpetos hormônicos da adolescência.

Enquanto obra, Amiga Genial possui algumas características semelhantes a Dias de Abandono do ponto de vista estrutural, embora este último tenha um detalhe a mais o uso falarei logo adiante. Afora isso, o livro é disposto em parágrafos curtos os quais dão uma fluidez a leitura. A escrita envolvente de Ferrante é outro detalhe a ser mencionado: o cuidado vocabular, sem preciosismos desnecessários nem empobrecimentos pretensiosos. Tudo o que está ali está por uma razão, e é compreensível numa leitura não tão atenta. Chama atenção ao artifício do título. Este aparece uma única vez em todo o livro, um recurso da autora para que Amiga Genial seja entendida por si só em sua narrativa. Funcionou!

A priori, as primeiras páginas me deixaram aflito pela quantidade de personagens, bem como a descrição de cada qual no enredo que iniciara. Juguei precipitadamente que aquilo poderia turvar a compreensão do todo, que conflitaria a história ao ponto de figurar negativamente qualquer interpretação. Contudo, infelizmente, estava enganado. Ao longo das páginas, todas aquelas pessoas conseguiram alocar-se no enredo sem confundir este raso leitor, graças a forma, reitero, precisa da escrita de Ferrante. Ainda no quesito estrutural, Amiga Genial tem um ritmo com poucas variações, apesar de instigante. Começa morno, complacente e depois ganha nova temperatura, mas nada quentíssimo a se intitular com clímax. Vou classificá-lo como semi-quente, mas ainda incorrerei a imprecisão.

Continuo a me impressionar com a capacidade de Ferrante em dar roupagem elegante a enredos batidos. Neste, a história de duas amigas, aparentemente distintas em personalidade, se desenrola da infância, perpassa a adolescência e beira os primeiros degraus da vida adulta delas. Entrementes, os conflitos que as envolvem são conhecidíssimos de todos nós, embora, guardada as devidas proporções de tempo e espaço, (a história se passa em Nápoles em meados dos anos 1950), tudo redimensiona para um clichezão, desfeito pela construção linguística de Ferrante, a qual não nos deixa brecha para criticar, tão pouco encontrar indícios claros de que o clichê está presente, mesmo estando ali desde o início.

No entanto, ao retomar Dias de Abandono, meu primeiro contato com Elena Ferrante, é impossível não fazer comparações, mesmo ciente de que Amiga Genial inicia a tetralogia que certamente lerei mais adiante. Por ora, compararei o que senti em abundância em minha primeira leitura de Ferrante e senti falta aqui: o traço psicológico dos personagens. Lá, mesmo distante de mim em enredo, a narrativa me prendeu loucamente, ao passo que, em muitos instantes, senti a dor daquela personagem abandonada pelo marido. Esse quesito imersão ocorreu também em Amiga Genial, mas em menor proporção, embora, devo admitir, sua história é bem mais próxima da minha realidade.

Nesse sentido, é preciso destacar o quão envolto eu fiquei ao ler diversas passagens da vida de Elena e Lila. De cara, me vi transfigurado em uma das partes, porém, ao longo das páginas me vi transplantado nas duas, o que me inquietou. Talvez tenha sido este outro recurso de Ferrante, não criar mocinhos nem vilões, mas humanos em seu maniqueísmo mais puro, a adolescência. Por isso me permiti regressar a minha juventude quando, em boa medida, fui Amiga Genial de alguém e também seu espectador, nem sei mensurar o quanto de ambos, é nem vem ao curso. O que sucinta é o regresso a essa época quando as descobertas pouco tem espaço para serem experimentadas e são rapidamente suprimidas pela ânsia da vida adulta.

Seja como for, Amiga Genial é um bom livro, mas não é o melhor de Ferrante, como apregoa os muitíssimos críticos da internet. Na minha incipiente opinião - passível é aberta à discussão - Dias de Abandono é mais impactante. Todavia, precisarei ler o restante da tetralogia para legitimar essa minha precipitada colocação. Conquanto, volto a reafirmar isso, é preciso ler Elena Ferrante. Primeiro porque ela desconstrói aquela menção elitista de que a literatura contemporânea é pobre, por essa visão generalizante, perdemos leituras agradáveis como essa. Segundo porque é no mínimo interessante ver o malabarismo - e não leiam isso de forma pejorativa - que a autora ressignifica os nossos clichês. Por último, após ler Amiga Genial ou melhor, Ferrante, certamente, com doses peculiares de empatia, teremos o prazer da retomada as nossas bases por meio de uma leitura mais leve.

28 agosto 2019


Sou daqueles que acredita na sintonia do universo. Partindo desse princípio, creio na ideia de que nada nos chega ao acaso, mas sim que são instrumentos orquestrados por energias, alheias a nossa vontade, responsáveis por criar novas sonoridades para as nossas existências. Assim, pessoas que vêm e vão, aquisições materiais, perdas, ganhos, frustrações, recomeços e términos, tudo isso tem uma razão para acontecer e mexe com o que há de mais profundo em nossos sentimentos. É subjetivo, eu sei, porém, nem toda objetividade é capaz de suprir as lacunas criadas pelos desafios da sobrevivência. Alguns, inconformados com as inevitáveis mudanças, buscam rotas de fuga na ânsia de resgatar o que se foi ou encontrar forças para renascer diante do novo. Vale tudo, desde consultas psicológicas a intervenção religiosa, todas, em suas devidas proporções, válidas. Eu, além delas, sou presenteado com outro elixir, que me encontra nos momentos que mais preciso, sempre com o antídoto na medida exata para as minhas dores: os livros.

O que resenho hoje remediou feridas antigas cuja cicatrização parecia impossível, trata-se da obra Só a Gente Sabe o que Sente, de Frederico Elboni. Antes que você destile seu preconceito contra tal leitura – respaldado pela ideia canônica de que apenas os clássicos literários possuem tamanho poder – aconselho ir além do elitismo apoiado em certas opiniões letradas para se permitir aprofundar no raso e, mesmo assim, conseguir dar profundas braçadas pelos mares complexos da palavra. Foi isso que fiz. De primeira, olhei de soslaio para este livro com a arrogância de quem vinha lendo obras riquíssimas do ponto de vista histórico e literário. Até que, emergindo das minhas limitações, lembrei-me de que qualquer leitura é enriquecedora desde que estejamos aptos a extrair dela aquilo que nos for útil. Então, sabendo que o universo tinha me colocado Elboni na minha frente por uma razão, pedi emprestado esse livro ao meu ex-namorado e, depois que comecei a lê-lo, não mais o devolvi (sim, sou cleptomaníaco de livros).

Só a Gente Sabe o que Sente é um entre tantos livros de crônicas, gênero textual do qual gosto muito, pois consegue aproximar obra e interlocutor de situações cotidianas com o charme que só a literatura é capaz de nos proporcionar. Sua linguagem simples já era esperada por mim. Na verdade, eu temia que isso fosse um problema, uma vez que muitos cronistas pós-modernos pecam pela pobreza linguística como artifício para prender os leitores menos adeptos a leituras mais “complexas”. Porém, depois de ler umas duas ou três crônicas, percebi que Elboni simplifica a linguagem, mas isso não empobrece a essência do que ele diz. Sinto verdade em suas palavras, nas histórias e eventos ora contados ora desejados por ele. O leitor, então, acaba por se identificar naquelas vivências e se vê preso numa redoma carismática de situações tão universais e cosmopolitas dessa nossa sociedade, a qual cada mais distorce o sentido da palavra relacionamento. Vi como um livro de experimento, permissividade, mas também de anseios, fantasias, ingredientes indispensáveis à vida.

Só a Gente Sabe o que Sente também me cativou pelo título. Aliás, esse artificio nem sempre casa com o conteúdo escrito, falo isso por experiência de quem teve contato com obras cujo título não abarcavam a amplitude do texto ou vice-versa. Elboni, porém, me ganhou também nesse sentido. A frase retórica de sua obra é clichê, por isso familiar, convidativa, um atrativo a todos nós que passamos por diversos dilemas, muitos restritos ao campo do pensamento, sem ter chance, talento, vontade ou oportunidade de externar nossas dores através da escrita. Então, ler Só a Gente Sabe o que Sente familiariza as angustias do autor com as nossas, criando um elo muitas vezes impensado, pois, em boa medida, seu livro atende a uma visão heteronormativa de relacionamento. Contudo, por ser apenas um traço de suas crônicas, preferi não me ater a esse detalhe, dando oportunidade de ser guiado pelas outras perspectivas trazidas pelo autor. Logo notei que o que ele dizia ultrapassava barreiras etárias, sexuais e sociais, falando de temas caros a todos nós.

Os meus ganhos não pararam por aí. Como disse nas primeiras linhas, creio no poder da sintonia do universo que nos rodeia. Dessa forma, há coisas que nos chegam para nos mostrar a coletividade dos nossos desafios diários. Ou seja, nossas dores não são nossas, assemelham-se com outras, apequenam-se, agigantam-se, dependendo de quem se torne o nosso referencial. Contudo, se se diferenciam na proporção, igualam-se no sentido de existir para todos. É clichê, eu sei, você sabe, mas, quando estamos afogados em temores, o egoísmo assume o controle fazendo-nos acreditar que nossos obstáculos são mais difíceis que os dos outros, e que por isso merecem mais atenção, bem como solução imediata. Nisso também foi benéfica a leitura de Só a Gente Sabe o que Sente: ressiginificar nossos clichês diários, atribuindo-lhes algum valor dantes perdidos pelo elitismo da linguagem ou pelo desenfreado ritmo da vida moderna.

Diante mão, por ser uma obra curta, não aconselho devorá-lo por inteiro numa tarde. Só a Gente Sabe o que Sente deve ser lido aos poucos, homeopaticamente, de preferência como coparticipe de outras leituras. Eu, por exemplo, tenho hábito de ler vários livros de uma vez - geralmente três - cada um atendendo as minhas necessidades momentâneas. Só a Gente Sabe o que Sente me serviu de divã, de amigo, conselheiro, amante, dentre outros adjetivos, todos evocados pelos frissons que me acometiam ao longo dos dias. Nem por isso veja como se a obra tivesse um quê de autoajuda, apesar de transparecer pelo título. Trata-se de um bate papo com um cara apaixonado numa era onde tal sentimento é deliberadamente surrupiado de nós. Ter contato com esse sentimento me faz reavivar os meus, trouxe aconchego em noites onde a solidão parecia congelar minha existência e me proporcionou instantes de calma que eu acreditava ser impossível. Talvez esteja exagerando. Talvez não seja tudo isso. Porém, Elboni neste livro foi o instrumento dado pelo universo para atender aos meus anseios. Com você pode ser diferente. Seja como for, permita-se lê-lo e passe por aqui para dividir comigo a sua experiência. Afinal, Só a Gente Sabe o que Sente.

05 dezembro 2018



Provocar o leitor a pensar a respeito do que se lê é uma árdua tarefa enfrentada por muitos escritores ao longo da história. Em um plano geral, nem sempre certas ideias, por mais inovadoras que sejam, conseguem ser bem efetuadas no papel levando ao outrem uma reflexão acurada, profunda e acessível da gênese do pensamento daquele que escreve. Felizmente, a literatura universal possui alguns gênios responsáveis por ultrapassar esses limites impostos pelo fazer artístico, ao passo que suscita em nós os mais provocativos pensares acerca das nossas incongruentes existências. Nelas, luxúria e castidade, vaidade e moralidade, libertinagem e conservadorismo, compõem as muitas hipocrisias que insistimos em nutrir para viver em sociedade. O Retrato de Dorian Gray não só revisita esses polos, como também desnuda suas incoerências em uma época onde o belo sobrepõe tudo, algo resgatado e deveras enaltecido na atualidade.  

Escrito pelo Irlandês Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray foi publicado pela primeira vez em 1890. Devido ao seu conteúdo considerado como impróprio à época, o livro sofreu diversas sanções para que se adequasse as exigências editoriais antes de ser veiculado ao grande público. Dentre elas, as passagens homoafetivas foram as mais atingidas pela censura do período. Em boa medida isso estava ligado à conduta pessoal do escritor, que viveu abertamente uma relação homossexual que resultou anos depois em sua ruína. Porém, isso não retirou a maestria da obra, que mesmo eufemizada em certas passagens, conservou seu caráter original de enfretamento às incoerências de uma sociedade vitoriana. Ambientada numa Inglaterra do final do século XIX, a obra conta a história de Dorian Gray, que ao ter um quadro pintado a sua semelhança, escraviza sua imagem nele, criando uma representação animalesca de si mesmo.

A escolha do retrato não poderia ser mais pertinente. Não há arte capaz de reter tão fidedignamente a realidade do que as pinturas. Nem mesmo o advento tecnológico consegue tanta verossimilhança que muitos quadros clássicos da humanidade. As pinceladas do pintor captam as silhuetas invisíveis ao mundo real convidando o espectador a (re)olhar com mais minúcia determinados modelos. Assim como um artesão, breves instantes de vida se imortalizam nas mãos ágeis e delicadas de quem é capaz de aprisionar o tempo através das cores. Na obra quem encarna esse papel é o personagem Basil Hallward, o qual, encantado com a beleza do jovem Dorian Gray resolve fazer um quadro deste, cujo trabalho seria o mais importante da sua vida. Tanto empenho surge da imensa beleza emanada pelo rapagão, um verdadeiro Apolo do seu tempo, humanizado entre os meros mortais para deixar claro a mediocridade de suas existências. A princípio constrangido e incomodado com a bajulação de Hallward, Gray mostra-se alheio aos elogiosos comentários do pintor sobre sua beleza.

É quando lorde Henry Wolton entra em cena. Sua participação engrandece o romance. Em boa medida, suas colocações mordazes, seu humor leviano e a contumaz valorização da beleza como suprassumo da juventude corrompem a mente do jovem Gray fazendo-o reencontrar nele mesmo a valorização pessoal através da eternidade de sua aparência. Wolton representa também os anseios do próprio Wilde. É uma clara personificação do escritor frente à filosofia defendida por ele que apenas as coisas belas merecem ser valorizadas. Trata-se do Esteticismo, corrente defendida por Wilde na qual as belezas, por mais efêmeras e frágeis, são as únicas que importam. Tais ideais são sobrecarregados nas falas de Wolton levando-o a influenciar Dorian Gray. Hedonismo, e maledicência criam uma retórica inebriante acerca da relevância extrema que a beleza tem na vida daquele rapaz.

Sendo a juventude vulnerável por excelência, Dorian Gray se deixa levar pela capciosa interferência de Henry Wolton e passa a entender o sentido de sua existência a partir daquilo que há mais de precioso nela: a sua beleza e juventude. No afã da hipervalorização imagética, Basil resolve produzir um retrato do belo rapaz. O resultado final é mágico. Dorian ver-se pintado no auge de suas potencialidades físicas e, hipnotizado pelo que vê – assim como Narciso o fez em seu lago na antiguidade-, sente que suas feições serão deterioradas pelo tempo, enquanto aquele retrato permanecerá idêntico ao momento que foi pintado, guardando para todo o sempre o instante vivaz em que o belo e o novo – o que há de mais precioso para ser louvado, segundo o já mudado Dorian – estarão imaculados naquela imagem. Então, ensandecido pelo triste fim que sua perene existência mortal lhe reserva, ele invoca dentro de sua alma o desejo de permanecer infinitamente como aquele retrato, ao passo que o quadro carregaria as desgraças impostas pelo tempo.  

Ao se condenar a tal moldura, diversas implicações psicológicas emanam na vida de Dorian Gray. Entretanto, é preciso ler a obra para absorver as mudanças sofridas por este personagem susceptível a influências externas, mimado, por vezes irascível, mas tão atemporal. A autoflagelação de Gray irrompe o tempo. Hoje, a busca incessante pela beleza física tem feito com que diversos indivíduos entreguem suas almas, muitas vezes literalmente, para conquistar as definições perfeitas. Não à toa a beleza abra portas, sobretudo se for padronizada a partir do espectro eurocêntrico do qual foi moldada a cultura ocidental. O belo sobrepõe tudo, ultrapassa a emoção e extrapola a razão levando muitos indivíduos aos mais absurdos gestos para adquiri-lo. Tamanha supervalorização saiu das artes plásticas e ganhou notoriedade em outros veículos como o cinema, a mídia televisiva e hoje a internet.

O Retrato de Dorian Gray não apenas questiona a nossa devoção fanática pela perfeição corpórea como desmascara certas atitudes animalescas realizadas por nós para pertencer a tais ideias de beleza; tão fugidios em sua essência. É uma excelente obra. Curta, de linguagem simples, atemporal, provocativa, que nos faz refletir sobre como exaltamos inutilmente a beleza em detrimento de outras potencialidades caras à existência. Leitura imperdível para quem pretende entender os efeitos dos discursos hipnóticos usados por grandes nomes da sociedade para angariar milhares de seguidores ávidos por pertencimento através daquilo que é visto, e aceitável, como belo. Além das implicações reflexivas que inevitavelmente emergirão da obra, O Retrato de Dorian Gray é uma deliciosa leitura, mesclada com doses calculadas de humor, sarcasmos, aforismos, frases de efeito, filosofias, tudo isso sem pesar a mente do leitor com metáforas desnecessárias e por vezes incompreensíveis. O livro é tão belo na linguagem quanto em essência, por isso se imortalizou entre nós e figurará por muito tempo nessa era de Selfie onde o Retrato de Dorian Gray passou a ser digitalizado.

28 agosto 2018



Nutro uma imensa admiração pelo universo vampiresco. A princípio, a volúpia desses seres era o que mais me atraia. Seu ar sedutor mexia com o meu ego, provavelmente carente de tamanho magnetismo. Hoje, para além dessas peculiaridades, percebo o que mais me chama a atenção neles. Sou notívago. Logo, semelhante aos vampiros, a noite é o meu habitat natural. O silencio, a penumbra, a magia do luar e todo o misticismo noturno me enternecem. Para além disso, a imortalidade, mesmo que à custa do sangue alheio, me parece o combo perfeito para idolatrar essas figuras da escuridão. Sua privilegiada longevidade, sua capacidade de se metamorfosear em outros animais, voar e seduzir quem quer que seja, fez com que os vampiros sobrevivessem no imaginário popular, chegando a era atual tão fabuloso quanto em sua origem controversa no antigo mundo, cercado de crenças imaginárias sobre seres animalescos.

Nada mais justo, então, do que conhecer a gênese dessa criatura no universo literário a partir do clássico Drácula de Bram Stoker. Lançado em 1897 pelo irlandês Bram Stoker, trata-se de um romance gótico que narra a história de Drácula, um Conde residente na Transilvânia, desejoso em morar em terras Inglesas. Essa obra foi escrita em forma epistolar, ou seja, por meio de cartas, diário de bordo, relatos do cotidiano, em que os personagens contam os inacreditáveis acontecimentos envoltos à misteriosa atmosfera do vampiro. É um livro relativamente longo, mas nem por isso de leitura cansativa, apesar das inúmeras referências existentes nos rodapés das páginas, necessárias para a compreensão do enredo. Seu forte viés histórico é outro ponto a ser citado. Para maior entendimento da história, é preciso contextualizar o período histórico em que esta se insere. O enredo se situa antes da 1° Guerra Mundial. Então, ideais antissemitas estão presentes na obra.

Seu ritmo também merece ser pontuado. A obra não é linear quanto a cadência dos acontecimentos. Os primeiros capítulos são engenhosamente hipnotizantes e nos dão a sensação de que o livro será magistral do início ao fim. Porém, após um punhado de páginas, há uma queda, que não seria relevante, se o começo e os capítulos finais não fossem tão excepcionalmente mais excitantes. Entretanto, em sua totalidade, isso não compromete o enredo. Muito provavelmente, acostumados com uma literatura mais cinematográfica feita atualmente, estranhamos uma narrativa em que haja uma oscilação tão evidente no nível da história. O leitor também ficará surpreso, assim como eu fiquei, em não perceber a presença linguística da palavra Vampiro durante boa parte do livro. Stoker trata o Drácula como uma aparição, um ser fantasmagórico, que aparece mais por alegoria do que por chamamento. Por isso, em muitos momentos, sentimos a falta dele no enredo, porque falta uma invocação clara do autor.

Evidentemente que esse recurso trouxe um charme a mais a esse vampiro. Criou uma expectativa no leitor, que a cada página imaginava qual seria a descrição feita pelo autor. Logo, quando o Conde surge pleno na narrativa, compreendemos que as pistas deixadas por Stoker foram cruciais para entender a complexidade daquela criatura. Indiscutivelmente maniqueísta, a obra deixa claro quem são os mocinhos e os bandidos. Aos primeiros, o apego à religiosidade é nítido. Na verdade, o conservadorismo religioso no que se refere ao pecado, mortalidade, perdão, remissão, penitência, vão de encontro às características maléficas do vampiro. Ele representa a oposição aos desígnios divinos. Entretanto, nem isso tirou do Drácula o seu inegável carisma. Inteligente, sagaz, assustadoramente atraente, é, indubitavelmente, o personagem em que a vilania não maculou seu protagonismo. Pelo contrário, é a sua aura nefasta o que o faz despertar em nós os sentimentos mais controversos.

Trata-se de um morto-vivo, que por lógica deveria ser repugnado por nós, mas não é isso que acontece. As artimanhas do vampiro ao querer adentrar no mundo civilizado nos fazem imaginar como seria a sociedade daquela época, e porque não a atual, regido por alguém de tamanha astúcia. Esse é o outro ponto principal do livro, discutir o embate entre as crenças do antigo mundo e a crescente modernidade das cidades europeias. Como se sabe, Stoker bebeu de fontes muito antigas para elaborar essa história. A Irlanda, seu país de origem, é conhecido pelas lendas envolvendo duendes, fadas, dentre outros seres imortais que formaram o imaginário daquele povo ao longo da história. Com a expansão da Europa pelo resto do mundo, muitas tradições antigas forma esquecidas ou simplesmente deletadas dos ritos populares. Então, ao elencar a história de um ser que bebe sangue humano, imortal, estamos diante de um desejo de manutenção das autênticas narrativas mágicas da formação da Europa.

Nosso lado mais lascivo é significante em Drácula. Ele que ataca majoritariamente moças virgens diz muito do que herdamos de erotismo ao longo dos sexos. Nossa cama ainda é repleta de culpa, cuja sentença é aplicada por uma visão religiosa, que na obra é criticada a partir do provincianismo dos personagens. Por isso, o vampiro se torna o contrapeso nesse sentido. O Conde é a luxúria intolerável, mas buscada por todos nós para apimentar nossas insossas relações sexuais. Seu beijo ardente é a prova disso. Meticuloso, ele desfruta da sua presa aos poucos, sem pressa, até ela desvanecer por completo e se tornar sua escrava-amante eternamente. Quantas pessoas não se submeteriam a isso para serem plenamente realizadas no sexo. Porém, em contrassenso a essa, para muitos, devassidão, Stoker coloca personagens que validam os ideias da época como o casamento, a pureza, a virgindade, donzelas indefesas, estratégias que mantêm a hegemonia comportamental entre as relações conjugais tão atuais e frágeis como em outrora.

Por essa razão, Drácula de Bram Stoker serviu de inspiração para tantas outras obras do gênero, tanto na literatura, quando no cinema e teatro. O sanguessuga mais famoso do mundo traz muito de nós em sua essência, por isso ele se imortalizou em tantas obras. Ansiamos a imortalidade. Então, Drácula personifica esse nosso desejo de burlar a morte, adentrando as reentrâncias do tempo, mesmo que para isso tenhamos que renegar a dádiva divina baseada na finitude dos corpos. O vampiro representa essa afronta aos desígnios de Deus guardada em muitos de nós, que lotam as salas de cinema para idolatrar a potência daquele ser que venceu o invencível, o fim. Mostra o nosso lado animalesco, que não pensa duas vezes em exterminar o outrem, desde que a nossa sobrevivência esteja plenamente assegurada. Então, nada mais justo do que o Nosferatu ter as feições mais humanas possíveis, embora, embaixo daquela máscara haja um monstro, assim como há em cada um de nós.

Leitura imperdível.

01 maio 2018



Nutro há certo tempo um desconforto com obras focadas especificamente em espetacularizar o sexo, sobretudo quando a intenção explícita é usar este tema como subterfúgio para angariar mais leitores. Digo isso sem resvalar no pecado do conservadorismo, responsável por nos privar de muitas problematizações necessárias sobre questões urgentes como o prazer sexual. Pode soar ambivalente, mas não penso que o sexo não mereça ser o mote central de muitas obras literárias. Em absoluto, ele é um assunto demasiadamente improtelável frente aos borrões de cretinice impregnados em nossa cultura. Entretanto, para ganhar o status quo de relevância, é preciso ir as entranhas da nossa lascividade, vasculhar suas incoerências, revelar toda a hipocrisia acumulada e trazer à luz a nossa visceral vontade de gozar, esta fisiológica exigência do corpo sordidamente impedida de ser realizada, e discutida, como se deve. A Casa dos Budas Ditosos não apenas desvenda esses paradigmas, como também arruína todas as tentativas imperiosas de encaixotar o ato sexual dentro de uma forma binária, da qual fomos acostumados a ouvir o que pode ou não ser feito na cama, ou bem longe dela.

A Casa dos Budas Ditosos faz parte da coletânea Plenos Pecados, na qual cada obra enfoca a respeito de um dos pecados capitais. O da luxúria foi a incumbência dada a João Ubaldo Ribeiro. Entretanto, como bem sinaliza o autor antes de iniciar a narrativa, a história em questão lhe foi entregue no prédio onde trabalhava em um pacote contendo a transcrição datilografada de várias fitas, gravadas por uma misteriosa mulher intitulada apenas como CLB, nascida na Bahia e residente no Rio de Janeiro. A história é narrada por essa senhora de 68 anos contando em detalhes as suas inúmeras aventuras sexuais ao longo da vida. Todas verídicas, segundo ela. Porém, ao ler o livro, é impraticável por sobre seus relatos o artifício da dúvida, por se tratar de acontecimentos possíveis de serem realizados. Seu depoimento, porém, é, na mesma medida, delicioso e chocante, principalmente para aqueles mais puritanos no quesito sexo. Surpreende também a naturalidade como ela aborda subtemas sexuais ligados ao incesto, homossexualidade, bestialidade, intercâmbio sexual, pansexualidade, temáticas vistas com ojeriza pela maioria de nós, que apenas reproduzimos discursos vazios sem problematizá-los.

A linguagem chula da obra é o primeiro ponto que precisa ser mencionado. É um recurso comum em muitas outras ditas eróticas, geralmente para apropriar a narrativa ao que destina ser feito: ambientar uma atmosfera livre de pudores, quando na verdade, em muitos livros, serve apenas de mera artimanha linguística. Em A Casa dos Budas Ditosos não. Por ser uma obra de relatos, falar despudoradamente sobre sexo é inquisitivo, faz parte de tantas outras carências análogas. Trata-se de reproduzir as sentenças que mais representem os anseios de todas as experiências vividas pela narradora, as quais costumam vir encobertas em outras histórias sob o manto de eufemismos, construídos muitas vezes para agradar aos ouvidos. Aqui não é só proposital proferir um discurso lascivo, é crucial para se fazer ouvir, sobretudo quando aquele que diz foi/é emudecido historicamente de viver/praticar/sentir prazer. É a retórica da palavra em sua extensão mais política. Dá sentido ao que se lê, pois a intenção não é vulgarizar o enredo, mas justificá-lo através da verossimilhança do que está sendo contado. 

A própria literatura definida como erótica enclausurou durante muito tempo a maneira de se dizer o ato sexual entre os preciosismos metafóricos ou a enxurrada de escrotices pseudolibertárias. Faltava uma discussão sexual assim, voluptuosa, destemida e acessível, que se for capaz de nos assustar, como vai, é porque empreende toda uma significância imbuída de verdades inconversáveis a muitos de nós. Esta limitação pudica que se elaborou em torno da fala do sexo, em suas múltiplas variantes, é uma forma celibatária, careta, que nos aprisiona de avançar nesse quesito. A Casa dos Budas Ditosos quer que avancemos nessa questão. Seus relatos suscitam incomodo por retirar de nossas gargantas anseios inconfessáveis de nossas zonas erógenas mais remotas. Então, é preciso naturalizar nosso prazer, sem ruborizar a face diante de certas práticas sexuais ou dissimular suas existências. É de tanto fazermos isso que o sexo foi encapsulado aos guetos: motéis, sexy shops, saunas, clubs, recategorizando uma prática natural dentro do que é visto como desnaturezas humanas, como se quem infligisse as regras estivesse cometendo um ato ilícito. 

Inegavelmente, é o peso imposto pela moral que nos impede de burlar este cenário antiquado sobre o sexo. Nem mesmo a arte, esta instância de liberdades ilimitadas, escapou dessa censura. Por isso que, em termos de acessibilidade, obras mais idealizadas sobre o sexo chegam mais facilmente ao grande público, porque o sexo palpável, aquele animalesco contido em cada um de nós, não chega ao patamar de protagonismo. O que é vendido é a fantasia da fantasia sexual, o ato higienizado, por vezes teatralizado, entre um casal que finge quebrar todos os protocolos na cama, utilizando-se de apetrechos, uma música de fundo, lingeries refinadas, caras e bocas ensaiadas de tesão, mas, na verdade, são meros fantoches estrelando uma cópula tão sem graça quanto aquela que levou Adão a comer do fruto proibido. 50 Tons de Cinza é o fiel representante desse modelo sexual de quinta. Em A Casa dos Budas Ditosos tais penduricalhos, como são enfatizados no livro, são inúteis justamente por nos tolher de viver enlouquecidamente ou breves instantes de tesão que nos forem possíveis, apenas para manter um script démodé numa ocasião da qual não requer roteiros.

O livro também é um convite ao prazer. O leitor dificilmente não passará por breves momentos de excitação ao ler os relatos daquela senhora. São tão minuciosos em suas descrições que passamos a fazer parte daquela narrativa, como um adepto de voyeurismo inexperiente, dividido entre a mera contemplação e a monstruosa vontade de reproduzir aquilo que leu. Independentemente de suas preferências sexuais, em várias partes da obra você sentirá seu desejo posto à prova, em cenas onde práticas bissexuais, homossexuais, incestuosas, promíscuas e até alusões a sexo com animais, atordoem o que você imaginava estar consolidado. Esse é um dos grandes lances desse livro, sacudir as certezas impostas em nós sobre as nossas exclusividades sexuais, como se preferir certas práticas anulassem outras tantas possibilidades prazerosas, que nem por isso maculariam o todo de nossas predileções. É um convite a clandestinidade, mas sem necessariamente incutir o rótulo de criminoso. Apenas pessoas aventureiras dispostas a se permitir deleitar-se, ignorando o julgo da moral.

Por mais proibições que se criem em torno do sexo, nada é capaz de domar a natureza humana nesse sentido. É este instinto natural de copular que nos aproxima da face animalesca, justamente aquela tolhida por tantas e tantas instâncias culturais voltadas a higienizar nosso prazer. Porém, a bem da verdade, todas as tentativas se mostraram falhas, incapazes de reverter esse anseio humano pelo prazer sexual. O que ocorre é elaborar perfis humanos fracassados em suas práticas sexuais, frustrados em casulos de moralidade incapazes de proteger quem quer que seja. Seres indefesos em suas teorias regulatórias sobre como o sexo deve ser realizado, desperdiçando tempo com censuras incontestavelmente inúteis. Então, politicamente, este livro é um convite à luxúria trancafiada, porém, nunca eternamente aprisionada, em cada um de nós, não como pecado capital, dentro da áurea negativa que se criou, mas como prática humana emergencial, a qual eliminaria por completo diversos preconceitos sexuais que aglomeram as nossas vidas de limitações, restritas ao campo da tese, não da prática.

Mais que provocativo, A Casa dos Budas Ditosos é uma pequena amostra de uma vida sexual levada ao limite, ao passo que do outro lado - talvez escandalizados pelos relatos indiscutivelmente perturbadores aos olhos mais puritanos de quem foi educado a fazer o sexo equacional papai e/mais mamãe - há leitores malogrados em suas vidinhas sexuais insossas; ora desejosos de protagonizar aquelas páginas, ora demonizando-as hipocritamente. Há também aqueles representados pela narrativa. Faço parte sutilmente desse time. Mesmo me considerando na vanguarda desse tema, cheguei a subestimar a obra antes de lê-la em completude. Atitudes arbitrárias como essas são típicas de quem se vê a frente do sexo, quando nesse território, somos todos amadores. Quem dita as regras é o prazer. O Que há são participantes um pouco mais permissivos que outros. Autodidatas, talvez, mas sempre inexperientes. Seja qual for o perfil do leitor, a obra é um tratado educacional sobre sexo sem necessariamente se prestar a este serviço. Nos causa sensações diversas, mas nenhuma inverdade há naquelas histórias, por mais inventadas que fossem. Apenas as nossas vaidades, limitações e carências em sofreguidão, clamando para serem saciadas.

10 abril 2018



A história tem nos mostrado o quão perigoso é para quem detém o poder instruir as minorias. Em várias partes do mundo, tolher o direito universal da educação é manter restrito o sistema hegemônico desse seleto grupo de indivíduos, formado por políticos, donos de veículos de comunicação/publicidade, grandes indústrias, empresários, em sua maioria, mantenedores de suas riquezas às custas da exploração e silenciamento dos socialmente excluídos. Aqueles que ousam minar a ordem vigente tornam-se alvos fáceis para a fúria dos ditos poderosos, sobretudo se o embate for direto, preciso, voltado a desmascarar suas incongruências, na busca por um ínfimo espaço de dignidade entre os demais. Evidentemente nem todos são capazes de violar o que vem sendo pré-estabelecido há gerações. As razões para isso vão desde a alienação vendida a doses homeopáticas pelos mais influentes; seja por indiferença, sentimento oriundo da descrença de qualquer mudança positiva, seja ainda pelo temor à retaliação, principalmente de ordem física. Entretanto, para alguns, quando o que está em jogo é a formação educacional do ser humano, nenhuma ameaça é capaz de impedir a consolidação de certos ideais.

A história de Malala reafirma o penoso caminho que alguns mártires precisam trilhar para ter assegurado coisas mínimas para si e os demais como o acesso à educação. No livro escrito por Viviana Mazza, nos deparamos com a história de vida desta Paquistanesa, que na época era menor de idade, mas a tenra faixa etária não a impediu de enfrentar o regime ditatorial dos talibãs, na região de Mingora, onde ela, família, amigos e toda uma história de vida quase foi extinta, se não fosse pela coragem dela. Dentre as inúmeras proibições infligidas pelos extremistas, muitas delas eram voltadas às mulheres, tolhendo suas individualidades, liberdades e autonomias: uso irrestrito de burcas, confinamento em casa e impossibilidade de acesso aos estudos. De todas essas repressões, foi justamente a última que mais inquietou Malala. Vinda de um lar onde a educação sempre foi uma prioridade para os pais, a menina cresceu apaixonada pelos livros, cuja fonte inesgotável de conhecimento a instigava. Estudiosa, rapidamente se destacou entre as demais, sendo considerada várias vezes como uma das melhores alunas daquela região. Entretanto, em meio a isso, ela vê sua terra natal envolta em conflitos de ordem “religiosa”/política, com embates sangrentos que resultavam em destruição de cidades, deslocamento de refugiados e morte de inocentes.

Um cenário dessa natureza seria o suficiente para fazer com que muitos se acovardassem, principalmente uma garota de 15 anos. Mas não foi isso o que aconteceu. Malala contrariando as probabilidades fez do enfrentamento ao regime talibã sua bandeira pessoal. Não se tratava apenas de lutar pelo direito pessoal à educação, que por si só já seria legítimo, mas expandi-lo as demais garotas, todas proibidas de adquirir conhecimento, a não ser aquele ditado pelos extremistas. Então, mesmo após escolas serem fechadas, livros incendiados, militantes assassinados em praça pública, nada disso foi capaz de intimidar Malala de levar a cabo seus ideais. O preço pago por ela não poderia ter sido mais caro. Os talibãs atentaram contra à sua vida, quase ceifando-a por completo. Os tiros desferidos, porém, surtiram o efeito contrário: de estatística, Malala se tornou porta voz das atrocidades vividas pelos Paquistaneses, em especial as Paquistanesas, em Mingora, levando ao mundo as imagens horripilantes de uma garota ensanguentada após receber vários tiros apenas por querer a permanência dos estudos para as garotas de sua terra. Felizmente, ela sobreviveu, provavelmente movida pela força emanada pelos seus livros, pois, quando estava recobrando a consciência, a primeira pergunta dela ao pai questionava se seus livros estavam a salvo. Algo comovente, diante do seu imenso sacrifício.

O caráter de importância dado aos livros por Malala merece nossa atenção. Do Oriente Médio ao Brasil, passando por várias outras partes do mundo, apenas a leitura é capaz de oferecer as ferramentas para a transformação da realidade, ainda mais em territórios hostis, dominados pela violência extrema. Tanto no Paquistão quanto aqui, muitas minorias veem confinados os privilégios educacionais, responsáveis por oportunizar melhores condições de vida a todos e todas. Há um temor em permitir o contato ilimitado ao saber pelos excluídos. Isso não se dá à toa. Quando temos garantido a efetivação da educação, possuímos as chaves para a modificação das nossas realidades, transcendendo barreiras construídas para nos estagnar, ao passo que incentivamos outros marginalizados a percorrer os mesmos caminhos. Educar é, nesse sentido, encorajar os que vivem às margens a fazer suas próprias revoluções. É a escada de fuga do fosso de onde somos lançados à ignorância. Antes de tudo, significa reconstruir as bases humanitárias da formação do indivíduo, oportunizando a ele um leque de possibilidade para si e os seus, dando voz as suas causas e relevância as suas lutas. Por essa razão, quando uma menina de 15 anos teimosamente quebra o silêncio, fortalece toda uma cultura enfraquecida pelos horrores da guerra a combater a opressão e não se calar. O maior medo dos talibãs, portanto, não foi o atrevimento da garota, mas seu empoderamento, fruto de algo maior de que qualquer poder destrutivo humano, a educação.

Portanto, é do conhecimento absoluto que as tiranias mais temem, por isso se esforçam tanto em oferecer tão pouco ao povo, quando não privam esse ínfimo a porções ainda mais insignificantes de saber, pois assim permanecerão oprimindo os menores sem que estes tenham total ciência disso. Desse ciclo inacabável de desrespeito contra a intelectualidade humana surge os incontáveis abismos, onde mulheres, negros, pobres, índios, entre outros grupos, são arremessados. Malala, porém, foi uma das poucas que conseguiu escapar com vida desse desfiladeiro, mesmo assim não está totalmente livre de ser lançada nele. Nenhum de nós está. Por essa razão, ler a breve história desta garota Paquistanesa, contada por Viviana Mazza, é crucial para que certos levantes continuem sendo feitos. Sentir em palavras a narrativa dessa jovem é um soco nas nossas pusilanimidades. Trata-se de ter ciência de que somos capazes de nos rebelar contra quaisquer injustiças quando fazemos isso motivados por questões altruístas, e não simplesmente por egocentrismos. É um exemplo palpável de que a mudança está em nós, nossas escolhas, decisões e metas. Outrossim, é uma ode à educação inclusiva, postulado máximo de muitas culturas, mas pouco exercido na prática. No mínimo, é encantador a maneira como essa garota encontrou nos livros a convicção necessária para alicerçar um mundo melhor para si, sem perceber que sua noção de mundo iria se ampliar para todo o globo. Se ela foi capaz de fazer tudo isso naquelas condições, imagina o que poderíamos ser capazes de fazer com a nossa realidade? Melhor, quantas tragédias no mundo poderiam ser evitadas se crianças como Malala tivessem contato com a educação, com os livros?

Precisamos beber de sua coragem e não sucumbir ao primeiro fracasso.



Dentre os muitos clichês que escutei ao longo da minha vida sobre os relacionamentos amorosos, um em especial merece ser resgatado do senso comum, ganhando ares de importância filosófica. Trata-se da assertiva a qual diz que o amor é cego. A polissemia nesse enunciado é o que garante a ele ares de relevância. Isto porque, o amor- esta instância superior ansiada por todos e, por isso, supervalorizada ao longo da história – obscurece a visão dos mais apaixonados, fazendo-os idealizar um projeto de vida a dois que deixaria os mais açucarados autores de novelas insossos em suas criações. Por ser o patriarca dos sentimentos, sua supremacia se dá através do desejo de poder desfrutar uma vida plena com a pessoa amada, mesmo que para isso crie-se um mundo de fantasia onde as imperfeições do relacionamento e, sobretudo, do parceiro (a), passem despercebidos ou sejam ofuscados pela nossa obcecada vontade de viver um romance romântico. Quando aquilo que nos nublava à vista se dissipa, nos damos conta de que o que achávamos ser amor estava próximo de uma patologização da nossa identidade, algo que impedia a nossa existência de ver o sol, de ver a vida que nós perdemos.

Foi essa a maneira que encontrei de tirar o engasgo da garganta após ler A Garota no Trem, de Paula Hawkins. A narrativa é centrada na história de Rachel, uma mulher que faz um percurso diário de uma cidade a outra na Inglaterra de trem, passando por trás de casas onde ela acompanha a rotina de um casal, denominados por ela como Jess e Jason, cuja relação aparentemente perfeita, a faz idealizar a personalidade deles, suas carreiras, histórias de vida e, principalmente, seu relacionamento. A princípio, Rachel fica entusiasmada com o que vê: as carícias entre aqueles dois desconhecidos, a forma como se portavam, mesmo sabendo que havia um trem e que pessoas poderiam estar visualizando sua rotina. Aquele convívio harmonioso se torna inspiração para aquela espectadora matinal. De tanto observar, ela elabora uma cadeia de possibilidades para os pseudônimos Jess e Jason, atribuindo peculiaridades a eles a partir de uma óptica simplista focada na aparência de ambos. Entretanto, tudo muda, quando Rachel vê um terceiro elemento, desconhecido até então por ela, irromper nesse conto de fadas visto dos trilhos. Daí em diante, a história ganha longos contornos até o seu surpreendente fechamento.

Para quem está acostumado a ler thrillers, certamente sabe que tais enredos costumam ganhar intensidade ao folhear das páginas. Para mim, que li pouquíssimos livros desse gênero – e já havia me esquecido desse recurso – foi meio maçante de início ler as primeiras páginas de A Garota no Trem. Confesso que não foi um livro que me ganhou de primeira. Ficava constantemente esperando que algo desse mais velocidade a trama, mas, mesmo com capítulos curtos, a história seguia lenta, como se precisasse esmiuçar cada detalhe antes de ganhar a celeridade adequada, ou pelo menos esperada pelo leitor. Então, levemente entediado, persisti e não me arrependi. Após terminar o livro, compreendi o porquê de sua narrativa morosa: era preciso detalhar cada panorama dos personagens, entender seus dramas, conflitos, realidades, até fazer o cruzamento de todas as peças. Decerto, a minha crítica quando ao tempo não deve ser vista como algo que desqualifica o livro. Em sobretudo, é uma boa obra. Apenas leitores desacostumados com esse gênero podem sentir o estranhamento que eu senti. Aqueles menos perseverantes, poderiam incorrer pelo erro de abandonar a leitura, acreditando não valer a pena dar continuidade. Caso você faça parte desse segundo grupo, sugiro retomar a leitura o quanto antes, pois não há razões para se arrepender.

Dito isso, é preciso retomar à máxima da obra, o amor. Este sentimento é avaliado a partir de uma óptica novelesca, com momentos evidentes de pieguice, melodrama, psicopatia, entretanto é a manipulação desse sentimento que confere status quo A Garota no Trem. Quando se vive numa relação em que os dois não estão no comando, mas apenas uma das partes, o que ocorre é a dissimulação do que se vive, fato responsável pelos inúmeros desentendimentos, brigas, traições e toda a sorte de violências físicas, verbais e emocionais derivadas disso. Não se pode permitir o outro controlar o nosso amor. Estar com alguém não quer dizer se submeter a esse alguém. Quando não é feita esta separação clara, substituímos o eu pelo outro, e de tal totalidade há a anulação de uma existência em detrimento da outra. Em outras palavras, o fato de amar alguém não significa nos desamar. É preciso encontrar um equilíbrio. O problema é que a tradição literária/midiática/hollywoodiana ganha milhões de adeptos há gerações nos dizendo o oposto, fazendo-nos acreditar no amor como sacrifício, penitência, o que não deixa de ser verdade por completo, mas não se limita a isso. Então, desprovidos da visão, somos guiados pela elaborada ideia de amor doentio que nos foi dada como a única possível.

Por essa razão, A Garota no Trem nos prende, porque percebemos a quebra desse sonho romanesco a partir da fantasiosa obsessão de Rachel por aquele casal. Evidentemente que ajuda entender a história da personagem central, recém separada, machucada emocionalmente, submersa no vício e indiscutivelmente perdida, perfil típico das mulheres abandonadas, depois de saírem – ou serem expulsas – de relações abusivas. No caso dela, nada disso é inverossímil, todavia, não passa de mais uma estratégia social responsável por colocar um dos pares, geralmente a mulher, no patamar de vulnerabilidade após o término de uma relação, numa clara alusão ao machismo ainda vigente nesses tipos de arranjo. Hawkins, para descontruir tal atmosfera, precisa validar Rachel, legitimar a sua dor ao longo do livro, mas sem vitimizá-la descaradamente. É preciso que o leitor entenda o estado doentio dela, a obstinação pela vida dos desconhecidos Jess e Jason – que na verdade se chamam Megan e Scott – sua compulsão pelo álcool, o descrédito dos amigos, familiares, para a partir daí buscar razões justificáveis capazes de explicar porque ela chegou tão rapidamente ao fundo do posso. Ninguém se afunda em si mesmo se a atração em levá-lo para baixa seja mais forte do que as mãos que tentam resgatá-lo.

Hawkins faz isso: resgata uma mulher desacreditada por todos, preenchendo as suas lacunas, elucidando suas dúvidas, ao passo que desnuda as suas dores. Não é uma tarefa simples. Quando estamos fragilizados emocionalmente, apenas os olhares pesarosos nos enxergam, os mais racionais se limitam a julgar nossa dor, mas nunca em entendê-la por completo. Para piorar o estado de Rachel, aquela que ela chamava de Jess desaparece misteriosamente, levando a traumatizada protagonista a se envolver ainda mais na vida daqueles indivíduos, até então totais desconhecidos. Soma-se a isso os constantes encontros e desencontros com o seu ex-marido, Tom; a compaixão desmedida da amiga Cathy e agora a quebra de expectativa de Rachel quando esta descobri, a partir do sumiço de Megan, que a realidade vivida por aquele casal não passava de uma quimera. Eis ai mais uma intenção do livro: nos mostrar que relacionamentos perfeitos não existem, sobretudo vistos de perto. Dessa forma, é possível entender o recurso da distância. Ao passar de trem, a protagonista tem a esperançosa sensação de que há pessoas felizes com os seus respectivos parceiros, diferentemente dela, que foi abandonada pelo seu. É desse alento que reside a dissimulação do amor, em achar que este sentimento é isento de imperfeições, fazendo dos amantes seres mágicos imersos numa vida de devoção cega um pelo outro. Apesar de instantes lúdicos dessa natureza serem possíveis, o amor real costuma vir carregado de provações a serem superadas.

Guiando-nos a seu belprazer por rotas onde só o amor doentio conhece, A Garota no Trem merece ter seu lugar entre as obras modernas de destaque. Apesar de instantes de clichê – típicos do gênero thriller e não da obra propriamente dita – a obra esclarece as dúvidas da personagem sobre o que parecia ser um relacionamento perfeito entre Megan e Scott, ao passo que, por extensão, nos alerta dos perigos do amor patológico. Tudo isso através do trem, mais poderia ser outro mecanismo de mobilidade qualquer. O enfoque aqui também reside nessa nossa falha de achar que sempre a vida do outro é melhor; seus relacionamentos são mais intensos e que o fracasso do fim da relação que tínhamos com alguém se resume a um culpado, o eu, quando na verdade não é o eu que erra, e sim o nós, já que se trata de um convívio entre duas pessoas. Então, quando culpabilizamos apenas uma das partes, perdemos a direção, o respeito próprio e mútuo, tão caros à dignidade humana. Infelizmente, não somos educados e ver o amor a dois por esse ângulo, limitando nosso alcance ocular naquilo que nos apresenta: o amor rasgado, intensamente doce, melado, escorregadio, até carregado de privações, mas todas superáveis, levando-nos a descarrilhar completamente quando percebemos que, na prática, o amor exacerbado pode nos lançar literalmente para fora do trem.